Вы находитесь на странице: 1из 1

CARTAS

Era mais comum no passado a generosidade das famílias na expectativa de que algum de seus
membros seguisse a carreira religiosa, sobretudo na região considerada colonial. Ainda meninos,
entravam em um seminário e ali viviam como se sua consagração fosse definitiva, mas o número
dos que efetivamente abraçavam o sacerdócio era bem menor. Peneirados, em sua larga
maioria decidiam permanecer laicos, mas levavam para sua vida ensinamentos preciosos para
que se tornassem bons cidadãos, bons chefes de família. Naturalmente alguns se tornaram
sacerdotes sem a verdadeira vocação. Sorte deles e da comunidade se, ainda que tardiamente,
os não vocacionados decidiram afastar-se de seus votos.

Já entre os meninos urbanos a simples menção a uma vida dedicada a Deus, a serviço da
humanidade, gerava reações frequentemente assustadas, no estilo “Deus me livre!”. Lembro que
havia gracejos torpes, a trair um anticlericalismo embuçado no deboche. Quando apostávamos
corrida era comum ouvir-se “o último é mulher do Padre!”. Brincando, brincando, se dizem tanto
verdades quanto infâmias como esta.

Fiz o primário no Ginásio São João Batista. Quando encontro ex-colegas daquele tempo,
confesso que sinto neles algo inerente. Não de santidade, me apresso em esclarecer, mas como
um hálito de quem nutriu-se de sólida formação. Recordam-se todos com carinho das arcadas
da velha escola, hoje encampada pelo laico e decadente estado. Melhorou? Não creio. Como
não creio que a medicina de hoje suplante aquela da benemerência, promovida por ordens
religiosas, como as Santas Casas de Misericórdia mostram em profusão.

Há pouco tomei conhecimento de que falecera um colega da juventude. As condolências que li,
protocolares, têm o dom de virar uma página do livro da vida de cada um. E assim seguiremos,
até que a contracapa do tomo se feche nas mãos do destino e sejamos dispostos na biblioteca
celeste. Toda vez que a morte dá o ar da (des)graça, voltamos a escutar a ladainha de que a
vida é frágil. Nem tanto. O que é frágil é o despreparo .para a morte, cuja foice é muito afiada.

Há muitas formas de quase morrer. Para o mundo, como fazem os anacoretas ou as religiosas
que vivem em clausura. Ou mesmo presos políticos, como Vaclav Havel revela na obra “Cartas a
Olga”: “Escreva-me muito; você sabe a importância aqui de cada migalha de informação, mesmo
notícias de como nosso gramado está resistindo à estiagem” ou “Estas cartas são tudo o que se
tem aqui. São lidas dezenas de vezes, pensa-se nelas de todos os ângulos, cada detalhe é um
prazer ou um tormento e fica-se consciente do quão impotente se está”.

Alceu de Amoroso Lima, reconhecido intelectual católico, teve vários filhos. Lia, a mais nova,
muito cedo decidira encaminhar-se para a vida religiosa, contrariando expectativas familiares,
sobretudo de sua mãe. Ingressou num mosteiro beneditino e tornou-se Madre Teresa. Alceu,
convertido ao catolicismo aos 35 anos, por mais de duas décadas escreveu quase diariamente
para a filha monja. Parte destas missivas foi publicada num grosso volume denominado “Cartas
do pai”, de agradável leitura, revelando um pouco do intelecto, das dúvidas, das apreensões e da
alma do escritor. As missivas deixam clara sua preocupação com os caminhos da Igreja, caindo
na vala comum da dicotomia conservador-progressista, que sempre nos convida, todos nós que
volta e meia esquecemos da promessa de Cristo de que sua Igreja chegará ao fim dos tempos.

Numa das cartas que envia de Nova Iorque, onde lecionou por algum tempo, reproduz um texto
do Osservatore Romano segundo as quais João XXIII convocou o Concílio para combater os
perigos crescentes para a vida espiritual, especialmente os erros que se estavam infiltrando na
própria Igreja e a “atração imoderada pelos bens materiais que cresce cada vez mais com o
advento do progresso técnico”. A técnica facilita a vida, mas também pode iludi-la.

Volta e meia me pego pensando sobre as transformações violentas pelas quais passou minha
geração e declino que ficaria muito feliz se uma de minhas filhas seguisse a carreira religiosa.
Luto para fugir da vitimização, mas a par do privilégio de usufruir dos avanços técnicos,
padecemos de seus efeitos colaterais, como sugere a fluidez de Baumann. Por isto é ainda
maior a dor pela perda de cada amigo, de cada referência, de todo e qualquer farol humano.
Porque prosseguimos rumo ao desconhecido e sabemos, no fundo,que os sinos dobram por nós.

Вам также может понравиться