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MARGUTI, Paulo. Desenvolvimento, Cultura, que para Vieira de Mello, a Verdade


Ética: as ideias filosóficas de Mário Vieira de depende de um critério absoluto que se
Mello. São Paulo: Loyola, 2015. 184 p. ISBN encontra na ideia de Bem, que é o prin-
9788515043460. cípio ético das culturas amadurecidas.
Colocar a ideia ética como referência
O livro apresenta uma síntese do pen- para tratar da Verdade é a escolha de
samento de Mário Vieira de Melo e Vieira de Mello, pois a verdade ética é
foi organizado em oito capítulos. Sua absoluta, consenso nem sempre possível
importância foi explicada pelo autor entorno à verdade metafísica. Na meta-
como se segue: “Os exegetas brasileiros física platônica a ideia de Bem é antes
precisam perceber que as ideias de um valor que uma verdade, mostrando
Vieira de Mello, por mais controversas a prevalência do problema do primeiro
que sejam, são mais importantes para sobre a segunda. Além disso, as ideias
nós do que as ideias dos filósofos clás- éticas de justiça, bem e sabedoria são
sicos europeus e norte americanos” (p. aspirações de todos os povos, sendo
170). Portanto, é assunto fundamental esse um problema tão atual tão rele-
no nosso processo de reconhecimento vante quanto fora na antiga Grécia.
como povo. Não se trata, é claro, de
fechamento do autor aos clássicos da Segue-se o capítulo com a crítica ao
filosofia universal, nem proposta de pensamento aristotélico e aos rumos
isolamento cultural, mas de uma reação seguidos pela cultura europeia. Vieira
contra a mentalidade representada por de Mello considera que a concorrente
um grupo de professores brasileiros da visão socrático platônica examina-
que reduziram a atividade filosófica a da no capítulo anterior era a filosofia
comentar os clássicos europeus, pois de Aristóteles e que sua adoção na
“não acreditam que tenhamos matu- modernidade europeia explicava os
ridade filosófica para elaboração de problemas enfrentados no continente.
textos originais” (p. 12). O problema nuclear do pensamento
aristotélico estava na falta de temati-
No capítulo inicial, ou introdução, zação adequada do transcendente, que
depois de apresentar a biografia de naquela filosofia era algo ornamental.
Vieira de Mello, Paulo Margutti faz uma Por isso, as concepções cosmológicas e
síntese dos aspectos que o pensador humanistas não podiam coincidir sem
utiliza para construir seu pensamento grandes dificuldades no aristotelismo.
filosófico: “a) valorização da liberdade
A própria noção de virtude aristotélica
interior no sentido socrático-platônico;
afasta-se da ideia de excelência pla-
b) afirmação do Bem Transcendente,
tônica para se expressar em critérios
c) crítica ao predomínio da imanência
quantitativos e de proporção: o justo
sobre a transcendência na Europa con-
meio. O princípio de conhecimento
temporânea” (p. 14).
aristotélico é um esforço para descrever
No capítulo seguinte Margutti sistema- o universo pela contemplação, que é
tiza a leitura socrático-platônica elabo- uma atitude estética. Em contraparti-
rada por Vieira de Mello. Ele explica da, na filosofia socrático-platônica, o

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propósito é formar a alma humana. pelo conflito insolúvel entre o apolíneo
Essa diferença de propósitos contra- e o dionisíaco, o que levou ao sacrifício
põe o idealismo imanente do primeiro da consciência e da razão do mesmo
ao transcendente dos segundos que modo que Sócrates aceitou a morte em
desembarga no ideal de beleza de Aris- condenação injusta. Por isso, considera
tóteles e de pureza moral de Sócrates Vieira de Mello, Nietzsche é o Sócrates
e Platão. Isso lhe permite concluir que moderno. À essa tradição ele associa a
“a plenitude da cultura grego clássica filosofia e literatura russas, pois elas
se encontra na visão socrático-platônica fizeram a opção pelo homem e pela
de um mundo moral de liberdade, a liberdade como temas centrais de inves-
que o homem pode ter acesso quando tigação. Dostoievsky é um exemplo de
está bem preparado” (p. 30). Quanto quem expressou uma visão de homem
aos rumos do pensamento moderno, que ia além do seu perfil sociológico e
embora haja um afastamento da Europa psicológico, isto é, deixou o esteticismo
moderna da física e também da ética dos condicionantes particulares para
aristotélica, Aristóteles, na avaliação mergulhar na natureza ética do povo
de Vieira de Mello, é o inspirador de russo. Isso permitiu a seguinte síntese
Descartes, Kant e Heidegger, em con- de Margutti: “Os romances de Dos-
traposição aos seguidores da tradição toievsky são motivados pelo problema
socrático-platônica que inspira Lutero, universal da liberdade humana” (p.
Kierkegaard e Nietzsche. Como a ple- 47). Na percepção de Vieira de Mello,
nitude de cultura estaria na opção por Margutti observa, estão nesses roman-
essa última tradição e não na primeira, ces não a contraposição entre o bem
esse é o tema do quarto capítulo. o mal, mas a oposição entre as visões
estética e ética da vida, o que torna a
O capítulo quarto se inicia contrapondo
obra de Dostoievsky universal porque
a atitude ética de Lutero, o seu ideal de
se refere ao homem em geral. Outro
pureza moral, ao ideal de beleza conce-
pensador russo de sucesso é Nicolai
bido no renascimento italiano. Trata-se
Berdiaev que trata a liberdade como a
de tensão na organização cultural da
sua questão mais importante. Vieira de
Europa, avalia Vieira de Mello, sendo
Mello entende que as filosofias de Niet-
Kierkegaard o primeiro a perceber o
zsche, Kierkegaard e desses escritores
conflito entre as realidades estética e
russos representam o renascimento da
ética. O cristianismo de Kierkegaard
melhor tradição clássica. Para esse re-
é essencialmente socrático, explica.
nascimento da cultura clássica enxerga
Esse cristianismo assume um tipo de
ainda a contribuição de Eric Voegelin e
racionalidade irônica para superar a
Werner Jaeger, o primeiro por propor
racionalidade dogmática de Hegel,
a norma transcendente como princípio
como Sócrates igualmente fez para ven-
da ordem cultural, fazendo renascer a
cer o esteticismo dos sofistas. Também
esperança, o segundo porque com a
Nietzsche, parece a Vieira de Mello, um
obra Paidéia - os ideais da cultura grega,
seguidor de Sócrates, mesmo não tendo
interpretou a cultura grega como Pai-
feito elogio público ao pensador grego.
déia e não como realização ético-político
Para colocá-lo nessa tradição Vieira de
ou estético-político.
Mello segue a interpretação de Walter
Kaufmann “que chamou atenção para Segue-se o capítulo com a análise das
a importância de Sócrates na última ideias políticas e educacionais de Vieira
fase da vida de Nietzsche” (p. 44). O de Melo. Para o filósofo brasileiro, o
processo de enlouquecimento de Niet- século XX é produto: “do Renasci-
zsche, avalia, foi o resultado da escolha mento italiano, a Reforma Protestante

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e a Revolução americana” (p. 58). Esta a Revolução Americana não resolveu.
última, parece-lhe, foi a responsável Os antigos gregos entendiam haver
pela configuração espiritual do ocidente separação entre o poder e a cultura,
e pelo empobrecimento cultural verifi- mas eliminavam tal separação “através
cado no período. O tema da igualdade da formação do indivíduo de modo tal
teve outros momentos marcantes na que ele e o Estado constituíssem uma
história da humanidade. Foram eles: o verdadeira unidade” (p. 69). Esse proje-
episódio do Sinai e a democracia grega, to pedagógico, retirado do contexto em
além da própria Revolução Americana. que foi concebido por Platão, parece ao
Essa última deu ao século passado a homem de hoje uma realidade totalitá-
percepção de crise porque a cultura e ria. Sócrates procuraria a raiz da crise
o poder não se desenvolveram juntas contemporânea no interior do homem e
e o problema da igualdade acabou não nalgum fator circunstancial como o
se contrapondo à liberdade, que é o faz a pedagogia que saiu da Revolução
objetivo, para Vieira de Mello, do pro- Americana.
cesso pedagógico. Liberdade entendida
não como a possibilidade de escolher O capítulo 6 é uma aplicação desse
que caminho seguir diante do poder, esquema conceitual à realidade brasi-
chamada de liberdade exterior, mas a leira. O enfrentamento desse problema
liberdade de dominar as paixões pela está na obra Desenvolvimento e Cultura
razão, liberdade interior, propostas onde Vieira de Mello avalia que alguns
por Sócrates e Platão. Enquanto a intelectuais brasileiros, refere-se aos
Revolução Americana não conseguiu intelectuais do ISEB, que não tinham
aproximar poder e cultura, os ingleses consciência do subdesenvolvimento do
conseguiram viver reunindo as duas país porque julgavam ter um destino
realidades. Porém o que teve grande especial. Esse grupo “parece sofrer de
influência foi a Revolução Americana. uma espécie de má consciência em rela-
Daí que ele atribua grande peso da Re- ção às origens de suas próprias ideias.
volução Americana na crise de cultura Para enfatizar o nacionalismo, ela pre-
que os filósofos identificaram no século cisa apagar suas origens estrangeiras.
passado. “A crise da cultura ocidental Um dos assuntos prediletos dessa elite é
contemporânea possui dois momentos a denúncia do caráter abstrato, teórico,
essenciais. O primeiro deles é o da acadêmico e obsoleto do pensamento
crise europeia, motivada por conflitos não desenvolvimentista” (p. 72). Para
espirituais insolúveis. O segundo é o Vieira de Mello, se ficarmos livre do
da pseudosolução norte-americana, que ressentimento marxista, estruturada
não passa de uma simplificação da pro- sobre aquela famosa tirada pombalina
blemática europeia, sem oferecer uma de que somos pobres porque os ricos
contribuição efetiva para solucioná-la” nos exploram, poderemos nos relacio-
(p. 65). Depois de explicar que a cultu- nar com as nações desenvolvidas como
ra clássica nada fica a dever à cultura modelos a ser imitados. Aqui vem o
atual da Europa, Vieira de Mello aponta fundamental sobre o assunto. Para Viei-
como o maior problema pedagógico do ra de Mello, o que herdamos da Europa
mundo moderno e contemporâneo o foi o romantismo francês do século XIX
ter perdido a motivação transcendente, e também o ideal renascentista, ambos
no sentido humanístico presente no expressões do esteticismo europeu. O
pensamento platônico. O humanismo resultado desse processo formador, es-
clássico é uma Paidéia que assegura pecialmente a presença do romantismo
a liberdade do indivíduo em relação francês, foi um ornamentismo cultural
ao Estado e resolve o problema que intelectual e moralmente pobre. Daí a

