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Na região do Caribe, um homem está prestes a comandar uma

revolução escudado por pessoas misteriosas. Brigitte Montfort


tem a missão de matar esse homem, mas ele está protegido por
magia negra.
© 1968 – Lou Carrigan
“VOODOO”
Publicado No Brasil Pela Editora Monterrey
Ilustração De Capa: Benício
JVS – 400925/ 401001
CAPÍTULO PRIMEIRO
Sol artificial e música russa
Ameaça de perturbações nas pequenas Antilha
Ordem de assassinato

Estava nua, entendida sobre a mesa de massagem, sob a


possante de duas lâmpadas solares.
Todo seu corpo brilhava, untado com o creme especial de
bronzear, com um efeito de sol a sobre seda. Em suas belas e
estilizadas mãos, uma revista feminina de modas, cujas
folhas ela passava lentamente, sorrindo cada vez que via um
modelo digno de ser adquirido, como aquele bonito casaco
de tweed com gola de pele de chinchila, por exemplo.
Achava-se sozinha no surpreendente aposento, de uns
vinte metros quadrados. Lâmpadas solares, estante com
livros, um pequeno armeiro, aparelho de televisão, um
magnífico aparelho de som estéreo, lindos quadros, algumas
cadeiras metálicas, cintilantes... Tudo novo, limpíssimo,
impecável. Em meio a toda aquela asséptica perfeição, ela.
Ela, Brigitte Montfort. A mais audaz e inteligente espiã
internacional. E uma das mais belas mulheres do mundo.
Numa palavra, a agente “Baby” da CIA.
No aparelho de alta fidelidade rodava um disco de Aram
Khachaturian, com seu orientalismo, seu magnífico ímpeto
passional, sua transbordante alegria de viver.
Tut-tut-tut-tut-tut-tut...
A rítmica chamada intermitente obrigou Brigitte a erguer
o olhar, ao mesmo tempo em que seus ouvidos se fecharam à
música de Khachaturian. Voltou-se para a porta única
daquele perfeito retiro e viu no alto da mesma a luz azul que
acendia e apagava rapidamente, ao compasso da chamada.
Sentou-se na mesa, ficou pensativa uns segundos e por fim
dirigiu-se à porta. Apertou o pequeno botão da direita e a
placa de ferro protegida por isolante térmico e acústico
correu para a esquerda, desaparecendo dentro da parede.
Um homem recortou-se no umbral, mas como Brigitte
voltasse à mesa, aparentemente disposta a continuar tomando
seu banho de sol artificial, ele entrou, apertou por sua vez o
botão e acomodou-se numa das cadeiras metálicas, deixando
a seus pés uma pequena maleta de couro, retangular, do
tamanho de uma caixa de sapatos. Claudicara um pouco ao
caminhar e agora, sentado, uma de suas pernas permanecia
um tanto rígida.
— Você fica muito bem despida, Brigitte — disse ele.
— Acho que fico bem de qualquer maneira, Mr.
Cavanagh.
— Sim, devo admitir que é verdade... A música lhe
parece adequada para este lugar?
Indicou o hi-fi. Brigitte sorriu.
— Que tem de mau um pouco de música num dos
compartimentos especiais da CIA em, Washington? Se
agrada aos animais, por que não agradará aos espiões?
Mr. Cavanagh, chefe direto da agente “Baby” em missões
ordenadas pela Central, quase sorriu. Era um homem severo,
de compleição forte, olhar duro, cabelos grisalhos, queixo
agressivo.
— Refiro-me a essa música, especificamente: é russa,
não?
— Khachaturian, com efeito. Mas este disco estava aí e
eu o pus para tocar. Asseguro-lhe que não penso transferir-
me para a MVD soviética.
— Acredito — sorriu amplamente Mr. Cavanagh. —
Bem, que lhe parece se começarmos a trabalhar?
— É o que desejo. Estou há três dias aqui, sem outra
ocupação que apanhar sol, com um creme especial para
ativar o bronzeamento da pele. Suponho que isso seja
necessário, mas devo dizer-lhe que gosto de ter a pele
dourada, não quase negra. Estou parecendo uma mulata. Se
não fosse pelo azul de meus olhos...
— Terá que corrigir isso. Você já utilizou outras vezes
lentes de contato, não é assim?
— Já. Então, devo mesmo parecer uma mulata?
— Digamos: uma nativa das Antilhas, um tanto mestiça,
sim. Uma mulher de temperamento forte e... bem, você
compreende.
— Compreendo — riu Brigitte. — E não me custará
nenhum esforço parecer uma mulher de temperamento
ardente.
— Eu disse “forte”. É mais ou menos a mesma coisa, mas
procurei ser delicado.
— Agradeço a atenção. Mas estou há três dias aqui,
queimando a pele, ouvindo música, dormindo... Umas boas
férias que suponho tenham terminado.
— Creio que sim — sacou um envelope do bolso. — Esta
será sua nova identidade. Como sei que não gosta muito de
utilizar nomes falsos, fiz a coisa do melhor modo possível.
Seu nome será Brigitte Latour, nascida em Fort-de-France,
na Martinica. A documentação, como é lógico, está
perfeitamente em regra.
— Ótimo. Que idade me foi atribuída?
— Vinte e quatro anos.
— Maravilha! Com vinte e oito, acho que já estou em
tempo de diminuir um pouco o número de anos. Vinte e
quatro... Perfeito! Então, já estou definida: sou Brigitte
Latour, natural da Martinica... E que mais?
Mr. Cavanagh abriu a maleta e retirou um televisor de
tamanho reduzido, cuja tela devia medir apenas seis
polegadas. Deixou-o sobre uma cadeira que colocou diante
de “Baby”, deteve o hi-fi e sentou-se junto dela na mesa, de
lado. Extraiu do bolso o que parecia uma caneta e apertou-a
na ponta.
— Projeção prevista para esta hora no canal 15.
— Pois não, Mr. Cavanagh — brotou uma voz da caneta.
Cavanagh guardou-a e ficou olhando para o pequeno
vídeo, no qual, apenas cinco segundos depois, apareceram as
primeiras imagens, em cores. Umas imagens brilhantes de
colorido tropical, mostrando águas azuis e verdes, com
brancas cristas de espuma.
— A projeção durará relativamente pouco, pois foram
feitos os cortes convenientes. Estas cenas foram filmadas de
um avião: o objetivo são todas as chamadas Pequenas
Antilhas, que irão desfilando rapidamente, para que você as
possa ver do ar e faça uma perfeita idéia...
— Conheço essas ilhas. Estive lá por diversas vezes.
— Melhor. Foram filmadas do norte para o sul, de modo
que aparecem em sucessão as mais ou menos dependentes
dos Estados Unidos, Holanda, Inglaterra e França. Na
realidade, o mais importante virá no final do filme. E
enquanto não chega esse final, irei explicando o que terá que
fazer dentro do menor prazo possível.
— O assunto é urgente?
— Sem dúvida.
— E me fizeram perder três dias aqui dentro?
— Convinha que assim fosse. De qualquer modo, começa
a ser urgente agora. Vejamos... Todas estas ilhas, as
Pequenas Antilhas, estão sob a tutela incerta, mas a eficaz
vigilância, dos países que já mencionei. Já sabe que se
formou uma Federação, que posteriormente se dissolveu,
seguindo-se novos intentos... legais. E ultimamente surgiu
um novo intento...
— Ilegal? — interrompeu Brigitte.
— Exato. Parece que nessa região se começa a falar em
Antilhas Livres.
— Com referência a todas elas, ou apenas as que se
encontram sob nossa... proteção?
— Todas. Todas as Pequenas Antilhas. Este é o intento
ilegal que, segundo parece, se está forjando.
— De que modo?
— Como?
— Pergunto se esse intento está sendo realizado por meio
de manobras políticas, ou econômicas, ou...
— Pelas armas. Houve já alguns choques de certa
violência. Esporádicos, de escasso resultado, quase tímidos...
É como se estivessem sondando a possibilidade de tentar a
coisa a sério. Um desses fatos certos é que um agente
britânico, claro que do MI5, foi eliminado num tiroteio em
que teve que se envolver numa praia dessas ilhas. A
informação chegou-nos bastante completa, fornecendo-nos
uma base para compreender a situação. É evidente que esse
inglês estava atrás de algo interessante.
— Quem nos facilitou a informação?
— Um de nossos agentes nas Pequenas Antilhas. Depois
lhe direi quem é, pois quero que agora preste atenção à tela.
Veja: a Martinica. Uma bonita ilha, um tanto primitiva.
Veremos em seguida a outra, menor, a poucas milhas de sua
costa ocidental... Aí está. Tem uma superfície inferior a mil
quilômetros quadrados, mas é rica em culturas tropicais:
abacaxi, cana, iúca, café, cacau etc. Calcula-se que nesta ilha
haja uns dois mil habitantes apenas. Uma boa parte de seu
território é Constituída de selva pouco menos que virgem. O
clima é o clássico: chuvoso de março a outubro, seco de
outubro a março. No momento, estão caindo as últimas
chuvas, mais ou menos torrenciais. Não é um lugar
demasiado sadio, mas pode-se sobreviver lá perfeitamente.
Sobretudo se a permanência é de apenas um dia ou dois...
— Tenho que ir lá?
— Tem. O nome da ilha é Antillanie1. E aí está nosso
homem, segundo informes dignos de crédito.
— Nosso homem? Refere-se ao agente que temos lá?
Cavanagh moveu negativamente a cabeça. E quase ao
mesmo tempo aparecia na tela o rosto de um homem jovem,
desgrenhado, sujo; olhos negros e brilhantes, lábios grossos.
Depois apareceu de corpo inteiro, movendo-se de costas para
uma praia, olhando a objetiva da câmara de filmagem.
— Ele mesmo enfocou a câmara e filmou esta parte, a
fim de que o agente por nós enviado pudesse identificá-lo
sem cometer o menor erro. É um mulato, lógico. É
inteligente, astuto e audaz. Chama-se Teófilo Paván. Esse é o
nosso homem, Brigitte. Seu companheiro nesta missão.
Assessorará você no que for preciso e lhe servirá de ligação,
se necessário, com outro agente que temos na Martinica,

1
É evidente que aqui, como em várias aventuras outras de Brigitte Montfort, o autor recorreu a um
nome imaginário, dentro da realidade climatológica e geográfica das Pequenas Antilhas
justamente em Fort-de-France... E aqui está o outro agente
da CIA, o que serve na Martinica.
Apareceu o rosto de outro homem. Este era branco, ruivo
e cheio de sardas. Tinha olhos verdes, queixo saliente, nariz
reto, expressão simpática.
— O nome não vem ao caso, já que você o chamará
Johnny, como de uso. Pois aí tem o seu Johnny para este
trabalho.
— Está certo. Só poderei me comunicar com ele por meio
de Paván?
— Até que Paván decida o contrário, achamos
conveniente que seja assim. As coisas estão um pouco
tumultuadas e não convém exibir nossos agentes. Isto quer
dizer que, salvo se absolutamente necessário, o ruivo Johnny
não entrará em ação.
— Okay. Mas ainda não...
Cavanagh indicou a tela, que mostrava agora outro rosto
de homem. Este era negro, possuía traços fisionômicos muito
corretos, expressão inteligente e viva. Era muito simpático e
de uma alegria que tinha qualquer coisa de infantil. Cabelos
muito crespos, testa ampla, queixo forte, boca risonha e viril.
Em seguida ele apareceu de corpo inteiro, passeando por
uma praia cheia de homens negros, alguns mulatos, uns
poucos brancos, barcos de pesca. Apesar da vivacidade com
que o homem se movia de um lado para outro, a câmara não
deixava de enfocá-lo um só momento. Depois de ser visto
durante dois minutos andando de cá para lá na praia, tornou a
aparecer seu rosto, imóvel, ocupando toda a tela.
— Este é Nando Zafra. Tem menos de trinta anos, é
inteligente e simpático, um atleta cor de ébano...
— Estou vendo que é um soberbo exemplar de homem —
sorriu Brigitte.
— Sem dúvida — sorriu também Cavanagh, mas com um
jeito irônico. — Ele será o seu caso.
— Meu caso? Não me diga que.
— Cavanagh moveu a cabeça em sentido afirmativo,
muito sério.
— Terá que matá-lo, Brigitte. Apenas isso.
— Por quê?
— Esta é a explicação: Nando Zafra é o mais popular dos
pescadores das Pequenas Antilhas. Segundo os informes de
Teófilo Paván, ele tem amigos em todas as ilhas, por
pequenas que estas sejam. Não há uma só ilhota habitada em
todas as Antilhas onde Nando Zafra não seja conhecido e
estimado por todos. Em termos políticos, diríamos que seu
prestígio é absoluto, cem por cento. Ou de outro modo: se
Nando Zafra fosse candidato a qualquer coisa nas Pequenas
Antilhas, não duvidemos nem um só momento de que seria
eleito.
— Eleito... para quê?
— Para o que fosse. Se Nando Zafra pedisse a todos os
antilhanos negros que o seguissem ao inferno, nem um só o
deixaria de seguir.
— Entendo... E é muito mais fácil segui-lo ao campo de
batalha que ao inferno. Não é isso?
— Exato. Nando Zafra é o homem que o agente britânico
eliminado estava vigiando; certamente porque sabia tudo
isto. Tudo indica que esse homem está agrupando seus
amigos e lhes proporcionando armas. Daí, a intervenção do
agente do MI5, que deve tê-lo surpreendido e foi morto a
balaços, na praia. Paralelamente a esta notícia, Teófilo Paván
nos informa que Nando Zafra apareceu na ilha de Antillanie,
ferido numa perna. Capta a relação?
— Claro. Lutaram, ele e o inglês.
— Isso parece o lógico. Vejamos agora...
— Um momento, Mr. Cavanagh. Como devo entender
isto? Pretende o senhor que eu admita a possibilidade de um
simples pescador levantar em armas todos os negros das
Pequenas Antilhas? Vamos aceitar que por seu prestígio
pessoal pudesse fazê-lo, que todos o seguissem, lhe
obedecessem, que todos lutassem por conseguir o que eles
chamariam independência absoluta e por formar um novo
estado que se chamaria Antilhas Livres, só para ele. Admito
essa possibilidade e, de certo modo, estou de acordo com ela,
já que eu, na posição de Nando Zafra, talvez tentasse o
mesmo. Mas uma coisa é ter prestígio e amigos, outra é
dispor de armas suficientes para atrever-se a enfrentar-nos e
aos ingleses, aos franceses...
— Eis aí a questão — disse Cavanagh.
Brigitte manteve as sobrancelhas contraídas durante
alguns segundos. Súbito, sua expressão pareceu iluminar-se.
— Alguém está fazendo uso de Nando Zafra?
— Evidentemente.
— Bem... Isso muda o aspecto da coisa. Utilizam-no,
proporcionam-lhe armas, dão-lhe instruções ou ordens... Isso
implica a intervenção de alguém muito rico e poderoso. Ou,
pelo menos, de alguém que possa gastar muito dinheiro em
armas e que esteja preparado para dirigir Nando Zafra da
sombra.
— Essa é a idéia.
— Bem, bem... Mas então por que matar Nando Zafra?
Por que não matar o outro, ou Outros, os que dirigem e lhe
fornecem armas? Sem estas, Nando voltaria ao seu barco de
pesca, não acha?
— É possível. Mas o fato é que conhecemos Nando
Zafra, aos outros não. E como sabemos que se ele morrer os
antilhanos desistirão de seus intentos, é preciso eliminá-lo.
— Preferiria eliminar os outros — murmurou “Baby”.
— Não se trata de complicar nossa vida, Brigitte, mas de
manter todos tranqüilos. E já que Zafra aceitou ser a cabeça
do monstro, se cortarmos esta, tudo ficará resolvido. O resto
que conseguirmos será por decorrência. Mas sem
complicações, por favor. Tudo o que você tem que fazer é ir
a Antillanie, matar Nando Zafra e voltar. Nem mais nem
menos que isso... e só isso.
— Não vejo razão para insistir tanto...
— Conheço bem você, querida — sorriu Cavanagh: —
irá a Antillanie, andará por toda parte, quererá chegar até os
que estão dando armas e ordens a Nando Zafra e se proporá
eliminar todos eles. Não, não, não, por favor. Não importa
quem sejam essas pessoas. Esqueça-as. Sabemos que se
Zafra morrer, os demais antilhanos voltarão a seus trabalhos
habituais e isso é o que desejamos. Somente isso.
— De que armas disporei?
— De nenhuma. Irá desarmada, sem o seu equipamento
habitual. Se precisar de alguma coisa em determinado
momento, peça-a a Teófilo Paván.
— Não gosto de depender de ninguém.
— Eu sei. Como também sei que, na realidade, você fará
o que lhe der na telha, como sempre. Mas, por favor, não
esqueça que a CIA lhe transmite, simplesmente, uma ordem
de assassinato.
— Já demonstrei muitas vezes que a CIA pode enganar-
se. Mr. Cavanagh.
— Não importa isso. Admitamos que sim. Mas elimine
Nando Zafra. Partirá esta noite, de avião, para Puerto Rico,
onde tomará outro avião para a Martinica. Daí a Antillanie
viajará numa lancha regular para passageiros. Há outros
pequenos detalhes que encontrará neste envelope,
juntamente com seus documentos sob o nome de Brigitte
Latour.
— Está bem. Já posso deixar de apanhar sol?
— Seria conveniente que preparasse sua bagagem, está
claro.
Cavanagh tinha-se levantado. Brigitte imitou-o,
completamente nua, sorrindo ante os esforços que ele fazia
para não a olhar.
— Não deseja mais nada? — perguntou-lhe, sorrindo.
— Não,
— Nem sequer acariciar meu corpo?
Cavanagh olhou-a agora diretamente e passou a língua
pelos lábios. Esteve alguns segundos contemplando aquele
corpo estupendo; o ventre breve e levemente convexo,
cadeiras harmoniosas sem exagero, coxas bem torneadas e
elásticas, seios túrgidos e meigos, de desenho perfeito...
— Posso? — murmurou ele, voz quase embargada.
— Claro que sim.
Mr. Cavanagh ergueu a mão, que chegou à altura do seio
de Brigitte. Mas recolheu-a bruscamente e encaminhou-se
para a porta. Dali se voltou, sorrindo.
— Agradeço sua generosidade, Brigitte. Mas prefiro
continuar sendo seu bom amigo a desejá-la em vão.
Deixemos esse perigoso desejo para nossos inimigos. Espero
que não a tenha decepcionado.
Brigitte moveu negativamente a cabeça.
— Decepcionada eu ficaria se me tivesse tocado, Mr.
Cavanagh. Eu também entendo as coisas desse modo.
Receberá notícias minhas quando eu vier de cumprir sua
ordem de assassinato.

