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11/07/2019 Folha Online - Mundo - Análise: O choque de ignorâncias - 17/10/2001

17/10/2001 - 05h25

Análise: O choque de ignorâncias


EDWARD SAID PUBLICIDADE

O artigo "O Choque de Civilizações?", de Samuel Huntington, foi publicado


na edição da primavera de 1993 do periódico "Foreign Affairs", onde
imediatamente atraiu atenção e reações em volume surpreendente.
Como o artigo visava suprir os americanos com uma tese original sobre a
"nova fase" da política mundial iniciada com o término da Guerra Fria, os
argumentos de Huntington pareciam convincentes e soavam amplos,
ousados, até mesmo visionários.

Estava claro que ele se dirigia a seus rivais entre os cientistas políticos -
teóricos como Francis Fukuyama e sua idéia do fim da história- e também às multidões que saudaram o
início do globalismo, o tribalismo e a fragmentação do Estado. Mas, afirmou, eles tinham compreendido
apenas alguns dos aspectos desse novo período. Ele próprio se propunha a anunciar o que seria "o
aspecto crucial, até mesmo central" do que "a política global provavelmente será nos próximos anos".

Sem hesitar, ele prosseguiu: "A idéia que proponho é que a fonte fundamental de conflitos neste novo
mundo não será de natureza principalmente ideológica, nem econômica. As grandes divisões entre a
humanidade e a fonte predominante de conflito serão culturais. Os Estados-nação continuarão a ser os
atores mais poderosos nos assuntos mundiais, mas os principais conflitos da política global vão se dar
entre países e grupos que fazem parte de civilizações distintas. O choque de civilizações vai dominar a
política mundial. As linhas divisórias entre as civilizações formarão as frentes de batalha do futuro."

A maior parte do argumento apresentado nas páginas seguintes se baseava numa idéia vaga do que
Huntington chamava de "identidade de civilizações" e nas "interações entre as sete ou oito (sic) principais
civilizações", sendo que o conflito entre duas delas, o islã e o Ocidente, recebe a parte do leão de sua
atenção.

Para fundamentar esse pensamento agressivo, Huntington se baseia em um artigo publicado em 1990
pelo veterano orientalista Bernard Lewis, cujas cores ideológicas ficam manifestas no título, "As raízes da
ira muçulmana". Em ambos os artigos afirma-se de maneira impensada a personificação de entidades
tremendas, "Ocidente" e "islã", como se questões extremamente complexas tais como identidade e cultura
existissem num mundo semelhante ao das histórias em quadrinhos, onde Popeye e Brutus se enfrentam
sem dó e o pugilista com mais virtudes se sai melhor do que seu adversário.

Com certeza nem Huntington nem Lewis têm tempo a perder com a dinâmica e a pluralidade internas de
cada civilização, nem com o fato de que a disputa principal, na maioria das culturas modernas, diz
respeito à definição ou interpretação de cada cultura, e com a possibilidade pouco atraente de que,
quando alguém se atreve a falar em nome de uma religião ou civilização inteira, seu discurso fatalmente
conterá demagogia e ignorância, pura e simples. Não -para eles, Ocidente é Ocidente, islã é islã. O desafio
que os políticos ocidentais têm pela frente, diz Huntington, consiste em garantir que o Ocidente se
fortaleça cada vez mais e afaste todas os outros, em especial o islã.

Mais preocupante ainda é o fato de Huntington partir da premissa de que sua perspectiva, que consiste
em olhar o mundo inteiro desde um ponto distante de todos os vínculos e lealdades ocultas comuns, é a
correta, como se as pessoas estivessem à procura de respostas que ele próprio já encontrou. Na
realidade, Huntington é um ideólogo -alguém que quer transformar "civilizações" e "identidades" em algo
que elas não são, entidades estanques e fechadas, destituídas das múltiplas correntes e contracorrentes
que animam a história humana e que, ao longo dos séculos, tornaram possível que essa história não
apenas contenha guerras de religião e conquista imperial, mas que também seja feita de intercâmbios,
fertilizações cruzadas e partilhas.

