0 Fluxo da Consciência
(UM ESTUDO SOBRE JAMES JOYCE,
VIRGÍNIA WOOLF,
DOROTHY RICHARDSON, WILLIAM FAULKNER
E OUTROS)
FICHA CATALOGRAFICA
Tradução
(Preparada pelo Ccnlro dc Cnlnlognção-na-Fonte, de
CÂMARA BRAblU.IKA D O LIVRO, SP) GERT MEYER
Revisão Técnica
de
AFRÂNIO COUTINHO
Humphrey, Robcrt Diretor da Faculdade de Letras da
H912f O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Virgínia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner c
outros; tradução dc (iert Meyer, revisão técnica de Afrânio
Coutinho. Sao Paulo, Mdiraw-llill do Brasil, 1976.
P-
Bibliografia.
1. Ficção Historia c critica 2. Ficção — Técnica 3.
Literatura - Psicologia 1. Titulo.
CDD-808.3
76-0827 -801.92 I 1'ITORA McGRAW-HILL DO BRASIL, LTDA
-809.3
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índices paia catalogo sistemático: III li» IIOIII/ONTE SAN FRANCISCO MONTREAL
Pt MIK) Al I <;iu NEW DELHI
1. Literatura : Psicologia KC> 1 >>2 PANAMÁ
2. Ficção : Técnica KIIK l II AUCKLAND PARIS
BOGOTÁ SINOAPORE
3. Ficção : llislória o crílica 809.3 D0SSELDORF SYDNEY
4. Romance : Técnica 808 1 JOHANNESBURG TOKYO
5. Romance : llislóiia c crítica 809.3 LONDON TORONTO
Do original
"Stream of Consciousncss in the Modern Novel", publicado pela
Univcrsity of Califórnia Press, 1954
Copyright 1976 da Editora McCiraw-Hill do Brasil, Ltda.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, guardada pelo sistema
"retrieval" ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, seja
este eletrônico, mecânico, dc fotocópia, de gravação, ou outros, sem prévia
autorização por escrito da Editora. SUMÁRIO
Prefácio à Edição Brasileira VII
Prefácio IX
1. As funções
Definição do fluxo da consciência — A mente autoconsciente
— Impressões e visões — Sátiras e ironias 1
2. As técnicas
Monólogos interiores — Modalidades convencionais — O fluxo
— Montagem de tempo e espaço — Observações sobre a
mecânica 21
3. Os artifícios
O problema da intimidade — Coerência suspensa — Descon-
tinuidade — Transformação por metáfora 57
197f» 4. As formas
Para que servem os padrões — A rede labiríntica de Joyce
Todos os direitos para língua portuguesa reservados pela — O delineamento simbólico de Virgínia Woolf — A síntese
EDITORA McGRAW-HILL DO BRASIL, LTDA. de Faulkner 77
Rua Tabapuã, 1.105 Av. Pauto dc Frontin, 679
SAO PAULO RIO OF JANEIRO 5. Os resultados
ESTADO DE SAO PAULO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Entrando pelo fluxo principal — Sumário 103
Av. Bernardo Monteiro, 447 Av. Alberto Bins, 325 s/29
BELO HORIZONTE PORTO ALEGRE
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RECIFE
PERNAMBUCO
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Este livro é atualmente de leitura obrigatória nos estudos literários.
Analisando um assunto da maior importância na literatura contempo-
rânea, qual seja o fluxo da consciência na narrativa moderna, sobretudo
em James Joyce, Virgínia Woolf, Dorothy Richardson e William Faulk-
ner, o seu autor, Robert Humphrey, que o publicou em 1954, esclarece
de maneira definitiva o problema. Seu livro é uma verdadeira chave
desse aspecto técnico tão relevante da narrativa contemporânea, estu-
dada indutivamente, a partir da consideração de alguns romances que
usaram com mestria essa variedade do discurso narrativo.
É uma nova dimensão que os autores referidos introduziram na
técnica da ficção. Houve antecedentes, é claro; houve antes sugestões
e tentativas. Mas o grau de perfeição que eles atingiram na captação
da consciência pré-verbal não tem similar.
O autor aproxima o emprego do fluxo da consciência com outros
artifícios técnicos, tais como o monólogo interior, direto e indireto, o
solilóquio e a descrição onisciente. Mas o fluxo da consciência foi uma
criação dos narradores modernos para registrar "o drama que tem
lugar dentro dos confins da consciência individual". Esse drama foi
posto em relevo por filósofos como William James e Henri Bergson,
ao apontarem o fato de que "a consciência flui como uma corrente e
que o espírito possui seus próprios valores de tempo e espaço à parte
os arbitrários e assentados do mundo exterior". "Assim", continua o
autor, "fluxo e durée são aspectos da vida psíquica para os quais novos
métodos de narração foram desenvolvidos pelos escritores que desejas-
sem reproduzi-los".
Na análise dos movimentos da intimidade da consciência, o autor
parte do exame da livre associação mental, aponta as técnicas cinema-
tográficas do flash-back, do fade-out e do slow-up, como úteis artifí-
cios que os narradores literários passaram a utilizar, ao lado da mon-
tagem e da livre associação e dos tradicionais da retórica e da poética,
lais como a metáfora e o símbolo, e mesmo a pontuação. Com esses
artifícios, os escritores do fluxo da consciência desenvolveram uma
série de técnicas no registro da consciência em seus níveis pré-verbais.
O autor mostra o que aconteceu com o enredo e com as clássicas uni-
dades, as relações com a estrutura musical, com os ciclos históricos,
com os modelos literários, com as estruturas simbólicas.
VIII O FLUXO DA CONSCIÊNCIA
para o fato de seu marido haver chegado em casa tarde, te talvez, novamente com o fato de não conseguir dormir)
que é o motivo por ela estar acordada a estas horas; mas depois podemos ouvir música e fumar eu posso acompanhá-
a hora continua predominante em sua consciência) o des- lo (mais uma vez, ela imagina um dia com Stephen) primei-
pertador do vizinho ao cantar do galo tinindo de arrebentar ro preciso limpar as teclas do piano com leite que roupa
os miolos (ela antecipa uma ocorrência desagradável de deverei usar devo usar uma rosa branca (ela imagina a im-
todas as manhãs e volta a preocupar-se com a ideia de pressão que irá causar em Stephen e pensa novamente numa
perder o sono) deixa ver se eu consigo cochilar 1 2 3 4 5 flor) ou aqueles docinhos delicados da Lipton's (sua aten-
(a antecipação do despertador do vizinho tocar cedo esti- ção se concentra nas compras que irá fazer pela manhã)
mula-a a fazer um esforço, e ela procura pegar no sono adoro o cheiro de uma loja bem sortida a 7.1/2 d a libra
contando) que espécie de flores são aquelas que inventaram ou aqueles outros com recheio de cerejas e cobertura cor-
feito estrelas (enquanto procurava focalizar sua atenção, de-rosa a 11 d cada tantas libras (ela medita sobre as sen-
ela reparou nas flores do papel de parede e depois procura sações de estar na loja e, depois, de realmente fazer as
lembrar o nome daquela flor específica) o papel de parede compras) naturalmente uma bela planta para o centro da
da rua Lombard era muito mais bonito (sua atenção está mesa (novamente as flores e os planos para entreter Ste-
agora no papel de parede de uma residência anterior) o phen) isso eu consigo mais barato na espera onde foi mes-
avental que ele me deu era assim (o "ele" refere-se nova- mo que as vi não faz muito tempo (ela pensa em outra loja,
mente ao marido, e ela recorda um avental que ele lhe cujo nome não consegue lembrar ao certo) adoro flores
deu — evidentemente com um estampado de flores seme- gostaria de ver a casa toda nadando em rosas (a ideia reno-
lhantes às do atual papel de parede) pouquinho só (isto é, vada de uma floricultura estimula sua imaginação) Deus
apenas um pouco semelhantes; a semelhança é vaga, mas do céu não há nada como a natureza (das flores para a
suficiente para associá-la ao marido, que provavelmente natureza em geral) as montanhas agrestes depois o mar e o
lh'o deu quando residiam na Rua Lombard) só usei duas arremesso das ondas depois a beleza rural com campos de
vezes (sempre o avental) melhor apagar esta lâmpada e aveia e trigo e toda sorte de coisas... e lagos e flores toda
tentar de novo para eu poder levantar cedo (ela continua sorte de formas e cheios. .. primaveras e violetas a natureza
ansiosa com o atrasado da hora, mas o avental que ganhou é (com uma investida de imagens, ela define suas conota-
do marido lhe faz também lembrar que ele pediu que lhe ções da natureza) quanto aqueles que dizem que Deus não
servisse o café na cama — motivo pelo qual terá de levan- existe eu não daria um estalo dos meus dois dedos por
tar-se cedo — e que ele trouxe para casa Stephen Dedalus, toda a sabedoria deles (seu amor pela natureza a coloca
que, para Molly, representa requinte e mocidade) irei ao num estado de espírito agressivamente pró-religioso — mais
Lambes logo ali ao lado do Findlatefs e pedirei que nos no fundo de sua consciência, é provável que esteja atacando
mandem umas flores para espalhar pela casa para o caso a intelectualidade de Stephen).
de ele trazê-lo para casa de novo amanhã (o tema das flores
retorna enquanto ela reflete sobre uma recepção imaginária Molly continua pensando em "ateus"; pensa que "poderiam da
para Stephen) ou melhor hoje (novamente o adiantado da mesma forma impedir que o sol se levantasse"; isto lhe faz lembrar
hora) não não sexta-feira é dia de azar (em alguma parte 0 comentário "o sol brilha para você" que Leopold fizera durante seu
de sua consciência, uma superstição não quer aceitar o fato namoro; ela leva esta ideia mais avante, o que lhe traz à mente deta-
de ser sexta-feira) primeiro quero arrumar um pouco a casa lha ilos dias em que vivia em Gibraltar, onde o namoro teve lugar;
(novamente seus planos para entreter Stephen) até parece Imalmente, volta à conquista de Leopold (tudo entre flores) c o monó-
que a poeira cresce nela enquanto durmo (ela está nova- bgO termina: " . . . e como ele me beijou sob a muralha mourisca e
mente preocupada com a arrumação da casa e, indiretamen- eu pensei bem tanto faz ele como outro qualquer e então lhe pedi
mm os olhos para me pedir de novo sim e então me perguntou se eu
O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS TÉCNICAS 43
42
queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus meus 22) Imagina o argumento que daria a um ateu: "poderiam da mes-
braços em torno dele sim e o levei a deitar sobre mim para que pudesse ma forma impedir o s o l . . . "
sentir os meus seios tudo perfume sim e seu coração batia como 23) Lembra uma frase dita por Leopold por ocasião do namoro
louco e sim eu disse sim eu quero sim". O final é um "fade-out", en- e que diz respeito ao sol
quanto Molly finalmente adormece com Leopold a receber sua decla- 24) Lembra cena do namoro
ração capital. 25) Lembra detalhes de Gibraltar
Em linhas gerais, o movimento do fluxo da consciência de Molly 26) Lembra detalhes do namoro
conforme controlado pelo princípio da livre associação através da me- 27) "Fade-out" (dissolvência em negro)
mória, dos sentidos e da imaginação, está claro: O próprio feito do esboço mostra a direção do fluxo de Molly.
A audição do relógio, a vista do papel de parede e o apagar do abajur
Ouve relógio indicam os lugares onde o mundo exterior afeta a vida interior de Molly.
1) Imagina os chineses se levantando Depois do último destes, a linha de pensamento afasta-se resolutamente
do mundo exterior, quando então Molly adormece. Notar-se-á que
2) Antecipa (memória) o ângelus cada detalhe acha-se cuidadosamente associado ao detalhe anterior.
3) Imagina o sono das freiras
4) Antecipa o despertador do vizinho Toda a ficção do fluxo de consciência depende muito dos princípios
da livre associação. Isto se aplica a técnicas diferentes na sua estrutu-
("Despertador" a estimula a tentar controlar a consciência; conta) ra, como é o caso do monólogo interior direto e da simples descrição
Enxerga o papel de parede onisciente da consciência. A principal diferença na maneira pela qual
a livre associação é usada nestas diversas técnicas é a sua frequência.
5) Lembra as flores em forma de estrela Outra diferença está na sutileza e complexidade com que é empregada.
Tomemos, por exemplo, dois extremos da técnica do fluxo da
6) Lembra a residência da Rua Lombard consciência: do lado complexo, temos a tentativa de Joyce, em Firme-
7) Lembra o avental que ganhou de Leopold gans Wake, de apresentar a consciência do sonho; do lado simples,
temos a descrição impressionista da consciência por Dorothy Richardson
(Pensamento de Leopold; procura controlar a consciência) em Pilgrimage. Ambos os escritores dependem da livre associação para
Apaga o abajur dar um rumo aos materiais da consciência. Em Finnegans Wake, o
princípio pode ser encontrado quase de palavra para palavra e com
8) Lembra que precisa levantar cedo uma dolorosa frequência entre sílabas dentro de uma mesma palavra.
9) Imagina o dia seguinte Quando Joyce emprega uma "palavra" como Expolodotonar, é pelo
10) Imagina-se fazendo compras menos em parte porque Detonar foi associado com Explodir. Mas quan-
11) Imagina confeitaria do usa Umbrilla-parasoul (N. T. — Intraduzível — a palavra "um-
12) Imagina-se fazendo compras brella", guarda-chuva, escrita com "i" ao invés de "e", ligada a "pa-
rasoul" (sombrinha), que se escreve sem o "u", mas que foi associado
13) Imagina-se recebendo Dedalus a "soul", alma), as associações são tão numerosas, tão complexas, tão
eruditas e a tantos níveis que um crítico usou 50 linhas em tipo miúdo
14) Antecipa a limpeza da casa para descrevê-las. (14) Estes comentários não pretendem ser deprcca-
15) Imagina entretenimento para Dedalus
(14) Joseph Campbell em "Finnegan the Wake", James Joyce: Two De-
16) Antecipa limpeza das teclas do piano t tules of Criticism, ed. Seon Givens, Nova York, Viking, 1948, p. 371.
17) Imagina a roupa que irá usar
18) Imagina flores para a mesa
19) Imagina a sala nadando em rosas
O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS TÉCNICAS 45
44
tórios; servem apenas para demonstrar que aqui está o princípio da se ocupam em alcançar o fluxo dos acontecimentos; outros, lais como
livre associação para determinar microscopicamente o movimento do o "slow-up", "close-up" e às vezes o "fade-out" se ocupam mais com
sonho de H. C. Earwicker. os detalhes subjetivos ou, nas palavras do Professor Beach, com a "in-
finita expansão do momento". Nisto tudo, o que mais se relaciona ao
No outro extremo temos a descrição que Dorothy Richardson faz uso da analogia como técnica ficcional é que a montagem e seus arti-
da consciência de seu personagem. A livre associação é empregada fícios secundários se ocupam em transcender ou modificar barreiras
distintamente mas sem muita frequência em Pilgrimage. Embora ali de tempo e espaço arbitrárias e convencionais.
o processo seja mais ou menos evidente, a autora o explica claramente Assim, existem na ficção do fluxo de consciência artifícios análo-
em frases como, "O pequeno tranco fez com que sua mente saísse son- gos a esses e aos quais se aplicam os mesmos termos. David Daichcs,
dando"; ou emprega simples conjunções para indicar a associação, como que não emprega os termos da analogia, explica muito bem o método
por exemplo, "Um estranho segredo por toda sua vida, como o fora conforme ele é usado nos romances de Virginia Woolf, embora James
Hanover. Mas (grifo meu) Hanover era linda. O que importa é Joyce seja mais frequentemente indicado como brilhante expoente desse
saber que, seja qual for a estrutura, qualquer que seja a profundidade, artifício. Tanto Joyce como Woolf fazem uso dele, assim como o fazem
o processo da livre associação psicológica é usado pelos escritores de outros escritores de fluxo de consciência, porque a própria qualidade
fluxo de consciência para orientar a direção dos fluxos de seus perso- da consciência exige um movimento que não acompanha o rígido avan-
nagens. ço de um relógio. Ao invés disso, exige a liberdade de adiantar-se e
retroceder, de misturar passado, presente e futuro imaginário. Para
Montagem de tempo e espaço representar esta montagem na ficção, Daiches indica dois métodos:
um deles é aquele em que o objeto pode permanecer fixo no espaço
Outra série de artifícios para controlar o movimento da ficção do e sua consciência pode mover-se no tempo — o resultado é montagem
fluxo de consciência é um grupo que, por analogia, pode ser chamado de tempo ou a sobreposição de imagens ou ideias de um tempo sobre
de artifícios "cinematográficos". A interação entre o cinema e a ficção as de outro; a outra possibilidade, evidentemente, é o tempo perma-
no século XX oferece material para um estudo esclarecedor e valiosís- necer fixo e o elemento espacial mudar, resultando na montagem de
simo. Aqui, podemos examinar apenas uma pequena faceta. (15) espaço. (16> Este último método não implica necessariamente a repre-
sentação da consciência, embora seja frequentemente usado como téc-
Um artifício básico no cinema é o da montagem. Entre os arti- nica auxiliar na ficção do fluxo de consciência. É chamado "olho da
fícios secundários temos controles como os de "multiple view" (vista câmara" ou "vista múltipla" — termos que sugerem a possibilidade da
múltipla), "slow-ups" (câmara lenta), "fade-outs" (dissolvência em convergência de imagens plurais a um ponto no tempo.
negro), "corte", "close-ups" (vista de perto), "panorama" e "flash-
backs" (vista para trás, recordação). No sentido cinematográfico, "mon- A principal função de todos os artifícios cinematográficos, espe-
tagem" refere-se a uma classe de artifícios usados para mostrar uma cialmente o básico, o da montagem, consiste em manifestar movimento
interligação ou associação de ideias, tais como uma rápida sucessão e coexistência. Foi este dispositivo já existente para representar o não-
de imagens ou a sobreposição de imagem sobre imagem ou o contorno estático e o não-focalizado que os escritores do fluxo de consciência
de uma imagem focal por outras a ela relacionadas. É, na sua essência, aproveitaram para ajudar-lhes a realizar aquilo que, no final das contas,
um método para mostrar pontos de vista compostos ou diversos sobre é sua finalidade fundamental: apresentar o aspecto dual da vida huma-
um mesmo assunto — em suma, para mostrar multiplicidade. As téc- na — a vida interior simultaneamente com a vida exterior.
nicas secundárias são métodos para conseguir o efeito da montagem; Se olharmos a obra de Virginia Woolf, teremos uma ideia de como
artifícios para superar a limitação bidimensional da tela. Alguns deles o método cinematográfico é transferido para a ficção. Nas primeiras
(15) Para comentários sobre artifícios cinematográficos na literatura, con- (16) David Daiches, Virginia Woolf, Norfolk, Conn., New Directions, 1942,
IUlU Beach, The Tweníieth Century Novel, Parte V, e Sergei M. Eisenstein, The p. 66 em diante.
lilm Scn.se, tradução de Jay Leyda, Nova York, Harcourt, Brace, 1942, Passim.
