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JESUS HOMEM
Semelhante a nós
A relação dos sofrimentos de Deus com os sofrimentos do homem

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4
Pr. Silas Carvalho

JESUS HOMEM
semelhante a nós
A relação dos sofrimentos de Deus com os
sofrimentos do homem

1ª Edição

São Paulo

2018

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JESUS HOMEM
semelhante a nós

Copyright © 2018 by Silas Carvalho


Editora Vida Pura ©

Editora Vida Pura 


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com a devida autorização do autor e todos os
direitos reservados.


1ª Edição em Português © 2018 Editora Vida
Pura – Novembro de 2018.
Todos os direitos em língua portuguesa
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1ª Impressão – Novembro de 2018


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reproduzida ou transmitida sob qualquer
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autorização prévia por escrito da Editora Vida
Pura.


Coordenação editorial: Sid Marques
Supervisão Editorial: Filipe Bentle
Revisão: Sid Marques
Diagramação: Sid Marques
Design de Capa: Carlos Gonçalves

6
Dedico a todos aqueles que de alguma forma estão
passando pelo Vale do Cedron a caminho do escuro
jardim.

7
Agradeço a Deus por permitir, pela sua graça, que meu
ministério ainda exista.
A minha esposa, pela força nas crises.
Em particular, ao Filipe Bentle, por fazer real na minha
vida as palavras do Rei Salomão: "[...] há amigos mais
chegados do que um irmão."

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Sumário
Prefácio....................................................................................11

Introdução...............................................................13

Capítulo 1

Negação da humanidade de Cristo na história da igreja ...... 21

Capítulo 2

O Primeiro homem ....................................................................... 41

Capítulo 3

O Sofrimento Prova a Humanidade de Cristo ....................... 57

Capítulo 4

A Noite Escura do Senhor .......................................................... 75

Capítulo 5

O Cálice........................................................................................... 97

Capítulo 6

A Prensa ....................................................................................... 107

9
Capítulo 7

Conformidade Ao Cordeiro .................................................... 117

Capítulo 8

Um Exemplo Entre Muitos ..................................................... 131

Conclusão

A Glória Futura .......................................................................... 153

Referências ............................................................................... 160

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PREFÁCIO

Os maiores tesouros da Igreja surgiram debaixo do fogo


da provação. O ouro para se tornar precioso ter que ser
refinado, e o fogo têm sido o meio para que os materiais
mais valiosos desse mundo sejam formados. Com Deus
não é diferente. Durante a longa história do homem, Ele
sempre forjou os seus maiores tesouros através da
fornalha. Em todo esse trabalho divino, o próprio homem
tem desfrutado desses tesouros que foram produzidos
para glória de Deus.
Se Bunyan não tivesse enfrentado as terríveis tribulações
que ele passou, não teríamos o Peregrino. As institutas de
Calvino foram forjadas através de muito labor e oração.
Lutero bradou a Sola Scriptura sendo massacrado pelo
inimigo. O diário de David Brainerd, que levantou várias
gerações de missionários, é fruto de uma esmagadora
depressão que o afligiu em sua curta vida. Não estou
incluindo nesta lista todos os escritores bíblicos que, com
muitas lágrimas e sangue, nos legaram o maior dos
tesouros. Estudem os melhores livros, as maiores
pregações, os mais belos hinos e verão que praticamente
todos foram frutos de uma ardente provação.
As provações têm como fim a produção de algo de valor
nas vidas dos filhos de Deus. Seja na própria pessoa ou
em alguma obra que a pressão lhe conduz para que seja
produzido. Algumas obras são feitas com mais detalhes e
refinamento, enquanto outras não são tão elegantes. Essa
obra faz parte dessa segunda categoria. Apesar de não

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ser tão sofisticado, é algo que sai de um coração desejoso
de contribuir de alguma forma para o crescimento da
Igreja.
Se esse escrito abençoar a vida de quem se encorajar a
ler, então estarei grato ao meu Deus por Ele aceitar meus
cinco pães e dois peixinhos. Que Ele, por sua abundante
graça, possa transformar essa humilde refeição em um
banquete no deserto para a sua vida. A Ele a glória e a
nós edificação.

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Introdução
“O Verbo de Deus se fez homem para que o homem
receba a filiação divina... pois, como poderíamos
participar da eternidade e imortalidade se, antes, não se
tivesse feito como nós O Eterno e imortal? De modo
que, nossa corruptibilidade fosse absorvida por sua
incorruptibilidade, e nossa mortalidade por sua
imortalidade”.
Irineu de Lyon

O apóstolo João em seu evangelho nos diz que o


homem Jesus é o Verbo de Deus, que estava com Deus
desde o princípio e que esse Verbo era Deus. Ele é o
criador e sustentador de todas as coisas. Porém, quando o
apóstolo João escreve a sua primeira epístola, ele nos diz
que esse Verbo divino que estava com Deus e era Deus, é
homem. O que era desde o princípio esteve em nosso
meio. Nós o ouvimos, os nossos olhos o viram, nós o
contemplamos e as nossas mãos o tocaram. A vida havia
se manifestado e teve comunhão conosco, escreve o
apóstolo.
Houve uma necessidade de testemunhar que o
homem Jesus era Deus, e agora, na epístola, há a
necessidade de testemunhar que o Deus Jesus é homem.
Ele ressaltou em sua segunda carta que “de fato, muitos
enganadores têm saído pelo mundo, os quais não
confessam que Jesus Cristo veio em Corpo”. (2 Jo 7)
Parece que algo realmente estranho já estava
acontecendo no primeiro século e fez com que João
escrevesse essas graves palavras.

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Uma antiga tradição que remonta ao II século,
corrobora com essa ideia quando descreve um embate
entre o apóstolo João e um famoso mestre gnóstico de
Éfeso chamado Cerinto. Essas visões estranhas da pessoa
de Cristo já causavam uma grande perturbação para a
igreja primitiva. Roger Olson escreve sobre um encontro
que o apóstolo teve com esse herege:

“Conforme a tradição, João foi ao balneário público de


Éfeso com alguns de seus discípulos e, ao entrar,
percebeu que Cerinto estava ali. Então saiu apressado
de lá. Sem se banhar, exclamando: ‘Saiamos depressa
para que ao menos o balneário não desabe sobre nós,
pois Cerinto, o inimigo da verdade, ali se encontra’”.

As palavras de João com respeito a Cristo em seus


escritos bíblicos, eram o princípio da formulação de uma
doutrina que ficaria conhecida como “união hipostática”,
onde duas naturezas distintas, divina e humana, porém,
nunca separadas, estavam integradas numa só pessoa,
Jesus Cristo. Por mais difícil que pareça ser a
compreensão desse pensamento, isso não significa que
temos o direito de negá-la. Essa atitude displicente fez
com que muitos rejeitassem esse mistério na pessoa de
Cristo. O fruto dessa negação foi uma perigosa confusão
que realmente ameaçou a doutrina da salvação.
Homens como Apolinário, bispo de Laodiceia,
defendia a divindade de Jesus, mas entendia que em
Cristo, a alma divina (ou o Logos), tomou lugar da alma
humana. Eutiques, monge em Constantinopla tinha o
mesmo pensamento quando dizia que a natureza divina

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absorveu a natureza humana. Esses ataques contra a
humanidade de Cristo foram seguidos por ataques contra
a sua divindade. Os ebionitas já diziam que Jesus fora um
profeta extraordinário, pois se identificava com os pobres
e miseráveis, mas não era Deus. Os adocionistas, por
outro lado diziam que Jesus homem foi tão submisso ao
Pai, que Ele o adotou como Cristo e lhe deu uma posição
exaltada e divina. Ário, um diácono de Alexandria causou
um grande estrago no cristianismo primitivo, ao ponto de
quase todo Império Romano, cristão na época, se tornar
ariano. Foi preciso Atanásio, praticamente sozinho em seu
tempo, se levantar para destruir as ideias arianas que
diziam que Jesus não passava de uma criatura.
Por causa dessas inúmeras visões divergentes
quanto a cristologia, se tornou uma necessidade para a
igreja “entender”, aceitar e guardar o mistério tanto da
divindade, como da humanidade de nosso Senhor numa
pessoa única, e essa necessidade se torna evidente desde
o princípio do pensamento cristão. Não foi por acaso que
João escreveu esses dois testemunhos de nosso Senhor.
Havia, e ainda há uma batalha sendo travada contra a
humanidade e a divindade do Jesus histórico, e esse
debate ainda se torna imprescindível em nossos dias.

A Formulação da Doutrina

Como vimos, a necessidade de um ensinamento


equilibrado e ortodoxo sobre a pessoa de Cristo, é fruto
do pensamento que antecedeu os herdeiros dos
apóstolos. Antes mesmo dos Pais da igreja se debruçarem
sobre esse mistério, os primeiros escritores já davam as

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diretrizes seguras quanto à união das duas naturezas na
pessoa de Jesus. Com a morte de João, o último apóstolo,
ficou a cargo de seus sucessores guardarem e manterem
o bom depósito da fé. A igreja vivia novos contextos, com
novas controvérsias que precisavam ser definidas ou
consolidadas.
Devemos notar que nos dias que sucederam aos
apóstolos não havia uma unidade quanto à autoridade, a
ortodoxia e nem mesmo com as escrituras. O cânon, a
Bíblia que temos hoje, ainda estava em aberto e havia a
necessidade da autenticidade dos livros que se diziam
inspirados por Deus. Era uma grande dificuldade diante da
igreja recém-nascida, e os escritos inspirados às vezes
traziam mais confusão do que união. Era preciso lideres
preparados e capacitados por Deus para definir esse
debate de suma importância para a “jovem” fé evangélica.
As doutrinas fundamentais do evangelho de Cristo
surgiram debaixo do fogo da desconfiança quanto à
pessoa de Jesus, e os desafios enfrentados pelos
primeiros pensadores foram imensos. As heresias foram o
motor que fez com que esses grandes homens surgissem
e, a ironia desse fato é que o próprio gnosticismo, a
principal heresia do II século, contribuiu para o avanço da
igreja. A ortodoxia, que significa o ensino correto, estava
ganhando forma e se solidificando por causa dos falsos
ensinos que se multiplicavam naqueles dias.
Se hoje, com toda a herança teológica que temos,
os lobos têm disseminado o engano em nosso meio,
imagine no segundo século quando não havia nada
estabelecido, apenas os escritos inspirados, não inspirados
e heréticos espalhados por todos os lados. Rejeitar esses

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homens e o que eles escreveram por não querer se
esforçar um pouco para entendê-los, é uma desprezível
atitude que a igreja pode tomar. É um pecado de
ingratidão pelo grande esforço exigido por eles em um
contexto totalmente contrário e intolerante.

O Pensar Correto

Todos nós somos teólogos, e a questão não está


nesse fato. O que importa nesse debate é se somos bons
teólogos ou não. Esse é o real problema. Por que eu digo
isso? É simples: o que as pessoas acreditam afeta o modo
como elas vivem. E com respeito à pessoa de Jesus, o
problema vai além. Dependendo de como você entende a
pessoa de Cristo, o culto, algo tão vital para a igreja
cristã, será totalmente influenciado por essas crenças.
Diante desse fato, não seria um exagero dizer que
muitos têm cometido uma terrível idolatria em suas festas
de comunhão por não compreenderem realmente quem é
o Jesus que eles adoram. O conhecimento é à base da
adoração. Cristo, diante daquela mulher samaritana, disse
que a sua adoração era sem conhecimento. (Jo 4.22) Eles
tinham uma vaga noção do Deus que adoravam e uma
errônea noção de como deveriam adorá-lo. A adoração
tem como base a certeza de quem Deus é. Uma pequena
falha diante da verdade sobre as pessoas da trindade, por
mínima que seja, poderá acarretar em uma grave
blasfêmia.
É de impressionar, como os pensadores de nosso
tempo tem se dado o trabalho de remover os antigos
marcos que delimitavam, com segurança, a fé evangélica

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de erros e heresias com respeito à pessoa de Cristo. Há
uma ânsia por desfazer aquilo que, por tantas lutas, foi
firmado como verdade teológica. Cristo deixou de ser o
Deus encarnado para se tornar um grande profeta, ou um
excelente professor, ou ainda um grande mestre, ou por
fim, um acurado psicólogo. São pensamentos liberais que
destronam o Deus Homem de sua posição de glória. É a
contemporânea abordagem simpática e amiga do
“homem” Jesus que andou entre nós.
C.S Lewis por muitos anos relutou contra essa ideia
da divindade do Jesus humano. Era inconcebível para um
pensador moderno acreditar em contos míticos de uma
mitologia barata. Mas com o passar do tempo, aquele
Servo sofredor capturou o coração do mais relutante dos
ateus. Diante dos ataques contra o Deus homem em
quem ele cria com todo o seu coração, escreveu:

“O que tento fazer aqui é alertar cada um a não dizer a


coisa mais tola que as pessoas frequentemente têm dito
acerca dele: ‘Eu estou disposto a aceitar Jesus como um
grande mestre da moral. Mas eu não aceito sua
alegação de ser Deus’. Eis aí algo que não devemos
dizer. Um homem que é simplesmente um homem e diz
o tipo de coisas que Jesus disse não poderia ser um
grande mestre da moral. Ele seria um lunático – no
mesmo nível do homem que diz que é um ovo cozido –
ou então ele seria o próprio demônio do inferno. Você
tem que fazer uma escolha. Ou esse homem foi, e é, o
filho de Deus, ou era louco ou uma coisa pior. Você
pode fazê-lo calar como se ele fosse alguém muito
perverso ou você pode cair aos seus pés e chamá-lo
Senhor e Deus, mas não me venha com esse

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paternalismo estúpido sobre ele ter sido um grande
mestre. Ele não nos deixou essa opção. Ele sequer teve
essa intenção... Quanto a mim, parece óbvio que ele
não era lunático, nem perverso e, consequentemente,
por mais estranho, chocante e questionável que pareça,
eu tenho aceito a visão de que ele era Deus”.

Não existe opção para crermos que aquele Deus


encarnado que andou entre nós não era homem, ao
mesmo tempo em que não há como negar, de acordo
com esse pensamento, que aquele homem entre nós não
era Deus. Lewis, apesar de ser um grande pensador, não
era teólogo no estrito sentido da palavra, mas teve que
argumentar contra as ideias abundantes em seu tempo
que distorciam a pessoa integral de nosso Senhor. É
nosso papel como herdeiros da verdade evangélica,
primar pelo cuidado daquilo que foi conquistado com
tanto labor, lágrimas e sangue.
O nosso propósito nesse livro é focar a humanidade
do Deus eterno e imutável que, em um gesto de
obediência, humildade e amor, desceu até as partes mais
baixas dessa terra, não para nascer em palácios longe da
realidade da miséria humana. Esse não é o nosso Cristo.
Ele veio como homem, viveu como homem, sofreu como
homem, morreu como homem e ressuscitou como
homem. Ele é Deus que se tornou carne e alargou as suas
tendas entre nós. Isso mostra o quanto o plano de Deus
foi perfeito. O divino se tornou homem e homem
semelhante a nós.

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Capítulo 1

Negação da humanidade de Cristo na


história da igreja

“Creio em Jesus Cristo, verdadeiro Deus, nascido do Pai


desde a eternidade e também verdadeiro homem,
nascido da virgem Maria. É meu Senhor, que me remiu
a mim, homem perdido e condenado. Me resgatou e
salvou de todos os pecados, da morte e do poder do
diabo. Não com ouro ou prata, mas com seu santo e
precioso sangue e sua inocente paixão e morte, para
que eu sirva em eterna justiça, inocência e bem-
aventurança assim como ele ressuscitou da morte, vive
e reina eternamente. Isso é certíssima verdade”.

Martinho Lutero

Na história da igreja surgiram algumas correntes de


pensamento divergentes sobre a pessoa de Jesus. Entre
eles, houve um grupo chamado docetismo que desafiou o
pensamento comum, porém não definido, sobre Cristo
durante os primeiros séculos da igreja. Todos esses
movimentos marginais, ou nem tanto, na história do
pensamento cristão, eram ramos de um movimento maior
que remonta aos tempos de Paulo e João. Os estudiosos
chegam à conclusão que esses dois homens combateram
em seus dias o protognosticismo que já estavam

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ganhando forma e força dentro do movimento cristão. A
carta aos Colossenses de Paulo e os escritos de João são
um forte ataque ao pensamento herético que perturbava
a jovem igreja. E o docetismo não agiu de modo
diferente.

A Doutrina da Aparência

A palavra doceta, da qual surgiu o movimento


chamado docetismo, significa “aparência’’. Para eles,
Jesus aparentava ser homem, mas não era. Cristo apenas
parecia ser carnal, mas na realidade, ele era apenas
espiritual. Esse movimento negava veementemente a
encarnação de Cristo.
Para entender melhor esse movimento teológico,
temos que compreender o contexto em que a igreja
estava mergulhada. A influência da filosofia grega era
muito forte no meio do pensamento cristão. Platão, assim
como Aristóteles, falava muito alto aos ouvidos dos
primeiros pensadores, seja ele herético ou ortodoxo.
Juntamente com os ataques internos contra a
jovem Igreja, surgiram ataques do lado de fora por
pensadores pagãos e, entre eles, um judeu chamado
Celso que era fortemente influenciado pela filosofia grega.
Os ataques eram públicos e deles se originavam escritos
que eram espalhados por Roma trazendo como resultado,
um despertar anticristão sobre a população. Esses escritos
por muitas vezes foram à fonte do ódio do Império
Romano contra a inocente igreja. O ataque de Celso tinha
como base a “idolatria” que os cristãos cometiam ao

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adorar um homem, isto é, Jesus, e não o Deus
verdadeiro. E ele dizia:

“É impossível que Deus tenha descido a terra, pois, se o


fizesse, teria de mudar sua natureza.”

Roger Olson

A filosofia grega está no cerne desse pensamento


da impossibilidade de Deus passar por experiências
humanas. Aristóteles dizia que “uma mudança em Deus,
seria uma mudança para pior.” Não pode haver mudança
no estado de perfeição. A imutabilidade de Deus impede
que isso venha a acontecer, dizia o filósofo.
Assim como a filosofia desses pensadores, o
docetismo cria que a matéria, principalmente o corpo
humano, ou era má ou estava tão corrompida que era
praticamente impossível o redentor divino se associar a
ela. O corpo era uma prisão que limitava a boa alma
humana. Era uma “centelha de Deus’’ aprisionada por um
obstáculo maldito, diziam. Platão, assim como muitos
filósofos gregos ansiava pela libertação desse corpo mal, e
influenciado por essa filosofia, os gnósticos docetas
rejeitaram toda a ideia da encarnação de Cristo.

O Exclusivismo Gnóstico

O movimento gnóstico era totalmente sincretista


em sua base teológica. As suas raízes se estendiam pela
astrologia babilônica, na filosofia grega, nas religiões de
mistério e no apocalipsismo judaico. Ele era um “furto de

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alguns trapos cristãos para cobrir a nudez do paganismo”.
A sua base teológica não estava presente nos escritos dos
profetas e, muito menos nas palavras de Cristo e dos
apóstolos. Esses “conhecimentos melhores e mais
abundantes” que eles professavam, eram disfarçados com
uma linguagem cristã, porém esvaziada de seu conteúdo.
Todos os movimentos oriundos do gnosticismo
diziam ter alcançado um conhecimento especial e
exclusivo de como alcançar a salvação. O evangelho, com
essa atitude exclusivista, corria um sério risco de se tornar
uma religião de mistério e, esse mistério estava limitado a
somente alguns privilegiados que tiveram uma revelação
especial de Deus. Eles se colocavam como o porta voz de
uma revelação salvífica única, recebido não por intermédio
dos apóstolos, mas numa relação direta com o Ser
Supremo, e por isso, o conhecimento que tinham era um
conhecimento que somente eles possuíam. “O gnosticismo
era uma forma diferente de evangelho de salvação, com
uma ideia diferente da condição humana, para qual a
salvação é a solução, e uma ideia diferente da própria
solução”.
Sabemos que o evangelho realmente é um
mistério, mas um mistério revelado. “O que os olhos não
viram, nem ouvidos ouviram e nem jamais penetrou o
coração humano” (agora vêm à parte esquecida de muitos
que leem esse texto), o Espírito revelou a igreja. (I Co.
2:9,10). Esse mistério foi dado de uma vez aos apóstolos
e profetas, e esses, juntamente com todo o corpo, são os
conhecedores e mantenedores do propósito de Deus, não
um grupo específico. Se você tem o Espírito Santo você
tem a unção, e não precisa de um “conhecimento” novo e

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especial da parte de Deus sobre a salvação ou qualquer
outra coisa.
É importante compreender que a noção de unção
que João usa nesse texto não se refere a um dom, ou a
uma experiência mística destinada a um grupo específico.
O que o apóstolo tem em mente quando escreve essas
palavras é a pessoa do Espírito Santo que todos os que
nasceram de novo possuem. A sua intenção era destruir o
orgulho espiritual causado por um partidarismo eletivo
que já era comum em seus dias. “Nós não somos uma
minoria esotérica iluminada, como os hereges pretendiam
ser”. Era praticamente esse pensamento que dominava a
mente do apóstolo ao escrever as suas cartas.

“[...] vós possuís unção que vem do Santo e todos


tendes conhecimento (gnosis)”. – Grifo do autor

I João 2:20 – ARA

Ele deixa bem claro que toda a igreja tinha esse


conhecimento “profundo de Deus”. Não havia essa
questão da minoria em João, mas a necessidade do todo.
“Vós, não menos que eles, estais entre os iniciados”.

Os Ataques ao Pensamento Comum

Essa nova revelação sobre a pessoa de Cristo foi


uma alternativa para a definição que o concílio de
Calcedônia propôs e aceitou como ortodoxia. Apesar de
essa visão Cristológica ser definida somente em 451 DC,
isso já revelava o pensamento comum da igreja sobre a

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humanidade e divindade do Senhor na pessoa de Jesus. O
que foi crido por todos, em todos os lugares e em todos
os tempos foi se definindo pouco a pouco com o passar
dos anos e dependendo das circunstâncias. Essas
definições tinham como base os escritos dos pais da igreja
que eram integralmente coerentes com a Bíblia.
Percebemos essa firmeza bíblica e teológica na conclusão
que os bispos escreveram sobre o debate da união
hipostática em Jesus. Ela dizia:

“Ensinamos que se deve confessar um só e o mesmo


Filho, nosso senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à
divindade e perfeito quanto à humanidade,
verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem,
constando de alma racional e de corpo; consubstancial
ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós,
segundo a humanidade, em todas as coisas
semelhantes a nós, excetuando o pecado, gerado,
segundo a divindade, antes dos séculos pelo Pai e,
segundo a humanidade, por nós e para a nossa
salvação. “

A Encenação da Encarnação

A explicação que essa corrente cristológica gnóstica


dava a manifestação humana de Cristo nos evangelhos
era que uma encenação teatral foi desempenhada por
Cristo quando a sua humanidade aflorava. Para eles, essa
encenação culminou no palco do calvário, onde o Messias
atuou brilhantemente o papel de dor e sofrimento na cruz.
Nada mais que isso. Eles consideravam “Jesus especial,
pois era o veículo adotado e usado pelo Cristo enviado por

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Deus. Mas para a maioria dos gnósticos pelo menos, o
redentor celestial que entrou em Jesus no seu batismo por
João no rio Jordão, deixou-o antes que morresse na cruz”.
Era o mesmo que dizer que no princípio havia uma
pessoa que se chamava Jesus e era humano. No batismo
foi possuído pelo Cristo com uma natureza divina. Mas
logo foi abandonado na crucificação, restando, assim,
somente a parte humana que morreu na cruz sem a parte
divina. Eram duas pessoas distintas e duas naturezas
distintas. Realmente era uma confusão sem definição,
pois, as várias correntes não tinham um pensamento
comum.

O Despertar da Igreja

A igreja se movimentou por causa desse tipo de


pensamento. Era necessário responder aos ataques
mentirosos contra a verdade evangélica. Como escreve
Roger Olson, “os cristãos se viram diante de um dilema:
ou ignoravam Celso e outros críticos semelhantes a ele e
retraíam-se em uma religião folclórica sem apresentar
uma defesa lógica ou enfrentar o desafio e criavam
doutrinas coerentes que reconciliariam crenças
aparentemente contraditórias como o monoteísmo e a
divindade de Cristo”.
Mas o que surpreende é saber que o que levou
esses primeiros pensadores a responder os ataques à fé
evangélica não foi “por orgulho, sede de poder ou um
impulso qualquer, mas para preservar a integridade do
evangelho e pelo bem do evangelismo, responderam
teologicamente”. Aquele que foi atacado estava

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simplesmente se defendendo. E o porquê esses homens
se arriscaram para preservar a verdade do evangelho,
deve nos levar a humildade e gratidão pelos seus
esforços. O seu intuito “foi por amor a salvação”. Eles se
arriscaram diante de um império hostil para que você e
eu, que nascemos no longínquo século 20 e 21, ouvissem
a pureza do evangelho e cresse na pessoa verdadeira de
Cristo. Sem a verdade não há salvação.
O Senhor nos disse que ao conhecermos a verdade,
ela nos libertaria. (Jo 8:32) Se a verdade fosse corrompida
no passar dos anos por causa da inércia desses líderes,
algo que certamente aconteceria, e se não houvesse uma
resposta teológica por parte desses homens, a salvação
seria impossível, pois, a verdade estaria enterrada nos
escombros da história. Como somos ingratos a esses
homens, como somos ingratos ao pensamento teológico.

