Вы находитесь на странице: 1из 232

O OUTRO LADO DO AMOR

ROSAMUNDE PILCHER

O OUTRO LADO do AMOR


Tradução

de

Anabela Martins

flDIFEL
Título original: Another View

> 1968, Rosamunde Pilcher

Todos os direitos de publicação desta obra em língua portuguesa, excepto Brasil,

reservados por:

DIFEL
Denominação Social Sede Social

Capital Social Contribuinte n.°

Matrícula n.° 8680

- DIFEL 82 Difusão Editorial, S.A.

- Avenida das Tulipas, n.” 40-C Miraflores

1495-159 Algés - Portugal Telefone: 21 412 35 10

Fax: 21 41235 19

- E-mail: difel@difel.pt

- 300 000,00 (trezentos mil euros) -501 378537

- Conservatória do Registo Comercial de Oeiras

Capa: Clementina Cabral sobre imagem de AEI Revisão tipográfica: Frederico Sequeira Composição: Fotocompográfica,
Lda. Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu Depósito legal n.” 201 836/2003 ISBN 972-29-0671-2/Janeiro de
2003

Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização do Editor


Digitalização:

Fátima Tomás

Correcção:

Joana Belarmino

Em Paris, em Fevereiro, o Sol brilhava. No aeroporto Lê Bourget, o Sol resplandecia


friamente num céu azul gelado e a sua luz encandeante era reflectida nas pistas,
ainda molhadas depois de uma noite de chuva. Visto de dentro, o dia parecia
convidativo e eles sentiram-se tentados a ir até ao terraço, acabando por descobrir
que o Sol refulgente não exalava nenhum calor real e que a brisa alegre que
empurrava os sacos de vento em ângulo recto trazia na ponta um cutelo afiado.
Derrotados, retiraram-se para o restaurante, para esperar que o voo de Emma fosse
anunciado, e sentaram-se numa pequena mesa a beber café e a fumar os Gauloises
de Christopher.

Movendo-se com à-vontade, absortos um no outro, atraíam, no entanto, uma certa


atenção. O que era inevitável, já que faziam um casal vistoso. Emma era alta e muito
morena. O seu cabelo, penteado para trás e preso por uma bandelette de tartaruga,
caía-lhe numa torrente negra até um pouco abaixo das omoplatas. Não tinha uma
cara bonita as maçãs do rosto eram salientes de mais e de uma robustez exagerada
para a beleza, com um nariz direito e queixo anguloso e determinado. Mas estas
características eram redimidas e tornadas encantadoras por uns olhos
inesperadamente azul-acinzentados e por uma boca grande que, embora fosse muito
bem capaz de murchar desconsolada se não levasse
a sua avante, também podia sorrir de orelha a orelha, como a de um puto, quando ela
estava feliz. E ela agora estava feliz. Trazia, nesse dia frio e soalheiro, um fato de
calça e casaco verde-forte e uma camisola de lã de gola alta que lhe tornava o rosto
ainda mais moreno. Mas a sua aparência sofisticada era ofuscada pelo volume de
bagagem de que estava rodeada e que parecia, ao cidadão comum, ter sido salva de
um qualquer acto desastroso de Deus.

Era, na verdade, a acumulação de seis anos de vida no estrangeiro, mas ninguém


tinha obrigação de o saber. Três malas de viagem já tinham passado pelo check in,
após terem sido pagas as despesas de excesso de bagagem. Mas havia ainda uma
mala de lona, um saco de papel com compridos cacetes franceses, um cesto a
abarrotar de livros e discos, uma gabardina, um par de botas de esqui e um enorme
chapéu de palha.

Christopher observava, tecendo comentários especulativos, com ar desprendido e


indiferente quanto à forma como aquilo tudo ia ser levado para o avião.

Podias levar o chapéu na cabeça, calçar as botas de esqui e vestir a gabardina. Eram
menos três coisas para carregar.

Já tenho um par de sapatos calçado e o chapéu ia com o vento. Além disso, a


gabardina é horrorosa. Pareço um cabide vestido. Nem sei porque é que me dei ao
trabalho de a trazer.

Eu digo-te porquê. Porque vai estar a chover em Londres.

Pode não estar.

Está sempre. Ele acendeu outro Gauloise na beata do primeiro. Mais uma boa razão
para ficares em Paris comigo.

Já discutimos isso dezenas de vezes. Eu vou voltar para Inglaterra.


Ele sorriu sem rancor. Tinha estado a atazaná-la. Quando ele sorria, os seus olhos de
âmbar elevavam-se nos cantos e isto, combinado com o seu corpo alto, magro e
indolente, dava-lhe uma aparência curiosamente felina. As suas roupas eram
coloridas, descuidadas e vagamente boémias. Calças de bombazina, botas de pólo
muito usadas, uma camisa azul de algodão por cima de uma camisola de lã amarela
e um blusão de camurça muito velho e lustroso nos cotovelos e na gola. Christopher
parecia ser francês, mas, na verdade, era tão inglês quanto Emma e tinham até vagos
laços de parentesco, já que, anos antes, quando Emma tinha seis anos e Christopher
dez, o pai dela, Ben Litton, casara com Hester Ferris, mãe de Christopher. O
compromisso durou, com um êxito muito relativo, ano e meio, antes de se ter, por
fim, dado a ruptura, e agora Emma recordava-o como o único período da sua vida
em que conhecera qualquer coisa vagamente aproximada de uma vida familiar
normal.

Fora Hester quem insistira em comprar a casa em Porthkerris. Ben tivera aí um


estúdio durante uma série de anos, desde muito antes da guerra, mas este não tinha
qualquer tipo de comodidades e, após uma olhadela ao antro para onde deveria ir
viver, Hester saiu imediatamente porta fora e comprou duas casas de pescadores que
transformou com gosto. Ben não demonstrou o menor interesse por tal actividade,
por isso aquela casa tornou-se muito a casa de Hester e era ela que insistia numa
cozinha que funcionasse, numa caldeira que aquecesse a água e numa grande lareira
onde ardesse a lenha que o vento trazia para a costa, um coração para o seu lar, um
foco em volta do qual as crianças se pudessem reunir.

As intenções dela eram esplêndidas, os seus métodos de as levar a cabo não tão
bem-sucedidos. Ela tentou fazer cedências em relação ao Ben. Tinha casado com um
génio, conhecia a reputação dele e estava preparada para fazer vista grossa aos seus
casos amorosos, más companhias e à atitude dele em relação ao dinheiro. Mas, como
é frequente acontecer nos casamentos mais vulgares, acabou por ser vencida pelas
pequenas coisas. Pelas refeições esquecidas e por comer. Por contas triviais, que não
eram pagas durante meses. Pelo facto de Ben preferir beber no pub local em vez de
o fazer de uma forma civilizada, em casa, com ela. Foi vencida pela recusa dele de
ter telefone, de ter um carro; pelo corropio de vagabundos que ele convidava para
dormir no sofá dela; e, finalmente, pela total incapacidade de demonstrar, fosse em
que altura fosse, qualquer tipo de afecto por ela.

Por fim, deixou-o levando Christopher com ela e pedindo quase de imediato o
divórcio. Ben ficou encantado em dar-lho. Ficou também encantado por ver o
rapazinho pelas costas. Os dois nunca se tinham dado bem. Ben tinha ciúmes da sua
prioridade de macho, gostava de ser o único homem importante em sua casa e
Christopher, mesmo aos dez anos, era um indivíduo que recusava ser ignorado.
Apesar de todos os esforços de Hester, este antagonismo persistiu. Até a beleza do
rapaz, que Hester acreditava verdadeiramente que encantaria o olho de pintor de
Ben, teve o efeito contrário, e quando ela tentou persuadir Ben a pintar um retrato do
filho, ele recusou-se a fazê-lo.

Após a partida deles, a vida em Porthkerris regressou com facilidade à antiga rotina
grosseira. Cuidaram de Emma e Ben uma série de fêmeas em desalinho, modelos ou
estudantes de pintura, que entravam, passavam e saíam da vida de Ben Litton com a
monótona regularidade de uma fila de cinema bem ordenada. A única coisa que
tinham em comum era uma adulação por Ben e um menosprezo sobranceiro pelas
tarefas domésticas. Reparavam em Emma o menos
10
possível, mas, na verdade, ela não sentira tanto a falta de Hester como se pensava
que sentiria. Ficara cansada, tal como Ben, de ser organizada e de andar
perpetuamente abotoada dentro de roupas limpas, mas a partida de Christopher
deixou um grande vazio na vida dela, que se recusava a ser preenchido. Durante
algum tempo sentiu uma grande tristeza pela partida dele, tentou escrever-lhe cartas,
mas não se tinha atrevido a pedir a morada dele a Ben. Uma vez, no desespero da
solidão, fugiu para ir à procura de Christo. Isto consistiu em ir até à estação e tentar
comprar um bilhete para Londres, que lhe parecia ser um sítio tão bom como outro
qualquer para ir procurá-lo. Mas ela só tinha um péni e o chefe da estação, que a
conhecia, levara-a para o seu gabinete, que cheirava a candeeiros a petróleo e ao
carvão dos caminhos-de-ferro a arder na lareira, servira-lhe uma chávena de chá,
enchida por uma cafeteira de esmalte, e acompanhara-a a casa. Ben estava a
trabalhar e não tinha dado pela ausência dela. Ela nunca mais tentou procurar
Christopher.

Quando Emma tinha treze anos ofereceram a Ben um lugar de professor na


Universidade do Texas por dois anos, que, sem pensar em Emma, ele aceitou
imediatamente. Houve um pequeno hiato, enquanto o futuro de Emma era discutido.
Quando confrontado com a questão da filha, ele anunciou que simplesmente a
levaria para o Texas consigo, mas alguém, provavelmente Marcus Bernstein,
persuadira-o de que ela estaria melhor longe dele, e foi assim que a mandaram para a
escola na Suíça. Ficou em Lausana durante três anos, sem nunca voltar a Inglaterra,
e depois foi para Florença mais um ano, para estudar arte italiana e renascentista. Ao
fim desse tempo, Ben estava no Japão. Quando ela sugerira que era melhor ir ter
com ele, Ben respondeu por telegrama: ”Única cama livre ocupada pela encantadora
gueixa. Porque não tentas viver em Paris?”

11
Filosoficamente, pois tinha agora dezassete anos e a vida já não era uma coisa
surpreendente, Emma fez o que ele lhe sugerira. Arranjou um emprego em casa de
uma família de nome Duprés, que vivia numa grande vivenda em St. Germain. O pai
era catedrático numa Faculdade de Medicina e a mãe era professora. Emma cuidava
dos seus três filhos bem-comportados, ensinava-lhes inglês e italiano, levava-os em
Agosto para a modesta villa de família em La Baule e durante todo esse tempo
esperou pacientemente que Ben voltasse a viver em Inglaterra. Ele ficou no Japão
ano e meio e quando voltou, de facto, foi via Estados Unidos, onde passou um mês
em Nova Iorque. Marcus Bernstein foi ao encontro dele nos Estados Unidos e era
característico que Emma soubesse da razão desta reunião, não pelo próprio Ben,
nem sequer por Leo, que era a sua fonte de informação habitual, mas por um longo
artigo abundantemente ilustrado na revista francesa Réalités, que tratava de um
Museu de Belas-Artes recentemente construído em Queenstown, na Virgínia. Este
museu era uma obra criada pela viúva de Kenneth Ryan, um virginiano rico, em
homenagem ao marido, e para a abertura da galeria estava prevista uma exposição
retrospectiva da pintura de Ben Litton, das suas paisagens pré-guerra aos
abstraccionismos mais recentes.

Uma exposição daquelas era uma honra e um tributo, mas sugeria, inevitavelmente,
que um pintor fosse reverenciado, um grande senhor das artes. Emma, ao estudar
uma das fotografias de Ben em todos os seus ângulos e contrastes a sua pele muito
morena, o queixo saliente e o cabelo grisalho, perguntava-se o que é que ele pensaria
sobre essa veneração. Ele toda a vida se tinha rebelado contra as convenções e ela
não conseguia imaginá-lo a submeter-se mansamente ao papel de grande senhor do
que quer que fosse.

12
Que homem! exclamou Madame Duprés, quando Emma lhe mostrou a fotografia. É
muito atraente.

Pois é concordou Emma, e suspirou, porque tinha sido sempre esse o problema.

Em Janeiro, Ben voltou com Marcus para Londres e regressou imediatamente a


Porthkerris para pintar. Isto foi confirmado por uma carta de Marcus. No dia em que
a carta chegou, Emma foi ter com Madame Duprés e despediu-se. Eles tentaram
aliciá-la, persuadi-la e suborná-la para que mudasse de ideias, mas ela foi inflexível.
Mal tinha visto o pai durante seis anos. Estava na altura de se conhecerem outra vez.
Ela ia voltar para Porthkerris para viver com ele.