46 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS TÉCNICAS 47
páginas de Mrs. Dalloway, o método básico do monólogo interior in- que "fades-out" para pensamentos sobre a "divina vitalidade" da pró-
direto é usado para apresentar Clarissa Dalloway ao leitor. Permane- pria Clarissa, da maneira como ela se conhecia no passado indefinido.
cemos no interior da consciência de Clarissa durante as primeiras 16 Tudo que se relatou acima aconteceu nas primeiras seis de uma
páginas (Edição da Modern Library), com exceção de alguns breves unidade de 16 páginas, mas que são suficientes para ilustrar a monta-
parágrafos. Deste modo, o relacionamento espacial é estático (embora gem-de-tempo da consciência de Clarissa e de como ela, juntamente
Clarissa esteja calmamente passeando por Londres). Todavia, é espan- com a livre associação, define o movimento do fluxo.
toso o número de imagens assim como sua diversidade quanto ao seu
teor e tempo de ocorrência. Um resumo das que aparecem em apenas O movimento da consciência análogo ao artifício da montagem
algumas páginas nos oferece um efeito de montagem bastante complexo, cinematográfica é mais facilmente ilustrado pelo monólogo interior
mediante aplicação de quase todos os artifícios cinematográficos. A indireto (no que consiste o trecho que acabamos de analisar) do que
seguinte sinopse do esboço registra apenas as imagens principais, mas pelo trecho de monólogo direto como aquele do episódio de Molly
que são suficientes para ilustrar o princípio da montagem. O objetivo Bloom em Ulisses analisado anteriormente. Se fôssemos considerar o
unificador, como acontece em quase todos os trechos de fluxo de cons- monólogo inteiro de Molly, o artifício da montagem seria igualmente
ciência, é a consciência egocêntrica do personagem. aparente; mas qualquer trecho isolado, mesmo que comprido, é com-
posto de tantos detalhes subjetivos (com o funcionamento de artifícios
Primeiro, Clarissa pensa nos preparativos de uma festa no futuro cinematográficos de "slow-up" e "close-up") que se torna praticamente
imediato; depois passa para o momento presente e pensa que bela impossível discernir o movimento global.
manhã está fazendo; há um "flash-back" de vinte anos no qual ela Pelo outro método de montagem, aquele em que o elemento de
pensa nos lindos dias que viveu em Bourton (é claro que aqui o prin- tempo é estático e o elemento de espaço se move, Joyce foi sobeja-
cípio da livre associação também está em funcionamento); ainda no mente elogiado pelo famoso expoente da montagem nos filmes, Sergei
passado mas em um dia específico, ela relembra nos menores detalhes Eisenstein. <17> Joyce explorou este artifício especialmente no episódio
uma conversa que teve com Peter Walsh (o "close-up" em funciona- dos "Rochedos Serpeantes" de Ulisses. Não podemos deixar de men-
mento); segue-se uma visão para o futuro próximo, de uma suposta cionar que, enquanto Joyce é o grande virtuoso da técnica, foi Virginia
visita de Peter Walsh a Londres; nesta altura, empregou-se o artifício Woolf, em Mrs. Dalloway e O Farol quem a combinou com maior
da "visão múltipla" e deixamos a consciência de Clarissa de lado por perícia e eficácia com outras técnicas do fluxo de consciência. Joyce
algumas linhas para penetrar na de um estranho, que observa Clarissa emprega a montagem de espaço como técnica básica e sobrepõe o mo-
atravessando a rua; voltando ao fluxo de Clarissa, encontramo-la medi- nólogo interior; Virginia Woolf conserva seu método básico do monó-
tando, no momento presente, sobre seu amor por Westminster; há um logo interior e sobrepõe a montagem.
"fade-out" de seus devaneios sentimentais e ela recorda a conversa da O décimo episódio de Ulisses, chamado também o episódio dos
noite anterior sobre o fim da guerra; isto, por sua vez, "fades-out" e "Rochedos Serpeantes", consiste de 18 cenas que se desenrolam em
encontramo-nos de volta com sua alegria de fazer parte de Londres no diversas partes de Dublin. Joyce tem o cuidado de fazer referências
momento presente; aqui empregou-se o princípio do "corte" para apre- cruzadas a detalhes de menor importância para indicar que as cenas
sentar uma breve conversação entre Clarissa e Hugh Whitbread, a quem têm lugar aproximadamente ao mesmo tempo. A não ser por esses
encontra na rua; a conversa, depois de livremente reproduzida, "fades- detalhes secundários e superficiais, as cenas não se realizam. Stuart
out" para perder-se novamente no fluxo da consciência de Clarissa, Gilbert chama a isto a técnica do "labirinto". (18> É um exemplo so-
que está preocupada com vários aspectos dos Whitbreads; o tempo
passa rapidamente (com imagens dos Whitbreads) de um passado in-
definido para o momento presente, para o futuro imediato e para o (17) Film Form, ed. e trad. Jay Leyda, Nova York, Harcourt, Brace, 1949,
p. 104.
passado distante; ainda no passado distante, Clarissa pensa em Peter (18) Ulysses, de James Joyce, Nova York, Alfred A. Knopf, 1934, p. 309
e Hugh em Bourton; isto passa por uma mudança abrupta "cortando" Mn diante. A maioria de nós, que escrevemos sobre Ulisses, somos muito gratos
para novas meditações sobre o bom tempo no momento presente; o 10 trabalho pioneiro de Gilbert.
48 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS TÉCNICAS 49
berbo de montagem de espaço. Muitas das cenas empregam uma ou Aqui, a verdadeira substância do monólogo de Bloom não (cm relação
outra das técnicas do fluxo de consciência, mas é somente nas cenas com o resto do episódio dos "Rochedos Serpeantes", a não ser possi-
que dizem respeito a Leopold Bloom e Stephen Dedalus que a função velmente com a cena em que Stephen Dedalus também aparece com-
do fluxo de consciência do romance é conservada. As cenas restantes prando livros. Esse método de "olho da câmara" para apresentar o fluxo
do episódio, que constituem sua maior parte, fazem com que seja uma de consciência permite a Joyce oferecer ao leitor um lampejo no inte-
de várias partes panorâmicas de Ulisses. Todavia, na medida em que rior de um único aspecto da psique de Bloom. É um aspecto cuja apre-
este episódio diz respeito aos processos psíquicos dos dois personagens, sentação requer somente algumas poucas linhas e que anularia sua
ilustra a função da montagem de espaço como um controle do movi- função se fosse estudado a fundo. Permite também a Joyce fazer algo
mento do fluxo de consciência. Sua vantagem reside na justificativa mais importante: explicar ao leitor imagens e frases que surgem constan-
estética que estabelece para apresentar relances breves e casuais na temente no monólogo de Bloom pelo resto do dia; pois o impudente
consciência. romance de Raul em Doçuras do Pecado persegue e tenta e torna-se
Por exemplo, em uma das cenas deste episódio, Leopold Bloom mesmo um símbolo para o pobre marido enganado que é Leopold
é-nos apresentado examinando uma literatura ligeiramente pornográ- Bloom. Richard Kain, em sua compilação de palavras-tema em Ulisses,
fica numa vitrine para encontrar um romance para dar de presente à chegou mesmo a provar que o nome "Raul", por exemplo, aparece nos
esposa. É-nos dado um relance de seus pensamentos não-pronun- monólogos de Bloom sete vezes depois de sua primeira leitura no inte-
ciados: rior da livraria, e "Doçuras do Pecado" aparece treze vezes. (19)
O Sr. Bloom, sozinho, espiava os títulos. Belas tiranas, Apesar da maneira admirável como tudo isto é feito, é Virginia
Woolf quem emprega com maior eficácia o artifício da montagem de
por James Malhamor. Conheço o género. Já o tive? Sim. espaço no que diz respeito às finalidades da ficção do fluxo de cons-
Abriu-o. Assim pensou. ciência, isto porque consegue relacioná-lo aos seus outros artifícios ca-
Uma voz de mulher atrás da cortina encardida. Ouça- racterísticos e subordiná-lo ao seu tema básico do fluxo de consciência.
mos: o homem. Talvez o exemplo de "vista múltipla" ou montagem-de-espaço mais
Não: ela não gostaria muito disso. Levei para ela frequentemente citado na ficção recente seja a cena, em Mrs. Dalloway,
uma vez. em que o avião está escrevendo no céu. Vejamos como esta cena foi
inserida no género do fluxo de consciência da novela.
Leu o outro título: Doçuras do pecado. Faz mais o
seu género. Vejamos. De súbito Mrs. Coates (uma de um grupo de pessoas
Leu onde seus dedos abriram. que assiste ao espetáculo dos portões do Palácio de Buck-
— Todos os dólares que seu marido lhe dava eram ingham) olhou para o céu. O rumor de um aeroplano
gastos nas lojas em maravilhosos vestidos e refolhos carís- brocou ominosamente o ouvido da multidão. Ali estava
simos. Para ele. Para Raul! sobre as árvores, rojando uma fumaça branca que se desen-
Sim. Este. Aqui. Experimentemos. rolava e entrelaçava, realmente escrevendo alguma coisa!
escrevendo letras no céu! Todos olhavam para cima.
— A sua boca colou-se na dele num suculento beijo "Glaxo", disse a Sr.5 Coates com uma voz forçada, inti-
voluptuoso enquanto as mãos dele apalpavam suas curvas midada. ..
opulentas no interior de seu déshabillé. "Kreemo", murmurou Mrs. Bletchley, como uma so-
Sim. Levo este. Pronto, (p. 232) nâmbula. Com o chapéu perfeitamente imóvel na mão,
Depois de mais algumas linhas, a cena é "cortada", passando para Mr. Bowley olhava para o alto...
um leilão em outra parte de Dublin. O artifício cinematográfico se- (19) Fabulous Voyager, Chicago, University of Chicago Press, 1947, p.
cundário, cujo uso é mais frequente neste episódio, é o do "corte . 277 cm diante.
50 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS TÉCNICAS 51
O aeroplano deu volta, deslizou e foi ter exatamente de Clarissa. Pode-se ver prontamente que, uma vez aceita a câmcra
onde queria, rapidamente, livremente, como um patinador. errante, a escolha aparentemente arbitrária de um objeto atrás do outro
"É um "e", disse Mrs. Bletchley — ou um dançarino — se torna aceitável. Deste modo, não se fica absolutamente chocado
"É Toffee", murmurou Mr. Bowley — pela súbita inclusão ou pelo súbito corte do que quer que seja. O objeto
Fora-se; estava atrás das nuvens... de foco central na montagem, no caso o avião escrevendo no céu,
De súbito, como um trem que sai de um túnel, o aero- carrega o peso da unidade. James Joyce, outro a valer-se da montagem,
plano emergiu dentre as nuvens, o som brocou o ouvido geralmente não é tão atencioso pois, conforme veremos, seus artifícios
de toda a gente, no Mali, no Green Park, em Piccadilly, em unificadores são geralmente externos em vez de orgânicos: para Joyce,
Regent Street, no Regenfs Park... além de sensível, é preciso que se esteja bem informado.
Lucrezia Warren Smith, sentada ao lado do marido Observações sobre a mecânica
em um banco da alameda do Regenfs Park, olhou para
cima. Uma outra série de controles é menos importante do que a livre
"Olha, olha, Septimus!", exclamou... associação e os artifícios cinematográficos, mas é preciso levá-los em
Com que então, pensou Septimus, olhando para o alto, consideração se quisermos compreender como a qualidade do movi-
estão a comunicar-se comigo. Não eram verdadeiramente mento da consciência é apresentada na ficção. Esta série compreende
palavras... os artifícios mecânicos. Salientou-se anteriormente que controles de ti-
pografia e pontuação servem para dar ao monólogo interior o efeito
Seguem-se várias páginas do monólogo interior de Septimus, in- de direção retilínea e que eles ao mesmo tempo permitem ao escritor
terrompido aqui e ali para tomar conhecimento do aeroplano. Em se- controlar o monólogo dentro-da-cena. Sua função no controle do mo-
guida, voltamos para Clarissa Dalloway a quem havíamos deixado no vimento do fluxo de consciência é semelhante, porém mais complexa.
início da seção da montagem, justamente no momento em que ela Esses artifícios, embora sejam geralmente funcionais para cada leitor,
chega em casa e pergunta à criada: "O que é que eles estão olhando?", quando usados na ficção do fluxo de consciência merecem especial
referindo-se, naturalmente, ao espetáculo do avião. (20) atenção. Muitas vezes são sinal de importantes mudanças de direção,
O que Virginia Woolf fez aqui pelo leitor através do uso da mon- compasso, tempo ou mesmo no foco do personagem; às vezes, são a
tagem não foi só apresentar-lhe uma vista transversal de Londres à única indicação dessas mudanças. Algumas ilustrações mostrarão a
medida que reage ao mesmo estímulo recebido por seus dois persona- importante função dessa mecânica — e a habilidade com que ela é
gens principais, Clarissa e Septimus (o que é importante em si para manejada — para controlar o movimento da consciência.
compreender suas psiques), mas ela alcança outras finalidades; prin- O uso mais orgânico da pontuação para controlar o movimento do
cipalmente, apresenta-nos à psique de Septimus no seu único relacio- fluxo de consciência é o de William Faulkner em The Sound and the
namento público possível com a de seu protagonista — isto é, sua Fury. Neste romance, o início do monólogo interior direto é sempre
relação no tempo e no espaço. Para avaliar isto, é preciso lembrar
que o elo entre Septimus e Clarissa, cujo relacionamento é ténue e que indicado em tipo itálico. O tipo itálico tem ainda uma outra função: a
nunca se encontram, tem um profundo significado simbólico. Outra de chamar à atenção do leitor que houve uma mudança no tempo.
finalidade alcançada é a introdução unificada de Septimus na história Geralmente, esta mudança é brusca. A menos que o leitor tenha noção
de Clarissa, especialmente as mudanças bruscas e os rápidos cortes de dessa importante função do tipo itálico, é provável que se confunda.
seu monólogo para traçar, sob nova forma, o movimento da consciência Uma ilustração será suficiente. Benjy, o idiota, está sendo conduzido
ao longo de uma grade dando para um campo de golfe por Luster, seu
(20) Modern Library Edition, Nova York, Random House, 1928; copy- protetor. O trecho começa com Luster dirigindo-se a Benjy em voz
rigth 1925 por Harcourt, Brace, p. 29 em diante. alta:
52 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS TÉCNICAS 53
"Você ficou preso de novo nesse prego. Será que você E por que isso haveria de irritar Charles Tansley? Ele se apressou
não consegue nunca passar por aqui sem ficar preso nesse (tudo isso, pensou Mrs. Ramsay, porque Prue não queria ser gentil
prego". com ele) em criticar os romances de Waverley, quando não entendia
Caddy me desenroscou e nos arrastamos por debaixo nada, absolutamente nada disso t u d o . . . " ( 2 2 ) O que os parênteses
da grade. Tio Maury recomendou que não deixássemos indicam aqui é uma mudança de níveis da consciência; é bem verdade
que ninguém nos visse, por isso é melhor a gente se aga- que não se trata de uma mudança extrema, mas, à maneira tipicamen-
char, disse Caddy. Agache-se, Benjy. Assim, está vendo. te sutil de Virginia Woolf, não deixa de ser uma mudança. Como
Agachamo-nos e atravessamos o jardim, onde as flores ras- sua técnica básica neste romance é o monólogo indireto, ela acha
pavam e roçavam contra nós. O solo estava duro... desnecessário depender com muita frequência de artifícios externos
Ponha as mãos nos bolsos, disse Caddy. Senão aca- como a pontuação. Mas quando os emprega, são lúcidos e espontâneos
barão congelando. Você não vai querer mãos congeladas como mostra o exemplo acima.
para o natal, vai. Desafiando a comparação com Virginia Woolf, neste e na maioria
"Está muito frio aí fora", disse Versh. "Você não vai dos outros sentidos, encontramos Waldo Frank. O virtuosismo técnico
querer sair." de Frank não impressiona muito; todavia, suas experiências na ficção
do fluxo de consciência são informativas para uma discussão das pos-
"O que é agora", disse a mãe. (21) sibilidades dentro desse género. Ele confia mais do que qualquer outro
O que aconteceu foi que Benjy, ao ficar enroscado no prego, lem- escritor na pontuação e nos artifícios tipográficos para controlar o mo-
brou uma outra ocasião, 18 anos antes, em que se enroscou em com- vimento da consciência. A dependência de Frank no romance Rahab,
panhia de Caddy, sua irmã. A lembrança é apresentada em tipo itá- por exemplo, está nas elipses, hífens e versos. Pelo que pude constatar,
lico. No entanto, a retomada do diálogo direto depois da parte em ele emprega cada um destes para um tipo de fluxo de consciência espe-
itálicos não representa uma continuação do diálogo que precedeu os cífico: as marcas das elipses indicam imagens visuais ou auditivas que
itálicos; é uma continuação do fluxo da memória do passado de caem sobre a consciência interior do personagem; os hífens indicam
Benjy. Quando o tipo itálico volta a aparecer (duas páginas depois), reações abstratas a essas imagens; e as linhas em verso (também usadas
indica uma volta do tempo para a atualidade. sempre com um hífen) indicam uma reação psíquica incompleta e alta-
Embora outros escritores não tenham considerado necessário o mente emocional.
uso do tipo itálico para conservar a fluidez na descrição da consciência, É interessante notar que Joyce, cujo uso de artifícios é notório,
raramente outros escritores foram capazes de desaparecer tão comple- vale-se menos dos artifícios mecânicos do que qualquer outro escritor
tamente de sua narrativa como Faulkner aqui. Usaram, no entanto, de fluxo de consciência com exceção de Dorothy Richardson — que
outros artifícios de pontuação. A confiança de Virginia Woolf na pon- nunca enfrentou os mesmos desafios técnicos de Joyce porque nunca
tuação para controlar a apresentação do movimento da consciência procurou chegar tão alto. O motivo de Joyce ter podido abrir mão
limita-se ao uso de parênteses. Ela os usa com parcimônia e eficácia; desse tipo de controle reside, naturalmente, no fato de ter tantos outros
não se vale deles como um sinal consistente, como Faulkner faz com à mão para alcançar as mesmas finalidades. Todavia, sob dois aspectos,
o tipo itálico. Algumas linhas de O Farol ilustrarão o seu método. um positivo e outro negativo, um estudo de Ulisses informar-nos-á ainda
Estamos por assim dizer em companhia da consciência interior de Mrs. da função dos artifícios tipográficos para controlar o movimento da
Ramsay, sentada à mesa do jantar no papel de anfitriã. Esteve medi- ficção do fluxo de consciência. O aspecto positivo é encontrado no
tando sobre seus problemas íntimos quando, de repente, se apercebe ipisódio de "Eolo" ou da "Gruta dos Ventos" (aquele que se desenrola
de que um de seus convidados, William Bankes, elogiou os romances na redação do jornal). Aqui, a inclinação de Joyce para o uso da
de Scott sobre Waverley: "Lia um deles cada seis meses, disse ele. montagem é evidente; pois todo o episódio consiste de uma série de
(21) Modcrn Library Edition, Nova York, Random House, 1929, p. 24. (22) Nova York, Harcourt, Brace, 1927, p. 159.