Os Ecos do Docetismo

Com o tempo houve variações desse primeiro pensamento


docetista, mas todas visavam eliminar por completo a
humanidade de Cristo. Em sua base teológica “criam em
um só Deus, completamente transcendente, espiritual e
há muito afastado do universo caído e material, o qual
não criou”. Por não crer na materialidade como algo
inerentemente bom, rejeitavam o pensamento de que
Deus tenha participado da criação do mundo palpável. A
criação desse mundo foi um erro e não é fruto das mãos
do ser Supremo. Deste ponto é que nasce a ideia do
“demiurgo”, outro deus que foi a origem de todo esse

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cosmos. Desses primeiros conceitos podemos ver os ecos
nos pensadores futuros.
Marcião baseou o seu cânon tendo como princípio
esse pensamento de dois deuses, o do Antigo testamento,
Jeová, um deus inferior que criou esse universo por inveja
e nos colocou nesse mundo, e o deus do Novo
testamento, que foi revelado como o pai de Cristo Jesus,
o verdadeiro deus que veio desfazer as obras do primeiro.
Um é vingativo e exige justiça, o outro é amoroso e
perdoador. Então, quando Marcião se deparava com esse
mundo cheio de pecados, violência e dor, não podia
conceber que ele fosse criação do Deus supremo, Pai de
Jesus Cristo. A conclusão que flui desse pensamento é
que o Filho de Deus jamais poderia ter encarnado na
mesma forma que os homens são constituídos, pois eles
são criação de Jeová, o deus inferior.
Mas recentemente temos o movimento chamado
deísmo, com a ideia de um Deus ausente que deu corda a
esse mundo e foi-se para outro lugar. O universo se
movimenta por conta própria sem intervenção e direção
de um Deus atuante na sua história. Não há interação
entre o criador e a criatura. As leis naturais do universo
fazem com que tudo se movimente no mundo. “Deus é
um fazendeiro que não se importa com seu campo. Ou
mesmo como um exemplo muito usado para definir a
cosmovisão deísta: Deus é como um relojoeiro que deu
corda no relógio por ele feito e o deixou para funcionar,
sem se interessar em intervir.” São pensamentos tão
elaborados que os seus resquícios se fazem ouvir muitos
séculos depois.

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Alguns estudiosos da igreja disseram que o
gnosticismo se assemelhava a hidra de Lerna, um monstro
mitológico que tinha um corpo de dragão e cabeças de
serpentes. Quando algum defensor da ortodoxia lhe
desferia um golpe contra a sua cabeça e atingia uma das
serpentes, prontamente outras duas surgiam em seu
lugar. Essa figura usada para se referir ao gnosticismo
significava o grau de dificuldade de se combater às várias
ramificações desse movimento contra a verdade
evangélica.

Irineu de Lyon entra na História

Foi uma batalha árdua travada pelos primeiros


pensadores cristãos. Porém, longe do centro dos embates
entre a ortodoxia e a heresia, na distante Gália, atual
França, o bispo de Lião, Irineu, desferiu o golpe que seria
definitivo na longa luta contra o gnosticismo primitivo.
Natural de Esmirna, Irineu é fruto direto da herança
apostólica. Ele podia reivindicar seus laços com a tradição
evangélica por ser a terceira geração após a morte dos
apóstolos. Era discípulo de Policarpo, o Grande Pai da
igreja que foi martirizado pela espada de Roma, que por
sua vez, fora discípulo de João. Podemos entender que o
legado do evangelho que Irineu obtinha e, que fora
revelado nas suas exposições contra o gnosticismo, era
herança da influência dos ensinamentos de João. Foi essa
influência que tornou a doutrina de Irineu mais próxima
da Bíblia do que às doutrinas de outros pensadores como
Tertuliano e Orígenes.

30
Esse pai da igreja se levantou ferozmente contra
esse movimento cristológico com uma proposição de
defesa bem simples: “Aquilo que Cristo não assumiu, Ele
não salvou.’’ Essa proposição de Irineu foi seguida por
Gregório de Nazianzo que afirmou que “aquilo que não é
assumido não é redimido”. E mais recentemente vemos os
ecos da antiga visão cristológica nos escritos de
Bonhoeffer que escreveu: “Se Jesus Cristo não é Deus
verdadeiro como nos poderia ajudar? Se não é homem
verdadeiro como nos poderia ajudar?’’.
Claro que estamos simplificando o debate, porque
Irineu se aprofundou no pensamento filosófico gnóstico
destruindo, por esse meio, as próprias ideias desse
movimento. E o ponto central da derrocada gnóstica teve
como base a sua teoria sobre a redenção de Cristo.

Teoria da Redenção, segundo Irineu

Cristo tinha que ser igual a Adão, para ser tentado


como Adão e assim vencer a guerra que Adão perdeu. A
derrota do primeiro homem nos legou uma terrível
escravidão e uma monstruosa natureza consequência do
pecado e de nosso afastamento do Criador. Não houve,
da parte de Satanás, nenhuma apelação de injustiça, pois,
Cristo foi tentado em toda a sua vida como homem
seguindo o mesmo princípio de solidariedade de Adão. Se
Adão legou uma herança corrupta a sua descendência,
não seria injustiça Jesus Cristo legar uma herança de
justiça a sua própria descendência.
Vemos claramente a teologia de Paulo no
direcionamento do ataque de Irineu: o primeiro Adão e o

31
último Adão que é registrado tanto em Romanos, como
em sua primeira carta a igreja em Corinto:

“Se pela transgressão de um só a morte reinou por meio


dele, muito mais aqueles que recebem de Deus a
imensa provisão da graça e a dádiva da justiça reinarão
em vida por meio de um único homem, Jesus Cristo.
Consequentemente, assim como uma só transgressão
resultou na condenação de todos os homens, assim
também um só ato de justiça resultou na justificação
que traz vida a todos os homens.Logo, assim como por
meio da desobediência de um só homem muitos foram
feitos pecadores, assim também, por meio da
obediência de um único homem muitos serão feitos
justos.”
Romanos 5:17-19 – NVI

Aos Corintos Paulo escreve:

“Assim está escrito: O primeiro homem, Adão, tornou-


se um ser vivente; o último Adão, espírito vivificante”.

I Coríntios 15:45 – NVI

Baseado nesses textos bíblicos Irineu escreve:

“Enquanto Adão desobedeceu a Deus e caiu,


introduzindo na existência humana a corrupção e a
morte, o segundo Adão obedeceu a Deus e elevou a
humanidade a um estado mais sublime do que o próprio
Adão tinha experimentado antes da queda”.

32
Seguindo essa ideia, Irineu introduz um termo no
pensamento teológico que ficaria conhecido como
“recapitulação”. Toda a vida de nosso Senhor, dizia ele,
foi uma “recapitulação’ de tudo aquilo que Adão passou e
deveria ter passado. Em sua visão, Adão foi a cabeça da
primeira raça e representava todos aqueles que seriam
sua descendência. Quando Adão, a cabeça, pecou, o
corpo, toda a humanidade, pecou juntamente com ele.
Assim como adão nos escravizou e nos corrompeu em sua
transgressão, Cristo seria o novo Adão, ou o último, a
cabeça de uma nova raça, que representaria uma nova
humanidade através de sua encarnação, nos libertaria de
nossas prisões e compartilharia de sua própria natureza
àqueles que cressem.
Cristo, em obediência a Deus, foi fiel onde o
primeiro homem foi infiel. Onde Adão falhou, Cristo
triunfou. Mas esse triunfo de Cristo não foi com uma
aparência humana. Ele era homem, ou o “protoplasma”,
como dizia Irineu, assim como Adão, ao ser tentado, era.
Se o nosso Senhor não assumiu esse corpo que temos,
então tudo o que estamos vivendo se torna a encenação
da redenção. Tudo não passa de uma história sem graça,
daqueles que iludidamente pensaram estar redimidos.
Aquilo que o nosso Senhor não experimentou, não salvou.

“Deus recapitulou em sua formação antiga do homem


(Adão), para que pudesse eliminar o pecado, destituir o
poder da morte e vivificar o homem, e, portanto, todas
as suas obras são verdadeiras”.

33
Em outras palavras, o que Irineu queria dizer é que
Jesus nasceu como homem, cresceu como homem, foi
tentado como homem, morreu como homem e ressuscitou
como homem. Tudo em sua vida foi a mais verdadeira
expressão da humanidade, e foi expressando a sua
verdadeira humanidade que ele venceu satanás. É através
dessa vitória que o novo homem deixa de ser alma
vivente, escravizado pelo diabo, para se tornar espírito
vivificante, guiado pelo Espírito.
Essa ideia de recapitulação em Irineu também
aparece no escrito de Paulo aos Efésios. Por toda a carta
temos esse pensamento fluindo da mente inspirada do
apóstolo:

“Pois Ele é nossa paz, o qual de ambos fez um e


destruiu a barreira, o muro de inimizade, anulando em
seu corpo a lei dos mandamentos expressa em
ordenanças. O objetivo dele era criar em si mesmo, dos
dois, um novo homem (Uma nova Cabeça), fazendo a
paz...”

Efésios. 2: 14,15 – NVI – Grifo do autor

Não havia exceção no pensamento de Paulo com


respeito aos judeus. Eles, assim como nós, estavam nos
lombos de Adão, recebendo como herança, toda a
consequência do seu pecado. Não há um justo sequer
debaixo desse céu. A própria Lei de Deus dada a eles para
a observância, declarava publicamente o terrível fato de
que o homem estava perdido em Adão. (I Cor.5.20)

34
Mas Deus em sua maravilhosa graça nos escolheu
Nele antes do mundo ser formado, para nos tornar o
corpo daquele que convergiu todas as coisas a si próprio,
sejam celestiais ou terrenas. É isso o que está escrito em
Efésios 1:10

“[...] isto é, de fazer convergir em cristo todas as coisas


celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos
tempos...”

A palavra convergir tem o mesmo sentido que o


termo usado por Irineu na recapitulação de Cristo numa
nova raça. O nosso Senhor estava reunindo (sendo um
novo cabeça) nele mesmo uma humanidade recriada a
partir da encarnação, paixão, morte, ressurreição e
glorificação. Marcos Granconato, pensando a partir de
Irineu escreve:

“Ora, foi exatamente isso que Deus fez ao reunir judeus


e gentios num só corpo chamado igreja, tendo Cristo
como cabeça. Por isso, é certo dizer que a igreja é a
humanidade recapitulada. De fato, antes de serem
salvos, todos os crentes estavam sob Adão. Agora,
porém, pela fé no Salvador, judeus e gentios foram
colocados juntos novamente, desta vez sob Cristo, a
cabeça da igreja.”

Claro que rejeitamos na encarnação de Cristo uma


natureza pecaminosa. O fato de ele nascer de uma mulher
virgem tem como propósito, a santidade do Deus
encarnado. O que é nascido da carne é carne, escreve
João. (Jo 1:13). Ele não é fruto de homem, mas de

35
mulher. Dessa forma a nova Cabeça (Cristo) não estava
incluída na aliança das obras, e por isso não fez parte no
pecado da primeira cabeça (Adão). O Deus encarnado
estava livre da culpa do pecado porque não era semente
de José. “Adão de alguma forma misteriosa renasceu de
Maria na humanidade de Jesus Cristo”, como dizia Irineu.
Um novo homem havia nascido. O último Adão havia se
encarnado com uma natureza santa, livre da corrupção do
pecado.
Essa concepção de Jesus em santidade é um
mistério. Não podemos explicar com profundidade como
esse fato se deu, mas devemos crer com todas as nossas
forças que a gravidez e nascimento do Senhor foram
reais. A encarnação não destituiu Jesus Cristo de sua
divindade, e não a corrompeu pela sua humanidade.
Diante desse maravilhoso mistério devemos cantar como
cantava a igreja medieval juntamente com Lutero:

“Atentem! Este é o sinal: No cocho, em fraldas, muito


mal. Deitado está o que mantém, o céu e a terra, e os
sustém.”

Por que esse Debate é Vital para a Igreja?

Os primeiros pensadores cristãos foram firmes em


sua defesa da verdade evangélica porque “qualquer
ameaça à encarnação, por menor que fosse, era vista
como uma ameaça à salvação”. E a heresia era
perigosamente sedutora para os primeiros pensadores.
Irineu dizia que:

36
“O erro, com efeito, não se mostra como ele é para não
ficar evidente quando se descobre. Adornando-se
fraudulentamente de plausibilidade, apresenta-se diante
dos mais ignorantes, justamente por essa aparência
exterior - é até ridículo dizer - como mais verdadeiro do
que a própria verdade”.

Era uma época perigosa para a igreja por causa da


forte ênfase e busca pelas questões místicas e esotéricas,
o que não mudou muito até hoje.
Para a redenção de Cristo ser completa era
necessário que a sua real humanidade e perfeita
divindade fossem estabelecida em uma só pessoa. A
encarnação de Deus era o ponto crucial da redenção e
salvação. Foi ela que iniciou o processo que desconstruiria
a corrupção resultante da entrada do pecado no mundo e
no homem. Diante disso Irineu escreve:

“A raça humana inteira (a igreja), nasce de novo na


encarnação. Ela recebe uma nova cabeça, uma nova
fonte, origem ou base de existência que não é caída,
mas pura e saudável, vitoriosa e imortal. Está
plenamente viva, tanto física quanto espiritualmente”.

Por isso devemos rejeitar essa teologia popular que


separa as duas naturezas de nosso Senhor em suas
ações. Muitos têm cometido o terrível erro afirmando que
quando o Senhor manifestou a sua humanidade, estava
destituído de sua divindade. É como se uma parte se
isolasse da outra. Segundo essa ideia, quem fez milagres
foi à parte divina de Cristo, destituída de sua humanidade.
E quando o Senhor manifestou a sua humanidade,

37
principalmente ao morrer na cruz, a sua divindade estava
ausente nessa ação. As duas naturezas nunca agiram
independentemente. Seus atos eram sempre atos da
humanidade e divindade.

“Os atributos divinos de Jesus estavam funcionalmente


limitados pela sua humanidade, mas não reduzidos na
sua essência”.

Esse modo de entender a pessoa de Cristo são ecos


simplistas de um debate antigo. Todas as narrativas do
sofrimento de Cristo não passam de metáforas, e não
podem ser tomadas literalmente, concluem. Claro que a
teologia popular não tem esse conhecimento quando se
expressa nos lábios de um simples comerciante. No
entanto, quando se separa as duas naturezas,
dependendo do que se passa na história de Jesus, o fim é
praticamente o mesmo: é impossível Deus se tornar
semelhante a nós.
Quando estudamos os evangelhos e vemos Jesus
fazendo o que fez, era o Deus homem, sem a separação
das naturezas, que estava agindo naquela hora. Quem fez
milagres não foi à parte divina de nosso Senhor, foi o
todo. Uma pessoa somente esteve em nosso meio e
operou milagres, manifestou sentimentos, foi torturado,
morto e ressuscitado. Não há como separar aquilo que é
inseparável. O que o nosso Senhor foi, Ele ainda É. O
estado de Jesus na glória é de Deus homem.
A união hipostática não visa explicar e resolver essa
verdade, mas prevenir erros comuns como esses que
vimos. Ela delimita os pensadores com respeito à pessoa

38
de Cristo preservando, dessa forma, o mistério que
envolve essa verdade. É um mistério e deve permanecer
um mistério. Esse é o caminho mais seguro para
trilharmos.

39
40
Capítulo 2

O Primeiro homem
“Senhor, tu nos criaste para ti e inquieto é o nosso
coração até que encontre descanso em ti. A casa da
minha alma é pequena demais, para que te possa
abrigar. Amplia-a. Ela é defeituosa e decrépita. Quem
mais eu poderia invocar, a não ser a ti?”

Aurelius Augustinus

Se voltarmos ao princípio da criação e


contemplarmos Adão sendo descrito no livro de Gênesis, o
primeiro homem parecia muito mais dotado de capacidade
do que o homem atual. Alguns estudiosos dizem que a
queda limitou, por ordem de Deus, a totalidade do poder
da alma humana. Hoje, aqueles que sobressaem em
inteligência e genialidade, apenas usam uma pequena
parte de sua capacidade real.
Mesmo que isso seja verdade, em Adão os sentidos
mais básicos que cada ser humano hoje sentem, estava
presente nele. Adão foi o único ser de toda criação, criado
à imagem e semelhança de Deus. Ele teve o espírito de
vida soprado para dentro de suas narinas, se tornando
alma vivente. De alguma forma o homem herdou uma
fagulha divina.

41
Imagem e Semelhança de Deus

Mas qual é o significado do homem ter sido feito à


imagem e semelhança de Deus? A teologia responde
como ser dotado dos atributos comunicáveis do próprio
Deus. Adão era um ser racional, religioso, moral e social.

“Ele deveria refletir, de forma finita, aspectos do Ser de


Deus, tais como qualidades éticas e atividades
culturais.”
Franklin Ferreira

Quando o homem expressa prazer pelas artes,


poesia, música ou demonstrando empatia pelo próximo,
se deleitando naquilo que é bom e que faz bem, é a
natureza divina se manifestando nele.

“Dessa forma, os seres humanos refletem fisicamente as


próprias capacidades do Criador: aprender, conhecer,
exercer amor, produzir, controlar e interagir.”

Franklin Ferreira

Essa visão do valor humano e do mundo que o


Senhor criou fora perdida pela queda. O pecado e tudo o
que se origina dele, desvirtuou aquilo que é precioso para
o homem e no homem. E com o tempo a religião
acentuou essa face obscura do descontentamento
humano pela vida e pelo bem. Mas a partir da reforma
protestante o homem voltou a se deleitar naquilo que

42
Deus criou e a valorizar o que ele é. Todas essas belezas
naturais fruto da criação ou da inspiração do homem,
fazem parte daquilo que Deus disse que era bom, e
admirá-lo e desfrutá-lo era a mais pura expressão de
gratidão para glória do criador.

“O mundo dos sons, o mundo das formas, o mundo das


cores e o mundo das ideias poéticas não pode ter outra
fonte senão Deus; e é o nosso privilégio, como
portadores de sua imagem, ter uma percepção deste
mundo belo, para reproduzir artisticamente, para gozá-
lo humanamente”.
Abraam Kuiper

O Homem é a expressão da realidade, o espelho


refletor, aquilo que corresponde a sua origem. Se os seus
olhos admiram o que é belo, é porque o seu criador é a
fonte de toda beleza. Se o homem manifesta, mesmo em
sua forma caída, um prazer ao fazer o bem, é porque o
seu criador é a fonte de todo o bem. O fato de o homem
ter essas particularidades significa que a sua criação foi
elaborada. Ele é obra de um artista, e não fruto do acaso
como é descrito pelo evolucionismo. A criação ao acaso
despiu o ser humano de seu real valor. A lei do mais forte,
que impera na natureza e que se tornou a lei dos homens,
fez com que a imagem de Deus fosse totalmente
apagada. Não há mais uma visão da beleza, do bem, do
valor intrínseco na criação. Tudo se torna banal e fruto
apenas de convenções sociais. Se não há um Criador, não
há valores absolutos.

43
Mas quando contemplamos a criação, passamos a
entender, como Franklin Ferreira diz:

“[..] a imagem é de um oleiro e o barro: Deus, como o


artista, se deleita em sua obra”.

O homem era a mais pura expressão da perfeição.


Ele era a coroa da criação porque espelhava o próprio
Deus. A beleza do ser humano glorificava a sabedoria do
Ser divino. Adão teve origem, uma base para a sua
criação. Ele foi criado conscientemente e não de uma
forma acidental. Essa origem é o próprio Deus. Ele é o
original e o homem a cópia.
Em sua constituição, o homem é o que Deus é. E o
principio da vida moral e espiritual nasce dessa imagem e
semelhança divina. Quando Dostoievski escreveu aquela
famosa frase “Se Deus não existe, então tudo é
permitido’’, era com base nesse princípio. Por natureza o
ser humano é um ser moral e ético que tem como fonte,
os padrões absolutos de um Ser Divino que não pode
sofrer mudanças em sua natureza.
O homem é a única criação consciente de si
mesmo, do mundo e de Deus. Ele tem emoções, razão e
vontade. Ele é capaz de perceber, através desses
atributos, a verdade, a beleza e o bem. Esse é o homem
que Deus criou.

A necessidade de uma auxiliadora

Ao lermos o relato da formação da mulher, o autor


de Gênesis revela uma necessidade que o homem veio a

44
ter depois de sua criação. Não sabemos quanto tempo se
passou entre a criação de Adão e a formação de Eva. Mas
as palavras de Deus são bem reveladoras quanto a essa
necessidade, “não é bom que o homem esteja só”. Gn
2.18
Dessa única frase podemos extrair algumas
questões que envolvem o que estamos estudando. Alguns
pensadores conjecturam sobre a reação de Adão quando
nomeou cada animal, percebendo que todos eles tinham
uma que lhes correspondia. A Bíblia não diz claramente
que o primeiro homem sentiu alguma necessidade diante
dessa nomeação, mas nos diz que Deus viu que ele estava
só. Com base nessa afirmação podemos ser criativos nas
especulações com respeito a essa fala e atitude divina.
A imagem e semelhança de Deus também
carregam em seu significado a questão da comunhão. O
Criador de Adão é um Ser relacional. O Deus Trino por
toda a eternidade se satisfez em sua própria relação de
intimidade. O amor para existir tem que ter um objeto
para amar. Sem uma pessoa para que o outro expresse o
amor, seria impossível Deus existir. A sua natureza é
amor, e se o amor para existir tem que ser expresso,
Deus tinha que ser plural. Sem Eles não haveria Ele. O
amor mostra a necessidade de Deus ser trino.
Foi nessa relação íntima entre as pessoas da
trindade que o homem foi criado e convidado a participar
dessa comunhão. Adão, em sua curta existência sempre
se satisfez em Deus, mas por mais que Adão se
esforçasse para satisfazê-lo, Deus em sua autossuficiência
não poderia ser surpreendido. Ao testemunhar a relação
completa e suficiente entre o Deus Trino, Adão

45
necessitava expressar aquilo que via. A visão da grandeza
do amor de Deus precisa ser compartilhada, e o homem
sentiu falta de algo que pudesse ser alvo do amor que
Deus lhe compartilhara.
Todos nós fomos criados pelo amor para amar. A
falta de alguém semelhante a sua finitude e necessidade
de completude geraram a solidão original em Adão. Não
se achava uma auxiliadora que lhe correspondesse. Ele
era inferior Àquele que o criou e superior às criaturas que
Deus lhe subordinou. O primeiro Homem olhava para cima
e via a distância entre ele e o Seu Criador. Olhava para os
lados e via a incompatibilidade entre ele e a criação. O
que essa realidade causou em sua mente foi
extremamente doloroso.
Adão estava se sentindo sozinho. Talvez a sua
tristeza na solidão em que estava vivendo fosse visível.
Talvez a angustia tenha tomado o seu coração naquele
jardim. Talvez Adão seja o primeiro ser a experimentar
uma noite escura da alma. Será que pensar dessa forma,
seria ir além das palavras que o próprio Deus descreveu
do estado do primeiro homem? O Senhor percebeu algo
em Adão que o levou a tomar tal atitude. Esse estado
emocional e psicológico que o primeiro homem estava
vivendo no jardim aconteceu antes da queda. E isso é de
muita importância para entendermos o que é o homem.
Adão foi o único ser criado que ao entardecer desfrutava
da presença do criador todos os dias. Ele tinha o seu
coração preenchido pela presença de Deus. Quando
Agostinho expressou a sua necessidade de comunhão
dizendo “fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração

46
anda inquieto enquanto não descansar em ti”, esses
versos não se faziam real na experiência de Adão.
No entanto, ele sentiu falta de algo. Essas palavras
realmente soam de uma forma estranha. Parece um
absurdo pensar como alguém pode sentir necessidade
diante daquilo que é o tudo. Porém, todas essas
expressões humanas que Adão provavelmente sentiu, foi
colocado nele pelo próprio Deus. E o mais incrível disso
tudo é que os sentimentos de solidão, tristeza e vazio,
estavam sendo experimentado por Adão, mesmo antes da
queda. Essas expressões são reações intrínsecas ao ser
humano. Estavam presentes nele desde o princípio. Não é
pecado e nem fruto do pecado ser o que somos. A queda
não produziu esses sentimentos, potencializou, mas não é
a origem ou causa.
Realmente a solidão traz consequências
destruidoras para o ser humano. Se a falta de comunhão
entre iguais cobra o seu preço, imagina com aquele que é
a razão de nossa existência. Sentir o que provavelmente
Adão sentiu antes do pecado é ser aquilo que Deus se
alegrou em criar e dizer que era muito bom. O problema
se encontra, e isso deve estar bem claro para nós, no que
nos tornamos quando esses sentimentos se apoderam do
controle de nossas vidas. É nesse fato que mora o
problema.

O propósito ao nos criar

Deus criou esse corpo, hoje limitado pela queda e


corrompido pelo pecado para um propósito: que seu filho
fosse enviado a essa terra para redimir, não só o homem,

47
mas todo o universo. Apesar de o homem ter transgredido
a lei de Deus no jardim e pecado terrivelmente, a Imago
Dei permaneceu nele de certa forma. Ela não foi
totalmente aniquilada com a queda, embora tenha sido
terrivelmente deformada. Essa imagem de Deus estava
ferida, mas é através da salvação por Cristo que essa
imagem e semelhança é renovada. Em Romanos 5.14,
Paulo escreve algo muito profundo sobre essa questão
que estamos estudando:

“Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés,


mesmo sobre aqueles que não pecaram à semelhança
da transgressão de Adão, o qual prefigurava aquele que
havia de vir”.