CAPÍTULO SEGUNDO
Chega a mais sensacional morena do Caribe
Um “Johnny” nativo
O oráculo de Mabanga

Efetivamente, “Baby” Montfort chegou a Antillanie em


dois saltos de avião, seguidos de uma pequena travessia na
feia a suja lancha que de Fort-de-France, na Martinica, fazia
o transporte de passageiros para Antillanie, a poucas milhas
de distância rumo oeste. Dois vôos bastante cômodos, de
Washington a San José de Puerto Rico e deste a Fort-de-
France. Mas o trajeto de lancha fora pouco menos que
nauseabundo, já que nesta não só viajavam pessoas de todas
as classes e cores, mas também animais cujo odor não era
precisamente aromático.
Mas tudo tem um fim e ela encontrou-se, sem
contratempo algum, no embarcadouro de Antillanie, apenas
decorridas vinte e quatro horas de suas entrevista com Mr.
Cavanagh.
No embarcadouro havia poucas pessoas, quase todas
negras e um que outro mulato. Dois homens brancos olharam
praticamente atônitos aquela sensacional mulher de grandes
olhos negros e corpo escultural, ataviada com um vestido
branco de duas peças que deixava das cadeiras, mostrando-se
não menos breve nos ombros e decote. Mas aqueles dois
homens pareciam ter trabalho com a chegada de mercadorias
vindas com a lancha e resolveram, filosoficamente, tentar
alguma coisa em outra ocasião.
Estendidos sobre as tábuas havia uns quantos negros, que
lançaram sobre “Baby” um olhar mortiço. Bem, certamente
era muito bela, mas eles já sabiam que mulheres daquela
classe eram absolutamente inacessíveis, de modo que nem
sequer se ofereceram para levar sua bagagem. Estavam
muito bem ali, espichados ao sol.
Dos mulatos, um adiantou-se para ela, lentamente. Era,
afinal de contas, o que estava previsto.
Por isso, quando aquele homem que Brigitte já vira na
pequena tela do televisor portátil de Mr. Cavanagh parou à
sua frente, logo compreendeu que tudo ia bem no momento.
— Carregador, madame?
— Sim. Penso que exista um hotel por aqui...
Teófilo Paván, o agente mulato da CIA em Antillanie,
ergueu suas grossas sobrancelhas hirsutas.
— Chama-se hotel, sim. Mas não é um hotel?
O mulato pareceu refletir profundamente.
— Parece um hotel... sentenciou. — Mas não como os de
Fort-de-France e outros lugares bonitos, madame. Acho que
não vai gostar.
— É sujo?
— Não muito. Às vezes limpam por dentro e de raro em
raro por fora. Tem mosquitos, lagartixas e da noite faz um
calor que não deixa dormir. Mas o telhado está em boas
condições e a água da chuva não chega aos quartos. E não se
come mal. Além de tudo isto, é o único que existe na ilha,
madame.
— Deve ser um bom negócio, então.
— Não creio. Vêm poucas pessoas aqui... Alguns homens
aparecem vez por outra, de lancha, para pescar nas costas da
ilha... Pouca gente. Ganho cinco dólares se levar sua
bagagem?
— Discutiremos o preço pelo caminho.
— Bom.
Teófilo Paván ergueu a maleta maior com a mão direita e
a menor com a esquerda. Estava descalço, sujo, desgrenhado
tal Como “Baby” o tinha visto nas cenas televisionadas Em
poucos segundos deixaram atrás o embarcadouro e sua
coorte de dorminhocos O sol era uma bola avermelhada e
estava bem claro que não tardaria muito a cair uma das
torrenciais tormentas próprias dos trópicos, o agente da CIA
indicou com o queixo um edifício de dois andares que se via
a cinqüenta metros do embarcadouro, mas não se deu ao
trabalho de dizer que aquele era o hotel.
— Veio armada? — perguntou.
— Tive ordem para não Vir.
— Bem... Muito bem! Há por aqui muitos homens fiéis a
Nando Zafra. Estão vigiando por todos os lados, temendo
que alguém tente alguma coisa contra ele.
— De onde deduzo que não vai ser fácil elimina-lo,
Teófilo.
— Claro que não. E certo que ele está ferido na perna
esquerda e que pouco poderia correr, mas a vigilância torna
difícil chegar a ele. A menos que você seja tão eficiente
como se diz.
— Talvez não seja preciso aproximar-se muito. De que
armas dispomos?
— Tenho de tudo um pouco. Bombas do tipo “coquetel
Molotov”, arco e flechas, facas, duas lanças, uma funda,
venenos de várias espécies... e um excelente rifle silencioso,
de longo alcance e mira telescópica.
— Ótimo! Com esse rifle...
— Duvido. Compreenda, “Baby”, que se a coisa fosse tão
simples, eu mesmo a faria. Acontece que só duas colinas
dominam a cabana da velha Mabanga. E as duas estão
vigiadas. Tudo é perigoso. Imagino que Nando Zafra, ou
quem subvenciona sua rebelião, estejam escarmentados com
a intervenção do agente inglês.
— É Lógico. Onde está Nando, exatamente?
— Já disse: na cabana da velha Mabanga. O que dificulta
ainda mais as coisas.
— Por quê? Onde fica essa cabana?
— Na realidade, é uma bonita choça de três peças, com
uma grande varanda cheia de flores. Fica a meio quilômetro
para o sul, seguindo pela estrada. Muito fácil de localizar.
Mas não me referia a isto ao dizer que o fato de Nando estar
na tal cabana dificulta as coisas.
— A que se referia, então?
— A Mabanga. Ela é uma bruxa.
— Uma o quê...?
— Bom, uma feiticeira, entende? Faz bruxarias, invoca os
demônios... Coisas assim.
— Entendo, entendo.
Teófilo olhou-a de esguelha, sem deixar de ir carregando
meio penosamente as malelas para o hotel.
— Suponho que não acredita nisso, “Baby”. Mas eu já vi
coisas de arrepiar os cabelos. Ah, não! Não serei eu quem se
aproxime da velha Mabanga. E menos ainda para fazer mal a
Nando Zafra. Ela o adora com todo o seu coração de bruxa.
Mais que se ele fosse seu filho.
— Sei que todo o mundo nas Pequenas Antilhas quer
bem a Zafra. Que espécie de bruxarias faz essa Mabanga?
— Para que contar? Sei muito bem que ia rir de mim.
— Nunca me rio de nada que desconheça, Teófilo. Não
faz muito tempo, tive oportunidade de verificar que certos
princípios da ioga são absolutamente verdadeiros2. Por que
não poderia ser verdade o que faz essa tal Mabanga?
Teófilo tornou a olhá-la de esguelha.
— Ela pode mandar um sapo cuspir nos olhos de uma
pessoa, cegando-a. Ou enlouquecer uma pessoa fazendo-a
ouvir durante toda a noite cantar uma coruja. Coisas assim.
— Já que estou usando lentes de contato, Teófilo, espero
que o sapo não me deixe cega. Quanto à voz da coruja, é
algo que eu até aprecio.
— Já esperava que você levasse tudo isso na brincadeira,
“Baby”. Mas quero deixar estabelecido que pode contar
comigo para tudo, menos para enfrentar Mabanga. Está bem?
— Está. Que espécie de magia ela pratica, Teófilo?
— Vodu.
— Ah! Já li bastante sobre vodu. E quase todos os
truques têm uma explicação bastante clara.
— Não vou discutir isso. Mas lhe aconselho muito
cuidado com o vodu de Mabanga. Dê o jeito que quiser para
matar Nando Zafra, mas evite que ela venha a saber, ou que

2
DOUTOR SCORPIO – aventura imediatamente anterior a esta
sequer a veja. Poderia matar você com o simples mau-
olhado. E outra coisa: não se fie muito se conseguir chegar
perto de Zafra. É possível que deixem você fazer isso, mas já
é menos possível que a deixem voltar ao hotel. A verdade é
que, se dependesse de mim, eu abandonaria o assunto ou,
para matar Zafra, lançaria uma bomba na cabana da velha
Mabanga.
Brigitte olhou ironicamente para Teófilo Paván.
— É uma solução muito expedita, Teófilo. E muito
escandalosa... Não interessa. Além disso, que aconteceria se
a velha Mabanga lançasse um feitiço no avião que ia lançar a
bomba? Certamente cairia no Caribe envolto em chamas.
— Não gosto de brincar com o vodu — grunhiu Paván.
— Bem. Eu vim matar um homem, não me envolver em
bruxarias. Diga-me como posso chegar até um lugar de onde
possa meter uma bala no coração de Nando Zafra.
— Não existe esse lugar.
— Não existe? — Brigitte contraiu as sobrancelhas. —
Olhe, Teófilo, a mim não importa a surpresa que você me
causou ao dizer que acredita no vodu e coisas desse estilo.
Acredite no que quiser, já que são prerrogativas pessoais.
Mas ao mesmo tempo você tem que realizar seu trabalho. Eu
não conheço a ilha, nem o povoado, nada. Como vou poder
matar um homem se você não me disser nem como chegar
até ele?
— Já lhe disse onde está: na casa de Mabanga, a meio
quilômetro do povoado, para o sul. E também lhe disse que,
no pé em que estão as coisas, não poderá disparar contra
Zafra. É tudo.
— Sua atitude é muito cômoda, Teófilo.
— Bom... Sou apenas um informante, não um agente de
ação, como você. Não me peça o impossível.
— Não há nenhum caminho, ou trilha de montanha, ou
grupo de árvores do qual eu possa disparar...?
— Nada. Olhe, não queria estar em sua pele, “Baby”. E
lhe direi que, se eu fosse você, voltaria a Washington e diria
lá que não se pode matar Nando Zafra por métodos...
elegantes. Um avião e uma bomba, isso sim.
— Estudarei pessoalmente o terreno e a situação —
murmurou Brigitte. — Onde estão as armas de que
disponho?
— Eu estarei a todo o momento perto de você. O que
ficará justificado dentro de poucos instantes quando me der
uma boa gorjeta. Parecerá que desejo servi-la a toda hora
para ganhar dinheiro. Quanto às armas, terá apenas que pedir
alguns minutos antes de se dispor a... a tentar qualquer coisa.
— Perfeito. Ah, Teófilo, uma coisa: se você vir que eu
toco uma orelha, é que estou em grave perigo, que fui
descoberta, ou que estão me ameaçando com armas. Nesse
caso, você saberá o que tem a fazer.
— Sei. Bem, já chegamos... Procure torcer o nariz ao
entrar no hotel, achando que é ruim. Naturalidade antes de
tudo. E tenha muito cuidado.
— Com a velha Mabanga? — sorriu Brigitte.
— Com tudo. Mas especialmente com a velha Mabanga.
— Vigiarei bem os sapos e as corujas. Vamos entrar.
O hotel era meio desmantelado, não estava muito limpo e
os móveis de junco, bastante velhos, começavam a se
desfazer. Havia dois ventiladores no teto, zumbindo com
força. Mas o calor úmido parecia grudar-se em todas as
coisas. Por uma das janelas via-se o céu, encapotado de
negro. O sol desaparecera em menos de um minuto, por trás
de enormes nuvens, e a tarde tinha um aspecto espectral, de
uma lividez de ocaso extraterreno. Soprava um vento suave,
que aumentava lentamente, precedendo a chuva torrencial.
Talvez em poucos segundos grandes gotas de água morna se
desprendessem, empapando mais uma vez a terra e
acelerando o crescimento vertiginoso do jângal vizinho.
— Brigitte Latour — anotou o gerente, um negro de rosto
brilhante e expressão desconfiada. — De onde vem?
— De Puerto Rico e Martinica. Motivo da viagem:
prazer. Nacionalidade: antilhana. Não está aí?
O negro tinha erguido vivamente o olhar porque, com
efeito, no passaporte estava bem clara a nacionalidade da
mulher chamada Brigitte Latour. E ato contínuo, a expressão
do homem mudou completamente.
— Sim — sorriu. — Está tudo aqui, mademoiselle. Vou
lhe dar as melhores acomodações. E não importa se não
puder pagar o preço: terá o melhor.
— Muito obrigada. Mas poderei pagar, seja qual for seu
preço.
— Vou conduzi-la pessoalmente...
— Um momento.
Brigitte voltou-se para Teófilo Paván, que permanecia
imóvel e como amedrontado ou encabulado atrás dela, abriu
a bolsa, tirou um maço de notas e separou uma de vinte
dólares, que estendeu ao mulato.
Teófilo moveu negativamente a cabeça.
— Oh, madame, sinto muito, mas não tenho troco...
— Não quero troco. É tudo para você.
Teófilo fez bem seu papel. Abriu a boca como se a
mandíbula inferior fosse desprender-se, arregalou os olhos e
ficou uns segundos olhando a prestigiosa cédula norte-
americana, antes de adiantar a mão como se temesse que a
golpeassem com um chicote. Mas como isto não aconteceu,
apanhou a nota e saiu do hotel a toda a velocidade, gritando
coisas incompreensíveis.
— Que há com ele? — indagou Brigitte.
— Foi uma gorjeta fora do comum, mademoiselle. Temo
que lhe vai ser difícil se livrar deste homem, agora. Por aqui,
por favor.
O próprio gerente apanhou as maletas e subiu a escada
até o primeiro andar. Quando entraram no apartamento,
“Baby” constatou que era grande, com duas peças e banheiro
privativo. Não estava mal, porém ela “torceu o nariz”.
— Este é o melhor? — perguntou em tom incrédulo.
— Sim, sim.
— Bem. Espero ficar pouco tempo aqui, de modo que o
aceitarei por ora. Tome.
Estendeu outra cédula de vinte dólares e esteve a ponto
de sorrir quando compreendeu que aquelas tinham sido
justamente as esperanças do gerente, que se retirou fazendo
grandes inclinações de agradecimento.
E uma vez sozinha, a espiã super aproximou-se de uma
das janelas que davam para o mar. Via-se bem o
embarcadouro, a cento e tantos metros. E o mar, agora de um
tom plúmbeo. Um relâmpago iluminou o céu e, pouco
depois, ouvia-se um trovão retumbante. E quase em seguida
a água começou a cair, numa espessa cortina de grandes
gotas cálidas, produzindo um rumor monótono, triste.
Mas normal, lógico, comum. O que não era comum, em
tais circunstâncias, era o som daquele tantã que lhe pareceu
ouvir, ao longe, como vencendo o som envolvente da chuva.
Franziu a testa e aguçou o ouvido, mas então lhe pareceu
deixar de ouvir o tantã. Esteve à escuta durante quase um
minuto, mas já não ouviu nada.
Pensando nas inesperadas dificuldades daquela missão,
que a princípio lhe parecera tão simples, entrou no banheiro
e olhou-se ao espelho, criticamente. Era ela, sem dúvida,
com toda sua beleza. Mas de boa vontade teria tirado as
lentes de contato que faziam seus olhos parecer negros.
Preferia-os azuis.
Os pensamentos cruzavam-se em sua mente. Claro que,
de um ou de outro modo, teria que chegar até Nando Zafra.
Não seria ela, a agente “Baby”, quem se desse por vencida
antes de começar o trabalho. Absurdo. Absurdo a ponto de
ser incrível. De maneira que, fosse como fosse, ela teria que
chegar até Nando Zafra e...
Ouviu-se outro trovão e em seguida, como se soasse
dentro de sua própria suíte, com a nitidez mais perfeita, o
tantã. Tão nítido, que Brigitte se dirigiu à primeira peça,
quase sobressaltada. Mas ali não havia ninguém.
Absolutamente ninguém. E menos ainda, tocando o tantã.
Além disso, com aquela chuva fragorosa, seria impossível
ouvir nenhum daqueles tambores de pele de cabra.
Deviam ser alucinações auditivas, simplesmente. Já não
ouvia o tantã.
***
Deixou de tocar o tantã e olhou o homem que estava
sentado sob o teto de folhas de palmeira. Pela borda, a água
resvalava copiosamente, deslizando depois pela terra em
diminutos arroios. Diante da varanda aberta, via-se parte da
espessa selva tropical. No céu, alguns relâmpagos
fulgurantes. O homem estava comodamente sentado numa
cadeira de balanço, olhar perdido no céu atormentado. Era
negro, alto, forte e bonito. Tinha o poderoso torso nu e
estava descalço. Vestia apenas umas velhas calças brancas,
esmolambadas, que lhe chegavam até um pouco abaixo dos
joelhos.
Quando ele voltou a cabeça, encontrou-se com o olhar da
mulher. Era também negra, gorda, reluzente. Tinha olhos
saltados, boca enorme e dentes branquíssimos. Viam-se
alguns fios prateados em seus cabelos presos no alto da
cabeça por um lenço de cores.
— Já se cansou, Mabanga? — sorriu o homem.
— Não toco mais, Nando. Já sei.
— Sabe? Que é que sabe?
Mabanga levantou-se, deixando de lado os dois tambores.
Aproximou-se de Nando Zafra, bamboleando suas graxas,
como se fosse rolar pelo chão de um momento para outro.
Acocorou-se aos pés dele e olhou-o fixamente.
— Que é que sabe? — insistiu Nando.
Ela meteu a mão num bolso de sua bata multicor e sacou
várias folhas de tabaco. Escolheu duas e enrolou-as,
formando um charuto perfeito. Depois confeccionou outro
com a mesma rapidez, pondo-o na boca. Acendeu-o e
entregou-o ao homem. Acendeu também o outro, que deixou
ficar entre seus grossos lábios. Parecia que seus olhos não
olhavam para fora, mas para dentro, e a fumaça do charuto
não os afetava absolutamente.
— Chegou — disse.
— Quem chegou?
— A pessoa... Uma pessoa que te quer mal. Nando. Faz
pouco que chegou à ilha.
Nando Zafra sorriu amistosamente.
— E quem é?
— Não sei ainda... É uma pessoa muito forte, que me
escapa.
— Muito forte? Você deve ter razão, Mabanga. Mas por
muito forte que seja, não poderá me fazer mal nem chegar
até aqui.
— Não digo forte de força do corpo, mas da cabeça.
Entendes, Nando? Essa pessoa é forte de cabeça.
— Quer dizer: inteligente, de força mental?
Mabanga fez que sim.
— Muito forte. Tem a cabeça fechada e não posso entrar
nela. Mas seus pensamentos vêm atrás de ti. Quer te matar.
— Ninguém pode vir me matar, Mabanga, você bem
sabe.
— Não... Nada servirá de nada. Logo virá. Chegará até
esta casa, sem que ninguém possa impedir.
— E me matará? — sorriu Zafra. Mabanga permaneceu
silenciosa e pensativa, fumando. Por fim, levantou-se, entrou
na casa e logo reapareceu trazendo uma vasilha de barro, que
depositou no chão, aos pés de Nando Zafra.
Tornou a acocorar-se e ficou olhando o conteúdo da
vasilha: pedras negras e brancas, ossos e penas de galo,
pequenas varetas de bambu.
Levantou a vasilha e agitou-a durante uns segundos.
Depois derramou o conteúdo no chão, sempre entre os pés de
Zafra. Olhou atentamente a disposição das pedras, varetas,
ossos e penas...
— Não... — murmurou. — Não te matará. Mas quer te
matar.
— Como entendo isso?
Mabanga tocou os ossos e penas com um dedo
gordíssimo.
— Nunca soube de nada assim... Quer te matar, mas não
te matará. Verás essa pessoa várias vezes e ficarás feliz por
conhecê-la...
— É uma mulher? — riu Nando.
— Não sei. Não posso ver nada claro aqui.
— Mas o que acontecerá contra mim?
— Parece que não acontecerá nada. Querem te matar,
mas não te matam. Serás feliz. Vejo sangue, mas serás feliz...
A pessoa virá logo, assim que parar de chover.
— Mas virá para matar-me?
— Sim.
— E não me matará?
— Não.
— Essa pessoa me odeia?
Mabanga olhou as pedras, os ossos, as penas e varetas.
Por fim, moveu negativamente a cabeça.
— Não te odeia. Mas virá para te matar. Não vou deixar
que chegue até aqui, Nando. Vou matar essa pessoa no
caminho.
Ia levantar-se em direção aos tambores, mas Nando Zafra
a conteve com um gesto.
— Espere, Mabanga... Você disse que serei feliz
conhecendo essa pessoa, não?
— Sim, Nando.
— Então, deixe que chegue.
— Quer te matar.
— Mas não me matará. Você mesma disse... Deixe que
chegue.
— Não sei... Isto não está claro. Essa pessoa é muito
forte, o que não é bom. E aconteceu qualquer coisa que não
me deixa entender bem o oráculo.
— Estude-o. Enquanto isto, veremos se quando deixar de
chover a pessoa chega.
***
— Mabanga.
A gordíssima negra ergueu a cabeça, sobressaltada.
Quando olhou para Nando, havia ainda em seus olhos uma
expressão de perplexidade.
— Não consigo compreender isto...
— Já parou de chover — sorriu Zafra. — E ninguém está
chegando aqui.
Soprava agora um vento refrescante. As árvores
brilhavam, como novas, e o céu começava a mostrar muitos
claros de tom azul. Grossas gotas caiam ainda das folhas,
como uma imitação de chuva.
— Logo chegará. Vou continuar olhando o oráculo... Mas
não saiu bem, não se pode ver nada direito, Nando. Essa
pessoa quer te matar, virá aqui, não te matará, te sentirás
feliz e... não se vê nada mais.
— Então, vamos ficar à espera. Continue olhando o
oráculo.
— Sim.
Mabanga não pôde dedicar-se por muito tempo a isso.
Tinham decorrido escassos cinco minutos, quando bem
diante da varanda umas ramas separaram-se sob a mão
esquerda de um homem negro, que trazia um fuzil na mão
direita. Depois apareceu uma mulher. Depois, outro homem
negro...
— Aí está ela — disse Mabanga.
CAPÍTULO TERCEIRO
A mulher que veio para matar
Bonecos e alfinetes
O galo decapitado

