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O escritor cubano traça um amplo percurso do gênero literário mais antigo e versátil,
que tem início com as primeiras epopéias, passa pelas "Mil e Uma Noites" e, no
século 19, por autores como Machado de Assis e Tchecov, até chegar, no século 20, a
Guimarães Rosa e Borges
Tabuleiro de xadrez
com peças
caracterizadas como
personagens das
histórias de Sherlock
Holmes
O conto é tão antigo quanto o homem. Talvez até mais, pois podem muito bem ter
existido primatas ancestrais que contavam contos feitos inteiramente de grunhidos, que
são a origem da linguagem humana: um grunhido, bom; dois grunhidos, melhor; três
grunhidos já são uma frase. Assim nasceu a onomatopéia e com ela a epopéia. Mas
antes desta, cantada ou escrita, houve contos feitos inteiramente de prosa: um conto em
verso não é um conto, mas outra coisa: um poema, uma ode, uma narração com métrica
e talvez com rima: uma ocasião cantada, não contada, uma canção.
Antes até que aquele anônimo artista de Altamira pintasse seus minuciosos murais, deve
ter existido um autor anônimo na região que contasse contos para seus companheiros de
caverna sentados em volta de uma fogueira. O homem, como sabemos, é o único animal
que faz fogo. O contista é o único ser humano que faz contos. Esses contos seriam, por
exemplo, narrações de um dia de caça perdido no encalço de um cervo branco com um
chifre na testa. Os contos não perduraram nas paredes da caverna, mas não se perderam:
foram reencontrados, contados, na memória coletiva.
Séculos mais tarde, outro contista pegou o mesmo conto, embelezou o cervo branco e o
converteu em mito ao chamá-lo unicórnio. Embora a experiência fosse alheia, tomou e
fez seu o tema do unicórnio perdido. Muitos séculos mais tarde, outro contista enfeitou
com metáforas (isto é, embelezou poeticamente) esse animal único com seu único
chifre. Passados outros tantos séculos, o homem que conta já havia aprendido a escrever
(e, é claro, a ler), e outros animais e outros homens que se transformavam em animais
povoaram com contos o que chamamos mitologia, mas que para eles era essa
transcendência chamada religião.
Em outro século, quando outros homens já não acreditavam nessa religião de deuses tão
humanos que se confundiam com os simples mortais, um deles, um poeta chamado
Ovídio, escreveu "As Metamorfoses". De religião, esses textos não tinham mais do que
aqueles primeiros contos contados em volta de uma fogueira numa caverna. Isso fez do
conto o gênero literário mais antigo e mais protéico.
Protéico, como se sabe, vem de Proteus, deus grego que estréia na cena olímpica com a
"Odisséia", poema feito de contos. Proteus sabia tudo de tudo, mas mudava de forma
para não ser interrogado. Isto é, fazia o contrário de um autor atual, que nunca muda de
forma, mas procura sempre ser interrogado: pela imprensa, pelo rádio e pela televisão -
e, às vezes, pela polícia. Creio desnecessário frisar que Proteus era uma metamorfose
feita deus. Proteus está muito perto de prosa, que é o que os contistas cultivam.
Protéico, prosaico -dá na mesma.
Os gregos, além de Homero e sua "Odisséia", cultivavam o conto, e um romancezinho,
que é o que é "Dafne e Cloé", publicado no segundo ano da nossa era, foi seu provável
precursor.
Mas são contos os fragmentos que fazem do "Satyricon", de Petrônio, um romance, e
um de seus mais memoráveis é aquele intitulado "A Viúva de Éfeso", um conto perfeito
e muitas vezes citado, copiado até. Entre outros por Jean Cocteau, poeta tão teatral que
transformou o conto em peça, ganhando-o para o teatro.
O conto, logo protéico, parece desaparecer na Idade Média, mas na verdade se veste
com os versos do romance, seja nos "romans courtois", onde aparece como história de
aventuras, seja no "Roman de Renart", em que serve a um fabulário, não longe do
zoológico de Esopo. Na saga arturiana (que não se deve confundir com a sopa asturiana,
conto de favas), o romance adquire um tom mágico, quase místico, que lhe é exclusivo.
Mas a história paralela do amor fatal de Tristão pela bela Isolda é, como quer Bédier,
um conto de amor, de loucura e de morte cuja aura mágica não fica nada a dever aos
modelos gregos e romanos.
Mas o conto, sempre recomeçado, reaparece onde menos esperariam os trovadores
medievais: no Oriente.