Por fim, porque não tinham escolha, concordaram em deixá-la partir. O seu voo foi
reservado e ela começou a fazer as malas, atirando fora algumas das coisas
acumuladas durante seis anos e atafulhando o resto numa série de malas puídas e
muito viajadas. Mas mesmo estas eram tristemente inadequadas e Emma acabou por
ser obrigada a sair para ir comprar um cesto, um grande cesto de feira francês que
acomodaria a enorme quantidade de objectos de formas estranhas que se recusavam
a entrar em qualquer outra coisa.

Era uma tarde cinzenta e fria, dois dias antes da prevista partida. Madame Duprés
estava em casa, por isso Emma, explicando o motivo da sua saída, deixou os miúdos
com a mãe e saiu sozinha. Para grande surpresa sua, descobriu que caía uma chuva
miudinha e gelada. Os passeios empedrados da rua estreita brilhavam de molhados e
as casas altas, descoloridas, salientavam-se silenciosas e fechadas contra o fundo
nublado, como rostos que não denunciam nada. Do rio, um rebocador apitou e uma
gaivota solitária pairava, lá muito em cima, na névoa, soltando um piar soturno. A
ilusão de Porthkerris era subitamente mais real do que a realidade de Paris. A
resolução de voltar, que durante tanto
13
tempo estivera no mais recôndito da sua mente, estava agora cristalizada na
impressão de que ela já lá estava.

Aquela rua conduziria, não à movimentada Rua St. Germain, mas à rua do porto;
estaria maré alta, o porto cheio de mar cinzento, barcos baloiçando e uma grande
ondulação incharia, para além do quebra-mar norte, o Atlântico com crinas de
cavalos brancos. Haveria cheiros familiares peixe do mercado e bolos de açafrão
quentes da padaria. Todas as pequenas lojas de Verão estariam de persianas corridas
e fechadas para a estação. E Ben estaria a trabalhar no estúdio, mãos de meias luvas
contra o frio, o esplendor da sua paleta, um grito de cor contra a pincelada de
cinzento-nuvem enquadrada pela janela virada a norte.

Ia para casa. Dentro de dois dias, estaria em casa. A chuva molhava-lhe o rosto e, de
súbito, ela sentiu que não conseguia esperar, aquela sensação de urgência feliz fê-la
correr, e correu, correu até chegar à pequena épicerie na Rua St. Germain, onde
sabia que poderia comprar o cesto.

Era uma loja minúscula, fragrante de pão fresco e de enchidos com sabor a alho,
com cebolas penduradas no tecto, como colares de pérolas, e garrafas de vinho, que
os trabalhadores locais compravam ao litro. Os cestos estavam pendurados à porta,
atados uns aos outros por uma única corda. Emma não se atreveu a desatá-la e a
escolher um dos cestos com medo de que todo o molho se espalhasse pelo passeio,
por isso entrou na loja à procura de alguém que o fizesse por ela. Lá dentro havia
apenas a mulher gorda, com uma mancha na cara, que estava ocupada a atender um
cliente. Emma esperou. O cliente era um jovem de cabelo louro, com uma gabardina
raiada de chuviscos. Estava a comprar um grande cacete e um pacote de manteiga.
Emma mirou-o e decidiu que, pelo menos visto de trás, parecia atraente.

14
Combien? perguntou ele.

A mulher gorda fez uma soma com uma amostra de lápis. Disse-lhe. Ele procurou no
bolso, pagou, voltou-se, sorriu para Emma e andou para a porta.

E aí parou. Com a mão na ombreira, virou-se devagar para olhar segunda vez. Ela
viu os olhos de âmbar, o sorriso lento e incrédulo.

O rosto era o mesmo, o rosto familiar de rapaz no corpo estranho de homem. Com a
ilusão de Porthkerris tão perto e tão forte, parecia que era simplesmente uma
extensão dessa ilusão, uma partida da sua própria imaginação tão estimulada. Não
era ele. Não podia ser...

Ouviu-se a si própria dizer ”Christo” e foi a coisa mais natural do mundo chamá-lo
pelo nome que só ela alguma vez tinha usado. Ele disse, em voz sumida: ”Não posso
acreditar.” Então deixou cair os embrulhos, estendeu os braços e Emma caiu neles,
muito apertada contra a parte da frente luzidia e molhada da gabardina dele.

Tiveram dois dias para passarem juntos. Emma disse a Madame Duprés: ”O meu
irmão está em Paris”, e Madame, que tinha bom coração e já se tinha de qualquer
modo resignado a ficar sem Emma, deixou-a livre para os passar com Christopher.
Aproveitaram esses dois dias para andar devagar pelas ruas da cidade; debruçando-
se nas pontes para ver as barcaças deslizarem por baixo deles, em direcção ao sul e
ao sol; sentando-se ao sol fraco, a tomar café nas pequenas mesas redondas e,
quando chovia, refugiando-se em Notre Dame ou no Louvre, empoleirados nas
escadas por baixo da Winged Victory e sempre a conversar. Tinham tanto para
perguntar e para dizer. Ela soube que Christopher, depois de uma série de falsas
partidas, decidira ser actor. O que ia bastante contra os desejos da mãe depois de ano
e meio de Ben Litton ficara farta de temperamentos artísticos para o

15
resto da vida. Mas ele mantivera-se firme e conseguira mesmo uma bolsa para a
R.A.D.A.1

Tinha trabalhado durante dois anos num teatro de reportório na Escócia e viera, sem
êxito, para Londres, onde fizera alguns trabalhos para a televisão e depois fora
aliciado por um convite de um conhecido, cuja mãe tinha uma casa em St. Tropez.

St. Tropez no Inverno? Emma não pôde deixar de perguntar.

Era agora ou nunca. Nunca nos tinha sido oferecida no Verão.

Mas não era frio?

Gélido. Nunca parava de chover. E quando o vento soprava, todas as persianas


batiam. Era como num filme de terror.

Em Janeiro voltara a Londres para falar com o seu agente Q tinha-lhe sido oferecido
um contrato de um ano numa companhia de pequeno repertório no Sul de Inglaterra.
Não era o tipo de trabalho que ele queria, mas era melhor do que nada, estava a ficar
sem dinheiro e não era demasiado longe de Londres. O trabalho só começava,
contudo, no início de Março e, por isso, ele tinha voltado para França, acabara em
Paris e, finalmente, encontrara Emma. Agora custava-lhe que ela fosse já voltar para
Inglaterra e fizera tudo o que pudera para a fazer mudar de ideias, adiar o voo e ficar
em Paris com ele. Mas Emma fora inflexível.

Não compreendes. Isto é uma coisa que eu tenho que fazer.

O velho nem sequer te pediu para ires. Vais apenas meter-te no caminho dele e
interferir nas suas aventuras amorosas.
Ro^dl Academy of Diamatic Ait. (N da T)

16
Nunca o fiz antes, quero dizer, nunca interferi. Ela riu-se perante a expressão
teimosa dele. De qualquer modo, não faz sentido eu ficar se vais voltar para
Inglaterra para o mês que vem.

Ele fez uma careta.

Quem me dera que não fosse. Aquele teatrinho nojento em Brookford. Vou perder-
me na selva do repertório quinzenal. Além do mais, só tenho de lá estar daqui a duas
semanas. Ora, se tu ficasses em Paris...

Não, Christo.

Podíamos alugar um sótão minúsculo. Pensa em como nos íamos divertir. Pão e
queijo todas as noites para o jantar e litros de vinho de segunda.

Não, Christo.

Paris na Primavera... céu azul, flores e disparates assim?

Ainda não estamos na Primavera. Ainda é Inverno.

Eras sempre assim tão desmancha-prazeres?

Mas mesmo assim ela não concordara em ficar e ele acabou por admitir a derrota.

Muito bem, já que não consigo convencer-te a fazer-me companhia, vou pura e
simplesmente ser muito educadinho e cheio de modos britânicos, e vou acompanhar-
te ao aeroporto.

Perfeito.

E um grande sacrifício para mim. Detesto despedidas.

Emma concordou. Por vezes, parecia-lhe que tinha passado toda a sua vida a
despedir-se de pessoas e o som de um comboio a sair de uma estação ganhando
velocidade era o suficiente para a reduzir a lágrimas.

Mas esta despedida é diferente.

Diferente em quê? quis ele saber.

Não é realmente uma despedida. É um au revoir. Um intervalo entre dois olás.


17
A minha mãe e o teu pai não vão aprovar.

Não interessa se aprovam ou não retorquiu Emma. Encontrámo-nos outra vez. De


momento é a única coisa que interessa.

Por cima deles, os altifalantes deram um clique e começaram a falar com uma voz
feminina.

Senhoras e senhores a Air France anuncia a partida do voo número quatrocentos e


dois para Londres...

É para mim anunciou Emma.

Apagaram os cigarros, levantaram-se e começaram a juntar a bagagem. Christopher


agarrou na mala de lona, no saco de papel e no enorme cesto a abarrotar. Emma pôs
a gabardina ao ombro e pegou na mala, nas botas de esqui e no chapéu.

Christopher disse:

Devias pôr o chapéu. Ficava a matar no conjunto.

Voava com o vento. Para já não falar no ar patusco.

Desceram as escadas, atravessaram o chão resplandecente em direcção à alfândega,


onde uma pequena fila de passageiros já se estava a formar.

Emma, vais para Porthkerris já hoje?

Vou no primeiro comboio que conseguir.

Tens dinheiro? Quero dizer, libras, xelins e pence. Ela não tinha pensado nisso.

Não. Mas não tem importância. Troco um cheque num sítio qualquer.

Juntaram-se à bicha, por trás de um homem de negócios britânico que levava apenas
o seu passaporte e uma pasta muito elegante. Christopher inclinou-se para diante.

O senhor desculpe, era capaz de nos dar uma ajuda?

O homem virou-se e, para surpresa sua, encontrou o rosto de Christopher apenas a


centímetros do seu. Christopher tinha posto a sua expressão sincera.
18
Peço desculpa, mas estamos numa situação difícil. A minha irmã vai voltar para
Londres, esteve fora do país durante seis anos, tem uma grande quantidade de
bagagem para levar na mão e acaba de recuperar de uma operação grave...

Emma recordou-se de Ben dizer que Christopher nunca contava uma pequena
mentira se se pudesse safar com uma maior. Observando-o enquanto ele se saía com
aquela maquinação escandalosa, Emma concluiu que ele tinha escolhido
acertadamente a sua carreira. Era um actor magnífico.

O homem de negócios, abordado daquela forma, não conseguiu arranjar desculpa.

Bem, sim, claro, suponho...

É mais do que amável da sua parte...

A mala de lona e o saco de papel com o pão iam debaixo de um dos braços e o cesto
no outro, juntamente com a pasta muito elegante. Emma teve pena dele.

É só até chegarmos ao avião... É muito amável da sua parte. Sabe, é que o meu
irmão não vem comigo...

A bicha andou, tinham chegado à alfândega.

Adeus, Emma querida disse Christopher.

Adeus, Christo. Beijaram-se. Uma mão morena arrancou-lhe o passaporte, folheou-o


apressadamente e carimbou-o.

Adeus.

Foram divididos pela alfândega, pelas formalidades do Governo francês e por outros
passageiros que surgiam entre eles.

Adeus.

Emma gostaria que ele tivesse ficado à espera para vê-la entrar no avião, mas já
enquanto ela acenava, agitando o chapéu, ele voltara-se e estava a afastar-se dela, a
luz brilhando no seu cabelo, de mãos enfiadas nos bolsos do blusão de camurça.

19
Em Londres, em Fevereiro, estava a chover. Começara a chover às sete horas da
manhã e tinha chovido sem cessar desde então. Pelas onze e meia, apenas meia
dúzia de pessoas haviam visitado a exposição e esses entusiastas, suspeitava-se,
tinham entrado simplesmente para fugir à chuva. Largavam impermeáveis molhados
e guarda-chuvas a pingar e ficavam por ali, lamentando o tempo antes de comprarem
sequer o catálogo.

Às onze e meia, o homem entrou para comprar um quadro. Era um americano, que
estava hospedado no Hilton, e pediu para falar com o senhor Bernstein. Peggy, a
recepcionista, pegou no cartão que ele lhe estendeu, perguntando-lhe delicadamente
se ele se importaria de esperar um momento. Depois entrou no gabinete para falar
com Robert.

Senhor Morrow, está lá fora um americano que dá pelo nome de... ela olhou para o
cartão Lowell Cheeke. Ele esteve aqui há uma semana, o senhor Bernstein mostrou-
lhe o Ben Litton do veado e pensou que ele o ia comprar, mas ele foi-se embora sem
se decidir. Disse que queria pensar melhor sobre o assunto.

Disse-lhe que o senhor Bernstein está em Edimburgo?