Nando Zafra mal reparou nos dois negros que chegavam


com a mulher, pois os conhecia muito bem e, além disso,
estando presente aquela mulher já não podia reparar em
nenhuma outra pessoa. Isso ele compreendeu de imediato, ao
mesmo tempo em que sentia uma espécie de martelada no
coração; um golpe violento que o paralisou por um instante.
Não. Não podia ver mais nada que aquela mulher de
vestido amarelo, pele fortemente tisnada, grandes olhos
negros, corpo esbelto e harmonioso. Um vestido amarelo de
saia curta, decotado, sem mangas, que parecia feito
especialmente para aquele corpo. Os cabelos negros da
formosa visitante estavam apanhados atrás, deixando bem
visíveis o pescoço, as pequenas orelhas, parte da bem
modelada nuca.
Sob os olhares expectantes de Mabanga e Nando Zafra,
os três personagens se detiveram junto à varanda. Mas um
dos negros se adiantou, inclinou-se para Zafra e murmurou
algumas palavras ao seu ouvido. Zafra olhou ainda mais
intensamente para a mulher.
— Veio à minha procura? — perguntou.
— Se você é Nando Zafra, sim.
— Sou Nando Zafra. Você quem é?
— Brigitte Latour.
— Isso nada me diz. Que quer de mim?
— Apenas que me escute.
— De que quer falar-me?
A visitante olhou os dois negros e, de um modo especial,
a velha Mabanga, que parecia absorta, os olhos negros e
saltados fixos nela.
— De dinheiro e armas.
— Tem armas?
— Não.
— Dinheiro?
— Muito.
Zafra estudou aquele belo rosto, antes de mover
afirmativamente a cabeça e fazer com a mão um aceno de
chamada.
— Venha — disse. — Uma cadeira, Mabanga.
A negra levantou-se.
— Ela é a pessoa, Nando.
— Eu sei. Quero que sente. Quero vê-la e ouvi-la,
Mabanga. Vocês podem voltar aos seus postos. Obrigado
pela vigilância e proteção.
Os dois negros assentiram e desapareceram prontamente
entre as árvores, enquanto Brigitte entrava na ampla varanda.
Colocou-se diante de Zafra, suportando seu olhar, até que
Mabanga veio Com outra cadeira de balanço, que colocou
atrás dela. Sentou-se abriu a bolsa, sacou uma cigarreira de
ouro e, vendo o que restava do charuto preparado por
Mabanga entre os dedos de Nando, acendeu um cigarro, sem
oferecer-lhe Mabanga tinha-se sentado diante dos dois
tambores e com as gordas mãos acariciava a pele de cabra,
produzindo uma espécie de sussurro sonoro, que parecia
capaz de chegar muito longe.
Súbito, o olhar de “Baby” caiu sobre os ossos e penas de
galo, as varetas de bambu, as pedras brancas e pretas. Depois
olhou fixamente para Mabanga, para suas mãos que roçavam
a pele dos tambores.
— Era você quem tocava o tantã, faz meia hora? —
perguntou.
Mabanga não respondeu. Apenas olhou para Zafra, que
perguntou por sua vez:
— Você ouviu?
— Ouvi. Estava no hotel, a chuva caía e ribombavam
trovões... mas ouvi.
Zafra olhou para a negra.
— Isto é possível, Mabanga? Eram seus tambores que ela
ouvia?
A feiticeira afirmou com a cabeça, sem deixar de olhar
fixamente para Brigitte. E Nando Zafra pareceu intrigado.
— É estranho que pudesse ouvir... Estava muito perto
daqui?
— Estava em meu apartamento no hotel.
O pescador ficou pensativo, enquanto a visitante o
estudava atentamente. Era aquele um momento de calma,
com o céu vermelho de sol, que logo desapareceria
definitivamente, deixando uma noite clara, límpida. Um bom
momento de calma para penetrar no cérebro e no coração de
Nando Zafra, não por meio de bruxarias de nenhuma
espécie, mas por simples capacidade de análise do ser
humano, capacidade que em Brigitte não deixava de ser uma
certa forma de bruxaria. A conclusão final a que chegou foi
que Nando Zafra era um homem bom e justo. O que, aliás, já
lhe tinha parecido quando vira sua imagem na pequena tela
do televisor de Mr. Cavanagh.
— Por que veio me ver? — perguntou ele de súbito.
— Porque tenho dinheiro e este lhe poderá ser útil.
— Para quê?
— Para comprar armas.
Quase sorriu quando ele respondeu, pois a mentira estava
claramente escrita nos olhos leais do pescador.
— Não... — murmurou ele. — Não preciso de armas.
Nem de dinheiro. Para que havia de querer armas?
Brigitte pestanejou, sempre desempenhando bem seu
papel. Estava disposta, uma vez mais, a desobedecer as
ordens terminantes da CIA. Desejava fazer tudo à sua
maneira, como sempre. E se isso não agradasse à Central,
paciência. A agente “Baby” dispensava o concurso da CIA
para fazer o que achava justo.
— Para as Antilhas Livres.
— Quem lhe falou disso?
— Ninguém... Ninguém em particular. São coisas que
ouvi em meu círculo de amizades, em San José de Puerto
Rico. Tenho viajado muito durante os últimos anos, Nando:
toda a América, a Europa, a Ásia... Quando ouvi que se
tentava criar as Antilhas Livres, quis vir imediatamente para
ajudá-lo.
— Não preciso da ajuda de ninguém. Está completamente
enganada. Sou apenas um pescador e não aprecio as armas.
— Nesse caso — “Baby” pôs-se de pé — regressarei a
Puerto Rico. E não direi a ninguém que você está ferido e
vigiado por homens com rifles.
— Sente-se — pediu Zafra. — Não vá ainda.
— Não tenho nada que fazer aqui.
— Falaremos... Por favor, sente-se — ela obedeceu. —
Quem é você?
— Brig...
— Não. Isso já sei.
— Então, não compreendo.
— Que faz, de onde vem, qual é a sua vida?
— A vida de uma divorciada rica. Eu casei com um
americano, faz tempo, mas agora estou divorciada e recebo
muito dinheiro todos os anos.
— Já não está casada?
— Não.
— Tem sangue negro?
“Baby” sorriu amavelmente.
— Não. Sou uma nativa da Martinica. A cor da minha
pele é normal em quem sempre se expõe ao sol.
— Mas que tem feito?
— Nada de especial. Casei-me muito jovem e agora, aos
vinte e quatro anos, já conheço demais a vida para poder ser
feliz. Por isso, gostaria de fazer qualquer coisa que me desse
verdadeira satisfação, como ajudar você a conseguir as
Antilhas Livres. Mas se isso... Que está fazendo ela? Magia
vodu?
Olharam ambos para Mabanga, que após se aproximar de
Brigitte como por acaso, derramara o conteúdo da vasilha de
barro a seus pés. Imediatamente, a gorda negra sobressaltou-
se e recuou um passo. Olhando com olhos arregalados o
desenho formado pelas pedras de duas cores, os ossos, as
penas do galo e as varetas de bambu.
— Que há, Mabanga? — perguntou Zafra. — O que está
vendo?
— Ela matou muitas vazes! Muitas! Mas... Hoje é um dia
mau para vodu, Nando. Não entendo os signos. Aqui diz que
ela matou muitas vezes, mas também diz que é boa. E depois
diz que é má... Isso não pode ser. Diz também que conheceu
homens. Não há filhos, nem família, mas haverá... Com o
tempo, vai ter quatro filhos...
— Duvido — sorriu cortesmente “Baby” — pois não
pretendo casar outra vez, Mabanga.
— Quatro filhos — insistiu a negra. Gostarão muito de
você e nunca saberão que a mãe é boa e má, nem que matou
muitas pessoas.
— É certo isso? — perguntou Zafra.
Brigitte não se perturbou absolutamente.
— Não. Não é certo.
O negro franziu a testa.
— Mabanga disse que você veio matar-me.
— Também não é certo. Vim ajudar você.
— Está mentindo — sussurrou Mabanga. — Ela é
mentirosa e traiçoeira como uma serpente. Costuma mentir.
Mentir e matar.
— Se sou boa, não posso matar — sorriu Brigitte.
— Você é boa... Mas também é má. E veio matar Nando.
Mas não fará isso... Não poderá fazer.
— Claro que não, Mabanga. Acho que você está
querendo me assustar, só isso.
Mabanga olhou-a fixamente. Depois de estudar mais
atentamente as revelações do vodu, recolheu tudo e foi
agachar-se diante dos tambores, que começou a tanger de
novo, suave e ritmicamente.
Estavam ainda guardando silêncio, como presos ao
fascínio do tantã, quando se ouviu o motor de um carro, que
logo apareceu no caminho. Deteve-se diante da varanda e um
homem de aproximadamente cinqüenta anos, cabelos
grisalhos e óculos grossos, saltou. Era alto, magro, de
ombros largos. Na mão esquerda trazia uma valise preta.
Deteve-se diante de Nando e Brigitte, mas olhando para
Mabanga.
— Qual é o caso agora? — perguntou com ar aborrecido.
— Boa-tarde, doutor Delorme — saudou Nando. — O
caso é simplesmente que Mabanga gosta muito de trabalhar.
Agora quer que ela — indicou Brigitte — passe vários dias e
várias noites ouvindo os tambores, esteja onde estiver.
— Bom... Se mademoiselle está no povoado, ouvirá, sem
dúvida alguma. É sua amiga, Nando?
— Não sei. Chama-se Brigitte Latour. Ela. Não importa.
Apresento-lhe o doutor Delorme, mademoiselle Latour.
Brigitte aceitou a mão do sorridente médico, olhando um
tanto surpresa para Nando Zafra, que tinha deixado de tratá-
la por você.
— É conhecida de Nando, mademoiselle Latour? —
perguntou Delorme.
— Conhecia-o apenas de nome. E vim lhe oferecer minha
ajuda.
— Sua ajuda? Para quê?
— Creio que está em dificuldades.
— Mmm... Sim, é certo. Sofreu um acidente. Mas esta
espécie de dificuldade penso que posso resolver melhor, sem
intenção de ofendê-la. Como está hoje a perna, Nando?
— Bem. Quase não dói mais.
— Magnífico. Vejamos que aspecto tem essa ferida... de
arpão. Levante a calça.
Brigitte tornou a levantar-se.
— Será melhor que eu regresse ao povoado. Não tenho
nada que fazer aqui. Muito prazer, doutor.
— O prazer foi meu. Oh, mas não é necessário que se
retire. E posso levá-la em meu carro quando terminar o
curativo em Nando. Este rapaz me complicou a vida: vim
pescar em Antillanie, disposto a passar uns dias de descanso
em minha cabana, mas ele teve que ferir-se com um arpão,
para me dar trabalho. Moro em Fort-de-France, na Martinica.
Terei milito gosto em lhe dar transporte; os caminhos estão
bastante enlameados agora.
— É muito amável seu oferecimento, doutor.
Delorme fez um gesto que tirava a importância da coisa e
inclinou-se sobre a coxa esquerda da Nando Zafra, que
estava a descoberto após ter ele enrolado a calça até a virilha.
Via-se uma bandagem de autêntico profissional, leve, porém
sólida e bem fixada por tiras de esparadrapo. Alfonse
Delorme cortou-a, removendo-a cuidadosamente. Ficou
visível um pequeno e limpo orifício.
— Oh, vai muito bem! — exclamou. — Cedo você
poderá voltar à pesca sem pensar em mais nada.
— Não me parece coisa de importância — comentou
“Baby”. — Deve ter-se cravado apenas a ponta do arpão.
— Por sorte, sim. Do contrário, teria sido preciso uma
grande incisão para removê-lo. Mas isto não é nada. Mais
uns dias de repouso e a pescar outra vez. Vejamos se deixo
tudo em condições.
Teve apenas que limpar a ferida seca, que cicatrizava
rapidamente; depois, nem sequer vendou a coxa, Limitando-
se a colocar um pedaço de gaze com sulfanilamida, que
prendeu com um H de esparadrapo. Bateu no joelho de
Nando.
— Voilá, mon ami. C’est tout!
Começou a recolher suas coisas. Mabanga tinha se
levantado e de uma bolsa de palha que pendia da parede
secara um punhado de folhas secas, que agora apertava
fortemente na mão. Delorme olhou-a, franziu a testa e
acabou encolhendo os ombros.
— Até amanhã ou depois, Nando. E veja se convence
Mabanga a deixar-me tranqüilo. Vamos, mademoiselle
Latour?
— Pois não.
Delorme bateu amistosamente num dos fortes ombros de
Zafra e dirigiu-se para o carro. Brigitte esteve ainda uns
segundos olhando fixamente o negro, que murmurou:
— Você voltará.
— Não sei, Nando... Para quê?
— Voltará.
Ela pestanejou, como se estranhasse. Finalmente, sorriu e
encaminhou-se para o carro, que Delorme já estava pondo
em marcha. Sentou-se junto ao médico e acenou para Nando,
em despedida. Mas ficou atônita ao ver Mabanga dando
voltas ao redor do negro e soltando no ar aquelas folhas
secas que tinha tirado da bolsa de palha. Delorme não lhe
deu tempo de dizer nada.
— Essa velha bruxa! — resmungou ele. — Está agora
afastando os maus espíritos, os demônios que trouxemos à
sua casa. Está convencida de que todos querem fazer mal a
Nando. Não confia nem sequer em mim.
— Gostaria de conhecer algo das práticas de vodu.
— Conheço alguma coisa. Mas não pense que é fácil. E
preciso ter muito bons amigos para conseguir permissão.
Bruxarias... Bruxarias estúpidas e cruéis. Só isso.
O carro afastou-se da casa justamente no momento em
que três negros troncudos, de grande beiçola e enorme nariz
achatado surgiam no caminho, dirigindo-se para a casa.
Delorme os indicou com um movimento de cabeça.
— Filhos de Mabanga — disse.
— Filhos de...? Mas, as feiticeiras de vodu não têm que
ser virgens?
Alfonse Delorme riu amavelmente.
— Não, não. Isso depende do ponto de vista de cada
feiticeira. Mabanga tem oito ou dez filhos, suponho. Todos
tão feios e mal-encarados como esses que viu.
— Ela predisse que terei quatro filhos.
— Ah, sim? Bom... Isso indica que não lhe quer muito
mal, por enquanto.
— Parece — riu Brigitte — que meu oráculo das pedras e
ossos deixou-a um pouco atrapalhada. Porque disse, doutor,
que se eu ficasse no povoado ouviria o tantã de Mabanga,
sem dúvida nenhuma.
— Razões simples e lógicas — explicou Delorme. —
Acontece que nesta ilha, geralmente, o vento sopra de oeste
para leste e de sul para norte; na maioria das vezes produz-se
um fenômeno acústico, que leva o som dos tambores de
Mabanga muito mais longe do que se poderia pensar.
— Ouviu seus tambores há uma hora, mais ou menos?
— Claro que sim.
— Puxa! — exclamou “Baby”. — Isso me tranqüiliza.
Cheguei a pensar que qualquer coisa não estava funcionando
direito em minha cabeça.
— Não faça caso dessas bruxarias. Não passam de
truques. O lançamento de ossos e pedras, o toque do tantã, a
ameaça do galo decapitado, a morte por feitiços... Truques!
— Que é isso de morte por feitiços?
— Já deve ter ouvido falar a respeito. Trata-se de um
boneco no qual são enterrados alfinetes.
— Ah, sim. Creio que a feiticeira faz uma espécie de
escultura de barro ou argila da pessoa a quem quer matar de
longe. Depois, crava alfinetes no ponto onde deseja que a
vítima sinta dor. E se deseja matá-la, crava o alfinete no
coração.
— Exato. Claro que são bruxarias, mentiras sem
fundamento de nenhuma espécie. Mas há algo de
assombroso em tudo isso: essas feiticeiras conseguem fazer
bonecos perfeitos. Vi alguns deles e asseguro-lhe que o
rosto, especialmente, era idêntico ao da vítima. Ah, um
detalhe: para que a bruxaria surta efeito, o boneco deve
trazer algo pessoal da vítima. Cabelos, geralmente. Se o
boneco tiver alguns cabelos da vitima, tudo está perfeito.
— Ouvi falar, sim. Diz o senhor que já viu alguns desses
bonecos... Que aconteceu com as pessoas em questão?
— Morreram.
— Como é?
Delorme olhou-a de soslaio, sorrindo, mas como furioso
consigo mesmo.
— É irritante, não acha? — indagou.
— Mas... Como morreram?
— Tal como os bonecos. Uma das vítimas tinha um
grande alfinete cravado na garganta. Outra foi cravada no
chão por meio de uma vara de bambu afiada; uma espécie de
lança, entende-se. O mesmo que os bonecos.
— Mas isso não é possível!
Delorme encolheu os ombros.
— Eu vi, mademoiselle Latour.
— Então... o senhor acredita nessas coisas do vodu, no
fundo?
Alfonse Delorme não respondeu. Após uns segundos de
torvo silêncio, tirou uma das mãos do volante e indicou um
ponto à frente e à esquerda.
— Aceitaria tomar um drinque, mademoiselle Latour? Eu
lhe agradeceria uns minutos de conversa razoável, sensata.
Venho aqui para descansar, para não ver ninguém... Mas,
claro, no ambiente profissional, apenas. Não há razão para
que eu perca a oportunidade de desfrutar a companhia de
uma jovem formosa e inteligente.
— Aceito — sorriu Brigitte. — Essa é sua cabana? —
Pois não me parece exatamente uma cabana, mas uma bonita
casa.
— Gosto de conforto, dentro do possível. Na verdade,
não faz muito tempo que a comprei. Resolvi de repente, um
dia em que estava muito fatigado. É um bom esconderijo —
sorriu. — Silêncio, solidão... Tenho um criado, e só. É um
lugar tranqüilo, embora fique bem perto do povoado.
***
— Um excelente vinho francês, doutor. Foi muito
amável.
— A amabilidade foi sua, mademoiselle. Sua conversação
é encantadora. Espero ter outras oportunidades de recebê-la.
— Não sei... Talvez eu parta amanhã mesmo. O mais
tardar, depois de amanhã.
Estavam, os dois numa ampla varanda. Georges, o velho
criado negro, dedicava-se a retirar o serviço, silencioso como
uma sombra. Já anoitecera, com a fulminante rapidez do
trópico, e próximo viam-se as modestas luzes do povoado.
— Esperava que me falasse com mais detalhe do vodu —
disse Brigitte, com intenção. — Esteve esquivando o assunto
durante todo o tempo.
— Não gosto do assunto, acredite. Sou talvez demasiado
civilizado e culto para isso. Eis por que evito conversar sobre
coisas em que não acredito e que não entendo... embora as
tenha visto.
— Compreendo. Bem, doutor, boa-noite.
— Não quer mesmo que a leve com o carro? Para mim...
— Não vale a pena. Até amanhã.
— Adeus.
“Baby” afastou-se da casa. Quando chegou ao caminho
que ia ao povoado, voltou-se e acenou uma despedida.
Depois continuou andando, mergulhada na sombra dos altos
bambuzais e gigantescas árvores que ladeavam o caminho.
E a menos de cem metros da casa de Alfonse Delorme,
uma das sombras se materializou bruscamente diante dela,
que saltou para um lado, enquanto algo rangia metalicamente
em sua mão direita.
— Sou eu... — ouviu a voz de Teófilo Paván. — Não se
assuste.
Brigitte aproximou-se dele, olhando-o com severidade.
— Nunca mais faça isto, Teófilo. Já podia estar morto.
Paván tomou-a pelo pulso, puxando-a para o bambuzal.
Só a luz da lua, num céu parcialmente aberto, filtrava-se até
ali, em finos raios que pareciam cortar o rosto dos dois
espiões.
— Morto? Você disse que não tinha trazido armas...
— Armas comuns. Está vendo este arame de aço?
Ergueu a mão, mostrando-o, brilhante.
— Que é? — indagou Teófilo.
— O que parece: um arame. Com o qual não só posso
estrangular alguém, como lhe cortar o pescoço, deixá-lo
cego, ou enchê-lo de lanhos profundos... Que deseja? Por
que me abordou?
Enquanto fazia as perguntas, introduzia o arame na
cintura do vestido, de modo que logo ficou novamente
oculto.
— Chegou um homem à ilha. Registrou-se no hotel com
o nome de Joseph Chevreux, francês. Mas eu juraria que é
inglês.
— Sim, é possível... Os ingleses já perderam um agente e
eles não são dos que desistem com facilidade. Acha que ele
está armado, Teófilo?
— De varas de pesca, aparentemente. Chegou numa
lancha de sua propriedade, carregado com um formidável
equipamento de pesca. Disse, para quem quisesse ouvir, que
pensa dedicar-se à pesca do tubarão.
— Está bem. Procure não o perder de vista. Mais alguma
coisa?
— Sim: você está doida. Como se atreveu a ir à casa da
velha Mabanga?
— Porque Nando Zafra estava lá, naturalmente. Não há
nenhuma Outra explicação.
— Escute: se essa velha...
— Escute você, Teófilo: estamos aqui para fazer gorar
essa rebelião planejada pelos negros antilhanos. Se Zafra não
tivesse sofrido o ferimento, talvez as coisas já estivessem
muito piores. Agora sua ferida está quase cicatrizada, de
modo que em menos de uma semana poderá voltar às suas
andanças. Pois bem: muito antes de uma semana, nós temos
que liquidar o assunto. Está claro?
— Mas não vai ser fácil matar Zafra!
— Não falei em matá-lo. O que disse foi “liquidar o
assunto”. Percebe a diferença?
— Não.
— Pois não se preocupe muito. Continue fazendo seu
trabalho: vigie todo o mundo, mantenha-me ao corrente de
tudo, esteja pronto para ajudar-me ou me proporcionar
armas... O resto, o que se refere a tomar decisões, deixe por
minha conta. Certo?
— Por mim está bem.
— Boa-noite, Teófilo.
Pouco depois, já discretamente informada de que havia
um novo hóspede no hotel, que aquela mesma noite saíra a
pescar tubarões, Brigitte, disposta a continuar representando
seu papel de rica divorciada de um americano, resolveu
mudar de vestido e descer para jantar. Mudar de toalete para
jantar é coisa que impressiona muita gente, convence-a de
que uma pessoa está acostumada a detalhes nos quais o
dinheiro intervém abundantemente.
Abriu o armário... e deu um passo para trás contendo a
duras penas um grito de espanto. Seus vestidos tinham sido
afastados para as extremidades da barra de onde pendiam os
cabides e, bem no meio, pendurado àquela barra, viu um
enorme galo branco, decapitado. Todo o animal estava
manchado de sangue. O mesmo sangue que salpicara
ligeiramente dois vestidos e que tinha gotejado no fundo do
armário, formando um feio coágulo vermelho-negro. Súbito,
ela percebeu que estava escutando uns tambores. Um som
longínquo, abafado, insistente...
Tinha levado a mão ao peito, impressionada, mas baixou-
a e acabou por sorrir, enquanto a cor voltava às suas faces.
— É só um galo morto — murmurou.
Envolveu-o cuidadosamente num dos vestidos e deixou-o
dentro do armário. Depois, limpou o sangue do armário e dos
vestidos ligeiramente salpicados. Arrumou-se um pouco, pôs
um vestido negro e curto, muito decotado, e desceu para
jantar, pensando consigo mesma, divertida, na cara que faria
o cozinheiro do hotel se ela lhe levasse o galo branco
decapitado para que o preparasse com cenouras.