Essa história muito menos visível é deixada de lado na pressa de realçar a guerra ridiculamente
comprimida e constrita que, de acordo com o argumento dele, seria a realidade. Quando Huntington
publicou seu livro com o mesmo título, em 1996, ele procurou conferir a seu argumento um pouco de
sutileza e mais notas de rodapé, mas o que conseguiu foi confundir a si próprio e mostrar a todos o quão
desajeitado é como escritor, e deselegante como pensador. O paradigma básico do Ocidente versus o
resto do mundo (ou seja, a oposição da Guerra Fria reformulada) continuou intocado, e é isso que
persiste, de maneira muitas vezes insidiosa e implícita, nas discussões tidas desde de 11 de setembro.

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O massacre cuidadosamente planejado e o atentado suicida horrendo e patologicamente motivado
cometidos por um pequeno grupo de militantes de mente perturbada foram transformados em provas da
tese de Huntington. Em lugar de enxergá-lo como o que foi, a apropriação de grandes idéias (estou
usando o termo "grande" em um sentido amplo) por um minúsculo bando de fanáticos loucos, para
finalidades criminosas, luminares internacionais, da ex-premiê paquistanesa Benazir Bhutto até o
primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, ponderaram publicamente sobre os problemas do islã, e, no
caso do último, usaram as teses de Huntington para fazer arengas sobre a superioridade do Ocidente,
sobre como "nós" temos Mozart e Michelangelo, enquanto "eles", não (desde então, Berlusconi fez um
pedido pouco convincente de desculpas pelos insultos proferidos contra o islã).

Por que não, em lugar disso, enxergar paralelos -admite-se que seu caráter destrutivo seria menos
evidente- entre Osama bin Laden e seus seguidores, por um lado, e seitas como o Ramo Davidiano ou os
discípulos do reverendo Jim Jones, na Guiana, ou do grupo japonês Aum Shinrikyo, do outro? Mesmo o
normalmente sóbrio semanário britânico "The Economist", em sua edição de 22 a 28 de setembro, não
resistiu à tentação da generalização imensa e elogiou Huntington em termos extravagantes por suas
observações "cruéis e abrangentes, mas nem por isso menos acertadas" sobre o Islã. "Hoje", diz a revista
em um inadequado tom solene, Huntington escreve que "os cerca de 1 bilhão de muçulmanos do mundo
"estão convencidos da superioridade de sua cultura e obcecados com a inferioridade de seu poder'". Será
que ele entrevistou 100 indonésios, 200 marroquinos, 500 egípcios e 50 bósnios para chegar a isso?
Mesmo assim, que espécie de amostragem seria essa?

Incontáveis editoriais em todo jornal e revista americanos e europeus que valem a pena ser mencionados
acrescentam termos novos a esse vocabulário de gigantismo e apocalipse, cada utilização do qual
claramente não visa esclarecer os leitores, mas sim inflamar suas paixões indignadas, na condição de
membros do "Ocidente". O discurso em estilo Churchill é usado de maneira inapropriada por combatentes
autonomeados na guerra do Ocidente e, especialmente, da América, contra aqueles que odeiam-no,
saqueiam-no e o destróem-no, e pouquíssima atenção é dada a histórias complexas que contestam esse
reducionismo e que vazaram de um território para outro, nesse processo passando por cima das fronteiras
que, supostamente, deveriam nos separar em campos armados distintos e divididos.

Por que não enxergar paralelos entre Bin Laden e o Ramo Davidiano ou Jim Jones?

Esse é o problema dos rótulos não-esclarecedores como são "islã" e "Ocidente": eles confundem e
induzem ao erro a mente que está tentando encontrar sentido numa realidade desordenada que se recusa
a ser facilmente classificada ou arquivada em escaninhos. Eu me recordo de ter interrompido um homem
que se erguera no meio do público após uma palestra que dei numa universidade da Cisjordânia, em
1994, e começara a criticar minhas idéias, tachando-as de "ocidentais", em oposição às idéias rigidamente
islâmicas que ele próprio defendia. "Por que você está usando terno e gravata?" foi a primeira réplica
simplista que me veio à cabeça. "Também são ocidentais." Ele se sentou com um sorriso constrangido,
mas eu me lembrei desse incidente quando começaram a surgir informações sobre os terroristas de 11 de
setembro, sobre como eles tinham aprendido todos os detalhes técnicos necessários para fazer o mal
homicida que cometeram contra o World Trade Center e o Pentágono.
Onde se traça uma linha divisória entre a tecnologia "ocidental" e, como declarou Berlusconi, a
incapacidade do "islã" de fazer parte da "modernidade"?