Disse, mas ele diz que não pode esperar. Volta para os Estados Unidos depois de
amanhã.

21
É melhor eu recebê-lo concluiu Robert.

Levantou-se, e enquanto Peggy foi abrir a porta e convidar o americano a entrar fez
num instante uma limpeza de primavera à secretária, ordenando algumas cartas,
despejando o cinzeiro para o cesto dos papéis e empurrando o cesto para debaixo da
secretária com a ponta do sapato.

O senhor Cheeke disse Peggy, anunciando o visitante como uma criada de sala bem
ensinada. Robert saiu de trás da secretária para apertar a mão ao americano.

Como está, senhor Cheeke? Eu sou Robert Morrow, o sócio do senhor Bernstein.
Lamento muito, mas ele hoje está em Edimburgo, talvez eu possa ajudá-lo?...

Lowell Cheeke era um indivíduo baixo, com ar possante, de gabardina creme e com
um chapéu de aba estreita. Ambos estavam muito molhados, o que indicava que o
senhor Cheeke não tinha vindo de táxi. Começou a despojar-se, com a ajuda de
Robert, daquelas roupas ensopadas e revelou um fato de terylene azul-marinho, sem
um único vinco e uma camisa de nylon com riscas finas. Usava óculos sem aros e
por trás destes havia uns olhos frios e cinzentos que impossibilitavam vislumbrar
qualquer tipo de potencial, fosse financeiro ou artístico.

Muito obrigado agradeceu o senhor Cheeke. Que manhã horrível.

E não parece nada que vá melhorar... Um cigarro, senhor Cheeke?

Não, obrigado, deixei de fumar. Tossiu propositadamente. A minha mulher obrigou-


me.

Sorriram perante aquela idiossincrasia feminina. O sorriso não chegou aos olhos do
senhor Cheeke, que alcançou uma cadeira e instalou-se, puxando um sapato preto
lustroso para cima do juelho. Já parecia muito em casa.

22
Estive aqui há uma semana, senhor Morrow, e o senhor Bernstein mostrou-me um
quadro de Ben Litton, a vossa recepcionista provavelmente disse-lhe.

Sim, disse-me, o quadro do veado.

Gostava de o ver outra vez, se fosse possível. Vou voltar para os Estados Unidos
depois de amanhã e tenho de me decidir.

Mas com certeza!...

O quadro esperava pela decisão do senhor Cheeke, onde Marcus o tinha deixado,
encostado à parede do gabinete. Robert puxou o cavalete almofadado para o meio da
sala, voltou-o para a luz e colocou cuidadosamente o Ben Litton em posição. Era um
quadro grande, um óleo de três veados numa floresta. A luz filtrava através dos
ramos vagamente sugeridos e o artista tinha utilizado uma quantidade de branco que
dava à obra uma qualidade etérea. Mas a sua característica mais interessante era o
facto de ter sido pintado, não em tela esticada, mas em juta, e a tecedura mais
grosseira daquele têxtil tinha borratado a pincelada do artista, como os contornos de
uma fotografia de acção tirada a alta velocidade.

O americano colocou a cadeira em posição e virou o reflexo frio dos seus óculos
para o quadro. Discretamente Robert retirou-se para não interferir de forma alguma
na avaliação do senhor Cheeke e a sua própria visão do quadro foi obscurecida pela
cabeça redonda e de cabelo curto do seu potencial cliente. Pessoalmente, gostava do
quadro. Não era admirador de Ben Litton. Achava que a sua obra era afectada e nem
sempre fácil de compreender um reflexo, talvez, da própria personalidade do artista.
Mas aquela instantânea impressão silvana era uma coisa a considerar, com que se
tinha de viver e de que nunca nos poderíamos cansar.

O senhor Cheeke levantou-se da cadeira, aproximou-se do quadro, examinou-o com


minúcia, deu mais um passo atrás e acabou por se encostar à secretária de Robert.
23
Senhor Morrow, em que é que supõe que Litton se inspirou para o pintar numa saca?
pergunta ele, sem se voltar.

A palavra ”saca” deu a Robert uma grande vontade de rir. Apeteceu-lhe dizer com
irreverência, ”provavelmente tinha um saco velho por perto”, mas não lhe pareceu
que o senhor Cheeke apreciasse a irreverência. O senhor Cheeke estava ali para
gastar dinheiro sempre era um negócio sério. Robert concluiu então que ele estava a
comprar o Litton como um investimento que esperava viesse a ser compensatório.

O negociante de arte retorquiu:

Lamento, mas não faço ideia, senhor Cheeke. Contudo, isso confere uma qualidade
muito invulgar à obra.

O senhor Cheeke virou a cabeça para lançar a Robert um sorriso frio por cima do
ombro.

O senhor não está tão bem informado sobre esses aspectos como o senhor Bernstein.

Pois não concordou Robert. Lamento, mas não estou.

O senhor Cheeke voltou a cair em contemplação. O silêncio instalou-se e prolongou-


se. A concentração de Robert começou a vaguear e a acusar a interferência de
pequenos sons. O tiquetaque do seu próprio relógio de pulso. Um murmúrio de
vozes do lado de lá da porta. O ruído troante, como uma rebentação longínqua, que
era o trânsito de Piccadilly.

O americano suspirou impaciente. Começou a remexer nos bolsos, um a um, à


procura de qualquer coisa. Um lenço, talvez. Trocos para voltar de táxi para o
Hilton. A sua atenção tinha-se dispersado. Robert não o conseguira convencer de que
o Litton valia a pena ser comprado. Ia arranjar uma desculpa qualquer e sair.
24
Mas o senhor Cheeke estava simplesmente à procura de uma caneta. Quando ele se
voltou, Robet viu que já tinha na outra mão o livro de cheques.

Depois de feito o negócio, o senhor Cheeke descontraiu-se. Tornou-se bastante


humano e até tirou os óculos, que guardou numa carteira de couro. Aceitou uma
bebida, sentou-se durante algum tempo na companhia de Robert, frente a dois copos
de xerez, e a conversar sobre Marcus Bernstein, Ben Litton e os dois ou três quadros
que o senhor Cheeke tinha comprado na sua última visita a Londres, que
constituíam, juntamente com a sua mais recente aquisição, o núcleo de uma pequena
colecção particular. Robert falou-lhe da exposição retrospectiva de Ben Litton que ia
ter lugar em Queenstown, na Virgínia, o senhor Cheeke anotou-a na sua agenda,
depois levantaram-se, Robert ajudou o senhor Cheeke a vestir o impermeável,
restituiu-lhe o chapéu e despediram-se com um aperto de mão.

Tive muito gosto em conhecê-lo e em negociar consigo, senhor Morrow.

Espero que nos venha visitar da próxima vez que vier a Londres.

Virei, com certeza.

Robert abriu a porta e saíram para a galeria. A Galeria Bernstein tinha em exposição,
durante apenas duas semanas, uma colecção de pinturas de pássaros e de animais de
um sul-americano desconhecido com um nome impronunciável. Um homem de
origens humildes que, sem se saber bem como, nem quando, incrivelmente, tinha
aprendido sozinho a pintar. Marcus conhecera-o no ano anterior em Nova Iorque,
ficara de imediato impressionado com a sua obra e convidara-o no mesmo momento
a fazer uma exposição em Londres. Agora, os seus quadros brilhantes ocupavam as
paredes verde-seco da Bernstein e, naquela manha sombria,
25
pareciam encher a sala com a verdura e o sol de um clima mais salubre. Os críticos
tinham-no adorado. Desde que a exposição abrira, há dez dias, que a galeria não
tinha estado vazia uma única vez e dentro de vinte e quatro horas não haveria um
quadro que não tivesse sido vendido.

Naquele momento, no entanto, só havia três pessoas na galeria. Uma delas era
Peggy, eficiente e discreta por trás da sua secretária em forma de rim, ocupada com
as provas de um novo catálogo. Outra era um homem de chapéu preto, atarracado
como um corvo, que dava uma volta lenta de inspecção. A terceira era uma rapariga
que estava sentada de frente para a porta do gabinete, no sofá circular do meio da
sala. Vestia um fato verde-vivo de calça e casaco, estava rodeada de bagagens e
parecia ter entrado na Galeria Bernstein por lhe ter parecido tratar-se da sala de
espera de uma estação de comboios.

Robert, com considerável serenidade, conseguiu comportar-se como se ela ali não
estivesse. Ele e o senhor Cheeke atravessaram o tapete espesso na direcção da porta
principal, Robert de cabeça inclinada para apanhar os restos de conversa banal do
senhor Cheeke. As portas de vidro abriram-se e fecharam-se por trás deles e foram
engolidos na escuridão da manhã sombria.

Emma Litton perguntou:

É aquele o senhor Morrow?

Peggy levantou os olhos.


Emma não estava habituada a ser ignorada. Aquele único olhar rápido fê-la sentir-se
pouco à vontade. Desejou que Marcus não estivesse em Edimburgo. Cruzou as
pernas e voltou a descruzá-las. Do exterior veio o som do arrancar do

táxi. Um momento depois, a porta de vidro abriu-se e mais

26
uma vez Robert Morrow voltou a entrar na galeria. Não fez qualquer comentário,
pôs simplesmente as mãos nos bolsos e observou com calma Emma e o caos que a
rodeava.

Ela pensou que nunca tinha visto um homem que se parecesse menos com um
negociante de arte. Tinha o tipo de rosto que, exausto e de barba por fazer, é ajudado
a sair de um pequeno barco à vela no final de uma viagem solitária de volta ao
Mundo; ou de óculos escuros, olha para baixo do cimo de uma montanha nunca
antes explorada. Mas ali, no ambiente sofisticado e rarefeito da Galeria Bernstein, é
que ele não se enquadrava de maneira nenhuma. Era muito alto, de ombros largos e
pernas compridas; tudo isto enfatizado, e, no entanto, tornado incongruente, pelo seu
fato cinzento-escuro de corte impecável. Na sua juventude devia ter sido ruivo, mas
os anos tinham-lhe suavizado a cor do cabelo para um castanho-alourado e, em
contraste, os seus olhos cinzentos pareciam pálidos como aço. Tinha as maçãs do
rosto altas e um maxilar comprido e teimoso, e ela achou graça à descoberta de
como um tal conjunto de traços podia ser tão atraente. Depois lembrou-se de que
Ben costumava dizer que o carácter de um homem reside não nos olhos, onde as
emoções são fugazes e podem sempre ser mascaradas, mas na forma física da sua
boca, e a boca daquele homem era larga, com um lábio de baixo saliente, e parecia
naquele momento estar a tentar muito não se rir.

O silêncio tornou-se desconfortável. Emma tentou um sorriso. Saudou.

Olá!

À procura de um esclarecimento, Robert Morrow voltou-se para Peggy. Peggy


estava divertida.

Esta jovem quer falar com o senhor Bernstein. Ele informou.

Lamento muito, mas o senhor Bernstein está em Edimburgo.


27
Pois, eu sei, já me disseram isso. Mas a questão é que eu só queria que ele me
trocasse um cheque. Ele ficou mais perplexo do que nunca. Emma decidiu que
estava na altura de se explicar. Eu sou Emma Litton. Filha de Ben Litton.

A perplexidade dele desfez-se.

Mas porque carga de água não disse logo? Peço desculpa, não fazia a menor ideia.
Avançou para ela. Como está...

Emma levantou-se. O chapéu de palha, que estivera em cima do seu joelho, voou
para o chão alcatifado e aí ficou, contribuindo para a confusão que ela já tinha
lançado na sala elegantemente decorada.

Apertaram as mãos.

Eu... Não havia nenhuma razão por que devesse saber quem eu era. E peço imensa
desculpa por esta desarrumação toda, mas estou fora do país há seis anos e é por isso
que é tanta coisa.

Pois, estou a ver. Emma estava embaraçada.

Se fizer o favor de me trocar um cheque volto a tirar tudo do caminho num instante.
Só quero o suficiente para voltar para Porthkerris. Sabe, é que me esqueci de trocar
libras quando estava em Paris e acabaram-se-me os cheques de viagem.

Ele franziu o sobrolho.

Mas como é que conseguiu chegar até aqui? Quero dizer, do aeroporto?

Ah! Ela já se tinha esquecido. Oh, vinha um senhor simpático no avião que me
ajudou a carregar as coisas em Lê Bourget e depois a descarregá-las em Londres e
que me emprestou uma libra. Vou ter de a devolver. Tenho a morada dele aqui...
algures. Procurou vagamente nos
28
bolsos, mas não conseguia encontrar o cartão do homem. Bom, de qualquer modo
tenho-o num sítio qualquer. Ela voltou a sorrir, na esperança de desarmá-lo.

E quando é que vai para Porthkerris?

Há um comboio ao meio-dia e meia, penso. Ele olhou para o relógio.

Já perdeu esse. Quando é o próximo?