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conclusão: “o brasileiro contemporâneo Margutti, a preferência de Vieira de
se caracteriza não pela bondade, como Mello por Sócrates baseia-se na herança
pensa Cassiano Ricardo, nem pela cor- portuguesa e em nossa autoimagem
dialidade, como pensa Sérgio Buarque, negativa. De Portugal vem a postura
mas sim pelo esteticismo” (p. 79). Não pragmática que tem por consequência
significa que as categorias de Cassiano a desconfiança da especulação e, por
e Sérgio Buarque não possam ser usa- consequência, da incapacidade para
das, mas elas são estéticas. A força do filosofar. Essa desconfiança tem raízes
esteticismo romântico é enorme e pode históricas em Pedro da Fonseca e na
até alcançar o pensamento científico. Segunda Escolástica portuguesa onde se
Exemplo disso é o positivismo brasi- destaca o comentário exegético. Daí, diz
leiro, cujos representantes ao criticar Margutti, “a desconfiança com respeito
a matriz cultural do país em nome da à teoria leva a uma forma de ceticismo
ciência, subordinaram os ideais éticos pessimista, de tons moralistas, à lá Ecle-
aos desígnios dessa última. A semana siastes, segundo o qual tudo é vaidade
de arte moderna expressa essa visão e nada se pode efetivamente conhecer”
estética da vida e ao tentar revolucio- (p. 88). Quanto a Sócrates a ironia tem
nar a estética em nosso país, pretendia um vínculo com a ação no diálogo com
compreender o problema do Brasil. os interlocutores e na prática das vir-
Qual seria a solução para o país? Vieira tudes. A autoimagem negativa também
de Mello diz que o caminho a seguir é herdada de Portugal e surge com a
é o da recuperação ética. “A regenera- morte de Dom Sebastião e a decadência
ção ética de nossa cultura exige que que se seguiu depois da submissão do
tentemos compreender sinceramente país à casa real espanhola. Também
o fenômeno do esteticismo entre nós. contribuiu para a autoimagem negativa
E os estudos éticos, filosóficos e teo- a mentalidade católico-medieval do
lógicos nos auxiliariam na consecução colono, com fortes crises de consciência
desse objetivo” (p. 83/4). Isso significa, com seus pecados. Pois bem, a referên-
em outras palavras, fazer “um esforço cia à tradição socrático-platônica não
educacional através do qual o humanis- considera as diferenças significativas
mo ético dos gregos seja preservado e entre Sócrates e Platão, além de não se
assimilado criticamente” (p. 86). poder considerar a cultura grega como
paradigma geral para todos os povos,
O capítulo sete traz a análise crítica
em todos os tempos. Essa perspectiva
de Paulo Margutti às teses de Vieira
além de eurocêntrica, tem por base
de Mello resumidas nos capítulos
anteriores. É um capítulo longo onde “uma concepção de racionalidade que
Margutti avalia o pensamento de Vieira não é necessariamente universal” (p.
de Mello. Eis o que ele examina: a in- 97) e não se consolidou como tal. Nisso
serção do autor no contexto filosófico estaria a raiz do preconceito contra as
brasileiro, a sua adesão à perspectiva filosofias elaboradas no Brasil, entre as
socrático-platônica, a crítica que ele faz quais Margutti menciona as de origens
à cultura europeia e sua raiz aristotélica, indígenas e africana. Quando às referên-
a interpretação dos autores, análise crí- cias de Vieira de Mello à Werner Jaeger,
tica das ideias políticas e educacionais observa Margutti, as propostas de Pai-
de Vieira de Mello e a aplicação dessas déia presentes na obra do alemão “têm
ideias à realidade brasileira. Portanto, por objetivo constituir uma base para
é uma análise extensa e complexa um novo estudo do helenismo como
que revela conhecimento da tradição totalidade” (p. 102), mas tem um erro de
filosófica e da filosofia brasileira. Para concepção. Jaeger o emprega para tratar

500
dos tempos de Homero, mas entre os que ela elaborou é contrária às teses
gregos o termo só aparece mais tarde. aristotélicas. A outra crítica Margutti
Daí, ao contrário do que entende Vieira é ainda mais ampla e consistente. Ele
de Mello, “a Paidéia de Jaeger estaria diz: “a redução da evolução europeia
mais próxima da Bildung alemã do que a uma disputa entre dois princípios, o
do classicismo grego” (p. 103). No que ético e o estético, parece envolver não
se refere a Voegelin, nem todos seus só uma supersimplificação do caráter
comentadores o consideram defensor dessa evolução, mas também uma
da ideia de Bem Transcendente, que hipostasiação dos referidos princípios”
Vieira de Mello toma como sua essen- (p. 116). E também não se pode redu-
cial contribuição para a reconstrução zir a crise europeia, que é complexa e
do Ocidente e do Brasil. Isso coloca sua envolve múltiplos fatores, à oposição
interpretação sob suspeita. O mesmo entre os princípios ético e estético, ou
pode ser dito de sua confiança em entre as tradições socrático-platônica
Berdiaev, pois embora o filósofo russo e aristotélica. Quanto à leitura de
trate do misticismo e da liberdade, sua Vieira de Mello dos outros filósofos é
compreensão de transcendência não também limitada, diz Margutti: “Nessa
foge da perspectiva eurocêntrica. Em perspectiva, a observação de Vieira
relação às críticas que Vieira de Mello de Mello de que Kant não consegue
faz a Aristóteles, contrapondo-o absolu- preservar a reverência nem na Crítica
tamente à tradição socrático-platônica, da razão prática, por que a lei moral
ele não percebe que apesar das diferen- interior continuou a ser um objeto de
ças, as intuições básicas de Aristóteles curiosidade, é extremamente injusta. O
correspondem a de seu mestre. Quanto sistema kantiano foi todo construído
às críticas à ética aristotélica, ela trata não para justificar a ciência galileana
das virtudes, mas “levando em conta num viés ligado à curiosidade aristo-
que a caracterização de uma ação como télica, mas sim para justificar a moral
virtuosa depende das circunstâncias. pietista, num viés ligado à reverência
Essas últimas variam tanto que não é platônica” (p. 119). Quanto ao uso de
possível estabelecer um conjunto de Kierkegaard e Nietzsche como segui-
regras capaz de resolver qualquer pro- dores da tradição socrático-platônica
blema ético” (p. 111). Lembra Margutti tem muitos problemas, que Vieira de
que a República de Platão não propõe Mello não solucionou. Explica Margutti:
regras com validade universal, apenas “Com efeito, a esmagadora maioria das
a ideia de Bem é universal. Isso mostra máscaras nietzschianas são antissociais.
um Aristóteles completando o mestre e Fica muito difícil supor que uma per-
não se contrapondo a ele. O problema sonalidade socrática sem sentido estrito
da interpretação que Vieira de Mello faz se esconderia por trás delas” (p. 131).
de Aristóteles, traz os mesmos proble- Os outros aspectos da análise também
mas da sua interpretação de Platão. “A mostram falhas conceituais graves como
crítica de Vieira de Mello a Aristóteles atribuir à Revolução Americana a causa
se baseia numa leitura do pensador da crise da democracia com base na
grego que, além de historicamente ideia de que durante a independência
localizada, não é consensual entre os os americanos puderam desenvolver
comentadores” (p. 113). Ora considerar estruturas de poder, mas não de cultu-
Aristóteles o pai do movimento filo- ra. O ideal democrático moderno tem
sófico da Europa moderna é mesmo problemas, reconhece Margutti, mas tais
muito complicado, pois se sabe que a problemas decorrem de causas diferen-
filosofia moderna e a ideia de ciência tes das listadas por Vieira de Mello” (p.

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146). Finalmente, parece muito forçado Margutti (Estudos Filosóficos, UFSJ, n.
atribuir à pobreza do romantismo 5, 239-246, 2010):
francês a adoção do esteticismo pelo
“O livro de Mario Vieira de Melo aponta
brasileiro. Esse romantismo não era
uma direção para o estudo da cultura
em França mais pobre que em outros
brasileira. Que linha seguir? Começar
lugares da Europa. Além do mais, não
pelo exame da visão romântica do
se pode dizer que o brasileiro não é
bom selvagem concebida por Rousse-
pouco sensível às questões morais,
au e depois enfrentar a interpretação
pois, diz Margutti: “nossos estudos
terceiro-mundista assumida pelo desen-
revelam que o brasileiro não é pouco
volvimentismo. Também é importante
sensível às qualidades menos visíveis
construir uma visão ampla de cultura
da alma” (p. 156).
não reduzindo o desafio do progresso
Apesar de longa lista de pontos frá- ao domínio da técnica, repensando as
geis da filosofia de Vieira de Mello, questões éticas como sugeriu no ca-
que Margutti volta a mencionar no pítulo quarto. No capítulo quinto ele
capítulo final, ou conclusão, ele valo- reduz a influência européia no Brasil
riza o esforço que Vieira de Mello fez às ideias românticas do século XIX,
para entender a realidade nacional. O não considerando o impacto de outras
filósofo e diplomata Vieira de Mello tradições filosóficas e literárias. Este é
analisa inúmeros problemas da Eu- um aspecto a contornar. Há outro pro-
ropa, Estados Unidos e do Brasil de blema na proposta de Vieira de Mello: o
forma independente, “voltada para desconhecimento ou desvalorização da
uma crítica desassombrada do mundo discussão ética presente na renascença
contemporâneo” (p. 178). portuguesa. Melhor seria entender o sé-
culo XVI, em Portugal, como uma forma
Por ocasião do lançamento, em 2009, da de tratar os ideais modernos, rejeitando
terceira edição de Desenvolvimento e a moral protestante em nome da cató-
Cultura, o problema do esteticismo no lica. Além disto, o pombalismo (século
Brasil indicamos que o diplomata filó- XVIII) não se explica, como sugere o
sofo Mário Vieira de Mello (1912-2006) autor, por uma adesão acrítica à cultura
tentava aplicar sua análise cultural francesa. O movimento parece ser uma
à realidade brasileira e avaliava que revisão do chamado segundo período
os problemas fundamentais do país do contra-reformismo lusitano (século
vinham da ausência de discussão ética, XVII) e do estreitamento do debate
que ele atribuía à herança do romantis- ético que ele produziu. O século XVII
mo francês do século XIX e da forma em Portugal caracterizou-se por uma
como nossa elite assumiu os ideais do ética centrada no combate à riqueza e
renascimento. Para Viera de Mello, esta ao sexo além da função reprodutiva.
hipótese não fora adequadamente con- A aproximação dos brasileiros do ro-
siderada, pelo menos até o momento, mantismo francês no século XIX foi,
pelos estudiosos da cultura brasileira. ao contrário do que sugere Vieira de
Em resenha daquele livro compilamos Mello, um esforço de nossa elite para
suas sugestões e indicamos, à luz se afastar da influência portuguesa e
dos últimos estudos da cultura luso- não uma rota sugerida pelos lusitanos.
-brasileira, o que nos parecem ser as No último capítulo outra dificuldade: o
dificuldades de sua hipótese. Eis o autor não só superestima a destruição
que comentamos na ocasião destacan- da moralidade católica pelo romantis-
do aspectos do pensamento de Vieira mo francês, porque o tradicionalismo
de Mello não mencionados por Paulo romântico preserva este modelo moral,

