Вы находитесь на странице: 1из 15

CIDADE SIMPATIA: AS PERSPECTIVAS DO PRECONCEITO RELIGIOSO EM

CAMBUCI

CITY SYMPATHY: THE PERSPECTIVES OF THE RELIGIOUS PREJUDICE IN


CAMBUCI

Nabylla de Castro Costa1


Julio Cezar Pinheiro de Oliveira2

RESUMO:

O presente artigo procura analisar os mecanismos de perpetuação de poder religioso


na cidade de Cambuci e de que modo este fato incide sobre a população. De maneira mais
objetiva, é necessário que se investigue a influência da Igreja Católica na cidade. O
projeto de poder da Igreja está diretamente ligado aos acontecimentos da cidade e, mais
precisamente, ao processos de intolerância. As disputas são tanto territoriais como
simbólicas, visto que a Igreja é proprietária de pontos importantes da cidade, como a
praça principal da cidade, onde ocorrem os principais eventos públicos. É também
detentora de um discurso primordial que se torna quase uníssono na cidade. Esse ensaio
pretende alivanhar os fragmentos interligados entre memória, identidade e discurso na
tentativa de compreender a fundamentação preconceituosa em relação ao preconceito às
religiões de matriz africana na cidade de Cambuci, que também possui sua memória
coletiva, sua história e suas próprias narrativas. Desta forma, é preciso perceber que a
história atual sempre olha para o passado de maneira que lhe convém e transforma em
amnésia coletiva aquilo que deve ser esquecido em favor de um status quo que por certo
representa uma vitória do poder. Compreende-se que as narrativas advindas da pesquisa
m resgatar uma memória coletiva e transformá-la socialmente, descobrindo e
remodelando identidades que, passiveis de conhecimento, podem, portanto, serem
reconhecidas.

PALAVRAS-CHAVE: Preconceito religioso; poder; narrativas; discurso; memória

ABSTRACT:

1 Mestranda em Memória Social pela Unirio (2019)


2 Doutor em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ (2016)
The present article aims to analyze the mechanisms of perpetuation of religious
power in the city of Cambuci and how this fact affects the population. More objectively,
it is necessary to investigate the influence of the Catholic Church in the city. The Church's
project of power is directly linked to the events of the city and, more precisely, to the
processes of intolerance. The disputes are both territorial and symbolic, since the Church
owns important points of the city, such as the main square of the city, where the main
public events take place. It is also the owner of a primordial speech that becomes almost
unison in the city. This essay seeks to bring to light the intertwined fragments of memory,
identity and discourse in an attempt to understand the prejudiced grounding in relation to
prejudice against African-born religions in the city of Cambuci, which also has its
collective memory, its history and its own narratives. In this way, it must be realized that
current history always looks to the past in a way that suits it and transforms into collective
amnesia what must be forgotten in favor of a status quo that certainly represents a victory
of power. It is understood that the narratives coming from the research m recover a
collective memory and transform it socially, discovering and remodeling identities that,
knowledgeable, can therefore be recognized.