Emma pareceu ficar desorientada. Peggy entrou na conversa do seu modo


habitualmente educado e prático.

Penso que há um às duas e meia, senhor Morrow, mas posso confirmar.

Sim, faça isso, Peggy. O das duas e meia está bem para si?

Sim, claro. A hora a que vou chegar não tem importância.

O seu pai está à sua espera?

Bom, eu escrevi-lhe uma carta a dizer que vinha. Mas isso não quer dizer que esteja
à minha espera...

Aí ele sorriu.

Pois. Bem... ele voltou a olhar para o relógio. Era meio-dia e um quarto. Peggy já
estava ao telefone a saber horários de comboios. Os seus olhos voltaram à confusão
das malas. Num fraco esforço para melhorar a situação, Emma baixou-se e apanhou
o seu chapéu de sol.

Ele sugeriu:

Penso que o melhor seria tirar isto do caminho... Vamos pôr tudo no gabinete e
depois... Já comeu alguma coisa?

Tomei café no Lê Bourget.

Se vai no das duas e meia, há tempo para lhe dar de almoço antes de ir.

Oh, não precisa de se incomodar.

Não é incómodo nenhum. Eu, de qualquer modo, tenho de almoçar e pode muito
bem almoçar comigo Vamos

29
Ele agarrou em duas malas e foi à frente para o gabinete. Emma agarrou o que pôde
e seguiu-o. O quadro do veado ainda estava no cavalete. Ela viu-o imediatamente
com prazer.

É um quadro do Ben.

É. Acabo de o vender...

Ao homenzinho da gabardina? É bom, não é? Ela continuou a admirá-lo, enquanto


Robert amontoava o resto da bagagem dela. Porque é que ele o pintou em
serapilheira?

É melhor perguntar-lhe quando o vir logo à noite. Ela voltou-se e sorriu-lhe por cima
do ombro.

Pensa que é influência da escola japonesa?

Gostava de me ter lembrado de responder isso ao senhor Cheeke retorquiu Robert.


Bom, está pronta para almoçar?

Ele tirou um enorme guarda-chuva preto de um bengaleiro, desviou-se para Emma


sair na frente dele e deixaram Peggy de guarda ao forte, sentada numa galeria que
regressara mais uma vez à sua calma ordeira habitual. Saíram para a chuva e
caminharam juntos debaixo do guarda-chuva, abrindo caminho com os ombros por
entre a multidão da hora do almoço de Kent Street, Londres, W. 1.

Levou-a ao restaurante do Marcello, onde normalmente almoçava quando não tinha


de acompanhar um cliente que tivesse feito uma compra importante. Marcello era
um italiano que tinha um pequeno restaurante de primeiro andar a duas ruas da
Galeria Bernstein, e havia uma mesa permanentemente reservada para Marcus ou
Robert, ou para ambos, nas raras ocasiões em que conseguiam almoçar juntos. Era
uma mesa modesta, num canto sossegado. Mas, nesse dia, quando Robert e Emma
chegaram ao cimo das escadas, Marcello olhou para ela, com a sua longa juba de
cabelo

30
O OUTRO LADO DO AMOR

preto e o seu fato verde de calça e casaco e sugeriu que talvez preferissem sentar-se
ao pé da janela. Robert achou graça.

Gostava de se sentar ao pé da janela? perguntou a Emma.

Onde é que se costuma sentar? Ele indicou a pequena mesa de canto. Bom, porque é
que não nos sentamos simplesmente nessa?

Marcello ficou encantado com ela. Foi à frente até à mesa mais pequena, segurou na
cadeira de Emma, deu a cada um uma enorme ementa escrita a vermelho duvidoso e
foi buscar dois copos de Tio Pepe, enquanto eles decidiam o que iam comer.

Robert disse:

Devo ter subido muitos pontos na consideração de Marcello. Acho que nunca trouxe
aqui uma rapariga para almoçar.

Quem é que costuma trazer?

Costumo vir sozinho. Ou com o Marcus.

Como está o Marcus? A voz dela era quente.

Está bem. Vai ter pena de não a ter visto, já sei.

A culpa é minha. Devia ter escrito a dizer que vinha. Mas como provavelmente já
percebeu, nós, os Litton, não somos peritos em dizer coisas às pessoas.

Mas sabia que o Ben tinha voltado para Porthkerris.

Pois sabia. O Marcus escreveu a dizer-me isso. E sei tudo sobre a exposição
retrospectiva, porque li um artigo na Realties. Ela forçou um sorriso. Ser filha de um
pai famoso tem as suas compensações. Mesmo que a única coisa que ele faça seja
mandar telegramas, pode sempre saber-se o que lhe está a acontecer num jornal ou
noutro.

Quando é que o viu pela última vêz?

31
Oh! Ela encolheu os ombros. Há dois anos. Eu estava em Florença e ele passou por
lá a caminho do Japão.

Não sabia que se passava por Florença quando se ia para o Japão.

Passa-se, se por acaso se tem uma filha a viver lá. Ela pôs os cotovelos em cima da
mesa e apoiou o queixo na mão. Suponho que nem sequer sabia que o Ben tinha
uma filha.

Claro que sabia.

Bom, eu não sabia que você existia. Quero dizer, não sabia que o Marcus tinha um
sócio. Ele ainda estava a trabalhar sozinho quando o Ben foi para o Texas e eu fui
embalada para a Suíça.

Foi mais ou menos por essa altura que eu comecei a trabalhar na Galeria Bernstein.

Eu... nunca conheci ninguém que se parecesse menos com um negociante de arte.
Quero dizer, menos do que você.

Talvez isso seja simplesmente porque eu não sou um negociante de arte.

Mas... acaba de vender um quadro do Ben àquele homem.

Não corrigiu-a ele. Eu limitei-me a aceitar o cheque. O Marcus já lho tinha vendido
há uma semana, mas nem o senhor Cheeke se apercebeu disso.

Mas deve saber alguma coisa sobre pintura.

Bom, sei. Não seria possível trabalhar com o Marcus estes anos todos sem se ser
contagiado pelo seu conhecimento ilimitado. Mas eu sou basicamente um homem de
negócios e foi por isso que o Marcus me convidou para trabalhar com ele.

Mas o Marcus é o homem de negócios mais bem-sucedido que eu conheço.


32
Exactamente. Tão bem-sucedido que a galeria se tornou um empreendimento grande
de mais para ele tratar sozinho.

Emma continuava a observá-lo com um ligeiro franzir de sobrolho entre as suas


sobrancelhas espessas.

Mais perguntas?

Ela não ficou desconcertada.

Foi sempre um grande amigo do Marcus?

O que me quer realmente perguntar é porque é que ele me trouxe para a firma. E a
resposta é que o Marcus é meu sócio e meu cunhado. É casado com a minha irmã
mais velha.

Quer dizer que a Helen Bernstein é sua irmã?

Lembra-se da Helen?

Claro que me lembro. E do pequeno David. Como é que eles estão? É capaz de lhes
mandar saudades minhas? Sabe, eu costumava ficar em casa deles quando o Ben
vinha a Londres e não havia ninguém com quem me deixar em Porthkerris. E
quando eu fui para a Suíça foram o Marcus e a Helen que me levaram ao avião,
porque o Ben já tinha ido para o Texas. É capaz de dizer à Helen que eu voltei e que
me deu de almoçar?

Sim, claro que digo.

Eles ainda têm aquele pequeno apartamento em Brompton Road?

Não. Na verdade, quando o meu pai morreu eles foram viver comigo. Vivemos todos
na nossa antiga casa de família, em Kensington.

Quer dizer que vivem todos juntos?

Juntos e separados. O Marcus, a Helen e o David vivem nos dois primeiros andares,
a governanta do meu pai na cave e eu no sótão.

Não é casado?

33
Momentaneamente ele pareceu incomodado.

Bem, não, não sou.

Eu tinha a certeza de que era casado. Tem ar de homem muito casado.

Não sei bem o que hei-de pensar disso.

Oh, não tem qualquer intenção depreciativa. Pelo contrário, é um elogio. Só queria
que o Ben tivesse esse aspecto. Tornava a vida muito mais fácil a todos os
implicados. Especialmente a minha.

Não quer voltar a viver com ele?

Quero, claro que quero. Mais do que tudo. Mas não quero que isso seja um fracasso.
Eu nunca me dei muito bem com ele e suponho que não estou muito melhor.

Então porque é que vai?

Bom... Sob o olhar frio e cinzento de Robert Morrow era difícil ser coerente. Ela
pegou num garfo e começou a fazer desenhos na toalha branca de damasco. Não sei.
Só se tem uma família. Se as pessoas têm laços de parentesco, deviam, pelo menos,
conseguir viver juntas. Eu quero ter alguma coisa para recordar. Quando for velha,
quero ser capaz de recordar que uma vez, mesmo que tenha sido apenas por algumas
semanas, eu e o meu pai tivemos um tipo qualquer de vida juntos. Parece-lhe uma
coisa muito disparatada?

Não, não me parece nada disparatado, mas penso que pode ficar desapontada.

Eu aprendi tudo sobre o que é ficar desapontado quando era miúda. É um luxo sem o
qual posso muito bem passar. Além disso, planeio ficar apenas até se tornar
dolorosamente óbvio que não conseguimos suportar a companhia um do outro nem
mais uma hora.

Ou disse Robert com brandura até ele preferir a companhia de outra pessoa qualquer.

Emma levantou a cabeça, dos seus olhos saiu uma súbita chama furiosa de azul. Fria
era, naquele instante, o pai na

34
sua faceta mais sem escrúpulos, quando não havia resposta suficientemente cruel ou
cortante a dar. Mas a sua raiva não provocou nenhuma reacção e, depois de uma
pausa fria, voltou a baixar os olhos e continuou a fazer desenhos na toalha, dizendo
apenas:

Está bem. Até essa altura.

A pequena tensão foi quebrada pelo retorno de Marcello, que trazia o xerez e vinha
preparado para tomar nota do pedido. Emma escolheu ostras e frango frito; Robert,
mais conservador, um caldo de carne e um bife. Depois, aproveitando a interrupção,
mudou habilmente de assunto.

Fale-me de Paris. Como é que estava Paris?

Molhada, fria e soalheira ao mesmo tempo. Isso diz-lhe alguma coisa?

Diz-me tudo.

Conhece Paris?

Costumo lá ir em negócios. Estive lá o mês passado.

Em negócios?

Não, quando voltava da Áustria. Tive três semanas esplêndidas a fazer esqui.

Para onde foi?

Para Obergurgl.

Então é por isso que está tão bronzeado. Essa é uma das razões por que não parece
um negociante de arte.

Talvez quando o bronzeado desaparecer eu pareça mais autêntico e consiga preços


mais altos. Esteve em Paris durante quanto tempo?

Dois anos. Vou ter saudades. É tão bonito, e agora, que todos os edifícios foram
limpos, ainda mais. Não sei bem porquê, mas nesta altura do ano há uma sensação
especial em Paris. A sensação de que o Inverno está quase a acabar, de que o sol está
apenas a um dia de distância e de que vai ser Primavera outra vez...
35
Os botões a abrir e o grito das gaivotas, pairando sobre as águas calmas e castanhas
do Sena. E os barcos, em fila como colares, deslizando por baixo das pontes. E o
cheiro do Metro, de alho e de Gauloises. E estar com Christopher.

Subitamente tornou-se importante falar sobre ele, dizer o nome dele, ter outra vez a
certeza da existência dele. Ela disse, casualmente:

Não conheceu a Hester, pois não? A minha madrasta? Pelo menos durante ano e
meio foi minha madrasta.

Ouvi falar dela.

E do Christopher? O filho dela? Ouviu falar do Christopher? É porque, por puro


acaso, eu e o Christopher voltámos a encontrar-nos em Paris. Só há dois dias. E ele
veio trazer-me esta manhã ao Lê Bourget.

Quer dizer... que se encontraram por acaso?...

Sim, foi isso mesmo... numa mercearia. Só podia acontecer em Paris.

O que é que ele estava lá a fazer?

Oh, a passar tempo. Tinha estado em St. Tropez, mas volta para Inglaterra em Março
para trabalhar num teatro de repertório qualquer.

É actor?

É. Eu não lhe disse? Só há uma coisa... Não vou dizer nada ao Ben. Sabe, o Ben
nunca gostou do Christopher e também penso que o Christopher não morria de
amores por ele. Para falar verdade, acho que tinham ciúmes um do outro. Mas
também havia outras coisas e o Ben e a Hester não se separaram propriamente nos
termos mais amigáveis. Não quero começar por ter uma discussão com o Ben sobre
o Christopher, por isso não vou dizer nada. Pelo menos para já.

Estou a ver. Emma suspirou.

36
Está com uma expressão de enfado. Pensa, obviamente, que estou a ser fingida.

Não penso nada disso. E quando acabar de fazer desenhos na toalha, as ostras
chegaram.