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como desconhece o impacto decorrente de Margutti, parece ter um ponto muito
da escola culturalista no último século. discutível, como já tive oportunidade de
No seio do culturalismo há a superação detalhar e m outra oportunidade, tratar
do estreitamento moral do contra- as mundivisões indígenas e africanas
-reformismo e da moral frouxa do como componentes de uma construção
romantismo. Contudo, o entendimento filosófica alternativa às filosofias euro-
de uma crise de valores que marca o peias, cujas análises são consideradas
pensamento europeu no século XX eurocêntricas. Isso faz Margutti com
(do que também se dá conta Ortega base nos estudos de Walter Mignolo.
y Gasset) e nos influencia parece um Em síntese, parece mais adequado
problema que (...) precisa ser mesmo tratar a tradição filosófica brasileira,
considerado” (p. 245/6). realmente pouco considerada e estu-
dada como ele muito bem diz, como
Como avaliar o cuidadoso trabalho
parte da grande tradição filosófica do
de Margutti? Pode-se dizer que sua
ocidente, para a qual trouxe contri-
crítica tocou no essencial: a fragilidade
buições pouco valorizadas, mas reais,
das interpretações de autores clássicos
das quais são exemplos entre outros
nasceram da falta de estudo sistemático
tantos, a obra filosófica de Gonçalves de
da tradição filosófica europeia e mesmo
Magalhães e Eduardo Ferreira França,
dos estudos que se fizeram no Brasil nas
para o ecletismo espiritualista, Tobias
últimas décadas. Vieira de Mello se vale
Barreto, para o neokantismo, Farias
de comentadores de autores clássicos,
Brito para o espiritualismo e Miguel
mas deixa de fora muita coisa impor-
Reale para a renovação do culturalismo
tante, ou contraposições sérias que
e sua aplicação à Filosofia do Direito.
fragilizam sua análise. Parece que faltou
a Margutti reconhecer que boa parte de De todo modo, mesmo com as lacunas
nossas dificuldades (da tradição brasi- e pontos controversos anteriormente
leira) estão mesmo na falta de discussão assinalados, não se pode desmerecer
e entendimento da problemática ética, o esforço e a cuidadosa análise que
como disse Vieira de Mello, embora Margutti faz do pensamento de Viei-
isso não signifique assumir as razões ra de Mello e o apoio que lhe deu o
por ele elencadas para essa ausência de Conselho Editorial da Coleção FAJE,
debate ético. Margutti menciona ainda reconhecendo o valor do livro, para o
duas perspectivas de análise, que diz desenvolvimento da filosofia brasileira.
retirar de Humberto Maturana, mas que
são as mesmas indicadas por Kant na
introdução da Crítica da Razão Pura e
desenvolvidas por neohegelianos como
Rodolfo Mondolfo (a transcendente e a José Mauricio de Carvalho
transcendental). Finalmente, da leitura IPTAN- São João del-Rei - MG

503
SOUSA, Maria Celeste de. Comunidade ética: capaz de construir com os outros um
sobre os princípios ontológicos da vida social em mundo autenticamente humano. O
Henrique Cláudio de Lima Vaz. São Paulo, Loyola, trabalho, por sua vez, pensado a partir
2014. 215p. (Coleção Estudos Vazianos) ISBN da dialética hegeliana do senhor e do
978-85-15-04168-8. escravo, também se apresenta como
lugar da mediação entre os sujeitos.
Maria Celeste é graduada, mestre e Surge, então, a necessidade de superar
doutora em filosofia. Atualmente, le- relações de trabalho nas quais ocorre
ciona e coordena o Grupo de Estudos reificação e de pensar o trabalho como
Vazianos na Faculdade Católica de realidade capaz de promover, através
Fortaleza. Também é professora na de relações fundadas na reciprocidade,
rede pública de ensino. Ao escrever a realização da pessoa no seu encontro
o livro, que surgiu a principio como com o outro. Nesse sentido Celeste afir-
tese de doutorado, seu maior interesse ma que “pelo trabalho, o sujeito toma
consistia em compreender, a partir das consciência de que não é uma coisa
obras e artigos do filósofo brasileiro entre as outras coisas, mas consciência
Henrique Cláudio de Lima Vaz, “o livre, capaz de transformar o mundo
conceito de comunidade ética como ho- a partir de si mesmo, dando-lhe um
rizonte de sentido da vida social”(p.16). sentido” (pp.36-37)
Ao se propor manter fiel ao método Contudo, a universalidade do reco-
dialético, Maria Celeste divide o livro nhecimento, que tem lugar através da
em três partes, a saber: a expressão palavra e do trabalho, é negada pelo
ontológica da comunidade ética, a ex- momento da particularidade. Celeste
pressão reflexiva da comunidade ética identifica este momento como sendo
e a expressão ética da comunidade. àquele no qual acontece “a mediação
Cada uma delas está articulada a partir das ciências sociais humanas, em que
dos momentos da universalidade, da o sujeito metodicamente abstrato é o
particularidade e da singularidade. que está presente no reconhecimento
Na primeira parte, a autora apresenta intersubjetivo” (p.40).
a relação de intersubjetividade como
A modernidade confere à cultura
sendo o invariante ontológico a partir
ocidental novo horizonte simbólico a
do qual a comunidade ética pode ser
partir do qual as relações humanas
definida. Trata-se, segundo ela, de
são pensadas. Esse novo horizonte se
pensar “a experiência em que a pessoa
caracteriza, entre outras coisas, pela
reconhece-se a si mesma como ‘ser-
afirmação da subjetividade como cons-
-com-os-outros’ e compreende que é
trutora de sentido, pela identificação da
pessoa na medida em que reconhece
relação sujeito-objeto como pressuposto
o outro como outro eu” (p.23)
fundamental da relação do homem
O reconhecimento apresenta-se, nesse com a natureza e com os outros seres,
primeiro momento, como chave para e por uma nova concepção de “tempo
se pensar a intersubjetividade. Investi- socialmente-mensurável”(p.42) Nesse
gado a partir da dimensão de univer- contexto, surgem as ciências humanas
salidade, ele se dá graças à mediação que se agrupam no pólo das ciências
da linguagem que têm lugar através naturais explicativas ou no pólo das
da palavra e do trabalho. Compreen- ciências hermenêuticas compreensivas.
dido como ser de linguagem, é pelo Ao discorrer sobre a história e a so-
diálogo que o homem transcende a ciologia, Celeste defenderá, a partir da
relação meramente objetiva e se torna posição assumida por Lima Vaz, que

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uma autêntica reflexão a respeito da A expressão reflexiva da comunidade,
intersubjetividade deve avançar para por sua vez, tema da segunda parte
além das ciências naturais na direção do livro, tem como objetivo explicitar
da compreensão própria das ciências “a inteligibilidade volitiva do consenso
hermenêuticas. Contudo, as ciências social”(p.76). Trata-se nesse caso, de
hermenêuticas são fragmentarias, não expor, a partir da noção de consen-
conseguem pensar o ser humano como so, “a causa eficiente, ou a dialética
totalidade. Em conseqüência, pensar da liberdade imanente à relação de
a intersubjetividade como invariante reciprocidade”(p.76). Para tanto, Ce-
ontológico da comunidade ética supõe leste pensa o consenso a partir dos
também avançar além das ciências her- momentos dialéticos da universalidade,
menêuticas em direção a outro nível de particularidade e singularidade.
compreensão: a compreensão filosófica
ou transcendental. A forma universal do consenso é pen-
sada a partir do fenômeno do ethos.
Ora, para Celeste os momentos da Este se caracteriza por possuir uma
universalidade e da particularidade estrutura dual: é ao mesmo tempo
devem ser suprassumidos na forma individual e social. Enquanto coex-
singular do reconhecimento. Ela, então, tensivo à cultura, o ethos apresenta-se
propõe retomar os “dados obtidos pelas
simultaneamente como espaço habi-
mediações anteriores [momentos dia-
tável, como segunda natureza para o
léticos] para pensá-los de forma trans-
homem, e também como hábito. Pen-
cendental” (p.52). Trata-se de pensar
sado a partir da dialética fundamental
agora, filosoficamente, a categoria da
entre tradição e história, o ethos se
intersubjetividade a partir do paradoxo
manifesta “na sociedade na forma de
do encontro entre sujeitos. Encontro
costumes” (p.85). Através de processos
esse que pressupõe necessariamente a
educativos de socialização, os costu-
dialética da identidade na diferença e que
mes são interiorização pelos sujeitos
só pode ser pensado de modo adequado
a partir da “afirmação filosófica da co- que, ao agirem de acordo com o ethos
munidade como espaço transcendental (costume), adquirem o hábito (héxis)
para o encontro humano” (p.61). ético e formam progressivamente a
consciência moral. A universalidade
A unidade entre os sujeitos, constituti- do consenso tem lugar aqui graças a
va da comunidade ética, apresenta-se sociabilidade humana. Compreendida
como fruto dos atos espirituais. É como como o “resultado da intercausalidade
ser inteligente e livre que o ser humano espontânea entre o reconhecimento e o
se abre necessariamente à relação com consenso no horizonte do ethos” (p.97),
os outros. Como mostra Celeste, “é o ser a socialização do sujeito e a formação
ou o espírito no sujeito que o impulsio- de sua consciência moral torna possível
na a acolher o outro e a estabelecer com a reciprocidade fundada no consenso.
ele uma relação de reciprocidade ou de
reconhecimento”(p.68). Desse modo, a Contudo, o momento da universalidade
expressão ontológica da comunidade, é abstrato. Ele é negado pelo momento
de acordo com a qual, o reconhecimento da particularidade. Neste são conside-
constitui-se como invariante ontológico radas uma multiplicidade de condições
definidor da comunidade ética, revela que caracterizam a situação e interferem
“a essencial sociabilidade humana te- no exercício da razão prática. Celeste
cida pela comunhão das consciências recorda aqui que a modernidade se
que criam entre si os diversos fios in- caracteriza pela primazia da razão téc-
terativos por meio da linguagem”(p.69) nica. A práxis é submetida aos ditames