54 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS TÉCNICAS 55
breves incidentes, físicos e mentais, ligados somente por sua relação Assim, mesmo por meios puramente externos, o fluxo da vida
com o ambiente das salas de impressão e editoriais do jornal. Mais ou mental na ficção pode ser apresentado e controlado. Vimos que o prin-
menos metade das cenas consiste de trechos de monólogo interior. O cípio essencial do movimento da consciência é a lei comum da asso-
artifício de Joyce para entrelaçar esses trechos e fornecer ao leitor uma ciação mental, o que foi reconhecido e explorado pelos escritores de
chave para sua compreensão é tipográfico: consiste de cabeçalhos de fluxo de consciência, que também tomaram artifícios emprestados à téc-
jornal para introduzir cada uma. O leitor de ficção do século XX já nica cinematográfica e fizeram uso especial da pontuação convencional
se familiarizou com este artifício nas seções de "Newsreel" da trilogia a fim de apresentar e controlar o fluxo. Mas o fluxo é apenas uma das
U.S.A. de John Dos Passos. Ali, a finalidade, em linhas gerais, é tecer duas qualidades óbvias da consciência. A outra é sua intimidade; isto
críticas diversas sobre os disparates do mundo. As finalidades de Joyce é, os aspectos não formulados e incoerentes que fazem com que qual-
são diferentes das do romancista americano. Somente um exemplo do quer consciência isolada seja um enigma para qualquer outra. Estes
episódio da "Gruta dos Ventos" poderá ilustrar corretamente esta fina- dois aspectos fundamentais da consciência estão intimamente ligados e,
lidade. O cabeçalho de uma "cena" diz: E era a festa da Páscoa; abaixo conforme veremos no capítulo seguinte, ambos são, em parte, resultado
disso, segue-se o monólogo de Leopold Bloom: das leis mentais da livre associação.
Estacou na caminhada para ver um tipógrafo distri-
buindo tipos. Lê primeiro ao contrário. Faz a coisa rapida-
mente. Deve exigir uma certa prática. mangiD kcirtaP. Po-
bre papai, lendo para mim da sua hagadá e acompanhando
com o dedo de trás para diante. Pessach. No próximo ano
em Jerusalém. Ó, meu Deus! Toda essa longa história de
como saímos da terra do Egito e entramos na casa da
servidão. Aleluia. Shema Israel Adonai Elohenu. Não, essa
é a outra. Então os doze irmãos, filhos de Jacó... (p. 121)
Esta contemplação da erudição hebraica não tem relação com o
resto do episódio. É simplesmente outro dos lampejos que o leitor re-
cebe do interior da consciência de Bloom, unificado e feito de maneira
a parecer lógico pelo artifício do cabeçalho e da lógica da associação
central, o nome Patrick Dignam, escrito da direita para a esquerda,
como em hebraico. O lampejo liga todo o episódio por manter o tom
confuso e satírico e dar um ponto de partida comum ao processo da
livre associação de cena para cena.
O aspecto negativo da contribuição de Joyce para o uso de con-
troles tipográficos na ficção do fluxo de consciência é melhor ilustrado
pelos trechos anteriormente citados do monólogo de Molly Bloom.
Ele não tem nenhuma pontuação. Omitindo o auxílio mais elementar
da pontuação e tipografia, Joyce consegue apresentar o fluxo que é
típico da consciência de Molly, de vez que é apresentado a um nível
próximo do sono. A falta de pontuação é um controle inteiramente
visual, pois que na verdade o monólogo em si é cuidadosamente redi-
gido.
OS ARTIFÍCIOS
Nunca se pode conhecer diretamente o conteúdo
do "inconsciente".
S. FREUD
esperando, e que ela acha que deve controlar imediatamente. Ela não casamento para sua irmã Cândace, e são as batidas do relógio da escola
pode esperar. Embora o caráter íntimo da passagem seja obtido, o dando os quartos-de-hora, à medida que se aproxima a hora do sui-
significado poderá ser facilmente comprendido uma vez que se tenha cídio. Na página 98 encontramos este código para o tema dos sinos:
"apreendido" o método. "Foi um instante antes de cessar a vibração da última batida. Ela
No trecho acima do monólogo de Quentin Compson, o funciona- deixou-se ficar no ar, mais sentida do que ouvida, por muito tempo.
mento da associação para produzir a incoerência da consciência é mais Como todos os sinos que jamais soaram continuam soando nos longos
complexo e radical. Nesta breve passagem, muitas frases que possam raios de luz agonizantes e Jesus e São Francisco conversando sobre sua
parecer incoerentes poderão ser compreendidas por análise, partindo irmã."
do princípio de que são associações egocêntricas e que seu código se "Essa bebida lhe ensina a confundir os meios com os fins" contém
encontra em outra parte do romance — uma vez que Faulkner é um um significado particular para Quentin: seu pai, que está inextricavel-
escritor responsável. Por exemplo, "acordando os perdidos pés", por mente envolvido na ilusão incestuosa que Quentin nutre por sua irmã,
ser uma figura de retórica comum (sinédoque), é razoavelmente clara foi mencionado no pensamento imediatamente precedente — ele é "Mr.
em si; mas tornar-se-á mais significativa se o leitor guardar em mente Jason Richmond Compson". O leitor, que foi preparado para a queda
a impressão (dada na página 190, Modern Library Edition) que Quen- do pai pelos ditos sentenciosos, por coisas como: "É sempre dos hábitos
tin sentiu ao percorrer anteriormente o mesmo corredor: . . . "somente inúteis que você adquire que você se arrependerá", e "era um cavalhei-
as escadas descrevendo sua curva para dentro das sombras ecos de pés ro famoso por seus livros; hoje é famoso pelos que nunca devolveu"
nas tristes gerações como leve pó sobre as sombras, meus pés a acor- - - o leitor compreenderá que a frase "a bebida lhe ensinará a confun-
dá-los como pó, para levemente voltar a assentar-se". "O relógio con- dir os meios com os fins" é um epigrama ecoante do pai e que nesta
tando sua furiosa mentira", uma significativa figura de retórica em si altura se impinge loucamente sobre a consciência de Quentin.
(personificação) exige, para conseguir seu total impacto, a lembrança O que Faulkner fez nesta passagem é o mesmo que fez em todo
das preleções do pai de Quentin ao fazer presente de um relógio ao o seu The Sound and the Fury (e o que a maioria dos escritores de
filho: "Quentin, dou-lhe o mausoléu de toda esperança e desejo; é fluxo de consciência fez) para apresentar a inerente descontinuidade
muito dolorosamente capaz que você o use para granjear o reducto dos processos psíquicos e para torná-la significativa. Podemos encará-
absurdum de toda experiência humana..." lo da seguinte maneira: assim como as associações de qualquer momen-
Um exemplo ainda mais notável é a maneira como "ainda falta to particular da consciência são incoerentes fora do contexto da mente,
um quarto de hora" se enquadra significativamente no padrão do pen- assim as associações na passagem acima são incoerentes fora do con-
samento de Quentin. O leitor alerta sabe disto porque recebeu pistas texto do romance; dentro do contexto do romance, porém, são reve-
tais como "e escreveu os dois bilhetes, selando-os" na página 100, e o ladoras. Os romancistas usaram os princípios básicos da livre asso-
fato apresentado na página 104 da compra que Quentin fez de dois ciação psicológica para lhes servir de guia. As associações que Quen-
ferros de passar roupa de três quilos — o leitor alerta estará final- tin acompanha são bobagens fora do contexto do romance e no começo
mente ciente de que o protagonista na verdade pretende ir até o rio sfto razão de espanto para o leitor casual. Assim, o autor deixa pelo
para suicidar-se dentro de quinze minutos. O fato de precisar ser a menos claro que o leitor se acha realmente no interior da mente do
um momento exato ("ainda falta um quarto de hora") é uma das personagem. Mas como a ficção de Faulkner e Joyce e Woolf e alguns
obsessões de Quentin para ter de desfigurar seu ato crucial além do outros não é bobagem, eles foram largando pistas ao longo do caminho
normal. para deslindar os nós de intimidade através de sua obra. Em suma,
para o escritor responsável, a mente do personagem é a mente que
A aparente irrelevância do "certa vez ouvi sinos não sei onde" é existe no romance.
explicada pelo fato do dobrar dos sinos haver afetado a consciência
de Quentin a vários intervalos através do relato de seus preparativos Nem sempre o uso do método da livre associação para transmitir
para o suicídio. Estamos preparados para reconhecer que, para Quen- 0 aspecto íntimo dos processos psíquicos é tão obscuro. É muito mais
tin, "sinos" tem um significado simbólico a dois níveis: são sinos de Nimples, mas igualmente íntimo, por exemplo, quando Benjy, o irmão
64 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA OS ARTIFÍCIOS 65
idiota de Quentin e Cândace, nas primeiras páginas de The Sound and particular. (3> Este sinal é uma combinação do uso da palavra "pois"
the Fury, ouve o jogador de golfe gritar "caddie!" (N. T. — Rapaz como conjunção ilativa com o uso do ambíguo pronome "se". As pri-
que carrega os tacos e outros objetos no jogo de golfe) e na mesma meiras páginas de Mrs. Dalloway servem novamente para melhor ilus-
hora lembra-se de sua irmã Cândace, cujo apelido é Caddy; depois sua tração porque o leitor não terá de depender de uma exposição anterior,
mente de idiota volta para um incidente ocorrido 18 anos antes, quan- apesar do que mergulhará diretamente no fluxo da mente de Clarissa.
do sua adorada Caddy estava com ele. Valer-nos-emos liberalmente de elipses na seguinte citação, a fim de
dar um exemplo completo deste método especial em pouco tempo. Os
Também em Ulisses, a livre associação às vezes funciona num nível itálicos são meus.
razoavelmente simples, embora transmita sempre o efeito de intimi-
dade. Passamos a transcrever um exemplo mais ou menos típico. Leo-
pold Bloom está passeando por Dublin e encontra um cartaz anun- Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as
ciando uma apresentação de Leah com a atriz Mrs. Bandman Palmer. flores.
Sua psique vagueia como segue: Pois Lucy já estava com o serviço determinado... e
depois, pensou Clarissa Dalloway, que manhã — fresca
Gostaria de vê-la de novo nesse papel. Ontem à noite como para crianças numa praia.
ela interpretou Hamlet. Representou de homem. Talvez ele Que frémito! Que mergulho! Pois sempre assim lhe
fosse uma mulher. Por que Ofélia se suicidou? Pobre do parecera quando, com um leve ringir de gonzos... abria
papai! Como falava sobre Kate Bateman nesse papel! Nas de súbito as vidraças e mergulhava ao ar livre, lá em Bour-
portas do Adelphi de Londres, esperando a tarde toda para t o n . . . Peter Walsh! Regressaria da índia por um dia
poder entrar. Isso foi um ano antes de eu nascer: sessenta destes, em junho ou julho, não se lembrava bem, pois as
e cinco. (p. 75) suas cartas eram incrivelmente aborrecidas; eram os seus
ditos que se guardavam na memória...
Aqui, a associação puramente particular de "papai" com Ofélia Deteve-se um instante no cordão da calçada... muito
é, como a maioria dos leitores hão de adivinhar, o fato de o pai de direita, esperando para atravessar.
Leopold Bloom também haver se suicidado. A lembrança disto per- Pois tendo vivido em Westminster... sente-se, até no
meia a mente de Leopold o dia inteiro. Ela virá a tornar-se intricada- meio do tráfego... uma indescritível pausa... antes que
mente ligada com vários temas através do livro, mas esta é sua pri- batesse o Big-Ben... Que loucos somos... Pois só Deus
meira aparição. sabe como se ama a isto, como se considera a isto... a
vida; Londres; aquele momento de junho.
O uso da livre associação por Virginia Woolf, tanto como controle
do movimento e da direção dos "fluxos" de seus personagens como Pois era em meados de junho.
também para indicar o fator íntimo da consciência, é condicionado por
seu método especial do monólogo interior indireto. Observou-se em É claro que, encaixado como foi, o trecho não apresenta grande
outro capítulo que a característica desta técnica consiste na definida interesse, mas o uso de "pois" para indicar tanto a mudança na direção
orientação do fluxo pelo autor. Devido a esta interferência do autor, como as associações individualizadas torna-se claro. Mesmo o "pois"
Virginia Woolf aplica este princípio de associação ainda mais nitida- cm "pois as suas cartas eram incrivelmente aborrecidas" é usado desta
mente do que a maioria dos escritores de fluxo de consciência. É im- maneira, embora também seja usado aqui em sua função causal co-
portante para ela convencer o leitor da intimidade do material, uma mum. O uso do "se" salienta a intimidade, e no entanto permite ao
vez que, na verdade, deixa tudo tão claro. Conforme salientou David autor levar o leitor pela trela.
Daiches, ela tem um sinal especial para qualquer mudança na direção
do fluxo psíquico e para qualquer lugar em que entra uma associação (3) Virginia Woolf, Norfolk, Conn., New Directions, 1942, p. 63 em diante.
66 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA OS ARTIFÍCIOS 67
do intrinsecamente ligada ao funcionamento do fluxo de consciência no longo do areal de Sandymount? Tritura, tagarela, trila,
romance. O que recebeu menos publicidade e é ainda mais notável trila (aliteração e onomatopéia). Dinheiro do mar selva-
é o uso menos autoconsciente que Joyce faz dos artifícios de retórica gem. Domine Deasy sabe tudinho.
em partes do romance que se ocupam com sua finalidade fundamental, Não virás a Sandymount,
que é a de descrever estados interiores. Nestes lugares, a retórica é
usada não pelo que é, mas como artifício para captar a realidade de Madeline égua?
processos psíquicos; é um artifício visando produzir uma textura de O ritmo começa, vês? Ouço. (braquilogia) Um tetrâ-
descontinuidade que é uma qualidade da consciência. Como exemplo, metro catalético de iambos marchando (personificação).
transcrevemos um trecho do monólogo interior de Stephen, que dá iní- Não, agalope (arcaísmo): deline égua (elipse).
cio ao episódio de "Proteu" em Ulisses, contendo, assim como o exem-
plo de Faulkner acima, os artifícios especiais de descontinuidade. Neste pequeno trecho, assinalei vinte casos do uso de figuras e
artifícios de retórica. Com certeza seria possível encontrar outras tantas.
Inelutável modalidade do visível (epigrama): pelo me- Desconfio que Joyce raramente se saiu tão bem como no episódio de
nos isso se não mais, pensado através dos meus olhos (me- "Eolo", que foi conscientemente dedicado a elas.
táfora). Assinaturas de todas as coisas estou aqui para Este uso de figuras de retórica é, pois, uma característica da lite-
ler (hipérbato), marissêmen e maribodelha, a maré mon- ratura do fluxo de consciência que se origina naturalmente da tenta-
tante, estas botinas carcomidas. Verdemuco, azulargênteo, tiva de reproduzir a textura imperfeita, aparentemente incoerente, des-
carcoma: signos coloridos. Limites do diáfano. Mas ele conjuntada dos processos da consciência quando não são deliberada-
acrescenta: nos corpos. Então ele se compenetrava deles mente peneirados para comunicação direta. Até certo ponto, embora
corpos antes deles coloridos (anástrofe). Como? Batendo de maneira menos concentrada, a mesma coisa pode ser encontrada
com sua cachola contra eles, com os diabos (dialeto). De- nos romances de Virginia Woolf e Dorothy Richardson. Mas o tipo
vagar. Calvo ele era e milionário, maestro di color che de significado conotativo do qual estas duas escritoras mais dependem
sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiá- é conseguido pelos artifícios de imagens e símbolos mais familiares.
fano (eufonia). Se se pode pôr os cinco dedos através, é
porque é uma grade (entimema), se não uma porta. Fecha
os olhos e vê. Transformação por metáfora
Stephen fechou os olhos para ouvir suas botinas (si- Uma imagem é, naturalmente, um artifício retórico, usado em toda
nestesia) triturar bodelha e conchas tagarelas (onomato- literatura efetiva para transmitir uma impressão sensitiva. As imagens
péia). Estás andando por sobre isso algoqualcerto. Estou, podem ser identificadas como comparações figurativas, geralmente em
uma pernada por vez. Um muito curto espaço de tempo forma de símiles ou metáforas. A textura poética e ricamente ornada
através de muito curtos tempos de espaço (quiasmo). Cin- produzida pela imaginação pode ser encontrada nas obras mais diversas
co, seis: o nacheinander. Exatamente: e isso é a inelutável como os meandros indistintos de Pilgrimage, o altamente ordenado e
modalidade do invisível. Abre os olhos. Não. Jesus! Se eu planejado Ulisses, o sutil e rarefeito "envoltório transparente" que é
cair de uma escarpa que se salta das suas bases, caio através Mrs. Dalloway e a densa retórica de The Sound and the Fury — bem
do nebeneinander inelutavelmente (prótese). Até que estou como nos produtos banais ou caóticos de escritores menos bem suce-
deslocando-me bem neste escuro. Minha espada de freixo didos do fluxo de consciência. Um levantamento geral sobre o grande
pende a meu lado. Tateia com ela: é assim que se faz. Meus uso da imaginação na ficção do fluxo de consciência deve apoiar-se na
dois pés nas botinas dele estão no final de suas pernas dele mesma base que explica o grande uso de artifícios de retórica em geral:
(metonímia), nebeneinander. Soa maciço: feito pelo malho a tentativa dos escritores para superar o dilema com que sc defrontam
de los demiurgos. Estou eu andando para a eternidade ao quando procuram apresentar a consciência particular.
70 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA OS ARTIFÍCIOS 71
Podemos dispensar as análises de laboratório para nos convencer daquilo que é percebido (seja diretamente, pela memória ou pela ima-
de que existem sensações e impressões que a mente humana não ginação); o símbolo, sugerindo a maneira truncada de percepção c o
consegue verbalizar corretamente. Até que ponto isto acontece de- significado expandido. Pode-se ver que o método do simbolista, con-
pende da mente particular em qualquer situação particular. Os poetas, forme usado na ficção do fluxo de consciência, acha-se intimamente
por estarem sempre procurando comunicar alguma coisa tão precisa aliado à tentativa do naturalista para apresentar seu material com
ou tão subjetiva que foge à linguagem denotativa, sempre dependeram exatidão. Os dois escritores, Joyce e Faulkner, que mais se valem do
das comparações para se expressarem. O escritor do fluxo de consciên- simbolismo, são mais frequentemente enquadrados na tradição natu-
cia está explorando a própria área onde o processo racionalizante da ralista do romance.
verbalização não se acha envolvido. Seu dilema está em haver escolhido A ficção do fluxo de consciência que mais se utiliza da imaginação
palavras para expressar sua área não-verbal da mente. Como o poeta, é Pilgrimage, de Dorothy Richardson. Vimos que sua técnica básica
ele recorreu ao uso convencional das comparações. é das mais incomuns, consistindo na mera descrição do estado psíquico.