Quando acabaram de almoçar, de beber o café e de Robert pagar a conta, era uma e
meia. Levantaram-se da mesa, despediram-se de Marcello, agarraram no grande
guarda-chuva preto e desceram as escadas. Voltaram à Galeria Bernstein e pediram
ao porteiro que chamasse um táxi para Emma.

Eu ia levá-la ao comboio, mas a Peggy tem de ir almoçar.

Não se preocupe.

Ele levou-a ao gabinete e abriu o cofre.

Vinte libras chegam?

Ela já se tinha esquecido da razão que a levara à galeria.

O quê? Ah, sim, claro...

Ela começou à procura do livro de cheques, mas Robert impediu-a.

Não se incomode. O seu pai tem uma espécie de fundo para pequenas despesas
connosco. Está sempre a ficar sem trocos quando está em Londres. Juntamos-lhe as
suas vinte libras.

Bem, se tem a certeza...

Claro que tenho a certeza. Emma, há outra coisa. O homem que lhe emprestou a
libra. Tem a morada dele algures? Se a encontrar e ma der agora, eu arranjo maneira
de lha devolver.

Emma achou graça. Enquanto procurava o cartão, encontrou-o, por fim, misturado
com um bilhete de autocarro francês e uma caixa de fósforos. Então começou-se a
rir, e quando Robert lhe perguntou qual era a piada, respondeu simplesmente:

- Conhece tão bem o meu pai!


37
Parou de chover à hora do chá. Houve um subtil levantar do tempo e havia uma
frescura no ar. Um raio de sol errante chegou a entrar na galeria e pelas cinco e
meia, quando Robert fechou o gabinete e saiu para se juntar à torrente de
humanidade a caminho de casa na hora de ponta, descobriu que uma pequena brisa
tinha surgido e afastado as nuvens, deixando a cidade a cintilar sob um limpo e
pálido céu azul.

Era de mais para ele enfiar-se no sufoco subterrâneo do metro, por isso foi andando
até Knightsbridge e aí apanhou um autocarro para fazer o resto do caminho para
casa.

A sua casa em Milton Gardens era separada da artéria movimentada de Kensington


High Street por um labirinto de pequenas ruas e largos, uma zona agradável de casas
do princípio da era vitoriana em miniatura, pintadas de creme, com portas da frente
lustrosas e pequenos jardins que no Verão floresciam com lilases e magnolias. As
ruas tinham passeios largos, onde amas empurravam carrinhos de bebé, criancinhas
bem vestidas caminhavam para as suas escolas caras e os cães eram rigorosamente
exercitados. Depois disto, Milton Gardens aparecia como uma espécie de desilusão.
Era uma correnteza de casas grandes e antigas, e o número vinte e três, que era a de
Robert, a casa do centro e coroada com o frontão principal da correnteza, parecia
frequentemente a mais antiga, tinha uma porta da frente preta, dois

39
loureiros secos em vasos e uma caixa do correio de latão que Helen tinha sempre
intenção de polir, mas que com frequência se esquecia. Os carros da família estavam
estacionados à beira do passeio um grande Alvis coupé verde-escuro de Robert e um
Mini vermelho e empoeirado de Helen. Marcus não tinha carro, porque nunca tivera
tempo de aprender a conduzir.

Robert subiu os degraus, procurando no bolso a chave. Entrou. O vestíbulo era


grande e espaçoso, umas escadas surpreendentemente largas e de degraus baixos
subiam em curva para o primeiro andar. Depois das escadas, o vestíbulo continuava
por um corredor estreito que conduzia a uma porta envidraçada, a qual dava para o
jardim. Aquela visão sedutora de erva distante e de nogueiras banhadas pelo sol dava
a impressão imediata de se estar no campo e era um dos aspectos mais cativantes da
casa.

A porta da frente fechou-se ruidosamente atrás dele. Da cozinha, a sua irmã Helen
chamou-o.

Robert.

Olá!

Ele atirou o chapéu para cima da mesa do vestíbulo e entrou pela porta do lado
direito. Antigamente aquela sala, que tinha vista para a rua, fora a sala de jantar da
família, mas quando o pai de Robert morrera e Marcus, Helen e David se tinham
mudado para lá, Helen transformara-a numa cozinha e sala de refeição, com uma
mesa de madeira de carvalho, um guarda-louça de pinho a abarrotar de louça da
China e um balcão, como o de um bar, por trás do qual ela podia trabalhar. Havia
também muitas plantas em vasos, gerânios por todo o lado, ervas, marmitas de
bolbos. Resmas de cebolas, cestos pendurados em ganchos, livros de receitas,
suportes com colheres de madeira e o tom alegre de tapetes e almofadas de cores
vivas.
40
Helen estava atrás do seu balcão, com um avental de carniceiro azul e branco a tirar
a pele a cogumelos. O ar estava impregnado de cheiros fragrantes de assado, limões,
manteiga aquecida e uma leve sugestão de alho. Era uma cozinheira excepcional.

Ela disse:

O Marcus telefonou de Edimburgo. Vem para casa esta noite. Sabias?

A que horas?

Há um avião às cinco e um quarto. Ele ia tentar arranjar lugar nesse. Chega ao


terminal às sete e meia.

Robert puxou um banco alto para o pé do balcão e sentou-se nele, como se estivesse
num bar.

Ele quer que eu o vá buscar ao aeroporto?

Não, vem de autocarro. Eu pensei que um de nós podia ir buscá-lo. Jantas em casa
ou não esta noite?

Cheira tão bem. Acho que janto em casa.

Ela sorriu. De frente um para o outro ao pé do balcão, a semelhança familiar entre


eles era muito marcada. Helen era uma mulher grande, alta e forte de osso, mas
quando sorria o seu rosto e os seus olhos acendiam-se como os de uma menina. O
cabelo, como o de Robert, era arruivado, mas suavizado por madeixas de cinzento e
usava-o penteado para trás e atado num carrapito, para revelar um pequeno e
inesperadamente perfeito par de orelhas. Orgulhava-se das suas bonitas orelhas e
usava sempre brincos. Tinha uma caixa cheia deles na gaveta do toucador e se não se
soubesse o que lhe dar de presente, comprava-se-lhe simplesmente um par de
brincos. Naquela tarde eram verdes, uma espécie de pedra semipreciosa qualquer,
incrustrada num fino fio de ouro trabalhado e a sua cor fazia sobressair as luzes
verdes dos seus olhos indeterminados e matizados.
41
Ela tinha quarenta e dois anos, era seis anos mais velha do que Robert e estava
casada com Marcus Bernstein havia dez. Antes disso tinha trabalhado para ele, como
secretária, recepcionista, guarda-livros e, em alturas em que as finanças andavam
tremidas, também como empregada de limpeza. E fora tanto devido aos seus
esforços como à fé em Marcus que a galeria não só tinha sobrevivido às dificuldades
iniciais como progredira até atingir a sua presente reputação internacional.

Robert perguntou:

O Marcus disse-te alguma coisa... sobre como correram os negócios?...

Não disse grande coisa, não houve tempo. Mas o velho lorde Glens, quem quer que
seja, tem três Raeburns, um Constable e um Turner. O que é coisa para vos dar a
todos que pensar.

Ele quer vendê-los?

Aparentemente. Ele diz que ao preço actual do uísque não pode continuar a dar-se ao
luxo de os ter pendurados na parede. De qualquer modo, vamos saber tudo sobre
isso quando o Marcus voltar. E tu... o que é que fizeste hoje?...

Nada de mais. Foi lá um americano chamado Cheeke que passou um cheque por um
Ben Litton...

Óptimo.

E... observou o rosto da irmã. Emma Litton voltou.

Helen tinha começado a cortar os cogumelos. Mas, de repente, olhou para cima e as
suas mãos pararam.

Emma? Queres dizer a Emma do Ben?

Chegou hoje de Paris. Veio à galeria buscar dinheiro suficiente para ir para
Porthkerris.

O Marcus sabia que ela ia voltar?

Não, acho que não. Acho que ela não escreveu a mais ninguém a não ser ao pai
42
É claro que o Ben não ia dizer uma palavra. Helen fez uma cara exasperada. Às
vezes apetecia-me estrangular aquele homem.

Robert estava a achar graça.

O que é que terias feito se soubesses que ela vinha?

Bom, ia esperá-la ao aeroporto. Dava-lhe almoço. Fazia qualquer coisa.

Se te servir de consolação, dei-lhe almoço.

Óptimo, fizeste bem. Ela cortou outro cogumelo, pensando nisso. Como é que ela é
agora?

Atraente, de uma forma muito invulgar.

Invulgar repetiu Helen secamente. Dizeres-me que ela é invulgar não é nada que eu
não saiba.

Robert pegou num pedaço de cogumelo cru e mastigou-o, a experimentar.

Sabes alguma coisa sobre a mãe dela?

Claro que sei.

Helen apressou-se a salvar os seus cogumelos, levando-os para fora do alcance dele,
para o fogão, onde havia uma frigideira ao lume com margarina derretida. Com
outro movimento hábil, deitou os cogumelos na margarina, ouviu-se frigir e sentiu-
se um cheiro delicioso. Ela ficou ao pé do fogão, mexendo os cogumelos com uma
espátula de madeira, o perfil salientando as suas feições vincadas.

Quem era?

Oh, uma estudantezinha de arte com metade da idade do Ben. Era muito bonita.

Ele era casado com ela?

Era. Penso que, à maneira dele, gostava muito dela. Mas ela não passava de uma
criança.

Ela deixou-o?
Não, morreu no parto de Emma.

E depois, mais tarde, ele casou com uma Hesier.


43
Helen virou-se para olhar para ele, de olhos semicerrados.

Como é que sabes?

Disse-me Emma hoje ao almoço.

Bem, eu cá não disse! Foi a Hester Ferris. Isso foi há muitos anos.

Mas havia um rapaz. Um filho. Chamado Christopher?

Não me digas que ele apareceu outra vez.

Porque é que ficaste tão alarmada?

Também tu ficavas se tivesses passado por aquele ano e meio em que o Ben Litton
esteve casado com a Hester...

Conta-me.

Oh, foi uma coisa alucinante. Para o Marcus, para o Ben... Suponho que para a
Hester e, de certeza, para mim. Quando o Marcus não estava a ser arrastado para
arbitrar uma sórdida briga doméstica qualquer, estava a ser bombardeado com
continhas ridículas que a Hester dizia que o Ben se recusava a pagar. E, depois,
sabes daquela fobia do Ben em relação aos telefones; a Hester pôs um lá em casa e o
Ben arrancou-o. A seguir o Ben entrou numa espécie de bloqueio mental qualquer e
não conseguia trabalhar, passava o tempo todo no pub lá do sítio, a Hester não
largava o Marcus e dizia que ele tinha de lá ir porque era a única pessoa que fazia
alguma coisa do Ben, e etc. O Marcus envelheceu a olhos vistos. Acreditas?

Acredito. Mas não vejo o que é que isso tem a ver com o miúdo.

O miúdo era um dos pomos da discórdia. O Ben não conseguia suportá-lo.

Emma disse que ele tinha ciúmes.

Ela disse isso? Ela sempre foi uma criança muito perceptiva. Eu suponho que, de
certa forma, o Ben tinha ciúmes
44
do Christopher, mas o Christopher era um demónio. Parecia um santo, mas a mãe
estragava-o com mimos. Ela retirou a frigideira com os cogumelos do lume e voltou
para junto dele, apoiando os cotovelos no balcão. O que é que a Emma disse sobre o
Christopher?

Só que se tinham encontrado em Paris.

O que é que ele estava lá a fazer?

Não sei. Suponho que de férias. É actor. Sabias?

Não, mas acredito perfeitamente. Ela falou dele de olho brilhante?

Eu diria que sim. A não ser que fosse de estar a pensar em voltar a ir viver com o
pai.

Isso é a última coisa do mundo por que ela ficaria de olhos a brilhar.

Eu sei. Mas quando comecei a falar disso, ela ia-me fuzilando com os olhos.

Ah, pois. Eles são tão leais um ao outro como os ladrões. Ela deu-lhe uma
palmadinha na mão. Não te deixes envolver, Robert. Eu não suportaria a tensão.

Eu não estou envolvido, estou simplesmente intrigado.

Bom, para tua própria paz de espírito, segue o meu conselho e mantém as coisas
nesses termos. E já que estamos a falar de envolvimentos, a Jane Marshall ligou à
hora do almoço e quer que lhe telefones.

O que é que ela quer, sabes?

Não disse. Só disse que ia estar em casa a partir das seis. Não te vais esquecer, pois
não?

Não, não me vou esquecer. Mas não te esqueças tu também de que a Jane não é um
envolvimento.