KEY-WORDS: religious prejudice; power; narratives; discourse; memory

1 – Introdução

A cidade de Cambuci, conhecida pela alcunha de “Cidade Simpatia”, no interior do


estado do Rio de Janeiro é situada no Noroeste Fluminense. Sua história parece não ser
muito bem consolidada entre os cambucienses e existe ainda uma limitação no que diz
respeito a sua literatura. De certo, ela mostra-se não muito simpática frente a certos
aspectos sociais e é, ainda, palco de situações controversas que carecem de pesquisa e
análise. Este trabalho procurará analisar um desses aspectos marcantes: os processos de
intolerância fomentados na cidade e como eles formam um forte discurso.
Destarte, é possível perceber que não há a presença de instituições formais de
religiões de matriz africana na cidade e há uma grande resistência e preconceito voltados
para essas manifestações. E este fato torna difícil a discussão e aplicação de outras
religiões no cotidiano cambuciense. Esta pequena cidade, grande produtora de café no
início do século XX, conviveu de perto com a escravidão, e, no entanto, não reconhece e,
sobretudo, silencia, o fato de existirem religiões de matriz africana em seu território.
Deve-se frisar, primeiramente, que a religião é uma forma de controle social. Para
Durkheim (2000), ela é um instituto dotado de doutrina e ritual, em que se distingue o
sagrado e o profano e onde existe a igreja como unidade social integradora e integrante.
Para ele, a religião afeta os indivíduos socialmente e também, emocionalmente e desta
maneira é possível que se forme e consolide um discurso usando-a como preceito. As
noções de medo, vigilância e castigo introduzidas por Foucault (1987) ajudam a
corroborar essa ideia de controle social promovido pela igreja. Segundo ele, a vigilância
permite a produção de conhecimento sobre aqueles que são vigiados e nesse sentido,
permite-se o exercício do poder e assim, a perpetuação de narrativas.
No caso de Cambuci, é possível perceber que há um campo de disputa. A Igreja
Matriz de Nossa Senhora da Conceição é o principal monumento da cidade e é
proprietária das terras ao seu redor, incluindo a praça em sua frente, que recebe inúmeros
acontecimentos. Por exemplo, é necessário que haja autorização do pároco para que
determinados eventos ocorram. Em contrapartida há um crescimento vertiginoso de
adeptos de religiões evangélicas na cidade. Segundo o Censo de 2010, dentre a população
cambuciense, que tem 14.827 habitantes, 60% se declaram católicos, 35% evangélicos e
0,11% espíritas, mas é possível notar empiricamente o avanço do discurso neopentecostal
entre os cidadãos. A demonização constante de aspectos desconhecidos, como por
exemplo, a simbologia de religiões de matriz africana é algo que gera intensa comoção.
Nesse campo de territórios dialeticamente produzidos, sejam eles simbólicos ou físicos,
habita a construção de um discurso conservador, avesso a diferentes manifestações de
resistência de maiorias minorizadas. É nessa base que o preconceito religioso se sustenta
e se perpetua.
Neste interim, a análise de quais discursos construíram a realidade das religiões de
matrizes africanas na cidade de Cambuci, e que realidade é essa na atualidade pode trazer
à tona uma memória silenciada, que se mostra discursivamente na narrativa dos
esquecidos, bem como nos detentores do poder. Sobretudo é necessário cravar o olhar no
desvendamento das identidades, sobre o aspecto de como a identidade do negro fora
(des)construída nesse processo histórico que aboliu da cidade de Cambuci a sua religião
- principal representação de sua cultura e forte elemento de seu fortalecimento e
pertencimento - uma vez que nessa identidade forjada pela dominação da cultura branca
é que se instala o preconceito. Por outro lado, também faz-se necessário conhecer as
identidades de poder com quem esta luta se estabeleceu e quais interesses a construíram.
Portanto, para a execução desse artigo, é substantivo e essencial que se alinhem as
três linhas de pensamento em pauta: narrativa, sem as quais não é possível trazer à tona
os silêncios e esquecimentos da história, o discurso, como referencial interpretativo das
narrativas e da realidade, numa interseção indissociável e elemento central da construção
de identidades e preconceitos – assuntos centrais do interesse deste trabalho.
Além de todos esses aspectos que serão desenvolvidos ao longo desse ensaio, é
necessário perceber e lembrar que o preconceito religioso tem uma ligação direta com o
racismo estrutural presenciado na população brasileira, de maneira geral. Nas cidades do
interior há uma carga maior, devido a sua manutenção de políticas patriarcais. Oliveira
Vianna em Populações Meridionais do Brasil (1973) se mobiliza para sintetizar os efeitos
políticos e sociais do latifúndio. Ele destaca o caráter patriarcal da formação da sociedade
brasileira, que se deu, principalmente no interior e desta maneira, para ele, a abolição da
escravidão em 1888 foi um grande marco divisório, causador de grande crise do legado
colonial, desorganização profunda e geral, impactando principalmente as relações raciais,
que antes não eram refletidas visto a situação de servidão. Ao menos, é isso que afirma
Costa Pinto (1988) ao analisar que as transformações que ocorreram após a abolição -
como o desenvolvimento da urbanização que suscitou numa alta proletarização do negro
- acarretaram numa maior visibilidade do preconceito racial. Segundo ele, o preconceito
era difuso visto que as posições econômico-sociais ocupadas por negros e brancos eram
tão estruturalmente desiguais, que não havia a necessidade de utilização de mecanismos
discriminatórios.
Por fim, é primordial que se tenha em mente que a cidade encontra-se no interior
do estado do Rio de Janeiro - um dos maiores pólos culturais do país - e ainda possui uma
particularidade que a mantém engessada: Cambuci não é uma cidade de passagem, ou
seja, não se passa por ela para ir a outras cidades do interior, tornando-a ainda mais isolada
e, portanto, mais resistente a certos aspectos, principalmente aos que dizem respeito às
diferenças.

