03-08-2017
Entre o populismo
e o euroceticismo
Elísio Estanque
A situação na Venezuela é
mais um caso emblemático
P
dos equívocos de setores da
esquerda portuguesa
ode dizer-se que o populismo se
define como um discurso baseado
em juízos simplistas e dicotomias
fáceis. Diz-se ao povo (às massas)
o que ele espera ouvir, sabendo-
se que o senso comum popular é
fundado no princípio maniqueísta
que divide a sociedade entre os
bons e os maus. Portanto, como
afirmou um dos seus teóricos (Cas
Mudde, 2004), o populismo pretende acima
de tudo “agradar aos eleitores/povo e assim
‘comprar’ o seu apoio em vez de procurar —
racionalmente — a ‘melhor opinião’”. Muito
já foi dito sobre populismo e nacionalismo e
muito está por dizer.
Pode distinguir-se o populismo de direita
do de esquerda, com base sobretudo nos
objetivos enunciados, ou seja, oportunidades
individuais e primazia do mercado (no
caso da direita liberal) e, por outro lado,
mais igualdade e mais políticas sociais
(no caso da esquerda). A defesa do povo
contra as elites e a alusão a uma identidade
“autêntica” (nacional ou local) que emana
da comunidade podem ser, e são, elementos
partilhados pelos populismos de direita
e de esquerda. Entre a esquerda ganhou
visibilidade a posição do Podemos, em
Espanha, quando o seu líder assumiu
(num desafio a E. Laclau, outro teórico do
assunto) que ser ou não populista depende
se se está no poder ou na oposição. Se
estás na oposição e queres construir novos
sujeitos políticos “hay que ser-lo”, diria
Iglesias. Quando se governa, termina o
populismo e pode ter lugar uma espécie de
“compromisso histórico” (à la Berlinguer).
Essa atitude ambivalente exprime-se na
fórmula estar “com um pé dentro e outro
fora” das instituições. Podemos e BE
partilham esse princípio, enquanto o PC
está dentro fingindo estar fora, no seu estilo
esquizofrénico.
Uma outra vertente dos equívocos da
esquerda radical (nomeadamente no
caso de Portugal) é no que se refere aos
alinhamentos internacionais. Quer o PCP
quer o BE têm revelado posições ambíguas,
o que, eventualmente, se liga ao facto de
estarem agora no arco do poder. Quanto ao
primeiro, paira ainda no ar a célebre máxima
de um seu dirigente (Bernardino Soares)
quando, em 2003, afirmou ter “dúvidas”
quanto a considerar se o regime da Coreia
CARLOS GARCIA RAWLINS/REUTERS
são — e foram no passado — os interesses
geoestratégicos das grandes potências. A
conversa de que “é ao povo que cabe decidir
o seu próprio futuro” é uma proclamação
de pura retórica, tão válida hoje como em
Portugal em 1975, tão válida na Venezuela
como na Hungria (Orban fez algo semelhante
a Maduro), no Afeganistão, na Líbia, no Irão
ou na Ucrânia. Ou não será?...
Já agora, convém lembrar o
posicionamento destas correntes no atual
cenário internacional, com a crítica a Trump
pelo meio (foi ele, de resto, quem mais
ajudou a colocar o tema na ordem do dia),
mas em que as suas ligações perigosas com
o amigo Putin ou as iniciativas imperialistas
deste (Ucrânia) e atividades criminosas a
seu mando ou com a anuência do Kremlin
(nos EUA ou na UE) em diversas matérias,
do Norte é uma democracia (o que gerou os indicadores positivos conseguidos pelo nomeadamente o conhecido apoio a forças
polémica no próprio seio do partido, diga-se chavismo, como a redução significativa da neofascistas (Le Pen), merecem apenas a
em abono da sua democraticidade interna), pobreza e a melhoria na educação e saúde — condescendência e o silêncio.