CAPÍTULO QUARTO
Não há homens diferentes
Feitiços malignos e benignos
Uma barra de ferro contra um arame de aço

No dia seguinte, pouco depois das dez horas da manhã,


Brigitte chegava novamente à cabana de Mabanga levando
qualquer coisa sob o braço. Depois de chover quase toda a
noite, o tempo estava esplêndido, radiante de sol, cheio de
um calor ao mesmo tempo abrasador e úmido. Das folhas
das arvores desprendia-se um vapor tênue e tudo brilhava
como novo.
Nando Zafra estava no mesmo lugar que na tarde
anterior, milito simpático, bonito, saudável. Acabava de
tomar banho e fazer a barba. Quando “Baby” surgiu diante
da varanda, olhou-a atentamente, quase expectante. Não
parecia nem um pouco surpreendido.
— Você voltou — disse apenas.
Ela entrou na varanda e sentou-se numa cadeira de
balanço.
— Mabanga não está? — perguntou.
— Está... Anda por aí. Veio vê-la ou a mim?
— Nando, eu posso ser uma mulher impetuosa, mas não
uma imbecil. Você já disse que não precisava de mim para
nada. Por que vir vê-lo, então?
— Não preciso de você para nada do que disse —
retificou ele.
— Para que outra coisa?
— Não sei. Mas sei que quero vê-la muitas vezes.
Sempre.
— Eu já lhe disse que conheço coisas demais para poder
ser feliz, Nando. E uma das coisas que melhor conheço é o
homem, suas exigências. Tive um homem uma vez. Não
quero mais nenhum.
— Nem todos são iguais.
— Oh, não! Há brancos, pretos, amarelos, cobreados...
Essa é a única diferença. Todo o resto é idêntico em qualquer
homem... Não acha que está um lindo dia?
Nando Zafra ficou pensativo, antes de murmurar:
— Mabanga está por aí. Pode procurá-la.
Brigitte levantou-se e aproximou sua cadeira da dele.
Inclinou-se sobre seu rosto, sorrindo estranhamente.
— Entretanto — sussurrou, — penso que nem sempre se
conhece o Homem. Nem a Mulher, certamente.
— Eu conheço bem você.
— Verdade? Então, diga-me como sou. Gostarei de
ouvir...
— Você é bonita, boa e generosa. Creio que não sei nada
mais.
— É muito — riu “Baby”. — Até demasiado, Nando.
— Acho que Mabanga tem razão: você veio me matar...
Eu sei. E apesar de saber, não tenho medo de você.
— Você é um pescador muito estranho, Nando. Pensa
bem, fala bem, não tem complicações com suas próprias
idéias... Você confia em mim?
— Não. Mas não a temo, tampouco.
— Que sente por mim, exatamente?
— Não sei. Gostaria de ter você sempre a meu lado.
— Isso não poderá ser. Logo irei embora daqui e penso
que nunca mais voltarei... Mas posso deixar alguma coisa
com você, para sempre.
Aproximou os lábios dos de Nando Zafra, deixando neles
seu beijo e seu alento, longamente. Quando ia separar-se,
Zafra reteve-a pelos ombros, iniciando outro beijo, que
durou ainda mais que o primeiro. E enquanto durava, as
mãos do pescador negro foram deslizando pelos ombros de
Brigitte.
O rumor de uma respiração bruscamente agitada
sobressaltou-os. Ela incorporou-se de súbito, voltando-se.
Mabanga estava ali, procedente do interior da cabana. Gorda,
reluzente, com seus malignos olhos cravados em “Baby”.
Pusera as mãos nas costas, escondendo qualquer coisa.
— Mabanga — disse Brigitte, — venho devolver-lhe um
presente que não quero conservar.
— Não lhe fiz nenhum presente — respondeu a negra.
— Está mentindo... — sorriu Brigitte. — Mas não
estranho isso, nem me importo.
— Mabanga não mente.
— Eu digo que sim. Só você podia mandar-me o presente
de que estou falando.
— Mabanga é pobre. Não costuma dar presentes.
Brigitte desembrulhou parcialmente o objeto que levava,
depois, dando uma sacudidela no vestido que servia de
envoltório, fez o galo branco rolar em direção a Mabanga,
que soltou um grito e recuou apressadamente vários passos,
para em seguida ficar olhando aterrada o cadáver do volátil.
— Não foi você quem o mandou, certamente por
intermédio de um de seus filhos?
— Não... Eu não... Você vai morrer!
— Suponho que assim será, um dia. Mas não aqui, em
Antillanie. E claro que não por meio de bruxarias, Mabanga.
— É vodu... Vodu! O galo branco significa que você vai
morrer logo... O feitiço já está preparado e...!
— Continue.
— Não! Não!...
— O feitiço já está preparado... Você quer dizer minha
imagem, não é isso?
A negra começou novamente a recuar para o interior da
cabana. Mas a voz de Nando Zafra a deteve:
— Venha cá, Mabanga. Quero ver isso que você está
escondendo aí. Mostre!
Ela hesitou visivelmente. Seus olhos iam de “Baby” para
Nando, como se girassem por meio de um mecanismo bem
sincronizado. Mas aproximou-se do pescador e, após
interpor o enorme corpanzil entre ele e Brigitte, mostrou o
que tinha na mão.
— Não! — gritou Nando. — Não quero isso, já lhe disse
ontem... Não quero isso, Mabanga!
— Eu não mandei o galo. Não fiz nada... Estou dizendo a
verdade, Nando!
— Não quero que...!
Brigitte colocou-se entre eles e, com um movimento
rápido, arrebatou o que Zafra tinha agora na mão. A negra e
o pescador voltaram-se para ela, que retrocedeu uns passos,
segurando aquele objeto... Quando baixou o olhar, um
calafrio correu-lhe pelo corpo, fazendo-a estremecer
fortemente. Entre suas mãos, tinha sua própria imagem. Com
apenas vinte e cinco centímetros de altura, parecia modelada
em barro ou argila. Era ela... Exatamente ela. O corpo não se
cingia à realidade das medidas, de suas proporções, de sua
beleza. Mas o pequeno rosto da escultura era
surpreendentemente idêntico ao seu. Tanto, que nem mesmo
uma fotografia poderia superá-lo em fidelidade. A estatueta
estava completamente despida, mostrando uns seios
demasiado volumosos e umas cadeiras de amplitude
reduzida; os ombros eram demasiado largos, as pernas um
pouco curtas. O corpo não era parecido com o dela. Mas o
rosto era uma perfeita miniatura do de Brigitte Montfort.
— Que pretende você? — perguntou à negra. — Está
tentando matar-me com o vodu, Mabanga?
— Não, não! Só queria fazer um presente a Nando... Sei
que já não quer matá-lo. Não queria lhe fazer mal nenhum.
— É um feitiço benigno, Mabanga? — perguntou Nando.
— É sim! De verdade!
— Vou ficar com ele — disse o pescador, estendendo a
mão. — Quero-o para mim.
— Prefiro destruí-lo — disse Brigitte.
— Não! — gritou Mabanga. — Não faça isso! Você
morrerá! Nunca se deve destruir um feitiço benigno! Nunca!
— Tolice... — murmurou “Baby”. — Não acredito no
vodu, de modo que...
Teria certamente jogado o fetiche contra a parede, se o
pescador não interviesse. Apesar de ferido, ele saltou sobre
ela e arrebatou-lhe o boneco de barro, caindo no chão com
este, mas de tal modo que não lhe causou nenhum dano.
“Baby” inclinou-se para ajudá-lo a levantar, mas Mabanga
interpretou mal seu gesto e afastou-a com um repelão de seus
enormes seios, quase a derrubando.
— Não toque nele! — gritou. — Não toque nele!
Praticamente ergueu-o nos braços e levou-o novamente para
a cadeira. Zafra segurava com força a estatueta. Parecia
profundamente assustado, impressionado. Estava a ponto de
dizer alguma coisa, mas subitamente olhou para sua perna
ferida e ficou vendo a pequena mancha vermelha que se ia
ampliando sobre a calça branca.
— Não importa... — sussurrou. — Não importa,
Mabanga. É só um pouco de sangue. O fetiche não se
quebrou e isso é que importa. Importa a mim.
— Vou embora — disse secamente Brigitte. — Volto ao
hotel. Estarei lá pelo tempo que me aprouver. E se alguma
coisa tornar a me acontecer, se encontrar outro galo, ou um
sapo, ou qualquer feitiço semelhante, darei parte à Polícia.
— Mabanga não lhe mandou o galo, Brigitte.
— Por que devo acreditar nisso?
— Por que ela disse. Mabanga não fala quando tem que
dizer mentiras. Fica em silêncio. Ela não mandou o galo.
— De acordo — pareceu aceitar “Baby”. — Então, diga-
me quem foi.
— Não sei.
— Não? Diga-me: quem mais pratica o vodu na ilha?
— Ninguém... Ninguém que eu saiba, Só Mabanga.
— Só Mabanga? Está bem. Não me quer dar a estatueta?
— É para mim. Mabanga a fez para mim.
Brigitte dirigiu-se para a saída da varanda. Voltou-se e
indicou Mabanga com um dedo.
— Pense bem, Mabanga. Sou uma mulher vivida,
conheço muitas coisas, truques de toda espécie... Vim aqui
ontem para oferecer minha ajuda a Nando. Não aceitou,
Agora, ficarei em Antillanie o tempo que quiser. E se
durante esse tempo você tentar alguma coisa contra mim, eu
lhe demonstrarei que não é preciso ser bruxa para matar.
Aliás, você o sabe.
— Não desafie Mabanga — disse Nando. — Ela
poderia...
Mas “Baby” já se afastava da casa. Percorreu talvez uma
centena de metros antes de deter-se, olhando para todos os
lados. Ouviam-se as vozes estridentes de alguns pássaros
tropicais e a água continuava transformando-se em vapor
sobre as verdes e grandes folhas da espessa vegetação. Em
cima, um sol quase vertical, escaldante, pesado.
Súbito, deu um salto para a espessura, ficando escondida
entre uns troncos. Não aconteceu nada. Ninguém veio
intimá-la a seguir seu caminho, ou ameaçá-la. Isso,
provavelmente, queria dizer que Nando tinha dado ordens no
sentido de que a deixassem circular livremente nas
proximidades da cabana de Mabanga.
E aproveitando esta possível circunstância, ela retrocedeu
até a cabana. Em menos de três minutos chegou até a orla da
densa mata e ficou bem escondida num lugar do qual podia
ver a varanda. Mabanga e Nando estavam discutindo
acaloradamente e ele levantava a estatueta de Brigitte. Tão
idêntica, tão assombrosamente perfeita. Por fim, Mabanga
sentou-se no chão, fez um charuto com folhas de tabaco que
tirou do bolso e pôs-se a fumar, em silêncio.
“Baby” sentou-se no chão úmido e dispôs-se a esperar.
Com certeza nada de interessante aconteceria ali, mas nada
tinha de melhor a fazer que vigiar aqueles dois interessantes
personagens.
Quase ao meio-dia, duas outras pessoas entraram em
cena. Apareceram muito perto de Brigitte, sobressaltando-a,
acompanhadas de dois negros que portavam magníficos
rifles de vinte tiros. Passaram tão perto dela, que um simples
suspiro, o mínimo movimento a teriam denunciado. Mas não
houve suspiro nem movimento algum. Ela chegou mesmo a
prender a respiração. E a pequena comitiva se deteve na
clareira onde se encontrava a casa, diante da varanda.
Eram dois homens brancos, barbudos, de expressão torva.
Pareciam cansados, aborrecidos, quase irritados. Usavam
calças curtas, camisa cor de terra e capacetes de sol, sem
distintivos de nenhuma espécie.
Até “Baby” chegaram umas poucas palavras, em
espanhol: mar, terra, desembarque, homens, atraso,
importante... Os dois tipos gesticulavam com veemência e
suas vozes iam subindo de tom. Nando Zafra olhava-os
serenamente, sem se perturbar. Respondia com paciência,
num espanhol bastante deficiente. O bastante para que
Brigitte não pudesse entender pelo movimento de seus lábios
o que estava dizendo. Ele indicou o povoado por duas ou três
vezes, mas os barbudos moviam negativamente a cabeça
sempre que tal acontecia. Davam a impressão de não querer
ir ao povoado. Então... de onde vinham e onde estavam
alojados ou acampados?
Finalmente, pareceu haver um acordo forçado. Ninguém
ficou contente, mas a discussão cessou. Um dos barbudos faz
um gesto ameaçador em direção ao povoado, depois deu
meia volta e caminhou para o jângal, seguido pelo outro e
pelos dois negros.
Penetraram na espessura pelo mesmo ponto por onde dela
tinham saído. Afastavam as ramas desinibidamente, com a
indiferença de quem nada teme.
Mau procedimento, pois atrás deles, caminhando muito
mais sigilosamente, ia a espiã “Baby” da CIA, disposta a
saber onde estavam aqueles homens e quem eram.
Em poucos minutos chegaram à praia. Metida num
bambuzal, Brigitte via ao longe a esfumada costa da
Martinica, entre o litoral de Antillanie e um fundo de céu
azul palhetado de ouro. O mar era de um azul profundo,
esverdeando-se nas proximidades da costa. Os dois negros
voltaram-se, empreendendo o mesmo caminho ao inverso. E
os dois barbudos brancos dirigiram-se a uns rochedos. Não
havia embarcação alguma na praia. Nada cm que eles
tivessem podido chegar.
À esquerda de Brigitte, talvez a duzentos metros, algo se
moveu então, entre outro grupo de canas de bambu.
Imediatamente, ela umedeceu com a língua a ponta dos
dedos, que levou em seguida aos olhos. As lentes aderiram
aos seus índices, separando-se das pupilas azuis. Com
precisão, ela juntou as duas lentes, de modo que as partes
côncavas ficaram no centro; depois, mantendo-as
cuidadosamente em tal posição, colocou-as diante do olho
direito, voltada para o lugar onde tinha visto o movimento
entre os bambus.
Em menos de três segundos conseguiu enquadrar o
homem, aumentado pelo sistema ótico especial das lentes.
Estava afastando-se da praia a toda a pressa. Era moreno,
alto, bem apessoado. Voltou-se duas vazes, com a expressão
de quem teme ser seguido. E assim, ela pôde ver um rosto
correto, agradável, onde havia um fino bigode. Tudo isto
matizado pelo tom negro das lentes de contato e também um
pouco distorcido, como se o estivesse vendo numa bola de
cristal de pitonisa.
Finalmente, o homem ficou fora de seu alcance visual e
então ela voltou-se para onde se tinham dirigido os dois
barbudos, para os rochedos. Não pôde ver nada. Mas,
evidentemente, aqueles homens estavam ali escondidos,
esperando... Esperando o quê? E que tinham falado a Nando
Zafra? Por que este e eles pareciam irritados?
Pensativa, Brigitte tornou a colocar as lentes, voltando a
ter olhos negros. Já não havia ninguém na praia, nem se via
nada interessante, tudo estava solitário, desolado, ardendo
sob o sol tropical.
— Deve ser o inglês — pensou. — O tipo de bigodinho
deve ser o agente do MI5 que se hospedou no hotel com o
nome francês de Joseph Chevreux. Mas quem são os outros
dois?
Decidida a averiguar isto, não hesitou em dirigir-se para
os rochedos por onde tinham desaparecido os dois barbudos.
Tinha tempo de sobra para ver o inglês e, por outro lado,
talvez só dispusesse de uns segundos para chegar a tempo de
descobrir um esconderijo, ou escutar uma conversa
reveladora.
Caminhou sigilosamente por entre os bambu... evitando
qualquer ruído. E súbito, já muito perto daquele grupo de
rochedos, compreendeu tudo, vendo a pequena lancha que se
afastava da costa com os dois homens. Tinham escondido a
embarcação ali e agora partiam. Não parecia que seguissem
para a Martinica, mas para o norte.
Decepcionada, “Baby” voltou-se, disposta a regressar ao
hotel, pensando na conveniência de dizer a Teófilo que
mandasse Johnny, da Martinica, fazer uma tentativa para
localizar os dois barbudos, com uma lancha veloz e
procurando-os mais para o norte. Claro que...
Acabava de separar quase os últimos bambus quando se
deteve, paralisada pela surpresa, mal contendo um grito.
Diante dela, ereto, completamente nu, estava um negro
enorme, de olhos brilhantes, córneas avermelhadas. No alto,
segurava algo que parecia uma barra de ferro, com quase um
metro de comprimento. E subitamente ele a deixou cair, com
toda a força de sua poderosa musculatura e um sibilar
sinistro.
Brigitte saltou para um lado, estremecendo ao
pensamento de como ficaria sua cabeça se aquela pesada
barra de ferro a tivesse atingido em cheio, tal como se havia
proposto o negro. Foi de encontro aos bambus, enredando-se
neles, agitando-se desesperadamente para conseguir mover-
se com rapidez e eficiência. Enquanto isso, a barra de ferro
voltava à carga, atingindo agora as canas de bambu e
quebrando algumas, tão enorme era a força do espantoso
negro assassino. Um golpe que seria suficiente para derrubar
uma parede.
Os dois, silenciosos, deslizaram por entre os bambus, o
negro levando agora a barra de ferro como se fosse uma
espada, atirando estocadas para frente, sempre procurando o
corpo de “Baby”. Estava esta se esgueirando através do
bambuzal, que terminava um pouco mais além, voltada para
o negro, quando a ponta da barra de ferro, bastante aguda,
atingiu seu flanco, rasgando a blusa e a carne. Ela saltou para
trás, mordendo os lábios para não gritar. Encontrou-se em
terreno limpo, à sombra de altíssimas palmeiras.
Descartou imediatamente a idéia de correr, O gigantesco
negro logo a alcançaria; era um colosso e parecia treinado
como um atleta. O que ela fez foi sacar o arame de aço do
cós de sua saia e lançar uma veloz lategada contra os olhos
do negro, justamente quando este emergia do bambuzal.
O arame deu em cheio no rosto suarento do homem,
zunindo, cortando-lhe horizontalmente o nariz e arrancando
uma tira de pele de sua face esquerda, até a orelha. A cabeça
de Brigitte mal chegava ao ombro do negro e ela
compreendeu que devia levantar mais o golpe, se quisesse
acertar em seus olhos. Mas o assassino já tornava a atacá-la,
cara ensangüentada, rugindo surdamente. Desferiu outro
golpe com a barra de ferro, agora em sentido horizontal,
procurando novamente a cabeça de sua vítima, que se
esquivou flectindo as pernas. Ou talvez suas pernas tivessem
vergado por efeito do medo. O certo é que a terrível arma
passou sibilando por cima dela. O negro oscilou após o
violento golpe, ficando ligeiramente de costas para Brigitte,
que lhe aplicou uma lategada de aço no dorso, arrancando-
lhe outra tira de pele. Novamente o negro rugiu, voltando-se
para defrontá-la. Mais que dolorido, parecia surpreso,
perplexo. Certamente não estava acostumado a encontrar
uma resistência tão obstinada, uma tão apurada técnica de
luta. Lançou um novo golpe que também falhou e, em
resposta, recebeu mais uma lategada de aço, agora no
estômago. E apesar de toda sua força colossal, teve que
acusar o golpe, encolhendo-se, levando uma das mãos à
carne cortada, os olhos ferozes fixos naquela perigosa
inimiga, que lançou a toda a pressa Outro lategaço,
alcançando-lhe finalmente os olhos. Ele soltou um grito
lancinante, deixou cair a barra de ferro e levou ambas as
mãos aos globos oculares fendidos, gemendo. E veio abaixo
como um colossal ídolo de barro, perdeu sua galhardia, sua
força hercúlea.
Mas só por alguns segundos. Justamente quando Brigitte
se inclinava e apanhava a barra de ferro, o negro lançava um
grito de raiva, de ódio e estendia ambas as mãos para frente,
dedos crispados, dando um passo incerto, cambaleante. E
ela, ao incorporar-se, encontrou-se entre aqueles formidáveis
braços reluzentes, que a apertaram imediatamente contra o
peito poderoso. As costelas de “Baby” rangeram e ela
compreendeu que embora o primeiro abraço não fosse
demasiado forte, talvez por hesitação do negro, o seguinte
lhe partiria a coluna vertebral como se fora um lápis.
De modo que atirou um lanço às costas no negro, com a
barra de ferro aguçada. A pressão se afrouxou no mesmo
instante, mas o perigo ainda existia e Brigitte optou por
eliminá-lo definitivamente. Afastou-se tanto quanto lhe
permitiu o círculo daqueles braços musculosos, ergueu a
barra de ferro e, no momento em que o gigante de ébano
iniciava o segundo abraço, que deveria ser fatal, a ponta da
barra se cravava profundamente em seu pescoço.
O abraço foi muito, muito suave.
Durante alguns segundos, o negro, com a barra cravada
na garganta, ficou abraçado com Brigitte. Súbito, soltou-a e
caiu para frente, sobre ela, que se afastou, deixando que o
cadáver tombasse no chão.
E ficou apoiada a uma palmeira, suarenta, olhos ainda
dilatados pelo espanto, contemplando aquela enorme massa
negra, nua, brilhante.
— Santo Deus!
Manteve-se imóvel até acalmar-se completamente.
Depois, puxou o negro para o bambuzal, arquejando com o
esforço de arrastar aquele fardo de aproximadamente cento e
cinqüenta quilos. Deixou-o entre os bambus e saiu
novamente para a clareira. Guardou o arame em seu lugar,
depois olhou o ferimento que tinha no flanco. Não gostou de
seu aspecto, mas, sobretudo pensou na possibilidade de que a
ponta aguda da barra estivesse impregnada de veneno. De
modo que, embora isto significasse colocar-se um pouco em
evidência, talvez, resolveu atender primordialmente à sua
segurança pessoal.
***
O doutor Delorme colocou a terceira tira de esparadrapo,
completando assim o H que prendia o retângulo de gaze.
— Bom... Aí está, mademoiselle Latour. Isto não é nada.
— Oh, bem sei, doutor. Mas há espécies venenosas e tive
medo que...
— Nada, nada... O ramo contra o qual se chocou não era
venenoso. De qualquer modo, seria conveniente cortá-lo, já
que significa um risco para os passantes.
— Não está no caminho, mas à esquerda deste. Entrei
num bambuzal para ver o que havia do outro lado...
— E o que havia? — sorriu Alfonse Delorme.
— Nada — sorriu também Brigitte. — Quer dizer: havia
uma árvore com um ramo partido contra o qual esbarrei, ao
voltar-me.
— Isso prova que a curiosidade não é isenta de perigo.
— Tem razão. Bem, doutor, quanto lhe deva?
— Me deve? Oh, sim, por meu trabalho... Vejamos se
encontro um preço razoável. Que lhe parece tomar um
martini com muito gelo em minha companhia?
— Se sempre cobra esses preços, acabará se arruinando
— riu “Baby”. — Agradeço O convite, mas tenho que ir ao
hotel mudar de roupa.
Delorme olhou o belo torso da espiã, apenas coberto por
um breve sutiã vermelho pouco menos que transparente.
— Mas não pode ir assim ao povoado. E já que com isto
não é possível disse o médico, indicando a blusa
ensangüentada que ela tirara, — permita que lhe empreste
uma de minhas camisas. Uma pessoa tão bonita sempre
estará bem, seja o que for que vista. Estou certo de que
saberá tirar partido de minha camisa.
— Tentarei tornou a sorrir Brigitte. — Mas não desejaria
causar-lhe..
— Nada, nada — atalhou Delorme, — Georges?
O criado negro atendeu prontamente.
— Vá buscar uma de minhas camisas. A melhor.
O negro abandonou a saleta que dava para a varanda,
onde tinha sido feito o curativo.
— Não aceita mesmo o martini?
— Já lhe causei demasiado incômodo. O senhor veio
descansar aqui e se encontra às voltas com dois pacientes.
— Oh, o seu ferimento não tem a menor importância.
— Deve ter sido difícil arrancar o arpão da perna de
Nando Zafra, não?
— De fato, mas além de um médico estar acostumado a
tudo, já lhe disse que o dente do arpão não chegou a
penetrar. Neste caso sim, teria sido muito dolorosa e a cura
se prolongaria bastante.
— Eu não serviria para isso. Acredita que esteve a ponto
de desmaiar quando vi o sangue em minha blusa?
— É o normal. Já vi homens muito fortes empalidecer ao
cortar-se um pouco tentando abrir um coco, chegando
mesmo a quase desmaiar. No entanto, um desses mesmos
homens poderia ser capaz de matar um tubarão a faca, em
pleno oceano. São fatos curiosos que... Ah, eis a camisa.
Brigitte vestiu-a e, com efeito, ficou muito graciosa com
ela, embora não demasiado elegante, com tantas cores, a
grande gola e algumas pregas na cintura.
— Espero não chamar muito a atenção. Muito obrigada
por tudo, doutor.
— Nada, nada... Mas não esqueça que me deve uma
consulta: tomar um aperitivo, ou o drinque da tarde, comigo.
À sua escolha.
— Não esquecerei — sorriu “Baby”. — Até logo.
Afastou-se da casa com uma expressão trocista no rosto,
pensando que em qualquer luta, mais cedo ou mais tarde,
vence sempre o mais inteligente, não o mais forte.
Quando chegou ao povoado, já perto do botei, Teófilo
apareceu correndo, chamando-a escandalosamente.
— Madame! Madame!
Nem uma só pessoa deixou de olhar para eles, mas isso
era exatamente o normal. Muitos deviam saber que a bonita
morena distribuía gorjetas de vinte dólares e era natural que
o esmolambado Paván desejasse mais alguma.
— Que há?
— Vou lhe indicar diversos pontos da ilha, sugerir
excursões, pescarias... Mas não falaremos disso. Você só
precisa sorrir e ir negando.
— Sempre se aprende alguma coisa — disse Brigitte,
divertida. — Que está acontecendo?
— Nada em absoluto. — Teófilo mostrava as montanhas
distantes, com gestos exaltados. — O inglês, ou francês,
ainda não sabemos, está em seu apartamento no hotel. Que
se passou com você?
— Fui atacada por um negro enorme, com uma barra de
ferro. Esta camisa é do doutor Delorme, que me fez um
curativo.
— E o negro?
— Tive que matá-lo.
— Teve que mata...? Como? Com que o matou?
— pasmou-se Teófilo.
— Com aquele arame que lhe mostrei ontem. Falaremos
disso depois. No momento, foi bom você me abordar,
Teófilo: tenho necessidade de certa classe de equipamento.
Você pode ir a Fort-de-France?
— Posso... Mas não me ocorre nenhuma desculpa. Claro
que ninguém presta atenção em mim, mas...
— Eu lhe darei uma boa desculpa. Vamos subir à minha
suíte e conversar. Depois, a quem quiser ouvir, você dirá que
o mandei fazer umas compras em Fort-de-France, que subiu
para apanhar uma blusa minha a fim de ter as medidas... E
que lhe dei uma gorjeta de cinqüenta dólares. Está bem?
— Está ótimo.
Chegaram ao hotel e pouco depois entravam no
apartamento de Brigitte, que se dirigiu diretamente ao
quarto, seguida de Paván. Ela abriu o armário e apanhou uma
blusa, enquanto falava:
— Você procurará o Johnny e lhe pedirá um equipamento
especial de gravação por microfone; também um rádio de
bolso, e que ele permaneça atento à espera de um possível
chamado meu. Que tenha uma lancha preparada, com armas
diversas. Entendido?
— Que espécie de armas?
— Mmm... Digamos que haja pelo menos uma capaz de
afundar uma lancha. As demais podem ser quaisquer. Você
estive seguindo Chevreux?
— Estive... Mas aproximou-se muito da cabana de
Mabanga, da praia...
— Eu o vi. E também vi dois tipos barbudos, que
estiveram falando com Zafra. Pareciam aborrecidos com
qualquer coisa. Depois foram à praia e afastaram-se para o
norte numa lancha.
— Oh, compreendo... Hum...
Teófilo estava um pouco perturbado porque “Baby”,
colocando-se de costas para ele havia tirado a camisa de
Alfonse Delorme, aproveitando para trocar de sutiã, antes de
vestir uma de suas blusas. Ela voltou-se para olhar
ironicamente Paván, mas acabou por encolher os ombros.
— Você me trará o equipamento de gravação e os
microfones com a roupa que me comprar. Espero que tenha
bom gosto, Teófilo.
— Tentarei.
— Esses dois barbudos voltarão, certamente. De modo...
Que há?
Teófilo havia empalidecido de súbito, intensamente, e
seus olhos pareciam a ponto de sair das órbitas. Seu queixo
começou a tremer com força, tal como a mão com que
apontou para a cama de Brigitte, incapaz de articular uma só
palavra.
“Baby” olhou para lá e sentiu como uma pancada no
peito. Mas foi só um instante. Aproximou-se da cama e,
sobre o travesseiro, apanhou o fetiche de barro que tanto
tinha impressionado Teófilo. Ou não era de barro? Parecia,
mas tinha uma maciez quase de... carne. Sim, era dúctil,
elástico. Representava uma figura de mulher que bem
poderia ser Brigitte, embora fosse duvidosa a parecença. Ao
redor do pescoço, tinha atado um pedaço de pano. E o rosto
estava como amassado, destroçado a golpes, completamente
irreconhecível. Na cabeça, justamente sobre o crânio, via-se
cravada uma agulha, que se parecia extraordinariamente com
a barra de ferro empunhada pelo negro assassino.
Brigitte olhou o pedaço de pano que a boneca tinha ao
redor do pescoço e contraiu as sobrancelhas. Foi ao armário,
moveu seus vestidos, por fim examinou detidamente um
deles, até encontrar o pedaço que faltava. O mesmo pedaço
que agora se via na boneca.
— Deste jeito, acabo ficando sem ter o que vestir —
comentou.
— Quiseram... Prepararam-lhe um feitiço...
— Você parece não entender nada de nada, Teófilo.
— Entendo perfeitamente! — quase gritou Paván.
— Sim? Então explique.
— Pois... lhe mandaram isto para dar a entender que você
morrerá assim, com uma barra de ferro cravada na cabeça...
— Oh! De modo que morrerei assim?
— Já... já é inevitável!
— Pelo amor de Deus, Teófilo, não seja estúpido.
— Digo que é inevitável! O vodu decidiu que você morra
com uma barra de...
— Com uma barra de ferro cravada na cabeça? Muito
bem: uma barra como a do negro que quis me matar, talvez?
— Sim...
Teófilo Paván já nem sequer pôde piscar, nem
tartamudear. Olhava para Brigitte, atônito, ainda apavorado.
Ela riu amavelmente.
— Você já tem em que pensar durante a viagem, Teófilo.
Agora, leve esta blusa — tirou uma do armário e jogou-a
para ele — e vá a Fort-de-France fazer o que lhe pedi.
Lembra-se bem de tudo?
Paván assentiu com a cabeça.
— Ponha-se a caminho. Tome... Quinhentos dólares.
Gaste tudo, menos sua gorjeta. E não tenha acanhamento de
dizer que sou uma mulher muito rica, nadando em dinheiro...
Que espera?
— Que... que vai fazer com... com a boneca?
— Não sei... Ainda não sei. Mas pensarei em alguma
coisa. No momento, já que estou com muito apetite, descerei
ao restaurante e, com um pouco de sorte, talvez consiga
entrar em contato com monsieur Chevreux, nosso falso
francês e autêntico agente do MI5.
— Tome cuidado com o vodu...
— Oxalá tivesse apenas como inimigo o vodu, Teófilo.
Não me matariam nunca. Ora, vamos, bruxarias comigo...!
CAPÍTULO QUINTO
Um francês que não o é
O oráculo das cabeças de fósforo
Sorria, homem, sorria!