Mas, não é assim tão fácil resolver completamente o dilema. O È confiando na imaginação que ela empresta a isto um pouco do efeito
problema do escritor do fluxo de consciência é diferente do do poeta de intimidade necessário. A autora (e tem-se a impressão de que ela
porque cabe ao primeiro a tarefa de reter as aparências de confusão se identifica estreitamente com a protagonista, Miriam Henderson) na
dos processos psíquicos não-verbais. Mais do que por qualquer outra maior parte limita-se a descrever as impressões que Miriam encontra
coisa, esta confusão é assinalada pelo fato de ser fragmentada; isto é, e afirma as associações de Miriam com estas impressões iniciais. Isto
falta-lhe o aspecto racional da sintaxe normal que é fundamentalmente é feito geralmente em termos de imaginação, não de narrativa. Não é
obtida por uma relação convencional entre sujeito e objeto. A fim de abstrato, é concreto; e não é dramático, é refletivo. Dorothy Richard-
dar a aparência desta falta de inteireza sintática normal e ao mesmo son maneja este sistema com tamanha habilidade que o leitor chega
tempo expressar o que está além do poder de significado denotador, os a identificar imagens com certos estados de espírito do personagem,
escritores do fluxo de consciência empregaram imagens de duas ma- chegando a ser capaz de preencher os espaços em branco da própria
neiras específicas: empregaram a imagem de maneira impressionista e psique particular de Miriam.
usaram o simbolismo. Um trecho de Honeycomb (Favo de Mel), o 3 2 volume de Pilgri-
Por uso impressionista da imaginação, quero referir-me à descri- mage, ilustrará o funcionamento da imaginação na ficção do fluxo de
ção de uma percepção imediata em termos figurativos que se expandem consciência. Miriam está almoçando na casa em que é governanta.
para expressar uma atitude emocional para com uma coisa mais com- Há vários homens, convidados de seu empregador, também almoçando
plexa. Um bom exemplo é a impressão que Dewey Dell tem da tabu- a uma mesa próxima. Segue-se a impressão que Miriam tem deles:
leta como "olhando para a estrada agora, porque pode esperar". Os
sistemas de expansão variam e serão ilustrados mais adiante. Verifi- O olhar aflito de Miriam procurava suas testas em
caremos que os escritores que caracteristicamente usam a imaginação busca de alívio. Frontes lisas e sobre elas cabelos cuidado-
desta maneira são aqueles amiúde rotulados de impressionistas — em samente escovados; mas as frontes lisas, imóveis, eram
suma, aqueles que são mais subjetivos no seu método, e são eles Dorothy trincheiras de ódio; puro ódio homicida. Assim são os
Richardson e Virginia Woolf. Por "simbolismo", refiro-me simples- homens, disse ela, num súbito instante de certeza, os homens
mente ao considerável uso de símbolos. Um símbolo é uma metáfora são exatamente assim, quando contrariados, quando reais.
truncada, ou seja, uma metáfora com falta do primeiro termo. Con- Todo o resto é fingimento. Seus pensamentos cintilaram
sequentemente, é um artifício para concentrar a expressão de uma adiante para um claro e concludente ponto de debate, com
comparação; ao mesmo tempo que é, como toda metáfora, natural- um marido. Apenas uma fronte fria, vazia, odienta e sobre
mente, um artifício para expandir o significado. Tanto a imagem como ela cabelos cuidadosamente escovados. Quando um homem
o símbolo tendem a expressar alguma coisa da qualidade de intimidade não compreende ou não concorda, ele não passa de uma
na consciência: a imagem, sugerindo os valores emocionais particulares testa vazia, ossuda, pensando afetadamente, absolutamente
O FLUXO DA CONSCIÊNCIA OS ARTIFÍCIOS 73
72
condenadores, e por debaixo um rosto que continua comen- ciência de Miriam. Sua obsessão com os homens pode ser deduzida
do — e que se afasta para algum lugar. Os homens são do trecho acima. Recebemos as impressões de Miriam sobre as coisas
todos duros ossos irados; sempre pensando alguma coisa, em termos de imaginação e, como leitores, recebemos impressões dc
só uma coisa por vez e a menos que se concorde com aquilo, Miriam pela nossa interpretação imaginativa dessas imagens.
eles matam. Meu marido não me matará... Esmagarei Um uso diferente da imaginação é comumente encontrado na lite-
sua fronte convencida... Fá-lo-ei compreender... toda ratura do fluxo de consciência. Em Ulisses, por exemplo, há um uso
questão tem dois lados... um milhão de lados... não há farto da imaginação, que ali funciona de maneira mais limitada e geral-
questões, apenas lados... sempre mudando. Os homens mente vem em forma de símbolos. A título de ilustração, quando
discutem, pensam que podem provar as coisas; suas frontes Stephen lembra sua experiência traumática ao leito de morte de sua
voltam ao normal — frescas e calmas. Para o diabo com mãe, ela é apresentada ao leitor na seguinte passagem repleta de
eles todos — todos os homens. (5) imagens:
Em sonho, silentemente, ela viera a ele, seu corpo
Isto é uma descrição onisciente do que Miriam está pensando, gasto dentro de largas vestes funéreas exalando um odor
exceção feita às últimas linhas, que passam para o monólogo interior de cera e de pau-rosa, seu hálito pendido sobre ele com
direto. O "disse ela", por exemplo, não significa que "ela disse", mas mudas palavras secretas, um esmaecido odor de cinzas
antes que "ela pensou", porque a autora está procurando fazer uma molhadas.
transcrição direta da textura dos pensamentos de Miriam. Isto é feito Seus olhos perscrutadores, fixando-se-me da morte,
através da imaginação, da apresentação das impressões que cruzam a para sacudir e dobrar minha alma. Em mim somente. O
mente de Miriam em termos de imagens que são típicas, quase inevi- círio dos mortos a alumiar sua agonia. Lume agonizante
táveis, para o tipo de pessoa que ela é. "Apenas uma fronte fria, vazia, sobre face torturada. Seu áspero respirar ruidoso esterto-
odienta e sobre ela cabelos cuidadosamente escovados" — isto para rando-se de horror, enquanto todos rezavam de joelhos.
Miriam é o homem, o macho. A imagem que ela tem dele quando come Seus olhos sobre mim para redobrar-me. (p. 12)
é sempre a imagem de um potencial "ponto de debate"; é a imagem que
ela faz dele como "meu marido". John Cowper Powys, em seu livro
sobre Dorothy Richardson, poderia ter usado este exemplo como prova Aqui, o resultado não é impressionismo, mas sim o desejo do
daquilo que ele considera sua grande façanha como escritora: a apre- Imagista para apresentar detalhes precisos. Como os detalhes são
sentação da vida de um ponto de vista feminino. (6) Ou o Professor fenómenos psicológicos, essas imagens particulares (combinadas com
Beach poderia tê-lo indicado para reforçar sua ideia de que a obsessão u intensa retórica) chegam tão perto quanto se possa imaginar de uma
psicológica de Miriam é com os homens. Embora Beach afirme que apresentação exata dos fenómenos — a menos que fosse para ser em
ela nunca "o traz à luz do dia", aqui ela chega terrivelmente perto termos da câmara do psicanalista. (8)
disso. (7) A base do simbolismo é o uso de símbolos especiais e particulares.
O que podemos deduzir do método de Dorothy Richardson é que lUlmund Wilson, em seu importante estudo do Simbolismo, diz que
ela apresenta as impressões que Miriam tem das coisas da maneira como "os símbolos da Escola Simbolista geralmente são escolhidos arbitraria-
Miriam tem estas impressões, e as imagens através das quais elas são mente pelo poeta para representar ideias especiais todas suas — são
apresentadas concluem muito sobre o que se está passando na cons- uma espécie de disfarce para essas ideias". (9) Poderíamos parafrasear
(5) Pilgrimage, Nova York, Alfred A. Knopf, 1938, I, 437. (K) Ao menos na obra de um romancista (Blue Voyage e The Great Circle,
(6) Dorothy M. Richardson, Londres, Joiner and Steele, 1931, p. 5 cm •Ir Conrad Aiken), a imagem vem frequentemente em termos psicanalíticos.
diante. iMundo assim a um grau de distância da vida, o efeito é tedioso e pouco con-
(7) Joseph Warren Beach, The Twentieth Century Novel: Studies in Tech- vincente.
nique, Nova York, D. Appleton-Century, 1932, p. 387. (9) AxeVs Castle, Nova York, Scribner's, 1931, p. 20.
74 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA OS ARTIFÍCIOS 75
dizendo que os símbolos dos escritores do fluxo de consciência geral- é um dos principais temas do livro. Não se limita somente à consciên-
mente são escolhidos propositalmente por eles para convencer os leito- cia abalada de Stephen com relação à mãe. Este é apenas um de seus
res da intimidade e da realidade da mente que está sendo representada, aspectos, pois a consciência de Stephen acha-se abalada por uma série
assim como para representar ideias peculiares a essa mente. de coisas, entre elas o abandono de suas irmãs, sua incapacidade de ater-
Os artistas modernos, principalmente os escritores que se têm se a quaisquer valores e principalmente sua alienação da Igreja onde foi
ocupado do funcionamento mental, reconheceram pela teoria ou, o que criado. A cena da morte da mãe, que se repete oito vezes no romance
é mais provável, pela experiência autoconsciente,. que o processo men- segundo a compilação de Kain, é um símbolo para tudo isto
tal primário é o de formar símbolos. De simples percepções e senti- Existem literalmente centenas de outras imagens usadas como sím-
mentos vêm os símbolos; e este processo da formação-de-símbolos é bolos em Ulisses. Alguns exemplos, apenas do episódio do qual foi
anterior à associação ou concepção. Esta teoria tem sido analítica e extraído o trecho acima (o episódio inicial), mostrará como são usados
logicamente explorada por um número de filósofos contemporâneos c a frequência com que ocorrem. A cena tem início com Buck Mulli-
(Cassirer, Whitehead e Langer, por exemplo), mas foi documentada gan adiantando-se e "trazendo um vaso de barbear, sobre o qual se cru-
diretamente pelos escritores do fluxo de consciência. Para uma com- zavam um espelho e uma navalha"; ele entoa Introibo ad Altare Dei.
preensão do sistema de "anotar" o conteúdo mental, é importante ter A imagem, naturalmente, é o símbolo de um ritual profano, especifica-
conhecimento desta razão responsável pelo uso da simbolização. mente o do sacrifício. Mais tarde, Stephen mira a baía e a imagem na
Símbolos e simbolismo abundam em qualquer conceito de métodos sua mente é: "O anel da baía e o horizonte cinturavam uma fosca mas-
literários modernos. Muito se tem escrito e muito mais ainda suposto sa verde de líquido". Isto também se transforma num símbolo (pelos
sobre o assunto; e a maior parte disto tudo tem sido dolorosamente processos da associação) do vaso que estava ao lado da cama da mãe
generalizada. Eu gostaria de acrescentar o seguinte às suposições e ge- "contendo a verde bile gosmenta". Estas duas imagens-símbolos são
neralizações: o principal ímpeto para confiar em símbolos tem origem concentrações da expressão do longo alcance do remorso de Stephen.
na experiência psicológica que indica que a simbolização é um processo (Jom a espécie de sensibilidade e consciência de que Stephen é dotado,
mental primário. O resultado mais grave do conhecimento geral deste Iodas as imagens que se impingem sobre sua mente são símbolos de
fato foi que grande parte da arte simbólica do século XX perdeu seu NCU grande remorso; um remorso que ele evita pelo cinismo em suas
ponto de apoio, tendo-se criado várias irresponsáveis tendências surrea- palavras, mas que não pode evitar em sua consciência; aliás, um re-
listas nas quais os símbolos são o fim e não os meios. Pelo contrário, a morso que Joyce não consegue expressar em palavras, mas que pode
literatura do fluxo de consciência usou símbolos de maneira metódica e expressar na força simbólica das imagens.
realista. Pelo menos, assim os usou na tentativa de apresentar o fun- Vimos, assim, que um aspecto do uso de símbolos na literatura em
cionamento mental como formador primário de símbolos. Assim, na discussão deriva da tentativa do naturalista para apresentar a realidade
tentativa de descobrir como os escritores apresentam a mente como Objetiva. Por exemplo, no solilóquio de Dewey Dell mencionado acima
sendo convincentemente não-simplificada, como sendo realista, encon- —- como também no monólogo de Quentin — vê-se de pronto que o
tramos no uso da formação de símbolos uma chave para o método. (10) NÍmholo se está formando na mente do personagem antes que venha
Grande parte dos efeitos que Joyce consegue neste tipo de litera- qualquer associação ou qualquer começo de ideação. Dewey Dell per-
tura provém da força simbólica das imagens. No trecho da consciência cebe a tabuleta, que se impinge sobre sua mente com um formato sim-
dc Stephen acima descrita, a imagem de sua mãe aparece como símbolo. bólico. Naturalmente, o símbolo não é definido, de vez que os símbolos
Representa o remorso de Stephen por ter-se recusado a atender à última ||o, por natureza, indefiníveis; mas o leitor está bastante consciente com
vontade da mãe. O termo que o próprio Stephen dá a este sentimento é 0 personagem para achar o processo formador de símbolos inteiramente
"Agcnbite of Inwit" (necrófago mascador de cadáveres). O remorso acreditáveis e parcialmente significativos. As associações e ideias che-
(10) O uso do símbolo como motivo condutor é analisado na seção abaixo (II) Richard Kain, Fabulous Voyager, Chicago, University of Chicago
sobre o uso de padrões na literatura do fluxo de consciência. ftcnn, 1947, p. 260.
76 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA 4
garão à mente de Dewey Dell — e do leitor — mais tarde, depois que
o símbolo estiver formado. Praticamente o mesmo se aplica ao monó-
logo de Quentin, embora o processo formador de símbolos seja mais
ativo e ainda mais particular. Os símbolos ali, o corredor, os pés AS FORMAS
perdidos, o relógio, os sinos e assim por diante chegam antes das asso-
ciações porque são as próprias coisas associadas. Desejo afirmar apenas uma possibilidade. Se a natu-
Outros escritores de fluxo de consciência usam tanto a imagem reza humana mudar, será porque os indivíduos conseguem
expressionista como a imagem simbólica de maneiras semelhantes às de ver-se de uma nova maneira. Aqui e ali, as pessoas —
Dorothy Richardson e de Joyce. Não serão precisos novos exemplos muito poucas, mas há entre elas alguns romancistas —
para indicar o valor deste artifício poético para expressar o que na estão procurando fazer isto.
consciência não pode ser expresso por comunicação direta, precisando
por isso ser expresso pelo impressionismo ou pelo simbolismo. E. M. FORSTER
Conforme vimos, de uma forma ou de outra os escritores do fluxo
de consciência tramaram métodos aproveitáveis para representar e con-
trolar o assunto que lhes diz respeito. O fluxo, o senso especial de Para o romancista do fluxo de consciência, o problema da forma
tempo e o enigma da consciência são logo captados e comunicados num é o problema de como impor a ordem sobre a desordem. Ele começa
contexto ficcional. Mas a arte literária, conforme nos ensinou Aristó- por descrever aquilo que é caótico (a consciência humana a um nível
teles, requer mais do que verossimilhança e clareza — ela requer har- incompleto) e é obrigado a evitar que a sua descrição seja caótica (para
monia. Com o tema e a ação externa substituídos pela existência e fun- produzir uma obra de arte). Podemos encarar o problema da seguinte
cionamento psíquicos, o que deverá unificar a ficção? O que deverá maneira: se um autor deseja criar um personagem apresentando ao lei-
tomar o lugar do enredo convencional? tor a mente desse personagem, então a obra na qual isto é feito, por
si, tem a mente desse personagem por cenário. Tem por tempo de ação
todo o alcance das lembranças e fantasias dos personagens no tempo;
tem como lugar de ação onde quer que as mentes dos personagens quei-
ram ir na memória ou fantasia; e tem por ação qualquer incidente lem-
brado, percebido ou imaginado sobre o qual os personagens queiram
focalizar sua atenção. Em suma, o escritor compromete-se a lidar fiel-
mente com aquilo que ele concebe como sendo o caos e acidente de
uma consciência — sem padrão, indisciplinada e indistinta.
Vara que servem os padrões
A arte, a arte da ficção, requer um padrão, disciplina e clareza.
0 leitor de ficção exige essas coisas e precisa tê-las para que sua pró-
pria consciência indisciplinada possa focalizar a atenção e para poder
compreender e interpretar. Assim sendo, de uma maneira ou de outra,
1 preciso que o escritor dê um padrão ou uma forma ao seu material.
Das maneiras convencionais de chegar a este resultado na ficção, a
principal delas consiste em utilizar uma unidade de ação e personagem;
lrto é, dando-lhe um enredo. Acontece que o escritor do fluxo de cons-
78 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS V)
ciência geralmente não se ocupa com um enredo de ação no sentido as classes de padrões, e terminando com Pilgrimage, de Dorothy Ri-
corriqueiro; ele se ocupa dos processos psíquicos e não das ações físicas. chardson, onde só encontramos uma classe deles.