Adão era um tipo daquele que havia de vir. Paulo


está falando de Jesus neste texto. E o tipo na Bíblia nunca
está ligado ao caráter da pessoa, mas a sua função. Irineu
dizia que os acontecimentos narrados na Bíblia eram
figuras que apontavam para Cristo. Toda a história
humana dirigida por Deus caminhava para uma
consumação final que tinha o seu cumprimento na pessoa
de seu Filho.
Nessa tipologia, Adão era a cabeça federal da raça
humana, e sua provação significava a provação de todos
nós. Ele nos representava como o primeiro Adão de tal
modo, como Cristo nos representaria como o último. Só
há duas cabeças federais em toda história humana a qual
o Senhor entrou em aliança.

48
“Diante de Deus há dois homens, Adão e Jesus Cristo, e
todos os outros homens estão pendurados nos cinturões
deles dois.”
Franklin Ferreira

Toda a humanidade legalmente se divide entre


esses dois representantes. A ideia de recapitulação de
Irineu é com base na centralização de Jesus que, por
meio de sua encarnação, vida, morte e ressurreição,
tornou-se o novo Adão, a cabeça da nova humanidade
que é a igreja.
Assim como reinou a morte pelo pecado de Adão,
mesmo sobre aqueles que não pecaram a semelhança de
sua transgressão, assim reinaria a vida pela justiça de
Cristo, mesmo sobre aqueles que não foram justos a
semelhança da justiça de Cristo, mas que creram nEle.
Esse é o principio por detrás do pensamento de Irineu.

“O que participa voluntariamente da nova humanidade


de Cristo escolhendo-o, e não o primeiro Adão como sua
cabeça, pelo arrependimento, pela fé e pelos
sacramentos, recebe a transformação que se tornou
possível pela encarnação do Filho de Deus”.

Vemos o princípio da representatividade aqui.


Aqueles que creem em Cristo como verdadeiro homem e
verdadeiro Deus se desligam do primeiro Adão e entram
para uma nova humanidade, se tornando uma nova raça
“com esperança de compartilhar da própria natureza
divina e imortal”.

49
Porém, quando lemos Filipenses 2.7, Paulo
escrevendo sobre o esvaziamento do filho de Deus, usa
uma expressão parecida:

“Antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de


servo, tornando-se em semelhança de homens; e,
reconhecido em figura humana”.

Essa expressão que o apóstolo usa é parecida com


a que ele usou em Romanos 5:14. Na primeira, a palavra
usada é typos, que tem o significado de modelo, forma ou
padrão, o mesmo do que é dito acerca do tabernáculo em
Hebreus 8.5. Na segunda palavra o termo usado é
schema, que trás uma ideia de aparência, a forma
humana a qual o Senhor se encontrava na encarnação.
Diante disso a palavra figura vai além de uma tipologia
somente. Ela vai ao princípio da criação humana, ao por
que e para quê fomos criados.

A FIGURA FÍSICA DO HOMEM

O Eterno, em sua onisciência, criou o homem à


imagem, semelhança e forma em que seu Filho haveria de
vir. Deus não criou o homem pensando que seu Filho
seria como ele. Na verdade, ele criou o homem porque o
homem seria a imagem de seu Filho. Cristo, na mente de
Deus, veio primeiro. O homem é uma cópia do que o Filho
seria.
Quando olhamos para o modelo do tabernáculo que
Moisés construiu, ele foi um tipo, uma figura, um modelo
de algo que já existia em realidade no céu. Esse

50
tabernáculo terreno era uma cópia de um tabernáculo
celestial.

“Deus criou o homem de modo que seu elemento físico


seria o canal da manifestação do próprio Deus, na
pessoa de seu Filho.”

O pensamento de imagem de Deus que dominava a


teologia de Irineu era baseado nesse princípio. Cristo era
a imagem de Deus. Ao criar o homem, Deus tinha o seu
Filho em mente.

“Ser feito segunda a imagem de Deus significa que


Jesus Cristo foi o modelo que Deus seguiu para criar o
ser humano. Não é que Deus tivesse feito os seres
humanos e depois se decidido fazer carne em Jesus
Cristo; antes, Deus tinha, desde o princípio, a intenção
de se encarnar, e, por isso, o modelo usado na criação
de Adão e Eva foi o verbo encarnado”.

Esse fato nos indica algo profundo na criação do


homem. O verbo encarnado serviu de modelo na nossa
criação. Quando Deus nos criou ele estava olhando para
outro e, sempre foi à intenção de Deus que o homem se
tornasse como esse outro que serviu de padrão. Deus,
assim como os artistas se baseou no que seu Filho seria
ao nos modelar. Por isso em nossa criação a palavra
“Muito bom” foi usada, por que Ele viu que éramos
perfeitos como o modelo. Para o Criador não existe uma
parte que é mais importante em sua criação, pois, todas
as partes do homem trás a sua mente o que o seu Filho

51
perfeito seria. Principalmente o corpo, a matéria que tanto
era desprezada pelos filósofos e gnósticos, tem uma
crucial importância nos propósitos de Deus.
Todo o homem é valoroso para Ele, mesmo após a
corrupção do pecado. E a razão é que o Criador tinha em
mente aquele que havia de vir. Toda a constituição
humana, até aquela que é potencializada nas aflições, é
comum ao homem porque Deus o criou assim, e através
da regeneração e santificação pelo Espírito Santo esse
mesmo homem retorna, passo a passo, a imagem e
semelhança daquilo que ele era e seria no princípio.

A IMPORTÂNCIA DO CORPO

Paulo novamente nos explica esse fato em muitas


outras passagens de seus escritos para a igreja. Em I
Coríntios 15, esse corpo que Platão e os Docetas
desprezavam, para o apóstolo, a nossa transformação em
glória tem como base a presença corpórea, e esse fato é
de suma importância para “aquele dia”. O corpo é
essencial para a completude do propósito de Deus em nos
tornar a imagem de Seu Filho. Sem ele é como se nós
estivéssemos nus. Há a necessidade do corpo para que o
homem seja completo. E Paulo aguardava, gemendo, por
esse dia quando o mortal se revestirá da imortalidade. E
dessa forma o apóstolo conclui o seu raciocínio em I
Coríntio 15:54

“E, quando este corpo corruptível se revestir de


incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de

52
imortalidade, então, se cumprirá a palavra que está
escrita: tragada foi à morte pela vitória.”

Sem o corpo, não há como essa palavra se cumprir.


Ele é parte de grande importância na história da redenção
final. Percebemos, então, o quanto o corpo é vital para a
glorificação futura. Ele foi semeado em fraqueza, mas
será colhido em glória.
Isso é empolgante. Seremos transformados à
imagem e semelhança de Cristo, retornando, dessa forma,
ao primeiro ato e intenção de Deus quando criou Adão à
sua imagem e semelhança. O nosso Senhor está
desfazendo o que o pecado causou. Estamos voltando ao
início de tudo, com a diferença de que estaremos
maduros em Cristo. Seremos como Ele É. Seremos
homens glorificados, assim como Cristo é um “homem
glorificado”. Como diziam os antigos pensadores cristãos:

“Cristo é homem divinizado e Deus humanizado”.

O Eterno se tornou humano, para que o humano se


tornasse divino. Claro que nas devidas proporções. “Os
seres humanos podem ser “divinizados” pela solidariedade
com Cristo, sem deixarem de ser humanos e sem se
tornarem o próprio Deus”.
Se seguirmos a visão de Irineu que via nos
acontecimentos bíblicos uma referência a pessoa de
Cristo, tudo começou num jardim e estaria “terminando”
num jardim. Jesus determinaria a derrocada da antiga
serpente passando pelo Getsêmani, dando início da forma
mais humana possível, a criação de um novo homem

53
restaurado à imagem daquilo que Deus sempre desejou
em seu coração. O triunfo deste seria o triunfo daqueles
no seu devido tempo. Esse era o pensamento de Irineu,
que “concebia a salvação como a transformação dos seres
humanos em participantes da natureza divina”. (2 Pe 1:4)

O PREÇO

Contemplar essa verdade do evangelho nos faz


pensar o quanto Jesus teve que descer para levar a cabo
o propósito do Pai. Ele teve que pesar as implicações de
seu ato, e assim, podemos compreender as consequências
do seu amor pelo Pai e por nós. Uma cicatriz eterna, que
mostra o quanto Ele amou, está na pessoa de Cristo hoje.
Não somente as cicatrizes da paixão em suas mãos, pés e
lado, mas principalmente em sua aparência, que hoje se
distingue da aparência do Pai e do Espírito Santo. Ele é
como nós seremos, isto é, com aparência humana. E esse
fato não é motivo de vergonha para o nosso Senhor. Ele
se alegra de nos chamar de irmãos. Ele teve um corpo
como nós temos, e hoje, Ele tem um corpo que um dia
teremos. Portanto, precisamos ter em mente que a
adoração que devemos hoje ao Cristo glorificado, se dá ao
fato de a natureza divina ter se encarnado.

“Devemos distinguir entre o objeto e a base desta


adoração. O objeto do nosso culto é o Deus e homem
Cristo Jesus, mas a base sobre a qual O adoramos é a
pessoa do Logos”.

54
Isso mostra o valor do que somos. Somos o que
Cristo seria, e seremos o que Cristo É. Aleluia! Somos
almas viventes hoje, mas seremos por completo espírito
vivificante amanhã. No entanto, o problema é que nos
apegamos à divindade do Deus homem e nos esquecemos
de sua humanidade. Por causa das fraquezas humanas e
as consequências do pecado, nos agarramos à perfeição
divina ansiando por ela, tentando nos esquecer das
experiências amargas que temos aqui. Queremos ser o
que seremos, antes de manifestar no que somos aquilo
que seremos. O desejo de Deus é que manifestemos em
nossa carne mortal o que está destinado a nós. Ele deseja
que sejamos transformados de glória em glória à imagem
de seu Filho enquanto estivermos nesse corpo terreno.
Tudo começa aqui, não lá. A glorificação é o fim, a
conclusão e o resultado daquilo que se iniciou no tempo.
É na fraqueza humana que a glória se inicia. É na
presença do que é fraco que o eterno peso de glória se
acumula. Foi assim com o nosso Senhor e não será
diferente para nós.

55
56
Capítulo 3

O Sofrimento Prova a Humanidade de


Cristo
“Foi sozinho que o salvador orou no trevoso Getsêmani.
Foi sozinho que ele sorveu o cálice amargo. E sozinho
ali sofreu por mim. Foi sozinho, sozinho, que tudo
suportou. Que se ofereceu a si mesmo para salvar os
seus. Sozinho sofreu, sozinho sangrou e sozinho
morreu”.
Ben H. Price

“A minha alma está profundamente triste, numa tristeza


mortal.”
Mateus 26:3

Não há nada mais humano em nosso Senhor, do


que a sua experiência no jardim. Em uma noite escura,
num jardim chamado Getsêmani, estava Jesus
enfrentando aquilo que é comum a cada um de nós: a
angústia da alma. Toda a experiência que o homem pode
ter, exceto o pecado, Ele experimentou. E são essas
experiências que nos mostram o quanto o nosso salvador
era humano.

“A encarnação do verbo não foi uma teofania, foi uma


forma humana definitiva e permanente que o Verbo

57
tomou para si. A encarnação lhe trouxe um corpo real
que poderia não somente ser visto e ouvido, mas
também tocado, e que veio a ser passível de sofrimento,
morte e ressurreição”.

Muitas de nossas emoções que são fortemente


rejeitadas por um evangelho engessado, eram comuns
aos homens de Deus do passado, assim como ao próprio
Cristo. Parece ser pecado expressar sentimentos nas
aflições que, em nosso contexto, se revelam como
fragilidade de um servo de Deus. Muitos são duramente
criticados e discriminados quando passam pela noite
escura, expressando a sua humanidade como o nosso
Senhor expressou. Creio que se esses cristãos “acima da
média” vissem a angustia de nosso Senhor naquele
jardim, desistiriam covardemente dele por causa de sua
aparente fraqueza.
Seria uma atitude ainda mais desumana, do que a
negligente empatia pelos sofrimentos do mestre que
aqueles cansados discípulos demonstraram. Com certeza,
se aqueles testemunhassem as aflições da alma de Jesus,
seus dedos de acusação seriam apontados para Ele sem
piedade.
Só quem passou pelas trevas conhecem o quão
densas é a sua escuridão. Os discípulos ainda não haviam
experimentado essa extrema condição. Imagino o quanto
eles desejaram, após anos de duras provações, estarem
consolando o seu Mestre naquela agonia de alma a qual
Ele passou. Quanto arrependimento deve ter brotado do
coração de Pedro quando se encontrava na mesma
situação que Jesus. Tudo muda quando nos encontramos

58
na mesma posição em que o nosso Senhor se encontrou.
Com certeza Deus levará todos os seus filhos a um
encontro com Ele naquele escuro jardim. Quando por fim,
experimentamos o que foi comum a Cristo e ao outro,
então a nossa percepção do evangelho mudará, e só
mudará quando a experiência do outro se torna a nossa
experiência. Elvis Presley cantava uma linda canção que
nos ajuda a pensar no que está se descrito aqui.

“Ande uma milha em meus sapatos


Apenas uma milha em meus sapatos
Antes de você abusar, criticar e acusar
Ande uma milha em meus sapatos.”

A BÍBLIA REVELA A HUMANIDADE DE CRISTO

A Bíblia nunca escondeu esse lado humano de


Cristo. Na verdade, os autores bíblicos as tornam bem real
em seus escritos. O nosso Senhor sofreu. Mas não sofreu
somente no corpo. Ele sofreu na alma. Suas emoções
foram levadas ao extremo. A parte psicológica de Jesus foi
levada ao extremo. E o jardim potencializou essa
experiência que todo ser humano, em algum momento de
sua vida, passará. A experiência que Adão teve no jardim
diante do tentador, era bem diferente da experiência de
Cristo no Getsêmani. O Cristo de Deus estava
experimentando o gosto de uma profunda depressão, não
em um ambiente perfeito e sem pecado, mas em um
ambiente inóspito e dominado pelo pecado. Era preciso a
plena humanidade de Cristo para se alcançar a plena

59
redenção do homem. E foi isso o que aconteceu. Tudo era
real na vida de Jesus.
Muitos simplificam a obra de Cristo tendo todo o
seu foco na morte de cruz. Se partimos da ideia que o
Senhor era o nosso representante federal, toda a
experiência de vida que Ele passou fazia parte da obra de
redenção. Não é uma mera coincidência que o nosso
Senhor estava naquele jardim na hora mais escura da
noite. Ele estava na mesma posição que Adão esteve no
princípio. O autor de Hebreus nos relata que o Senhor foi
tentado em todas as coisas à nossa semelhança, e isso
inclui Adão. (Hb.4.15) Havia uma opressão demoníaca
quase que insustentável no Getsêmani. O último Adão
estava sendo terrivelmente tentado a não ser obediente a
vontade de Deus. Devemos entender que Jesus crescia
em graça e conhecimento diante do Pai em todos os
momentos de sua vida. Ele, como nosso representante,
tinha que cumprir tudo aquilo que nós, como escravos do
pecado e do diabo, não conseguíamos cumprir. O nosso
Senhor foi fiel da mais tenra idade até a sua maturidade,
sendo sujeito aos poderes do mal, mas sem ser derrotado
por ele.

A VITÓRIA DE CRISTO NÃO SE DEU SOMENTE NA


CRUZ

Toda a vida de Jesus foi vivida em vitória contra a


antiga serpente. Ele o derrotou na mesma forma e
experiência que Adão foi vencido. Ele derrotou satanás
vencendo a espada de Herodes, vivendo a sua
adolescência crescendo no conhecimento do se Deus e

60
chegando à maturidade sendo fiel na obscuridade. Ele
derrotou o nosso inimigo na tentação no deserto, vivendo
um ministério fiel a vontade do Pai e o derrotou naquele
jardim, em meio a angustia, aflição e dor. A vitória de
nosso Senhor se estende até a ressurreição e ascensão.
Ela é muito mais do que “simplesmente” o calvário. Cristo
venceu como homem, experimentando todas as coisas
como homem, em todas as fases de sua curta vida.
Franklin Ferreira comentando sobre a pessoa única de
Cristo usa um pensamento de Irineu sobre a necessidade
de todos os atos do Deus encarnado ser verdadeiramente
humano:

“Se o homem não tivesse vencido o inimigo do homem,


a vitória não seria justa; por outro lado, se a salvação
não tivesse vindo de Deus, não a teríamos de maneira
segura. E se o homem não estivesse unido a Deus, não
poderia participar da incorruptibilidade. Era necessário,
portanto, que o mediador entre Deus e os homens, pelo
parentesco entre as duas partes, restabelecesse a
amizade e a concórdia, procurando que Deus acolhesse
o homem e o homem se entregasse a Deus. De fato,
como poderíamos participar da afiliação adotiva de Deus
se não tivéssemos recebido a comunhão com Ele por
meio do Filho, se o seu Verbo não tivesse entrado em
comunhão conosco encarnando-se?”

Irineu não concentrava toda obra de Jesus somente


no calvário. Jesus não nasceu de uma forma completa.
Assim como Adão, Ele teve que crescer e se desenvolver
em direção a Deus. Ele viveu uma vida de total submissão
ao Pai, e essa vida foi crescendo à medida que o Cristo

61
amadurecia, e esse amadurecimento foi debaixo da
tentação da antiga serpente e das aflições desse mundo
caído. O Pai entregou o Filho para ser provado em toda a
sua vida, e foi debaixo do poder do maligno, se fazendo
como um dos descendentes de Adão, que Jesus se saiu
vencedor. Ele se tornou uma oferta de cereais, antes de
se tornar uma oferta de expiação, vivendo toda uma vida
santa e submissa a vontade do Pai.

A EMPATIA DE JESUS

E é interessante notar que Cristo não quis se


isentar de nenhum dos sentidos humanos. Na cruz
percebemos esse fato quando Ele rejeitou aquela esponja
embebida de vinagre, que tinha a propriedade de aliviar a
dor de nosso Senhor. Ele realmente sentiu em toda a sua
vida e ministério. Ele não fugiu de nenhuma experiência,
seja ela a mais desconfortável possível, que a sua
humanidade lhe conferiu. Ele chorou com os que choram,
ele tocou aqueles que ninguém tocava, ele amou os
marginalizados, irou-se contra a injustiça, foi oprimido e
angustiado, foi tentado por satanás em toda a sua vida, e
todos esses sentimentos foram vividos em sua plenitude.
Ele foi além, ao demonstrar ser mais humano do que o
próprio homem.
Os sentimentos mais básicos da existência foram
vividos intensamente pelo nosso Senhor. Como negar,
diante desses fatos, a sua completa humanidade? Vemos
nEle todos os sentimentos aflorados em todas as suas
ações. Ele potencializou toda a sua humanidade quando
esteve entre nós, como dizia Irineu:

62
“Ele é em todos os sentidos um ser humano, feitura de
Deus. Quando assumiu a humanidade, o invisível se fez
visível, o incompreensível se fez compreensível, o
impassível se sujeitou ao sofrimento e o verbo se fez
carne”.

Assombra compreender que foi o fato de Cristo ter


vivido a sua humanidade que o condenou. Quando ele
viveu como um humano, sendo confundido como um
humano, os humanos o rejeitaram. O ser humano se
tornou inaceitável para o ser humano. Potencializar aquilo
que é comum a nós, fez de nosso Senhor fraco,
desprezível e digno de morte.
É triste quando uma religião insensível
descaracteriza a imagem humana lhe conferindo uma
aparente visão de força, negando, dessa forma, o que lhe
é intrínseco, que não se associa com nada que se pareça
fraco, que rejeita seus sentimentos mais naturais,
desprezando todo o aspecto de humanidade vestindo-a
com uma capa de superioridade divina. Jesus pagou um
alto preço por se despir diante de uma religião engessada
em seus preconceitos sobre o que deve ou não deve ser
expresso. É realmente abominável quando aquela que
deveria libertar se coloca na posição de condenar.

O QUE É O HOMEM?

“Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos,


a lua e as estrelas que ali firmaste, pergunto: Que é o
homem, para que com ele te importes? E o filho do

63
homem, para que com ele te preocupes? Tu o fizeste
um pouco menor do que os seres celestiais e o coroaste
de glória e de honra.”
Salmos 8:3-5

Quando lemos o salmo 8, fica claro que Davi estava


se referindo a homens como ele próprio. Não há nenhuma
certeza que o salmista estava se referindo a outra pessoa
e, não sabemos se ele teve alguma revelação posterior de
algo mais sendo descrito em suas palavras. Essa dúvida é
porque esse salmo nunca havia sido considerado como
um salmo messiânico, mas parecia apenas descrever o
homem ideal, que recebeu em sua criação a autoridade
de dominar sobre todas as coisas. Quando lemos a sua
referência em Hebreus 2, esse salmo está se referindo a
humanidade do Messias.

“Não foi a anjos que ele sujeitou o mundo que há de vir,


a respeito do qual estamos falando, mas alguém em
certo lugar testemunhou, dizendo: "Que é o homem,
para que com ele te importes? E o filho do homem, para
que com ele te preocupes? Tu o fizeste um pouco
menor do que os anjos e o coroaste de glória e de
honra; tudo sujeitaste debaixo dos seus pés". Ao lhe
sujeitar todas as coisas, nada deixou que não lhe
estivesse sujeito. Agora, porém, ainda não vemos que
todas as coisas lhe estejam sujeitas.” Hebreus 2:5-8

O autor de Hebreus, no contexto dessa passagem,


confronta uma ideia estranha que estava se tornando
comum entre os seus leitores. Uma doutrina estava sendo
propagada com a mensagem de que Cristo não era

64
homem, mas um anjo. Não sabemos os pormenores do
surgimento dessa doutrina, mas estava clara a rejeição da
humanidade de Jesus. O autor toma o salmo 8 para
refutar essa ideia e diz, resumidamente, que o Cristo não
é anjo, mas algo menor. Ele era homem.

O ESVAZIAMENTO DE DEUS

Esse salmo é uma referência ao auto esvaziamento


do Filho de Deus. Ele estava deixando de lado os seus
privilégios divinos, adotando a forma de servo, ou, em
outras palavras, se encarnando. É a humilhação do Filho
de Deus (divindade), se tornando o Filho do Homem
(humanidade). Falamos de uma forma simples, tendo em
mente que o termo Filho do Homem se refere a muito
mais do que somente a sua humanidade, tendo a união
hipostática em mente, devemos tomar cuidado nesse
ponto. A encarnação não retirou a divindade do Filho, ela
acrescentou outra natureza, a sua humanidade. Atanásio,
diante desse problema afirmava que “na encarnação não
houve nenhuma subtração de deidade, mas adição de
humanidade”.
Deus o fez homem semelhante a nós. E esse
homem veio levar a cabo aquilo que Adão não concluiu.
Ele é o homem profetizado em Gênesis 3.15, que nascido
de mulher, debaixo de toda a experiência humana, pisaria
a cabeça da serpente, um homem falhou e outro homem
declararia a vitória do Senhor.
O filho do Homem, como é descrito nesse salmo,
estava sujeitando todas as coisas novamente debaixo dos
pés do homem ideal desejado por Deus desde o princípio.

65
Olhando o texto, o que se apresenta é que uma conclusão
ainda está para ser realizada. Apesar de o Senhor ter feito
uma ferida mortal na cabeça da antiga serpente, o papel
de esmagá-la será obra de seu corpo, o homem coletivo,
que foi resgatado por seu sacrifício, tendo sido lhe
comunicado a sua própria natureza. E o autor descreve
que foi pelo sofrimento que o Senhor obteve a glória. É
realmente estranho quando o Senhor que glorifica o faz
mediante as aflições de seu Servo, mas a intenção de
Deus é sublime. Aquele que enfrentou a morte, o fez
representando a todos os que creriam nele e foi através
de seus sofrimentos que o Filho de Deus pode
compartilhar de sua glória aos seus irmãos, ele se tornou
o autor de nossa salvação através de seu corpo ferido.
Com certeza Irineu se deleitou nessas palavras que
o autor de Hebreus compartilhou com a igreja, falo isso
porque, na sua visão de redenção, fica claro o quanto ele
se aproxima desses escritos quando descreve o caminho e
a meta da salvação daqueles que foram acorrentados pelo
diabo por causa da queda do homem.

“Sua paixão deu lugar à força e ao poder. Porque o


Senhor, mediante sofrimento, “quando subiu as alturas,
levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens”, e
aos que creem nele deu autoridade para calcar aos pés
serpentes e escorpiões e sobre todo o poder do
inimigo”, ou seja, do chefe da apostasia [Satanás].
Nosso Senhor, também através de sua paixão, destruiu
a morte e derrotou o erro, e pôs fim à corrupção, e
destruiu a ignorância, e manifestou a vida, e revelou a
verdade, e concedeu o bem da incorrupção.”