Não percebo do que é que estás à espera retorquiu Helen, que, pelo menos com o
irmão, nunca tivera papas na língua. Ela é encantadora, atraente e eficiente.
45
Robert não fez comentários e, exasperada pelo silêncio dele, ela continuou,
justificando-se:

Vocês têm tudo em comum: interesses, amigos, uma forma de estar na vida. Além
disso, um homem da tua idade já devia estar casado. Não há nada mais patético do
que um solteirão entradote.

Ela calou-se. Houve uma pausa. Robert disse educadamente:

Já acabaste?

Helen deu um profundo suspiro. Era inútil. Ela sabia, sempre soubera, que não havia
palavras que levassem Robert a fazer uma coisa que ele não escolhesse fazer. Ele
nunca tinha sido convencido a fazer nada na vida. O seu desabafo fora uma perda de
tempo e ela já estava arrependida.

Claro que acabei. E peço desculpa. Não tenho nada com isso nem direito nenhum de
me meter. Mas é que eu gosto da Jane e quero que tu sejas feliz. Não sei, Robert.
Não consigo perceber do que é que andas à procura.

Eu também não sei afirmou Robert. Sorriu para a irmã, passou a mão pela cabeça e
depois pela nuca, um gesto familiar de quando estava confuso ou cansado. Mas acho
que tem a ver com o que existe entre ti e o Marcus.

Bem, só espero que encontres antes de morreres de velho.

Ele deixou-a com os seus cozinhados, foi buscar o chapéu, agarrou no jornal da
tarde e num monte de cartas e subiu para o seu apartamento. A sala, que dava para o
grande jardim e para a nogueira, fora em tempos o quarto de brincar das crianças.
Tinha tecto baixo, era alcatifada, estava cheia de livros e mobilada com a maior
quantidade de coisas do pai que Robert tinha conseguido carregar escada acima. Pôs
o chapéu, o jornal e as cartas em cima de uma cadeira, foi ao guarda-louça amigo,
onde guardava as bebidas, e
46
serviu-se de um uísque com soda. Depois tirou um cigarro da caixa que estava em
cima da mesa da sala, acendeu-o e, agitando o copo, foi sentar-se à secretária,
levantou o auscultador e marcou o número de Jane Marshall.

Ela levou algum tempo a atender. Enquanto esperava, foi fazendo rabiscos no papel
mata-borrão com um lápis, olhou para o relógio, decidiu que tomaria um banho e
mudaria de roupa antes de ir buscar Marcus ao terminal de Cromwell Road. E, como
oferta de paz para Helen, levaria uma garrafa de vinho para baixo e bebê-lo-iam ao
jantar, os três, em volta da mesa de carvalho na cozinha de Helen, e,
inevitavelmente, falariam de trabalho. Descobriu que estava muito cansado e a
perspectiva de uma noite assim era reconfortante.

O sinal de chamada parou. Uma voz fria atendeu.

Fala Jane Marshall.

Ela atendia sempre o telefone daquela maneira, que Robert continuava a achar
gélida, embora soubesse qual era a razão. Aos vinte e seis anos, Jane, depois da
ruptura de um casamento e com um divórcio às costas, tinha-se visto obrigada a
ganhar a vida e acabara por montar um modesto negócio de decoração de interiores,
que dirigia da própria casa. Deste modo, um único número de telefone cumpria duas
funções e ela decidira há muito que era prudente tratar cada telefonema como um
negócio potencial até prova em contrário. Tinha explicado isso a Robert, quando ele
se queixara sobre a maneira frígida dela.

Não compreendes. Pode ser um cliente. E o que é que um cliente vai pensar se eu
atender o telefone com uma voz toda sexy e melada?

Não precisas de atender com voz sexy. Podes fazê-lo de uma forma agradável e
simpática. Porque não tentas? Estarias a derrubar paredes e a substituir cortinas e
colchas mais depressa do que imaginas.
47
Isso é o que pensas. Era mais provável ter de expulsar clientes a toque de picadela
de agulha.

Jane?...

Oh, Robert. A voz dela voltou de imediato ao seu tom normal, quente e obviamente
contente por ouvi-lo. Desculpa, a Helen deu-te o meu recado?

Ela pediu-me para te ligar.

É que pensei que... Olha, deram-me dois bilhetes para o ballet na sexta-feira. E La
Filie mal Gardée e eu pensei que talvez gostasses de vir. A não ser que vás sair ou
assim.

Ele olhou para a própria mão, a desenhar caixas, uma perspectiva perfeita, no bloco
de papel mata-borrão. Ouviu a voz de Helen. ”Vocês têm tudo em comum.
Interesses, amigos, uma forma de estar na vida.”

Robert?

Sim. Desculpa. Não, não vou sair e gostava muito de ir.

Comemos aqui primeiro?

Não, vamos comer fora. Eu reservo uma mesa.

Ainda bem que podes. Ele era capaz de jurar que ela estava a sorrir. O Marcus já
voltou?

Não, vou agora buscá-lo.

Cumprimentos para ele e para a Helen.

Está bem.

Até sexta-feira, então. Adeus.

Adeus, Jane.

Depois de ter pousado o auscultador não se levantou da secretária, continuou


sentado, o queixo apoiado na mão, dando os retoques finais à última caixa. Quando
estava acabada, pousou o lápis, alcançou a sua bebida e sentou-se, a olhar para o que
tinha desenhado, perguntando-se porque é que o desenho o fazia pensar numa longa
fila de malas
48
Marcus Bernstein saiu pelas portas de vidro do edifício do terminal parecendo, como
parecia sempre, um refugiado ou um músico de rua. O seu sobretudo bambo, o seu
chapéu preto fora de moda que, sem se saber bem como, tinha a aba virada para
cima, à frente, o rosto longo e vincado estava lívido de cansaço. Trazia a pasta a
abarrotar, mas a mala tinha vindo do aeroporto no porta-bagagens do autocarro e,
quando Robert o encontrou, estava pacientemente à espera dela ao pé do tapete
rolante circular.

Conseguia parecer ao mesmo tempo humilde e abatido e o cidadão comum teria


achado difícil acreditar que aquele homem modesto e simples era, na verdade, uma
influência poderosa no mundo da arte dos dois lados do Atlântico. Austríaco, tinha
deixado a sua Viena natal em 1937 e depois dos horrores de uma guerra repugnante
irrompera no mundo da arte do pós-guerra como uma chama viva. O seu
conhecimento e a sua percepção óbvias chamaram rapidamente a atenção e o seu
apoio a jovens artistas era um exemplo que outros negociantes se apressavam a
seguir. Mas o seu verdadeiro impacte junto do público aconteceu em 1949, quando
abriu a sua própria galeria, em Kent Street, com uma exposição de abstractos de Ben
Litton. Ben, que já era famoso pelas suas paisagens e retratos pré-guerra, havia
algum tempo que se encaminhava para esta nova técnica e a exposição de 1949 foi o
início de uma relação de trabalho e de uma amizade que amainava todas as
tempestades pessoais e desentendimentos. Também marcou o fim das lutas iniciais
de Marcus e o começo de um longo e lento caminho para o êxito.

Marcus!

Ele teve um pequeno estremecimento, voltou-se, viu Robert, que vinha na sua
direcção, e ficou surpreendido como se não esperasse que fossem ao seu encontro.

Olá, Robert. Foi muito amável da tua parte tere; vindo.

49
Após trinta anos em Inglaterra, o seu sotaque ainda era fortemente pronunciado, mas
Robert já não dava por ele.

Eu teria ido ao aeroporto, mas não tínhamos a certeza de apanhares o avião. Tiveste
um bom voo?

Estava a nevar em Edimburgo.

Por cá choveu o dia todo. Olha, lá vem a tua mala. Ele puxou-a do tapete rolante.
Anda, vamos embora...

No carro, enquanto estavam à espera que o sinal da Cromwell Road mudasse, ele
contou a Marcus que o senhor Lowell Cheeke tinha voltado à galeria para comprar o
Litton do veado. Marcus recebeu a informação com uma exclamação de
assentimento, dando a impressão de que soubera desde logo que a venda era
simplesmente uma questão de tempo. O sinal passou de vermelho a laranja, depois a
verde, o carro avançou e Robert disse:

E Emma voltou de Paris. Chegou de avião esta manhã. Não tinha libras e por isso foi
à galeria para te pedir que lhe trocasses um cheque. Dei-lhe almoço, vinte libras e
ela seguiu o seu caminho.

O seu caminho para onde?

Porthkerris e Ben.

Suponho que ele está lá.

Ela parecia pensar que ele lá estaria. Pelo menos por enquanto.

Pobre criança comentou Marcus.

Robert não respondeu e fizeram o resto do caminho em silêncio, cada um ocupado


com os próprios pensamentos. De volta a Milton Gardens, Marcus saiu do carro e
subiu os degraus, à procura da chave no bolso, mas antes que conseguisse encontrá-
la, Helen abriu a porta e a silhueta do marido, de sobretudo bambo e chapéu de
cómico, foi projectada contra a luz do vestíbulo.

50
Ela exclamou:

Olha que maravilha!

E porque ele era muito mais baixo do que ela, baixou-se para o abraçar, enquanto
Robert, que estava a tirar a mala de Marcus do porta-bagagens do Alvis, tentava
perceber porque é que eles nunca pareciam ridículos.

Parecia já ter escurecido havia muito tempo. Mas quando o comboio de Londres
chegou ao entroncamento onde Emma tinha de mudar para apanhar o de Porthkerris,
e ela saiu, descobriu que não estava escuro coisa nenhuma. O céu estava brilhante de
estrelas e a noite era fustigada por um vento irregular que cheirava a maresia.
Depois de descarregar toda a sua bagagem, ficou à espera, na plataforma, que o
expresso arrancasse, e, por cima dela, as folhas esfarrapadas de uma palmeira
matraqueavam desafmadamente ao sabor da agitação do vento.

O comboio partiu e ela viu o único carregador na plataforma oposta, ocupado, sem
pressas, com um carregamento de embrulhos. Quando, por fim, deu por ela, largou o
pegadouro do carro e gritou do outro lado das linhas:

Precisa de ajuda, não precisa?

Sim, por favor.

Ele saltou por cima dos carris para o lado de Emma e conseguiu juntar todas as
coisas dela nos dois braços. Depois Émma seguiu-o por cima dos carris e ele deu-lhe
a mão para a ajudar a subir para a outra plataforma.

Para onde vai?

Para Porthkerris.

Vai apanhar o comboio?

Vou.

O comboio mais pequeno esperava na única linha que percorria a costa para
Porthkerris. Emma parecia ser o único passageiro. Agradeceu ao carregador, deu-lhe
uma gorjeta

51
e sucumbiu num assento. A exaustão consumia-a. Nunca um dia lhe parecera tão
longo. Pouco depois, juntou-se-lhe uma mulher do campo com um chapéu castanho
como uma tigela. Talvez tivesse ido às compras, pois trazia um saco de couro aos
quadrados a abarrotar. Os minutos passavam e o único som audível era o barulho
surdo do vento a bater nas janelas fechadas do comboio. Por fim, a máquina deu um
único apito e partiram.

Era impossível não se sentir excitada à medida que placas de sinalização familiares
surgiam da escuridão, eram reconhecidas e depois passavam. Havia apenas dois
pequenos apeadeiros antes de Porthkerris; a seguir, por fim, o atalho íngreme que na
Primavera se enfeitava de primulas, depois o túnel, escuro como breu, a maré vazia
e as areias molhadas como cetim. Porthkerris era um ninho de luzes, a curva do
porto parecia ornada por um colar e as luzes dos barcos de pesca eram reflectidas
num labirinto de negro tremeluzente e água dourada.

Tinham começado a perder velocidade. A plataforma deslizava ao lado do comboio.


O nome ”Porthkerris” passou e ficou para trás. Por fim, pararam ao lado de um
anúncio de latão de pomada para sapatos que estava ali desde que Emma se
conseguia lembrar. A sua companheira, que não tinha dito uma única palavra durante
toda a viagem, levantou-se, abriu a porta e saiu com calma, desaparecendo na noite.
Emma ficou no meio da porta aberta, à procura de um carregador, mas o único
funcionário à vista estava na outra ponta do comboio, a gritar desnecessariamente,
”Porthkerris! Porthkerris!” Ela viu-o parar a falar com o condutor, puxar o boné para
trás e pôr as mãos nas ancas.

Havia um carro vazio ao pé do anúncio de pomada para sapatos. Emma carregou a


bagagem para cima dele e depois abandonou-o, levando apenas uma pequena mala.
Começou
52
a percorrer a plataforma. No gabinete do chefe da estação as luzes estavam acesas,
contagiavam o exterior de manchas amarelas e havia um homem sentado num banco
a ler um jornal. Emma estava a chegar ao pé dele, os seus passos ecoando nas lajes,
mas quando ela ia a passar ele pousou o jornal e disse o nome dela.