— Convida-me para tomar café, monsieur Chevreux?


O elegante homem do bigodinho ergueu vivamente a
cabeça e olhou para a bonita mulher que tanto havia
admirado durante o almoço. Súbito, levantou-se
precipitadamente, algo atrapalhado.
— Perdão... Mmm... Não tenho a honra...
— Desde quando um francês se expressa nesses termos
quando fala com uma mulher formosa, monsieur Chevreux?
— Brigitte sentou-se, sorrindo ironicamente. Depois
perguntou: Ou o senhor não é francês?
— Oh, sim... Mas como sabe?
— Há pouca gente interessante neste hotel. E dessas
pessoas interessantes, o senhor é quem mais o parece. Estou
sozinha na ilha e pensei... Também está sozinho, monsieur
Chevreux?
— Sim, estou sozinho.
— Isso é muito perigoso.
— Perigoso? Não compreendo...
— Já ouviu falar do vodu?
— Oh, sim — sorriu Chevreux. — Claro que sim. São
tolices, creio.
— Pensa assim?
— Naturalmente!
— Permite que lhe demonstre o contrário?
— Demonstrar-me...? Gostaria de ver isso, sem dúvida!
Oh, convido-a para tomar café, mademoiselle...
— Latour. Brigitte Latour.
— Encantado. Com licença...
Joseph Chevreux olhou para um garçom e lhe sinais que
foram devidamente interpretados. Quando novamente
prestou atenção a “Baby”, esta sacava uns quantos palitos de
fósforo da caixa que havia sobre a mesa e lhes tirava as
cabeças. Ante o olhar interessado de seu companheiro, ela
agitou-as no oco de suas mãos e depois deixou-as cair sobre
a toalha colorida.
— Voilá, monsieur! Examinemos detidamente seu
oráculo...
— Isso é divertidíssimo — sorriu Chevreux.
— Ssssttt... Atenção, por favor. Vejamos... Sim. Oh, sim,
sim, está muito claro! Vejo aqui a bandeira inglesa e um
homem com grande bigode branco dando ordens... Também
vejo um homem, um inglês, morto a tiros... Mas isso foi
antes. Agora vejo o senhor e o homem de bigode branco.
Estão em... em Nassau, nas Bahamas! Certo, monsieur?
Este apertou as pálpebras, olhando com novo interesse a
bela desconhecida.
— Continue — murmurou.
— Mmm... Vejo muitos antilhanos, com armas modernas.
Efetuaram um pequeno ataque a um local que não consigo
identificar. Vejo uma praia e um inglês atirando com uma
automática... Disparam contra ele... Matam-no! Depois, vejo
o senhor escutando as ordens do cavalheiro do bigode... Mas
o nome não é Chevreux, é outro que não posso ouvir bem.
Um nome inglês, que parece. A ordem é matar um homem
negro, que está ferido na ilha de Antillanie... Nesta ilha! Ah,
isso é o que o senhor está tentando fazer: eliminar esse
homem negro. Mas está bem vigiado. Não se pode chegar até
ele, menos ainda levando armas. Entretanto, o senhor está
procurando um modo. Busca pela praia e vê dois homens
negros e dois brancos, barbudos. Afasta-se, porque teme que
o vejam. E ninguém deve saber que o senhor veio aqui com
outros propósitos que pescar tubarões. É perigoso aproximar-
se do homem negro, mas o senhor está disposto a tentar.
Deseja matá-lo para vingar o outro inglês e impedir que
muitos negros antilhanos se levantem em armas... Está certo,
monsieur Chevreux?
— Quem é você? — perguntou ele.
— Uma divorciada de um americano rico.
— E que faz nesta ilha?
— Estudo seu oráculo... — sorriu “Baby”. — Ainda
faltam algumas coisas. Uma inclusive, claríssima. Sim... Seu
oráculo indica que deve desistir, no momento, de qualquer
tentativa de aproximar-se do homem negro. Se quiser fazê-
lo, precisará dispor de mais forças. Vejo aqui umas letras e
um numero... Oh, sim, sim... Não é esta a sigla do Ministério
de Inteligência inglês, Seção 5?
— Penso que sim — sorriu secamente Chevreux. — E...?
— As pessoas que lá existem são suas amigas. Peça
auxílio ou desista.
O garçom chegou com o café, serviu-o e retirou-se.
Chevreux ofereceu um cigarro a Brigitte e acendeu um para
ele.
— Que diz o oráculo sobre você mesma? — perguntou.
— Oh... não é o meu oráculo, mas o seu, mister...
Chevreux.
Este sorriu, apanhou as cabeças de fósforo, agitou-as na
mão e deixou-as cair sobre a toalha.
— Bom... Também seu oráculo é interessante,
mademoiselle Latour. Parece que seu nome é exatamente
esse e eu diria que sua presença em Antillanie obedece a
motivos... terríveis.
— Matar um homem? — sorria “Baby”.
— Exatamente! Mmm... Vejo aqui um cavalheiro obeso,
de óculos, que está sentado num escritório. Em Paris,
talvez... E duas palavras que não compreendo muito bem.
— Deuxième Bureau? — sugeriu ela, sorridente. — Sim!
Não é esse o nome do departamento francês de espionagem e
contra-espionagem?
— Justamente. Oh, é fantástico isto dos oráculos, não
acha?
— Fascinante. Mas o que é que deseja dizer-me?
— Nada... Apenas estivemos brincando de vodu. O café
vai esfriar.
Chevreux tomou um gole e perguntou:
— Está sugerindo que eu desista de meu trabalho?
— Seria uma boa idéia.
— E Você? Que faria?
— Não sei. Que me aconselha?
— Digamos que sua segurança pessoal é tão valiosa
como a minha. Por outro lado, não me consta que tenha
morrido nenhum agente do Deuxième Bureau, apenas um do
MI5.
— De fato, mas quando num trabalho como o seu
intervém a vingança, os resultados podem ser muito
desfavoráveis. E já que o que se procura são resultados
favoráveis, seria melhor que realizasse o trabalho alguém
não imbuído do desejo de vingança. Compreende?
— Compreendo.
— E então?
— Penso que ficarei na ilha.
Brigitte terminou seu café e moveu pesarosamente a
cabeça.
— Ia propor-lhe que déssemos juntos um passeio,
Chevreux. Mas penso que você me complicaria a vida.
Continuarei... passeando sozinha pela ilha, à espera de uma
ocasião infalível. A pressa é coisa inconveniente. Foi um
prazer conhecê-lo.
Ergueu-se e Chevreux imitou-a rapidamente, declarando:
— O prazer foi meu. Tornaremos a ver-nos, para brincar
de vodu outra vez?
— Por mim não há inconveniente, mas temo que você
não possa assistir à próxima seção.
— Farei o possível — sorriu o falso francês.
— Oh, claro, isso é natural... Creio que vou dormir uma
longa e reparadora sesta. Eu não tenho pressa para nada.
Adeus, Chevreux.
— Adeus.
Pouco depois das cinco da tarde, Teófilo Paván regressou
de Fort-de-France, na Martinica, carregado de embrulhos,
sorrindo e comentando com seus conhecidos no
embarcadouro que aquele fácil e divertido trabalho lhe havia
dado nada menos que cinqüenta dólares de lucro. E dirigiu-
se alegremente para o hotel, seguido por olhares invejosos.
Após bater na porta da suíte, começou a assobiar, perfeito
em seu papel de satisfeito da vida. E entrou sem deixar de
assobiar, mas agora de outro modo, ao ver a reduzidíssima
indumentária de “Baby”, que bocejava graciosamente.
— Tudo bem, Teófilo?
— Sim, tudo bem... Você não devia me provocar deste
modo.
— Não diga tolices. Somos espiões trabalhando, não é
verdade? Vejamos o que trouxe.
Sem fazer o menor caso dos vestidos, blusas e malhas,
dedicou toda sua atenção ao material que Teófilo retirou de
entre as dobras de um dos vestidos: um rádio de bolso, dois
microfones, um receptor-gravador para esses microfones.
Apanhou o rádio e acionou-o:
— Johnny? — murmurou.
— Perto de Antillanie, pescando. Já apanhei...
— Não quero saber.
— Me disseram que você era simpática. Como vai o
vodu?
— Bem — sorriu Brigitte. — Esqueça que sou simpática.
Pode falar da pesca.
— Excelente. Apanhei duas formidáveis barracudas. São
animais um tanto perigosos, acredite. E já que falamos de
perigos, opino que você está complicando a vida. As ordens
foram...
— Eu dou as ordens, Johnny.
— Bom... Já me avisaram, de maneira que não estou
muito surpreendido. Que tem a dizer-me?
— Continue pescando, mas perto da costa de Antillanie,
defronte da Martinica. Há um trecho de praia rochosa aí; se o
chamar pelo rádio, desembarque perto dessa praia, entre ela
e o povoado. De que armas dispomos?
— Diversas. Mas para afundar uma lancha tenho uma
lança-granadas tipo WF-107. Serve?
— Perfeito. Bem, Johnny, fique atento ao meu chamado.
— Okay. Não pode dizer algo do assunto? Do novo jeito
que tomaram as coisas?
— Não estou certa ainda. Até a vista.
Cortou a comunicação e voltou-se para Teófilo.
— Você também tem rádio?
— Escondido, com as armas...
— Traga-o sempre consigo. E também isto... —
entregou-lhe um microfone. — Quero que tão logo anoiteça
você comece a passear, bem escondido, pela praia rochosa
que mencionei ao Johnny.
— Isso fica perto de Mabanga...
— Eu sei. E faça o favor de deixar de bobagem. Digo-lhe
que vá passear por lá. Claro?
— Claro — resmungou Teófilo.
— Okay — sorriu Brigitte. — Pode ir. E alegre essa cara,
homem: não esqueça que acaba de receber cinqüenta dólares
de gorjeta.
Teófilo Paván mostrou os dentes, de má vontade.
— Está bem assim? — grunhiu.
— Não, não! Precisa sorrir com mais espontaneidade,
com mais alegria. Assim, está vendo? Como eu. Entende?
Como um anjo feliz.
— Você não se dá conta de que suas decisões pessoais
podem custar a vida de nós três?
— Claro que sim, Teófilo. Mas sorria, homem, sorria!
CAPÍTULO SEXTO
A luta por uma falsa liberdade
Amor e proteção
Um prisioneiro inglês, que se diz francês e compreende o russo