66
Deus nunca mudou o seu propósito. Um homem
desfaria as obras de satanás, e o homem veio a essa terra
e o desfez.

HOMEM DE DORES

Em toda a Bíblia nós vemos referências da


humanidade do Messias, apesar de estar oculto aos
escritores e profetas, aquilo que escreviam se tornaria
realidade na pessoa do Deus encarnado. O profeta Isaias
usa uma expressão forte em suas profecias messiânicas:
“Homem de dores que sabe o que é padecer.” Isaias 53.3
O que significa essa expressão? É um homem
experimentado em todas as experiências amargas que
todos nós passamos. O termo em hebraico se refere tanto
a dores físicas como mentais. O Rei dos judeus estava
sendo descrito como alguém de quem se esconde o rosto.
O profeta escancara a humanidade do Messias, e essa
humanidade o tornou desprezível. Isaías estava
personalizando, ou corporificando o cordeiro que estava
sendo profetizado desde o início, mas a personificação de
Cristo foi além do que os judeus esperavam e
imaginavam, a encarnação realmente escandalizou os
judeus, ele era humano demais e foi esse fato que fez
com que o nosso Senhor sofresse pelas mãos dos
homens. A sua rejeição era por causa de seus sofrimentos
que era fruto de sua real e perfeita humanidade.
O profeta Isaias não termina a sua personificação
do Messias nessa única expressão. Ele continua usando

67
termos fortes para descrever o sofrimento que Ele
passaria:

“[...] raiz de uma terra seca; não tinha aparência


nem formosura; não havia beleza que nos
agradasse ao olhar para ele; era desprezado,
rejeitado...”
Isaias 53:2,3

Não foi uma encenação de encarnação. Todas as


situações que o nosso Senhor se encontrou na aflição, no
sofrimento, na morte eram profundamente reais e provam
a profunda identificação do Senhor com a humanidade. O
profeta deixa claro que o Messias saberia por experiência
o que é padecer, ele viveu o que é comum a nós.

O CONTEXTO DE ISAIAS 53

Alguns estudiosos se divergem quanto a que


contexto essa profecia se relacionava. O ponto nevrálgico
é se essa passagem está se referindo a toda a vida do
Messias ou se apenas a sua paixão no calvário. Porém, há
um texto na Bíblia que torna essa questão do homem de
dores, além do calvário somente.
No Evangelho de João, capitulo 8, há um debate
entre Jesus e os judeus. O ponto central da discussão era
sobre a paternidade de Abraão. Será que aqueles judeus
que queriam matar o Senhor eram realmente filhos do
patriarca? No calor do debate, Jesus revela para eles que
Abraão se regozijou ao ver o dia do Senhor, isto é, o seu

68
próprio dia. A resposta dos judeus quanto a essa
informação de Jesus é estranha:

“Você ainda não tem cinquenta anos, e viu Abraão?”.

João 8:57

Essa expressão poderia ser um exagero dos judeus,


mas ninguém daria uma idade dessas a um jovem de
trinta anos, eles não sabiam qual era a sua idade, e
mesmo não sabendo, eles não reconheceram a sua
juventude. A explicação diante dessa reação estranha dos
judeus é que o Senhor estava irreconhecível para a sua
idade. Grande parte dos comentaristas contemporâneos
descreve essa situação como uma mera comparação:
“Você nasceu ontem, como pode ter visto nosso Pai
Abraão?” Mas esses judeus poderiam ter ido direto ao
assunto dizendo que o Senhor era apenas um jovem. Algo
mais estava em questão naquela hora.
Comentando sobre esse versículo, John Gill vê uma
possibilidade de que essas palavras dos judeus se
referiam aos sofrimentos do Senhor. Ele escreve que a
“razão deles fixarem essa idade de cinquenta poderia ser
porque Cristo talvez seria semelhante a uma pessoa com
tal idade, sendo um homem de dores e familiarizado com
pesares.”
A sua aparência era desprezível. Era esse o fato
que fez com que seu próprio povo o rejeitasse. Ele não
tinha aparência real, era apenas um pobre carpinteiro e
ainda por cima nazareno. A benção de Deus não poderia
estar sobre esse homem. Irineu, comentando Isaias 53

69
dizia que apesar de Jesus ter tido nobre nascimento a
partir do Pai altíssimo e ter experimentado uma geração
igualmente proeminente de Maria, o Senhor seria um
homem sem beleza e sujeito ao sofrimento. Clemente,
seguindo o mesmo raciocínio de Irineu, dizia que Jesus
era fisicamente desprovido de beleza. Muito mais do que
um sinal de nascença, esse mundo foi cruel com o nosso
Senhor. O seu próprio ministério foi exercido por um alto
preço físico. Tertuliano combatendo os judeus escreve:

“De fato, é apenas por Suas palavras e ações, bem


como por Seus ensinamentos e milagres, que os
homens, admirados, consideravam-no como um ser
humano. Com efeito, se seu aspecto físico fosse de tal
ordem a parecer milagrosamente obtido, isso teria sido,
sem dúvida, notado. Contudo, era justamente o seu
aspecto terreno desprovido de magnificência segundo a
carne que tornava todas aquelas coisas ainda mais
admiráveis, como quando se disse: “Como pode ter esse
homem tamanha sabedoria, e operar tais obras?”

Fisicamente, o Senhor não tinha nada que o


tornasse agradável. Ele era homem de dores,
experimentado no sofrimento desde a mais tenra idade. E
o pensamento que rondava as cabeças daqueles que
esperavam a libertação de Israel do jugo romano era
essa:

“Ele não é um dos vencedores; ele é um dos


perdedores... Ele é um homem de dores e
enfermidades; o que pode ele fazer pelo restante de
nós?”

70
AS CONSEQUENCIAS AO REJEITAR A HUMANIDADE
DE CRISTO

O autor de Hebreus prova a humanidade de Cristo


através dos sofrimentos que Ele sofreu. A identificação de
nosso Senhor àquilo que é comum a nós foi à base
teológica usada pelo escritor em toda a sua carta. O
caminho que Cristo havia trilhado era a inauguração do
caminho para aqueles que o seguiriam.
O sofrimento esclarece ainda mais a humanidade
de Cristo e as consequências que nós teremos ao rejeitar
essa verdade são expostas pelo autor de Hebreus. Ele
escreve que Deus tornou o nosso salvador perfeito pelo
sofrimento. Cristo participou da mesma condição humana,
isto é, ser de carne e sangue, para que, por meio de sua
morte derrotasse aquele que tem o poder da morte. A
teologia paulina está presente aqui. O apóstolo escreve
aos Colossenses nesses termos:

“[...] Deus vos reconciliou no corpo de sua carne pela


morte...”
Colossenses 1:22

O corpo de Jesus tinha que ser real para que a


redenção fosse também real. Todas essas experiências
que os autores bíblicos descrevem são, de fato,
verdadeiras e não hipotéticas ou metafóricas. Eles deixam
claro para nós que Jesus era homem, homem de dores.
Foi nessa condição humana, crescendo em maturidade

71
pelo sofrimento que ele derrotou o nosso inimigo. E diante
disso, o autor de Hebreus finaliza esse ponto com essas
palavras:

“Por essa razão era necessário que Ele (Cristo), se


tornasse semelhante a seus irmãos em todos os
aspectos...”
Hebreus 2: 17a – Grifo do Autor

Esse texto é tremendo. Aquele que escreve


inspirado pelo Espírito de Cristo coloca o ponto final sobre
a humanidade de nosso Senhor. Era preciso que o
Redentor fosse tanto divino como humano. Por isso, em
Jesus nós vemos a sua divindade real operando no corpo
real com as suas propriedades essenciais e todas as
debilidades que a ela estava sujeita. Havia uma integração
de perfeição e debilidade fruto das duas naturezas em
Cristo. O Sumo Sacerdote que nos representaria foi
identificado com os homens e estabelecido a sua unidade
entre Ele e nós. E o autor de Hebreus o faz usando Cinco
palavras fortes:

Necessário – tornar – semelhante – todo – aspecto.

Havia a necessidade do Sumo Sacerdote se tornar


semelhante aos irmãos em sua plena constituição. Essa
era a “obrigação” constituída pelo próprio Deus.
Não era uma miragem que andou em nosso meio.
Não era apenas uma aparência carnal. Não era um
fantasma como aqueles discípulos amedrontados achavam
que o nosso Senhor fosse ao vê-lo ressuscitado. Jesus

72
Cristo foi dotado, em sua encarnação de todo aspecto
humano, seja ele biológico, sentimental, racional, volitiva
e espiritual. E podemos ver que após a sua ressurreição,
esse mesmo aspecto estava presente nEle. (Lc 24: 36-43)
Se o Senhor não assumiu a integralidade do que
somos, as consequencias são terríveis e irreparáveis para
aqueles que creem. E o autor de Hebreus enumera essas
consequencias:

Primeiro. Se o senhor não assumiu completamente a


forma humana, Ele não pôde ter experimentado a morte.
Se Ele não morreu, estamos ainda em débito com Deus.

Segundo. Se o senhor não se tornou homem, ele não


pode ser o autor da nossa salvação, portanto, ainda
estamos condenados.

Terceiro. Se o Senhor não se tornou homem, ele não é o


primogênito entre muitos irmãos. E isso significa que não
somos da família de Deus e não temos o Senhor como
nosso Pai.

Quarto. Se o senhor não se tornou homem, Ele não


derrotou aquele que tem o poder da morte, e diante
disso, ainda somos escravos do medo porque a morte não
foi vencida.

Quinto. Se o Senhor não se tornou homem, ele não se


tornou o Sumo sacerdote misericordioso e fiel diante do
Pai. Não houve propiciação e ainda somos alvos da ira
divina.

73
Sexto. Se o Senhor não se tornou homem, tendo sido
tentado em todas as coisas como os homens são, então,
como resultado Ele não pode compreender o que
passamos em nossas noites escuras e, assim, não pode
nos socorrer em nossas aflições

As decorrências de se negar a humanidade total de


Cristo vai muito mais além do que apenas uma simples
questão teológica ou de opinião. É a nossa salvação
eterna que está em jogo nesse debate. Por isso as
palavras de Irineu se tornam mais graves diante dessa
verdade e deve nos fazer refletir:

“Aquilo que Jesus não assumiu, Ele não salvou.”

74
Capítulo 4

A Noite Escura do Senhor


“A minha alma, esta noite, Repousa tranquila: Tormento
estalam, nos mundos de Deus. Nos mundos de Deus e
não teus. Fica em paz. Minha alma, esta noite, Repousa
sem medo: O braço de Deus conterá o tentador. O
braço de Deus, não o teu. Fica em paz. Minha alma,
esta noite, Repousa confiante: Do seio de Deus vem
consolo ao que chora Do seio de Deus, não de ti. Fica
em paz. Minha alma, esta noite Descansa tranquila: O
amor do teu Deus é constante e não muda. O amor do
teu Deus, não o teu. Fica em paz”.

Anônimo

Toda a vida de provação de Jesus Cristo estava


preparando-o para algo maior no futuro. Era para aquela
noite no jardim e o que decorreria dele, que o Senhor
estava sendo fortalecido dia após dia. O Messias nasceu
para morrer, mas, antes, Ele precisava trilhar todo um
caminho de espinhos até o calvário.
João, o apóstolo, em seu evangelho usa uma
expressão que não se encontra nos demais evangelhos.
Quando a porta se abre e Judas sai do lugar onde os
discípulos se encontravam na última ceia para trair Jesus,
Ele diz:

75
“[...] E era noite.”
João 13:30b

É algo assustador perceber que a última noite do


Senhor é seguido de acontecimentos perturbadores. Essa
frase foi colocada no momento mais difícil da vida de
Cristo. Temos que crer que não foi por acaso que João
enfatizou o que estava acontecendo e para acontecer. A
noite escura da alma, tão comum aos seres humanos,
estava se despontado no horizonte de Jesus.
A noite daquele fatídico dia tem como início uma
experiência profundamente amarga para o Senhor: a
traição. Uma das piores sensações que o homem pode
sentir é ser traído por aqueles que menos se espera.
Mesmo que Jesus soubesse quem o trairia desde o
princípio, a atitude de Judas tocou profundamente a sua
alma:

“Ditas essas coisas, angustiou-se Jesus em espírito e


declarou: digo-lhes que certamente um de vocês me
trairá.”
João 13:21

O verbo usado por João para descrever a atitude


de Jesus após o traidor ter sido indicado, expressa uma
forte agitação no Senhor. A dor da traição que Ele estava
experimentando naquele momento o deixou aterrorizado.
O amigo íntimo que Ele confiou, cuidou, amou e se
preocupou estava levantando contra Ele o seu calcanhar.
A traição só pode vir de quem está perto, de quem tem
um laço de intimidade, de quem desfruta de nosso

76
coração. Nossos inimigos nunca nos trairão. “Eles não
podem nos ferir, mas os amigos sim”. E Judas estava com
o Senhor durante muito tempo. Ele ouviu os seus sermões
e contemplou milagres e maravilhas. Ele foi enviado às
ovelhas perdidas de Israel e vizinhanças operando
prodígios no seu Nome. Ele participou das alegrias e
tristezas daquele rico ministério. E na vida de Jesus, as
histórias se repetem dando um novo significado. O
lamento do rei Davi no salmo 41:9, estava se ouvindo
novamente em Jerusalém:

“Até meu amigo íntimo, em quem eu confiava que


comia do meu pão, levantou contra mim o calcanhar”.

Davi, traído por Absalão, seu filho, e muitos que


antes eram fiéis a ele, experimentou esse sentimento de
tristeza profunda. A traição não tinha vindo dos filisteus
ou moabitas. Ela partiu daqueles que faziam parte do
círculo íntimo do rei.

“Se um inimigo me insultasse, eu poderia suportar; se


um adversário se levantasse contra mim, eu poderia me
defender; mas logo você, meu colega, meu amigo
chegado, você, com quem eu partilhava agradável
comunhão enquanto íamos com a multidão festiva para
casa de Deus” -

Disse o admirado Rei Davi no salmo 55.12-14.

Ele cruzou o Vale de Cedron, rumo ao deserto em


uma tristeza angustiante, e mais tarde, traído por Judas e

77
brevemente por seus fiéis amigos, o Senhor de Davi
estava cruzando o Cedron para adentrar o Getsêmani,
sentindo o que o rei havia sentido.
É de nos fazer estremecer quando compreendemos
que nos últimos dias será proeminente e abundante a dor
da traição. As trevas da noite estarão presentes por todas
as partes. Em outras palavras, nos últimos dias esse
terrível ato da maldade humana será abundante,
principalmente dentro da igreja. A apostasia nos dias
finais será marcada pela falsidade religiosa. Aquele que
traiu Davi era o mesmo que tinha comunhão com ele na
casa de Deus. O “espírito” de Judas atuará de uma forma
assustadora na igreja. Jesus havia previsto essa dura
realidade quando alertou os seus discípulos dizendo:

“Vocês serão traídos até por seus pais, irmãos,


parentes e amigos; e alguns de vós sereis entregues à
morte.”
Lucas 21:16

Olhando para trás, na história da igreja, vemos o


quanto essa palavra se mostrou fiel na vida de
inumeráveis cristãos. João Huss experimentou essa dor
quando confiou a sua vida nas mãos do Imperador
Sigismundo. Traído covardemente, foi sentenciado à
morte na fogueira. William Tyndale foi traído por um falso
irmão que lhe conquistou a confiança para depois o
entregar nas mãos de seus algozes. Os cinco missionários
huguenotes que vieram para o Brasil enviado por Calvino,
foram traídos por Villegaignon, seu compatriota. Três
foram mortos por padres jesuítas, estrangulados na Baía

78
de Guanabara. São poucos exemplos de uma multidão
inumerável de irmãos que sentiram o que muitos de nós
sentiremos. Porém, o problema se agrava quando a nossa
experiência é fruto da traição de verdadeiros irmãos.
Spurgeon já nos alertava no século 19 dizendo “prepare-
se para quando o seu mais querido irmão o trair.”
Lembro-me de uma situação embaraçosa enquanto
estava no seminário. O nosso professor, pastor de uma
igreja na localidade, estava sendo transferido, após
muitos anos de ministério, para outra cidade. O
relacionamento entre igreja e pastor estava passando por
sérios problemas. No concílio que resolveria essa situação
constrangedora, um amigo de ministério que ele confiava
e pensava que o defenderia, se calou diante das
acusações contra esse pastor. Eu não sabia a causa e nem
as circunstâncias daquele problema, mas eu vi o quanto
aquele homem estava destruído. Ainda hoje penso sobre
a dor na alma que ele sentia. A angustia era quase
palpável naquela sala de aula. A dor da traição o estava
esmagando naquele dia.
Madame Guyon, que sofreu uma duradoura e
silenciosa provação, passou por sentimentos de traição
que tornaram as suas feridas ainda mais dolorosas. Ela
disse uma vez que “Quando Deus quer quebrar um dos
seus servos, Ele permite que os seus amigos mais íntimos
o tratem como se você fosse um verdadeiro inimigo”.
Sem dúvida essa é uma das piores dores que os
filhos de Deus poderão passar em suas vidas. E o Senhor
passaria pelas duas situações. Ele seria traído por um
falso discípulo e pelos verdadeiros discípulos. A dor se
intensifica mais quando somos pegos de surpresa por

79
aqueles que menos esperamos. Mas diante da experiência
de Cristo podemos perceber que nem o privilégio de saber
antecipadamente quem o trairia, não minimizou a sua
angustia.

O PODER DA DOR DA ALMA

É de admirar que a dor da alma possa se


assemelhar a dor física e, em alguns casos, pode ser
ainda mais forte. É um sofrimento invisível, mas real. A
mente humana reage de uma forma devastadora, se
espalhando para todo o corpo. A reação corporal diante
da dor emocional fez com que o nosso Senhor suasse
sangue. Era uma angustia tremenda que rasgava a alma
de Jesus. Essa experiência estava sendo sentida pelo
criador do universo de uma forma verdadeira. Todos nós
seremos traídos. Todos nós passaremos por angustias.
Todos nós sentiremos essa profunda dor, mas é um
caminho que precisamos trilhar. Esse é o caminho da
cruz. Quando atendemos ao convite de seguir a Cristo,
tendo a cruz em nossos ombros, são situações como
essas que nos aguardam no caminho. Spurgeon,
pregando sobre essa experiência disse uma vez:

“Não era dor, não eram palpitações do coração, nem


uma dor de cabeça, era algo pior que todas essas
coisas. A turbação de espírito é pior que a dor corporal;
a dor pode trazer problemas e converter-se na causa
incidental de angústia, porém, se a mente está
perfeitamente tranquila, um homem pode suportar a dor
sem maiores problemas, e quando a alma está radiante

80
e levantada com um gozo interno, a dor do corpo quase
é esquecida. A alma conquista ao corpo. Por outro lado,
a dor da alma é a causa de dor corpórea. A natureza
inferior se harmoniza com a natureza superior. O
principal sofrimento de nosso Senhor estava em Sua
alma. Os sofrimentos de Sua alma eram a alma de Seus
sofrimentos. “Quem suportará ao ânimo angustiado?” A
dor de espírito é a pior das dores, a tristeza de coração
é o ápice das aflições. Que todos aqueles que
conheceram alguma vez a depressão do espírito, o
abatimento e a escuridão mental, confirmem a verdade
do que eu digo!”

Não deveria ser uma surpresa para nós quando nos


deparamos com a traição. É a cruz. É verdade que o
nosso Senhor previu a traição de todos, e mesmo assim,
aquela situação o machucou e, certamente, também nos
machucará. E qual deve ser a reação de seus discípulos
diante de algo que certamente estará em nossa
caminhada cristã? Seria ódio? Talvez vingança? Ou uma
profunda amargura? Não querido leitor, “anima-te, se a
traição tiver sido a sua recente experiência. Deve haver
grandes coisas diante de ti, de outro modo Satanás não o
açoitaria nesse momento”, escreve Rosh
Olhando para Cristo, a sua reação após a traição
com os falsos irmãos, como Judas, foi um singelo convite
a amizade, um singelo convite ao perdão. E com os
verdadeiros irmãos, o Senhor preparou um banquete a
beira mar para a comunhão. É por isso que o verdadeiro
cristianismo é considerado fraco para a sabedoria
humana. É certamente improvável que alguém que leu e

81
segue o Príncipe de Maquiavel, lerá e seguirá o evangelho
de Jesus Cristo. Eles são incompatíveis.
Nada mais humano do que experimentar a dor da
traição. E o que os evangelhos nos descrevem, é uma dor
profundamente arrasadora que Jesus estava passando. A
reação sincera e verdadeira do Senhor o torna tão
humano como aqueles que estavam com ele no jardim. A
sua angustia o aproximou ainda mais de seus amigos. Ele
precisava, como um de nós, do cuidado espiritual e
emocional daqueles que o seguiram por todo o seu
ministério. E sua humanidade estava tão intensamente
sendo vivida, que foi preciso um beijo para diferenciá-lo
dos demais. É realmente frustrante quando esperamos
gestos de carinho pra aliviar a nossa dor, e o que nos
deparamos é com a falsidade humana.
Que Deus nos livre de toda a obra maligna, como
disse Paulo diante da maldade de Alexandre, de odiar
aqueles que nos traem. Precisamos ver a Mão de nosso
Deus nessas experiências dolorosas. H. L Roush escreve:

“Devemos considerar a benção que traz a traição


quando, através dela, aprendemos a não reconhecer
outra mão a não ser a mão fiel de nosso Amado Pai no
céu, em todas as coisas. Nós damos demasiada glória
ao diabo, ao mundo e à carne nas circunstâncias das
nossas vidas. Culpamos os nossos inimigos quando
somos sacudidos; mas grande paz e quietude de
coração se tornam nosso quando nos negamos a
reconhecer segundo as causas em nossas vidas. Deus é
soberano e ele é o nosso Pai. agradou-lhe permitir que
isto nos acontecesse, e nossa parte é crer que” aos que
amam a Deus, todas as coisas contribuem para o bem,

82
isto é, aos que são chamados conforme o seu
propósito”.

Admiramo-nos diante do fato que Deus, o todo


poderoso criador do universo tinha corpo alma e espírito
naquele jardim. E o Deus homem estava sentindo
profundamente o que sentimos, e aquela noite estava
apenas começando.

O SALMO MESSIÂNICO

Após a traição, quando o Senhor entrou naquele


Jardim, todos os seus sentidos estavam aguçados naquele
momento. E a noite no jardim era apenas o princípio das
dores de Jesus. Tudo começou com uma traição e
terminaria com um abandono.
Os salmos 22, 23 e 24 descrevem a trajetória do
messias, da sua paixão a sua glorificação. O primeiro
deles é um relato traumático do Cristo em seus últimos
momentos de vida, quando, debaixo do escárnio e
agonizando na cruz clamou de uma forma
desesperadamente real. O salmo 24 é um relato tremendo
da ascensão e glorificação do Cristo após a ressurreição,
quando os portais se levantaram para que o Rei da glória
entrasse nos céus. Mas o salmo 23 se diferencia dos
demais salmos. Ele não é um clamor como o primeiro
salmo, e nem uma celebração vitoriosa do Messias
glorioso como no último salmo. É uma proclamação. Uma
declaração de fé daquele que ora. É uma questão de crer
quando em meio à aflição, sem ter uma visão nítida da
presença do Bom Pastor, a ovelha se agarra na sua

83
bondade e cuidado sem ter a certeza se Ele estaria
presente.
Se analisarmos o salmo 23, o rei Davi está se
referindo não a um rebanho, mas somente a uma ovelha.
Os cristãos foram condicionados a enxergarem esse salmo
do ponto de vista do cuidado pastoral de Deus aos que
creem em Jesus. O Senhor tem cuidado do seu rebanho.
Essa forma de interpretar essa passagem é verdadeira,
mas se olharmos no prisma de que Davi não falava dele
mesmo e nem de nós, mas do Messias, toda a nossa
percepção mudará.
Após a ressurreição, quando o Senhor se apresenta
no meio dos discípulos, os seus olhos são abertos com
respeito a tudo o que as escrituras testificavam de Jesus.
Em Lucas 24:44 algo revelador é nos dito pelo Senhor:

“A seguir, Jesus lhes disse: São estas palavras que eu


vos falei, estando ainda convosco: importa se cumprisse
tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos.”

Quando nós passamos a compreender que toda a


Bíblia é uma revelação progressiva da vida do Messias, a
nossa leitura mudará por completo. João Crisóstomo dizia
que “ler todos os livros proféticos, sem enxergar Cristo
neles, seria extremamente insípido e sem graça. Ver
Cristo neles revela sua fragrância.”
O salmo 23 é messiânico. Como o Senhor nos
revela, esse salmo faz referência a sua pessoa, assim
como muitos outros. Creio que Davi não pensava que
estava descrevendo o que o Messias passaria. Seus olhos

84
não estavam abertos para enxergar o que estava sendo
revelado para ele naquele momento de adoração. Assim
como os demais profetas, Davi ainda era míope com
respeito à profundidade do que escrevia.
O Pastor tinha um íntimo relacionamento com a sua
ovelha. Ele era o seu Bom Pastor e a ovelha lhe pertencia.
Todo o seu cuidado, zelo e proteção tinham como
propósito o amadurecimento daquele frágil animalzinho. O
que temos que ter em mente é que a ovelha desse Bom
Pastor tinha como o fim, o sacrifício de expiação. Todo o
cuidado que o Pastor tinha por ela era para que a
perfeição a caracterizasse. A ovelha tinha que chegar a
idade de 1 ano sem nenhum defeito, mancha ou mácula.
(Êx. 12:5). Toda a vida da ovelha teve o cuidado especial
do Bom Pastor para que ela fosse uma vítima do sacrifício
de expiação. Parece assustador, mas era o que sempre
acontecia em Israel. Um cordeirinho era separado,
cuidado e preparado com todo o amor para ser uma
vítima inocente pelo povo.
A confiança caracterizava aquele relacionamento. O
Senhor era o Bom Pastor que nada lhe deixava faltar,
declara a ovelha. Ela descansou por toda a sua vida em
verdes pastos e em águas tranquilas. O amor ao Seu
nome era quem a guiava retamente. O Pastor sempre a
acompanhava, sempre estava presente. O seu cajado a
consolava. Mas a ovelha deveria andar por caminhos
tenebrosos. Esse era o seu destino. Ela foi enviada há um
lugar hostil. O próprio Pastor havia preparado uma mesa
para ela perante os seus adversários. E diante daquela
inocente ovelha havia um cálice transbordante para ser
tomado. Ali estava um banquete divino preparado para o

85
Cordeiro Santo. O próprio Senhor havia dito que a sua
comida e a sua bebida era fazer a vontade de Deus. E ali
estava a vontade de Deus diante dele na presença de
seus inimigos. (Jo 4:31-33). Uma parte desse salmo diz
assim:

“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não


temerei mal algum, porque tu estás comigo.”