Neste caso, se o escritor do fluxo de consciência não pode depender do
uso convencional do enredo para proporcionar a unidade necessária, é A rede labiríntica de Joyce
preciso que ele invente outros métodos. É o que tem feito, e com extre-
ma perícia, por sinal. Isto responde pela invulgar confiança nos padrões Esse livro espantoso que é Ulisses não é menos espantoso por ser
formais que encontramos nas obras dos escritores do fluxo de cons- o romance mais rebuscado jamais escrito. Nele, Joyce encontra aplica-
ciência Estes padrões podem ser classificados de acordo com vários ção não só para todas as sete categorias de padrões, mas usa, dentro
tipos: de algumas categorias, esquemas nunca encontrados na literatura antes
de seu romance. São estes que iremos examinar no momento. Primei-
1. As unidades (tempo, lugar, personagem e ação) ramente, precisamos averiguar o que tem o livro para justificar essa
2. Motivos condutores ênfase extrema no desenho. Não basta dizer que ele quase não tem
3. Padrões literários previamente estabelecidos (farsas) enredo. É preciso acrescentar que ele está lidando com aquilo que, como
4. Estruturas simbólicas uma coisa em si, é caótico e difícil de interpretar — ele está lidando com
5. Arranjos cénicos formais a consciência humana — e acrescentar ainda que Joyce procura inter-
6. Esquemas cíclicos naturais (estações, maré, etc.) pretar e dizer alguma coisa sobre a vida, e ele espera que o leitor com-
7. Esquemas cíclicos teóricos (estruturas musicais, ciclos histó- preenda e interprete aquilo que ele está dizendo.
ricos, etc). O conteúdo de uma psique em si não tem significado para outra
Trata-se aqui de uma classificação arbitrária, feita somente para consciência; é por demais disforme, indisciplinado; não oferece um pon-
dar maior conveniência a um estudo dos padrões. Por exemplo, as to de referência essencial; não tem uma ordenação específica; é incons-
unidades poderiam facilmente ser agrupadas sob o título de "esquemas tante e fluido; em suma, não oferece uma base para análise e interpre-
cíclicos teóricos" ou mesmo de "esquemas cíclicos naturais". tação. Em consequência, e isto é essencial à compreensão da ficção do
Já explicamos a base da necessidade de padrões na ficção do fluxo fluxo de consciência, qualquer romance que tem por finalidade a apre-
de consciência, mas resta ainda o problema de determinar em que prin- sentação da psique deve permanecer fiel à elasticidade, ao âmbito e ao
cípios esses padrões são usados. Em outras palavras, podemos fazer a capricho dessa psique. Qualquer romance deste tipo é sujeito a ausência
seguinte pergunta: Qual é a finalidade específica atingida pelos padrões de forma e, em um certo sentido, ausência de significado. Isto se aplica
na ficção do fluxo de consciência? É uma pergunta que deve ser feita e a Ulisses, como a todas os romances do fluxo de consciência.
respondida porque os comentaristas muito dizem acerca do aspecto inco- Em Ulisses, as forças de comunicação racionais altamente discipli-
mum de romances como Ulisses e Mrs. Dalloway, mas pouco oferecem à nadas de Stephen Dedalus vêm de uma consciência ainda mais caótica,
guisa de esclarecimento. O método para examinar esses padrões con- por ser mais complexa, do que a de Leopold Bloom. Com ambos os
sistirá em analisar as obras dos principais escritores de fluxo de cons- personagens, Joyce é obrigado a aderir às verdadeiras características de
ciência, a começar por Ulisses, de Joyce, onde podemos encontrar todas nuas psiques, da maneira como ele as criou. Deste modo, seu tema não
Contém forma. Mas o seu romance precisa contê-la, se quiser que o
(1) É esta qualidade altamente ordenada da ficção do fluxo de consciência leitor compreenda ou se ele, o criador de uma obra literária, quiser se
que a distingue da informidade e do caos de tanta outra ficção do século XX, Comunicar. O romancista tem a obrigação de proporcionar uma estru-
principalmente aquela que se originou do romance naturalista dos fins do sé- tura de referência para interpretação, um dispositivo que permita a dife-
culo XIX. Esta qualidade alinha também a ficção do fluxo de consciência icneiação e a variação, e uma maneira de obter luzes e sombras; em
intimamente com a renascença dos métodos clássicos na poesia e no drama. lUma, o romancista precisa sobrepor uma forma ao seu tema disforme,
O que há de espantoso é que, ao combater o caos, a ficção do fluxo de cons-
ciência tem o caos por tema. Conforme Family Reunion (Reunião em Família), loyce obtém tamanho êxito e usa tantos padrões para ordenar seu ma-
de T. S. Eliot, como contraparte no drama poético. terial que muitas vezes os padrões ofuscam os materiais básicos. Neste
80 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS Kl
sentido, é interessante notar o quanto se escreveu para explicar os pa- todo é explorado minuciosamente por Richard Kain em seu livro sobre
drões específicos em Ulisses (2) e o pouco que se disse sobre a função Ulisses. O significado desta espantosa adesão à tríade de unidades não
do fluxo de consciência no romance como um todo. foi examinado no que diz respeito à função do fluxo de consciência no
Alguns dos meios mais importantes e sob certos aspectos mais romance.
interessantes que Joyce emprega para compensar a falta de enredo e as Para examiná-lo, a primeira coisa a compreender é que, em um
dificuldades em apresentar o personagem ao nível dos processos psíqui- sentido, não houve absolutamente nenhuma adesão às unidades em
cos são as unidades de tempo e lugar. Ulisses se passa em um dia (18 Ulisses. Reflita-se, por exemplo, sobre a quantidade de personagens
horas) e em uma cidade. Repito que os comentaristas analisaram este de menor importância; os muitos ambientes geográficos longínquos:
aspecto do livro tão bem e tão a fundo que será desnecessário fazê-lo Paris, Gibraltar, Índia, Inglaterra; e sobretudo, reflita-se sobre o enor-
aqui, a não ser para indicar as características principais. me espaço de tempo que a ação do romance abrange: o tempo em que
A narrativa de Ulisses tem início em dois lugares: primeiro, com Stephen era estudante, o tempo que passou em Paris; a infância de
o começo do dia (16 de junho de 1904) para Stephen na Torre Martello Leopold, o começo de sua vida de casado; a vida de Molly em menina,
no primeiro episódio do romance; a seguir, com o começo do dia em seu namoro, seus inúmeros casos amorosos nos últimos anos. Entre-
casa dos Bloom, no 4 e episódio. Nos dois episódios, a hora do dia é tanto, dizemos que Ulisses foi planejado de modo a aderir estritamente
mais ou menos a mesma (entre 8 e 10 horas). Depois disto, o anda- às unidades porque se desenrola em uma cidade, em menos de um dia,
mento dos episódios segue uma sequência quase horária: o 22 episódio em torno de três personagens. É claro que aqui não há nenhuma con-
diz respeito à aula de Stephen por volta das 10 horas; o 3Q episódio nos tradição. A adesão às unidades e a falta dessa mesma adesão coexis-
mostra Stephen contemplando a Praia de Sandymount por volta das tem em Ulisses. Tudo depende da maneira de encararmos a narrativa:
11 horas; o 5Q episódio refere-se a Leopold na Casa de Banhos Públicos ela tem lugar na mente dos personagens, ou será a ténue ação superfi-
às 10; o 62 é a cena do enterro às 11; no 1- episódio, tanto Stephen cial, a odisseia exterior de Bloom? À primeira faltam as unidades; a
como Leopold aparecem no escritório de uma redação ao meio-dia; no última se prende a elas.
82 episódio, Leopold almoça à 1 hora da tarde; no 9- episódio, tanto Sendo Ulisses um romance de fluxo de consciência e tendo por
Leopold como Stephen aparecem na Biblioteca Nacional de Dublin às tema a vida psíquica de seus personagens, a ação principal e a narrativa
2 horas; no 10Q episódio, há relances de Leopold e Stephen nas bancas fundamental realmente se passam nas mentes dos personagens. Ali,
de livros de Dublin às 3; o 11Q, 12Q e 139 episódios lidam com as ativi- a unidade é impossível simplesmente devido à natureza da psique: ela
dades de Leopold entre 4 e 8 horas; o 145 episódio reúne Leopold e não é nitidamente organizada e é livre dos conceitos convencionais de
Stephen no hospital, à noite; o 152 os leva juntos ao bordel por volta tempo e espaço. Consequentemente, esta obra de arte que procura ser
da meia-noite; o 169 no-los apresenta no abrigo de um ponto de táxis fiel à natureza dos processos psíquicos precisa ser dotada de forma.
no começo da manhã, esperando passar a bebedeira; e o 179 no-los É por esta razão que a extrema adesão de Joyce às unidades em sua
apresenta juntos na residência dos Bloom por volta das 2 horas da narrativa superficial desempenha um papel tão importante em seu ro-
madrugada; o último episódio diz respeito a Molly Bloom logo após mance. Torna-se um ponto de referência para acompanhar e inter-
as duas (3) . pretar as psiques caóticas que descreve, além de dar ênfase a essas
Tudo isto se passa na cidade de Dublin e tudo do ponto de vista psiques, demonstrando um contraste de forma rígida em sua informi-
de apenas três personagens. O detalhe com que Dublin é apresentada c dade.
sua importância em relação a uma interpretação do romance como um Ainda há outros artifícios para adquirir uma ordem formal em
(2) Principalmente: Stuart Gilbert, James Joyce's Ulysses, Nova York, Al- Ulisses. Um dos que têm predominância é o uso do tema: o tema em
fred A. Knopf, 1934; Richard M. Kain, Fabulous Voyager, Chicago, University Ulisses é importante por entremear a obra e conter muitos temas meno-
of Chicago Press, 1947; e Harry Levin, James Joyce: A Criticai Introduction. res; como resultado, acrescenta aos processos da consciência descrilos
Norfolk, Conn., New Directions, 1941. no livro o peso do significado. "Motivo condutor" (leiímotif) é um
(3) Extraído da tabulação da obra de Gilbert acima citada, Capítulo ii. lermo tomado à música, especialmente ao drama musical wagneriano.
82 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS 83
De acordo com um dicionário padrão americano, significa "uma frase O motivo-símbolo em Ulisses é explorado com uma frequência
melódica marcante ou pequeno trecho indicativo de uma certa ideia, ainda muito maior. O exemplo mais divertido é a batata assada que
ou associado com ela, com uma pessoa ou situação e que acompanha Leopold Bloom traz consigo. Para Leopold, é um talismã, "uma relí-
seu reaparecimento". Transferido para termos literários, pode ser defi- quia da pobre mamãe", conforme relata à prostituta na cena do bordel
nido como uma imagem, símbolo, palavra ou frase recorrente que con- (p. 542); e anteriormente (p. 488), ela foi citada nos seguintes termos:
tém uma associação estática com uma certa ideia ou tema. Além da "um preservativo de batata contra a praga e a peste". Toda vez que
relação explícita nestas definições, os motivos musicais e literários de Bloom leva a mão ao bolso para certificar-se de que seu talismã está
Joyce pouco têm em comum, de modo que não convém levar avante com ele, é uma indicação de que está partindo para um evento heróico.
a analogia. Um destes é sua ida ao açougue. Ou pode indicar que ele está muito
Os motivos de Joyce podem ser classificados como motivos de angustiado, como na ocasião em que fica confuso com a probabilidade
imagem, símbolo ou palavra-frase. Servem para conduzir temas menores de topar com seu rival, Blazes Boylan. Segue-se o monólogo de Bloom
através do romance e para exprimir, com a força de imagem e símbolo, nessa situação:
o que se passa nas mentes dos personagens. E sobretudo, servem como Perscrutar algo que eu.
elo formal para ajudar a preservar a união dos materiais dispersos da Sua mão precipitada entrou rápida no bolso, retirou, leu
consciência. desdobrado Agendath Netaim. Onde foi que eu?
Um exemplo do motivo-imagem em Ulisses é a frequente imagem Ocupado perscrutando.
que Stephen tem da morte da mãe. No seu caso, trata-se de uma Enfiou de volta rápido Agendath.
obsessão por se haver recusado a atender ao seu pedido de rezar por De tarde, disse ela.
ela e acha-se associado ao conhecimento que tem de seu exílio espiri-
tual. Este é o "necrófago mascador de cadáveres" de Stephen, o re- Estou procurando por isso. Sim, isso. Busque em to-
morso de sua consciência; serve para dar ênfase a sua atitude ("Non Ser- dos os bolsos. Handker. (N. T. Abreviação de lenço).
vium") em luta com sua afinidade espiritual com a humanidade em Freeman. Onde foi que eu? Ah, sim. Calças. Carteira.
geral e o amor de sua mãe em particular. Este motivo aparece pela Batata. Onde foi que eu?
primeira vez no episódio inicial: "Em sonho, silentemente, ela viera Apressemo-nos. Andemos tranquilamente. Um instan-
a ele, seu corpo gasto dentro de largas vestes funéreas, exalando um te mais. Meu coração.
odor de cera e de pau-rosa, seu hálito pendido sobre ele com mudas Sua mão procurando pelo onde foi que eu pus achou
palavras secretas, um esmaecido odor de cinzas molhadas." Richard no bolso de trás sabonete loção preciso chamar tépido papel
Kain apontou a recorrência desta imagem no episódio de "Nestor" aderido. Ah, eis o sabonete! Sim. Portão.
(quando Stephen ajuda um aluno atrasado com sua lição de álgebra),
no episódio de "Proteu" (passiva), na cena da biblioteca enquanto Salvo! (p. 181)
medita sobre Hamlet e no episódio de "Circe", onde a mãe de Stephen A confusão de Bloom é indicada pelo monólogo "staccato" e pela
aparece em suas "largas vestes funéreas". furiosa busca de um objeto familiar em sua pessoa. A batata, seu "pre-
Estas imagens da mãe de Stephen no seu leito de morte ou em servativo contra a peste", é uma das coisas que encontra. Os outros
suas vestes funéreas são as bases temáticas para os monólogos de maior dois objetos, a brochura zionista Agendath Netaim e o sabonete são
carga emocional do romance. Há muitos outros motivos-imagem, mas tenias-símbolo semelhantes em Ulisses. Todos esses artigos servem de
a maioria deles ligados a Leopold Bloom. Um dos mais patéticos, em- contrapartes significativamente triviais para os deuses protetores na
bora humorístico, é o das muitas visões que Leopold tem de Molly na Odisseia de Homero. A função simbólica destes objetos é intensificada
época em que lhe fazia a corte. Sua função temática serve para no episódio de "Circe", onde se personificam em personagens naquele
mostrar o anelante amor de Leopold por Molly, apesar de sua tácita drama histérico, da mesma forma que os deuses homéricos na Odisseia
aceitação de seus amantes e de suas próprias galanterias canhestras. entram em cena com atributos mortais em tempos de crise.
84 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS 85
O emprego de palavras e frases como um tipo especial de motivo- mundo da consciência que antecede a fala, poderia perder-se ou ficar
símbolo é um artifício do qual Joyce é adepto. Vale a pena desviar- oculto. (6)
mo-nos do assunto para assinalar aquilo que tantas vezes tem sido O padrão mais manifesto que Joyce segue em Ulisses é, natural-
observado por outros escritores a respeito de Joyce, que se existe um mente, o do burlesco (ou paródia) da Odisseia de Homero. Ficou con-
aspecto em sua arte que o distingue de qualquer outro romancista, é cludentemente comprovado que Joyce fez isso cuidadosa e deliberada-
sua concentração e sensibilidade para com a linguagem como tal. Ele mente. É certo que seus três personagens principais foram moldados,
se ocupa da palavra individual em particular. Harry Levin, por exem- de maneira burlesca, pelos três principais personagens da Odisseia; e
plo, indica que o Stephen autobiográfico em Retrato era "um jovem que seu romance, assim como o épico, acha-se dividido em três partes
lírico que põe sua mágica à prova ligando frases aos sentimentos", e principais: a "Telemaquia", "A Viagem" e o "Nostos"; e que os epi-
que "Joyce, com sua imaginação auditiva altamente desenvolvida e sua sódios seguem os da Odisseia, embora Joyce os tenha reestruturado. (7)
infeliz alienação da sociedade, chegou a igualar linguagem e experiên- A única chave específica deste padrão no próprio livro acha-se
cia". (4) Frederick Hoffman diz, "A odisseia de Bloom repousa sobre no título. Entretanto, há inúmeras sugestões dele ao longo da obra.
ténues e acidentais combinações de palavras." (5) Em Finnegans Wake, O livro de Gilbert sobre Joyce é indispensável para acompanhar o pa-
Joyce mostra a maior preocupação com o poder da palavra ou frase drão homérico em Ulisses. A obra de Gilbert pode arcar com o peso
isolada. E é esta mesma espécie de preocupação que encontramos por da autoridade porque Joyce o aprovou antes de sua publicação e chegou
detrás do frequente uso da palavra-motivo em Ulisses. mesmo a ajudar Gilbert no seu planejamento.
Um desses motivos, por exemplo, é o famoso "met him pike Assim, não é preciso explicar o paralelo homérico em Ulisses, uma
hoses" que representa a tentativa que faz Molly Bloom para pronunciar vez que isto foi feito com tanta minúcia em outra parte. O que nos
a palavra "metempsicose". Aparece pela primeira vez no episódio interessa é estipular de que maneira este padrão específico influencia
de "Calipso", quando Molly pergunta a Leopold o significado da pala- o romance de Joyce no fluxo de consciência. Partindo da Odisseia^
vra. Bloom volta a pensar nela mais tarde, no mesmo episódio, e mais Joyce trabalha em três direções para dar unidade a seu romance: pri-
uma vez no episódio das "Sereias"; ela reaparece em sua mente no meiro, usa os temas da própria narrativa, reduzindo-os a proporções
episódio da "Nausícaa", na cena do "Gado do Sol" e finalmente no burlescas; segundo, emprega a estrutura simbólica da Odisseia e usa
drama de "Circe". O significado que evoca é sempre o da reencarnação os imagens e os símbolos homéricos; e terceiro, segue a disposição
— um conceito com o qual Leopold se ocupa muito seriamente. O episódica ou cénica da Odisseia. Dada a qualidade compacta destes
tema da reencarnação e regeneração é importante no livro. Por este três tipos de padrão, tal como Joyce os emprega, é conveniente consi-
motivo, o reaparecimento da "grande palavra" que preocupa Molly derá-los em conjunto. Entretanto, é preciso ressaltar que os dois pri-
volta com a força de um motivo. O tema é acentuado por sua aparição meiros, o épico burlesco e a estrutura simbólica, funcionam não só
de outras maneiras nos monólogos de Stephen, Leopold e Molly. É como padrões, mas também como chaves específicas para a intepreta-
também uma consequência da ideia do Ciclo Viconiano que interessava ção dos personagens.
a Joyce. De maneira semelhante, muitas outras palavras e frases-mo- A qualidade épica de Ulisses é seguida fielmente na prece inicial,
tivo são usadas em Ulisses, como é o caso de "omphalos", "La ci da- embora com escárnio; é encontrada no uso de "flash-backs" equiva-
rem. ..", "Doçuras do Pecado"; estes e muitos outros são enumerados lentes ao artifício épico de In Medias Res; é levada a efeito em sua
de acordo com suas aparições em Ulisses no apêndice de Fabulous
Voyager, de Kain. Todos estes motivos são sinais para o leitor aguar- (6) Por exemplo, o tema de Don Giovanni, assinalado pelo tema dc "La
dar um material temático que de outra forma, nas fantasias deste d darem". Uma hábil apresentação disto pode ser encontrada em um artigo
U Vcrnon Hall Jr., "Joyce's use of Da Ponte and Mozarfs Don Giovanni, Pu-
bhtations of Modem Language Association of America, LXVI, 78.
(4) Harry Levin, obra citada, p. 97. (7) Ulysses, passim, de Gilbert, e James Joyce and the Making of Ulisses,
(5) Frederick J. Hoffman, Freudianism and the Literary Mind (Baton ilo Frank Budgen, Nova York, H. Smith e R. Haas, 1934, pp. 15, 20, 39 esta-
Rouge, La., Louisiana State University Press, 1954), p. 133. Klecem concludentemente a intenção autoconsciente de Joyce.