Mabanga estava sentada no chão, fumando um de seus


fortes charutos fabricados por ela própria.
Foi a primeira a vê-la. Ergueu a gorda mão e levantou-se
com dificuldade, estremecendo suas fartas banhas.
— Eu te disse que a verias muitas vezes e que serias feliz
por isso — murmurou.
Nando Zafra nem reparou que a negra se afastava. Seus
olhos estavam fixos em Brigitte Latour, que mais uma vez
chegava à cabana, valendo-se da liberdade que lhe davam as
ordens do pescador a seus amigos e vigias.
Deteve-se diante dele, olhando-o intensamente.
— Você tornou a vir — disse Zafra.
Ela moveu afirmativamente a cabeça. Nando usava
somente umas calças curtas, de cor cáqui. Sua ferida tinha
uma pequena bandagem. E toda a musculatura de seu corpo
escultural estava à vista.
— Por que voltou?
— Não sei bem, Nando. Você não se alegra por isso?
— Sim. Queria ter sempre você diante de meus olhos.
— Acho que... que o mesmo acontece comigo. Aonde foi
Mabanga? Para dentro da casa?
— Não. Deve ter ido passear, ver seus galos...
— Brancos? — perguntou “Baby”, sorrindo.
— Tem galos brancos, sim. Mas não foi ela quem lhe
mandou aquele. Nem deseja mal algum a você. Insiste em
que você já matou muitas vezes, mas que não é má e que não
seria capaz de matar a mim. Você veio a Antillanie para
matar-me?
— Vim.
— E mudou de idéia?
Brigitte olhou para a casa.
— Não está ninguém aí dentro? — perguntou.
— Não.
— Vamos, então — sorriu docemente. — E mostrarei a
você que o que desejo é o contrário de matá-lo... Quer?
Nando Zafra levantou-se. Começou a caminhar,
coxeando ligeiramente. “Baby” colocou-se a seu lado e
passou um dos musculosos braços do negro por seus ombros,
ajudando-o. Entraram na casa, feita de troncos e canas de
bambu. E foi a própria Brigitte quem dirigiu a marcha, em
demanda de um dos quartos. Havia um colchão amplo e,
sobre ele, um abano feito de folhas de palmeira, que se podia
mover por meio de uma corda. Havia também um
mosquiteiro rodeando o colchão e ela abriu-o.
Nando ficou de pé, sem ajuda, do que obviamente não
precisava. “Baby” despiu-se lentamente, sem deixar de olhar
para ele. Quando ficou nua, estendeu-se no colchão e ergueu
os braços.
— Venha... — sussurrou. — Quero que me possua.
— Por quê?
— Você não quer?
— Quero.
— Eu também.
— Não sou homem para você — murmurou roucamente
Zafra.
— É sim. Um homem bonito, decente e um pouco tolo.
Mas é um homem para mim. E não lhe peço mais do que
você me pode dar.
Ele respirou profundamente, expandindo o largo peito de
ébano. Sentou-se no colchão e olhou para Brigitte, que lhe
rodeou o pescoço com um braço, atraindo-o para os seus
seios frementes. Ele começou a beijá-los e passou a mão
pelas coxas de “Baby”, que estremeceram. O outro braço
desta rodeou também o pescoço do homem, apertando-o
mais contra seus palpitantes seios.
— Sou toda para você, Nando... Beije-me...
***
Estavam os dois sentados na beira do colchão. Nando
fumava um dos cigarros de Brigitte, tal como ela. Fora se via
o tom avermelhado do crepúsculo.
— O passeio de Mabanga é muito longo — sorriu
Brigitte.
— Ela sabia que não era para vir.
— Adivinhou? — perguntou “Baby”, trocista.
— Mabanga sabe tudo.
— Ora, vamos, Nando! É bem verdade que você é um
pouco tolo. Qualquer pessoa pode enganá-lo facilmente.
Ele a olhou, risonho.
— Você perceberia se a estivessem enganando?
— Claro. Por exemplo, sei que o Doutor Delorme é um
mentiroso. Além disso, não é boa coisa, Nando.
— Por que fala assim? Mentiroso por que motivo?
— Perguntei-lhe se tinha retirado um arpão de sua perna
e disse que sim. Portanto, mentia. Todos sabemos que a
ferida foi de bala. Por que ele mentiu?
— Não sei.
Brigitte tomou a sorrir. Olhou durante alguns segundos
para o negro e, por fim, beijou-o longamente nos lábios.
— Sabe sim — murmurou depois. — E vai me dizer.
Alfonse Delorme é certamente um médico. Mas não está
aqui para descansar e sim por um outro motivo que tem
relação com você, com armas, com lutas... Não é verdade,
Nando?
— Não, não...
— Você não sabe mentir! — riu “Baby”. — Você é alto,
forte, amável, bom e por isso todos lhe querem bem.
Exatamente por isso, Nando. Não porque você os conduza a
uma luta estúpida, na qual nada conseguirão, a não ser a
morte. Quantos dos seus amigos já morreram?
O olhar de Nando Zafra turvou-se.
— Todos temos que morrer um dia — murmurou.
— É verdade. Mas não há razão para morrer trinta ou
quarenta anos antes por uma causa que não é boa.
— As Antilhas Livres...
— Nando; meu nome verdadeiro é Brigitte Montfort e
pertenço a um serviço secreto. Trabalho para a CIA, com o
nome de “Baby”. Todos os espiões do mundo já ouviram
falar a meu respeito e sabem que eu nunca falho. Agora
escute isto: fui mandada aqui para matar você.
— Por quê?
— Porque você é o único homem que os antilhanos
seguiriam. Um homem de sua raça, de sua cor, um homem
bom a quem todos querem bem. Entretanto, vários de seus
amigos morreram... inutilmente.
— Inutilmente, não.
— Não? Que foi que Alfonse Delorme lhe ofereceu em
troca dessas vidas, ou da sua própria?
— Ele me garantiu que quando...
Deteve-se de chofre, olhando torvamente para Brigitte,
que sorria.
— Você está vendo? Posso conseguir que me diga tudo,
usando apenas algumas armadilhas durante a conversa. Mas
não quero fazer isso com você. Quero que você mesmo se
abra comigo.
— Foi por isso que você...?
— Por isso e por outras coisas... de caráter pessoal —
murmurou “Baby”. — Quem é Alfonse Delorme, Nando?
— Não sei. Mas é ele quem me dá as ordens.
— E quem mais?
— Ninguém mais. Só ele.
— Está bem. E as armas? Quem fornece as armas?
— Não sei. Ele se encarrega disso.
— E quem são os dois barbudos que estiveram esta
manhã aqui, discutindo com você em espanhol?
— Você os viu? — exclamou Nando.
— Eu vejo tudo, amor. O de fora e o de dentro das
pessoas. Por isso você ainda está vivo.
— Você não pôde me matar, isso sim.
Brigitte riu amavelmente.
— Pelo amor de Deus! — exclamou. — Podia ter morto
você mil vezes, a partir do momento em que seus amigos me
deram trânsito livre! Você podia ter morrido às minhas mãos
de mil maneiras diferentes. Entretanto, em lugar disso...
— Que é que você quer, exatamente, Brigitte?
— Paz no mundo. Há lugares em que não posso fazer
nada e resigno-me, não sem tristeza. Aqui, já poderia ter
morto você e os antilhanos voltariam à sua vida tranqüila e
preguiçosa, sem essas falsas esperanças das Antilhas Livres.
Por que lutar por alguma coisa que vocês já têm? Vocês são
livres e felizes. Ofereceram-lhes a independência? Mentira.
Podem libertar-se de uns, para depender de outros.
O Doutor Delorme e os que o respaldam não querem lhes
dar independência, nem liberdade, nem progresso. Querem
apenas ser eles os que mandam no que se chamaria Antilhas
Livres, e inculcariam em vocês suas idéias políticas,
religiosas, econômicas... Só isso, Nando.
— Não... Não é verdade.
— Você pensa assim? Não sabe o que está acontecendo
na Venezuela?
— Aquilo é diferente.
— Diferente... em quê? São guerrilheiros que querem
derrubar os que mandam para colocarem-se no poder. Para
quê? Para o bem do povo ou para o bem deles mesmos? O
povo sempre perde, quando há guerra. O político inteligente
e bom é o que consegue tudo sem guerras, sem mortes. Esse
sim quer bem ao seu povo, evitando que se exponha à morte.
Aquele que manda homens morrerem não interessa. Diga-
me: eram cubanos os dois barbudos que estiveram aqui esta
manhã?
— Você sabe falar muito bem mas...
— Eram cubanos?
— Eram.
— Que queriam?
— Instruções.
— A respeito de quê?
— Queriam saber quando deviam... deviam...
— Continue.
— Queriam saber quando deviam desembarcar as armas.
Eu lhes disse que fossern falar com o doutor, mas
responderam que isso não lhes convinha. Por fim, disseram
que se poriam em contato com ele.
— Por que meio? Não sei.
— Essas armas... vêm de Cuba?
— Vêm.
— Muitas?
— Para mais de mil homens.
— Mil homens! E quando chegarão?
— Não sei.
— Mas serão trazidas a esta ilha?
— Sim. Serão todas trazidas para cá, e daqui as
levaremos para outros lugares...
— Compreendo. Antillanie está destinada a ser o arsenal
das Antilhas Livres. Por isso Delorme veio a esta ilha. E por
isso deixou você aqui, com Mabanga. Quer estar ao corrente
de tudo, não afrouxar as rédeas do seu cavalo de guerra...
Vou lhe dizer uma coisa, agora: o Doutor Delorme não faz
caso das Antilhas Livres, Nando.
— Não? Por que está participando?...
— Por lucro pessoal, por proveito próprio. Aposto minha
vida como Alfonse Delorme está obedecendo ordens e ajuda
de outras pessoas, tal como os guerrilheiros da Venezuela. E
em troca, não lhe entregarão umas Antilhas Livres, mas
dinheiro para ele. Só isso. Escolheram-no, depois de estudá-
lo: ambicioso, farto deste clima de atender a negros pobres,
de viver mediocremente. Ofereceram-lhe dinheiro, ele o
receberá e irá para Paris, ou outro lugar parecido.
— Não, não é possível...
— Espero poder provar isto, Nando. Se você aceitar
minhas...
Brigitte calou-se bruscamente, pois ouviu com bastante
clareza o estampido de um rifle. Depois, quase em seguida,
outro. E mais outros dois. Depois novamente o silêncio.
Nando tinha querido levantar-se, mas “Baby” o segurara
por um braço.
— Logo o trarão aqui. Não se mova ainda.
— Trarão... a quem?
— A um louco. Um homem que se diz francês e chamar-
se Joseph Chevreux. Mas é inglês, companheiro do homem
que vocês mataram na praia.
— Eu nem sequer atirei. Nem estava armado...
— Ele não sabe disso. E, como eu, recebeu ordem de
matá-lo, ordem que estava decidido a cumprir com muito
gosto, fosse como fosse. Vamos para a varanda.
Quando lá chegaram, Mabanga já estava e, com olhos
assustados, vigiava a mata. Atrás dela, dois de seus filhos,
com enormes machetes de cortar cana nas mãos. “Baby” não
fez o menor comentário. Ajudou Zafra a sentar-se e esperou.
Todos esperaram em silêncio, um tanto inquietos, talvez
porque as sombras da noite se aproximavam rapidamente.
Dentro de um minuto ouviu-se ruído na mata e
apareceram dois dos negros amigos de Zafra. Atrás, Joseph
Chevreux, ferido num ombro. E atrás dele, três outros
negros, um com a cara cheia de sangue, que brotava de um
tiro de raspão em sua têmpora esquerda.
— Nando — disse um deles — este homem queria matá-
lo. Estava perto da casa, procurando um ponto apropriado
para disparar. Este é seu rifle.
— Acabem com ele! — gritou Mabanga.
— Não — disse Nando. — Dêem-me seu rifle.
Brigitte olhou-o com certa expressão de incredulidade.
Mas Nando Zafra, sorrindo, limitou-se a examinar o rifle:
mira telescópica com luz negra, longo alcance, precisão
máxima, desmontável...
— Prendam esse homem no curral — ordenou.
— Por que não o matas? — perguntou Mabanga.
— Não. Por ora, não.
— Mas se ele queria te matar!
— Eu sei — indicou Brigitte: — Ela também sabia. Por
isso, levou-me para o quarto. Sabia que este homem
conseguiria chegar perto de mim. E se eu tivesse ficado aqui,
ele sem dúvida me teria morto. Sim. Isso quer dizer que devo
minha vida a ela, Mabanga.
— Mas não a ele!
— Ficará preso no curral. Eu pensarei em alguma coisa.
Mabanga ficou resmungando furiosamente e Brigitte
aproximou-se do ferido Chevreux, que a olhou sem nenhuma
expressão. Nem sequer havia em seu rosto algum ricto de
dor, em que pese a ferida do ombro.
— Isso: mantenha-se calmo — sussurrou-lhe, em russo.
— Procurarei fazer algo por você.
— Não vai dizer que bem me prevenira? — perguntou
ele.
— Não. São inteligentes demais para essas tolices. O que
interessa agora é tirá-lo desta enrascada. Confie em mim.
— Está bem... Obrigado.
Dois negros levaram Chevreux e quando “Baby” voltou-
se, seu olhar pareceu chocar-se com o de Zafra.
— Que disse a ele?
— Que procuraria ajudá-lo a escapar. A menos que você
mesmo mande soltá-lo, Nando.
— Não darei essa ordem. Tenho que pensar.
— Bom. Posso ir, ou também ficarei prisioneira no
curral?
— Aonde vai?
— Ver o Doutor Delorme e dizer-lhe que venha ver o
ferimento do inglês e o do seu amigo. Posso pedir-lhe uma
só coisa, Nando?
— Quem dá tem o direito de receber.
— Não mencione nossa conversa ao doutor.
— Está bem. Quando você volta?
— Não sei. Logo, sem dúvida. E não receie nada de mim.
Zafra moveu negativamente a cabeça.
— Nada receio de você. E pelo que disse, nenhum de
meus amigos tem tampouco nada a temer. Só espero que
demonstre que suas palavras continham a verdade.
Brigitte assentiu com a cabeça.
— Até logo, Nando.
CAPÍTULO SÉTIMO
Um homem à janela
Afinal, cada um tem o seu vodu
Já ninguém mais pode deter a agente “Baby”

O doutor Delorme não estava em casa, mas chegou cinco


minutos mais tarde. Ergueu as sobrancelhas, com uma
expressão de grata surpresa, ao ver Brigitte sentada na
varanda.
— Mademoiselle Latour! Fui ao povoado justamente para
procurá-la. Queria fazer-lhe um convite... Não esqueça que
me deve uma consulta.
— É verdade — sorriu “Baby”. — Estive em casa de
Mabanga, para ver o Nando. Venho de lá. Georges me
autorizou a esperá-lo...
— Sobram as explicações. — Delorme sentou-se diante
dela, sorrindo amavelmente. — Tudo bem por lá?
— Não muito... E exatamente por isso vim aqui. Parece
que alguém quis atirar contra a cabana... Contra Nando,
supõe-se. Um homem branco, que foi ferido e agora está
preso no curral.
— No curral? Que selvagens!
Brigitte mal pôde conter um sorriso irônico.
— Pensei que o senhor seria mais humanitário e que...
Bem, parece que todos estamos dispostos a estragar suas
férias, doutor.
— Assim é — resmungou Delorme. — Mas não me
posso negar a ir. Virá comigo, mademoiselle Latour?
— Se realmente me necessita...
— Não, não. Disse-o somente porque me pareceu que
assim o desejava.
— Ah, não. Irei para o hotel. Sou uma dessas pessoas que
quase desmaiam quando vêem sangue.
Delorme sorriu cortesmente.
— A propósito: como vai o seu ferimento?
— Muito bem. Suas mãos são realmente milagrosas,
doutor. Nos veremos amanhã, talvez, se eu não tiver ido
embora...
— Sem me pagar a consulta?
— Não esquecerei isso. Até a vista. Por favor, não
esqueça esse homem...
— Irei lá imediatamente. Quer que antes a leve ao hotel
em meu carro?
— Obrigada, mas a distância é curta e gosto de andar.
Adeus.
— Adeus.
Alfonse Delorme permaneceu na varanda, vendo Brigitte
afastar-se. Georges veio com sua valise e também ficou
olhando para Brigitte.
— Essa mulher — murmurou Delorme — é muito esperta
e audaz. Parece que não teme coisa alguma. Talvez
devêssemos ter aproveitado esta ocasião para matá-la,
Georges.
— Ela matou Fernand. É muito perigosa.
— Talvez não tenha sido ela... Certamente alguém a está
ajudando. Não é possível que tenha podido vencer Fernand
sozinha.
— Talvez quem a ajuda seja esse homem ferido.
— Talvez... Verificarei isso. De qualquer modo, a
sentença de morte está ditada contra mademoiselle Latour.
— O senhor fez o serviço?
— Fiz e coloquei em sua maleta: não nos incomodará
mais. Será mais uma vitima do vodu de Mabanga... Tive a
grande idéia de escolher esta ilha, onde há uma feiticeira.
Assim, se alguém morre, em circunstâncias estranhas, só
caberá uma explicação: vítima do vodu. E todos os curiosos
ou espiões, como essa Brigitte Latour, terão que morrer. E
como será por meio de “bruxarias”, ninguém virá me
incomodar, pois sabem que detesto o vodu. Vigie bem,
Georges.
— Não tenha cuidado, doutor.
— E se vier algum deles, diga-lhe que já estou na praia.
Irei para lá assim que sair da casa de Mabanga.
Alfonse Delorme afastou-se e Georges ficou só, passando
a arrumar algumas coisas na casa, tão distraído, tão absorto
em seus pensamentos, que levou mais de um minuto para se
dar conta de que estava ouvindo um tantã, lento, abafado.
— Morte — murmurou George, estremecendo.
— O vodu de Mabanga está chamando a morte...
No bochorno da noite caiam algumas gotas pesadas. A
estação das chuvas chegava ao fim, mas ainda havia água
suficiente no céu para inundar Antillanie. Entre isso e o vodu
de Mabanga, o impressionado Georges resolveu fechar todas
as janelas, embora o calor sufocasse dentro da casa.
Certificou-se de que as dos quartos ficavam bem fechadas.
Depois, fechou a grande porta-janela da varanda e uma da
sala principal. Estava a ponto de fechar a outra, satisfeito
porque as gotas tinham deixado de cair, quando ouviu um
ruído fora. Como uma pedrada... Adiantou a cabeça, olhando
para a direita com olhos muito abertos, indeciso, temeroso...
Mas o ataque veio pela esquerda. E nada tinha a ver com
o vodu. Foi somente uma pequena mão, muito bela,
amorenada pelo sol, que o golpeou de canto num lado do
pescoço; um golpe curto, seco, que o privou
instantaneamente do conhecimento, deixando-o caído de
bruços sobre o peitoril, meio corpo fora e meio corpo dentro
d’a casa.
A inconfundível silhueta de ‘Baby” recortou-se na noite,
ao descolar-se da parede. Ergueu a cabeça do negro para
certificar-se de que estava sem sentidos.
— Cada um tem seu vodu, querido Georges.
Entrou na casa, desinteressando-se da sala. Tampouco
dedicou a menor atenção à cozinha. Nem ao quarto que,
evidentemente, era de Georges. Todo seu interesse
concentrou-Se de imediato no quarto de Alfonse DeLorme.
— Tem que estar aqui — murmurou.
Revistou o pequeno armário, olhou debaixo da cama,
assegurou-se de que não havia nenhuma parte oca nas
paredes... Finalmente começou a mover-se a passos curtos,
pisando com força, fazendo soar o salto de seu sapato contra
o assoalho, até que o som mudou.
Retirou o pequeno tapete de palha e olhou o alçapão
quadrado. Ergueu-o sem hesitar e imediatamente sentiu o
cheiro de terra úmida. Aquele porão devia ser muito recente.
Embaixo, a escuridão era total, de modo que ela recorreu aos
fósforos que encontrou na mesinha de cabeceira do doutor.
Prometeu-se que não mais iria a parte alguma sem seu
equipamento.
Desceu uns quantos degraus de madeira e acendeu um
fósforo. Viu logo o transmissor, colocado a um canto do
úmido recinto. Também viu o interruptor, que apertou;
fazendo acender-se sobre o rádio uma lâmpada de luz
vermelha, tênue, a qual projetou sua sombra agigantada
sobre a parede fronteira.
— Muito bem. É muito natural, Delorme. Você tinha que
possuir um rádio transmissor e receptor.
Não tocou no rádio. Voltou-se, olhando o resto do exíguo
porão, mas nada mais havia. Exceto um caixote de madeira,
não muito grande, sobre o qual viu algumas formas que lhe
pareceram esquisitas. Aproximou-se, acendendo outro
fósforo, já que com seu próprio corpo interceptava a luz
escassa da lâmpada vermelha. E retrocedeu um passo,
instintivamente, sobressaltada. O que havia ali eram
pequenas figuras feitas de argila. Mas argila misturada com
alguma coisa que lhe dava maior consistência e flexibilidade.
Eram cinco ou seis figurinhas, todas elas de mulher. O corpo
revelava-se idêntico ao da boneca que Teófilo tinha visto
sobre seu travesseiro, no hotel. O rosto pretendia ser o dela,
mas a parecença era bastante vaga. Muito vaga, realmente.
Então, para que o vodu tivesse realismo, bastava matar a
vítima da mesma forma que as bonecas: destruindo-lhe a
cabeça. Deste modo, ninguém perceberia que a parecença
entre boneca e vítima era precaríssima. Se fosse encontrada
uma boneca com o rosto desfigurado e ela morta com a
cabeça despedaçada, a intervenção do vodu seria
incontestável para muitos. Ninguém pensaria que aquela
morte por desfiguração era para ocultar que quem fazia as
bonecas não era um bom artífice, não tinha “magia”.
“Baby” estremeceu. Na verdade, o doutor Delorme não
era pessoa que vacilasse diante de nada. Fora bem escolhido
por seus chefes, para quem tinha montado aquela rebelião
nas Antilhas, chefes provenientes de uma outra ilha maior e
distante, que se propunham repetir o que tinham feito na
Venezuela, na Guatemala...
Saiu do porão sem haver tocado em nada. Georges
continuava no mesmo lugar, sem sentidos. Hesitou um
instante entre matá-lo ou não, mas pareceu-lhe demasiada
frieza, crueldade mesmo. Afinal de contas, nada do que
dissesse ou fizesse o negro poderia mais deter a agente
“Baby”.
Afastou-se uma centena de metros da casa e, de dentro de
uma moita, apanhou o estojo de couro que continha o
receptor-gravador, o microfone e o rádio.
Carregada com tudo isto, dirigiu-se uma vez mais para a
casa da bruxa Mabanga.
Decididamente, já ninguém poderia deter a agente
“Baby”.