Salmo 23:4

Daquele ponto em diante, seria uma questão de fé


cada passo dado pela ovelha. Ela passaria por aquele vale
confiante na promessa que, enquanto estivesse naquela
região de escuridão profunda, sem sentir, ouvir e
perceber a presença do Bom Pastor, a inocente ovelha
não seria deixada na morte e nem um de seus ossos
seriam quebrados. (Sl 16.10; Sl 34.20). A bondade e
misericórdia a seguiriam pelo vale adentro, e ela voltaria a
ter a plena comunhão com o Seu Pastor.
Fica muito mais claro quando lemos o salmo 23
com os óculos da paixão de nosso Senhor. Ele é o autor e
consumador de nossa fé. Se hoje não caminhamos por
vista, mas crendo no seu cuidado amoroso nos vales
escuros, antes, Jesus inaugurou e trilhou esse mesmo
caminho. Aquela ovelha havia sido escolhida para àquela
hora. Ela estava crescida, amadurecida, pronta para ser
sacrificada como expiação.
Em sua aflição na cruz, o salmo 22 é citado pelo
Senhor. Mas não há relato de nenhuma citação de alguma
passagem bíblica naquela experiência de Jesus no

86
Getsêmani. Era claro que ele estava passando pelo vale
da sombra da morte. O Salmo 23 estava sendo vivido pelo
verdadeiro cordeiro pascal. O Senhor estava
experimentando a mais profunda crise que todos os
homens podem experimentar. Talvez, diante de toda
aquela experiência esse salmo tenha vindo a sua mente
naquele momento, mas não sabemos. Porém, o que
sabemos é que a sensação de terror não era estranha
para Ele. O mais profundo que o homem pode se
encontrar nesse vale, Jesus entrou. Ele se tornou íntimo
de nossa dor para ser o nosso consolador.
Esse salmo é um dos mais conhecidos da Bíblia. Por
muito tempo ele tem sido um lugar de refúgio para os
filhos de Deus que sofrem. Scrogie disse “que com esse
salmo milhares tem vivido, e na fé dele milhares têm
morrido”. Em nossas noites escuras o Abba, o nosso Bom
Pastor, está presente e nos responde, por mais difícil que
pareça, quando o clamamos. Mas quando olhamos para a
experiência de Jesus naquele jardim, não houve o mesmo
privilégio que nós temos quando passamos por aflições. O
abandono se inicia no jardim e culminaria no calvário. Dali
para frente, o Senhor caminharia por fé, pois o seu Pai
não mais estaria com Ele.

O CLAMOR

Por três vezes Jesus clama ao Pai para que, se


possível, o cálice lhe fosse retirado. O que se percebe
nessas orações é que não houve resposta da parte de
Deus. Em hebreus 5:7, há um texto que parece se referir

87
a experiência do Senhor naquele jardim. Nessa passagem,
o autor de Hebreus escreve:

“Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com


forte clamor e súplicas a quem o podia livrar da morte e
tendo sido ouvido por causa da sua piedade...”

Hebreus 5:7

É importante notar que o autor de Hebreus ainda


está focando a humanidade de Cristo. Ele tem em mente,
desde o princípio da sua carta, que aquele que é o
resplendor da glória e a expressão exata do Ser de Deus,
é o mesmo homem que experimentou as limitações que
experimentamos. Mas a pergunta que devemos fazer
diante desse texto é se ele está se referindo realmente
àquele momento no jardim. Arno Froese interpreta essa
passagem como sendo uma referência a angustia de
Jesus no Getsêmani. Ele escreve:

“O Getsêmani foi o único local onde Jesus pediu que a


sua vida fosse poupada; Jesus não morreu no Jardim do
Getsêmani. O silêncio aparente de Deus à oração de
Jesus no Jardim foi [...] uma clara resposta a esta
oração. Deste ponto de vista, entendemos que a oração
de Jesus não foi para que sua vida fosse poupada na
cruz do Calvário. A oração de Jesus foi para que tivesse
Sua vida poupada, para que não morresse ali no Jardim
Getsêmani. Ele estava destinado a morrer na cruz do
Calvário para tirar os pecados do mundo”.

88
Nessa interpretação, Arno vai além das demais
visões com respeito a esse texto. Situando essa passagem
na experiência de Jesus no jardim, a angustia do Senhor
era por um temor presente, não futuro. Mas é difícil
compreender aquela situação como um pedido para que
Ele não fosse morto ali. Apesar de o Senhor estar
experimentando o gosto da morte por causa da dor e
aflição, pensar, além disso, creio que seja um erro.
Porém, está claro nesse texto de Hebreus 5:7 que Jesus
teve a sua súplica respondida, no entanto, o que não está
tão claro é se essa passagem se refere ao Getsêmani.
Partindo do fato que tenha uma referência àquele
acontecimento no jardim, a resposta do Pai parece está
mais ligada à ressurreição do Senhor. Jesus teve certeza
que o seu Pai não o deixaria na morte, mas não teve
resposta quanto ao cálice. Mas se, esse texto se refere ao
cálice, o silêncio do Pai foi uma resposta clara ao filho.
Então o pedido de Jesus foi ouvido, e Ele entendeu que o
cálice não seria retirado.

O HORROR AGONIZANTE

O que é relatado nos evangelhos é a face


horrorizada de Jesus por causa daquilo que o aguardava.
A realidade daquela experiência assustava o Senhor. Era
como se Ele estivesse contemplando um objeto de horror.
Os meios pelos quais devemos alcançar o fim proposto
por Deus, às vezes são realmente assustadores. E o que
se torna visível na narrativa do clamor de Jesus é o
silêncio de Deus. E o silêncio muitas das vezes, fala muito
mais alto do que as palavras. E a resposta do Pai, aceita

89
prontamente pelo Filho sem titubear, foi um não. Não era
possível ter a recompensa de seu penoso trabalho sem
experimentar o cálice. E o que importava para Jesus
naquele momento não era o seu bem-estar, mas a
obediência a vontade do Pai.
Como foi focado anteriormente, o nosso Senhor
não se encarnou tendo em si mesmo a obediência
totalmente cumprida. Por mais misterioso que possa ser o
autor de Hebreus deixa bem claro que Ele aprendeu a ser
obediente. E o que se torna evidente nesse relato é que
Jesus não a obteve sem esforço. Foi através de uma
extrema disciplina no sofrimento que Ele se tornou
submisso. Essa obediência o conduziu até aquele jardim.
Para que Ele se tornasse a ovelha perfeita do Salmo 23,
ele tinha que passar por essa provação. Hughes escreve
que “seus sofrimentos tanto testaram quanto,
vitoriosamente suportados, atestaram Sua perfeição, livre
de fracasso e de derrota.” Tanto na questão do sacrifício
perfeito como na questão de ser o Sumo Sacerdote
perfeito precisa da perfeita obediência. E o cálice era
necessário para que isso se concretizasse.
O silêncio é um claro aviso que Cristo estava sendo
abandonado no jardim na situação de maior fraqueza de
sua vida. Poucos teólogos se arriscam a escrever que foi
ali que a ira de Deus começou a ser derramada sobre
Cristo. O Mais próximo que podemos ter de uma
afirmação é de Louis Berkhof que comentando sobre a
extensão da morte de Cristo disse que:

“Ele esteve sujeito, não somente à morte física, mas


também à morte eterna, se bem que sofreu esta

90
intensiva, e não extensivamente, quando agonizou no
jardim e quando bradou na cruz, “Deus meu, Deus meu,
por que me desamparastes? “. Num curto período de
tempo, Ele suportou a ira infinita contra o pecado até o
fim e saiu vitorioso”.

Esse comentário distinguiu o peso da ira de Deus


nos dois eventos, o jardim e a cruz, mas não nega que,
apesar de não ser tão intensa a dor do abandono naquela
noite, foi ali que Jesus começou a sentir os nossos
pecados sobre Ele.
Willian Hendriksen, em princípio duvidoso sobre o
assunto, escreve que:

“[...] seria o caso de aqui no Getsêmani ter visto vir


sobre ele à maré da ira de Deus contra o pecado?”.

Depois, comentando a profunda tristeza do Senhor


naquela noite, Hendriksen afirma que “Jesus estava
submerso em maldição, se tornando pecado, o objeto da
ira de Deus naquele momento”.
O cálice estava a sua frente e era uma questão de
decisão para o nosso Senhor. Devemos partir do fato que,
assim como Adão antes da queda, Jesus era livre para
decidir tomar ou não do cálice. Ele era Senhor de si
mesmo. Em sua vida, por duas vezes ele já havia
glorificado o seu Deus e Pai, e certamente a sua recusa de
não tomar aquela amarga bebida não mudaria em nada
quanto a sua pessoa. Esse é outro tema muito difícil de
ser abordado. O nosso Senhor não teria cometido pecado
se rejeitasse aquele cálice. A forma que o Senhor orou,

91
colocando uma condicional em suas palavras, sugere que
poderia ser possível Ele ter tomado outro caminho. Porém
se isso fosse feito nada mudaria com respeito à ordem do
universo. O Deus Triuno estaria onde sempre esteve em
toda a eternidade, mas em algum ponto da criação
haveria um sinal de desarmonia à sua perfeição. Satanás
reinaria ainda em sua soberba, desafiando a multiforme
sabedoria divina. E nós estaríamos arrastando as nossas
correntes, escravizados pelo príncipe deste mundo,
revelando uma natureza monstruosa que nos foi
compartilhada por Adão e sem nenhuma perspectiva de
salvação. O Cristo estaria em casa, e toda a humanidade
no inferno. Como escreve Malcolm Tolbert:

“Tudo o que Jesus precisava fazer, a fim de escapar da


morte, era sair do Getsêmani e procurar algum refúgio
seguro – era recusar-se a confrontar o seu povo com a
necessidade de este fazer a sua escolha final, decisiva.
Mas, se ele tivesse saído do Getsêmani, não existiriam
evangelho, nem Novo testamento, nem hinos cristãos,
nem igrejas. O Getsêmani foi o lugar onde a tendência
para salvar-se a si mesmo, por parte de Jesus, entrou
em direto conflito com o encargo que lhe foi dado por
Deus para se doar redentoramente. Nessas situações,
geralmente escolhemos nos salvar a nós mesmos. Mas
ele escolheu perder-se, para salvar-nos”.

O que importava para Jesus era a obediência a


vontade do Pai. E isso era inegociável para ele. Era para
aquele momento que ele havia encarnado. As profecias
descreviam o que deveria acontecer e voluntariamente ele
decidiu, mesmo diante da possibilidade de tomar outro

92
caminho, beber totalmente o que continha naquele cálice.
Por amor, Ele se deu para o sacrifício. Ele se deixou
morrer. Ninguém o havia tocado em todo o seu ministério,
porque ele era o Senhor da vida. Foi uma ação livre e
espontânea de Jesus. Havia a vontade do pai, mas havia a
decisão do Filho. E o que pesava para Ele naquele jardim
era a justiça ferida de seu Pai. A sua justiça clamava por
pagamento, o seu propósito clamava por cumprimento, e
as nossas misérias clamavam por empatia. O que está em
primazia na mente de Jesus não é o pecador em primeiro
plano, mas o seu Pai. Jesus estava abrindo mão de sua
vontade para que a vontade de Deus fosse cumprida, e
esse é o significado da noite escura.

A TRANSFIGURAÇÃO

A narrativa da transfiguração de Jesus no monte


Hermon, nos revela que foi ali que Jesus tomou a decisão
de abraçar completamente toda a vontade de Deus. Como
foi visto anteriormente, o Senhor por três vezes orou para
a possibilidade de o cálice ser retirado. Ele ainda
intercedeu ao Pai quanto a outro caminho possível para o
cumprimento do propósito de Deus. Porém, o fato do
Senhor não ter decidido ser assunto aos céus no monte
Hermon, nos indica que a sua decisão foi tomada antes da
entrada no Getsêmani.
O Senhor não precisava descer daquele monte
passando pelo jardim até o calvário. Ele não precisava
passar por esse caminho. “Ele poderia ter ascendido ao
céu a partir do monte da transfiguração, pois, na vida de

93
nosso senhor, Ele já havia cumprido toda a vontade de
Deus”.
A transfiguração é o descortinar da vida perfeita de
Jesus Cristo em toda a vontade do Pai até aquele
momento. O segundo Adão havia sido fiel ao seu Deus.
Em contraste com a vida vazia que o homem vivia após a
queda, a sua vida estava cheia de glória. A verdadeira
humanidade havia florescido. Jesus estava plenamente
amadurecido. Mas ele decidiu ir além quando deu o
primeiro passo na descida daquele monte. Da glória para
cruz. Era a glória de seu Pai que foi o motor que fez o
Senhor descer até o jardim.

POR QUE JESUS TEMIA O CÁLICE?

Mas qual seria o motivo dessa angustia de morte


que o Senhor sentiu naquela terrível noite, que mesmo
tendo decidido se submeter a vontade do Pai, o fez por
três vezes suplicar? Seria medo da tortura, da vergonha,
do escárnio ou o tipo de morte que lhe sobreviria? Creio
que não! Spurgeon, diante dessa indagação responde
dessa forma:

“Por acaso supõem que era o temor do escárnio que se


avizinhava ou o terror da crucificação? Era medo ao
pensar na morte? Não é certo que essa suposição seria
impossível? Todos os homens temem à morte, e como
homem, Jesus não poderia menos do que estremecer-se
frente a ela. Quando fomos feitos originalmente fomos
criados para a imortalidade, portanto morrer é estranho
e incompatível para nós e o instinto de conservação é

94
fazer que nos esquivemos diante da morte; porém,
certamente no caso de nosso Senhor essa causa natural
não podia gerar esses resultados tão especialmente
dolorosos. Se nós que somos uns pobres covardes não
suamos grandes gotas de sangue, por que então
causava tal terror nele? Não é honroso para nosso
Senhor que o imaginemos menos valente que seus
próprios discípulos, no entanto, temos visto triunfantes
a alguns dos santos mais frágeis diante do prospecto da
partida.”

Era algo realmente muito doloroso para Jesus, e


essa terrível dor nos deixa hesitante quanto ao porquê ele
chegou a um ponto tão crítico de sua existência. O Senhor
era conhecido como homem de dores, experimentado no
sofrimento. As dores e aflições provocados pelas mazelas
a sua volta, já era conhecida por ele. Tudo isso havia
preparado o nosso Senhor para um futuro ainda mais
doloroso. Portanto, pensarmos que toda aquela agonia
assustadora era saber da tortura e tipo de morte que lhe
esperava, é uma conclusão muito simplista. Com certeza
aquela terrível angustia experimentada pelo Senhor era
por causa de outra coisa, algo ainda maior.

95
96
Capítulo 5

O Cálice
“Meu Pai, se for possível, afasta de mim esse cálice;
contudo não seja como eu quero, mas sim como tu
queres”.

Jesus Cristo

A história da igreja está repleta de mártires que


demonstraram uma forte convicção diante da morte. A
singeleza de espírito que eles revelaram naqueles terríveis
momentos, é um poderoso testemunho do valor daqueles
irmãos. Quando lemos as suas biografias ficamos
maravilhados por sua coragem e determinação perante
seus algozes. Havia um poder que os fortalecia para
aquele momento. Raramente veremos alguns deles
angustiados ante a crueldade humana. Bem diferente da
atitude de Jesus naquela noite. Realmente é de estranhar
quando comparamos a atitude dos mártires da igreja e a
atitude do Senhor da igreja. Parece que Jesus era o mais
fraco de todos os homens naquele jardim. Onde estava a
coragem que o seguiu em todo o seu ministério?
Watchman Nee escreve que “se não fosse pela
questão da redenção, o Senhor Jesus nem mesmo seria
comparado a um mártir”. Essa conclusão é por causa da
diferença gritante entre todos os mártires da igreja

97
primitiva que testemunharam diante do fogo, das feras,
da espada, e o homem de dores no Getsêmani. Não se
ouve da boca desses homens e mulheres a oração para
que, se possível, o cálice lhes fosse tirado. Alguns
questionam se realmente Jesus está na galeria de
mártires. Carson, tanto em seu comentário de João, como
de Mateus, afirma que Jesus não foi um deles devido ao
seu sofrimento único e morte única. Porém, Afirma
Carson, a intrepidez daqueles que morreram por Cristo foi
devido à força que a morte e ressurreição de Jesus lhes
concederam. É aqui que toda a comparação deve ser
retirada. A morte de Jesus se diferencia em muito da
morte de todos os mártires da história, pelo simples fato
do que estava envolvido em questão.
Jesus estava sozinho. Em sua adoração silenciosa,
Ele não teve a energia divina que acompanharia as suas
testemunhas por todo mundo, como é descrito em Atos
1:8. Por isso a aparente fraqueza na reação de nosso
Senhor diante da morte tem que ser entendida por outro
ângulo. Ao estudar essa passagem bíblica, o caminho que
devemos seguir é que algo maior do que à simples morte
pela tortura de cruz, estava envolvida nessa experiência
de Cristo.

O VINHO AMARGO

Após o nosso Senhor ter terminado o seu clamor e


abraçado a vontade de seu Pai, João escreve algo no seu
evangelho que revela a forte convicção na decisão de
Jesus. Pedro, tentando impedir com que a vontade de
Deus se cumprisse, é repreendido pelo Mestre que diz:

98
“Acaso não haveria de beber o cálice que o Pai me
deu?”
João 18:11

Essas palavras do Senhor descrevem a sua firme


disposição tomada muito antes da chegada da turba.
Tudo estava debaixo do controle de Deus e os homens
estavam apenas cumprindo aquilo que já estava
predeterminado. Por mais que Pedro tentasse
desembainhar a sua espada, nada impediria que Jesus
fosse até as últimas consequências para cumprir a sua
missão. As decisões do Senhor não foram nada fáceis e,
apesar de beber do conteúdo da vasilha, isso não significa
que ele apreciou aquela bebida.
Quando a Bíblia utiliza a expressão cálice no Novo
Testamento, quase sempre está relacionado aos
sofrimentos de Cristo. Em Mateus 20:20, quando Jesus
responde ao pedido da mãe daqueles dois discípulos, Ele
revela o tipo de bebida que estava para tomar: “Podem
vocês beber o cálice que eu vou beber?” O significado
daquelas palavras, tanto para Jesus como para os
discípulos, era o tipo de morte que os esperava. Isso
mostrava a decisão de Jesus e o que aquele copo
continha.
A palavra cálice, Poterion em grego, tem o
significado de uma vasilha de beber. É uma figura usada
para significar as aflições de uma bebida amarga, mas
precisamente a borra do vinho. O Senhor desde cedo
sabia que o conteúdo daquela bebida era o destino que
seu Pai havia planejado para Ele. E a bebida que aquele
cálice continha era a ira espumante de Deus. Apocalipse

99
14:10 nos dá um vislumbre daquilo que Jesus teve que
tomar:

“Se alguém adorar a besta e a sua imagem e receber a


sua marca na testa ou na mão, também beberá do
vinho do furor de Deus que foi derramado sem mistura
no cálice de sua ira.”

É uma imagem realmente chocante quando lemos


essas palavras. Mas quando olhamos para a vida de
Cristo, algo bem pior que isso foi experimentado por Ele.
Essa expressão cálice de sua ira sempre está ligada ao
juízo divino. Sabemos que o que traz o juízo de Deus é a
sua ira contra o pecado. Paulo em sua carta aos Romanos
escreve:

“Porque dos céus se manifesta a ira de Deus sobre toda


a impiedade e injustiça dos homens que detêm a
verdade em injustiça.”
Rom. 1:18

Quando nos aprofundamos mais um pouco nos


estudos sobre a ira de Deus, ela está também ligada à
transgressão da Lei, ao desdém pelo Criador, a justiça
própria daqueles que se acham piedosos por sua
observância da Lei e a situação de perdição do homem.
Tudo isso está misturado naquela bebida. Durante muito
tempo Deus havia tolerado os pecados da humanidade e o
seu cálice estava transbordante naquela Páscoa. Dave
Hunt coloca dessa forma a experiência de Jesus no
jardim:

100
“Não foi o pensamento do intenso sofrimento físico que
fez que seu suor caísse como gotas de sangue. Em vez
disso, sua santa alma encolheu-se com a chegada
daquilo que Ele mais abominava: o pecado. Como Paulo
explicou: “Aquele [Cristo] que não conheceu pecado, o
fez [Deus] pecado [Ele] por nós, para que, nele,
fôssemos feitos justiça de Deus”
II Co 5:21.

O pecado traria uma série de consequências


dolorosas sobre Jesus. O Santo de Deus teria um estreito
contato com toda a opressão que dele resulta. Quando ele
assumisse os nossos pecados, Deus o consideraria
culpado desses mesmos pecados. Para Ele era como se
Jesus os tivesse praticado. Diante disso, Deus o esmagaria
através de toda a sua ira. E tudo seria experimentado pelo
Senhor sozinho, abandonado pelo Pai. Era algo realmente
aterrorizador.
A santa Ira de Deus é por causa da ofensa a sua
justiça e santidade feridas por nossas transgressões. Por
essa causa ele odeia intensamente o pecado. Era essa ira
e as suas consequências que fez com que Jesus entrasse
em um estado tão extremo de angustia, que os vasos
sanguíneos em sua fronte se romperam. Olhando todo
esse quadro muitos podem se perguntar: Era realmente
preciso tudo isso? Realmente precisava de uma
experiência tão traumática para que o Pai fosse satisfeito
e os nossos pecados perdoados? A figura dos sacrifícios e
holocausto no antigo Israel revelou para nós que somente
o derramamento de sangue inocente poderia satisfazer a

101
justiça divina. Sim, respondemos. Era necessário um alto
preço pago para resolver o problema da queda. A
necessidade da morte do próprio Deus, nos revela o
tamanho de nosso pecado e o quanto ele é desprezível.
A justiça de Deus não permitia que essa situação
fosse deixada de lado. O seu caráter santo exigia que um
sacrifício fosse feito. Mas Deus é amor e Ele queria
expressar a sua natureza para a sua criação. O amor de
Deus entra em ação quando aquele que estipulou o
pagamento para a paz, se tornou o sacrifício que traz a
paz. Ele poderia nos obrigar a assumir a punição,
demonstrando dessa forma a sua justiça, mas não
revelaria o seu amor. Ou ignorar as nossas ofensas
demonstrando, dessa forma o seu amor, mas sacrificando
a sua justiça. Era uma situação realmente difícil de
resolver. Quando, porém, o cobrador se torna o pagador,
tanto a justiça como o amor são reveladas por Deus.
E a Lei que Deus deu a Moisés? Não seria ela uma forma
de pagamento pelas nossas ofensas? É triste quando nos
deparamos com pessoas que tentam, com seus trapos
imundos, oferecer um sacrifício manco, imperfeito e
maculado como pagamento de seus pecados.
A Lei divina só serviu para nos provar o quanto
somos maus e o quanto estamos longe desse Justo Deus.
A sua justiça vindicava por pagamento e nós não
tínhamos nenhuma condição de quitar a dívida que nosso
Pai Adão nos deixou como herança. Mas pela nossa
arrogância pensávamos que podíamos pagá-la. Deus nos
deu a Lei para arrancar de nossos lábios toda a presunção
de nosso ego demoníaco. A cruz é a prova de nossa
vergonhosa falha. O homem pecou, e o homem tinha que

102
resolver esse problema. E o resultado dessa dívida, que
não caduca, é que nos tornamos alvos da ira de Deus.
Nunca houve uma real possibilidade de o homem acabar
com esse débito. Deus sabia disso, mas o homem não.
Sim, era preciso um homem para resolver essa questão,
porém, não poderia ser um como nós.
Anselmo, diante do problema que a expiação propõe
afirmou de forma tremenda como esse mistério é
resolvido por Deus.

“A satisfação deve ser proporcional ao pecado...


Portanto, ninguém pode prestar essa satisfação exceto
Deus mesmo. De outro lado, ninguém deve fazê-lo
senão o homem... E se só Deus pode e só o homem
deve fazer essa satisfação, então necessariamente deve
fazê-lo quem seja ao mesmo tempo Deus e homem.”

A encarnação da segunda Pessoa da trindade tinha


como propósito resolver esse terrível dilema divino. E no
Getsêmani estava o Filho de Deus na figura humana,
começando a tomar sobre si todas as nossas
transgressões. Todo o castigo que nos traria a paz estava
sendo colocado sobre ele naquela hora. Aquela face
sorridente que Jesus contemplava em sua caminhada,
daria lugar a um semblante iracundo em sua paixão. A
questão não era enfrentar a morte, era enfrentar a morte
assumindo toda a nossa impiedade e injustiça. A questão
não era enfrentar a morte, era enfrentar a morte
experimentando toda a ira de Deus. A questão não era
enfrentar a morte. Era enfrentar a morte sem a presença

103
do Pai. Aquela doce presença não estaria com Ele, mas
contra ele em ira e juízo.
O que o nosso Senhor assumiu ao tomar daquela
bebida amarga é incomparavelmente maior do que a
doçura de ser, por amor a Deus, um mártir de Cristo.
Agora conseguimos entender a diferença entre o sacrifício
de Jesus e dos demais que o seguiram. Na morte de
Estevão, o primeiro após Cristo, havia a contemplação do
Pai e o testemunho do Filho em fortalecimento daquele
servo. Mas com Cristo, o que haveria era um silêncio
misturado com juízo.