2 – Desenvolvimento

De acordo com o Censo 2010, em um universo de 14.827 habitantes, 8.997


declaram-se católicos, 4.104 evangélicos, 1.553 sem religião, 71 espíritas e apenas 15
declaram-se praticantes de religiões de matriz africana. Um número pouco significativo
que não entra nos registros oficiais e faz parecer que essa presença é inexistente.
Em meio a experiências em sala de aula, em um curso de pós graduação de uma
instituição pública federal, é possível perceber o incômodo de colegas com a religião (ou
a falta dela) dos professores, e qualquer desvio da vertente católica/evangélica é
considerada “do Diabo”. Dados compilados pela Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR) mostram que mais de 70% de 1.014 casos de ofensas,
abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de
religiões de matrizes africanas.
Ao ter conhecimento de que na cidade de Cambuci há uma presença híbrida das
manifestações de religiões de matriz africanas, popularmente conhecidas como
macumbas, havendo a mistura de muitos elementos - fato este que não colabora para a
aceitação da população - entender a fundo a origem do preconceito religioso tão enraizado
na população cambuciense torna-se mais instigante. Afinal, é necessário também
compreendê-lo para que se possa tentar combatê-lo.
A priori, é possível perceber a Igreja matriz da cidade como uma das principais
formadoras desse discurso carregado de preconceito. É notável que a análise de discursos
não se distancia do sócio-histórico-cultural, uma vez que a inserção no espaço e nas
sociedades denunciam visões de mundo cuja carga se traduz nos processos discursivos.
Para a perpetuação do poder, é necessária a perpetuação de um discurso. Nilson Moraes
afirma que "a luta pelo poder é também um embate discursivo, o que aumenta o seu
capital simbólico.” (MORAES, 2005. p. 97). É possível perceber empiricamente um
crescimento do conservadorismo nas cidades do interior do Rio de Janeiro e sobretudo,
as vizinhas a Cambuci. Esse movimento é retomado devido às relações patriarcais que
voltam a ter força e cada vez mais têm encontrado respaldo nas políticas públicas e sociais
adotadas em recentes eventos.

2.1 Cambuci e o racismo

Este trabalho foi ancorado e discutido nos principais conceitos a respeito de


preconceito religioso, racismo estrutural, epistemicídio, além de elementos da análise do
discurso francesa e de memória social. Além da revisão bibliográfica, as questões foram
abordadas empiricamente a partir da vivência e da experiência. A presença como
estrangeira da autora por um pouco mais de um ano na cidade tornou propícia a
fundamentação de uma visão geral a respeito das atitudes e expectativas dos moradores
da cidade em relação ao temas abordados nesse presente artigo.
É notável perceber que o desconhecido é local de diversas narrativas. Nas relações
de poder há uma clara apropriação desse discurso para que se negue a existência de algo,
justamente pelo fato de não estar dentro dos padrões eurocêntricos, base de nossa
educação formal. É o caso, por exemplo, do conceito de epistemicídio cunhado pelo
pensamento de Boaventura Sousa Santos (1997). A palavra se origina a partir da junção
de dois conceitos: epistemologia e genocídio. Isto é, o assassinato em massa do
conhecimento. O epistemicídio é um mecanismo de apagamento de povos, no caso do
Brasil - os negros escravizados e os índios - que culmina no cenário de marginalização
social que permanece até os dias de hoje. De certo modo, institucionalizado e corroborado
pelas relações de poder vigentes. Boaventura entende também que esse conceito se
constituiu e se constitui num dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação
étnica/racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento,
do conhecimento produzido pelos grupos dominados e, conseqüentemente, de seus
membros enquanto sujeitos de conhecimento. Nesse sentido, há uma facilidade maior de
formação de um discurso hegemônico, visto que há a supressão cultural dos povos
explorados. Para Foucault (2013), o conhecimento e o poder estão intrinsicamente ligados
e, inclusive, alerta ao trazer a tona a utilização do saber como forma de controle social.
Por exemplo, para ele existem diversas definições de saber, a ver.
Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que
se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes
objetos que irão adquirir ou não um status científico (…) um saber se
define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo
discurso.
(FOUCAULT, 2013, p.220)