Os árabes, entre o harém e a areia "As Mil e Uma Noites" é a mais monumental
compilação de contos do final da Idade Média. Esses contos são a mais traduzida (e
conhecida) literatura árabe depois do Corão. Suas histórias ("Ali Babá e os 40 Ladrões",
"Aladim e a Lâmpada Maravilhosa" e "Simbá, o Marujo") são hoje tão populares como
quando foram traduzidas aos diversos idiomas europeus. Sua influência é perceptível
desde Boccaccio e Chaucer. Mas, já antes deles, um extraordinário escritor espanhol, o
infante d. Juan Manuel, incluiu em seu "Libro de los Enxiemplos" mais de um conto
árabe extraído de "As Mil e Uma Noites", então reconvertidas em tradição oral.
Ao contrário do que acontece com os contos contemporâneos na Europa, "As Mil e
Uma Noites" têm mil e um autores, e a esperta princesa Sherazade é um autor coletivo
que conta com voz de mulher. São, em todo caso, contos de encanto, e até seu título em
árabe é encantador, encantatório: "Alf Layla wa Layla". Dessa vasta coleção de contos
rastreou-se a origem até o século 9º d.C. Sua última forma é do século 16. Isso quer
dizer que, com seu feitiço oriental, o livro cobre quase toda a Idade Média cristã -
embora diga, no início de cada conto: "... mas Allah é mais poderoso". Em seguida vem
uma espécie desconhecida de poesia que as infiéis e cruentas traduções não
conseguiram aniquilar. Sherazade é a mais poderosa máquina de matar o tédio e a
crueldade do rei que sempre assassinava a consorte de cada noite, à exceção da contista,
uma mulher amena, apesar de ameaçada.
Chaucer repetiu o esquema em seus "Contos de Canterbury", mas em verso. Quem o
conseguiu em prosa foi Boccaccio, em seu imitado, inimitável "Decameron". É curioso
que Cervantes, um artista supremo, tenha buscado inspiração nos contos italianos e não
nos exemplos do infante d. Juan Manuel, que, diga-se de passagem, deu a Shakespeare
seu "Relato de Mancebo que Casó con Mujer Brava". Acontece que Boccaccio é um
contista natural, tal como a contadora de histórias árabe. Cervantes, que inaugurou o
romance moderno, o mais imitado, chamou o "Quixote" de livro e de "novelas
exemplares" seus contos, declarando que "de modo algum poderás fazer", leitor,
"mistifório". Mas revelou seu ofício e arte: "Meu intento foi armar (...) uma mesa de
carambolas". E acrescentou: "Onde cada qual encontre com o que se entreter".
Um escritor cairota, Naguib Mahfuz, em suas "Noites das Mil e Uma Noites", que o
editor cataloga como romance (os editores são capazes de chamar de romance a lista
telefônica, que pode não ter narração, mas tem uma porção de personagens), esse
escritor consciente, demasiado consciente, tenta se tornar uma Sherazade assídua. Mas
fracassa em seu intento. O livro quer ser árabe e é apenas egípcio.
Por outra lado, "Los Cuentos Negros de Cuba" são minhas mil e uma noites negras,
contadas por uma Sherazade branca, Lydia Cabrera, para entreter as noites em claro de
uma amiga agonizante. No final do livro, a doente já estava morta, mas os contos vivem
na imortalidade da literatura. Eu os classifiquei, qualifiquei, como "antropoesia".
A trama tecida noite após noite por Sherazade, Penélope contista com milhares de
pretendentes, levou muitos escritores -desde d. Juan Manuel, Boccaccio e Chaucer- a
tentar uma imitação em que diversos talentos buscam emular o encantamento árabe.
Poucos o conseguiram, mas um escritor nosso contemporâneo, Manuel Puig, em seu "O
Beijo da Mulher Aranha", é uma Sherazade argentina que a cada noite conta um filme
inventado para seu companheiro de cela, seu vizir cruel: completamente surdo às
dádivas orais que lhe oferece Puigrazade -assim como é cego a suas investidas sexuais.
Edgar Allan Poe inventou com três contos -"Os Crimes da Rua Morgue", "O Mistério
de Marie Roget" e "A Carta Roubada"-, ele sozinho, a literatura policial, que são o
conto e o romance de mistério. Todos os cultivadores do gênero recém-criado foram
seus epígonos, de Arthur Conan Doyle, criador do insólito Sherlock Holmes, a Dashiell
Hammett e Raymond Chandler, romancistas que foram também contistas e, de
passagem, renovaram o gênero. Uma epígona (se alguém disse "jóvenas", eu posso
muito bem dizer "epígona"), Agatha Christie, disse: "O conto é o domínio natural da
literatura de crime e mistério".