A SEPARAÇÃO

O cumprimento da exigência de Deus requeria que


Jesus se tornasse um cordeiro vicário, isto é, que ele se
colocasse em nosso lugar para que a sua justiça fosse
satisfeita. A consequência do Senhor se tornar o maldito
por causa de nossos pecados foi uma temporária, mas
necessária, separação da comunhão de seu Pai. Esse fato
era para o Filho, o pior dos horrores. O pecado de todos
nós, estaria sendo colocado sobre o Santo de Deus. Tudo
aquilo que os nossos olhos contemplaram e contemplarão,
o que as nossas mãos fizeram e farão, o que as nossas
bocas falaram e falarão em toda a nossa história, fruto da
maldade e perversidade humana, estava sendo imputado,
colocado sobre o cordeiro inocente. Aquele que não
suporta nem olhar para o mal estava assumindo sobre si,
toda a maldade humana debaixo do esmagar da ira de
Deus. E a consequência disso foi à separação daquele que
Jesus nunca tinha se separado.

104
O Senhor estava experimentando a dor do inferno.
Nós pensamos que o inferno é tão horrendo por causa do
fogo que não se apaga, trazendo uma visão de sofrimento
constante. Contudo, não é o fogo que torna o inferno
terrível, mas ser separado de um Deus amoroso. Era algo
realmente horrível o que Jesus assumiu por amor. Nada
justificava aquela situação que Ele estava passando. Ele
era inocente. E o seu clamor visava essa consequência, e
não a morte e sofrimento em si.
Porém, a fraqueza se tornou em força. A reação de
Jesus, após a resposta de seu Pai é de impressionar. Suas
próprias palavras a Pedro naquele ato insano e
desesperado de um assassino demonstram a rocha que é
o nosso Jesus. Se o Senhor tivesse que beber do cálice,
ele beberia até o último gole, e ninguém o impediria de
fazê-lo. E assim o fez. Ele preferiu experimentar toda a
aflição da alma que esse ato traria, não por amor a nós
em primeiro lugar, mas por amor ao seu Pai. Foi esse
amor que o motivou a seguir por aquele caminho. Foi
esse amor que o fortaleceu. Foi esse amor que O fez
decidir pela vontade do Pai. A fé de nosso Senhor no Bom
Pastor o fez crer que a sua presença em amor estaria com
Ele no vale da sombra da morte, quando na verdade não
estaria.
Ali estava o mediador entre Deus e a humanidade. E essa
mediação carregava o peso do pecado e o seu
pagamento. Deus estava vindo até nós por intermédio de
seu Filho. Calvino escreve que “o Filho de Deus se tornou
Filho do Homem e recebeu o que é nosso de tal maneira
que Ele nos transferiu o que era seu, fazendo com que o
que era seu por natureza se tornasse o que era nosso”.

105
Aquilo que o nosso Senhor assumiu o tornou capaz de
compartilhar aquilo que ele era. Aleluia!
Eis a diferença entre os mártires e o Senhor dos
mártires. A desobediência foi derrotada pela obediência de
uma forma única, perfeita e perpétua. A oferta foi
oferecida pelo nosso Sumo Sacerdote perfeito e foi aceita
por um Deus apaziguado. O débito foi quitado. O Pai foi
satisfeito. Cristo foi glorificado e nós fomos aproximados
pelo sangue vivo e real de Jesus Cristo.

106
Capítulo 6

A Prensa

“O trigo é moído para dar-nos o pão. Das dores de


Cristo nos vem salvação! Perfume procede do incenso
queimado. Das chagas de Cristo perdão do pecado. Das
dores maternas, um filho é nascido. Da angustia de
Cristo, um homem remido! Mister é que eu sofra?
Mistério profundo! Que eu sofra, Senhor, Pra ser
benção, no mundo? Mister é que eu sofra... Eu tremo,
Senhor! Ah, moam-me as mãos Transpassadas de
amor!”

Anônimo

A profecia messiânica de Isaias nos diz que o Servo


sofredor seria esmagado por causa de nossas
transgressões. (Is. 53:5). A figura de linguagem que o
profeta descreve o sofrimento do Messias é muito forte.
Há muito tempo atrás Isaías teve a revelação da
experiência que Jesus passaria em sua vida naquele
jardim e no calvário. Nada na vida de Jesus descrito nos
evangelhos são meras coincidências. O peso esmagador
das profecias sendo cumpridas por Cristo, prova que nada
era por acaso. Lugares, circunstâncias, pessoas, tragédias,
tudo tinha uma história, um para quê envolvido. Assim
como as profecias tiveram seu cumprimento na vida e

107
situações que o nosso Senhor viveu, a sua caminhada e
experiências são etapas que cada seguidor do cordeiro
terá que passar até a glória futura. O que aconteceu
naquela noite no Getsêmani, teve um forte significado na
vida do Senhor e também terá em nossa vida.
É interessante notar que o nome Getsêmani é
prensa de azeite. O fato de Jesus estar ali naquele
momento foi minuciosamente arranjado por Deus. A vida
que o Senhor viveu frutificou em abundância. Ele era
como um cacho de azeitonas em uma vigorosa oliveira.
Mas Deus teve que lançá-lo ao chão, pois o fruto em si,
sem o trabalhar do agricultor para nada serve.
Naquele jardim havia uma plantação de azeitonas
e, com certeza, havia naquele lugar uma prensa de azeite.
Dia após dia, homens desenvolviam o seu trabalho
recolhendo o fruto maduro para que o tesouro liquido de
Israel fosse adquirido. Através da pressão das pedras de
moinho, o óleo que consagraria os sacerdotes, que
alimentaria a nação, que iluminaria o povo e que o
purificaria de suas imundícies era produzido através da
pressão do esmagar. O valioso óleo só flui quando a
azeitona é esmagada na prensa. Não há azeite sem o
esmagar, e não haveria o derramar do Espírito sem a
pressão.
O processo do esmagar estava em curso na vida de
Cristo. Todo o peso esmagador da ira divina e do assumir
os nossos pecados estava sendo colocado sobre Ele. Era
necessário esse doloroso processo para que aquilo que
era valioso fluísse para a vida de outros. Se o Senhor
evitasse o Getsêmani, Ele ficaria só. A luz do mundo
haveria de ir embora. Estaríamos em densas trevas

108
novamente. Mas ele se deu para que nós usufruíssemos
de seu sacrifício. Sem santidade não há fruto. Sem fruto
não há o fluir do azeite. E sem o esmagar não há poder.
Se não há poder não há testemunho. A vida cristã é um
processo a ser seguido e vivido.
Realmente é difícil passar pelo lagar de azeite. A
dor da pressão nos faz estremecer. A angústia nos faz
fugir da vontade de Deus. A cruz não nos traz prazer, mas
dor. E a dor sempre traz consigo a tristeza. Quando o
Senhor estava debaixo da pressão no jardim, a tristeza o
apanhou de uma forma aterradora. Isso também se dará
conosco. Sentiremos o esmagar da prensa. Mas como diz
Watchman Nee, “está tudo bem nos sentirmos
contristados, mas também devemos considerar aquilo, (a
prensa), como motivo de gozo. Sentir é uma coisa, mas
considerar é outra. Podemos não ter gozo, mas podemos
considerar como sendo motivo de gozo”.

O MOTIVO DA PRENSA

Olhando com os olhos divinos, a pressão é uma


benção, mas com os olhos humanos, não é agradável. Ela
tem como fim nos fazer dobrar diante da vontade do Pai,
quebrando, dessa forma, o nosso ego. Esse é o modo de
Deus trabalhar. Ele nunca nos corrige sem algum motivo.
Ele tem que nos quebrantar. É somente diante do agir da
cruz que os tesouros são revelados. O vinho só é
adquirido pelo pisar das uvas. O trigo só é adquirido pelo
amassar dos grãos. Assim se dá com o azeite. Algo tem
que ser esmagado em nós para que o Espírito flua para os
outros. O nosso Deus não tem prazer em nos ver sofrer

109
por apenas sofrer. Ele age com uma meta. Sempre o seu
mover é com um propósito em mente. Se Ele permite que
soframos é porque deseja que participemos de sua
santidade. Essa é a benção da pressão.
Tudo o que é de valor que a igreja produziu em
toda a sua história é fruto direto da pressão do lagar do
azeite. Avivamentos se iniciaram pela pressão. Grandes
homens surgiram pelo esmagar da azeitona. Os mais
valiosos livros foram frutos dessas noites escuras da alma.
As mais poderosas pregações foram pregadas debaixo da
prensa. As orações mais fortes já feitas saíram de lábios
que sabem o que é estar debaixo do esmagar do Senhor.
Os maiores frutos da igreja advêm da benção da pressão.
Sem ela nada teria sido produzido. O lagar nos prepara
para algo maior. Ministérios surgiram e surgem da noite
escura da alma.

O AGENTE POR TRÁS DO ESMAGAR

Olhando para a experiência de Jesus naquele


jardim, a pressão o levou a angustiar-se profundamente.
Era a mão do Senhor que estava esmagando-o naquele
momento. O Pai era o agente naquela situação penosa do
Filho. Se observarmos quem estava por detrás da
experiência do Servo sofredor em Isaías 53, não haverá
dúvidas que nas provações, o sujeito por detrás de nosso
esmagar é o Pai e não satanás. O nosso Senhor tem como
propósito produzir o azeite do fruto da azeitona e, Ele usa
pessoas e circunstâncias como meios para que isso seja
feito. O próprio satanás se torna um instrumento dEle
para que o esmagar se faça real em nós. Todas as

110
circunstâncias que cercam os filhos de Deus são
provenientes de sua mão. Ele nos guia para a prensa para
extrair de nós aquilo que é valioso. É somente dessa
forma que Ele pode nos usar. Mas logo que a prensa
começa a ser girada sobre nós, reagimos de forma
adversa. Nós queremos que nossa vontade seja feita e
não a dele.

“O Senhor anseia por achar um meio de abençoar o


mundo por meio daqueles que lhe pertencem. O
quebrantamento é o caminho da benção, o caminho da
fragrância, o caminho da frutificação, mas também é um
caminho salpicado de sangue”.

Watchman Nee

Devemos ter os nossos olhos voltados para frente,


para o resultado que a pressão produzirá em nós. O autor
de Hebreus sabia dessa verdade e nos confortou com
essas palavras:

“Nenhuma disciplina parece ser motivo de alegria no


momento, mas sim de tristeza. Mais tarde, porém,
produz fruto de justiça e paz para aqueles que por ela
foram exercitados.”
Hebreus 12:11

Para se ter o fruto é preciso do exercício da


disciplina. Para se ter o azeite é preciso o esmagar da
prensa. Não podemos pular para os fins, burlando os
meios. O pragmatismo pode até funcionar para diversas
áreas de nossa vida, mas para a maturidade cristã todo o

111
caminho até a estatura de varão perfeito tem que ser
trilhado. Atalhos são apenas distrações que nos atrasam
em nosso caminho para a “cidade celestial.”
Brainerd sabia disso muito bem. Apesar de toda
uma vida sendo esmagado pela depressão e pelo
sofrimento de uma terrível doença, a sua resoluta
perseverança em continuar a carreira, sem se importar
com o preço a ser pago, o fazia dizer: “Oh que eu nunca
perca tempo na minha jornada espiritual”. Quanto tempo
temos perdido em nossa carreira cristã por não aceitar a
Mão do Senhor sobre nós. Quando Cristão, o personagem
do livro “O Peregrino” estava subindo o monte da
dificuldade através do caminho estreito, resoluto diante
das aflições ele disse “É melhor seguir o caminho certo,
apesar de difícil, do que o errado, apesar de fácil, onde o
fim é a desgraça.”
Como somos fracos quando nos encontramos em
situações adversas. Necessitamos de um espírito resoluto
nessas horas, o poder do Getsêmani que nos possibilita
enxergar o resultado do fruto esmagado e não olhar para
o meio como isso se dá.

A CRUZ NOS CONDUZIRÁ A PRENSA DO AZEITE

A cruz nos conduz ao lagar. Não há como fugir


desse fato. Não há atalhos para se distanciar do
Getsêmani. Se quisermos ser seguidores do cordeiro, é o
jardim que nos espera. A mão que lida conosco é a
mesma mão que foi perfurada por nós. Essa mão passou
pelo lagar para que nós fossemos iluminados pelo Espírito
Santo. E é preciso que muitos filhos de Deus sejam

112
esmagados para que o fluir do Espírito Santo seja
derramado sobre esse mundo. Somente quando o espírito
dos servos de Deus “é liberado é que pecadores podem
nascer de novo e pessoas salvas podem ser
estabelecidas”, dizia Watchman Nee.
Isso não significa que não haverá lutas contra o
desânimo, ao contrário. O autor de Hebreus diante dessa
realidade consola a igreja sofredora dizendo para que eles
“fortalecessem as mãos enfraquecidas e os joelhos
vacilantes,” (Hb 12:12), pois sabia o quanto era difícil
passar pelo lagar.

A NECESSIDADE DA PRENSA

Muitos se escandalizam quando é dito que Deus


precisa de homens esmagados para que o seu propósito
tenha pleno cumprimento na terra. O fato é que ele
mesmo se limitou a isso. O homem caiu diante da
tentação de nosso inimigo, e é o homem que levará a
cabo a derrota final desse mesmo inimigo. É realmente
impressionante Deus confiar essa obra nas mãos de
homens como nós. Mas ele só pode se expressar em
plenitude através daqueles que escolheram e aceitaram o
lagar de azeite. É através desses que Deus está
desfazendo as obras do diabo e revelando a Sua
multiforme sabedoria.
O problema surge quando não reconhecemos essa
verdade. Deus está levantando homens e mulheres
poderosos em seu espírito pelo esmagar da pressão. O
que for que aconteça na vida do servo de Deus, tem que
ser levado a sério por ele. Tudo o que o cerca, tem como

113
o fim esmagá-lo. Porém, como é difícil entender que todas
as circunstâncias adversas são medidas pela mão de Deus
para o nosso bem. Crer nessa verdade gloriosa de um
Deus soberano, e deixar que o Espírito Santo aja sem
restrição, é a maior benção que o servo pode fazer a si
mesmo, a igreja e a esse mundo caído.
Devemos notar que o esmagar do Senhor teve
como propósito o abraçar a vontade do Pai. Deus o moeu
para que o Filho aprendesse a amar ainda mais o que o
Pai desejava. Pode parecer algo ruim o modo de Deus agir
na vida de seus servos. Mas através da vida de Cristo
podemos ver o quanto tudo cooperou para o seu próprio
bem. Todos nós somos levados a mesma situação que
Jesus esteve: a minha vontade ou a vontade do Pai? O
Senhor te levará por toda a sua vida a decisões como
essa. Decisões que esmagarão o seu eu dolorosamente. O
Getsêmani é necessário para a vida dos seguidores do
Cordeiro, e a sua experiência nos fará deixar de lado o
confiar em si mesmo. A benção não é ser livrado da
prensa, mas estar dentro dela. Ter uma vida tranquila
nesse mundo não é bom para os filhos de Deus. A
pressão exercida na disciplina do Pai é a prova essencial
de que somos os seus filhos e que estamos sendo
transformados à sua imagem. Essa é a operação da
prensa, essa é a operação da cruz.

“Vós, santos medrosos, renovai a coragem, as nuvens


que tanto temeis, são grandes em misericórdia, e
irromperão em bênçãos sobre vossas cabeças. A
incredulidade cega certamente errará, e esquadrinha

114
sua obra em vão: Deus é sempre o seu próprio
intérprete, E Ele o tornará claro”.

William Cowper

115
116
Capítulo 7

Conformidade Ao Cordeiro

“Não foi por acaso que me trouxe os males, as muitas


dores que atravesso agora. A mão de Deus permitiu,
que eu sei: Vejo no Livro a história incomparável do
servo Jó, em quem, como num palco, Deus me ensina
lições de Seus caminhos. Caminhos muito acima destes
meus! Por isso, vejo em tudo a mão de Deus. E se hoje
não entendo muita coisa, bem sei que tudo entenderei
por fim. Posso confiar em Quem morreu por mim!”

Anônimo

Muitos vendem o evangelho como se fosse um


antídoto para a solução das mazelas humanas. Tudo se
resume a um simples “venha e para de sofrer”. Seria algo
extraordinário se fosse verdade. Que benção teríamos se
o evangelho fosse uma cura definitiva para todas as
desgraças que nos rodeiam. Eu seria ricamente
abençoado se essas palavras fossem realmente
verdadeiras enquanto escrevo. Mas quando olhamos para
a realidade, o que vemos é bem diferente do que é
vendido nessas propagandas.
Ser seguidor de Jesus deveria ser a solução de
nossos problemas físicos e psicológicos. Ele levou sobre si
as nossas dores e enfermidades, como afirma a Bíblia.
Porém, Deus se move de forma misteriosa para com seus
filhos. Zack Eswine escreve que “a conversão a Jesus não

117
é o céu, mas sim a sua antecipação. Deste lado do
paraíso, a graça nos assegura, contudo não nos cura
definitivamente”.
Não precisamos ir muito longe para vermos essa
terrível verdade diante de nós. Paulo experimentou a
providência carrancuda de Deus em todo o seu ministério,
mesmo diante da fidelidade e zelo à obra de Cristo. Se
chegarmos à conclusão que o evangelho nos livrará de
todos os males, principalmente por causa de nossa
fidelidade, seremos obrigados a desconfiar do que Paulo
foi e fez. Cristo nunca nos prometeu uma caminhada livre
dos espinhos e do ardor do sol. Uma vida tranquila nunca
foi uma proposta do evangelho. O que está prometido
para os servos de Cristo é uma graça fortalecedora diante
das montanhas que se levantam em sua peregrinação.
C. S. Lewis certa vez foi interpelado por
trabalhadores de uma empresa na Inglaterra. A pergunta
daqueles homens já demonstrava no século passado o
tipo de ser humano que estava surgindo nesses últimos
dias. Eles perguntaram:

“Qual das religiões do mundo confere a seus seguidores


maior felicidade?”

Essa pergunta se torna pertinente, principalmente


para o nosso contexto ocidental, onde tudo se resume a
uma satisfação momentânea como a realização do sentido
da vida. A resposta de Lewis explica muito o que é ser
seguidor de Cristo:

118
“Qual das religiões do mundo confere a seus seguidores
maior felicidade? Enquanto dura, a religião da
autoadoração é a melhor. Tenho um velho conhecido já
com seus 80 anos de idade, que vive uma vida de
inquebrantável egoísmo e autoadoração e é, mais ou
menos, lamento dizer, um dos homens mais felizes que
conheço. Do ponto de vista moral, é muito difícil. Eu não
estou abordando o assunto segundo esse ponto de
vista. Como vocês talvez saibam, não fui sempre cristão.
Não me tornei religioso em busca da felicidade. Eu
sempre soube que uma garrafa de vinho do Porto me
daria isso. Se você quiser uma religião que te faça feliz,
eu não recomendo o cristianismo. Tenho certeza que
deve haver algum produto americano no mercado que
lhe será de maior utilidade, mas não tenho como lhe
ajudar nisso.”

Toda a sinceridade de Lewis é a mais pura verdade


do evangelho. Se você quer uma religião que lhe deixe
confortável em seus pecados egoístas, fruto do seu
caráter monstruoso, definitivamente o cristianismo não é
aconselhável para você. Por isso há tantos decepcionados
que foram iludidos por uma igreja que prega um
evangelho diluído. São campos que foram queimados por
líderes inescrupulosos que se aproveitam da cobiça alheia.
É triste quando contemplamos essa realidade se
multiplicando em nosso tempo.

119
ARMAI-VOS DO MESMO PENSAMENTO

Então, o que significa todos esses sofrimentos que


os servos de Deus têm que passar? CONFORMIDADE AO
CORDEIRO! Essa é a resposta mais simples que podemos
responder. O que foi comum a Cristo, será comum a nós.
Pedro, o apóstolo, é muito enfático nessa questão aos
seus leitores. “Armai-vos do mesmo pensamento”, diz ele
em sua primeira carta. Se Cristo sofreu no corpo,
(novamente vemos um apóstolo confirmando a
humanidade do Senhor), foi para um propósito. E esse
propósito que o apóstolo nos coloca é para que através do
sofrimento rompamos com o pecado e, assim, vivamos
uma vida de completa submissão a vontade de Deus.
Que texto extraordinário que Pedro deixa como herança
àqueles que sofrem por amor a Cristo. “Arme-se com esse
mesmo pensamento”, diz ele. A vida cristã é uma batalha
constante contra tudo o que nos afasta de uma vida
santa. Deus está divorciando do pecado muito dos seus
filhos por meio do sofrimento. I Pedro 4:1,2
Pedro não para nesse ponto. Ele vai além. Diante
da perplexidade daquela igreja sofredora, o apóstolo os
encoraja escrevendo para que eles não se “surpreendam
com o fogo que surge no meio deles para prová-los, como
se algo estranho lhes estivesse acontecendo”. (I Pe 4:12)
É um texto assustador. O que dá a entender é que as
provações do povo de Deus é algo normal e que deve ser
aguardado. E Pedro completa o seu argumento com
palavras confortadoras:

120
“Mas alegre-se à medida que participam dos sofrimentos
de Cristo, para que também, quando a sua glória for
revelada, vocês exultem com grande alegria.”

I Pedro 4:12,13

Em pensar que essas palavras saíram da mesma


boca que rejeitava veementemente sofrer com Cristo. Mas
após muitos anos, Pedro havia passado pelo lagar do
azeite, e através do trabalhar da cruz, a sua perspectiva
do seguir o cordeiro havia mudado totalmente. O Senhor
desceu da glória para a cruz e os seus discípulos deveriam
passar primeiro pela cruz para entrarem na glória.

SOFRA COMO CRISTÃO

Diante dessa verdade, o pior que pode acontecer é


o cristão pensar que essas experiências eram para eles,
não para nós. Esse chamamento à conformidade ao
cordeiro não é somente para os outros, é para a igreja. O
chamado de Paulo, Pedro, e da igreja do passado não
caducou. “É um chamamento para todos, em todos os
lugares, em todos os tempos.” Não devemos nos eximir
da responsabilidade que o nome cristão carrega sobre si.
Aqueles a quem Pedro dirigiu essas palavras foram
perseguidos porque se diferenciavam da maioria. Se eles
fossem como todos os demais, o mundo os amaria. Era
pelo fato deles serem cristãos que as hostilidades dos que
o rodeavam eram-lhes infligidas.
Com o passar do tempo o significado do nome
cristão perdeu o seu sentido. Quando compreendemos

121
que ser identificado com o nome de alguém, é ser
identificado com a própria pessoa, então as coisas
mudam. Nós seremos perseguidos pelo simples fato do
nosso nome estar associado ao nome de Cristo. Quando a
Alemanha se tornou antissemita, todos os judeus,
independente de classe social, gênero e idade eram
perseguidos inocentemente só porque eram judeus.
Naqueles dias de Pedro, o simples fato de alguém ser
cristão já era motivo de hostilidade, perseguição e morte.
Se coloque na pessoa de um judeu na Alemanha nazista,
quando a noite dos cristais deu início a uma perseguição
cruel e sistemática, que você entenderá o que era ser um
cristão nos dias de Pedro.
Quantas humilhações nos esperam se realmente
formos seguidores do Cordeiro. Quantas difamações até o
matadouro. Quantos escárnios diante da multidão. Mas
não se envergonhem, diz Pedro. Sofrer como um cristão é
estar disposto a morrer para o pecado, para si mesmo e
se possível até fisicamente. O nosso mundo ocidental é
pacífico com a igreja e a nossa luta hoje é principalmente
contra o nosso pior inimigo: nós mesmos. A cruz acabará
com o velho homem, mas não sem um grande custo
envolvido. Ali está o cálice, mas há também a nossa
vontade. Ali está a vida de Cristo, mas também a vida da
alma. E diante dessa dura condição o Senhor nos dirige
essas palavras:

“Se alguém deseja ser considerado um adepto meu, ele


deve de uma vez por todas dar adeus a si mesmo,
aceitar decisivamente a dor, a vergonha e a perseguição

122
por amor de mim e de minha causa, e então seguir-me
e continuar seguindo-me como meu discípulo”.

Somente as ovelhas ouvirão a voz do seu mestre e


somente as ovelhas entenderão esse chamamento.

A CRUZ IRREVOGÁVEL

Há cruz que os seguidores do cordeiro não podem


rejeitar. Há caminhos que eles não podem escolher. Há
dores que eles não podem aliviar e há noites que eles não
podem evitar. Essa forma misteriosa de Deus se mover é
mais comum do que muitos pensam. Quando estudamos
a vida de grandes homens do passado, logo percebemos
o quanto a cruz obrigatória estava presente em suas
vidas. Eram servos fiéis. Homens de caráter e reputação.
Leais a família. Amáveis pastores. Mas se depararam com
a providência carrancuda de um Pai disciplinador. E a
reação de cada um deles, depois de um tratamento inicial,
foi abraçá-la fervorosamente. São caminhos estranhos,
acompanhado de atitudes estranhas.
Recordo-me da atitude de Sebastian Munster,
companheiro de Lutero que morreu de peste em 1522.
Em seu estado lastimável de um moribundo as portas da
morte, seus amigos horrorizados com aquela terrível
situação lhe perguntaram como se sentia. Munster
respondeu apontando para as suas muitas feridas e
úlceras: “essas são pedras preciosas, joias de Deus com
as quais ele golpeia os seus melhores amigos, e para mim
são mais preciosas do que todo o ouro e prata do

123
mundo”. Que mente carnal poderia entender as palavras
desse servo sofredor?