505
da poiesis cujo fim próprio é a produção veis estruturais da sociedade”(p.116). A
de objetos. A noção clássica de práxis formação da consciência cívica mostra-
como energeia desaparece. Também o -se, pois, como fundamental para a
conceito aristotélico de virtude perde o constituição de sujeitos políticos capazes
seu sentido mais próprio. O predomínio de edificar uma comunidade ética na
do modelo hipotético-dedutivo de ra- qual a reciprocidade das relações possa
cionalidade operou ainda uma ruptura garantir o reconhecimento da dignidade
entre ética e política. Em conseqüência, dos sujeitos.
evidencia-se na sociedade moderna o Finalmente, na terceira parte do livro,
vazio ético e a inversão “do fundamento intitulada “A expressão ética da co-
da sociabilidade humana” que “centra- munidade”, Celeste procura mostrar
da na comunidade, veio a centralizar-se de que modo Lima Vaz organiza os
no indivíduo”(p.101) definido a partir “invariantes conceituais” da vida ética.
de suas necessidades e carências. No Ora, para Celeste, no primeiro capítulo,
momento da particularidade, torna-se, tratava-se de explicitar a idéia de co-
então, necessário estabelecer distinção munidade ética na sua universalidade
entre os princípios causais e princípios ontológica. Contudo, esse primeiro
condicionantes da ação. Em meio às momento é abstrato. Logo, é necessá-
varias condições, os princípios univer- rio pensar como se dá efetivamente,
sais do reconhecimento e do consenso através da práxis comunitária, a relação
devem se particularizar para que seja de reciprocidade. Este foi o tema do
garantida a afirmação da dignidade segundo capítulo. Contudo, a consci-
de cada sujeito como membro da co- ência da sociabilidade humana conduz
munidade ética e também a formação ao questionamento a respeito do que
de um consenso social expressão da é capaz de garantir a estabilidade da
consciência moral compartilhada. relação entre os sujeitos e a comuni-
dade. Surge, então, a necessidade de se
As formas universal e particular do
pensar a questão das instituições e, de
consenso são suprassumidas no mo-
modo especial, da instituição política
mento da singularidade. Nele tem lugar
compreendida como “forma universal
a consciência moral social compreendida
do bem comum”(p.127).
como “consciência expressiva do con-
sentimento interpessoal na sociedade” Ora, o terceiro capítulo, ao partir
(p.108). Nela se evidência, portanto, “a da “inteligibilidade universal do
forma fundamental de unidade e identi- político”(p.127), mostra como no mo-
dade da comunidade ética”(p.109). Ora, mento da universalidade a idéia de
“o grau mais elevado do exercício da justiça deve ser compreendida tanto
liberdade interpessoal” (p.113) deve ser como virtude quanto como lei, e de
pensado, segundo Celeste, como exercí- que modo o direito apresenta-se como
cio da consciência cívica. As instituições norma universal. Segundo Celeste,
devem, então, assumir a responsabi- Lima Vaz pensa a política “como a
lidade pela formação dos indivíduos. ‘ciência diretriz’ da vida comunitária
O ato educativo precisa conduzir à pautada pela norma universal do bem
formação da “identidade ética social comum que é o direito” (p.134). Em
possibilitadora da relação recíproca en- consequência, “justiça e direito são, [...],
tre os indivíduos na sociedade”(p.115). as duas categorias que fundamentam a
Em conseqüência, a cidadania aparece sociedade política” (p.130).
como o resultado “do continuo e criativo A universalidade da justiça e do direito,
processo de educação em todos os ní- no entanto, é negada dialeticamente

506
pelo momento da particularidade. A reconhecimento e consenso constitui a
situação se apresenta como mediadora prática da justiça”(p.167).
entre a universalidade da justiça e a
Como é possível perceber, o livro
singularidade do ato justo concreto.
tem o mérito de articular importan-
Isso significa que “a efetivação da
tes elementos que permitem pensar
justiça (dike) na situação histórica só é
de modo sistemático o conceito de
possível por meio da prática virtuosa
comunidade ética. Por outro lado,
dos sujeitos, que decidem consciente-
colocamos a seguinte questão: uma
mente evitar o hábito injusto e praticar
rígida fidelidade ao método dialético,
o ato justo pela aceitação da equidade e
tal como é proposta no livro, não
da igualdade como presentes no ethos”
colocaria em risco a compreensão do
(p.140). Ora, de acordo com Celeste,
pensamento de Lima Vaz? Por exemplo:
para Lima Vaz, a melhor forma de or-
seria mesmo possível, como é feito no
ganização política para a efetivação da
primeiro capítulo, identificar os níveis
praxis justa é a democracia. O exercício
da pré-compreensão, da compreensão
da democracia exprime “a ‘vitória da
explicativa e da compreensão filosófica
liberdade’ sobre o poder despótico e
com, respectivamente, os momentos
a intrínseca relação entre o ético e o
dialéticos da universalidade, da particu-
político” (p.152)
laridade e da singularidade? Não seria
Finalmente, os momentos da universa- temerário fazer uma separação entre ex-
lidade e da particularidade são supras- pressão ontológica e expressão reflexiva
sumidos no momento da singularidade identificando o primeiro momento com
no qual é afirmada a dignidade humana o reconhecimento e o segundo com o
como “forma concreta do reconheci- consenso? Este questionamento, no en-
mento universal da pessoa” (p.127). tanto, não pretende colocar em dúvida
Apenas o reconhecimento da digni- a relevância do trabalho realizado. Ao
dade de cada membro da sociedade contrário. Sublinhamos a importância
torna possível a realização concreta da da obra para o estudo e a reflexão a
justiça e, consequentemente, a efetiva respeito do pensamento de Henrique
realização da comunidade ética. Nesse Cláudio de Lima Vaz, autor conside-
sentido, Celeste afirma que “o conceito rado como um dos principais filósofos
de dignidade humana expressa a efetiva- brasileiros do século XX.
ção da liberdade e da consciência moral
com que os indivíduos reconhecem
a dignidade do outro como outro eu
e consentem em conviver comunita- Claúdia Maria Rocha de Oliveira
riamente. Esse vínculo recíproco de FAJE/BH

507
PORRO, Pasquale. Tomás de Aquino: um perfil datação, e assim por diante. Em face
histórico-filosófico. Trad. Orlando Soares Mo- de tamanho desafio, podemos de saída
reira. São Paulo: Edições Loyola, 2014, 394 afirmar que o livro é muito proveitoso
p.ISBN 9788515041190. para o leitor que pretende se iniciar
no pensamento filosófico (voltaremos
I. Pasquale Porro é reconhecido inter- a essa restrição adiante) de Tomás de
nacionalmente como um dos mais com- Aquino. Não somente ele encontrará
petentes leitores atuais de Henrique de uma introdução atualizada à narrativa
Gand (c. 1240-1293). Desde sua clássica da vida deste último, mas igualmente
monografia sobre a metafísica do Dou- poderá ler a cada passo dessa vida uma
tor Solene1, o autor vem desenvolvendo consideração acerca das obras então
diversos trabalhos sobre a filosofia na produzidas.
segunda metade do século XIII, donde
Dito isso, acredito que seria vã a ten-
muitos textos sobre Tomás de Aquino.
tativa de seguir passo a passo nessa
Ao que parece, o ápice destes últimos é
resenha a sucessão de temas tratados
atingido no livro ora resenhado, que se
no livro, pois nos resignaríamos a uma
apresenta, ainda em seu proêmio, como
mera listagem dos assuntos levantados
uma “introdução histórico-filosófica”
– o que, no mais, pode ser feito pelo
(p. 9) ao Doutor Angélico.
próprio leitor com o livro em mãos2.
Nessa obra, em poucas palavras, Por- Sendo assim, mais do que acompanhar
ro acompanha o desenvolvimento do o caminho seguido por Porro em sua
pensamento filosófico de Tomás tendo narrativa, pretendo discutir alguns ele-
como ponto de apoio uma narrativa mentos teóricos em que ele se baseia na
em sucessão cronológica da sua vida. sua interpretação de Tomás de Aquino
Decerto, muitos dos detalhes da mo- e na exposição ‘histórico-filosófica’ desta
vimentada vida acadêmica do domi- última por ele proposta. Para tanto,
nicano – das suas várias viagens pela seguirei uma pista deixada pelo prof.
Europa, das diversas disputas acadê- Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento
micas e eclesiásticas em que se inseriu, da orelha do volume: “[o] livro de
das datações das suas inúmeras obras Pasquale Porro tem parentesco com
– permanece, na melhor das hipóteses, dois clássicos sobre a vida e a obra
no campo da reconstrução narrativa, de Tomás de Aquino: o primeiro, de
baseada em documentos esparsos e na
minuciosa análise crítica destes últimos.
2
Ainda assim, o autor faz jus à tarefa e Para um apanhado geral dos temas abor-
se aproveita, em tal reconstrução, das dados no livro, cf. as seguintes resenhas
da edição original italiana: PAOLETTI, M.
mais recentes fontes bibliográficas a
P. “Recensione di Porro, Pasquale, Tommaso
respeito. Além disso, sempre se toma o d’Aquino. Un profilo storico-filosofico”. Roma,
cuidado de deixar claros os limites das Carocci, 2012, p. 536”. Recensioni Filosofiche
reconstruções propostas – certas datas 20 maggio 2013. Online: http://www.recen-
são apontadas como somente prováveis, sionifilosofiche.info/2013/05/porro-pasquale-
a sucessão proposta entre as obras mui- -tommaso-daquino-un.html (consultado em
08/2015); e CARVALHO, M. S. de. “Recensão
tas vezes é destacada como dependente
de Pasquale Porro, Tommaso d’Aquino…”.
unicamente de fatores internos a elas, Revista Filosófica de Coimbra 23, 246 (2014),
sem qualquer indicação externa de sua p. 503-4. Aproveito para destacar que, na
presente resenha, restrinjo meus comentários
ao texto de Porro tal como apresentado na
1
Cf. PORRO, P. Enrico di Gand. La via delle propo- sua edição brasileira, sem quaisquer menções
sizioni universali. Bari: Levante, 1990. à edição italiana.