e mais recentemente (fevereiro de 2014) o dados factuais conhecidos, mas insuficientes Em suma, algumas destas posições da
PCP votou isolado no Parlamento contra para justificar o resto —, afirmava, no nossa esquerda (com algumas exceções,
a condenação dos crimes cometidos por Esquerda.net, que “o Governo da Venezuela importa sublinhar) no alinhamento com
aquele regime despótico. Na campanha cometeu erros graves: retirou poderes regimes populistas, como o de Chávez-
presidencial de 2016 foi patético o tergiversar ao Parlamento, diminuiu a democracia, Maduro ou outros que vão no mesmo
de Edgar Silva (candidato do PCP) no permitiu a corrupção em volta do petróleo sentido, são apenas o reverso do seu
debate televisivo com Marisa Matias (BE) e foi incapaz de construir uma rede de visceral antieuropeísmo. No discurso,
a propósito de uma pergunta direta sobre serviços públicos alicerçada numa economia porque a prática é diferente. Não falo da
o mesmo assunto. Já o caso de Angola, diversificada. A Revolução Bolivariana atitude crítica à atual UE e aos poderes
designadamente a mediatização que foi degrada-se a olhos vistos”. “Erros graves.” tecnocráticos e forças neoliberais a que se
dada ao protesto pacífico de um grupo Do Bloco espera-se mais. No momento em sujeitou por culpa própria. Apontar a crítica
de jovens, cujo principal protagonista, o que escrevo acabo de ler o comunicado radical às instituições e promover uma
músico Luaty Beirão, esteve em greve de do PCP sobre a eleição para uma nova outra Europa, uma Europa transparente,
fome durante mais de um mês, revelou Assembleia Constituinte na Venezuela. O tom democrática, solidária e fundada na
divisões claras entre o PCP e o Bloco, com eufórico é um hino a Maduro, exaltando este cidadania transnacional é o que pretendem
o primeiro a ficar inicialmente calado e os “ato de afirmação democrática” contra “o os europeístas genuínos. Essa é também uma
bloquistas a assumirem uma solidariedade ataque ao povo venezuelano pelos Estados bandeira da esquerda. De outra esquerda.
ativa, denunciando o regime cleptocrático de Unidos e União Europeia”. O número oficial Vale a pena referir, por exemplo, nomes
Eduardo dos Santos. de votantes foi expressivo (41,5%), mas os como Yanis Varoufakis ou Rui Tavares, para
No Parlamento, o observadores internacionais duvidam da exemplificar vozes que são ao mesmo tempo
PC não ficou isolado veracidade dos mesmos. Numa afirmação inequivocamente europeístas e de esquerda.
nem acompanhou curiosa de respeito pela democracia eleitoral E no campo da social-democracia muitas
PS e BE nas suas (as manifestações boas são só as nossas...) opiniões (incluindo o PS e o próprio António
Algumas propostas de
condenação,
e de condenação dos protestos de massas
neste país durante meses seguidos, onde já
Costa) vão no mesmo sentido.
Já o alinhamento com Mélenchon e a
destas preferindo votar morreram mais de uma centena de pessoas, diabolização de Macron revelam, de facto, o
posições ao lado da direita em luta aberta contra a fome e o populismo poderoso efeito populista no seio daquelas
por considerar que chavista do atual governo, o PCP congratula- forças políticas, condimentado com algum
da nossa tal voto visava “pôr se e parece ter sido o primeiro a fazê-lo, o dogmatismo de quem ainda finge acreditar
esquerda, em causa o normal que diz bem do seu entusiasmo. Tudo culpa em “amanhãs que cantam”. Trata-se de
são apenas o funcionamento
das instituições
da quebra do preço do petróleo e dos EUA?
Excelente exemplo de uma análise populista.
um fingimento cínico porque muitas das
posições mais extremadas vêm, justamente,
reverso do seu angolanas”. O curioso é constatar a dualidade de de quem se apraz em beneficiar do sistema
visceral anti- A terrível
situação que
critérios. E isto não vale apenas para os
comunistas. Quando, na Europa ou nos EUA,
democrático “burguês” e retirar vantagens
das instituições europeias. Bastaria
europeísmo atinge a Venezuela as manifestações de rua são consideradas confrontar o discurso das várias lideranças
é mais um caso progressistas, na Venezuela são tidas populistas da América Latina ou do Leste
emblemático dos como golpistas, alegadamente a mando europeu, por exemplo, com o volume (e
equívocos de alguns das potências ocidentais e da CIA, que a sede) das suas contas bancárias para se
setores da esquerda manipulam milhões de jovens em protesto perceber o que é o populismo.
portuguesa. Há cerca dia após dia. Tirando uns quantos inocentes,
de um ano, Mariana todos sabemos que os interesses petrolíferos Sociólogo; professor da Faculdade de
Mortágua, realçando são em muitos casos decisivos, tal como o Economia da Universidade de Coimbra