CAPÍTULO OITAVO
Tempo ao tempo
Soa forte o tantã
Fogo de artifício sobre o mar

Não era Mabanga quem tocava os tambores que estivera


ouvindo todo o tempo, mas um de seus filhos, que
permanecia acocorado mim dos cantos da varanda, como em
transe hipnótico. Mabanga estava frente a ele, com as pernas
cruzadas, e tinha algo nas mãos.
Nando Zafra não se perturbou ao vê-la. Afinal, Mabanga
havia dito que ela viria diversas vezes e que ele seria feliz
por isso. E até o momento, Mabanga não se havia enganado
nunca.
— Ele já foi — disse simplesmente.
— Tratou do inglês?
— Sim. Muito depressa. Depois foi embora.
— Para a praia, claro. Chegam esta noite as armas?
Nando Zafra desviou o olhar e não respondeu. Brigitte
não insistiu, pois estava compreendendo muito bem as
hesitações do pescador. De um lado, as promessas recebidas.
De outro, a verdade que ela lhe havia descoberto. Que devia
fazer?
— Vou ver o prisioneiro. Não. Não lhe darei liberdade,
Nando.
— Está bem. Há uma lanterna pendurada na porta do
curral. Pode usá-la.
— Obrigada — sorriu “Baby”.
Inclinou-se, beijou os lábios de Zafra e tomou a sorrir ao
notar que ele estremecia.
— Não hesite mais — murmurou: — sou eu quem lhe
quer bem, Nando. A você, aos seus, a todos os que são como
você. Até já.
Passou junto a Mabanga, que não lhe fez o menor caso,
mas só na aparência, já que se encolheu, ocultando o que
tinha nas mãos.
O curral distava uns sessenta metros da casa. De lá saía
um cheiro desagradável de animais sujos e excrementos.
Apanhou a lanterna, acendeu-a e entrou. Viu alguns porcos,
separados por uma cerca baixa, de madeira. Havia cabras,
também. E galos e galinhas, de todas as cores, que abriram
os olhos e ficaram como atordoados ao receber em cheio a
luz da lanterna.
— Chevreux.
Não teve resposta, mas ouviu um rumor no fundo do
curral. Foi lá e viu o inglês estendido sobre um monte de
palha suja e úmida. O homem do MI-5 olhava-a fixamente,
em silêncio. Estava muito pálido, nu da cintura para cima,
uma bandagem no ombro ferido.
— Sente-se bem? O médico o atendeu?
— Muito... muito mal...
— Chama-se Alfonse Delorme e é ele quem devemos
matar. É um traidor, um vendido. Está recebendo instruções
e armas da Escola de Guerrilheiros de Cuba. Nando Zafra
não passa de um pobre rapaz um pouco culto, não muito
inteligente, mas muito estimado em toda parte. Delorme está
explorando sua candura e popularidade. Entende?
— Entendo.
— Bem. Não sei se nos tornaremos a ver, Chevreux. Mas,
de nós dois, o que escapar deverá esclarecer isto ao MI-5 e à
CIA. Tenho sua palavra?
— À CIA? Mas eu pensei que...
— Sei o que pensou. Mas não trabalho para o Deuxième
Bureau: trabalho para a CIA. Sou americana.
— Bem... Creio que não fui muito esperto.
— Não — riu Brigitte. — Não muito. Mas todos nos
enganamos às vezes. Até logo.
— Aonde vai?
— Pretendo impedir um desembarque de armas. Se vai
querer que o leve comigo, perde seu tempo. Tudo o que
posso fazer é pedir a Nando que o deixe livre quando o caso
estiver encerrado. Boa sorte, inglês.
— O mesmo lhe desejo, ianque.
Brigitte saiu do curral, sorrindo. Deixou a lanterna em seu
lugar e franziu a testa ao perceber que os tambores estavam
lenta, mas progressivamente aumentando de tom. Quando
tornou à varanda, Mabanga tinha-se levantado e movia-se de
um lado para outro, como se quisesse saltar, murmurando
estranhas palavras. Junto a seu filho que tocava os tambores,
havia mais três, imóveis, olhos fixos na gordíssima negra.
Ela sentou-se junto a Nando.
— Que está Mabanga fazendo? — perguntou.
— Está matando o inglês por meio do vodu. Fez-lhe um
feitiço.
— Oh, muito bem... Ouça-me atentamente, Nando: eu
vou à praia para...
— Você não se importa que o inglês morra?
— Preferia que não morresse, mas não me preocupa o
vodu como ameaça de morte. Por que você não pede a
Mabanga que fique quieta e calada? Temos que falar de
coisas sérias, Nando.
— O vodu é muito sério. O inglês morrerá. Já ninguém
poderá impedir... Olhe!
Brigitte voltou-se para Mabanga. A negra aproximava-se
deles, agitando-se, sacudindo as banhas. Numa das mãos
tinha um boneco, que colocou diante dos olhos de “Baby”. E
esta lançou uma exclamação ao ver o rosto de Chevreux.
Idêntico, perfeito, exato sem a menor dúvida. Na outra mão,
Mabanga tinha uma pequena vareta de bambu, cuja ponta
apoiava sobre o fetiche de barro, sem deixar de murmurar.
— Escute, Mabanga, a...
Mabanga deu um grito súbito e os tambores emudeceram
simultaneamente. A feiticeira moveu a mão que segurava a
vareta e esta penetrou profundamente no peito da figura de
barro de Joseph Chevreux.
E imediatamente, no brusco silêncio da noite, ouviu-se
um grito agudo, de espanto e agonia. Brigitte levantou-se
muito pálida e, durante alguns segundos, pareceu não saber o
que fazer. De repente, enquanto o filho de Mabanga
recomeçava a bater os tambores, agora em tom abafado, ela
correu para o curral. Apanhou a lanterna, entrou e dirigiu a
luz para o canto.
— Chevreux, Chev...!
A voz quebrou-se em sua garganta. Joseph Chevreux, ou
que nome tivesse na realidade, estava com os olhos muito
abertos, olhando o teto do curral, feito de folhas de palmeira,
como se lá tivesse visto algo extraordinário. Mas, fosse o que
fosse, Chevreux não o diria jamais. Estava cravado no chão
de terra, à palha úmida e suja, por meio de uma longa vara
de bambu, que atravessara seu peito como uma lança. Não
restava o mínimo alento de vida no corpo do infeliz agente
britânico.
Brigitte se tinha agachado sem perceber o que fazia, e
levantou-se do mesmo modo. A luz da lanterna incidia sobre
o ponto de penetração da lança, sobre a mancha de sangue
que se espalhava pelo peito do inglês. Vodu? Ou
superstição?
Não sem alguma apreensão, Brigitte arrancou a cana de
bambu do peito de Chevreux e, com a ponta manchada de
sangue, cutucou o teto do curral. Algumas folhas de palmeira
se deslocaram, deixando ver o céu nublado, com aberturas
por onde se filtrava o luar.
Desalentada, ela deixou cair o bambu e saiu. Quando
voltou à varanda, Nando Zafra estava imóvel, como
hipnotizado por Mabanga, que se tinha ajoelhado e
balançava de um lado para outro o corpanzil, erguendo alto o
boneco que representava Joseph Chevreux, enquanto seu
filho ia aumentando mais e mais o tom dos tambores.
— Basta! — exclamou “Baby”. — Basta!
Os tambores deixaram de soar. Mabanga e seus três filhos
olharam inexpressivamente para Brigitte, que se colocou
diante deles, encarando-os friamente.
— Onde estão seus outros filhos, Mabanga?
— Vodu... Vodu...
— Nada de vodu! Um de seus filhos foi quem cravou o
bambu no peito do inglês, do teto do curral. Vodu coisa
nenhuma: simplesmente assassinato!
— Vingança... Vingança vodu. O inglês estava maldito
pelos espíritos. Os demônios o levaram.
Brigitte perdeu a vontade de discutir. Sentia-se cansada,
decepcionada. Ás vezes perguntava-se se algumas pessoas
mereciam ser ajudadas de um modo inteligente. Com toda a
certeza, se ela se tivesse apresentado a Mabanga dizendo que
era unia bruxa ainda mais poderosa que esta, tudo teria sido
melhor. Mas não o tinha feito, e a velha e gorda feiticeira se
vingara da tentativa de assassinato praticada por Joseph
Chevreux contra o seu querido Nando Zafra. Vodu?
— Nando lhe contou o que falamos antes, no quarto?
— Contou.
— Bem. Tudo o que eu disse era verdade. É verdade,
Mabanga. Vocês estão sendo enganados. Vocês, seus filhos,
seus amigos e, sobretudo, Nando, estão servindo a uma causa
que não favorecerá os antilhanos, sejam negros ou não. Não
favorecerá a independência destas ilhas, nem o seu vodu...
Simplesmente, virão aqui homens piores que os de agora...
— O vodu não mente. O vodu...
— Eu também tenho meu vodu! — irritou-se “Baby”. —
Querem vê-lo? Querem que eu o faça atuar?
Mabanga e seus filhos ficaram olhando-a, em silêncio,
assim como Nando Zafra. Brigitte abriu o estojo de couro e
sacou tudo o que continha. A primeira coisa que fez foi
acionar o rádio de bolso:
— Johnny?
A voz do agente soou distante, mas nítida, na varanda:
— Diga, “Baby”.
— Onde você está?
— Perto da praia rochosa. Você tinha razão. Não faz nem
dois minutos, uma lancha grande ancorou na margem. Estou
vendo não menos de quinze homens ocupados em
descarregar grandes caixas. Que um raio me parta se não são
armas de várias espécies, munições, explosivos...
— Johnny, preste atenção: quero que dentro de cinco
minutos você esteja no lugar combinado. Se não me vir,
espere o tempo que for necessário, contanto que não se
apresente nenhum perigo. Entendido?
— Okay. Que faço se você não chega e chegam os
outros?
— Só lhe desejo boa sorte, Johnny.
Houve uma breve pausa antes de se ouvir novamente a
voz do espião:
— Compreendo. Se puder, acabarei com isto. Que diabo,
“Baby”, você estava certa, portanto conte comigo.
— Obrigada, Johnny... Você está nos ouvindo, Teófilo?
— Claro, “Baby” — ouviu-se a voz de outro homem.
— Ouça bem, muito bem, Teófilo, porque se me falhar,
eu mesma cortarei você em pedacinhos. Esqueça o vodu de
Mabanga e todas essas coisas. Vá para onde estão os homens
que descarregam as armas. Aproxime-se o mais que...
— Não fale tanto — interrompeu Paván: — estou entre
uns rochedos, a menos de vinte metros dessa gente.
— Muito bem! — aprovou Brigitte. — Esplêndido,
Teófilo! Tem aí o microfone que lhe entreguei?
— Não sei para que diabo vai me servir, mas está aqui...
Que faço com ele?
— Atire-o perto desses homens... Você está vendo
Delorme?
— Estou... No momento ele fala com dois sujeitos, mas
se eu me aproximar muito, ou se me ouvirem... Não sei de
que estão falando.
— Logo saberemos. Aproxime-se apenas o suficiente
para atirar o microfone a uma distância máxima de cinco
metros do lugar onde estão. Depois, esconda-se e espere
novas instruções.
— Bem... você está me jogando no fogo, “Baby”!
— Eu sei. Mas sorria, homem, sorria!
— Está certo: farei o que me pede.
— Muito obrigada, Teófilo. Até logo.
— Duvido... Mas tomara seja até logo mesmo!
Brigitte fechou o rádio e meteu-o no decote. Depois,
sacou o receptor-gravador do estojo, colocando-o sobre a
mesinha de bambu. Mabanga e seus filhos tinham-se
aproximado, murmurando coisas que ela não entendeu, nem
se importou por isso.
Nando perguntou:
— Que é?
— Espere. Quer ouvir o que Alfonse Delorme e esses
homens de que Teófilo falou estão dizendo?
— É impossível! — exclamou Mabanga. — O vento do
vodu não...
— Mas que vodu que nada! Escutem bem. Se Teófilo não
falhar, espero que ficarão convencidos de que meu vodu é
tão forte como o de vocês... Atenção.
Pôs em marcha o receptor-gravador.
***
— Quantas caixas faltam? — perguntou Delorme.
— Umas duas dúzias. Quase mil rifles, granadas de mão,
dez metralhadoras, munições em abundância... Como pode
ver, Delorme, nós estamos cumprindo nossa pane.
— Menos no que se refere ao dinheiro — grunhiu o
médico. — Quando receberei meus cem mil dólares?
— Não se impaciente. O trato foi pagá-lo quando todos
os antilhanos estivessem a mando desse estúpido Nando
Zafra.
— Eu não tenho culpa de que o agente inglês o ferisse.
Por minha parte...
— Sabemos que a está cumprindo bem — falavam em
espanhol. — Mas tudo tem que seguir seu curso,
compreenda. Estas armas valem muitos milhares de dólares.
Têm que dar um resultado positivo. Quando a rebelião dos
antilhanos estiver em curso, nós enviaremos uns quantos
homens bem preparados para dirigir a guerrilha e
eliminaremos Nando Zafra. Não nos agradam os idealistas.
— Ele não compreende nada de nada — riu asperamente
Delorme — é um pobre pescador um pouco mais inteligente,
que os outros, mas não dá muito de si.
— De qualquer modo, teremos que matá-lo quando tiver
posto a coisa em marcha. Não queremos que de um
momento para outro ele chegue a compreender que está
servindo não os interesses dos antilhanos, mas os de outras
pessoas.
— Bem. E a respeito de meu passaporte...?
— Uns amigos nossos da Europa estão preparando-o.
Ficará pronto em três ou quatro dias. Com um novo nome,
você poderá circular pelo mundo inteiro, sem nenhum temor.
— Roma... — murmurou Delorme. — Quero ir a Roma.
Poderei?
— Sem dúvida. Mas não deixe de ir convencendo Zafra
de que deve continuar a luta. Deverá encarregar-se também
de distribuir estas armas entre os antilhanos. Isto com a
maior urgência possível.
— Zafra tem muitos amigos pescadores. Dentro de dois
dias, Antillanie estará rodeada de barcos que levarão as
armas para distribuir pelas outras ilhas.
— Não esqueça de que a distribuição deve começar por
Antigua. Sempre do norte para o sul, Delorme. E desta vez,
que não haja falhas.
— Já lhes disse que foi má sorte o fato de ferirem Zafra.
Se tal não acontecesse, eu já teria pedido as armas, pelo
rádio, e tudo estaria em marcha.
— Bem. E como vai esse negro?
— Em dois dias estará em condições de entrar na dança,
estimulando seus amigos.
— Perfeito. Comecem por Antigua, repito. Houve alguma
dificuldade, ou contrariedade?
— Não... não...
— Não ou sim?
— Não. Nenhuma.
— Fomos ver Zafra esta manhã e perguntamos por você.
Ele disse que fôssemos procurá-lo em sua casa, mas esta fica
muito perto do povoado. Chamamos pelo rádio e você não
respondeu...
— Estava desligado. Simples precaução.
— Ah. Isso me agrada — o barbudo sorriu, mostrando
uns dentes branquíssimos. — Sua ajuda foi muito boa,
Delorme. A caverna que estamos utilizando como arsenal
fica bem escondida. De qualquer modo, esperamos que as
armas sejam retiradas dai o mais depressa possível.
— Conte com isso.
— Bem. Parece que já não há muito material para
descarregar. Volte para sua casa e amanhã mesmo inicie as
gestões para que tudo entre em marcha.
— Assim farei.
Delorme apertou as mãos dos barbudos e de outros dois
que não o eram, mas que, quanto ao resto, exibiam as
mesmas características indumentárias que os primeiros.
— Quanto a Nando Zafra...
— Oh — sorriu Delorme, — não se preocupem por ele.
Eu mesmo o matarei no momento oportuno e com
muitíssimo gosto. Será... uma pequena satisfação pessoal.
Até a vista.
— Até a vista, Delorme.
***
Brigitte voltou-se para Nando, cujo rosto negro tinha uma
expressão preocupada. Igualmente o de Mabanga. Os três
filhos desta permaneciam imperturbáveis, pois não
compreendiam espanhol. Mas, indubitavelmente, Mabanga e
Nando compreendiam-no muito bem, embora o falassem
com dificuldade.
— E então — sorriu “Baby”. — Que acham do meu
vodu?
— Nos enganaram? — perguntou Mabanga.
— Que outra coisa esperava, velha idiota? — irritou-se
Brigitte. — O doutor Delorme está utilizando seu vodu para
fazer coisas que a ele convém. Além disso, vocês ouviram,
está iludindo Nando e quer matá-lo pessoalmente quando
dele não tiver mais necessidade. Depois, terá passaporte
novo e cem mil dólares. Com isto, pretende ir a Roma, não a
Paris como eu tinha pensado. Mas isso é um detalhe sem
importância. Que diz você agora, Nando?
— Não haverá Antilhas Livres? — tremeu a voz de Zafra.
— Não... Não por ora. E menos ainda por meio de
Delorme e sua gente. Tempo ao tempo, Nando. Por
enquanto, talvez ainda por dez, vinte ou trinta anos, vocês
terão que esperar. É o melhor.
— Você falou a verdade, não me mentiu...
— Nunca minto aos meus amigos.
— Eu o matarei! — disse subitamente Mabanga. — Farei
um boneco e o matarei, esteja ele onde estiver.
— Tente, não custa — riu Brigitte. — Enquanto isto, eu
farei tudo à minha maneira. Não se movam daqui, não façam
nada. Se Delorme vier, finjam não suspeitar, pois de outro
modo ele e seus homens matariam todos vocês. Não digam
nada. Tratem-no como sempre, e esperem.
— E você? — perguntou Zafra.
— Ah. Eu tenho que demonstrar uma vez mais que as
coisas não devem ser decididas de um modo inflexível. O
menos que merece um espião é que o deixem arriscar a vida
a seu modo. Voltarei, Nando.
Brigitte tornou a acionar o pequeno rádio de bolso,
enquanto se afastava para a espessura da mata.
— Teófilo?
— Ainda estou vivo.
— Parabéns. Agora, vá reunir-se com Johnny e comigo
no ponto combinado.
— Apanho o...?
— Não diga tolice: é apenas um microfone! Deixe-o onde
está e saía daí. É tudo.
— Às ordens, chefe.
Brigitte sorriu. Era bom que um homem pronto a arriscar
a vida tivesse ânimo para gracejar. Muito bom. Parecia que
Teófilo tinha perdido o medo ao vodu de Mabanga e se
aproximara de lugares aonde antes nunca se atrevera a ir.
Mas agora já não se tratava do vodu de Mabanga, mas do
vodu da agente “Baby”.
E esta estava disposta a demonstrar que seu vodu era
ainda mais poderoso que o da velha e gorda feiticeira.
***
A lancha parecia uma sombra um pouco mais clara sobre
as negras águas da praia. Brigitte vadeou, aceitou a mão de
Johnny e subiu a bordo com sua habitual agilidade.
— A lancha dos outros? — perguntou.
— Há três minutos estava pronta para zarpar. Parece que
dois homens ficarão na caverna onde foram escondidas as
armas.
— Primeiro a lancha — decidiu “Baby”. — Depois
trataremos desses infelizes.
O agente da Martinica pôs em marcha a pequena
embarcação de aspecto esportivo, olhando de soslaio para a
fabulosa agente “Baby”.
— Mmm... Gostaria de estar enganado, “Baby”, mas
penso que tenciona atacar aquela poderosa lancha com este
mosquito.
— Os mosquitos, Johnny, justamente por serem
pequenos, podem triunfar muitas vezes. Onde está o “World
Fire-107”?
Johnny indicou com o queixo um objeto alongado,
envolto em lona, perto de seus pés.
— Que Deus tenha piedade de nós! — implorou.
— Amém — sorriu Brigitte. — Direto para a outra
lancha, Johnny. Vamos ver como funciona o vodu da agente
“Baby”.
***
— Lá vai ela! — tremeu a voz de Teófilo.
— Que faço? — soou, tensa, a de Johnny.
— Siga. Aproxime-se duzentos metros mais.
— Hem?!
— Mais duzentos metros, Johnny.
— Diabo! Não há dúvida de que vamos morrer...
A outra lancha, quase dez vazes maior que a tripulada por
Johnny, era claramente visível sobre a água ao clarão do
luar. Ia em boa marcha, mas o pequeno “mosquito” esportivo
desenvolvia ainda mais velocidade, aproximando-se segundo
a segundo. E, súbito, um jato de luz brotou da borda da
grande lancha inimiga, brilhando sobre a superfície do mar,
diretamente para o diminuto “mosquito”.
— Já nos viram! — gritou Teófilo. — Meia volta,
Johnny! Meia volta...!
— Cale-se — cortou “Baby”, secamente.
— Mas, que faço? — pareceu suplicar Johnny.
A resposta chegou da grande lancha na forma de um
canhonaço de arma ligeira, que levantou uma tromba de água
e espuma a menos de cinco metros do “mosquito”, quase o
virando, inundando a coberta, empapando os três ocupantes.
— Siga — disse serenamente Brigitte.
Johnny franziu a testa. Imprimiu velocidade máxima aos
motores gêmeos da pequena lancha. Ouviu-se um rumor
mais forte e o barco pareceu saltar, justamente quando outro
canhonaço de calibre reduzido levantava uma nova tromba
de água, a estibordo, sacudindo furiosamente o “mosquito”.
Mas Johnny já se havia colocado à altura das circunstâncias
e parecia estar considerando aquilo uma questão pessoal,
uma questão de amor próprio. Se uma mulher se atrevia a...
— Paralelo a bombordo deles, Johnny. E diminua a
marcha.
— Se diminuo a marcha, vão nos... — gritou Teófilo.
Só isso se ouviu, pois o terceiro canhonaço afundou no
mar a menos de três metros da proa. O “mosquito” saltou
não menos que um e caiu de lado sobre a água revolta e
espumejante. E quando as hélices tornaram a 1mergulhar, a
marcha prosseguiu, veloz, procurando o lado de bombordo
do inimigo e encontrando-o.
— Agora! Diminua a marcha, Johnny.
Dois canhonaços, quase seguidos, fizeram adernar
perigosamente o “mosquito”, para a direita e para a
esquerda, conseguindo um feito surpreendente entre a massa
de água e espuma que se abateu sôbre ele: esquivar-se a
ambos os disparos. Brigitte estava já com a face colada à
coronha do “WF-107”, completamente encharcada, mas
tenaz como a formiga que quer levar um inseto vinte vazes
mais pesado que ela para o formigueiro.
Fuuummmm...!
A granada partiu em direção à grande lancha. E ficou
indiscutivelmente demonstrado que a agente “Baby” nada
precisava aprender sobre o manejo de armas. Ao pequeno
clarão violáceo na boca do “WF-107”, seguiu-se um clarão
maior no lado de bombordo da outra lancha, um pouco
abaixo da linha de flutuação. Ato contínuo, a grande
embarcação adernou e perdeu parte de sua velocidade.
Teófilo lançou um agudo grito de alegria e pôs-se a saltar
sobre a coberta, agitando os braços.
— A estibordo — comandou Brigitte, com fria
serenidade. — E a toda a marcha. Teófilo, outra granada.
O “mosquito” virou celeremente, descrevendo uma
grande curva pela proa da outra lancha. Enquanto isto,
Teófilo colocava outra granada no “WF-107” e Brigitte
empunhava outra vez a arma.
— Devagar... Mais devagar, Johnny.
Fuuummmm...!
Esta vez a coisa foi muito pior para a outra lancha. A
granada atingiu o tanque de combustível, perfurando-o.
Elevou-se uma enorme labareda e milhares de fragmentos
saltaram pelo ar, incendiados. Foi como se um gigantesco
globo de fogo rebentasse. Depois as chamas voadoras foram
caindo no mar e se apagando.
— Hurra! — celebrou Teófilo.
— Para a praia, Johnny.
— Okay. Diga-me uma coisa, “Baby”: estamos vivos?
— Penso que sim. Mas eles não. Agora, restam dois
homens, na entrada da caverna, suponho. Você e Teófilo vão
se encarregar deles.
— E você?
— Tenho que me apressar. Alfonse Delorme terá visto a
explosão e já deve estar correndo para a casa de Mabanga.
Não gostaria de chegar tarde... E peço ao céu que Nando
Zafra seja esperto por uma vez na vida. Se não souber ser
raposa, será leão... Um leão morto, sem dúvida.
— É melhor ser raposa viva. Mas o coitado não tem
esperteza.
— Mabanga, sim. Nela confio. Depressa. Tem que me
deixar na praia e liquidar esses dois homens restantes.
Depois nos veremos na cabana de Mabanga, se tudo sair
bem.
— Sairá! — exclamou Teófilo. — Depois disso, ninguém
poderá me convencer que o seu vodu não é melhor que o de
Mabanga!