Nesse sentido do discurso, saber e epistemicídio, é possível legitimar e defender as


ideologias de quem está ocupando os espaços de poder. No caso de Cambuci, a igreja tem
esse papel fomentador, tanto de manutenção de poder - visto que este espaço está em
disputa - e também deslegitimação de outras formas de manifestações do Divino.
Esta negação e silenciamento de religiões de matriz africana na cidade encontram
respaldo também do racismo estrutural presente na sociedade brasileira. Retomando o
pensamento do sociólogo Costa Pinto (1988), a fonte explicativa da discriminação racial
não se localiza necessariamente no passado escravocrata e sim no desenvolvimento
capitalista, que traz situações de mobilidade social e nesse parâmetro os setores
dominantes sentem-se ameaçados em suas posições sociais e reagem com base no
preconceito racial. Por esse viés é possível, de certo modo, compreender a atitude reativa
da igreja católica em Cambuci. Ao longo dos anos, o poderio da igreja foi sendo cada vez
mais contestado e há, ainda, uma grande ascensão de igrejas evangélicas. É o que
demonstra Zuleica Campos ao afirmar que
No Brasil, o mercado religioso se fortaleceu a partir do crescimento dos
evangélicos, em especial, os pentecostais e neopentecostais. Suas
estratégias de conversão são efetivas, transformando-se num grupo
cada vez mais numeroso.

(CAMPOS, 2017, p. 450)

Por essa razão, a institucionalização do racismo - religioso, principalmente - se faz


necessária para que não se permita questionamentos sobre a importância e o poder da
igreja nos contextos sociais. Ao entrarmos a fundo na questão do racismo, encontramos
em Sueli Carneiro uma explicação que parece corroborar com as ideias de Costa Pinto e
faz compreender ainda mais a questão de Cambuci. Carneiro (2005) entende que

a essência do racismo, enquanto pseudo-ciência, foi buscar legitimar,


no plano das idéias, uma prática, e uma política, sobre os povos não-
brancos e de produção de privilégios simbólicos e/ou materiais para a
supremacia branca que o engendrou. São esses privilégios que
determinam a permanência e reprodução do racismo enquanto
instrumento de dominação, exploração e, mais contemporaneamente,
de exclusão social em detrimento de toda evidencia científica que
invalida qualquer sustentabilidade para o conceito de raça.
(CARNEIRO, 2005, p. 29)

Todavia, é necessário se ter em mente que a relação entre as religiões afro-


brasileiras e identidade negra não é necessariamente obrigatória, porém essa vinculação
acaba sendo utilizada pelos movimentos de resistência e também de maneiras a promover
políticas de igualdade racial. A questão racial envolve, ainda, outro problema de escopo
ainda maior: o reconhecimento. Ao não reconhecer-se negro, não há como se colocar
nesse espaço de resistência de identidades. Neusa Santos (1983) em Tornar-se Negro
discorre sobre como a raça adquire um critério ideológico e social. O branco é a
representação de todos os aspectos bons e de prosperidade e avanço, enquanto ao negro
é relegado o papel de todas as expressões negativas, inclusive as de classe. Desta maneira,
romper com essa lógica sem se deixar ocupar pelo papel de auto-ódio para obter o
sucesso, como ela afirma, é um processo doloroso e que vai de encontro ao status quo.
Reconhecer-se negro em uma sociedade onde as relações de poder são bem definidas é
desafiador e por vezes, exaustivo. E sobre esse aspecto é necessário debruçar-se ao falar
de Cambuci, a cidade possui um histórico escravocrata, mas que é silenciado. Fazendo
um breve histórico sobre a cidade, verifica-se segundo a Associação Estadual de
Municípios do Rio de Janeiro que
As terras que hoje compõem o Município de Cambuci começaram a ser
desbravadas no início do século XIX. Até então, apenas os índios Puris
possuíam aldeamento nessa área. A primeira notícia sobre a localidade
data de 1810, quando a sesmaria de São Lourenço foi doada à família
Almeida Pereira. Essas terras abrangiam toda a área ainda hoje
conhecida como São Lourenço, no Distrito de São João do Paraíso.
(AEMERJ, 2017)