OLHOS CELESTIAIS

Olhando com os olhos carnais, a reação natural


daqueles que ainda são míopes em sua visão é de uma
mesquinhez por parte desse Ser que tem como natureza,
o amor. Como pode um Deus que é amor, permitir tais
coisas àqueles que ele ama? Perguntas como essas
despertaram um exército de defensores de Deus, e o fruto
disso é uma teologia barata tentando explicar uma
verdade valiosa.
Em uma geração narcisista é praticamente
impossível crer que é precisamente o amor de Deus que
conduz os seus filhos para a provação. É a pura e clara
verdade do evangelho. O mesmo amor que nos empurra
para as aflições, é o mesmo amor que nos conforta nelas.
Olhos míopes não conseguem enxergar a luz do
evangelho, pois é uma questão de revelação. Temos que
ter o nosso coração iluminado para sabermos qual é a
esperança do nosso chamamento. Efésios. 1:18

O CHAMAMENTO À CRUZ

Quando o Senhor chama os doze para enviá-los a


Israel em Mateus 10, orientações são dadas para que os
discípulos saibam como agir em sua missão. Jesus lhes
revela as dificuldades que os espera pelo caminho, e diz
que se o discípulo não tomar a sua cruz e segui-lo, não é
digno dele. Se pudéssemos ver a reação daqueles homens

124
quando Jesus falou de cruz, creio que seria muito
esclarecedor para nós. Talvez os discípulos não levassem
a sério o que o Senhor dizia naquele momento. Era o
princípio da revelação da cruz, e não havia muita clareza
no ensino de Jesus.
No entanto, quando chegamos a Mateus 16, as
palavras do Senhor se tornam mais graves. Antes, não se
falava explicitamente sobre a morte do Cristo, mas depois
da revelação de Pedro, o Senhor começou a mostrar aos
seus discípulos o que estava para acontecer ao Cordeiro.
Estava claro para aqueles homens que viviam debaixo do
jugo romano, que o contexto das palavras de Jesus era
sobre morte. Todos eles já tinham visto um moribundo
agonizando naquele madeiro. Com certeza foi esse o fato
que despertou aquela reação de Pedro dizendo aquelas
temerosas palavras: “isso jamais te acontecerá.” Mateus
16:22
A revelação de Pedro carregava o peso tanto da
divindade de Jesus como da sua humanidade. O Deus
homem tinha uma missão. Palavras que parecem ser tão
simples naquela declaração do discípulo se demonstraram
tão profundas para todos. Se ele é o Cristo, o seu destino
era a cruz. As profecias direcionavam para esse caminho.
Essa ideia de morrer é rejeitada pelo mundo com
todas as suas forças. Ele clama por vida e a nossa alma
responde para que vivamos. Quando o discípulo assustado
disse que “aquilo jamais aconteceria” com Jesus, na
verdade era o mundo, na voz de seu príncipe, juntamente
com a alma de Pedro, que estava clamando naquele
momento. A nossa alma deseja por esse mundo caído e
as concupiscências que ele oferece. A alma não quer se

125
desligar dele. E o chamamento de Cristo é para que
rejeitemos tudo o que nos é oferecido e nos apeguemos a
ele. Somente quando isso acontece é que nos tornamos
dignos do Senhor.
Porém, essa vida de rejeição traz consequências
amargas para a nossa alma. Deus usa a cruz para selar o
divórcio entre nós e o mundo. O evangelho rasgará o
antigo contrato e nos libertará do antigo amo. As
consequências da cruz, e a nossa fidelidade nelas, nos
provam e provam ao mundo que somos dignos por Cristo.
Há um preço a ser pago por aqueles que amam o Senhor.
Ser digno de Cristo e digno por Cristo requer a
conformidade ao cordeiro. É segui-lo aonde quer que Ele
vá. E aonde o nosso Senhor nos conduz é onde os antigos
ecos de Pedro se fazem ouvir em nossos ouvidos: “isso
jamais lhe acontecerá.”

A FACE SORRIDENTE

Quando é citado que esse mover misterioso é a


contemplação da providência carrancuda de Deus, como
descreve o poema de William Cowper, há uma face
sorridente oculta que esse mesmo Deus revela a seus
filhos na aflição. Percebemos na vida de Cristo essa
providência carrancuda o direcionando em todas as
coisas. Todos os passos que o Senhor pisou, foram
demarcados há muito tempo por um Deus soberano que
planeja cuidadosamente o caminho que cada um deve
trilhar. Diante disso, o estranho não é experimentar o que
foi comum a Cristo. O estranho é ver em nossos passos,
um distanciamento dos passos dele.

126
Se a providência divina planejou a vida de Cristo do
começo ao fim, por que ela não seria atuante na nossa
vida? Sei que é uma questão difícil aceitar que um Deus
de amor planeje uma terrível doença, uma profunda
perda, uma violenta depressão e uma morte cruel para os
seus. Mas é a conclusão que devemos chegar se o nosso
Deus realmente é o feitor da história. Se a nossa vida é a
conformidade ao cordeiro, e percebendo que a vida do
cordeiro foi minuciosamente arquitetada por um Deus
soberano, a conclusão que devemos chegar é que nossas
vidas também foram minuciosamente planejadas por Ele.
É por isso que situações de nossas vidas se tornam
em cruz para nós. Podemos nos torturar nos porquês
Deus permitiu essas coisas, e isso não nos levará a lugar
nenhum. Ou erguer os nossos olhos e contemplar a sua
face sorridente por detrás de uma providência carrancuda.
José resume bem essa forma misteriosa de Deus se
mover na vida de seus filhos. Ele disse que o mal
planejado contra ele, Deus o tornou em bem. (Gn 50:20)
É verdade que o Senhor permitiu que satanás afligisse
aquele jovem hebreu, mas todos os seus sofrimentos
foram transformados em força e glória no futuro. Como
dizia Lutero, “Deus choca os seus melhores ovos debaixo
das asas de satanás”. Deus age de formas misteriosas,
mas elas nunca são desastrosas. Deus detém o controle
de todo o universo em suas mãos, e o que nos faz pensar
que ele perderia o controle de nossa história?

127
UMA REALIDADE PESSOAL

O que escrevo não é uma teologia fria de


escrivaninha, ou uma doutrina barata que tenta consolar
os que se deparam com esses caminhos misteriosos. É
uma conclusão experiencial adquirida numa terrível
provação. Não há como fugir dessa verdade bíblica. Os
que passam pelos vales da sombra da morte, têm que
crer na mão providencial de um Deus amoroso que
conduz a nossa história para que Ele seja glorificado em
nossa fidelidade em meio à dor, e que nós sejamos
glorificados na dor. Ser transformados de glória em glória,
está mais relacionado à provação da fé, do que há um
arrepio sentimental em uma reunião caracterizado pelo
apelo emocional.
Crer assim não significa que pregamos o
sofrimento, ou que gostamos e o buscamos como um
louco masoquista. De jeito nenhum! Essa forma de ver o
evangelho não é uma teologia insensível e cruel. Deus nos
criou para desfrutarmos desse mundo e tudo de bom que
ele pode nos oferecer. E assim devemos fazer quando
tivermos oportunidade. Porém, devemos estar preparados
para o que pode estar planejado para nós no caminho.
Piper, comentando sobre a vida de William Cowper e seu
ministério de adoração no sofrimento, nos alerta contra
nossos cultos humanistas voltadas para uma satisfação
rápida e efêmera, e a geração de cristãos vazios que dele
são gerados, ele escreve:

“De que modo cultos voltados para entreter as pessoas


– com o propósito de serem leves e amistosos – podem

128
ajudar uma pessoa a se preparar para o sofrimento? Ou
pior, prepará-la para a morte? Se soubermos como
sofrer bem, e se sentirmos que “morrer é lucro” por
causa de Jesus, então saberemos como viver bem.
Saberemos como sorrir – não me refiro a rir com piadas,
mais a sorrir do futuro.”

Passar por aflições não significa que os servos que


sofrem sejam “super-homens” sem sentimentos e
afeições. Longe disso! Se o nosso Senhor clamou ao Pai
na sua noite escura, é totalmente válido que assim
façamos. Lembro-me da história de Charles Spurgeon,
que diante da angústia do sofrimento mental e física
causada pela gota, uma enfermidade que o afligia, orou
dessa forma:

“Tu és meu pai, e eu sou teu filho; e tu, como pai é


terno e cheio de misericórdia. Não poderia suportar ver
meu filho sofrer como tu me fazes sofrer; e se visse
atormentado como estou agora, faria o que pudesse
para ajudá-lo; colocaria meus braços por baixo dele
para sustentar. Esconderás a Tua face de mim, meu
pai? Ainda pesarás sobre mim a tua mão ao invés de
conceder-me o sorriso de teu semblante?”

Nossos sentimentos são potencializados no


sofrimento. Somos humanos como Cristo foi, e Deus
entende e se compadece de nossas fraquezas. Se o nosso
Senhor se abateu na sua noite escura, é totalmente certo
que nós também nos abateremos. Ele é o nosso bom
pastor quando estamos passando pelo vale da sombra da
morte. Contudo, devemos ser firmes nos momentos de

129
aflição. Fazer a vontade de Deus acima de um bem-estar
pessoal, é a mais elevada forma de fé que nós podemos
testemunhar nesse mundo. A vontade de Deus é absoluta,
e se ela requer que nos assentemos à mesa perante os
nossos inimigos, a nossa disposição deve ser a mesma
que a do nosso Senhor: “Não beberei eu, do cálice que o
Pai me deu?” (Jo 18:11)

130
Capítulo 8

Um Exemplo Entre Muitos


“Sem premir-se a azeitona, óleo não dará; Não se
comprimindo as uvas, vinho não destilará. Nardos, só
quando esmagados, a fragrância tem; Fugirei dos
sofrimentos que do teu amor provêm? Os sofrimentos
ganho são para mim. Em lugar do que me tomas, Tu,
Senhor, Te dás a mim”.

Watchman Nee

Ganho por meio da perda é o título do hino


composto por Watchman Nee no início do século passado.
É uma poesia que fala da vida cristã comum a cada servo
do Senhor. Esse hino é um relato vívido do que a igreja
chinesa passaria alguns anos após Watchman compor
essas belas e terríveis palavras. O Jovem pregador sabia
que o caminho do mestre seria o caminho do discípulo, e
essas palavras são como profecias para a sua própria
vida.
O evangelho florescia e se espalhava como um
doce perfume na China. A missão do pequeno rebanho
desfrutava de uma poderosa visitação do Espírito Santo
na pregação do evangelho, na salvação de almas, na
comunhão dos irmãos e no ensino da palavra. Não há
como negar que Deus realmente visitara os confins do
mundo. Uma igreja chinesa, forjada em seu próprio
contexto estava sendo confirmada por Cristo e pelo

131
testemunho de suas obras. Líderes nativos eram
levantados trazendo uma nova perspectiva do evangelho
num mundo que se dividia entre nobres e plebeus. Talvez
esse fato tenha sido o ponto principal da rejeição desse
movimento evangélico. Como Deus poderia estar visitando
os gentios? Mas todos os estrangeiros que estiveram em
comunhão com aquela jovem igreja na China reconheciam
o doce nardo que estava sendo derramado naquela
nação.
Apesar de algumas lutas e dificuldades sofridas pelo
pequeno rebanho, tudo caminhava para que uma nação
se rendesse aos pés de Cristo. Como disseram aqueles
dois jovens morávios, “o cordeiro logo receberia a
recompensa de seus sofrimentos”. O Pai havia dado as
nações por herança ao seu Filho, e a China estava sendo
oferecida a Ele por aqueles simples irmãos.
John Bunyan disse uma vez que “em alguns países,
às arvores crescem, mas não produzem frutos, pois não
há inverno ali”. Porém, na china os frutos eram
abundantes. Havia conversões em massa. Deus operava
grandes sinais no meio deles. A palavra estava sendo
propagada sem impedimento algum, e um novo e
refrescante soprar do Espírito Santo sobre sua palavra
estava sendo renovada na China. Havia realmente um
poderoso avivamento sendo derramado entre os irmãos
naquele país. Mas as formas misteriosas de Deus agir é,
muitas das vezes, incompreensíveis para uma mente finita
como a nossa. As belas flores da primavera da igreja na
china estavam sendo ameaçadas por um longo inverno
que se despontava no horizonte.

132
Nee Shu-Tsu, seu nome de infância, um dos
fundadores do pequeno rebanho, era um jovem brilhante
em sua capacidade intelectual. Apesar de sua rebeldia nos
tempos de escola, Nee sempre se sobressaía entre seus
colegas figurando constantemente em primeiro lugar da
classe. Essa notoriedade lhe garantia grande sucesso no
futuro. Ele era inteligente, podemos dizer até genial para
os padrões da época. Tudo ia bem, até Nee se encontrar
com o Senhor.
Assim como muitos, ele era um dos mais relutantes
ateus de sua época. Ele não cria no evangelho e nem em
seu poder transformador. Na verdade, ele era um
zombador dos pregadores que anunciavam a salvação em
Cristo. Mas isso não impedia com que Watchman fosse
alvo das orações de sua mãe, já convertida ao Senhor.
De acordo com seu testemunho, no dia 29 de abril
de 1920, aos dezoito anos, enquanto lutava para “decidir”
se cria ou não no Senhor, ele tentou orar, e viu a
magnitude dos seus pecados, e a realidade da eficácia de
Jesus como salvador. Ele que antes zombava das pessoas
que tinham crido em Jesus, teve uma experiência que veio
a mudar toda a sua vida. Aquele jovem convertido tinha
um caráter impressionante. Ele tomaria a decisão de se
entregar totalmente ao Senhor, àquele que faz exigência
total de seus servos.
Watchman teve a convicção que Deus o chamara
para ser o seu cooperador na obra, e o novo convertido
havia se transformado numa “atalaia” de Deus em sua
geração. Aquilo que era vil para aquele jovem, se tornou
em sagrado pouco tempo depois. Ele se tornou um
pregador do evangelho entre seus colegas de escola. A

133
Bíblia era a sua amiga inseparável, mesmo na sala de
aula. Essa atitude trouxe muitas zombarias para àquele
jovem cristão, lhe rendendo o apelido de “depósito de
Bíblias”. Mas logo ele colheria seus frutos. Essa paixão
pela palavra de Deus, o fez adquirir um rico depósito das
riquezas de Cristo. Watchman havia decidido ler 19
capítulos no novo testamento todos os dias. Apesar de
não ter cursado nenhuma escola teológica, a sua
capacidade de compreensão e discernimento dos escritos
bíblicos e dos livros espirituais eram fenomenais. Em sua
juventude, o jovem pregador estava rodeado dos
melhores livros cristãos, tendo uma coleção de 3000
livros.
Nee era firme quando dizia “que se um homem não
testemunhar pelo Senhor durante o primeiro impacto de
sua fé, ele provavelmente jamais dará um testemunho em
toda a sua vida”. Ele sabia do poder sedutor e paralisante
que esse mundo desferia contra os novos convertidos.
Esse jovem promissor tinha abandonado tudo por causa
da obra de Cristo e estava se alimentando da palavra de
Deus todos os dias de sua vida. Nee dizia que “os cristãos
mais jovens devem laborar na palavra de Deus para que,
quando crescerem, possam receber a nutrição que ele
proporciona e suprir outros com as riquezas que ela
contém”. Ele já achava que a sua geração era fraca com
respeito ao estudo da palavra, por isso a sua esperança se
encontrava nos jovens. Assim ele cria, e assim ele o fez.

134
A PRIMEIRA DURA PROVAÇÃO

Havia uma bela jovem que Watchman se


interessara. O seu coração tinha se afeiçoado a Charity
Chang, que eram uma bela jovem de uma boa e
conhecida família. Mais o seu temor se concretizara
quando, com uma breve conversa, percebera o quanto
aquela que ocupara seus pensamentos estava debaixo da
influência desse mundo. Os objetivos da bela Charity se
distanciavam em muito dos objetivos espirituais do
apaixonado Nee. Cedo, ele sofreria uma decepção
amorosa. Deus o havia levado a um confronto quando lia
o salmo 73 verso 25 que diz: “não há outro em quem eu
me compraza na terra”. E Nee desejava ardentemente à
senhorita Chang, porém, o coração daquela jovem chinesa
ainda era dominado pelas belezas que esse mundo
oferece e o evangelho era simplesmente desprezível para
ela. Ele foi tocado pela palavra e sabia que Deus lhe
falara. Watchman estava ainda dando chutes contra o
aguilhão, prometendo a Deus algo nesses termos se o
Senhor lhe desse Charity por esposa:

“Senhor, farei algo por ti. Se quiser que leve suas boas
novas às tribos que ainda não foram alcançadas,
inclusive no Tibete, estou disposto a ir; mas não posso
fazer isto que me pede.”

Mas o Senhor lhe negara, naquele momento, o


amor daquela bela jovem. Mas os caminhos de Deus nos
surpreendem constantemente. Após muitos anos, o
Senhor lhe daria aquilo que o seu coração tanto amava.

135
Charity seria a sua esposa, mas Deus tinha que tratar
profundamente com o coração do seu servo naquele
momento. Por fim, vendo Nee à falta de interesse de
Charity pelo Senhor, entendeu o preço que deveria ser
pago se ele quisesse ser usado por Deus. Cheio de
tristeza em seu coração, Nee desistiu de pensar naquela
que ocupava a sua mente. Foi para o seu quarto e
entregou o assunto ao seu Senhor, e nessas
circunstâncias, ele escreveu um lindo poema chamado
“amor ilimitado”.

“Teu amor, amplo, alto, profundo, eterno é na verdade


imensurável, pois só assim pôde abençoar tanto a um
pecador como eu.
Meu Senhor pagou um preço cruel para me comprar e
fazer-me seu.
Não posso senão levar a sua cruz com gozo e lhe seguir
firmemente até o fim.
A tudo eu renuncio, pois Cristo é agora a minha meta.
Vida, morte, o que podem me importar?
Por que tenho que lamentar o passado?
Satanás, o mundo, a carne, procuram, se possível,
confundir-me.
Oh, Senhor, fortalece esse seu fraquinho, para que eu
não desonre o teu nome”.

136
A DEDICAÇÃO

Por essa meta Nee se dedicou a viver. A renúncia é


grandemente recompensada por aquele que também
renunciou a tudo. Através de atitudes como essa, o jovem
chinês se fortalecia no conhecimento das riquezas de
Cristo. Muito novo, Watchman já acumulara um grande
depósito da palavra, e Deus o estava usando
poderosamente em muitas partes da China. Porém, o seu
ministério não era exercido debaixo de uma brisa suave,
mas sim de uma tempestade terrível. Deus lhe havia
preparado um banquete, mas no deserto.
Aquele jovem obreiro estava constantemente
debaixo da mão governadora de Deus. Por todos os lados
Nee era colocado a prova. Seu ego era tratado
constantemente. Problemas com coobreiros quebravam a
sua dura cerviz. O mover misterioso de Deus era
constante em sua vida. Até que de um diamante bruto
nasceu um ministro preparado. Sem as aflições pelas
quais Nee passou, não teria o resultado que se colheu.
Deus o estava preparando para algo grande no futuro, e
para isso era preciso forjá-lo na mais profunda fornalha.
Nee conhecia o resultado que fluía da pressão. Ele dizia
que “quanto maior a pressão, mais forte é o poder da
manifestação da vida de Deus. Era na firmeza do servo
nas provações que a palavra estaria garantida dentro
dele”. E como o jovem Nee suportou as provações.
Watchman não tinha o conhecimento do porque a
mão de Deus o estava levando para certas situações.
Nenhum de nós consegue entender, no momento da
aflição, o misterioso mover de Deus em nossas vidas

137
quando as chamas estão a separar a ferrugem do que é
precioso. Aquele jovem poderia se rebelar contra a
vontade do Senhor em suas noites escuras, mas ele
preferiu amá-lo mais do que a si mesmo. O seu
testemunho é forte diante das aflições: “Os arranjos de
Deus são perfeitos. Ele sabe que tipo de sofrimento cada
um precisa. Quando Deus em sua sabedoria os faz chegar
a nós, porque vê que precisamos deles, regozijemo-nos e
procuremos ver o Senhor neles”, dizia Watchman.
Por toda a sua vida, um espinho na carne sempre o
seguiu. Ele sofria de tuberculose. Um dia, enquanto
esperava o resultado dos exames, ouvira seu médico
dizer: “Pobre sujeito; veja só isso! Lembra-se do último
caso que tivemos com um quadro semelhante a este?
Dentro de seis meses estava morto”. Aquela situação o
abateu profundamente. Uma agonia mental estava
afligindo aquele pobre servo do Senhor. As densas trevas
estavam se apoderando dele naquele momento. Como
disse um dos seus biógrafos. “Tinha tido tantos planos,
tantas esperanças de grandes coisas. Agora Deus lhe dizia
que não”.
Os efeitos depressivos da doença perturbavam a
sua mente. No mais profundo do jardim escuro da sua
alma, vozes interiores o relembravam do futuro brilhante
que teria se não houvesse desistido de tudo por Cristo.
Até o seu ministério próspero havia sido jogado fora e
para quê? O que você ganhou com isso? Deus te
responde às vezes, mais outras ele fica em silêncio.
Watchman começava a se comparar com outro colega de
ministério que tinham sido abençoado poderosamente por
Deus. Essas vozes diziam: “ele parece um cristão tão feliz,

138
tão satisfeito, tão convicto. E você assim? Dê uma olhada
para si mesmo?” Os ataques do inferno caiam de uma
forma esmagadora sobre o abatido servo de Deus.
Aquilo que começara como uma leve dor no peito
se transformara em uma angustia sem fim. Eram febres à
tarde e transpirações a noite que não o deixava dormir. O
ministério da palavra era desenvolvido por um extremo
esforço de sua parte que o debilitava ainda mais. Anos
mais tarde, abatido e sofrendo pelas consequências da
tuberculose em seu franzino corpo, Nee teve um encontro
com o antigo professor que, vendo o seu estado físico,
ficou alarmado pela situação deprimente que aquele
jovem brilhante dos tempos da escola se encontrava. Em
suas próprias palavras ele descreve aquele triste
encontro:

“Vou apresentar um exemplo pessoal. Em 1929


regressava de Xangai à cidade onde residia, Foochow.
Certo dia caminhava ao longo da rua com uma bengala,
muito fraco e com a minha saúde abalada, e encontrei-
me com um dos velhos professores da escola. Ele me
levou a um salão de chá onde nos sentamos. Olhou
para mim, da cabeça aos pés e dos pés à cabeça, e
depois disse: “Olhe, enquanto você estava no colégio,
tínhamos as melhores esperanças para você, pensando
que você realizaria algo de grandioso”. Será realmente
isto, o que você veio a ser agora?” Olhando para mim,
com os seus olhos penetrantes, fez esta pergunta
direta. Devo confessar que, ao ouvi-lo, o meu primeiro
desejo foi o de me desfazer em lágrimas. A minha
carreira, a minha saúde, tudo se fora, tudo se perdera,
e aqui estava o meu velho professor, que me ensinava

139
direito na escola, perguntando: "Ainda se encontra
nestas condições, sem êxito, sem progresso, sem
qualquer coisa que possa mostrar?”.
Mas naquele mesmo momento — e tenho que
reconhecer que foi a primeira vez em toda a minha vida
que isto aconteceu — conheci realmente o que significa
ter o "Espírito da glória" repousando sobre mim. Só
pensar que eu pudesse derramar a minha vida por amor
do meu Senhor inundou a minha alma de glória.
Nada menos do que o próprio Espírito da glória pairava
então sobre mim. Pude olhar para cima e, sem reservas,
dizer: "Senhor, eu louvo o Teu nome! Isto é a melhor
coisa possível; é a carreira acertada que eu escolhi!" Ao
meu professor, parecia um desperdício total eu dedicar
a minha vida ao serviço do Senhor; mas é justamente
isto que o Evangelho faz — nos leva a avaliar de
maneira certa o valor do nosso Senhor.”

Watchman fora desenganado pelos médicos. Os


próprios irmãos chegaram à conclusão que era o fim para
aquele moribundo em pele e osso que insistia em viver.
Sua enfermeira, diante de sua triste situação, dissera que
nunca vira um doente com uma condição tão lastimável.
O próprio Nee, após a conclusão do livro Homem
Espiritual, escrito debaixo de uma forte aflição causada
pela sua doença, chegou a dizer “agora permite a seu
servo partir em paz”. As igrejas foram avisadas que a
partida do irmão Nee estava próxima, não havia
esperança e nem a necessidade de orar mais. No entanto,
o Deus soberano disse que não era à hora de seu servo
partir. O inverno tem como objetivo frutificar, e frutos
estavam sendo produzidos em seu servo e a prensa

140
estava esmagando para que o óleo precioso fosse
produzido. No leito de enfermidade, quando Nee orava ao
Senhor, recebeu três palavras que o levou a agarrá-las
pela fé e se levantar para ser usado ainda mais por Deus:

“O justo viverá pela fé (Rom 1:17); porque pela fé estão


firmes (2Co1:24); porque por fé andamos (2Co 5:17).”