86 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS 87
concentração sobre um herói único, Leopold Bloom; acompanha este Gilbert indica numerosas lembranças diretas, neste capítulo dc
herói numa série de aventuras; acha-se escrita (geralmente) em estilo Ulisses, dos infortúnios de Odisseus e seus homens em Lamos. Co-
de alta comédia; e apresenta uma vista geral cósmica (por exemplo, menta, por exemplo, a cena em que Leopold pára para alimentar as
Molly como Gaea-Tellus). Os temas da própria narrativa também gaivotas com alguns biscoitos:
refletem o modelo épico da Odisseia. Estes temas, mais do que qual-
quer outra coisa, acrescentam significado e dão sentido aos materiais "As gaivotas arremeteram silenciosamente duas, depois
na consciência de Stephen-Telêmaco, Leopold-Ulisses e Molly-Penélo- todas, de suas alturas, lançando-se sobre a presa. Foi-se.
pe. Uma ilustração será útil para indicar a sistemática e a importância Até a última migalha. Ciente de sua ganância e astúcia, ele
disto. sacudiu a migalha enfarinhada de suas mãos. Elas nunca
esperavam por isso". Mr. Bloom imagina uma cozinha
Tomemos como exemplo o episódio dos "Lestrígones", assim cha- comunal com um "caldeirão de sopa do tamanho do Par-
mado pela raça de canibais que Ulisses e seus homens encontraram. que de Phoenix. Arpoando mantas de toucinho e pernis
As atividades dos canibais no épico de Homero são sérias e a cena é de dentro dele". A descida das gaivotas, lançando-se sobre
curta e dramaticamente tensa. (8) No herói-cômico de Joyce, a crise a presa, faz lembrar o ataque dos Lestrígones, arremetendo-
apenas diz respeito às dificuldades que Bloom enfrenta para encontrar se de seus penhascos sobre a caça inesperada, e o caldeirão
um lugar onde almoçar. Entretanto, ambas as cenas têm a ver, funda- de sopa pode ser comparado à luta no porto, onde as tripu-
mentalmente, com comida. O episódio em Ulisses tem inicio com a lações de todos os navios Aqueus exceto o de Odisseus (que
consciência de Leopold Bloom fluindo: prudentemente atracara fora do porto) foram afundados
ou arpoados pelos canibais.
Rochedo com abacaxi, limão cristalizado, amanteiga- O empedernido Rei Antifates é simbolizado pela fome
do escocês. Uma garota açucarbezuntada padejando con- imperiosa de Mr. Bloom; a vista e o forte cheiro de comida
chadas de creme para um irmão leigo. Alguma delícia esco- são o chamariz, sua filha e a horda de Lestrígones pode
lar. Meu para os seus bandulhos. Fabricante de pastilhas ser comparada aos dentes... (9)
e confeitos de Sua Majestade o Rei. Deus. Salve. Nosso.
Sentado em seu trono, chupando jujubas vermelhas até o Embora esta interpretação à base de analogias se torne quase
branco, (p. 149) absurda à medida que Gilbert chega ao último parágrafo transcrito
acima, revela nitidamente até que ponto e de que maneira o persona-
Do mesmo modo, termos referentes a comida e aos processos di- gem de Bloom é apresentado neste episódio; e isto se deve ao fundo
gestivos permeiam o restante do episódio. épico e não a qualquer ação sustentada. O caso é que o tema e a
Vemos pois que Bloom está com fome e procura um lugar para situação, definidos que são por suas contrapartes na Odisseia, só servem
almoçar. A terra dos Lestrígones tem sua contraparte em Dublin. para fornecer uma estrutura para levar avante a principal função do
Trata-se de um restaurante barato e sujo onde Bloom-Ulisses reage livro: a descrição do personagem psicológico. Uma clara ilustração
com aversão aos "animais pastando"; o que, em um nível diferente, disto pode ser extraída de um exame do tema secundário do episódio,
sugere o horror de Odisseus quando os canibais capturaram seus ho- um tema que pode ser encontrado tanto na Odisseia como em Ulisses.
mens para fazer deles o seu jantar. A aversão de Bloom dá cor aos Temos a palavra do próprio Joyce (citada por Frank Budgen) quanto
seus pensamentos: "Cheiros de homens. O nojo lhe subia. Serragem a importância do paralelo:
escarrada, quentusca fumaça de cigarro adocicada, trescalo de labuta, "Estou escrevendo agora o episódio dos Lestrígones,
entornado de cerveja, mijo acervejado de homens, o rebotalho do fer- que corresponde à aventura de Ulisses com os canibais.
mento", (p. 167) Meu herói vai almoçar. Mas há um tema de sedução na
(8) A Odisseia, Livro X. (9) Gilbert, Ulysses, p. 190.
89
88 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS
Odisseia, a filha do rei dos canibais. No meu livro, a se- NÓIIÍO é escrito de tal maneira que parodia o estilo inglês desde o primi-
dução aparece na forma de combinações de seda expostas tivo estilo anglo-saxão não-identifiçado até a polémica de um evange-
na vitrine de uma loja. As palavras que uso para definir lista americano do século XX. Inclui paródias de Mandeville, Malory,
seu efeito sobre meu herói faminto são: "Perfume de lirowne, Bunyan, Pepys, Swift, Sterne, Goldsmith, Gibbon, Lamb, de
abraços todo o assaltava. Com carne vagamente faminta, Quincey, Landor, Dickens, Newman, Pater, Ruskin e Carlyle. Isto é
ele almejava adorar em silêncio." (10) lei lo de maneira brilhante e a relação da "técnica embriônica" com o
lema dominante do nascimento é óbvio. Mas é desproporcional em
Alguma partícula desta referência burlesca aos temas e situações relação a sua função; e o entrelaçamento de nascimento, crescimento
de Homero pode ser encontrada em cada episódio de Ulisses. Com ela embriônico, a arte da medicina e a paródia literária criam pura con-
vem um ponto a partir do qual se pode interpretar a finalidade de fusão.
Joyce. Não há nada de heróico nesta terra dublinense dos passeios Algumas vezes, porem, estas unidades secundárias dão o enfoque
de Leopold. A era de Bloom-Ulisses, segundo Joyce, é uma era de necessário ao conteúdo da psique de um personagem. Assim acontece
pouca importância. no episódio dos "Lestrígones" a que já nos referimos anteriormente,
Os objetivos de Joyce eram complexos e ele queria dizer muita nesle mesmo capítulo. Aqui, a técnica "peristáltica" e o tema dos órgãos
coisa; felizmente, foi capaz de fazê-lo, pois seus talentos para fabricar digestivos se relacionam intimamente com o episódio homérico; tudo o
artifícios unificadores praticamente não conhecem limites. Entretanto, QUe, quando comparado com o fato essencial de que Bloom tem fome e
alguns deles pouco acrescentam aos seus propósitos básicos. Isto se apli- deseja almoçar, não só é essencialmente relevante mas também dá cla-
ca a sua famosa organização temática dos episódios de Ulisses de reza e crédito à concentração da psique de Bloom em alimento e re-
acordo com a anatomia humana, arte, cor, técnica e símbolo. Stuart feição.
Gilbert oferece o código disto, assim como o faz com o paralelo homé- Joyce ainda emprega outros artifícios em Ulisses para alcançar
rico mais i m p o r t a n t e . P o r exemplo, o episódio de "Hades", que a simetria. Dois deles compreendem o uso de esquemas cíclicos teóri-
tem a ver com o comparecimento de Bloom ao funeral e enterro de cos. Um é a teoria Viconiana dos ciclos históricos; o outro é a forma
seu amigo Patrick Dignam, tem por tema anatómico o coração; por de sonata na música. O uso do Ciclo Viconiano é mais importante
tema artístico, a religião; por tema de cor, branco e preto; por técnica, por ser uma possível explicação de por que Joyce reestruturou os epi-
o "incubismo"; e por símbolo, o agente funerário. De maneira seme- HÓdios históricos da maneira como fez. O ativo interesse de Joyce
lhante, cada um dos episódios tem seu próprio órgão, arte, cor, técni- pelas teorias históricas do sábio italiano Giambattista Vico é bem co-
ca e tema-símbolo específicos fixados à estrutura principal da farsa da nhecido. Os comentaristas de Finnegans Wake explicaram a influência
Odisseia, tendo por finalidade dar maior unidade ao todo, de modo (jue o Ciclo de Vico exerceu sobre essa obra, e mais recentemente con-
que as unidades de Ulisses se tornam "tão diversas e ao mesmo tempo cluiu-se que a mesma influência pode ser encontrada em Ulisses. (13*
simétricas como a rede labiríntica de nervos e vasos sanguíneos que A sugestão é sensata e a prova é convincente. A vantagem deste padrão
atravessam o organismo vivo". (12) Sente-se haver em todo este esforço ê que, ao contrário do padrão homérico, não se limita a qualquer tempo
para obter simetria um excesso inaproveitável de complicação. Às ou lugar determinado. Assim, as funções dos personagens em Ulisses
vezes, quando os materiais da narrativa são introduzidos à força em
padrões que só funcionam por amor ao próprio padrão, os resultados (13) Por Ellsworth G. Mason, "Joyce's Ulysses and the Vico Cycle" (Dis-
chegam mesmo a ser negativos. É o caso, creio eu, da técnica do Mrtnçao de Doutorado, Yale University, 1948). As teorias que atraíam Joyce
"desenvolvimento embriônico no 145 episódio ("Gado do Sol"). Esta podem ser encontradas na edição de 1744 de La Scienza Nuova, de Vico. Para
técnica poderia perfeitamente ser rotulada como "paródia", pois o epi- • • Interesse de Joyce em Vico, consulte a obra citada de Gilbert, p. 37-39. Para
II Influência das teorias de Vico sobre Finnegans Wake, consulte Samuel Bcc-
kott, "Dante... Bruno. Vico... Joyce", An Examination of James Joyce por
lleckelt e outros, Norfolk, Conn., New Directions, 1939, e Joseph Campbell e
(10) The Making of Ulysses, p. 20. Henry Morton Robinson, A Skeleton Key to Finnegans Wake, Nova York,
Harcourt Brace, 1944, p. 5 em diante.
(11) Gilbert, obra citada, Capítulo ii.
(12) Idem, p. 30.
90 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS 91
podem ser ordenadas de modo a dar-lhes maior significado ao mundo tiva que sofre grandemente da falta dessas mesmas unidades. A função
moderno. De sua adesão aos tipos viconianos elas assumem valores deste dualismo é a mesma que em Ulisses: permite a uma consciência
simbólicos que são mais diretamente universais do que os sugeridos de fora (a do leitor) acompanhar, compreender e interpretar as mentes
pelos valores simbólicos homéricos. dos personagens criados pelo autor. Isto é conseguido, como acontece
A ideia da estrutura musical em Ulisses é tão generalizada que não também em Ulisses, providenciando um ponto focal mais ou menos
chega a ser importante, embora seja sempre interessante observar os estático para o qual a atenção do leitor pode voltar-se enquanto acom-
extraordinários recursos de Joyce. Foi Ezra Pound quem descreveu panha as associações confusas das consciências dos personagens.
Ulisses^ como uma forma de sonata musical com um tema, contratema, De certo modo, Virginia Woolf vale-se também de temas como
confluência, desenvolvimento e final. (14> Felizmente, a sugestão de artifícios unificadores. É o caso da imagem sonora do Big-Ben dando
Pound pouco perde de sua força, apesar do fato daquilo que ele as horas do dia em Mrs. Dalloway; e é também o caso do símbolo
descreve não ser inteiramente correto quanto à forma da sonata. O recorrente do farol em O Farol. Mas a confiança que Virginia Woolf
Professor Beach também fez uma analogia musical ao referir-se à deposita nos símbolos como padrão estrutural é sumamente enfática
estrutura de Ulisses. Escreve ele, "Ulisses não é mais nem menos do em outro sentido. Isto se aplica principalmente a O Farol, onde todo
que um poema sinfónico, caracterizado por um vigoroso e insistente de- o romance se baseia num conjunto de valores simbólicos primários.
senvolvimento de temas". <15> Embora as analogias da técnica de uma Aplica-se também em um grau elevado a As Ondas e até certo ponto
arte para outra sejam facilmente enganosas, essas descrições gerais da a Mrs. Dalloway. Uma análise de O Farol revelará a maneira pela
estrutura musical de Ulisses são válidas. qual funciona essa estrutura simbólica de maneira a proporcionar a
coerência de padrão necessária na ficção do fluxo de consciência.
O delineamento simbólico de Virginia Woolf Como o próprio título indica (N. T. — Título original: To the
Lighthouse, o que, traduzido ao pé da letra, significa "Rumo ao Farol"),
Se quiséssemos comparar a estrutura de um romance à forma de a substância do romance consiste na tentativa dos personagens de
uma sonata, Mrs. Dalloway seria um excelente exemplo. É simples chegarem ao farol, que fica numa ilha a poucas milhas de onde se
identificar ali um primeiro tema, um trecho servindo de ponte, um acham reunidos. O livro começa salientando o seguinte: "Sim, claro,
segundo tema, desenvolvimento e recapitulação. Entretanto, nos roman- se amanhã fizer bom tempo," disse a Sr.5 Ramsay. "Mas vocês terão
ces de Virginia Woolf como nos de Joyce, foram empregados padrões que madrugar," acrescentou. A Sr.5 Ramsay está dizendo ao seu filho
mais tangíveis para proporcionar a harmonia. James que poderá ir ao farol se o tempo assim o permitir. O livro
Virginia Woolf em Mrs. Dalloway faz com as unidades quase a termina dez anos depois, a Sr.5 Ramsay já falecida, quando finalmente
mesma coisa que Joyce faz com elas em Ulisses. A narrativa super- James chega pela primeira vez ao farol. Naturalmente, não se trata
ficial de Mrs. Dalloway se desenrola no espaço de 24 horas; tem lugar de um livro de aventuras e o livro não se ocupa com naufrágios, tem-
na cidade de Londres (e em um único bairro dessa cidade); e diz pestades ou coisa semelhante. O farol é um símbolo, assim como o
respeito a dois personagens principais. No entanto, o tempo envolvido próprio ambiente do romance, uma ilha isolada nas Híbridas, é usado
no drama básico que se desenrola nas mentes destes personagens abran- simbolicamente e assim como os personagens e suas ações são sim-
ge 18 anos; o local dos incidentes varia da índia para Bourton para bólicos. Aliás, conforme se tem dado a entender, o símbolo do farol
Londres para os campos de batalha da Guerra Mundial na França; e impregna o romance com uma força irrestrita: "A própria estrutura
envolve cerca de uma dúzia de personagens. As unidades em Mrs. Dal- do livro reproduz o efeito do raio luminoso do farol, o longo clarão
loway, espantosas como são em sua rigidez, sobrepõem-se a uma narra- representado pelo primeiro movimento (A Janela), (isto é, a primeira
divisão do livro), o intervalo das trevas representado pelo segundo mo-
(14) "James Joyce et Pécuchet", Polite Essays, Londres, Fáber and Fabcr, vimento (O Tempo Passa) e o segundo clarão, também o mais curto,
1937. pelo último movimento (O Farol). Quando se pensa neste aspecto do
(15) Joseph Warren Beach, The Twentieth Century Novel: Studies in Tech- livro, o tema deixa de ser um grupo específico de seres humanos; é a
nique, Nova York, D. Appleton-Century, 1932, p. 418.
92 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS 93
vida e a morte, a alegria e a dor — salientando-se mais especificamente gundo, traçou uma linha ali, no centro. Estava pronto; estava acabado.
dois temas, o isolamento do espírito humano individual e o contraste Sim, pensou, pousando o pincel, extremamente fatigada, tive a minha
entre a experiência ordenada e fragmentária de viver e a verdade ideal visão." <18>
ou beleza à qual a mente humana aspira." (16)
O delineamento simbólico e a visão simbólica podem ser encontra-
A Sr.5 Ramsay, a campeã da viagem ao farol, é contrariada por dos em quase toda a obra de Virginia Woolf. O dia de Clarissa Dallo-
seu marido, que responde às suas observações iniciais: "No entanto," way, seus preparativos para a festa, sua compreensão definitiva de si
disse seu pai, detendo-se junto à janela da sala de visitas, "não vai fazer mesma na festa são simbólicos. Desta forma, o tema trivial ganha um
bom tempo." Assim, a situação básica é dotada de significado sim- significado inexprimível, assim como o trivial na consciência ganha
bólico pela oposição de duas forças. O relacionamento geral dos significado quando tem uma referência simbólica. Por exemplo, Claris-
personagens, a luta por respostas a problemas básicos de conhecimento, sa Dalloway está sozinha no seu quarto de dormir enquanto a festa
a busca de códigos para lembranças e impressões assumem a importân- prossegue no andar de baixo. Ela está olhando pela janela:
cia que vem com uma busca mística. Em Virginia Woolf, tudo é ques-
tão de introspecção, pois os valores simbólicos não podem ser defini-
dos; e quando os encontramos, sabe-se disso apenas por intuição, por — Na sala fronteira, a velha senhora olhou para ela! Ia
"senti-lo". David Daiches, que explorou este aspecto de Virginia Woolf deitar-se. E o céu. Devia ser um céu solene, tinha pensado,
em maior detalhe do que ninguém, fala de O Farol: um céu escuro, a esconder sua bela face. Mas ali estava —
de um cinza-pálido, percorrido rapidamente de vastas nu-
vens. O que era novo para ela. Devia ter-se erguido o vento.
Virginia Woolf passa de uma consciência para outra, A senhora da casa em frente ia deitar-se. . . . Fechou a
de um grupo para outro, explorando a importância de suas cortina. O relógio começou a bater. O jovem se havia sui-
reações, seguindo o curso de suas meditações, combinando cidado; mas não podia lamentá-lo; com o relógio a bater
e moldando cuidadosamente as imagens que surgem em suas a hora, uma, duas, três, não podia lamentá-lo, com tudo
mentes, reunindo com cuidado e parcimônia um número aquilo acontecendo. Pronto! a velha senhora apagara a luz!
seleto de incidentes simbólicos, até atingir um delineamen- toda a casa estava agora às escuras com tudo isto aconte-
t o . . . e a experiência é encarada como sendo uma coisa cendo, repetiu, e outra vez lhe ocorreram as palavras, Não
inexprimível e todavia significativa. (17) mais temas o calor do sol. Devia voltar para junto deles.