Neste panorama, a historiadora Renata Lima afirma que


O regime de sesmarias de propriedade da terra vigorou no Brasil até 17
de julho de 1822 e não concedia propriedade absoluta. (…) Sendo a
sesmaria uma doação condicionada, concedida pelo rei, ele tinha o
direito de exercer o controle sobre aquele bem.
(LIMA, 2012, p. 5).

E ao tratar da região Noroeste Fluminense, acrescenta


Nas regiões onde foi combatida a resistência indígena, seja por meio da
Igreja católica catequizadora ou mediante guerras de extermínio, a
presença portuguesa se consolidou com a implantação da mão-de-obra
escrava africana em atividades de ocupação territorial. (…) Nestas
recortamos a região de “São Salvador dos Campos Goaitacazes (sic)”.
(LIMA, 2012, p. 6)

Com esse breve resumo histórico a respeito da cidade, onde pôde-se analisar seu
caráter escravista e conjeturando ao racismo estrutural presenciado na formação da
sociedade moderna brasileira, temos uma possível explicação para o o sucesso e as
particularidades do discurso preconceituoso dominante. O fato de ela também ser uma
cidade isolada e de difícil acesso permite que não haja contestação da ordem comum.
Cambuci se torna campo fértil para discursos conservadores florescerem de maneira
frondosa.
2.2 O racismo religioso e as religiões afro-brasileiras

O conceito do preconceito ou discriminação religiosa virá de Roseli Fischmann, em


que afirma que
Tratar da temática da discriminação étnica e religiosa é tratar de
identidade, autonomia, alteridade, valores, tradições, símbolos,
indivíduos, coletividades, singularidades, pluralidades. É tratar também
de fronteiras, relações intra e inter-grupos, inclusões, exclusões. O
cuidado que se pode observar, no rol de categorias apresentadas, o não
uso de conectivos, aditivos ou alternativos, devido à complexidade dos
vínculos que se estabelecem entre eles.
(FISCHMANN, 1998, p. 959)

Porém, antes de dedicar-nos à temática do preconceito religioso, é necessário que


se faça um panorama a respeito das religiões afro-brasileiras e suas particularidades.
Nesse sentido, será mais oportuno para contextualizar as justificativas para a resistência
a essas manifestações do sagrado. Para tal, deve-se, primeiramente compreender como
funciona a ancestralidade e a dinâmica religiosa. Na introdução de Candomblés da Bahia,
de Edison Carneiro, Raul Lody trata do tema com bastante veemência ao afirmar que
“Além dos deuses que dominam os elementos da natureza, o tema ancestralidade é
fundamental aos sistemas sociais, hierárquicos e religiosos dos africanos e de suas
relações no Brasil”. (LODY, 2008 p. XII)
Neste mesmo fio condutor, ainda acrescenta que “Nos diferentes processos
históricos, sociais e econômicos, o candomblé assumiu o significado de núcleo de
africanidade no Brasil”. (LODY, 2008, p. XIV), ou seja, mesmo que não tivesse a
pretensão ou até mesmo o objetivo de ser símbolo de resistências, as religiões afro-
brasileiras assumem esse papel - até o tempo presente - na luta contra o apagamento de
identidades e ancestralidades. A sobrevivência de uma cultura - mesmo que os negros
escravizados trazidos para o Brasil fossem de diferentes tribos e culturas. A religião se
tornou necessária como conforto e por vezes, confronto.
É importante notar, também, que esse processo de unificação de signos de uma
africanidade não sucedeu de maneira pacífica e tampouco natural. Carneiro (2008) afirma
que, a priori, os negros tinham liberdade de culto, para que se fosse evitado grandes
agrupamentos e assim, manifestações de resistência. Todavia, ao longo dos processos
escravistas, se fez necessária a associação entre os grupos. Nesse espectro, os nagôs
tomaram a frente do movimento, e se consolidaram. Carneiro discorre sobre essas ações
ao afirmar que
“Os nagôs da Bahia logo se constituíram numa espécie de elite e não
tiveram dificuldade em impor a massa escrava, já preparada para
recebê-la, a sua religião, com que esta podia manter fidelidade à terra
de origem, reinterpretando à sua maneira a religião católica oficial”.
(CARNEIRO, 2008, p. 9)