CAPÍTULO NONO
O vodu de Mabanga
Um dia: as Antilhas Livres
“Boa viagem, agente ‘Baby’!”

Ela apareceu na varanda, quase correndo. Mabanga


estava sentada num canto, com três de seus filhos, fazendo
algo com as mãos. Nando Zafra permanecia imóvel...
Demasiado imóvel, demasiado tenso.
Mas a agente “Baby” compreendeu tarde a que se devia
aquela tensão. Compreendeu-o quando na mesinha de
bambu, viu dois grandes copos de barro com refrescos, em
lugar de um só. E quando quis voltar-se, já não havia tempo.
A voz de Alfonse Delorme soou atrás dela, num tom que
a espiã internacional conhecia muito bem: o tom que
qualquer homem emprega quando tem uma arma na mão e
está disposto a matar à menor oportunidade, ao menor
movimento.
— Não se mova, mademoiselle Latour. Creio que esta
será a última de suas numerosas visitas à casa de Mabanga.
Brigitte não se moveu. Estava olhando os olhos de Nando
Zafra e compreendeu que este tinha feito sua parte,
silenciando ante Delorme tudo quanto sabia de verdadeiro a
respeito daquela rebelião dos negros antilhanos.
Alfonse Delorme apareceu diante dela, movendo o
revólver.
— Recue alguns passos... Que traz nesse estojo de couro?
— Equipamento técnico da CIA, doutor Delorme.
— Da CIA... De modo que é isso?
— É isso.
— Bem. Creio que cometi um grande erro deixando-a
viva. Devia tê-la morto, por meios normais, tão logo comecei
a suspeitar. Mas ainda há tempo, espero.
— Vai me mandar mais galos brancos? — sorriu “Baby”.
— Ou mais bonecas mal feitas como as que tem no porão?
Ou simplesmente outro negro gigantesco, com uma barra de
ferro?
— Sabe... sabe tudo, não é mesmo?
— Absolutamente tudo. O vodu que atentou contra mim
não era de Mabanga, era seu. Um vodu completamente falso
e absurdo, destinado a afastar suspeitas. O senhor não está
falando com nenhuma tola, mas com uma agente de primeira
classe da CIA.
— E daí? Os agentes dessa classe não morrem,
mademoiselle Latour?
— Sempre ficam outros... melhores.
— Saiba que estive em minha casa — disse Delorme. —
Georges me contou que alguém o tinha golpeado. Foi
procurá-la no hotel, mas não estava lá. Era tudo tão fácil de
compreender... Além disso, sabia que sua presença aqui não
convinha aos meus planos.
— Seus planos? — ironizou Brigitte. — O senhor não é
mais que um títere que se vendeu por cem mil dólares. Não
tem nenhum plano, doutor Delorme, apenas obedece ordens.
E vendeu-se muito barato.
— Cobraria mais do que eu?
— Menos... Ganho apenas algo assim como um milhão
de dólares anuais, porque sou muito boa profissional.
Entende o que isto quer dizer, Delorme?
— Não muito bem.
— Eu explico. Quer dizer que quando o senhor vai, eu já
estou de volta. Quando o senhor procura um modo de matar-
me, eu já encontrei o de escapar ilesa.
— Ah, sim! Pois gostaria de saber como. Palavra.
Delorme sentou-se perto de Zafra, sem perder Brigitte de
vista. Para demonstrar sua segurança em si mesmo, apanhou
um dos grandes copos de barro e tomou um gole de refresco.
Mabanga estava começando a mexer-se, iniciando um
cântico monótono, apenas audível. Seu filho começou a tocar
suavemente os tambores. Delorme olhou-os rapidamente,
mas não lhes deu importância. Nem sequer ao fato de que
Mabanga tivesse nas mãos uma pequena figura de barro...
— Escuto-a — insistiu Delorme. — Mas só durante um
minuto.
— Tenho dois companheiros perto daqui. Afundamos a
lancha dos mestres de guerrilhas cubanos. Neste momento,
os dois homens que vigiavam as armas também devem estar
mortos. Temos as armas... e você está eliminado, Delorme.
— Eliminado... Sim, é possível. Mas... antes ou depois de
matá-la?
— De um modo ou de outro, está eliminado.
— Bom... Deve-se saber perder. Espero que você também
saiba. Vire-se um pouco para a direita... Assim. Veja como
sou delicado: vou meter-lhe uma bala no coração sem lhe
tocar o seio. Sou um admirador da beleza. Por que ofender a
sua?
— É de fato muito amável.
— Estou apenas me divertindo com a idéia de matá-la
como bem me pareça... Mabanga, quer calar-se de uma vez?
A negra não lhe fez o menor caso. Tinha na mão esquerda
a metade de uma casca de coco, com um líquido dentro.
Murmurou alguma coisa e derramou parte do líquido na cara
do boneco que segurava com a outra mão. Simultaneamente,
seu filho começou a bater com mais força nos tambores, cujo
som passou a encher a varanda. Mabanga adiantou a mão
direita, colocando ante o rosto de Alfonse Delorme o último
boneco que tinha confeccionado: o boneco cujas feições
reproduziam fielmente as dele e que ostentava na cabeça uns
poucos fios de seu grisalho cabelo. Para o médico, foi como
uma visão gigantesca, Como se uma câmara cinematográfica
lhe tivesse aproximado a toda a velocidade algo que tinha
estado muito longe, colocando-o à frente de seus olhos...
— Não! — gritou. — Não, não...!
Lançou um grito e encolheu-se todo, levando ambas as
mão ao ventre, mas sem largar o revólver. Caiu de joelhos,
lívido como um morto. Mabanga movia-se diante dele,
agitando o boneco. Derramou um pouco mais do líquido
contido na meia casca de coco na boca do boneco, e Delorme
lançou outro grito, encolhendo-se ainda mais. Gotas de suor
escorriam-lhe pelo rosto. Já não se ouvia o tantã, mas ao
longe, no mar, fulgurou um relâmpago e, quase em seguida,
um trovão fez tudo estremecer. Grossas gotas de chuva
começaram a cair, lentamente, espaçadas. A tormenta se
iniciava.
— Mal... maldita bruxa...!
Ergueu o revólver e disparou. A bala atingiu um dos
enormes seios de Mabanga, de lado, e possivelmente o
atravessou. Mas a negra continuou murmurando coisas
ininteligíveis e derramando o líquido do meio coco na boca
do boneco.
Delorme tornou a gritar e suas mãos se crisparam, quase
se cravando no ventre. Caiu de bruços, gemendo, chorando,
estremecendo como se por ele passasse uma corrente
elétrica. Olhou para Brigitte com olhos já vidrados e uma
ligeira espuma apareceu em sua boca. Brilhou outro
relâmpago, seguido de outro trovão e a chuva engrossou.
Delorme ficou imóvel, de bruços. E os filhos de Mabanga
começaram a mover-se, balançando-se, enquanto um deles
recomeçava a bater nos tambores.
— Vodu... — murmurava Mabanga. — Vodu, vodu,
vodu...
Brigitte fechou os olhos de Alfonse Delorme, após
examiná-lo brevemente. Estava bem morto. Aproximou-se
de Mabanga e teve que segurá-la por um braço utilizando as
duas mãos.
— Mabanga! — gritou. — Ele já está morto!
— O vodu... Foi o vodu de Mabanga...
— Claro que sim — sorriu Brigitte. — Agora, vamos ver
o que lhe fez a bala.
Empurrou-a para uma cadeira de balanço e sentou-a. A
bala, com efeito, atravessara de lado a lado o enorme peito
da negra, só isso. Certamente,
Mabanga se sentia como um hipopótamo vindo de ser
espetado por um alfinete. E seus filhos deviam sabê-lo, pois
continuavam balançando o corpo e tocando os tambores,
enquanto a chuva exibia um grande aparato de raios e
trovões. Brigitte apoderou-se da inseparável valise do
médico, rasgou o pano que cobria o peito da feiticeira,
certificou-se de que a bala tinha saído, como se atravessasse
um pedaço de toucinho e, movendo quase divertida a cabeça,
desinfetou a dupla ferida, colocando depois um curativo em
cada orifício.
— Será melhor que durante uns dias você esqueça o vodu
— disse sorrindo. — Terá que descansar, Mabanga.
Voltou-se para Nando, que contemplava a espessa chuva
com ar ausente. Tocou-lhe num ombro e, quando ele ergueu
a cabeça, perguntou num sussurro:
— Já decidiu, Nando?
O negro fechou os olhos e moveu negativamente a
cabeça.
— Eu e meus amigos voltaremos ao mar, à pesca. E à
terra, para trabalhar. Não haverá revolução.
— Amém — disse a agente “Baby”.
Naquele momento apareceram Johnny e Teófilo, revólver
na mão, completamente encharcados. Johnny coxeava um
pouco devido a um pequeno ferimento que recebera na
perna.
— Não é nada — esclareceu. — Que se passou aqui? —
olhou o cadáver de Alfonse Delorme. — Você o matou?
Brigitte franziu a testa. Olhou para a negra, que por sua
vez a olhava fixamente. Aproximou-se da mesinha de bambu
e apanhou o copo do qual o médico bebera. Cheirou-o e teve
que fazer um grande esforço para não sorrir ironicamente.
— Não — murmurou. — Eu não. Foi o vodu de
Mabanga.
***
— Você não voltará mais? — perguntou Nando. Estavam
no quarto de Brigitte. Ela retirava seus vestidos do armário e
ia colocando-os sobre a cama. Apanhou as maletas e
colocou-as sobre a cama também. Abriu uma, que começou
a encher. Só então olhou para Zafra.
— Não creio, Nando. Lamento.
— Bem... Eu compreendo. Você tem que ir a outro
lugar... onde haja outro estúpido como eu... Não é mesmo?
— Ou alguém pior do que você, Nando. E esse eu não
hesitarei em matar.
— Mabanga disse a verdade: vi você muitas vezes e fui
feliz por isso. Nunca esquecerei.
— Eu tampouco, Nando. E se alguma vez você...
Abriu a outra maleta enquanto falava. E uma pequena
cobra colorida saltou, silvando furiosamente, para seu peito.
Brigitte pôde afastar-se, por puro instinto, lançando um curto
grito de medo. O diminuto ofídio caiu no chão e começou a
ondular, enraivecido, em direção aos pés de “Baby”... Nando
Zafra deu dois passos claudicantes para frente, ergueu a
perna ferida e deixou-a cair com força. A. cabeça da
venenosa cobra ficou esmigalhada, enquanto seu corpo
continuava se agitando. Quando se imobilizou afinal,
Brigitte, um pouco pálida, aproximou-se da cama e
continuou guardando suas coisas.
— E se alguma vez você precisar de mim, Nando, terá
apenas que chamar-me — murmurou: — agente “Baby”,
CIA, Washington.
Nando indicou a serpente venenosa
— Não era vodu de Mabanga, não...
— Eu sei. Era vodu de Alfonse Delorme. Espero que
você um dia compreenda as verdades e mentiras do vodu,
Nando. Esse dia... o dia em que você e outros compreendam
isso, existirão as Antilhas Livres.
— Eu sei.
Teófilo apareceu na porta.
— Levo suas maletas, mademoiselle Latour?
— Sim, Teófilo. Obrigada.
— A lancha está esperando no... Hei! Essa ferida volta a
sangrar! Não reparou, Nando?
Brigitte olhou a perna do negro, que devido ao golpe
aplicado na cobra estava realmente sangrando.
— Reparamos sim. Mas isso não é nada...
— Não é mesmo, Nando?
— Nada — sorriu ele. — Absolutamente nada, agente
“Baby”. Boa viagem!
O PRESENTE DE MABANGA

Mr. Cavanagh assumiu uma expressão de desalento.


— Receio bastante que o Conselho Superior uma vez
mais aprove seu trabalho. Seus ilustres membros já devem
estar acostumados... Por minha parte, felicito-a, “Baby”. E...
Mmm... suponho esteja você ao corrente de que se estuda a
possibilidade de nomeá-la Chefe de Setor.
— O tio Charlie me falou a esse respeito.
— Agrada-lhe a idéia?
— Quase diria que não. Mas... resolverei quando a
proposta for oficialmente feita.
— Você é um caso único — sorriu Cavanagh: — digo-
lhe que podem nomeá-la Chefe de Setor e você me responde
que “vai resolver”...
— Tenho a impressão de que me aborreceria. E creio que
o mundo não iria muito bem sem minha intervenção pessoal.
— Inclino-me a concordar com você — riu Cavanagh. —
Olhe, já não posso dominar minha curiosidade: que diabo
tem você dentro dessa caixa com orifícios?
Brigitte aproximou-se da caixa mencionada e abriu-a.
Imediatamente, apareceu meio corpo de um magnífico galo
de cores irisadas, olhar insolente e agressivo, enorme crista
vermelha como sangue. O soberbo animal avançou o bico
recurvo e ficou olhando belicosamente para Brigitte, irritado,
desafiante.
— Um galo? — exclamou Cavanagh. — Mas para que
você quer... isso?
— Bom... Não podia desprezar um presente de Mabanga,
compreenda.
— Ma-mas... você mesma disse que um galo é uma
ameaça de morte... por meio do... do vodu...!
— Assim é. E daí?
— Bem... Na verdade não podemos acreditar nessas
tolices, não é?
— Não, claro.
— E este é um bonito galo.
— Dos mais queridos de Mabanga. O melhor, o dono do
terreiro. Tinha vinte esposas.
— E como é que o coitado vai se arranjar agora? — riu
Cavanagh.
— Puxa! — exclamou Brigitte. — É verdade... Mas não
importa. Sairei bem do apuro, pois Mabanga me assegurou
que este galo dá sorte... E não serei eu quem vá menosprezar
o vodu de Mabanga.

A SEGUIR:

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