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A Babilônia brasiliense
Há mais de três décadas, as comerciais das quadras 205 e 206 Norte despertam
a curiosidade devido ao modelo arquitetônico diferente. Justamente por isso foi
apelidada com o nome do antigo império. Passear pelas construções, que mais
parecem um sinuoso labirinto, sempre reserva surpresas
Notícia
Existe um pedacinho de Brasília que foge ao padrão das quadras do Plano Piloto. Apenas a tipologia do
endereço, Comércio Local Norte (CLN), e a quantidade de blocos seguem o modelo tradicional. Essa
parte tão distinta é composta pelas comerciais 205 e 206 Norte. Experimentais, elas têm suas plantas
datadas de 1978 e foram inauguradas em 1979. Uma diferença essencial do projeto arquitetônico de
Doramélia Marra da Motta é interligar as duas quadras, que não são independentes entre si. São
administradas pelo mesmo síndico, fazem parte de um só condomínio e são ligadas por, acredite, duas
passagens subterrâneas.
Nesse intrincado conjunto arquitetônico, os blocos comerciais são emendados um ao outro e não têm
letras de identificação aparentes, o que dificulta a vida de quem precisa encontrar endereços no local.
Além disso, até subir ao primeiro e ao segundo pavimentos torna-se um desafio. Às vezes, depara-se com
becos sem saída. Às vezes, as escadas encontram-se ao final de labirintos. As rampas de acesso estão
do lado de fora dos prédios. Em meio a esse, aparentemente, abandonado fragmento de cidade, surgem
sempre surpresas.
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À tarde, um acordeão toca uma melodia de Luiz Gonzaga. Seguindo o som encontra-se quem dedilha as
teclas do instrumento na única escola de música da quadra. Trata-se do militar Elijohn Sousa, que
aprendeu a tocar o complicado instrumento com o mestre Gonçalo Aquino Cardoso, mais conhecido como
Sivuquinha. Frequentador da comercial, o sanfoneiro acredita que um bom restaurante mudaria a cara do
lugar, se tornaria um ponto de encontro e, por que não, daria mais espaço para apresentações culturais.
Na escola, estão ainda outros dois discípulos de Sivuquinha: o comerciário Anderson Amaral e o analista
ambiental Júlio Azevedo. O último aponta uma das qualidades da quadra. Há abundância de vagas. Ali,
até os estacionamentos são diferentes, ficam no subsolo, que é aberto para a rua.
A sala de aula onde os musicistas tocam pertence à Tupiniquim Musical, inaugurada em 2005. O lugar
leva, inevitavelmente, a um corredor. Quem vê a passagem do lado de fora nem imagina que, por detrás
do concreto rachado e da pintura desgastada, encontra-se um belo terraço. Colorido, cheio de flores bem-
cuidadas, jogos de amarelinha e até uma rede para descansar. O acolhedor local foi totalmente
revitalizado pelas parceiras do Ateliê ÔdeCasa. Alessandra Cardoso e Vera Guadalupe são as
responsáveis pelo projeto que transformou a cara desse pequeno espaço. A repaginação está entre as
propostas das donas para o ateliê, que usam o local para a renovação de mobílias e a criação de objetos
de arte. A aparência do ambiente destoa do restante da quadra até na sua placa de boas-vindas.
Enquanto grandes cadeados e grades reforçadas estão presentes em quase todas as salas comerciais, o
local tem vidros transparentes e uma placa convidando: "Pode entrar!".
Do outro lado da rua, encontra-se o espelho da 206 Norte. A imagem refletida é a CLN 205. Lá, uma das
lojas que mais chama a atenção é o petshop Armazém Rural. Não só pelo tamanho (ocupa duas lojas),
mas também pelo tempo em que sobrevive na quadra. São 22 anos de funcionamento. A dona do
comércio, Maria do Carmo Lancini Bello, conta que, em 1991, quando o Armazém chegou à área, poucas
lojas estavam ocupadas e a rotatividade era muito grande. Havia uma loja de refrigeração, um pequeno
sacolão e uma padaria, que logo fechou. De acordo com a empresária, muitas pessoas, inclusive clientes,
desestimularam a permanência do comércio na quadra por ser um local onde "nada vai para frente". Ela
contrariou a fama e prosseguiu com suas atividades. Hoje, promove desfiles de pets e outras festividades,
tirando proveito da arquitetura diferente do lugar, que garante muito espaço livre à frente da loja.