Deste modo, é possível perceber que a religião foi um dos pilares nas lutas de
resistência negra durante o período da escravidão. Porém, até mesmo nesses movimentos,
existem particularidades. Uma delas, que explica de maneira concisa e objetiva o porquê
de cidades do interior - mesmo sendo os pólos de irradiação da sociedade moderna - são
extremamente reativas a manifestações religiosas de matriz africana. Segundo Carneiro
“O culto organizado não podia, sob a escravidão, florescer no quadro rural - ou seja, a
fazenda ou a cata. Para mantê-lo, o negro precisava de dinheiro e de liberdade, que só
viria a ter nos centros urbanos”. (CARNEIRO, 2008, p.11). Com isso, é possível perceber
que as religiões tiveram um crescimento mais forte e consolidado nas cidades, enquanto
que no interior, a igreja católica permaneceu forte e dominante - e se mantem até os dias
de hoje.
Há um outro aspecto nos centros urbanos - principalmente na região Sudeste do
país - que propicia a assimilação das religiões e consequentemente, a redução dos
preconceito a elas direcionado. Transportar signos religiosos para o cotidiano é uma
estratégia já utilizada no senso comum, mas ao subverter essa ordem ao trazer
simbologias e cultos que antes eram criminalizados, é de certa maneira, ato de resistência.
Desse modo
“As formas lúdicas, estendendo a novos setores da população as crenças
e práticas básicas dos cultos de origem africana, se contribuem para a
desagregação deles como unidades religiosas relativamente compactas,
também reforçam, tornando-os mais compreensíveis e aceitáveis, a
predisposição geral que ajuda a sua manutenção e multiplicação na
região dada”. (CARNEIRO, 2008, p.27)

Por esse viés é então possível analisar o racismo religioso nas cidades do interior,
e no caso específico, Cambuci, pois, para além de não haver o fomento a essas práticas,
devido as condições sócio-econômicas dos indivíduos escravizados e um domínio muito
forte da Igreja sobre o Estado, não havia também práticas de assimilação que pudessem
promover o desconhecido em conhecido, e desse modo, ainda são utilizados mecanismos
de medo e vigilância para que este permanecesse no campo do obscuro. Demonizado.
Quando Fischmann (1998) teoriza a respeito de identidades, tradições e símbolos, é
exatamente esse ponto que o racismo religioso em Cambuci habita. O desconhecimento
da simbologia, tradições e identidades negras permite com que um discurso
majoritariamente eurocêntrico seja consolidado e perpetuado. A história oral, um dos
pilares da resistência das religiões afro-brasileiras é reduzida a relatos estigmatizados.

2.3 Discurso e memória: o caso Cambuci

Quando se fala de discurso, é importante ressaltar que se fala, também, de ideologia.