É claro que isso não pode ser feito com facilidade. Mas, em última análise, como se mostram insuficientes
os rótulos, as generalizações e as afirmações culturais! Em algum nível, por exemplo, paixões primitivas e
know-how sofisticado convergem de maneiras que desmentem a existência de uma divisa fortificada, não
apenas entre "Ocidente" e "islã", mas também entre passado e presente, nós e eles, isso sem falar nada
sobre os próprios conceitos de identidade e nacionalidade, temas de divergências e discussões
literalmente intermináveis. Uma decisão unilateral de traçar linhas divisórias claras, de empreender
cruzadas, de opor nosso bem ao mal deles, de extirpar o terrorismo e, para adotar o vocabulário niilista
de Paul Wolfowitz, de acabar com nações inteiras não torna as supostas entidades mais fáceis de se
enxergar. Em lugar disso, mostra até que ponto é muito mais fácil fazer afirmações hostis com o objetivo
de mobilizar paixões coletivas do que refletir, examinar, determinar o que estamos enfrentando
realmente, dar-nos conta do caráter interligado de inúmeras vidas, não apenas as "deles", mas também
as "nossas".

Numa série de três artigos notáveis, publicados entre janeiro e março de 1999 no "Dawn", o mais
respeitado semanário do Paquistão, o falecido Eqbal Ahmad, escrevendo para um público muçulmano,
analisou o que chamou de as raízes da direita religiosa, tecendo críticas muito contundentes à deturpação
do islã cometida por absolutistas e tiranos fanáticos, cuja obsessão em regulamentar o comportamento
pessoal promove "uma ordem islâmica reduzida a um código penal, destituída de seu humanismo, sua
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estética, suas buscas intelectuais e sua devoção espiritual". E isso, ele afirmou, "implica a afirmação
absoluta de um aspecto da religião, geralmente tomado fora de seu contexto, e no desprezo total por
outro.
Esse fenômeno distorce a religião, amesquinha a tradição e deturpa o processo político, em toda parte
onde se dá".

Como instância pontual dessa degradação, Ahmad apresenta primeiro o


significo rico, complexo e pluralista da palavra "jihad" e, em seguida, demonstra que, dentro do contexto
atual de redução mundial à guerra indiscriminada contra inimigos supostos, torna-se impossível
"reconhecer (...) religião, sociedade, cultura, história ou política islâmicas conforme vividas e sentidas
pelos muçulmanos ao longo dos séculos". Os islamistas modernos, conclui Ahmad, "estão preocupados
com o poder, não com a alma -em mobilizar pessoas para objetivos políticos, em lugar de para dividir e
aliviar suas dores e seus anseios. As prioridades deles são extremamente limitadas e se dão dentro de um
contexto restrito pelo tempo". O que agravou a situação é o fato de que distorções e fanatismo
semelhantes ocorrem nos universos de discurso "judaico" e "cristão".

Foi Joseph Conrad, de maneira mais contundente do que poderiam ter imaginado seus leitores no final do
século 19, quem compreendeu que as distinções entre a Londres civilizada e "o coração das trevas" caíam
por terra rapidamente sob situações extremas e que os pontos mais altos da civilização européia podiam
instantaneamente retroceder para as práticas mais bárbaras, sem preparo ou transição. E foi também
Conrad, em "O Agente Secreto" (1907), quem descreveu a afinidade do terrorismo com abstrações como
"ciência pura" (e, por extensão, "islã" ou "Ocidente"), além da degradação moral final do terrorista.