Hoje, os 72 espaços comerciais (36 em cada quadra) estão ocupados, e apenas três são usados como
residência, de acordo com o síndico Aluísio Pereira. Um desses ambientes é o Espaço Cena, centro
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cultural inaugurado em 2005. Guilherme Reis, diretor do local, lembra que, quando o espaço começou a
funcionar, a quadra era escura, abandonada. Só havia eles, o petshop e uma barraquinha de macarrão. O
diretor até brinca dizendo que parecia ter uma caveira de boi enterrada na entrequadra, já que tudo que
se abria lá não dava certo.
O piauiense Gonçalo Aquino, conhecido como Sivuquinha de Brasília, pode ser visto por
lá: aulas de acordeon
Para Guilherme, a cultura foi o vetor de transformação do ambiente. Com as intervenções artísticas, as
noites do local foram iluminadas e tornaram-se mais animadas, deixando a comercial mais segura e
frequentada. Outra ação do Espaço Cena foi a transformação artística em uma das passarelas
subterrâneas. Ela foi limpa, iluminada e decorada com a arte de grafiteiros da cidade. O resultado foi tão
surpreendente que a passagem virou cenário de documentário. Babilônia Norte é o nome do filme que usa
a ligação como uma de suas paisagens. A película trata da relação entre as artes e os artistas da cidade
com essas quadras da Asa Norte.
Produzido pelo Coletivo Capadócia, o filme terá a exibição inicial, em 27 de março, projetado no terraço
do Ateliê Ôdecasa.
E se as quadras não fossem peculiares o suficiente, as histórias que as cercam já contribuiriam bastante
para a estranheza do local. No estacionamento da 205, por exemplo, há um senhor que mora em alguns
carros do local. Há 15 ou 20 anos, dependendo de quem conta a lenda, ele vive em companhia de
inúmeros gatos e pombos. Até aí, nada de excepcional. Mas os frequentadores da quadra, entre
comerciantes e transeuntes, afirmam que ele é o sucessor de outro homem que morava ali, nas mesmas
condições. À diferença do atual morador, o antigo carregava uma peixeira e dizia-se o defensor da
quadra. Infelizmente, o homem ficou doente e foi hospitalizado. Desde então, não houve mais notícias
dele e logo o substituto tomou seu lugar. Outro estranho acontecimento foi a aparição de um bar, que
rapidamente fez muito sucesso. Lotava todos os fins de semana e tinha uma cantora muito talentosa, com
futuro promissor. E tão veloz como surgiu, da noite para o dia, sem qualquer aviso, o comércio fechou e
nunca mais se ouviu falar da mulher que cantava.
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Visão geral das comerciais da 205 e 206 Norte: modelo arquitetônico experimental
esconde sempre surpresas
Assim é o cotidiano das CLN 205 e 206. Permeadas por cultura, petshops, arquitetura alternativa e alta
rotatividade. As placas penduradas nos prédios nem sempre indicam comércios que ainda existem no
lugar. A antiga sinagoga e igreja protestante já se mudaram, mas os sinais de sua passagem continuam
nas marquises. Uma única instituição religiosa permanece no lugar: um centro espírita. Restaurante com
marmita a R$ 8, açougue, gráfica, loja de jogos, papelaria. Nada garante que daqui a uma semana tudo
isso esteja lá. Tudo é muito inconstante nesse peculiar pedacinho de Plano Piloto.
Para Guilherme Reis, do Espaço Cena, a cultura mudou a cara da quadra: noites mais
iluminadas e frequentadas
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