508
Jean-Pierre Torrell, Iniciação a Tomás de uma de suas mais importantes fontes
Aquino, [...]; e o segundo, de Etienne para o estabelecimento da “vida e da
Gilson, Le Thomisme [...]. Como o livro cronologia das obras de Tomás” (p.
de Torrell, o de Porro adota uma ordem 13, nota 1). De fato, Torrell ressurge
de exposição histórica, inserindo nas constantemente em toda a extensão
etapas da vida de Tomás de Aquino as do livro como uma referência central,
diferentes obras escritas por ele. Como não tanto para o estudo interno das
Le Thomisme, de Gilson, o perfil traçado obras comentadas por Porro, mas pre-
por Porro aborda a obra de Tomás de cisamente para discussões acerca de
Aquino sob o ângulo filosófico, dei- datação e estabelecimento da crono-
xando de lado o que seria de exclusiva logia. Certamente, Porro se aproxima
pertinência teológica, como a conside- bastante de Torrell ao tomar como fio
ração da Trindade e da Encarnação”. condutor de seu estudo uma recons-
trução narrativa da vida de Tomás de
Parece-me esse um bom caminho para
Aquino e destacar, a cada período, os
avaliar o livro de Porro, a saber, ver
elementos filosóficos mais marcantes
como ele se relaciona com outros textos
apresentados nas obras possivelmente
que igualmente se propuseram a uma
provenientes dessa etapa da vida do
discussão abrangente sobre a obra de
Doutor Angélico. Tão marcante quanto
Tomás. Sendo assim, no item II, discu-
seja tal proximidade de método exposi-
tiremos alguns aspectos da exposição
de Porro tendo como termos de com- tivo em suas respectivas apresentações
paração os citados Gilson e Torrell, mas da vida e obra de Tomás de Aquino – e,
também Henri-Dominique Gardeil. Em mais, tão influente quanto seja Torrell
seguida, no item III, problematizarei a para o estabelecimento da cronologia
relação entre a interpretação de Tomás que vemos em Porro –, as semelhanças
de Aquino proposta por Porro e aquela entre ambos param por aí.
de Gilson (não somente a que lemos Com efeito, pode-se notar a distância
na última edição do Le Thomisme, mas de seus projetos autorais pelos próprios
também a que depreendemos a partir subtítulos dos respectivos livros. En-
de outras obras). Como veremos, talvez quanto Torrell se propõe a apresentar
o autor, em determinados momentos de ‘a pessoa e a obra’ de Tomás, Porro
sua exposição, não se afaste de Gilson restringe seu objetivo ao estabelecimen-
tanto quanto crê. Por fim, no item IV, to de um ‘perfil histórico-filosófico’.
farei uma avaliação geral do livro e De fato, o autor francês tem mais de
apontarei alguns problemas de cunho, biógrafo do que o italiano, pois há
principalmente, editorial. diversos momentos de seu texto em
II. A interpretação do prof. Ribeiro do que busca depreender, para a além
Nascimento é certificada pelo próprio do sisudo latim escolástico (tanto das
Porro quando nos diz que Iniciação obras filosóficas e teológicas, como dos
a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e testemunhos da época), aquela que seria
sua obra de Jean-Pierre Torrell (que a ‘personalidade’ de Tomás de Aquino,
possuímos em tradução para o por- e dá ao texto um tom mais literário –
tuguês brasileiro)3 foi, entre outros, que, de modo algum, retira a ele seu
rigor acadêmico.
3
TORRELL, J.-P. Iniciação a Santo Tomás de Essa é uma tentativa que não encon-
Aquino. Sua pessoa e sua obra. Trad. Luiz tramos em Porro. Pelo contrário, o
Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, ‘histórico’ de seu subtítulo aponta para
20154 [1999]. o caráter estritamente técnico de seu

509
trabalho: acerca da vida de Tomás, só mas antes se limita à consideração (já
se fala aquilo que pode ser diretamente bastante ampla, diga-se de passagem)
depreendido de documentos da época. dos elementos filosóficos desta última.
Se há alguma tentativa de ultrapassar
Embora o prof. Ribeiro do Nascimento
tais fontes diretas, isso se dá apenas em
veja na atitude de Porro algo de Gilson,
discussões hipotéticas acerca da possí-
me parece que Torrell se aproxima mais
vel localização na narrativa histórica
deste último ao se utilizar da narrati-
de eventos dificilmente datáveis com
va histórica para buscar a verdadeira
alguma certeza. Assim, tão próximas
pessoa do Tomás religioso. Certamente,
quanto sejam em termos de cronologia,
em Le Thomisme, Gilson se abstém de
as narrativas de Porro e Torrell são
qualquer consideração deste tipo, mas
fundamentalmente distintas, pois pos-
quando nos voltamos para uma obra
suem finalidades diferentes: este busca,
como Le philosophe et la théologie, lemos
através de uma cuidadosa e academi-
que “[l]a philosophie chrétienne est
camente bem estabelecida narrativa,
une histoire qui se déroule à partir
atingir a ‘pessoa’ de Tomás, aquele
d’un terme immuable, situé hors du
se contenta com o estabelecimento da
temps et par là sans histoire”4 ou que
narrativa histórica tal como ela pode ser
“[d]ans une telle synthèse, tout part
depreendida das fontes documentais,
de la foi et y retourne”5. Para o Gilson
tendo por fim unicamente a própria
que aqui lemos, a história da filosofia
narrativa. Tão cativante quanto seja a
cristã é algo cuja narrativa se mostra
opção de Torrell, certamente a de Porro
necessária (o que ele magistralmente
é mais prudente do ponto de vista de
fez), mas que deve ser ultrapassado tão
uma história da filosofia.
logo possível em direção à fé imutável
Essa observação, porém, nos leva ao e atemporal. Da mesma maneira, a
ponto fundamental de distanciamento coerente e sedutora narrativa de Tor-
entre os dois autores. Seria injusto rell é, para ele, somente um passo em
considerar Torrell imprudente quanto direção à ‘pessoa’ de Tomás, um apai-
ao estabelecimento de uma ‘história xonado religioso. Nesse ponto preciso,
da filosofia’, uma vez que sua finali- Porro não poderia estar mais distante
dade não é uma tal narrativa. De fato, de Gilson e, consequentemente, de
para encontrar a ‘pessoa’ de Tomás Torrell, pois para o acadêmico italiano
de Aquino, Torrell atenta para toda a a narrativa histórico-filosófica já é um
‘obra’ do Doutor Angélico (lembremos fim em si mesmo – ao que parece, para
do subtítulo de seu livro), em seus ele, apresentar a filosofia de Tomás já é
aspectos filosóficos e teológicos. Po- expô-la de um ponto de vista históri-
rém, a narrativa resultante é, antes de co. Aquilo em que ele se aproxima de
tudo, a tentativa de ultrapassamento Torrell, por outro lado, é a escolha da
das obras do aquinate em direção à narrativa em sequência cronológica da
sua própria pessoa enquanto religioso vida de Tomás como base para a sua
e, em especial, enquanto frade domi- discussão histórico-filosófica, uma vez
nicano. Daí encontrarmos em Torrell
contínuas reflexões acerca da profunda
religiosidade que podemos depreender
4
GILSON, É. Le philosophe et la théologie.
Préface de J.-F. Courtine. Paris: Vrin, 20052
de textos aparentemente tão secos como
[1960], p. 208. [disponível em português:
os de Tomás. Porro, por outro lado, GILSON, É. O Filosófo e a Teologia. Trad. de
não se aproxima de tal pretensão. De Tiago José Risi Leme. São Paulo: Paulus,
fato, ele nem mesmo se volta para os 2008].
aspectos teológicos da obra de Tomás, 5
Op. cit., p. 194.

510
que seria igualmente possível, como nela a imposição externa de uma
faz o Gilson do Le Thomisme, produzir sistematização que não é própria ao
uma narrativa que discutisse temas pensamento de Tomás de Aquino. O es-
da obra do Doutor Angélico de um tudioso italiano, pelo contrário, prefere
ponto de vista histórico-filosófico, mas “tentar reconsiderar o pensamento de
ordenando a discussão tematicamente Tomás à medida que ia se formando,
e não a partir da vida do autor. Em percorrendo em ordem cronológica as
poucas palavras, se Porro compartilha várias fases de sua produção” (p. 12).
com Gilson a escolha por se ater à Como adendo, vale adicionar, a obra
filosofia e com Torrell a decisão de de Gardeil é enriquecida com longos
tomar por base de sua exposição uma trechos (com tradução bilíngue, na
cuidadosa narrativa da vida de Tomás última edição brasileira) de trabalhos
de Aquino, a sua concepção de história do Aquinate considerados importan-
da filosofia parece fundamentalmente tes para a compreensão de cada tema
distinta daquela de ambos. abordado, o que não ocorre no livro
Fixando-nos, porém, nesse ponto que de Porro, onde devemos nos contentar
ele compartilha com Torrell – a saber, com trechos citados esparsamente, sem
a decisão de discutir a obra do Doutor citações dos originais latinos.
Angélico tendo como fio condutor uma Vemos, portanto, como o Tomás de
narrativa de sua vida –, Porro se afasta Aquino de Porro interage complexa-
de outro clássico sobre o pensamento mente com estes três clássicos acerca
de Tomás que também possuímos do mesmo pensador escolástico: o Le
traduzido para o português brasileiro, Thomisme de Gilson, a Iniciação a Santo
nomeadamente a Iniciação à Filosofia de Tomás de Aquino de Torrell e a Iniciação
São Tomás de Aquino de Henri-Domi- à filosofia de São Tomás de Aquino de
nique Gardeil6. Nesta última, a vida Gardeil. Qualquer que seja a preferência
do Doutor Angélico surge unicamente do leitor atual quanto ao melhor viés
como uma curta etapa de introdução ao de abordagem introdutória à obra de
livro que, em seu corpo, é constituído Tomás de Aquino, o livro de Pasquale
por estudos divididos tematicamente Porro vem adicionar mais um elemento
acerca dos diversos aspectos da filosofia nessa discussão.
de Tomás de Aquino (nesta ordem,
sua lógica, cosmologia, psicologia e III. Feita essa rápida comparação entre
metafísica). Gardeil (assim como fez algumas das introduções disponíveis
o Gilson do Le Thomisme e como faria para o leitor contemporâneo (e, em
Porro) se mantém no campo da filo- particular, para o leitor brasileiro) de
sofia, mas (diferentemente de Torrell Tomás de Aquino, pretendo agora me
e Porro) toma como fio condutor de centrar em um elemento teórico em
sua reflexão uma ordenação de temas particular do livro de Porro, a saber,
da obra de Tomás e não uma narrativa sua relação com alguns aspectos da
da biografia deste último. interpretação do pensamento do Doutor
Angélico defendida por Gilson. Essa
Ainda no início de seu livro (pp. 11- relação com este último já é enunciada
12), Porro critica tal opção por ver por Porro ainda na introdução, quando
ele alerta (durante sua já citada recusa
6
de uma sistematização do pensamento
GARDEIL, H.-D. Iniciação à Filosofia de
de Tomás) para “o risco de repro-
São Tomás de Aquino. 2 vols. Prefácio de
François-Xavier Putallaz. Trad. de Cristiane duzir de modo artificial e antiquado
Negreiros Abbud Ayoub e Carlos Eduardo não o pensamento de Tomás, mas o
de Oliveira. São Paulo: Paulus, 2013. ‘tomismo’, ou seja, o modo como tal