Emma parou e voltou-se devagar. Ele dobrou o jornal, levantou-se e a luz pareceu
transformar o seu cabelo branco num halo.

Pensei que nunca mais chegavas.

Olá, Ben cumprimentou Emma.

O comboio está atrasado ou eu percebi as horas todas mal?

Acho que não está atrasado. Talvez se tenha atrasado a partir do entroncamento.
Parece-me que esteve aí parado durante muito tempo. Como é que soubeste em que
comboio é que eu vinha?

Recebi um telegrama da Galeria Bernstein. ”Robert Morrow”, pensou Emma. ”Que


simpático.” Ben olhou para a mala dela. Não tens muita bagagem.

Tenho um carro cheio na outra ponta da plataforma. Ele virou-se para espreitar
vagamente na direcção que

Emma indicou.

Não importa. Vimos buscá-la noutra altura qualquer. Anda, vamos.

Mas alguém pode levá-la protestou Emma. Ou pode chover. É melhor dizermos ao
carregador.

O carregador por aquela altura já tinha terminado a sua conversa com o condutor da
máquina. Ben chamou a atenção dele e falou-lhe na bagagem de Emma.

Ponha-a num sítio qualquer, está bem? Vimos buscá-la amanhã.

53
Deu-lhe cinco xelins. O carregador respondeu:

Está bem, senhor Litton, não se preocupe, eu faço isso e continuou a percorrer a
plataforma a apitar, guardando o dinheiro no bolso do colete.

Bem disse outra vez, do que é que estamos à espera? Vamos, toca a andar.

Não houve qualquer sugestão de carro ou de táxi, iam simplesmente a pé para casa.
Fizeram-no através de uma série de atalhos estreitos, lanços de escadas empinadas e
ruas inclinadas que conduziam sempre colina abaixo, até, por fim, chegarem à
estrada do porto bem iluminada.

Emma, caminhando penosamente ao lado do pai, ainda carregando a mala que ele
não pensara em carregar por ela, lançou um prolongado olhar de lado a Ben. Era a
primeira vez que o via durante cerca de dois anos e pensou que nenhum homem
mudava tão pouco quanto ele. Não estava nem mais gordo nem mais magro. O seu
cabelo, que era branco como a neve desde que Emma se lembrava, não estava a ficar
ralo nem a cair. O seu rosto, fustigado por anos de trabalho ao sol, no exterior, ao pé
do mar, estava muito bronzeado e sulcado por linhas finas que nunca poderiam ser
descritas como nada tão prosaico como rugas. Dele, Emma tinha herdado as suas
maçãs do rosto salientes e o seu queixo anguloso, mas os seus olhos pálidos deviam
vir da mãe, pois os de Ben eram fundos, por baixo de sobrancelhas espessas e de um
castanho tão escuro que a certa luz pareciam pretos.

Nem mesmo as roupas dele pareciam ter mudado. O casaco bambo de bombazina, as
calças justas, os sapatos de camurça de uma elegância e antiguidade imensas não
poderiam ter pertencido a mais ninguém. Naquela noite, a camisa era de um tecido
de lã laranja desbotado e um lenço de algodão Paisley servia de gravata. Ele nunca
tivera um colete.
54
Chegaram ao pub dele, o Sliding Tackle, e Emma esperava, de certa forma, que ele
sugerisse que entrassem para tomar uma bebida. Ela não queria uma bebida, mas
estava esfomeada. Perguntou-se se haveria alguma comida em casa. Perguntava-se,
na verdade, se iam de facto para casa. Era perfeitamente possível que Ben estivesse
a viver no estúdio e esperasse que Emma se amanhãsse por lá com ele.

Disse a experimentar:

Não sei sequer para onde vamos.

Para casa, claro. Para onde é que imaginavas que fôssemos?

Não sabia. Estavam a salvo, já tinham passado o pub. Pensei que talvez estivesses a
viver no estúdio.

Não, tenho estado no Sliding Tackle. É a primeira vez que vou a casa.

Ah! exclamou Emma com ar sombrio.

Ele apreendeu a inflexão na voz dela e descansou-a.

Não há problema. Quando souberam no Sliding Tackle que vinhas, formou-se uma
autêntica delegação de senhoras ansiosas por prepararem o sítio para a tua chegada.
A mulher do Daniel acabou por tratar disso. Daniel era o empregado do bar. Ela
parecia pensar que depois destes anos todos estaria tudo coberto de bolor, como o
queijo Gorgonzola.

E estava?

Não, claro que não. Tinha umas quantas teias de aranha, talvez, mas perfeitamente
habitável.

Foi simpático da parte dela... Tenho de lhe agradecer.

Pois, acho que ela ia gostar.

A estrada empedrada subia íngreme do porto. As pernas cansadas de Emma doíam-


lhe. De súbito, e sem uma única palavra de explicação, Ben tirou-lhe a mala da mão.

- Que diabo tens tu aqui dentro?


55
Uma escova de dentes.

Pesa como chumbo. Quando partiste de Paris, Emma?

Esta manhã.

Parecia há uma eternidade.

E como é que a galeria soube disso?

Tive de lá ir buscar dinheiro. Libras. Deram-me vinte libras do teu fundo para
pequenas despesas. Espero que não te importes.

Estou-me nas tintas.

Passaram o estúdio dele, fechado e escuro.

Já começaste a pintar? perguntou Emma.

Claro que sim. Foi para isso que voltei.

E o trabalho que fizeste no Japão?

Deixei-o na América para a exposição.

Agora o ar estava cheio do som da rebentação e do espraiar das vagas na areia. No


enorme areal da praia. A praia deles. E depois o telhado desnivelado da casa surgiu,
iluminado pelo candeeiro da rua ao pé do portão azul. À medida que se
aproximavam, Ben procurou a chave no bolso do casaco, foi à frente de Emma,
entrou pelo portão, subiu os degraus, abriu a porta e entrou, acendendo as luzes à
medida que passava, de forma que num instante todas as janelas ficaram iluminadas.

Emma entrou a seguir, mais devagar. Viu imediatamente o brilho tremeluzente do


lume da lareira e a limpeza e ordem quase desumanas que a mulher de Daniel tinha
criado a partir do abandono. Tudo brilhava, fora tudo esfregado, caiado e polido ao
milímetro. As almofadas tinham sido enchidas e dispostas com precisão geométrica.
Não havia flores, mas a casa estava inundada por um forte cheiro de ácido carbólico.

Ben fungou e fez uma careta.

56
Como um maldito hospital disse. Tinha pousado a mala de Emma e desaparecia
agora na direcção da cozinha. Emma atravessou a sala e ficou ao pé do lume,
aquecendo as mãos ao calor. Cautelosamente, estava a sentir-se mais esperançada.
Tinha receado não haver boas-vindas. Mas Ben tinha ido esperá-la ao comboio e
havia lume na lareira. Nenhum ser humano podia pedir muito mais.

Por cima da lareira estava o único quadro da sala, o retrato que Ben fizera de Emma
quando ela tinha seis anos. Fora a primeira vez na vida dela e, segundo parecia, a
última que tinha sido o centro das atenções dele, e apenas por essa razão suportara
sem se queixar as longas horas sentada, o aborrecimento, as cãibras e a fúria
incontrolável dele se ela se mexia. Para o quadro ela tinha usado uma coroa de
margaridas, cada dia lhe trouxera o prazer repetido de ver as mãos de Ben fazerem
uma nova coroa e depois o orgulho de ele a colocar na cabeça dela, solenemente,
como se estivesse a coroar uma rainha.

Ele voltou a entrar na sala.

É uma boa mulher, a mulher do Daniel. Hei-de dizer-lhe isso. Eu disse-lhe para
deixar a casa fornecida com alguns mantimentos. Emma virou-se e viu que ele tinha
encontrado uma garrafa de Haigs e um copo. Emma, vai-me buscar um jarro de
água, vais? Ocorreu-lhe uma ideia. E suponho que outro copo, se quiseres uma
bebida.

Não quero uma bebida, mas estou cheia de fome.

Não sei se ela trouxe esse tipo de mantimentos.

Eu vou ver.

Também a cozinha tinha sido limpa, varrida e esfregada. Ela abriu o frigorífico e
encontrou ovos, bacon e uma garrafa de leite; também havia pão na caixa. Tirou um
jarro de um gancho no armário, encheu-o de água fria e levou-o para a sala. Ben
vagueava pela sala, mexia nos candeeiros, tentando encontrar alguma coisa de
errado. Ele sempre tinha detestado aquela casa.

57
Ela perguntou:

Queres que te faça uns ovos?

O quê? Ah, não, não quero nada. Sabes, é estranho estar aqui outra vez. Não consigo
parar de sentir que a Hester vai aparecer e dizer-nos para começarmos a fazer
qualquer coisa que não queremos.

Emma pensou em Christopher. Retorquiu:

Oh, pobre Hester.

Pobre uma ova. Cabra metediça.

Ela voltou à cozinha, encontrou uma caçarola, uma tigela e margarina. Vindos da
sala, podia ouvir os sons da inquietação de Ben. Abria e fechava portas, afastava
uma cortina, dava um pontapé num tronco que voltava a atirar para a lareira.
Passado pouco tempo, ele apareceu à porta da cozinha, com um cigarro numa das
mãos e agitando o copo na outra. Observava Emma, que mexia os ovos. Disse:

Cresceste, não cresceste?

Tenho dezanove anos. Se cresci ou não, francamente não sei.

É estranho não seres mais uma menina pequenina.

Hás-de habituar-te.

Sim, suponho que sim. Quanto tempo é que vais ficar?

Digamos que não fiz planos de me ir embora outra vez.

Queres dizer que queres viver aqui?

Por enquanto.

Comigo?

Emma olhou para ele por cima do ombro.

Isso seria assim tão doloroso?


Não sei respondeu Ben. Nunca experimentei.

Foi por isso que eu voltei. Pensei que talvez estivesse na altura de experimentares.

58
Por acaso não estás a censurar-me?

Porque é que havia de estar a censurar-te?

Porque te abandonei e fui ensinar para o Texas. Porque nunca te fui ver à Suíça.
Porque não te deixei ir ao Japão.

Se eu me importasse realmente com essas coisas, não teria querido voltar.

E se eu decidir ir-me embora outra vez?

Vais?

Não. Ele olhou para a sua bebida. De momento não. De momento estou cansado.
Voltei à procura de um pouco de paz. Olhou para cima outra vez. Mas não vou ficar
aqui para sempre.

Eu também não vou ficar aqui para sempre retorquiu Emma. Ela colocou uma tosta
num prato, o ovo por cima da tosta, abriu uma gaveta à procura de uma faca e de um
garfo.

Ben observava aquilo tudo com alguma agitação.

Não te vais armar em domesticazinha eficiente, pois não? Outra Hester? Se for isso,
ponho-te fora.

Eu não era capaz de ser eficiente, nem que tentasse. Se te servir de alguma coisa,
sempre te digo que perco comboios, queimo comida, perco dinheiro e deixo cair
coisas. Esta manhã, em Paris, tinha um chapéu de sol, mas quando cheguei a
Porthkerris já desaparecera. Como é que se pode perder um chapéu de sol neste país,
em Fevereiro?

Mas ele ainda não estava convencido.

Não vais querer andar por aqui de carro o tempo todo?

Eu não sei conduzir.

E televisão e telefones e porcarias assim?

Nunca tiveram grande espaço na minha vida. Nessa altura ele riu-se e Emma
perguntou-se se haveria
alguma coisa de errado em achar o próprio pai tão atraente

59
Ele informou:

Sabes, eu não sabia bem como é que isto ia correr. Mas em circunstâncias tão
favoráveis só posso dizer que estou contente por teres voltado. Bem-vinda a casa.

Levantou o copo à saúde de Emma, acabou a sua bebida e depois voltou para a sala
para agarrar na garrafa e emborcar o resto.

60
O bar Sliding Tackle era pequeno e confortável, apainelado a preto, muito antigo.
Tinha apenas uma janela minúscula, que dava para o porto, de forma que a primeira
impressão de um visitante, quando entrava, vindo da luz exterior ofuscante, era de
escuridão absoluta. Mais tarde, quando os seus olhos se acostumavam à obscuridade,
outras peculiaridades tornavam-se evidentes, as mais óbvias sendo que não havia
duas linhas paralelas no lugar. Havia séculos que o pequeno pub se mantinha nos
seus alicerces, como um habitante mergulhado num sono profundo numa cama
confortável, e várias irregularidades, como ilusões ópticas, eram passíveis de fazer
os potenciais clientes sentirem-se embriagados antes sequer de terem engolido a
primeira bebida. O chão de laje descia numa direcção, apresentando uma fenda
sinistra entre a pedra e os lambris. A viga preta, que constituía a estrutura do próprio
balcão, descia noutra direcção. E o tecto caiado tinha uma inclinação tão grande que
o proprietário tinha sido levado a colocar avisos a dizer ”Cuidado com esta viga” e
”Cuidado com a cabeça”.