Muitos contistas, quase todos anglo-saxões, fizeram do conto seu hábitat, que era como
uma casa mal-assombrada. Todos seguiram o ditame de Poe, que disse que o conto "é
uma narração curta em prosa" e definiu o conto breve como uma peça literária que
"requer de meia hora a uma hora e meia ou duas de leitura". Eis aí um importante modo
de usar, "com cuidado". Mas há -ah!- leitores descuidados. Para estes, a melhor maneira
de ler é no avião -e um best-seller ou livro que se compra porque se vende.
Os herdeiros de Mark Twain são tão numerosos quanto os seguidores de Poe, mas os
primeiros, que chamaremos aqui humoristas, atentaram apenas para o lado luminoso da
lua de Twain -sem enxergar suas regiões de sombra e de penumbra. O mais bem-
sucedido deles foi Damon Runyon, com suas historietas em que o submundo de Nova
York aparecia povoado de gângsteres sentimentais, jogadores sementais e uma porção
de mulheres de moralidade duvidosa e um (pouco) siso legível como sexo. O cinema e o
teatro, onde ninguém lê, criaram um Runyon ilustrado para iletrados. Runyon, que fazia
rir, ia ao banco sempre rindo.
Não foram só os contistas com humor que tiveram sucesso popular. A partir do século
19, houve também quem cultivasse -e fosse popular por algum tempo- essa estranha e
elusiva planta chamada "conto fantástico". Na Inglaterra, onde se desperdiçara a
tradição realista iniciada por Chaucer, houve muitos autores de fantasias cujo objetivo
não era induzir o sonho, e sim o pesadelo. Lembro, entre outros, Arthur Machen, Saki e
Roald Dahl.
Na Irlanda, terra de luzidas lendas nada lúcidas, Sheridan le Fanu foi um contista de
mistério e terror cuja coleção "In a Glass Darkly" (em Dublin, cidade alcoólica, tomam
o espelho, "glass", como copo, e o livro se chama "Em um Copo Escuro") é um dos
clássicos do conto de terror como horror. Sua contrapartida foi mais tarde o norte-
americano H.P. Lovecraft, um precursor da ficção científica, gênero praticamente
inventado por H.G. Wells na Inglaterra. A ficção científica encontrou no conto sua
forma perfeita para uma arte imperfeita. Vale registrar que todos os mestres do conto de
horror anglo-saxão têm, também eles, em Poe seu antecessor primordial.
É preciso abrir aqui um parágrafo para Rudyard Kipling, talvez o maior contista inglês
de todos os tempos. Kipling não fica nada a dever a Poe ou a Mark Twain, e é para a
Inglaterra o que Maupassant foi para a França e Tchecov para a Rússia: um contista
natural. Começou publicando em jornais indianos e, quando afinal foi a Londres, então
o centro do universo literário, tinha apenas 20 anos (Kipling é quase nosso
contemporâneo, morreu em 1936). Deixara para trás a Índia, embora fosse justamente
seu lado muçulmano, mais do que o hindu, o que mais lhe interessava no subcontinente.
Kipling cultivou todas as modalidades do conto, do monólogo à conversa, sendo alguns
de seus contos feitos inteiramente de digressões, como queria Sterne, mas também de
invenções memoráveis. E muito antes que Conrad ou Somerset Maugham descobrissem
o mundo exótico do Oriente. Com a diferença de que, para Kipling, nascido em
Bombaim, aquilo era a vida vivida e vívida.
A França não teve um Chaucer, mas teve um mestre do conto no século 18, tardio, mas
nada lerdo em sua arte da ironia, exercida com uma inteligência incomum. Refiro-me a
Voltaire, cuja obra-prima, "Cândido", não é um romance, e sim uma fábula com uma
moral em cada página. Os franceses tiveram de esperar todo o século 19 para que,
afinal, surgisse um dos maiores contistas de todos os tempos, Guy de Maupassant,
assombroso autor de sucessivas obras-primas do gênero. Maupassant teve Gustave
Flaubert como mestre e Émile Zola como mentor. Mas nenhum dos dois, embora tanto
Flaubert como Zola tenham escrito contos memoráveis, conseguiu superar o discípulo
nascido para o conto. Sua influência foi enorme em toda parte e teve seguidores (se não
verdadeiros plagiários) na Inglaterra, nos EUA e na Rússia.