O discurso é o referencial interpretativo das narrativas e da realidade e elemento central
da construção de identidades.
Para iniciar a questão, temos em Orlandi (2007) uma definição que auxilia a maior
compreensão do tema. Ela evidencia que
a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de
percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-
se o homem falando. (ORLANDI, 2007, p. 15)
Ou seja, há uma análise primordialmente da linguagem. A ideologia necessita da
língua para que seja propagada. Dito isso, a importância da teoria da análise do discurso
de Pêcheux, abordada por Orlandi (2007) que analisa o discurso como instrumento de
construção e desconstrução de poder, em que as classes dominantes perpetuam sua
dominação e sucesso através da apropriação de capital cultural que se repete e perpetua
em uma sociedade parcial que legitima os gostos, crenças, saberes e valores dos grupos
dominantes disfarçados em um discurso que se pretende, no caso das igrejas, justo e
igualitário.
Para Orlandi, “[…] há na base de todo discurso um projeto totalizante do sujeito,
projeto que o converte em autor”. (ORLANDI, 2007, p. 73). Dito isto, todo indivíduo é
assujeitado pela ideologia e a transmite através da linguagem. A língua é fonte viva do
discurso. A linguagem, inclusive, torna o silêncio visível. Silêncio este que representa
aquilo que não foi dito, mas que é suscetível de se tornar. É o caso do discurso formado
pela Igreja católica em Cambuci. Ele é formado quase que estritamente de silêncios. O
discurso é também mecanismo de controle social e ele ser constituído por omissões e
narrativas obscuras diz bastante a respeito da ideologia conservadora da igreja que evita
a todo custo perder a influência na cidade. Caminhando por águas escuras, esse discurso
é um dos pilares da formação da memória coletiva da cidade. Afinal, memória e discurso
se encontram em âmbitos muito próximos. As disputas de memórias vão de encontro as
disputas de narrativas, nesse sentido a intertextualidade, isto é o contexto
social/histórico/econômico/político do discurso afeta e é afetado pela memória. O diálogo
entre as narrativas, as memórias e as identidades se dá através da linguagem em uso,
concebida como prática social.
No tocante à memória, a teoria de Le Goff (2013) que trata a memória também
como um instrumento privilegiado de manipulação de poderes ao afirmar que “tornar-se
senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes,
dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas” (LE
GOFF, 2013, p. 390) coaduna com os outros conceitos e, também, perpassa por todos eles
e os traz a um ponto de forte convergência. Há de trazer para cena também a questão de
Le Goff em relação à história como elemento de ligação entre memória e linguagem, uma
vez que o retorno às narrativas orais fortaleceu a possibilidade de trazer à tona a história
do vencido, aquela que fora subtraída dos anais da História em franco exercício de poder,
onde os silêncios e esquecimentos da história são reveladores de mecanismos de
manipulação da memória coletiva. “(...) a falta ou a perda, voluntária ou
involuntariamente, da memória coletiva dos povos e das nações, pode determinar
perturbações graves de identidade.” (LE GOFF, 2013, p. 389)
Nesse sentido, mesmo que de maneira inconsciente, a igreja católica em Cambuci
é uma das mais fortes instituições de controle social e tem forte influência na formação
da memória coletiva da população, sendo portanto, uma das principais causas desse
exacerbado preconceito religioso voltado para religiões afro-brasileiras e, também,
motivadora das expectativas da população em relação a elas.

3 – Conclusão

Neste trabalho procurou-se analisar de que maneira as formações discursivas e o


racismo se relacionam com o preconceito religioso em Cambuci e discutir de que maneira
esse preconceito torna difícil a discussão e aplicação de outras religiões no cotidiano
cambuciense. Para tal foi feito um breve panorama histórico e social da cidade, foram
analisados empiricamente os seus processos de formação e ainda suas disputas territoriais
simbólicas. Nesse contexto, foi analisado o que facilita a perpetuação de dogmas. O seu
passado escravocrata e patriarcal consegue dar conta de explicar, mas, principalmente, o
seu presente isolado e engessado se mostra reativo a mudanças na ordem social e
corrobora com as hipótese de que a manutenção do poder simbólico da Igreja é mantido
por questões territoriais. O fato de um dos principais monumentos da cidade ser também
um dos principais responsáveis por decisões de cunho político e social, faz reverberar que
o as relações de poder são muito bem articuladas.
A análise também buscou esclarecer, através de conceitos bibliográficos de
natureza acadêmica como a análise do discurso francesa e memória social os fenômenos
apresentados como fundamentais para que se pudesse buscar respostas sobre como se
estabeleciam os mecanismos de perpetuação de poder da Igreja matriz frente a outras
expressões religiosas, que acabam por sucumbir ou até mesmo se hibridizar para evitar
seu apagamento na cidade. Os conceitos de memória e discurso acabam por vezes se
relacionando visto que o discurso como linguagem é entendido como ação, isto é,
modificado a todo momento a partir das necessidades dos contextos ideológicos. Isto
posto é necessário compreender a relação entre as identidades participantes das disputas,
para que se balise o que deve ou não ser lembrado e assim, respalde e crie a noção de
memória coletiva. Assim com Le Goff (2013) afirma que o historiador tem o poder de
decisão no que será perpetuado na memória, as camadas dominantes têm esse poder em
relação ao discurso de uma população. É o caso de Cambuci, local onde a igreja católica
é parte da cultura dominante e cada vez mais se vê ameaçada pelo crescimento em larga
escala do neopentecostalismo, é natural que ela invista cada vez mais nos mecanismos de
manutenção desse medo do desconhecido, investindo muito pouco em políticas públicas
e sociais que vejam a diferença de maneira acolhedora e não demonizada. A estruturação
do preconceito chega, inclusive, a níveis alarmantes, quando se têm relatos de fugas por
perseguição, estes sem confirmação e que, de sobremaneira não são o ponto culminante
da pesquisa.