511
pensamento foi interpretado e fixado, doutrina de Tomás de Aquino deixa
primeiro pelos comentaristas renascen- de ser verdadeiramente uma ‘filosofia
tistas e depois sobretudo entre o fim cristã’, tal como descrita por Leão XIII
do século XIX e os primeiros seis, sete na Aeterni patris8. Gilson simplesmente
decênios do século XX. Com efeito, admite – já em um momento avançado
a grande fama de Tomás de Aquino de sua carreira – que essa expressão não
está indubitavelmente ligada ao fato parece útil para uma exposição histórica
de a Igreja católica o ter eleito – com do pensamento de Tomás de Aquino.
uma decisão fixada pela Aeterni Patris, Ou seja, Gilson e Porro parecem estar de
mas confirmada também em tempos acordo com respeito a evitar a descrição
mais recentes – o ponto de referência da filosofia de Tomás de Aquino como
doutrinal mais autorizado para o pensa- cristã em um estudo histórico de sua
mento cristão” (pp. 11-12). Essa última obra. Porém, lembremos o que vimos
etapa do processo de formação de um há pouco: enquanto que para Gilson
tal ‘tomismo’ está fortemente ligada (assim como ocorria em Torrell) a his-
à concepção da filosofia de Tomás de tória é uma etapa em direção à filosofia
Aquino como ‘filosofia cristã’ defendida cristã, para Porro a narrativa histórica
por Étienne Gilson. Ou seja, pretender já parece um fim. Assim, ainda que
se afastar do ‘tomismo’ do século XX é, Gilson e Porro pareçam se aproximar ao
em grande parte, pretender se afastar rejeitar o uso histórico da caracterização
do Tomás de Aquino de Gilson. Minha da filosofia de Tomás como ‘cristã’, essa
pergunta é: Porro conseguiu fazê-lo? aproximação é superficial, uma vez que
Gilson a abandona na narrativa histórica
Como lembrava o prof. Ribeiro do somente para reencontrá-la além da
Nascimento, a relação de Porro com histórica, no verdadeiro tomismo que
o Gilson de Le thomisme é complexa: surge como filosofia cristã. Porro, por
conservando em seu estudo de Tomás outro lado, não tendo outro campo de
a centralidade da filosofia igualmente discurso senão aquele da história, pre-
preservada por Gilson, Porro se afasta tende abandonar tout court a descrição
deste último ao pretender apresentar da filosofia de Tomás de Aquino como
a obra do Aquinate por meio de uma ‘cristã’. Enfatizemos: o que está em jogo
narrativa cronológica. A recusa de nessa discussão não é a possibilidade de
Porro em enfatizar o caráter cristão do descrever a próprio Tomás de Aquino
pensamento do Doutor Angélico não (sua ‘pessoa’, como quereria Torrell)
necessariamente se traduz em um afas- como cristão; antes discute-se se sua
tamento do Gilson de Le Thomisme, uma filosofia seria corretamente descrita como
vez que este último admite em uma cristã. O ‘tomismo’ dos séculos XIX e
passagem presente na sexta edição de XX afirma que a filosofia de Tomás de
seu livro que “[l]’expression [sc. philo- Aquino é, principalmente, uma ‘filosofia
sophie chrétienne] n’étant pas de saint cristã’, enquanto que Porro (aliando-se
Thomas lui-même, et ayant d’ailleurs à historiografia de fins do século XX
provoqué d’interminables controverses, e início do XXI) pretende recusar tal
il est préférable de ne pas l’introduire rótulo (que, aliás, já era rejeitado por
dans un exposé purement historique Émile Bréhier por volta de 19309). Dito
du thomisme [...]”7. Nem por isso, a
8
Cf. GILSON, Le philosophe et la théologie,
20052, p. 176-7.
7
GILSON, É. Le thomisme. Introduction à la 9
Cf., por exemplo, BRÉHIER, É. “Y a-t-il
philosophie de saint Thomas d’Aquin. Paris: une philosophie chrétienne?”. Revue de mé-
Vrin, 20106 [1965; ed. original 1919], p. 14. taphysique et de morale 38.2 (1931), p. 133-62.

512
isso, reitero a pergunta: Porro é bem a metafísica do ser desenvolvida por
sucedido em se afastar dessa caracteri- Tomás surge, para Porro, como uma
zação da filosofia de Tomás de Aquino via em direção à teologia negativa.
como ‘filosofia cristã’? Vale destacar que essa interpretação
do ser como princípio, a uma só vez,
A resposta a essa questão é mais com- de uma metafísica positiva e de uma
plexa do que poderia parecer de saída. teologia negativa deixa transparecer a
Primeiramente, o autor italiano se es- possibilidade de, pelo menos no que
força logo no início de seu livro para diz respeito ao Comentário à Metafísica,
descrever Tomás de Aquino enquanto vermos o pensamento do Doutor Angé-
filósofo, isto é, como um pensador que, lico como ontoteologia. Torna-se clara,
ainda que não caracterizasse a si mesmo portanto, uma influência da leitura de
como ‘filósofo’, produziu um trabalho Martin Heidegger na reflexão de Porro
de caráter estritamente filosófico (dis- acerca de Tomás (cf. p. 287).
tinto, portanto, da religião e, princi-
palmente, da teologia também por ele Entretanto, ainda que Porro se afaste
elaborada). A bem dizer, ele produziu de Gilson ao descrever uma boa parte
e comentou obras filosóficas, além de da obra de Tomás de Aquino como
claramente descrever filosofia e teologia estritamente filosófica (sem qualquer
como ciências distintas e relacionadas. referência à teologia e, menos ainda, à
Tudo isso, nos diz Porro, é suficiente religião) e ao apresentar a possibilidade
para que seja possível uma “introdução de ler certos aspectos do pensamento de
histórico-filosófica” (que não reserve Tomás como ontoteologia, é igualmente
qualquer centralidade para religião notável que, por vezes, o autor deixe
e teologia) à obra do Aquinate (pp. passar alguns elementos, por assim
9-10). Ora, se assim for, está claro que dizer, ‘gilsonianos’ em sua leitura de
a filosofia de Tomás de Aquino não se Tomás de Aquino. Um exemplo claro
caracterizará, de modo algum, como ocorre quando, no contexto de uma
‘cristã’, uma vez que filosofia e religião discussão acerca das ideias divinas,
surgem aqui profundamente separadas. Porro afirma poder “perceber aqui toda
a distância entre a originária doutrina
Outro elemento no qual Porro se afas- platônica das formas (conhecida pelos
ta da ‘sistematização’ da filosofia de escolásticos por meio, sobretudo, das
Tomás de Aquino é a ênfase que ele objeções aristotélicas) e o exemplarismo
põe na consideração do ‘ser’ descrito cristão” (p. 75, grifo meu). Mais adian-
na metafísica e na teologia do Doutor te, lemos que “[d]ecerto, é verdade o
Angélico, considerando-o não tanto que afirmam muitos intérpretes, até
como um princípio positivo do conhe- recentes, de Tomás, ou seja, que ele
cimento, mas como o elemento central batizou e cristianizou a ética aristotélica,
de uma teologia fundamentalmente introduzindo Deus onde na realidade
negativa (cf. pp. 180, 188-9 e 231). Se quase não se fazia menção a ele; mas,
a proposta de Porro estiver correta, a francamente, isso é pouco mais que
centralidade da consideração metafísi- um truísmo ou uma obviedade que
ca da noção mais comum de ser está filosoficamente explica muito pouco”
não tanto em nos levar em direção a (p. 264, grifou meu). Tais passagens
um conhecimento positivo de Deus, ganham um fundo teórico mais claro
mas antes em possibilitar um conheci- quando, em meio ao estudo da Suma
mento maximamente geral e apofático contra os gentios, Porro nos remete à
daquilo que não podemos conhecer passagem “que levou Gilson a cunhar
afirmativamente. Em outras palavras, a feliz expressão ‘metafísica do Êxodo’