É na Rússia que Maupassant encontrará um rival extraordinário, Anton Tchecov, que
começou contando anedotas e piadas na imprensa e acabou transpondo seus principais
contos para o teatro, com uma arte inesperada. Tchecov, que podia reivindicar para si
Nicolai Gogol (autor de "O Nariz" e "O Capote", entre outros contos), era um admirador
de Tolstói, que escreveu contos como relatórios de guerra e foi contemporâneo de outro
mestre cultivador da forma breve, Ivan Turgueniev. Mas a influência maior no autor de
"A Dama do Cachorrinho" e "A Cigarra" é, evidentemente, Maupassant. De Tchecov
derivam Górki e todos os contistas russos do início do século 20, que pareciam brotar da
terra russa -até que chegou Stálin e, com seu cultivo forçado do realismo socialista,
transformou a fértil literatura russa num deserto com tratores.
Outro seguidor de Tchecov foi, na Inglaterra, Somerset Maugham, mestre do conto
inglês e mundial. Foi, ainda é, um autor com uma popularidade que se estendeu aos
palcos e às telas: várias obras-primas do cinema, como "A Carta" (do diretor William
Wyler, de 1940), se baseiam em seus contos. Maugham, em seus contos exóticos, foi
influenciado pelas narrações dos "mares do sul" de Conrad e, por sua vez, teve
influência sobre outros contistas, evidente sobretudo nos contos urbanos de John
Cheever e John Updike, típicos produtos da revista "The New Yorker".
Se James Joyce tivesse morrido logo depois de publicar "Dublinenses", ainda assim
seria considerado um escritor notável e um grande contista. Traduzir é reescrever.
Traduzindo "Dublineses", tive a oportunidade de encontrar os "tricks" e tiques de Joyce
mas também seus magistrais contos originais e sombrios e sua escritura cômica.
"The Dead" (que traduzi como "El Muerto") é uma obra-prima dolorosa e um dos
grandes contos escritos em inglês, quase um romance, por seus personagens
inesquecíveis e sua extensão. "The Dead" não é um precursor do "Ulisses", e sim uma
peça acabada em si mesma, de uma prosa milagrosamente extraordinária.
Não se poderia deixar de falar de um dos escritores mais originais do século 20, Franz
Kafka, inventor da fábula com moral teológica, ou seja, metafísica. Sua influência se faz
sentir em muitos escritores judeus, como Isaac Bashevis Singer, ou genuinamente
gentílicos como Milan Kundera, que o reclama para a literatura tcheca, embora Kafka
tenha escrito em alemão e pertença à cultura talmúdica. Felizmente para nós, que não
somos nem tchecos nem judeus nem alemães, Kafka pode ser lido com verdadeiro
deleite literário.
Um epígono de Kafka, judeu como Kafka, apareceu não na Tchecoslováquia, mas na
Polônia: Bruno Schulz, contista. Seu "Lojas de Canela" é de uma originalidade delicada:
uma visão da vida judia numa cidadezinha da Polônia que oscila entre a magia e um
doce realismo. Schulz, não podemos esquecer, foi assassinado por um tenente da SS
nazista, castigo tremendo apenas por estar parado numa esquina sem fazer nada. Ao
contrário de Kafka, nunca nem sequer sonhou seu final. É que o totalitarismo é sempre
inimigo da literatura.
Steinbeck e John Ford Tão contraditório quanto Faulkner foi John Steinbeck:
primeiro, comunista; depois, liberal e, mais tarde, um dos defensores mais ferrenhos do
presidente Johnson e da Guerra de Vietnã. Além de seus grandes êxitos novelísticos,
como "Vinhas da Ira" (conhecido na Espanha por um título menos bíblico e mais
vitícola, "Las Uvas del Rencor"), que é, apesar da opinião de certos críticos americanos
como Mary McCarthy, uma obra-prima popularizada em todo o mundo por John Ford,
Steinbeck escreveu e publicou muitos contos, e seu segundo livro, "Pastagens do Céu",
é uma coleção de contos. Seu conto "O Cavalinho Vermelho" é uma pequena obra-
prima, e seus contos longos, como "Ratos e Homens" e "A Pérola", são obras-primas
desse gênero, a novela, que parece ter sido inventado pelos escritores americanos, de
Henry James, com "A Volta do Parafuso", a Hemingway, com "O Velho e o Mar".