Em conclusão, os resultados não foram de fato inéditos ou surpreendentes, visto


que poderiam ser concluídos com observações passivas das relações e rotinas da
população, porém foi necessário e importante analisar e enquadrar as expectativas em
conceitos, para que não se tornasse apenas uma visão estereotipada ou até mesmo
preconceituosa de um determinado grupo de pessoas. A análise permitiu que os conceitos
empíricos pudessem também se respaldar em conceitos acadêmicos.

A temática e o desenvolvimento deste trabalho foi importante e de maneira muito


particular, basilar para a minha formação. Como mulher, negra e acadêmica, num meio
assumidamente ainda não preparado para tal, não basta conhecer autores que defendem
essa mesma luta, não basta conhecer linhas e perspectivas dessa temática, não basta
informar um posicionamento efetivo na luta. É preciso mais, é necessário estar preparada
para não ser apenas uma diferença individual, mas sim conscientizar, ensinar e inspirar
outros assim como os que fizeram anteriormente. A academia precisa ser superior ao
preconceito e mais, tem o papel de tornar o pesquisador preparado para não o reproduzir.
A área de pesquisa proporcionada por este trabalho será de extrema importância
para a composição de outros futuros trabalhos acadêmicos e para continuidade na
pesquisa e especialização. Portanto, essa mesma área é primordial e indispensável para a
formação do tipo de pesquisadora, indivíduo e sujeito social que almejo ser.

4 – Referências bibliográficas.

Cambuci (RJ). Associação Estadual de Municípios do Rio de Janeiro. Disponível em:


<http://www.aemerj.org.br/index.php/municipios/40-cambuci.> Acesso em: maio 2019.
CAMPOS, Zuleica Dantas Pereira. RELIGIÃO E RESISTÊNCIAS: OS AFRO-
BRASILEIROS E A PERSEGUIÇÃO. Paralellus (Online), v. 8, p. 447-458, 2017
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 9 ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2008. p. XI - 30
CARNEIRO, Sueli. A Construção do outro como não-ser como fundamento do ser.
São Paulo. USP. 2005.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
FISCHMANN, Roseli. Estratégias de superação da discriminação étnica e religiosa
no Brasil. Direitos humanos no Século XXI. Parte II. Brasília: MRE/IPRI/ FUNAG,
1998, p. 959-985.
FOUCALT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2013.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes,


2010

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Record, 35a ed., 1999.

LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. São Paulo, UNICAMP. 2013. p .
387 –395

LIMA, Renata. A questão da terra no noroeste fluminense das primeiras décadas do


século XIX. In: XV Encontro Regional de História - Ofício do Historiador: ensino e
pesquisa (UERJ - FFP), 2012, São Gonçalo. Anais do XV Encontro Regional de História
da ANPUH-Rio, 2012.
MORAES, Nilson Alves de. Memória social: solidariedade orgânica e disputas de
sentidos. In: O que é memoria social? Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005. p 89-104

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios & procedimentos.8. ed.


Campinas: Pontes, 2007. 100p.

PINTO, Luis Costa. O Negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade
em mudança. 2a edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1988.
ROCHA, Carolina . 'Deus mata': o processo histórico de violência e demonização das
religiões afro-brasileiras. Revista Mistérios de Orunmilá, Rio de Janeiro, p. 1 -56, 10
nov. 2017.

SANTOS, Boaventura Sousa. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez Editora, 1997.

SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros – identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis,


Vozes, 1999.
SOUZA, Neuza Santos. Tornar-se Negro: as vicissitudes do negro brasileiro em
ascensão social. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983
VIANA, Francisco Oliveira. Populaçoẽ s Meridionais do Brasil. Volume 1. Rio de
Janeiro: Editora Paz e Terra, 1973.

Вам также может понравиться