Pois existem vínculos mais próximos entre civilizações aparentemente em conflito do que a maioria de nós
gostaria de acreditar, e, como mostraram tanto Freud quanto Nietzsche, a passagem sobre fronteiras
cuidadosamente conservadas, mesmo que policiadas, muitas vezes se dá com facilidade assustadora. Mas
tais idéias fluidas, repletas de ambiguidade e ceticismo quanto aos conceitos aos quais nos atemos, não
chegam a nos prover diretrizes apropriadas e práticas para uso em situações como essa que agora nos
confronta. Vêm daí os termos muito mais tranquilizadores (cruzada, bem contra o mal, liberdade versus
medo, etc.), que derivam da oposição traçada por Huntington entre islã e Ocidente, da qual, nos primeiros
dias, o discurso oficial tirou seu vocabulário. Desde então temos visto um abrandamento notável nesse
discurso, mas, a julgar pela escalada ininterrupta de discursos e ações de repúdio e ódio, sem falar nos
casos de esforços de policiamento, dirigidos contra árabes, muçulmanos e indianos em todo os EUA, o
paradigma continua a ser visto como real.

Ainda outra razão dessa persistência é a presença inquietante de muçulmanos em toda a Europa e nos
Estados Unidos. Pense nas populações atuais da França, Itália, Alemanha, Espanha, Reino Unido, EUA e
até mesmo Suécia e você será obrigado a admitir que o islã já não se encontra apenas na periferia do
Ocidente, mas em seu centro. Mas o que há de tão ameaçador nessa presença?

Soterradas no fundo da cultura coletiva há memórias da primeira grande conquista árabe-islâmica, que
começou no século 7º e que, conforme escreveu o célebre historiador belga Henri Pirenne em seu notável
livro "Mohammed and Charlemagne" ("Muhammad e Carlos Magno"), de 1939, rompeu de uma vez por
todas a unidade do mediterrâneo na antiguidade, destruiu a síntese cristã-romana e propiciou o
surgimento de uma nova civilização dominada por potências setentrionais (a Alemanha e a França
carolíngia), cuja missão, ele parece dizer, consiste em retomar a defesa do "Ocidente" contra seus
inimigos histórico-culturais.

O que Pirenne deixou, infelizmente, de dizer é que a criação dessa nova linha de defesa do Ocidente
aproveitou inúmeros elementos do humanismo, da ciência, filosofia, sociologia e historiografia do islã, que
já se haviam interposto entre o mundo de Carlos Magno e a antiguidade clássica. O islã está dentro do
Ocidente desde o início, como foi obrigado a admitir o próprio Dante, grande inimigo de Muhammad,
quando situou o Profeta no próprio coração de seu Inferno.

Existe, também, o legado persistente do próprio monoteísmo, das religiões abraâmicas, como tão bem as
descreveu Louis Massignon. Começando com o judaísmo e o cristianismo, cada uma é sucessora
assombrada pela que a antecedeu. Para os muçulmanos, o islã vem preencher e concluir a linha das
profecias.

Ainda não existe história ou desmistificação respeitáveis da rivalidade multifacetada entre esses três
seguidores -nenhum dos quais forma um campo monolítico ou unificado- do mais ciumento de todos os
deuses, se bem que a sangrenta convergência contemporânea sobre a Palestina ofereça uma rica
instância secular daquilo que tem sido tão tragicamente irreconciliável neles.

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Assim, não surpreende que muçulmanos e cristãos não hesitem em falar em cruzadas e jihads, ambos
suprimindo a presença judaica com um pouco caso que chega a ser fantástico. Um ideário desse tipo, diz
Eqbal Ahmad, "é muito tranquilizador para os homens e mulheres presos no meio (...) entre as águas
profundas da tradição e da modernidade".

Mas todos nós estamos nadando nessas águas -ocidentais, muçulmanos e outros. E, como as águas fazem
parte do oceano da história, tentar ará-las ou dividi-las com barreiras é inútil. São tempos tensos estes
que vivemos, mas é melhor pensar em termos de comunidades poderosas e impotentes, da política
secular da razão e da ignorância e dos princípios universais da justiça e da injustiça do que nos perdermos
na procura de abstrações vastas que podem conferir satisfação temporária, mas pouco autoconhecimento
ou análise fundamentada.

A tese do "Choque de Civilizações" é um truque como o foi "A Guerra dos Mundos", que se saiu melhor na
tarefa de reforçar o orgulho próprio defensivo do que na de fomentar a compreensão crítica da atordoante
interdependência de nossos tempos.

O ensaísta Edward Said é um dos principais intelectuais palestinos. Radicado nos EUA, é autor de vários
livros, entre eles "Orientalismo", "Cultura e Imperialismo" e a autobiografia, "Out of Place"

Tradução de Clara Allain

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