513
para designar não somente o pensa- de intelecção defendida pelo aquinate,
mento tomasiano, mas o escolástico Porro afirma que este último se opõe
em geral [...]” (p. 141). Ora, as expres- aos “defensores da doutrina da ilumi-
sões “exemplarismo cristão”, “batizou nação divina” (p. 93) e aos “defensores
e cristianizou a ética aristotélica” se (especialmente franciscanos) do que
ligam mal à distinção entre filosofia, Gilson chamou de ‘agostinismo avi-
por um lado, religião e teologia, por cenizante’, ou seja, a combinação do
outro, que Porro buscava estabelecer iluminacionismo agostiniano com a
(aquela exige uma ligação interna entre teoria aviceniana do dator formarum, que
filosofia e religião, esta rejeita uma tal se faz coincidir diretamente com Deus”
conexão). Tampouco se coadunam sem (p. 216, grifo no original). Ao descrever
problemas à distinção entre ‘filosofia Tomás de Aquino como um opositor da
positiva’ e ‘teologia negativa’ que cul- “doutrina da iluminação divina” ou do
minava na admissão de uma possível “agostinismo-avicenizante”, Porro está
descrição do pensamento de Tomás se referindo à intepretação da doutri-
como ‘ontoteológico’. Por outro lado, na da intelecção do Doutor Angélico
essas expressões são bem próximas proposta por Gilson no artigo Pourquoi
à descrição da metafísica do Doutor saint Thomas a critiqué saint Augustin11.
Angélico como “metafísica do Êxodo”. Decerto, tal artigo é referência inevi-
Ora, Gilson descreve essa metafísica tável em um estudo sobre a noção de
do Êxodo precisamente como a base intelecção em Tomás de Aquino. Isso
da filosofia cristã no seu L’esprit de la dito, a interpretação que aí lemos não
philosophie médiévale10! Assim, temos um deve ser admitida sem maiores consi-
impasse, pois ao mesmo tempo em que derações – de fato, ela não soava sem
Porro repreende os tomistas do século problemas em sua própria época12. Mais
XX por conceberem o pensamento de do que isso, parece ser precisamente por
Tomás como uma afirmação do ser seguir a leitura de Gilson que Porro,
de Deus e não verem aí uma busca ao discorrer a respeito da concepção
apofática por uma descrição de Deus de conhecimento estabelecida em Suma
enquanto ser, ele considera “feliz” aque- de teologia I, qq. 75-102, deixa de lado
la expressão de Gilson que justamente duas das etapas mais problemáticas
pressupõe uma caracterização positiva desse trecho, a saber, Suma I, q. 79, art.
de Deus como ser... Ou seja, apesar 4 e q. 84, art. 5. Nessas duas etapas da
de sua clara intenção de se afastar do Suma de teologia, são discutidos por To-
tomismo cristão do século passado, más justamente a necessidade de uma
Porro claudica em sua avaliação do iluminação e de uma participação para
pensamento do Doutor Angélico: ele que o homem possa conhecer intelectu-
procura unir elementos de interpreta- almente. O interessante, em ambos os
ções fundamentalmente divergentes. trechos, é que o Aquinate não rejeita a
Esse não é, porém, o único elemento
de seu estudo que Porro vai buscar 11
GILSON, É. “Pourquoi saint Thomas a
em Gilson. Com efeito, em momentos critiqué saint Augustin”. Archives d’histoire
nos quais discorre sobre a concepção doctrinale et littéraire du Moyen Âge 1 (1926/7),
p. 5-127. [edição brasileira: GILSON, É. Por
que são Tomás criticou santo Agostinho / Avicena
10
GILSON, É. L’esprit de la philosophie médié- e o ponto de partida de Duns Escoto. Trad. T. J.
vale. 20083 [1932], p. 50-1. [edição brasileira: R. Leme. São Paulo: Paulus, 2010].
GILSON, É. O espírito da filosofia medieval. 12
Cf. DE WULF, M. “L’augustinisme ‘avicen-
Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: nisant’”. Revue neo-scolastique de philosophie
Martins Fontes, 2006]. 29 (1931), p. 11-39.

514
necessidade de iluminação divina ou (em uma “metafísica do Êxodo”) ou as
participação em Deus para que ocorra a afasta (opondo uma metafísica positiva
intelecção, mas antes parece admitir as do ser a uma teologia negativa). A meu
noções de ‘iluminação’ e ‘participação’, ver, um leitor atento poderá encontrar
interpretando-as a seu modo. Essas reflexos dessa indecisão em diversos
passagens, costumeiramente deixadas momentos do livro.
de lado pelos leitores atuais de Tomás
IV. Essas observações não significam
de Aquino13, são igualmente ignoradas
que não haja interesse na leitura do
por Porro. Ou seja, ao seguir de perto
texto, pelo contrário. Ele se torna
o ‘tomismo’ de Gilson (e, em geral, o
interessante precisamente na medida
‘tomismo’ novecentista, do qual ele
em que põe todas essas dificuldades,
propunha se afastar), Porro termina por
interagindo (com maior ou menor
ignorar dois elementos extremamente
problemáticos da filosofia de Tomás proximidade) com diversas introduções
de Aquino que têm cada vez mais ao pensamento de Tomás de Aquino
sido postos em evidência nos últimos e, para além disso, com diferentes
anos. Uma menção a tais temas – ainda tentativas de interpretação da obra
que passageira, dadas as dimensões de do Doutor Angélico. Decerto, o leitor
uma introdução à filosofia do Doutor deverá estar atento para as diversas de-
Angélico – poderia ser muito útil cisões do autor – e, mais, para os vários
para o leitor iniciante de Tomás, pois momentos em que o autor parece trair
chamaria sua atenção para problemas suas próprias decisões metodológicas.
intrínsecos das concepções de homem Essa advertência, no entanto, é válida
e de conhecimento humano produzidas para qualquer obra de interesse.
por este último. Por fim, chamo atenção para certos
Em resumo, não obstante sua preten- problemas editoriais recorrentes no
sa recusa em se aproximar daquela volume: a flutuação entre as versões
leitura de Tomás de Aquino desen- portuguesa e italiana dos nomes de
volvida pelos ‘tomistas’ do século certos autores medievais (encontramos,
XX (em especial, por Étienne Gilson), por exemplo, na p. 29 “Henrique de
Porro termina por adotá-la em pontos Gand” e, poucas linhas depois, “En-
fundamentais de sua exposição. Essa rico”), nomes não traduzidos (como
aproximação, conjugada à sua tentativa “Pier Damiani”, na p. 185, que seria
de se afastar dessa mesma tradição “Pedro Damião”), nomes errados (na p.
interpretativa, resulta na impressão 344 o autor do Correctorium ‘Sciendum’
de uma fundamental indecisão com é referido como “Roberto de Oxford”,
respeito à sua avaliação da obra de enquanto que seu nome correto seria
Tomás de Aquino. No fim, não sabe- “Roberto de Orford”), problemas de
mos se Tomás une filosofia e religião tradução do latim (“adultero” traduzido
como “ao adulto”, na p. 235). Um pro-
blema mais sério pode ser encontrado
13
Cf., no que diz respeito a Suma I, q. 84, na p. 281, onde há uma confusão na
art. 5: BORING, W. P. “Revising our Ap- explicação do par secundum adiacens
proach to ‘Augustinian Illumination’. A e tertium adiacens. Estes são erronea-
reconsideration of Bonaventure’s Quaestiones mente descritos como “uso predicati-
disputatae de scientia Christi IV, Aquinas’s
Summa theologiae Ia.84, 1-8, and Henry of
vo e o uso existencial” do verbo ser,
Ghent’s, Summa quaestionum ordinarum, Q. respectivamente, o que se exemplifica
2, art. 1, 2”. Franciscan Studies 68 (2010), pp. assim: “tertium adiacens: ‘Sócrates é’” e
39-81 (especialmente, p. 45-56). “secundum adiacens: ‘Sócrates é branco’”.

515
A explicação, porém, está claramente que frequente a lógica medieval, para
invertida, pois em ‘Sócrates é’ o verbo um iniciante (o público alvo do livro)
‘ser’ é utilizado como secundum adia- ela pode ser a origem de incontáveis
cens (o que Porro denomina, não sem dificuldades.
complicações, como “uso existencial”)
e em ‘Sócrates é branco’ como tertium
adiacens (o que o autor chama de “uso
predicativo”). Ainda que a inversão Gustavo Barreto Vilhena de Paiva
seja rapidamente notada por um leitor Doutorando USP

SPAEMANN, Robert. Pessoas. Ensaio sobre a ela é dotada de algumas características


diferença entre algo e alguém. Coleção Ideias. essenciais que iremos tratar.
São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015. ISBN
978-85-7431-681-9. 1. A designação de “pessoas”
O gênero ao qual as pessoas fazem
Robert Speamann nasceu em Berlim em parte é um gênero natural, ao qual
1927. É graduado em Filosofia e Teolo- demanda uma série de obrigações e
gia em Münster, München e Friburgo. um status de inviolabilidade. Portanto,
Sua docência se deu em Filosofia nas o conceito de pessoa implica uma di-
Universidades de Münster, Stuttgart, mensão normativa, na qual a teologia
Heidelberg e München. Recebeu o cristã ocupa um papel fundamental. O
título honoris causa e o prêmio Karl indivíduo, enquanto parte da “pessoa”,
Jaspers. Suas obras foram traduzidas não é essencial, mas se torna, enquan-
para treze idiomas. O autor começa to parte realizada, mais que a mera
apresentando que ser pessoa implica individualidade. É uma totalidade em
no reconhecimento recíproco que se dá relação; é a razão, o órgão que age em
a partir do evento comunicativo, não prol da busca do universal, do querer,
enquanto indivíduos, mas enquanto da luz. Esse querer diz respeito a um
espécie. O ser humano é aquele capaz conhecimento que é o coração, base
de refletir, de ir para dentro de si e de fundamental para a constituição cristã
sair de dentro de si com uma posição do ser pessoa. Os termos grego, proso-
excêntrica, que se expressa na lingua- pon e latino, persona, no fundo, querem
gem. O evento comunicativo está na dizer a mesma coisa: um compromisso
base daquilo que se chama pessoa. O com o papel que desempenhamos. O
estatuto de pessoa é fonte do direito: o portador desse papel pressupõe a na-
direito de ser alguém. Falar em pessoas tureza humana. O conceito de “pessoa”
implica em seres humanos, com quali- implica um esforço de distanciamento,
dades bem distintas, e com um modo de liberdade com relação a si mesmo.
bem determinado de tratamento. Cada O “ser pessoa” é um universal não-
pessoa, portanto, é identificada como -multiplicado, mas diferenciado, e nessa
alguém que é diferente de outras coisas diferenciação interna se auto-comunica
e seres vivos; ela é ser humano, e não (Trindade) autonomamente, em relação.
substância, portanto traz referências ao Dizer alguém é dizer “pessoas”, assim
“eu”. Pessoa é um alguém com uma es- o alguém Jesus, apesar de ter duas
sência determinada que permanece para naturezas é uma só pessoa. A natureza
além de toda a mudança, isso por que é o que é por si mesmo como uma rea-