Nee creu que essas palavras significavam sua


saúde. Assim, lutando contra sua incredulidade e contra
os sussurros de Satanás, levantou-se com grande
dificuldade, pôs sua roupa que fazia quase seis meses que
não usava, e se pôs em pé, repetindo as palavras
recebidas, escreve seu biógrafo. Essa provação que
passou o marcou profundamente. Ele mesmo dissera que
por dois meses viveu diariamente nas próprias mandíbulas
de satanás, mas uma irmã em Cristo o assistia e o
fortalecia naqueles dias difíceis. A Senhorita Barber trazia
uma mensagem que o tocou até que ele pôde assentir em
fé: “Cristo é vencedor!”
Milagrosamente, Watchman foi curado da
tuberculose e pode desenvolver poderosamente o
ministério da palavra. Porém, uma dor no peito, que trazia
forte sofrimento o perseguiu por toda a sua vida. Após
essa terrível experiência de quase morte causada pela
doença, ele mesmo testemunhou sobre os frutos da
pressão que colhera daquela provação, “durante aqueles
longos dias de prostração, eu recebi luz para ver as
diretrizes que deveria ter a obra que Deus me tinha
chamado para realizar: obra de literatura, reuniões para
vencedores, edificação das igrejas e treinamento de

141
jovens.” A benção da pressão estava sendo operada na
vida de Watchman Nee e hoje podemos ver o quanto ele
produziu para a salvação de almas e fortalecimento da
igreja.

O MINISTÉRIO NA ADVERSIDADE

Assim como muitos outros servos de Deus,


Watchman desenvolvera seu ministério através das
adversidades. Em alguns momentos uma doce calmaria
surgia no horizonte, mas como de surpresa, uma terrível
tempestade se levantava contra o fraquinho servo de
Cristo. No entanto, como um bambu chinês, as suas raízes
estavam profundamente enraizadas na fé em Cristo, que
mesmo os mais fortes ventos, apesar de dobrá-lo, nunca
o fazia cair. “Deus permitiu dessa maneira que ele vivesse
em contínua dependência de Deus para desenvolver o seu
ministério.”
Enfermidades, perdas de amigos e cooperadores,
pressão da responsabilidade pela igreja, perigos de falsos
irmãos, traições, angustias, tribulações, quebrantamento
pela cruz, injurias, maledicências, foram sofridas por
Watchman em todo o seu ministério e vida. Um dos
sofrimentos públicos sofridos por ele o levou a uma
profunda depressão.
Após se casar com Charity, desfrutando ainda dos
primeiros dias de sua união com a amada, uma terrível
tempestade desabou sobre Nee. A tia de sua esposa,
descontente com o casamento da sobrinha, deu “rédeas a
sua rabugice”, o atacando publicamente de uma forma
áspera e injusta. Por uma semana inteira ela divulgou

142
insultos morais contra Nee em um jornal de alcance
nacional usando um chinês erudito. E se isso não
bastasse, folhetos contendo depreciações contra
Watchman era distribuído nos círculos cristãos. O gosto
da maledicência experimentado por ele fora demais
amargoso. Uma testemunha disse que aquilo que ele
havia lido nesses folhetos era tão vil que após queimá-lo
sentiu uma necessidade de tomar banho. Nee mergulhou
numa profunda depressão retirando-se para o seu quarto
se isolando de todos.
Entretanto, várias experiências alentadoras viriam
para tirar-lhe desse estado. O refrigério de Deus era
derramado sobre o seu servo através de amigos que,
naquela hora de angustia, não estavam sendo negligentes
em seu cuidado para com o abatido Nee. Diferente das
atitudes daqueles três discípulos com Cristo, os seus
amigos o ajudaram na dura opressão da noite escura. “O
que importa o que dizem?”, disse uma de suas amigas.
“Nenhuma arma forjada prosperará contra ti, toda língua
que ousar contra ti em juízo, tu a condenarás”, disse
outra irmã.
A vida de Watchman sempre esteve cercada de
duras críticas injustas. Ele foi atacado fortemente pelas
missões estrangeiras que trabalhavam na China. Fora
acusado de heresia e de fomentar dissensões. Esses
ataques vindos de irmãos na fé o fizeram sofrer ainda
mais. Um missionário reconhecido na China, resolveu
criticá-lo publicamente o acusando de “atrair multidões de
discípulos a si mesmo”, ao se auto intitular apóstolo.
Diante desse problema, outro chinês escreveu um folheto
dizendo que “Watchman tinha acesso a um constante

143
fluxo de fundos estrangeiros com os quais sustentava seu
trabalho e atacava até mesmo sua integridade no uso
desses fundos”. E as críticas só se multiplicavam sobre
ele. O que vale notar nesses casos de difamação é que
tudo era feito de uma forma pública e de nível nacional.
Um provérbio chinês era invocado nessa situação em que
Nee se encontrava constantemente: “Aquele que levanta
a cabeça acima das cabeças dos outros, mais cedo ou
mais tarde será decapitado”. E como esse provérbio se fez
real no ministério de Nee. Ele viveu a realidade que Paulo
escreve em 2 Timóteo 3:12, “todos aqueles quanto
querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão
perseguidos”.
Diante dessas situações, Nee preferia sair perdendo
a se defender das acusações. A dignidade dos irmãos
acusadores estava acima de sua própria dignidade. E
reprimindo esses sentimentos, retirou-se da cidade onde
vivia e se afastou do ministério da pregação. Um amigo o
encontrou em profunda depressão novamente e o ajudou
naquela hora de dificuldade. Essas circunstâncias eram
constantes na vida desse servo de Deus, e como um
homem comum, ele sentia o esmagar dos sentimentos
feridos pelos ataques de nosso inimigo. É principalmente
com aqueles que se colocam debaixo da vontade de Deus,
o amando mais do que a si mesmo, que maledicências,
injurias, dores, aflições, traições serão colocadas em seu
caminho. Mas Deus os fortalecerá, e, assim como Nee,
todos os que se encontram debaixo da prensa devem
louvar àquele que é soberano sobre a sua situação.

144
A NOSSA MALIDICÊNCIA

Olhando a vida desse homem sem conhecer os


pormenores de suas experiências, têm levado muitos a
cometerem o erro de condená-lo previamente por causa
de algumas diferenças teológicas. Esse homem sofreu
pelo evangelho. Sofreu pela igreja. Sofreu por Cristo. E
sua teologia, apesar de alguns pontos difíceis de
entender, estava tão avançada para o seu tempo, assim
como para o nosso, que por não o compreender
rejeitamos sem meditar nas riquezas de seu ministério.
Isso é o que de pior pode acontecer no meio da igreja:
determinar que o mover de Deus está limitado a uma
linha teológica ou uma denominação evangélica.
Em pensar que todas essas provações de
Watchman Nee era apenas o atravessar do Vale do
Cedron. Ele estava apenas se aproximando do jardim,
onde a sua noite escura realmente cairia sobre aquele
debilitado servo do Senhor.
Enquanto um rigoroso inverno se aproximava para
a igreja chinesa, a revolução comunista florescia. Outro
jovem chamado Mao Tse-Tung, era levantado para
estabelecer um Império que perseguiria a igreja
cruelmente. A situação na China era terrível. Tudo estava
sendo direcionado para uma revolução armada e
sangrenta. A invasão japonesa, por causa da segunda
grande guerra, já causara seus estragos na economia e na
sociedade que foi cruelmente oprimida. Tudo estava
sendo propício para que um levante comunista se
estabelecesse. O contexto em que Nee viveu e a igreja
floresceu na China, era lastimável. A igreja estava sendo

145
preparada, assim como seus líderes, para o que estava
por vir.

A MAIOR DAS PROVAÇÕES

Watchman, porém, não temia o que poderia colher


dessa revolução. Ele “previu que se fosse estabelecido o
marxismo na China, as condições para a igreja seriam
extremamente difíceis. Aos jovens presentes, disse-lhes:
"Quando os mais velhos caem vocês devem seguir
adiante”. Nee pensava que, no máximo, teriam uns cinco
anos para fazer a obra de Deus com liberdade.
No entanto, menos de um ano havia se passado
quando o exército de libertação entrou em Xangai. No
princípio a igreja não sofreu restrições. Havia certa
liberdade, mas Watchman, conhecedor dos ideais
marxistas, sabia que o seu caráter era fortemente
antirreligioso. Era apenas o cerco sendo armado contra a
igreja chinesa e seus líderes. O Partido estava
conhecendo, por dentro, quem eram as cabeças do
pequeno rebanho. Porém, a igreja sabia o que a
aguardava. Nee estava em Taiwan, seguro do movimento
revolucionário, mas sabendo do que lhe sobreviria e
avisado pelos irmãos, decidiu voltar para Xangai. Essas
foram suas últimas palavras para os obreiros que lutavam
para que ele não retornasse:

"Demorou tanto tempo para levantar a igreja ali, posso


abandoná-la agora? Os apóstolos, acaso, não ficaram
em Jerusalém sob condições similares?".

146
Na última noite voltaram a rogar a Nee que não
retornasse. "Se voltar, pode significar o fim", disseram-
lhe. Mas Nee tinha recebido um telegrama dos anciões de
Xangai informando-lhe de seus muitos problemas e
rogando-lhe que voltasse o quanto antes possível. Mesmo
assim, os irmãos insistiram pela última vez a que não
retornasse. Nee exclamou: "Não tenho cuidado da minha
vida! Se a casa está caindo e meus filhos estão dentro,
devo sustentá-la até com a minha cabeça se for
necessário".
O que predissera seus cooperadores, acontecera a
Nee. O governo comunista o prendeu na Manchúria em
1952, o acusando de ser espião dos estrangeiros, “o tigre
capitalista à margem da lei, que tinha cometido os cinco
crimes especificados contra a corrupção no comércio.”
Falsas acusações vinham de todos os lados sobre ele:
espionagem, capitalista ilegal, traidor da nação, o lacaio
dos imperialistas, vagabundo dissoluto, efeminado sem
vergonha, indiscriminado, devasso antirrevolucionário e
adúltero desavergonhado. Aproveitando essas acusações
contra Nee, o governo disseminou uma propaganda
nacional cruel e destruidora no seu diário de libertação
nesses termos:

“Uma caricatura trazia uma legenda que dizia:


“Entregue tudo”. O desenho retratava dois níveis de
pavimentos de uma casa. No pavimento de cima, as
pessoas empurravam-se para chegar onde estava um
homem sentado no degrau de uma escada, insistindo
com elas que despejassem seus bens num grande funil
rotulado “daí a Deus o que é de Deus”. Todo tipo de

147
donativo era apresentado, desde um humilde
trabalhador que tirava a camisa e a jaquetinha do seu
filho em choro. No andar de baixo, para a qual se
estendia o receptáculo, o rótulo era diferente: “Para a
obra da contrarrevolução”. Aqui, da extremidade do
funil, uma corrente de ouro e prata, relógios e joias e
donativos de dinheiro fluíam para os pés do admirado
Nee To-Sheng, que se punha à vontade com uma
prostituta sentada no seu colo”.

Todas essas acusações eram de foro político e


moral, mas não religioso. Um amigo de Nee,
testemunhando esse cruel massacre contra a sua pessoa
relatou que “uma coisa é sofrer como cristão; outra coisa
muito diferente é sofrer como criminoso por pecados não
cometidos”. O nome de Nee fora jogada na lama sem
direito a nenhuma defesa. Todas as vezes que ele era
exposto ao escárnio público, diante de um julgamento
fingido, nenhum direito a fala lhe era dado. Como uma
ovelha muda, Nee se apresentava diante de seus algozes.
A tristeza abatia a todos os que amavam esses líderes e a
igreja chinesa.
Essa atitude cruel do governo era pela ânsia de
reformar a igreja na China. Os seus planos para o
movimento cristão foram prontamente rejeitados pelos
líderes, entre eles Watchman Nee, o que despertou a fúria
do partido comunista. “Em 21 de junho de 1956, Nee
apareceu perante a Suprema Corte de Xangai. A reunião
durou cinco horas. Durante a audiência foi anunciado que
ele tinha sido excomungado por sua própria igreja, foi
declarado culpado de todas as acusações e sentenciado a

148
15 anos de prisão, com reforma mediante trabalhos
forçados, a partir de 12 de abril de 1952.” Porém,
Watchman sofreu longos 20 anos numa prisão comunista
na China. Ele poderia ter sido solto 5 anos antes, mais o
cruel e injusto sistema de Mao Tse-Tung negou esse
privilégio ao já idoso obreiro de Cristo.
Quantas privações. Quantas noites mal dormidas.
Quantas dores por causa das enfermidades. Quantas
batalhas contra o desânimo e desesperança. Quantas
perdas. Quantas traições. Quantas angústias naquela cela
fria e apertada o já ancião sofreu sozinho. Em seus
últimos dias de vida pesava apenas 45 quilos. Valeu
realmente a pena todo esse sofrimento pelo evangelho? A
sua esposa sofrera um acidente e veio a falecer, e Nee
recebe na prisão essa amarga notícia. Imagine a dor na
alma daquele debilitado servo do Senhor. Mas diante de
toda essa aflição, um preso estrangeiro de outro pavilhão
testemunhava cânticos que quebravam o silêncio
desafiando a opressão maligna. Esses cânticos vinham da
cela daquele idoso prisioneiro. Eram hinos compostos pelo
próprio Nee, misturados com textos bíblicos que se fazia
ouvir naquela prisão comunista. Letras como essas
saíssem de seus lábios:

“Apenas mais uma milha, amado...


E em breve verás que a dor em teus pés já passou;
Não mais sofrimento, não mais pecado;
Acalma-te, este teu caminho Jesus trilhou.
E eu o ouço docemente a sussurrar,
“Não desfaleças, não temas, continue avançando,
Pois amanhã tudo há de terminar;

149
A longa jornada estará findando”.

O SACRIFICIO DE LIBAÇÃO

Nee costumava dizer que “nada fere tanto como o


descontentamento com as nossas circunstâncias. Todos
partimos do descanso, mas, há outro descanso que
descobriremos quando aprendemos de Jesus a dizer:
graças te damos, Pai, porque pareceu bem a ti.” Havia
uma forte crença na providência divina que brotava do
coração daquele obreiro cristão. Ele descansava no agir de
um Deus em que nada pode escapar ao seu controle.
Todo o seu caminho já havia sido demarcado por Ele, e as
mãos que o afligiam, de joelhos eram beijadas e amadas.
Ele sabia que os trabalhadores da seara semeavam ao
mesmo tempo em que enxugavam as suas lágrimas. Nada
era por acaso na vida daqueles que creem em Deus. “Para
que somos consagrados?” Perguntava Nee, “senão para a
vontade de Deus e fazer o que for do seu agrado”,
concluía. Se no final da vida ele pudesse dizer como Paulo
“terminei a carreira”, então o cristão havia cumprido
aquilo pelo qual havia sido chamado e era, de fato, um
bem-aventurado. “Os homens passam, mas o Senhor
permanece”, pregava o chinês. “Obreiros iam e viam, mas
Deus nunca deixaria a sua obra sem os seus
trabalhadores. O nosso trabalho sofre, mas, o de Deus
nunca. Ele ainda é Deus”, dizia Nee com uma fé
inabalável.
Os próprios coobreiros não sabem precisamente o
que aconteceu com Watchman em seus últimos dias. Em
1° de junho de 1972, aos 68 anos de idade, passou para a

150
presença do Senhor. Morreu sozinho. Longe da igreja, de
sua família, de seus amigos, de sua amada Charity, e de
sua preciosa Bíblia.
Watchman fora cremado e suas cinzas foram entregues a
sua sobrinha, que o enterrou ao lado de sua esposa. Um
tempo antes, Nee havia escrito uma carta que dizia que,
mesmo diante de tanta restrição, sofrimento e dor
descobriu o segredo da alegria. Aquela alegria que
ninguém poderá nos tirar. Antes de sua sobrinha partir,
um funcionário do campo mostrou-lhe um papel que tinha
encontrado debaixo do travesseiro daquele idoso
prisioneiro. Várias linhas escritas com palavras de letras
grandes, escritas com mãos trêmulas. O papel dizia:

"Cristo é o Filho de Deus, que morreu para a redenção


dos pecadores e ressuscitou ao terceiro dia. Essa é a
maior verdade do universo. Morro por causa da minha
fé em Cristo - Watchman Nee”.

PALAVRAS PROFÉTICAS

Watchman Nee partiu para estar com o seu Senhor.


Havia fé, uma robusta fé naquele idoso de 68 anos. Qual
é o fruto desse sofrimento? O que ele colheu em troca do
desperdício de sua vida? Nee, em sua vida não colheu
nada, mas nós tudo. O comunismo é um sistema falido
que como moribundo, tenta se estabelecer em um mundo
naturalmente cobiçoso. Mao Tse-Tung está enterrado com
todas as suas glórias humanas. Watchman, porém, não
teve tanta atenção assim em seu sepultamento.
Provavelmente poucas pessoas estiveram em seu enterro.

151
Mas os céus festejaram quando as portas se abriram para
que aquele amado servo do Senhor entrasse na glória.
Ele, como muitos outros, são daqueles que, na última
parte do desfile de honra dos soldados vencedores da
guerra, surgem diante da plateia. Deram tudo o que
puderam para estabelecer o reino de seu Senhor. Foram
duramente feridos por amor. Totalmente esmagados pela
pressão. Ficaram firmes nas tentações da noite escura da
alma. Carregam em seus corpos as marcas da dura guerra
e são recebidos com dupla honra, pois alcançaram uma
superior ressurreição.

152
Conclusão

A Glória Futura

Os caminhos misteriosos de Deus não têm como


fim nos destruir. Seu propósito é tirar do fraco, o forte. Da
azeitona o azeite. Da uva o vinho. Do trigo o pão. Do
nardo a sua fragrância. Porém, somente debaixo da
pressão que os tesouros se revelarão. Tudo é para Deus.
Os nossos sacrifícios são apenas ofertas de libação
derramada sobre o altar onde o cordeiro Eterno já está.
São desperdícios para aquele que merece todas as
recompensas de nosso penoso trabalho.
O caminho salpicado de sangue que Jesus
inaugurou nos conduzirá a situações de duras provações.
Seremos lançados em noites escuras onde o nosso Bom
Pastor permanecerá incompreensível, ainda que sua a
presença seja incontestável. São João da Cruz, um antigo
místico da igreja, compôs um poema que descrevia o
relacionamento entra a noiva e o noivo numa noite
tenebrosa. Esse poema é uma alegoria do encontro entre
Deus e a alma que crê, em meio à escuridão da fé. É
nesses momentos, quando apenas contemplamos as
circunstâncias aterradoras, que a nossa alma se despe da
autoconfiança e autodependência para ter um
relacionamento mais íntimo com Deus.
Entretanto, esse conhecimento mais íntimo cobra o
seu preço. A angustia da alma nos assaltará de uma
forma devastadora. Assim como foi com Cristo e muitos

153
de nossos irmãos do passado e do presente, o sentimento
de solidão, abandono e confusão serão comuns quando
estivermos cruzando o Cedron a caminho do Getsêmani.
Como será difícil para os filhos de Deus estarem sendo
esmagados pela pressão de um Deus amoroso. Mas é
preciso. Jó conhecia a Deus por ouvir falar. Somente
quando a noite escura o alcançou que ele pôde
contemplar a beleza da face do Criador e dizer que, agora
os seus olhos o contemplavam.
Watchman Nee disse que “aquele que sobe a cruz
e se recusa a beber o vinho com fel é aquele que conhece
o Senhor”. Seremos tentados a nos entorpecer para que
as nossas dores sejam aliviadas. Os antigos ídolos nos
seduzirão novamente quando estivermos debaixo da
pedra de moinho. Cristo se recusou a suavizar a realidade
daquela situação. Ele sabia que a glória resultaria da
totalidade das experiências que o Pai lhe reservou. Era
para um bem maior que Ele suportou a duras provações.
Paulo dizia que “os nossos sofrimentos leves e
momentâneas estão produzindo para nós uma glória
eterna que pesa mais do que todos eles.” (I Cor.4:17).
Meu querido leitor sei que é difícil aceitar essas
palavras quando o fogo de Deus está nos provando. O
que faremos então? Recolheremos a nossa mão diante da
chama? Com essa atitude preservaremos a nossa alma.
Mas nós continuaremos os mesmos e Deus ainda será um
estranho.
A palavra desperdício significa dar mais do que é
necessário. O mundo lhe dirá que sua vida tem sido
desperdiçada por uma coisa inútil. Ele o levará a
transformar as pedras em pães para uma satisfação

154
rápida lhe trazendo um alivio momentâneo. Ele lhe
conduzirá ao pináculo e lhe mostrará o que você está
perdendo cometendo a loucura de se consagrar a Deus.
Ele lhe mostrará que o prazer e a felicidade é a razão de
nossa existência. Na verdade, desperdício é rejeitar a
disciplina de Deus por causa de uma satisfação
passageira.
Olhando para a vida de Moisés, que desperdício
seria para o mundo se ele preferisse desfrutar os prazeres
do pecado por algum tempo, rejeitando, por amor de
Cristo, ser desonrado com tal atitude. Que desperdício
seria para a igreja, se Bunyan se recusasse a sofrer numa
prisão por causa da pureza do evangelho. Que desperdício
seria para nós, se Watchman Nee escutasse as palavras
do mundo na voz de seu professor e abandonasse o seu
ministério. Quantos Demas têm na história da igreja que,
amando o presente século, abandonaram o Senhor.
Quando lemos as biografias dos heróis da fé em
Hebreus 11, todos, sem exceção, tinham certeza daquilo
que esperavam e a prova das coisas que não podiam ver.
Seus sofrimentos não foram em vão. Uma riqueza maior
do que tudo aquilo que esse mundo pode oferecer estava
sendo preparada para eles em Cristo. Eles contemplavam
a recompensa de suas provações. Em toda noite escura
da alma haverá uma manhã de ressurreição. A vida
desperdiçada será seguida por uma vida ganha. Tudo o
que você perdeu para esse mundo será restituído em
glória no presente e muito mais no futuro.
Jim Elliot, missionário na floresta amazônica,
desperdiçou a sua vida juntamente com outros quatro
amigos para alcançar um grupo indígena violento que

155
nunca haviam tido contato com a civilização. Com a idade
de 29 anos, Elliot e seus colegas foram violentamente
mortos pelos índios huaoranis. Esse grande homem de
Deus tinha um lema e por ele vivia. Ele dizia que “aquele
que dá o que não pode manter, para ganhar o que não
pode perder, não é um tolo”. O interessante na vida desse
jovem é o fato de David Brainerd ser aquele que o
inspirou a ter sua vida consumida por Cristo, não
importando se ela seria longa ou não.
Muitos desses homens e mulheres não viram o
resultado de seus sofrimentos. Davi ajuntou material para
que seu filho, debaixo de um tempo de paz, construísse o
templo. Ele não viu o resultado de suas batalhas e
cicatrizes advindo delas. Mas Deus o honrou. Assim
também com esses servos. Muitos deles nem os seus
nomes sabemos. Muitos que estão enterrados nos
escombros da história reivindicam, diante do Pai, a honra
que lhes é devida. E o Pai e o Cordeiro aguardam
pacientemente o dia em que todos dobrarão os joelhos
diante de sua glória, e ao seu lado, em lugar de honra e
destaque, estarão aqueles que estabeleceram o reino de
Deus e do seu Cristo sobre uma terra hostil e cruel
através da esmagadora pressão das circunstâncias. A
igreja colhe os frutos produzidos por Cristo, Brainerd,
Bunyan, Elliot, Watchman Nee e tantos outros que
sofreram calados no longo inverno em que eles se
encontraram.
Hoje podemos enxergar mais longe porque o
resultado da prensa que foi produzido em noites de
escuras experiências nas vidas desses servos foi
dispensado a nós. Os azeites produzidos por essas

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azeitonas nos iluminam nas nossas noites escuras. Era
preciso tudo aquilo que eles passaram? Olhando nesse
momento para o passado, e contemplando o grande
número de testemunhas que através da noite escura de
Cristo foram produzidos para o bem da igreja e deste
mundo, podemos dizer que sim! Contemplando a China de
hoje, não há igreja que cresça mais nesse mundo do que
aquela igreja sofredora. Foi através de uma linhagem
sucessora de homens em provações, apresentando-se à
Cristo como oferta de libação, que esse mundo pode obter
os seus maiores tesouros. Eram considerados como
escória, o lixo do mundo. Mas na verdade o mundo que
não era digno deles.
Agora, será que é preciso nós passarmos por todas essas
experiências que eles passaram? Sem dúvida é preciso.
Como disse Bunyan, “em alguns países, ás arvores
crescem, mas não produzem frutos, pois não há inverno
ali”.

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UM HINO CHINÊS

“Relembro diante do Senhor


Os tempos provados pelo amor;
Alegrias e preocupações
Mostrando quão fiel é o nosso Deus.
Às vezes ando em meio à paz
Ou de espinhos que edificam.
Talvez há vias sinuosas,
Porém, por fim levam à seara.

Só por um inverno rigoroso


É que experimentamos o calor da primavera;
Só o silêncio da floresta
Leva o corvo a cantar bem alto.
Na mais escura noite é que
A mais brilhante estrela vem.
Senhor, a Tua lapidação
No fim, é o conhecer mais de Ti.

A pura e abundante alegria


É fruto do coração provado;
O hino doce e belo é
Ouvido dos lábios que provaram o fel;
Tristeza produz alegria e
Sofrimento leva ao cantar.
Tu és a minha alegria e hino
Da perda o ganho, da terra o céu”.

Autor desconhecido

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