Mas que noite extraordinária! Sentia-se de certo modo mui-
Portanto, é a importância dos acontecimentos e lembranças e asso- to semelhante a ele — ao jovem que se havia suicidado.
ciações que é apontada por Virginia Woolf. Ela tem consciência de que Sentia-se contente de que ele tivesse feito aquilo; alijado a
não pode expressar seus significados. A fim de impressionar o leitor vida. <19>
da importância de ir ao farol, a sutil romancista emprega outra situação
simbólica para servir de contraponto ao básico. Este é centralizado É o significado simbólico, particular de tudo isto que ilumina para
sobre Lily Briscoe, uma das hóspedes dos Ramsays, que através dos 10 Clarissa suas ações e as ações da humanidade (a mulher que vai dor-
anos está tentando terminar a pintura de uma paisagem. Ela a termina mir, o jovem que cometeu o suicídio) em seu redor; e é o significado
no exato momento em que James chega ao farol, quando então, de simbólico que ilumina para o leitor o significado do lugar-comum na
repente, ela tem um momento de introspecção, de inspiração: "Com mente de Clarissa.
uma repentina intensidade, como se a visse nitidamente por um se-
Embora As Ondas também siga um evidente padrão simbólico, o
(16) Joan Bennett, Virginia Woolf — Her Art as a Novelist, Londres, principal artifício estrutural que Virginia Woolf usa nesse romance é
Cambridge University Press, 1945, pp. 103-104.
(17) Virginia Woolf, Norfolk, Conn., New Directions, 1942, p. 82 em (18) To the Lighthouse, Nova York, Harcourt, Brace, 1927, p. 310.
diante. (19) Mrs. Dalloway, Modem Library Edition, Nova York, Random Mou-
se, 1928; copyright 1925 by Harcourt, Brace, p. 283.
AS FORMAS
94 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA
de arranjos cénicos formais. Isto é combinado com a força simbólica siste de um grupo de solilóquios. Também como As Ondas, é apresen-
das marés enchentes e vazantes, o nascer e o pôr do sol e o contínuo tado em um conjunto de cenas sem a ligação de qualquer narrativa
avanço das ondas na praia. O delineamento cénico é obtido pela apre- objetiva. Mas aí termina a semelhança. As cenas arbitrariamente apre-
sentação de sete grupos de solilóquios estilizados que representam sete sentadas em Enquanto Agonizo são introduzidas simplesmente por tí-
fases nas vidas dos personagens. Cada grupo de solilóquio é introdu- tulos que identificam a pessoa que está falando, semelhante a tais
zido por um trecho de prosa poética descrevendo o avanço da maré descrições em peças teatrais. Os solilóquios não são estilizados à ma-
numa praia. Estas descrições avançam do levantar para o pôr do sol à neira do estilo formal de um escritor, com o mesmo estilo para cada
medida que os personagens passam da infância para a meia-idade. Por um dos personagens, como acontece em As Ondas. Em vez disso, são
exemplo, a primeira é um prelúdio à fase infantil, quando as coisas escritos no linguajar e nos padrões de pensamento típicos a cada per-
ainda estão começando para os personagens: sonagem. Podemos afirmar sumariamente que o uso que Faulkner
faz da disposição formal das cenas em Enquanto Agonizo é um artifício
O sol ainda não se havia levantado. Não se podia que permite apresentar os pensamentos de grande número de persona-
distinguir o mar do céu, exceto que o mar estava ligeira- gens sem confundir desnecessariamente o leitor. Há treze personagens
mente encapelado, como um lençol que tivesse pregas. Aos cujas consciências são representadas neste pequeno romance. Isto o
poucos o céu foi embranquecendo, uma linha escura apa- distingue de toda a outra ficção do fluxo de consciência, que varia
receu no horizonte separando o mar do céu e o lençol cin- neste sentido entre apenas um personagem importante em Pilgrimage
zento listrou-se de grossas batidas que se moviam, uma e seis em As Ondas.
após a outra, sob a superfície, seguindo-se umas às outras, O artifício unificador de Faulkner em seu romance é outra coisa.
a perseguir-se perpetuamente. É uma unidade de ação que ele emprega. Em outras palavras, ele usa
Isto vem seguido dos solilóquios de Bernard, Neville, Louis, Su- um enredo sólido, aquilo que falta em toda a outra literatura do fluxo
san, Jinny e Rhoda, crianças que vivem juntas. Elas revelam o mais de consciência. Foi este aspecto diferenciador na obra de Faulkner (o
íntimo de si mesmas e suas revelações são complementadas pelos pen- mesmo se aplica a The Sound and the Fury) que já observamos duas
samentos de cada uma acerca das outras cinco. A cena muda súbita vezes. É aquilo que afasta Enquanto Agonizo e The Sound and the
e arbitrariamente. A nova cena é introduzida por outra descrição poé- Fury do tipo de romance do puro fluxo de consciência até um ponto
tica, que por sua vez tem outro significado simbólico: "O sol levantou- onde o romance tradicional se funde com o de fluxo de consciência.
se mais a l t o . . . " Isto é, as crianças vão avançando em idade, de modo Como existe um enredo coerente e como os personagens agem num
a ser apropriado que o próximo grupo de solilóquios tenha lugar no drama exterior que tem começo, complicações, clímax e fim, desaparece
momento em que as crianças partem para os internatos. O livro termi- a absoluta necessidade de outros artifícios unificadores. Aquilo que é
na com uma cena de reunião, quando já os personagens passaram da egocêntrico e caótico, digamos, na mente de Darl, pode ser compreen-
meia-idade, havendo uma descrição final da praia resumida numa única dido porque tem relação com um conflito e um problema de ação niti-
frase, para finalizar a história: "As ondas romperam na praia." damente estruturados. Por exemplo, no seguinte trecho, quando a cons-
ciência de Darl é apresentada logo depois que alguém lhe perguntou
A disposição cénica formal de As Ondas substitui a falta de uni- onde estava seu irmão Jewel, o conteúdo torna-se claro ao leitor à
dade de tempo e de enredo, pois cada cena contém sua própria unidade base de um conflito que paira entre os dois irmãos:
de tempo e o livro todo é ligado pelas descrições simbólicas entre as
cenas. Este elevado grau de formalização está em harmonia com o Lá embaixo, divertindo-se com o cavalo. Passará pela
tipo estilizado dos solilóquios. baia e entrará no pasto. O cavalo não estará à vista: está
mais em cima, gozando a fresca entre os pinheiros. Jewel
A síntese de Faulkner assovia, um único e penetrante assovio. O cavalo relincha,
Em Enquanto Agonizo, de Faulkner, vamos encontrar um padrão então Jewel o vê brilhando, por um breve instante, entre as
cénico completamente diferente. Este romance, como As Ondas, con- sombras azuis. Jewel assovia novamente; o cavalo aproxi-
96 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS 97
ma-se, descendo a encosta, com as pernas rígidas, as ore- tivo desaparecimento do "Domínio dos Compson", originalmente uma
lhas erguidas e inquietas, rolando os olhos de grandes órbi- milha quadrada da melhor terra com seus "alojamentos para escravos
tas, e pára a uns vinte passos, de lado, observando Jewel I estábulos e pomares e os formais gramados e parques e pavilhões de-
por sobre a crina, em atitude travessa e alerta. (20) senhados pelo mesmo arquiteto que construiu a casa de colunas e
pórticos cuja mobília veio por vapor da França e de Nova Orleãs..."
Na maior parte deste romance, o conteúdo das psiques dos perso- 0 processo da decadência é dramatizado pela história da destruição
nagens são, essencialmente, observações de outros personagens. Isto elos filhos, Benjy, Quentin III, Cândace (Caddy) e Jason IV. Como
oferece a Faulkner um problema especial, porque ao depender do con- a destruição, exceto a de Jason, é interior, o drama que apresenta a
teúdo observacional da consciência, vê-se forçado a oferecer menor destruição, exceto a parte que tem a ver com Jason, tem por local de
parte do conteúdo que surge com o funcionamento da memória e da ação as psiques dos personagens.
imaginação. Esta seleção tem a tendência de tornar a representação É claro que os problemas da unidade de tempo e de disposição
da consciência pouco convincente. Faulkner vence em parte esta difi- cénica são rigorosamente elaborados com relação a esta unidade de
culdade por meio de dois artifícios: primeiro, ele lida apenas com um ação ou enredo. É complexo. A primeira parte do romance é intitu-
nível razoavelmente superficial da consciência em Enquanto Agonizo; lada "7 de abril de 1928". É a data que representa a "atualidade" desta
e segundo, ele é fiel ao idioma e à linguagem que retratam aquele cena. O cenário é a mente do idiota, Benjy, que em 1928 conta 33
personagem específico com maior exatidão, conseguindo assim o efeito anos de idade mas cuja idade mental é de três anos. A consciência
de verossimilhança da consciência. de Benjy segue as mesmas leis de movimento e associação que as outras
Enquanto Agonizo é uma obra relativamente simples e pouco sutil, consciências, só que se move talvez com maior fluidez. Assim, o "pre-
quando comparada a outro romance de Faulkner, também pertencente sente" em sua mente move-se livremente através dos anos passados de
ao fluxo de consciência, The Sound and the Fury. Todavia, estes dois sua existência, de modo a haver em sua consciência, mais que na de
romances são semelhantes no que diz respeito a diversos aspectos técni- Qualquer outro personagem na ficção, uma qualidade de fluxo. Assim
cos: ambos contêm considerável unidade de ação, mas a do último é sendo, esta parte do romance precisa ser analisada a dois níveis: o
mais complexa. Ambos têm uma disposição cénica formal, mas a do dos acontecimentos do dia, 7 de abril de 1928, e o dos acontecimentos
último é ao mesmo tempo mais complexa e menos definida. Mas a passados na vida de Benjy. Os acontecimentos do "presente" ocupam-
semelhança técnica não vai muito mais longe que isso; pois The Sound nc com aquilo que aconteceu a Benjy e a seu protetor, o negrinho
and the Fury lida com personalidades complexas e nele a consciência 1 uster. A realização neste nível é a apresentação de um subtema cen-
é apresentada a um nível extremamente profundo. Consequentemente, tralizado no relacionamento entre brancos e negros, um corolário ao
outros artifícios estruturais se fazem necessários para esclarecer ao leitor lema principal da degeneração dos Compson. Mas, o que importa aqui,
o que se está passando neste mundo específico da consciência. Destes por motivo de enredo, são os materiais do passado. O caráter psíquico
outros artifícios, os principais são a estrutura simbólica e o tema. De ile Benjy é dramatizado e os acontecimentos e personagens cruciais do
modo que o que temos em The Sound and the Fury em matéria de passado (principalmente Cândace) na história da família Compson são
padrões de unidade são o enredo rigorosamente entrelaçado, unidade apresentados do ponto de vista deste idiota simplório mas estranhamen-
de tempo, disposição cénica, estrutura simbólica e motivos. Nenhum te lúcido. Faulkner relata que "Benjy amava três coisas: o pasto que
destes é predominante em sua eficácia e nenhum deles é definido. lui vendido para pagar o casamento de Cândace e para mandar Quen-
O enredo de The Sound and the Fury gira em torno das vidas tin para Harvard, sua irmã Cândace, a fogueira". (21) Como o amor
dos quatro filhos da família Compson, outrora uma família orgulhosa de Benjy é de uma persistência ímpar e inabalável, estas três coisas,
e respeitável do Mississippi e que se encontra em seus últimos estágios | praticamente mais nada, constituem os materiais de sua consciência.
de decadência. Este processo de decadência é simbolizado pelo grada- A importância narrativa disto reside no fato de o "pasto" ser uma
(20) The Sound and the Fury and As I Lay Dying, Modera Library Edi- (.'I) The Sound and the Fury and As I Lay Dying, Modem Library Edi-
tion, Nova York, Random House, 1930, p. 345. II.in, Nova York, Random House, 1930, p. 19.
98 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS
metonímia para o desaparecimento do domínio dos Compson, símbolo volver um rompimento com os padrões de integridade dos Compson.
central do romance; "Cândace" é a única dos filhos dos Compson cuja Robert Penn Warren frisou isto em suas observações sobre Faulkner.
consciência não é apresentada diretamente, de modo a ser manejada, Assim se refere a Jason: " . . . em matéria de degradação e baixeza, não
como personagem, desta maneira indireta; e a "fogueira" é um símbolo há ninguém que possa ser comparado ao Jason de The Sound and the
vital para a excepcional instrospecção do idiota. Esta introspecção dá Fury, o Compson que aderiu ao Snopesismo. Na verdade, Popeye e
um certo peso de autoridade aos materiais da consciência de Benjy Fiem, os vilões mais famosos de Faulkner, em matéria de baixeza e
com relação a todo o romance, não obstante seu idiotismo. É por esta extrema maldade, não chegam aos pés de Jason." (23)
concentração nos três assuntos básicos na mente de Benjy que o leitor O conflito de Jason se relaciona a duas pessoas (seu pai e seu
consegue não só entender o que está se passando, como também com- irmão Quentin, os dois principais esteios da honra dos Compson, são
penetrar-se dos materiais do enredo. falecidos): Dilsey, o velho cozinheiro de cor que compreende a honra
O segundo episódio do romance intitula-se "2 de junho de 1910". dos Compson, pelo menos na sua parte exterior, e Miss Quentin, filha
O ambiente exterior é Cambridge, Massachusetts, na data do título; o ilegítima de Cândace. Miss Quentin vive com os Compson, mas não
enredo diz respeito aos preparativos de Quentin para o suicídio. O entende (nem se importa com) o código dos Compson. Ela representa
ambiente interior é a mente de Quentin a qual, assim como a de Benjy, uma animalidade deliberada, estranha a todos os Compson — mesmo
flui livremente no passado. Aqui, o enredo é um complemento do a Jason. Jason é derrotado por Miss Quentin, não por Dilsey. Sim-
enredo central do romance, que foi esquematizado na primeira parte. bolicamente, a estirpe dos Compson termina com a derrota de Jason
Quentin, embora inteligente, é demasiado instável psicologicamente, de (ele não deixa herdeiro) e o suicídio de Quentin (ele nunca coabita,
modo a ser obcecado ainda mais que o próprio Benjy; e, assim como a não ser em imaginação e simbolicamente, com sua irmã). Benjy, na-
no caso de Benjy, o objeto de sua obsessão é Cândace, sua irmã. Assim, turalmente, acaba por ser castrado e finalmente internado no Asilo
o desenvolvimento do personagem de Cândace e seu papel no esquema Estadual. Essa história se iguala à derrota da dinastia dos Stephen em
geral das coisas dá mais um passo à frente. A preocupação fraternal, Absalom, Absalom!
neste caso, é incestuosa mas não física; é simbólica para Quentin, "que
amava não o corpo de sua irmã, mas algum conceito da honra dos É através deste uso complicado porém orgânico de enredo, uni-
Compson". (22) A relação incestuosa em si fica sendo um símbolo dade de tempo, disposição cénica e estrutura simbólica que Faulkner
relacionado ao enredo central e ao tema de todo o romance. consegue um padrão de unidade estrutural em The Sound and the Fury.
A terceira e a última partes são intituladas "6 de abril de 1928" e Além disto, ele faz um interessante uso de temas para ajudar a ligar
"8 de abril de 1928" respectivamente que, conforme veremos, são o estes outros elementos estruturais.
dia antes e o dia depois do começo do episódio. O método principal O uso específico que Faulkner faz dos temas pode ser encontrado
da primeira destas partes não é o de monólogo interior como o foi cm qualquer das duas primeiras partes do romance. A título de ilus-
o das duas anteriores mas sim o solilóquio a um nível superficial de tração, será suficiente examinar somente uma delas. No segundo epi-
comunicação. Diz respeito ao quarto e mais jovem filho dos Compson, sódio, que contém o monólogo de Quentin, os motivos são principal-
Jason IV. Como se relata aqui principalmente a narrativa superficial, mente motivos-símbolo, embora haja também alguns motivos-imagem.
o elemento de tempo é estático. O mesmo se aplica à última parte, só 0 uso do motivo-palavra não é frequente na obra de Faulkner que, ao
que mediante emprego de um método ainda mais convencional, o do contrário de Joyce, não gosta de "equiparar palavras a coisas". Os mo-
narrador onisciente na terceira pessoa. O papel de Jason no drama tivos principais são o relógio, o convite de casamento, o pasto, o carri-
da degeneração da família Compson é devidamente o último a ser tra- lhão, as imagens de arrumação e a palavra "irmã". Num capítulo ante-
tado por constituir o clímax; isto é, a sua degeneração é a definitiva. rior que se ocupava da intimidade das associações, demonstramos que
Embora sendo o único irmão são, a sua degeneração é maior por en- estas coisas reaparecem na consciência de Quentin. Elas voltam cons-
(22) The Sound and the Fury and As I Lay Dying, Modem Library (23) "William Faulkner", Forms of Modem Fiction, ed. William Van
Edition, Nova York, Random House, 1930, p. 9. 0'Connor, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1948, p. 125 em diante
100 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA AS FORMAS 101
tantemente como sinais, não só à mente de Quentin, mas também à é o suficiente em matéria de padrão para este romance, em parte por-
do leitor. Estes temas suportam o peso principal do enredo e são os que permanece a um nível razoavelmente superficial da consciência e
meios pelos quais um significado universal e coerente é destilado de em parte porque Dorothy Richardson não tem muitos temas para
um significado particular e caótico. O relógio, por exemplo, que apa- transmitir. Aliás, é difícil determinar se existe em todo o Pilgrimage a
rece frequentemente como objeto da atenção de Quentin, é o relógio apresentação de algum tema. O assunto, quanto a isso não resta dúvi-
que ele ganhou de presente do pai. Quentin o desnuda de seus pon- da, é a vida bastante monótona de Miriam, principalmente sua vida
teiros para provar a si mesmo que a teoria do pai é válida: que sua psíquica. É possível que haja um tema de "busca" subjacente, uma
finalidade "não é para você poder lembrar o tempo, mas para poder espécie de procura mística por uma coisa vaga que é simbolizada por
esquecê-lo de vez em quando por um instante e não desperdiçar todo "um pequeno jardinzinho". Este motivo-imagem do jardim atravessa
seu fôlego procurando conquistá-lo". O tique-taque do relógio, que não Pilgrimage, mas não há nada de substancial em matéria de estrutura a
marca a hora mas só diz que o tempo está sempre passando, é salien- que o leitor se possa apegar.
tado pelos diversos relógios — Quentin sempre se recusa a olhá-los — No que concerne aos padrões estruturais, fizemos uma longa cami-
que se impingem sobre a consciência de Quentin. Essas referências aos nhada desde as complexas camadas de artifícios em Ulisses até o arti-
relógios substanciam duas importantes ideias relacionadas com o tema fício único da unidade do personagem em Pilgrimage. Temos maior
principal: uma é a disjunção da consciência ao competir entre o tempo admiração por Joyce do que por Richardson como artífice, assim
psicológico e o tempo civil; a outra é a ideia mais generalizada da como damos maior valor a Ulisses do que a Pilgrimage como obra de
decomposição no tempo. arte. A razão disto relaciona-se com o fato de os padrões serem abso-
Para a nossa finalidade, é desnecessário definir a maneira pela qual lutamente necessários na ficção do fluxo de consciência. Podemos dei-
todos esses temas são usados no romance. Uma delas, no entanto, é xar que o próprio Joyce responda por nós:
especialmente instrutiva como exemplo do modo de usar o motivo que "Ela (a arte) desperta, ou deveria despertar, ou induz,
encontramos geralmente ao longo de toda a obra de Faulkner. Trata-
se da imaginação narrativa que tem a ver com a preocupação de ou deveria induzir, um entorpecimento estático, uma pieda-
Quentin com sua aparência antes de cometer suicídio. Ele é descrito de ideal ou um terror ideal, um entorpecimento provocado,
lavando as mãos, limpando a gravata com gasolina, escovando os prolongado e finalmente dissolvido por aquilo que eu cha-
dentes e escovando o chapéu antes de sair do quarto finalmente para mo o ritmo da beleza."
ir ao rio. É claro que Faulkner precisa levá-lo a fazer alguma coisa a "Que vem a ser isso, propriamente?", perguntou Lynch.
fim de dar um foco aos processos de sua consciência. É grande o valor "O ritmo", disse Stephen, "é a primeira relação formal
simbólico dessa imaginação particular, que passa por um tema devido estética duma parte com outra parte, em qualquer conjun-
à frequência de sua recorrência. Pode ser o ato derradeiro e frágil de to ou todo estético, ou dum todo estético para a sua parte
limpar a desgraça e a desonra dos Compson; uma tentativa catártica ou partes, ou duma parte para o todo estético do qual
da parte de Quentin para apagar a mancha deixada por Cândace em é parte." <24>
sua psique. Vem como preparativo para o clímax do episódio, o sui-
cídio propriamente dito, que é, igualmente, um ato de redenção. Ou, para simplificar a resposta, poderíamos arriscar um epigrama
Há pelo menos uma escritora de fluxo de consciência que não se dizendo que as muletas são necessárias somente quando há um peso
preocupa com padrões complexos como unidades de tempo e lugar, precisando de apoio.
enredo, estrutura simbólica, ciclos teóricos e farsas. Na realidade, o (24) A Portrait of the Artist as a Young Man, em Viking Portable Joyce,
único forte princípio unificador que Dorothy Richardson emprega em Nova York, Viking, 1947, p. 471.
seu longo Pilgrimage é o da unidade do personagem. Quanto a este, (N. T. — No trecho acima, de Joyce, usamos a palavra "entorpecimento"
ela o emprega até o limite de suas possibilidades. Tudo em cada volume no sentido de "estase", e não "êxtase", conforme consta da tradução publicada
de Pilgrimage é apresentado do ponto de vista de Miriam. Na verdade, pela Editora Civilização Brasileira.)