516
lidade inteligível e como ligado à coisa vamente o horizonte da intencionali-
não artificial. Assim, a pessoalidade é o dade mediante a abstração conceitual,
modo específico da natureza racional. A ou seja, é capaz de transcendência. A
pessoa é portadora de uma substância palavra “ser”, portanto, repousa no
singular, por excelência, e subsiste em grau mais alto de abstração conceitu-
uma natureza. al, absoluta e infinita, tão irrefutável
quanto não derivável. Na relação com
2. Negatividade, intencionalidade e o outro, meu pensar se torna ser, por
transcendência isso, somos existentes um para o outro.
A identificação de “pessoas” se dá pela Com a ideia de ser, se pensa que o
negatividade, intencionalidade e pela consciente transcende seus conteúdos
transcendência. Dizer “pessoas” é uma intencionais e, portanto, a si mesmo. O
expressão tipificadora que nos identifica ser é assim, o ponto mais alto do cógito
a nós e aos outros, diferenciando-nos cartesiano, é pessoa. Quando se fala em
da totalidade daquilo que existe. A “pessoa” referimo-nos à vida dos seres
identidade de “pessoa” implica o reco- humanos. É a vida consciente que faz
nhecimento de ser alguém. Para além de do ser pleno, livre, alguém ser capaz
um dentro e um fora, a pessoalidade só de ir além da ideia. Como o ser não é
é possível numa pluralidade de pessoas. objeto do pensar, ele nunca se tornará
A determinação “pessoas” implica um realizável, não é objeto intencional, pois
momento de negatividade, que é o que a o ser vai além do pensar. O ser pessoa
diferencia do existente não vivo. Assim, implica o reconhecimento num olhar de
a negatividade também implica uma reciprocidade que vai se constituindo
chave positiva, capacitando-nos para na vivência. A referência à realidade é
tomar distância de tudo, é um estar a condição básica para o ser-no-mundo.
fim de, como pulsão de vida. O ser pessoa é um ser-para-si e que
pode ser experimentado como ser-para-
O vivenciar, próprio da pessoa, só se
-si de outros.
experimenta como condição própria,
condição esta que, muitas vezes, se tor- 3. Ficção, religião, tempo e morte
na impossível traduzir em linguagem,
tal como são os atos de opinar, saber, Cada pessoa assume uma ficção, uma
julgar e querer, ligados a uma intencio- religião e um tempo, e, por isso, é finita,
nalidade. A vivência em si é intencional portanto destinada à morte. Cada ação
e se torna consciência intencional. É a humana, como a dos animais, pertence
vida potencialmente consciente que nos à natureza. Entretanto, como pessoas,
permite falar da vida. Os atos inten- estamos sempre desempenhando um
cionais constituem em reforço ao ser papel (ficção, máscara). A pessoa possui
pessoa, como sejam os atos do opinar, um ser em sua aparência, media a sua
preferir e querer, que estão para além relação com o mundo pelo símbolo,
de toda a condição humana. As pessoas que tem na arte musical seus pontos
são um centro contínuo de atos e, com culminantes. O ser humano é uma
uma função integradora, são capazes de ficção, não é irrevogavelmente o que
amor e razão. A base sob a qual estão ele é naturalmente, é “pessoa”.
assentados é a autonomia.
O movimento entre transcendência e
O ser humano é um ser vivo racional reflexão se complementam mutuamente
com intencionalidade em seus atos, e ambos os movimentos se traduzem
capaz de tomar distância de cada um naturalisticamente em subjetividade,
deles. Ele é capaz de ampliar gradati- entendida em termos religiosos, como

517
pessoa. Pela religião, o ser humano se O entregar a vida é um ato pessoal; é
compreende como ente natural e com um ato do qual só é capaz aquele que
uma responsabilidade moral, pela de- a possui. Se o suicídio é permitido, tudo
sobrigação da culpa. A possibilidade do é permitido.
perdão é indispensável para a pessoa
como tal, porque torna possível manter 4. Consciência, reconhecimento e li-
a continuidade consigo mesmo como berdade
pessoa por sobre o tempo. As pessoas possuem independência em
A subjetvidade corresponde apenas a relação ao contexto, pois são dotadas de
um aspecto da reflexão característica da consciência moral, de reconhecimento
pessoa. Ao refletis sobre si memas como e de liberdade. Todos os fatos que se
sujeitos as pessoas por isso mesmo são colocam diante da nossa experiência são
mais do que sujeitos. É a temporalidade fatos relevantes que têm vida e coexis-
que permite que a difereença interno- tência. Portanto, o ser humano, como
pessoa, é parte de uma totalidade. O
-externo emerg na subjetividade. È,
ser pessoa é o ter sua vida, compreen-
portanto, pela termporalidade que a
dida num determinado contexto. Cada
relação pessoal para si mesmo é cons-
enunciado, portanto, se compreende
tituída. Pela temporalidade a subjetivi-
no contexto em que é proferido, sendo
dade se exterioriza como subjetividade
funcional para o estatuto da essência da
de um estar a fim de. O ser objetivo
pessoa. Todo enunciado já é pressuposto
para outros, enquanto sujeitos, é ser
da verdade: assim, a pessoa que o enun-
pessoa; e esta condição de objetividade
cia é um ente capaz de verdade. Logo,
da interioridade, que é a condição da
para que toda a ação seja considerada
pessoalidade, é dada pelo tempo. Pelo
moral, a pessoa deve estar presente nela
tempo, os instantes são simultâneos e como um todo.
indiferenciados, mas sequenciais, como
presente estendido. Assim é a pessoa: “Pessoas” somente são, como tal, no
uma configuração temporal. plural, pois elas sempre são consi-
deradas como tal umas para com as
A morte, na esfera humana, tem, na outras. Assim, elas também são apenas
ideia da pessoa, uma dimensão que somente quando consideradas na sua
questiona toda a significação vital. A unidade, e pensar-se a si mesmos, é
dimensão “pessoa” torna a vida huma- possuir consciência de sua identidade,
na incomensurável; preservar a vida é uma identidade pessoal auto-objetivada.
uma meta instintual do ser humano. Falar em alma caiu em descrédito após
A dimensão do sentido da vida reside a hipostatização cartesiana, quando se
tanto na vivência da concretização concebeu a separação corpo-alma. No
vital, bem como na de seu fracasso. A contexto da intersubjetividade, a cate-
passagem da significação vital para o goria ser torna alguém diferençável dos
sentido é a passagem do presente para outros, confirmando a simplicidade de
o futurum exactum, que é a forma de cada pessoa. No contexto cristão alma
eternização. Para a pessoa o ter a vida e espírito não possuem contraposição;
como algo que faz sentido consiste a pessoa está aí como unidade, cora-
numa prioridade. “A antecipação da ção e amor. A alma humana participa
morte desdobra a vida como um todo inteiramente do espírito. E, assim, o ser
para dentro da dimensão atemporal pessoa é um ser dotado de alma que
do futurum exactum” (p. 95). Isso faz participa do espírito. Por essa razão, a
com que nos comportemos com rela- pessoa vai além do ser, se auto-reflete,
ção à vida como com relação ao todo. auto-transcende, numa dinâmica de

518
continuidade da vida. Neste sentido, obrigação. O nosso comprometimento
a alma como forma pura, restaura a enquanto pessoa é base para a reali-
existência da pessoa. zação da pessoa do outro, como é a
comunhão de destinos na promessa
O que faz a pessoa ser pessoa é a sua
matrimonial. Assim, como a promessa,
singularidade, que passa pela respon-
o perdão é constitutivo do ser pessoa
sabilidade e pela sua própria vida, a
na medida em que se resiste a ver o
consciência moral. Essa consciência
outro diretamente tal como se está
se constrói pelo agir segundo a razão
vivenciando, dando uma chance de
moral. A consciência moral reflete a
vê-lo de outra maneira. A plenitude
totalidade da pessoa e impele à unidade
do perdão se encontra na reconciliação.
de si consigo mesmo, por isso, a cons-
ciência moral tem validade absoluta. Aos portadores de certas qualidades
chamamos de “pessoas” e, no reconhe-
O reconhecimento, como ser si mes-
cimento das mesmas, a pessoalidade
mo, como interioridade, é um ato de
começa a se fundar. Assim, o ser al-
liberdade. Como interioridade, o re-
guém é ser pessoa. Todo ser humano é
conhecimento abre-se para o exterior,
pessoa também na medida em que age
para o reconhecimento de um alguém.
numa comunhão concreta de pessoas.
É somente pelo reconhecimento de
Na pessoa está implicado um caráter
outro que se dá o ser pessoa. O reco-
valorativo, ligado a sua capacidade
nhecimento de sua própria singulari-
para a ação, como espécie humana. O
dade (igualdade) fundamenta a sua
ser da pessoa é a vida do ser humano.
dignidade. Como fim em si mesma, a
natureza das pessoas é garantia de sua Logo, ser pessoa é existir singularmente
existência, e uma existência em comum, em uma natureza; um existir dife-
em reciprocidade, pela qual se sela a renciador da totalidade do existente,
paz e se concretiza o direito à justiça. capaz mesmo de transcender seus atos
intencionais e a si mesmo. Cada pessoa
A ideia de pessoa está ligada à liberda-
possui responsabilidade moral para
de, o que só é possível quando se possui
uma abertura de fé, que se realiza numa
uma natureza, com a capacidade de sa-
temporalidade plena, de modo que a
ber e fazer o que se quer. A liberdade, no
morte só faz sentido na experiência da
Cristianismo, assume uma configuração
vitalidade. Como parte de um todo, a
que leva os seres a serem destinados à
pessoa não é isolada, mas em relação
liberdade, pois a criação já é um ato
com outros; é uma relação de recipro-
de liberdade pelo amor do Criador. A
cidade como alguém singular, base
liberdade apresenta ao que dela usufrui
para seu reconhecimento e liberdade.
a capacidade de sair de toda forma de
O papel da diferença é fundamental no
determinismo. O único determinado é
exercício da constituição da identidade
o amor, que decide o que queremos, e
da pessoa; contudo, esta se dá na ple-
assim somos verdadeiramente livres, e,
nitude e totalidade da existência vital.
com o uso da razão, a liberdade ganha
força de persuasão.

5. Perdão e promessa
Adilson Felicio Feiler
Ser pessoa é ser capaz de prometer.
Contudo, é um ato de promessa; não é UNISINOS

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