5
OS RESULTADOS
Uma vez que a realidade nos tenha sido revelada desta
forma específica, continuaremos a vê-la dessa forma.
ERNST CASSIRER
artifícios para transmitir esta realidade foram estabelecidos, a arte da o que vem refletir sua aversão pelos aspectos puramente mecânicos
ficção está mais perto que nunca de alcançar o seu objetivo. (psicanalíticos e teóricos) do funcionamento mental. O interesse de
Mas a coisa mais importante que merece nossa atenção é a acei- Warren reside na luta espiritual (ascensão ou decadência), que se ma-
tação da realidade da vida interior, dos níveis da consciência que ante- nifesta dramaticamente na confusão não-pronunciada da mente. Ele
cedem a fala, como tema apropriado para a ficção. Se olharmos ao se vale da retórica, dos símbolos e da livre associação para renresentar
acaso para a obra de alguns dos mais importantes escritores do meio esta confusão. É significativo que tanto a ignorância das teorias psi-
do século, esta aceitação tornar-se-á óbvia. Poderemos percebê-la (e cológicas da consciência como a aceitação da descrição básica que
aceitá-la como convenção padronizada) na ficção de Elizabeth Bowen, estas teorias deram à geração de Warren estejam presentes na descrição
Graham Greene, Katherine Anne Porter, Robert Penn Warren, Del- que faz de seu personagem. Um pequeno trecho do romance ilustrará
more Schwartz e Eudora Welty — para citar apenas alguns, e deixar o método de Warren. O ponto de vista na primeira pessoa e a narra-
de notar a enorme quantidade de obras mais efémeras onde a cons- tiva na terceira pessoa indicam a função dual deste trecho. Isto é, a
ciência não-pronunciada não é apenas casualmente aceita como tema narrativa prossegue mas, o que é mais importante, o estado mental
legítimo, mas onde ela é mesmo automaticamente formada à imagem de Burden, o narrador, também é apresentado com nitidez.
dos grandes romances experimentais do fluxo de consciência.
Bastam uns poucos exemplos da obra dos autores acima citados Ela lá estava desde o enterro de Adam. Acompanhara
para ampliar essas observações. AU the King's Men (Todos os homens o corpo, seguindo o carro fúnebre dispendioso que brilhava
do rei) de Mr. Warren, um romance esplêndido e relativamente popular, ao sol na limusine de um agente funerário... Eu não a via
foi publicado em 1946. Este romance, para chegarmos ao âmago da sentada na limusine alugada que avançava as suas quase
questão e deixando de lado grande parte de sua força, é, fundamental- cem milhas à velocidade decorosa de um algoz, descolando
mente, o estudo do desenvolvimento moral e do despertar ético de seu as milhas lentamente da laje de concreto, lenta e fastidiosa-
personagem principal, Jack Burden. Naturalmente, a história de Bur- mente, como quem descasca uma infindável tira de pele da
den depende de mudanças morais paralelas e contrastantes dos outros carne viva. Eu não a via, mas sei como estava: ereta, o
personagens principais. Para estes — Willie Stark e Ann Stantos em rosto sem cor, os belos ossos da face aparecendo por baixo
especial — o desenvolvimento é realizado quase que inteiramente atra- da pele tensa, as mãos cerradas no seu colo. Pois é assim
vés de ação. Para Burden, ele se realiza principalmente na qualidade que ela estava quando a vi parada sob os carvalhos com
de drama psíquico. Grande parte do romance se concentra na descrição suas grinaldas de musgo, parecendo absolutamente só ape-
do drama íntimo da consciência. O método de Warren é muito mais sar da enfermeira e de Katy Maynard e de toda a gente
naturalista (isto é, emprega símbolos e imagens concretas) do que im- — amigos da família, curiosos que vieram para assistir
pressionista. Assim como Faulkner, ele toma os materiais densos e com satisfação maligna e cutucar, jornalistas, médicos im-
caóticos da mente, objetivando-os através de símbolos e temas. É pela portantes da cidade e de Baltimore e Filadélfia — que ali
retórica que conserva a textura de densidade e caos. estavam parados enquanto as pás faziam o seu trabalho. (1)
No entanto, o método que Warren emprega para projetar as ati- A primeira frase desta citação é narrativa. O resto é a associação
vidades mentais não-enunciadas de Burden não é uma imitação de imaginativa que Burden faz. As imagens indicam o estado obcecado
Faulkner; a sugestão de fluxo de consciência em AU the King's Men é de sua mente, a insistente demora sobre um objeto (o retrato de Ann).
tão convencional que chega a desarmar. Geralmente é apresentado na Ao mesmo tempo, as associações com outros incidentes, temas e mo-
primeira pessoa e às vezes na segunda, que é mais objetiva. ("Indo tivos do romance são lembradas com habilidade (e realismo).
para a cama no fim da tarde de primavera ou bem no começo do Um eco mais evidente do fluxo de consciência pode ser encontrado
crepúsculo, com cujo som em seus ouvidos proporciona-lhe uma ma- num romance posterior de Warren, World Enough and Time (Mundo
ravilhosa sensação de paz (p. 325).) Warren evita os artifícios mecâ-
nicos, as aberrações sintáticas, os fragmentos e a obscuridade lógica. (1) Nova York, Harcourt, Brace, 1946, p. 426.
106 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA OS RESULTADOS 107
suficiente e tempo) (1950). É interessante observar que o método iro- para o final da estória, a fantasia-do-sonho, com toda sua incoerência e
Dressionista de Virginia Woolf se reflete neste romance. Mais uma vez. desconjuntamento, é usada na apresentação da febril batalha de Miran-
não há indícios de uma imitação direta ou mesmo de uma influência da contra a morte.
direta. A estrutura de fluxo de consciência na obra de Warren parece Esta ficção mais recente, por mais que seus autores fossem in-
esnontânea e é delicadamente conjugada ao método básico de seu ro- fluenciados por Woolf, Joyce e Faulkner, não pertencem ao fluxo de
mance, o diário combinado com a narrativa onisciente dos incidentes consciência. Este género foi absorvido em sua maior parte pelo orga-
exteriores na terceira pessoa. O seguinte exemplo vem logo depois de nismo maior do método ficcional. A descrição da vida mental na
uma descrição do personagem Jeremiah, que está espiando para dentro ficção de Mr. Warren e Miss Porter (como também na de muitos outros
da janela da casa de um amigo. Da descrição dos incidentes exteriores, romancistas) é semelhante à sondagem psicológica que podemos encon-
a narração nassa para uma descrição da consciência de Jeremiah. Os trar em romances anteriores ao fluxo de consciência como os de Henry
grifos são do autor. James e Mareei Proust. Mas há uma importante diferença: a ficção
de James e Proust era obscura, esotérica ou então escandalosamente
Então era essa a mulher de Fort, pensou. Ele sabia nova, ao passo que os romances mais recentes são prontamente aces-
de sua existência, mas nunca a vira, ela não tinha sido síveis a um público leitor razoavelmente amplo, sem a presença das
real. Mas agora ela se tornara real e por um instante ele barreiras da obscuridade ou estranheza. O fluxo de consciência havia
sentiu uma mudança KO centro de sua intenção, . . . e ele surgido entre Henry James e Robert Penn Warren.
aguçou os ouvidos para ouvir as palavras que dizia, mas Os interesses intelectuais e as forças sociais que geraram e encora-
nada Dodia ouvir. Depois pensou: Ela não lhe tem amor. jaram os escritores do fluxo de consciência também vieram intervir.
posso ver pela sua cara que não. E pensou com um medo Consequentemente, quando em 1932 o Professor Beach considerou limi-
enjoado: Mas se assim não fosse, se de fato ela o amasse, tado o futuro do fluxo de consciência devido a sua invariável aplicação
poderia eu...? E não conseguiu completar seu pensamen- à "neurose", estava-se desfazendo dele cedo demais. Mas quando, vinte
to, nem em sua própria mente, e com um salto de alívio e anos mais tarde, o Professor Hoffman descreve o assunto do fluxo de
de súbita certeza, pensou: Mas não ama, não. Ela não consciência como uma fase "historicamente interessante" do método
poderia, não com aquela cara e aquele olhar morto sobre romanesco, resultado do interesse popular na abordagem freudiana da
ele. W vida sexual, ele está ignorando os resultados (e, até certo ponto, as
criações) desta fase. Os erros tanto do Professor Beach como do Pro-
Esta combinação de descrição onisciente e monólogo interior trarão fessor Warren consistem em uma ênfase mal aplicada. (3) Os aspectos
à lembrança do leitor o método usado em Mrs. Dalloway e O Farol. da literatura do fluxo de consciência que acentuam a vida neurótica e
sexual de Freud não são o que a distinguem. Poder-se-ia argumentar,
Como exemplo final da penetrante influência do género do fluxo por exemplo, que os personagens de Ulisses e O Farol não são mais
de consciência sobre a ficção recente, uma observação de Fale Horse, — e talvez muito — "neuróticos" do que os de The American Tragedy
Fale Rider (Cavalo pálido, cavaleiro pálido) (1939) de Katherine Anne (Uma tragédia americana), Point Counter Point (Ponto e Contraponto)
Porter é elucidativa. O maior interesse aqui reside no reflexo, numa e The Sun also Rises (O sol também se levanta) para não falar em
estória muito lúcida e sob outros aspectos elaborada de maneira muito Antic Hay e Sanctuary (Santuário). Da mesma maneira que o reflexo
convencional, das inovações técnicas mais radicais empregadas por Ja- histórico do freudismo popular não é mais aparente em Mrs. Dallo-
mes Joyce em Ulisses. Refiro-me ao uso de elaborado simbolismo para way e Pilgrimage do que em Sons and Lovers (Filhos e Amantes) e
expressar as qualidades de sonho da consciência. No romance de Miss The Great Gatsby (O grande Gatsby). O que aconteceu foi o seguinte:
Porter, o leitor é apresentado, com uma montagem de símbolos extre-
mamente eficiente, à vida do sonho do Dersona^em. Miranda. Mais (3) Beach em The Twentieth Century Novel: Studies in Techniquc, NOVI
York, D. Appleton-Century, 1932; Hoffman em The Modem Novel in America,
(2) Nova York. Random House. 1950. p. 258. 1900-1950, Chicago, Regnery, 1951.
108 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA OS RESULTADOS 109
quando a personalidade é examinada tão minuciosa e imparcialmente As técnicas básicas para apresentar a consciência na literatura não
como aconteceu no romance do século XX — dentro e fora do fluxo são invenções do século XX. Tanto o monólogo interior direto como
de consciência — ela aparece como indivíduo e não como "norma". indireto pode ser encontrado em obras dos séculos anteriores, e a des-
E se, neste século, não nos tivermos convencido de que tudo é anormal, crição onisciente e o solilóquio foram características primárias da ficção
que a assim chamada condição neurótica é uma condição generalizada, mesmo em seus estágios embrionários. O emprego singular destes que
então não teremos aprendido nada de essencial acerca de nós mesmos. produziram o fluxo de consciência vieram com o conhecimento que os
O romance do fluxo de consciência nos deu provas empíricas desta romancistas do século XX tomaram do significado do drama que se
verdade. Deu-nos provas também do metempírico. Aprendemos com desenrola nos confins da consciência do indivíduo.
os exploradores da psique humana que o indivíduo procura, e às vezes Dois aspectos desse drama da consciência apresentavam proble-
alcança, uma transcendência daquilo que Balzac descreveu como "con- mas especialmente difíceis aos escritores que desejavam representá-lo.
dição humana". O mundo empírico produz a personalidade neurótica; Entre os psicólogos-filósofos, William James e Henri Bergson conven-
mas essa personalidade tem condições de ansiar por contato com aquilo ceram as gerações seguintes de que a consciência flui como uma corren-
que existe de estável, por conhecimento do núcleo do significado. teza e de que a mente tem seus próprios valores de tempo e espaço
Assim sendo, o fluxo de consciência se alia, mais propriamente, à à parte dos que são arbitrários e estabelecidos pelo mundo exterior.
esmagadora tendência na ficção dos nossos tempos para investigar um Desta forma, fluxo e "durée" são aspectos da vida psíquica para os
significado na personalidade humana do que à ação e reação sociais. quais seria preciso encontrar novos métodos narrativos, caso os escri-
Apresentando uma concentração extrema sobre a consciência não-pro- tores quisessem descrevê-los. O outro aspecto era mais óbvio: a mente
nunciada, ele produziu seus marcos, muito altos por sinal, mas foi é uma coisa particular. O problema apresentado por este aspecto era
agregado a alguma coisa fundamental na natureza da ficção: a necessi- simplesmente como trazer a público aquilo que é particular e ainda
dade de ação superficial e realidade externa para fazer da realidade assim parecer preservar suas qualidades de intimidade?
um todo tal como o homem a conhece, pois o homem, como ilustrou O principal artifício que os escritores descobriram para descrever
Joyce, tem apenas meias aspirações. e controlar tanto o movimento como a intimidade da consciência foi
o emprego dos princípios da livre associação mental. Estes ofereciam
Sumário uma base utilizável para impor uma lógica especial aos devaneios irre-
gulares da consciência, proporcionando assim um sistema para que o
A nova dimensão criada na literatura pelos principais escritores escritor seguisse e o leitor se apegasse. O processo da livre associação
de fluxo de consciência foi tentada anteriormente; foi tentada pelos provou ainda ser aplicável a qualquer consciência específica de maneira
próprios escritores de fluxo de consciência em obras que não se en- a mostrar um padrão de associação que dependia das experiências pas-
quadram no fluxo de consciência. O senso especial de imanente visão sadas do indivíduo e de suas atuais obsessões. Deste modo, mais que
em Mrs. Dalloway e O Farol foi sugerido por Virginia Woolf em seu metade do problema da intimidade ficou resolvido.
anterior Jacob s Room (O quarto de Jacob) e posterior The Years Mas eram necessários outros artifícios para transmitir o movi-
(Os anos), mas era só usando as técnicas básicas do fluxo de consciên- mento inconvencional e o enigma da intimidade nos níveis da consciên-
cia que ela conseguia transmiti-lo. Da mesma forma, a comédia satí- cia que antecedem a fala. As mentes engenhosas dos escritores que
rico-patética da existência, realizada por Joyce, foi defendida nos estivemos estudando, assim como as de seus contemporâneos nas artes
contos de Dubliners (Os Dublinenses), mas só foi totalmente transmi- irmãs, especialmente no cinema, encontraram técnicas que foram idea-
tida no fluxo de consciência de Ulisses. E o senso de tragédia irónica lizadas para projetar a dualidade e o fluxo da vida mental. A mon-
de Faulkner, embora muitas vezes majestoso em romances como San- tagem, com sua função de apresentar simultaneamente mais de um
tuário e The Hamlet (A Aldeia), só alcança a credibilidade necessária objeto ou mais de um tempo era especialmente aplicável à ficção. Os
para a mais veemente eficácia em suas obras do fluxo da consciência, artifícios resultantes do "flash-back", "fade-out" e "slow-up" provaram
onde o drama psíquico prevalece sobre a imponência da retórica. ser acessórios úteis à montagem e à livre associação. A própria tradição
110 O FLUXO DA CONSCIÊNCIA
literária foi rebuscada à procura de artifícios, revelando os materiais
já existentes que a retórica e a poesia clássica podiam oferecer, entre
eles os especialmente úteis da metáfora e do símbolo. Até as conven-
ções da pontuação foram remodeladas para produzir em palavras as
qualidades da consciência que antecedem a fala. Finalmente, a maior
dificuldade estava superada, mas onde estava a forma da arte nisto?
A consciência, nos níveis que antecedem a fala, não tem um padrão
definido; uma consciência, por sua própria natureza, existe indepen-
dente de ação. Em suma, o enredo devia ficar em segundo plano. E
ainda assim, era preciso sobrepor um certo padrão aos materiais caóti-
cos da consciência. Em lugar de um enredo bem acabado, os escritores
inventaram toda a sorte de unidades. Eles conseguiram a maior ade-
rência possível às unidades clássicas que o romance jamais produzira;
moldaram suas obras por modelos literários, ciclos históricos e estrutura
musical; usaram uma complexa estrutura simbólica e finalmente conse-
guiram até fundir o enredo externo com o fluxo da consciência!
The Sound and the Fury e Enquanto Agonizo, retardatárias no
género do fluxo de consciência, não são puros exemplos disto. Contêm
um importante elemento de enredo e representam o ponto no desen-
volvimento do romance do século XX em que o fluxo de consciência
entrou pela correnteza principal da ficção adentro, onde continua até
hoje. E as sagradas águas dessa correnteza estão mais potentes do
que eram.