Ao longo dos anos, o Sliding Tackle tinha-se mantido, teimosamente, o mesmo.


Situado na parte velha e fora de moda de Porthkerris, ao pé do porto, sem espaço
para terraços pretensiosos ou jardinzinhos de chá, conseguira resistir às enchentes do
turismo de Verão que invadiam o resto da

61
cidade. Tinha os seus clientes regulares que lá iam beber, conversar amenamente
sobre temas pouco exigentes e jogar às moedas. Tinha um alvo para o jogo das
flechas e uma lareira, onde, de Verão e de Inverno, ardia sempre um lume. Tinha
Daniel, o empregado do bar, e Fred, de cara bicuda e vesgo, que trabalhava na
limpeza do lixo das praias, alugava cadeiras durante o Verão e passava o resto do
ano a beber alegremente os seus ganhos. E tinha Ben Litton.

É uma questão de prioridades disse Marcus. Iam no Alvis, ele e Robert. A intenção
era encontrar Ben Litton. Estava tão bom tempo que Robert tinha posto a capota
para trás e Marcus trazia, com o seu sobretudo preto habitual, um boné de tweed
como um cogumelo, que parecia ter sido comprado para outra pessoa. De
prioridades e de horas. A um domingo, ao meio-dia, o primeiro sítio onde procurar é
o Sliding Tackle. E se ele lá não estiver, coisa que eu duvido, vamos ao estúdio e
depois a casa.

Ou talvez, numa manhã tão bonita, ande a passear por aí.

Não me parece. Está na hora de ele beber, e ele sempre foi uma criatura de hábitos.

Embora se estivesse só em Março, estava, na verdade, um dia deslumbrante, de uma


beleza inacreditável. O céu sem nuvens. O mar, trazido obliquamente para a curva
da baía por um forte vento de noroeste, estendia-se na frente deles raiado de todos os
tons de azul, do anil ao turquesa mais pálido. Do cimo da colina, a vista estendia-se
até ao infinito, penínsulas distantes desapareciam numa ligeira névoa que sugeria o
calor do pino de Verão. E lá em baixo, ao longo da estrada serpenteante, a cidade
espalhava-se íngreme, um amontoado de ruelas estreitas e empedradas, casas
caiadas, telhados torcidos e comidos do sol, agrupados em volta do porto.
62
Todos os anos, durante os três meses de Verão, Porthkerris tornava-se um pequeno
inferno na terra. As suas ruas inadequadas ficavam engarrafadas de carros, os seus
passeios apinhados de humanidade meia despida, as suas lojas a abarrotar de postais,
chapéus-de-sol, chinelos, camaroeiros, pranchas de surf e almofadas de plástico de
encher. Na praia enorme, as tendas e os balneários esgotavam a lotação e as
esplanadas abriam os seus terraços, cheios de mesas redondas engalfinhadas,
protegidas por chapéus. Bandeiras cor de laranja agitadas pelo vento, anunciando
gelados de framboesa, de chocolate e outros horrores, e, como se não bastasse, havia
pipocas e pastéis de carne cheios de puré de batata cinzento.

Por alturas da semana do Pentecostes, abria o parque de diversões, com a algazarra


de máquinas de jogos e de música, e talvez mais uma correnteza de casas velhas,
mas pitorescas, fosse abaixo à frente dos bulldozers, para arranjar espaço para mais
um parque de estacionamento. E os seus habitantes, as pessoas que gostavam da
cidade, e os artistas, seriam testemunhas horrorizadas desta violação e diriam: ”Isto
está pior do que nunca. Está a ficar arruinado. Não podemos ficar mais tempo.” Mas
todos os Outonos, depois de o último comboio ter levado o último invasor de nariz
pelado, Porthkerris regressava, milagrosamente, ao seu ritmo normal. As lojas
abriam as persianas. As tendas iam abaixo e as praias eram lavadas pelas
tempestades de Inverno. As únicas bandeiras agitadas pelo vento eram os estendais
de roupa lavada que povoavam cada uma das casas, como enfeites desenhados a
pastel, ou eram hasteadas lá muito em cima, sobre os relvados onde os pescadores
estendiam as suas redes a secar.

E era então que a antiga magia se reafirmava e se tornava fácil compreender porque
é que um homem como Ben

63
Litton voltava sempre, como um pombo regressa sempre ao pombal, para recuperar
energias, à procura da segurança das coisas familiares, para ser mais uma vez
tomado pela obsessão do pintor pela cor e pela luz.

O Sliding Tackle ficava no extremo da estrada do porto. Robert aproximou-se do seu


pátio coberto em arco e desligou o motor. Estava calor e ouvia-se o silêncio. A maré
estava vazia, a praia cheia de areia limpa e de algas e as gaivotas piavam. Algumas
crianças, encorajadas pelo sol, brincavam com baldes e pás, vigiadas por avozinhas
a fazer tricô de bata e redes no cabelo, e um gato preto, que era só osso, estava
sentado no empedrado da rua a lavar as orelhas.

Marcus saiu do carro.

Vou ver se ele está lá dentro. Espera aqui. Robert tirou um cigarro do maço que
estava no painel de

instrumentos, acendeu-o e observou o gato. Por cima da sua cabeça, a tabuleta da


estalagem rangia com o vento e uma gaivota veio pousar nela olhando Robert com
malevolência, numa provocação gritante. Dois homens desciam a rua, caminhando
ao passo certo e lento de um domingo metodista de descanso. Vestiam camisolas de
lã azul e bonés de fazenda brancos.

Bom-dia saudaram ao passar.

Um dia magnífico retorquiu Robert.

É verdade. Magnífico.

Pouco depois, Marcus voltou a aparecer.

Muito bem, encontrei-o.

E Emma?

Ele diz que ela está no estúdio. A caiar.

Queres que vá buscá-la?

Se não te importas. São... ele olhou para o relógio meio-dia e um quarto. À uma já
deves estar aqui. Eu disse que almoçávamos à uma e meia.
64
Certo. Vou a pé. Não vale a pena levar o carro.

Ainda te lembras do caminho?

Claro.

Ele já tinha estado mais duas vezes em Porthkerris, à procura de Ben Litton, por
uma razão ou por outra, em alturas em que Marcus não estava disponível para o
fazer ele próprio. A fobia de Ben em relação aos telefones, aos carros e a todos os
meios de comunicação provocava de tempos a tempos complicações desastrosas e
Marcus já aceitara há muito o facto de ser mais rápido fazer a viagem de Londres a
Cornwall e surpreender o leão na caverna do que esperar por uma resposta aos
telegramas mais urgentes já com resposta paga.

Robert saiu do carro e fechou a porta.

Queres que lhe diga ou deixo a agradável tarefa para ti?

Marcus sorriu.

Diz-lhe tu.

Robert tirou o seu boné de tweed e atirou-o para o banco do condutor. Disse
amavelmente:

Filho-da-mãe.

Ele tinha recebido uma carta de Emma uma ou duas semanas depois de ela ter
passado por Londres.

Caro Robert:

Se eu chamo Marcus a Marcus não posso de forma alguma chamar-te senhor


Morrow, pois não? Não, claro que não, de maneira nenhuma. Devia ter escrito
imediatamente a agradecer-te o almoço e o dinheiro e por teres mandado dizer ao
Ben em que comboio eu ia chegar. Ele foi, de facto, esperar-me à estação. Está tudo
a correr lindamente, até agora não tivemos uma única discussão Pornada, anda a
trabalhar como um mouro em quatro telas ao mesmo tempo.
65
Não perdi nada da minha bagagem, a não ser o chapéu de sol, que, tenho a certeza,
alguém me roubou. Saudades ao Marcus. E para ti.

Emma

Agora, ele abria caminho através do labirinto de ruas estreitas e casas muito juntas
que conduzia à costa norte da cidade. Aí havia outra praia, uma baía batida pelo
vento e desprotegida, apenas apreciada pelas grandes ondas que aí rebentavam
vindas directamente do Atlântico. O estúdio de Ben Litton dava para essa praia. Em
tempos, havia muito tempo, tinha sido um armazém de redes e o seu único acesso
era uma rampa empedrada que descia da estrada em direcção a uma porta dupla
revestida de alcatrão. Havia uma tabuleta pintada com o nome dele e uma imensa
aldraba de ferro. Robert agarrou-a, bateu e chamou:

Emma.

Não obteve resposta. Abriu a porta e esta quase lhe foi imediatamente arrancada da
mão por uma rajada de vento que entrou como uma torrente de água, através da
janela aberta do outro lado do estúdio. Quando a porta se voltou a fechar com
estrondo atrás dele, a corrente de ar abrandou. O estúdio estava vazio e
extremamente gelado. Não havia sinais de Emma, mas um escadote, uma brocha e
um balde testemunhavam a sua recente ocupação. Ela tinha caiado uma parede
inteira, mas quando ele foi tocá-la descobriu que ainda estava fria e húmida.

Do meio desta parede salientava-se um fogão feio e antigo, agora vazio e apagado, e
ao lado uma botija de gás, uma cafeteira velha e uma caixa cor de laranja, virada ao
contrário, contendo canecas às riscas azuis e brancas e um frasco com nibos de
açúcar. Do lado oposto do estúdio ficava a mesa
66
de trabalho de Ben, numa completa desordem de desenhos e papéis, bisnagas de
tinta e centenas de lápis e pincéis, tudo dentro de folhas de cartão canelado. A parede
por cima da mesa estava escura, suja de velha e manchada das raspadelas dos
inúmeros golpes da paleta, que tinham formado, ao longo dos anos, uma crosta de
cor. No topo da secretária havia uma estreita prateleira à altura desta, em cima da
qual estava disposta, ordenadamente, uma selecção de objects trouvés que numa
altura ou noutra tinham chamado a atenção de Ben. Uma pedra da praia, uma
estrela-do-mar fossilizada. Um monte azul de flores silvestres secas. Uma
reprodução, em postal, de um Picasso. Um bocado de madeira talhada pelo mar e
pelo vento numa escultura abstracta. Havia fotografias, um leque de instantâneos
enrolados, ordenados num antigo suporte de prata de ementas. Um convite para uma
pré-inauguração, que tinha tido lugar há seis anos e, finalmente, um par de binóculos
pesados e velhos.

Ao nível do chão, as paredes estavam cheias de telas deitadas e no meio da sala


encontrava-se o trabalho do momento, em cima de um cavalete e coberto por um
pano cor-de-rosa desbotado. Voltado para o fogão vazio estava um sofá velho,
enrolado no que pareciam ser os restos de um tapete árabe. Havia também uma
velha mesa de cozinha, com as pernas cortadas, e em cima desta uma lata de
cigarros, um cinzeiro a transbordar, uma pilha de Studios e uma tigela de vidro verde
cheia de ovos de porcelana pintados.

A parede norte era toda de vidro, aos rectângulos, separados por pequenas divisórias
de madeira e dispostos de forma que os rectângulos da parte mais baixa descaíam
para o lado. Ao longo da parte inferior deste efeito havia um banco comprido, cheio
de almofadas e debaixo deste salientavam-se mais destroços em desordem. Pedaços
de um barco, um

67
monte de pranchas de surf, uma grade de garrafas vazias e, no meio, por baixo da
janela aberta, dois ganchos de ferro tinham sido pregados ao chão, aos quais
estavam atadas as pontas de uma escada de corda. Esta desaparecia para fora da
janela e Robert, indo investigar, viu que caía directamente na areia, dois metros mais
abaixo.

A praia parecia estar vazia. A maré baixa tinha deixado uma extensão de areia muito
limpa, separada do céu por uma linha estreita de vagas de espuma branca. Um pouco
mais adentro, na costa, havia um estrato de rocha, com uma crosta de conchas e
algas, e por cima deste as gaivotas pairavam, ocasionalmente, atacando-se
mutuamente ou piando por causa de uma presa qualquer. Robert sentou-se no
parapeito da janela e acendeu um cigarro. Quando voltou a olhar para cima
aparecera uma figura no horizonte, mesmo à beira do mar. Vestia uma longa túnica
branca, como a de um árabe, e enquanto caminhava em direcção ao estúdio parecia
debater-se com um enorme embrulho vermelho impossível de identificar.

Lembrou-se dos binóculos em cima da mesa de Ben e foi buscá-los. Focada, a figura
ficou mais nítida e revelou-se como sendo Emma Litton, cabelo comprido ao vento,
de enorme roupão turco branco e arrastando, com alguma dificuldade, pois o vento
batia-lhe de lado e arrancava-lha das mãos, uma prancha de surf escarlate.

Com certeza que não tens estado a nadar? Emma, a lutar com a prancha de surf, não
o tinha visto à

janela. Agora, com uma das mãos na escada de corda, quase morreu de susto ao
ouvir a voz dele. Olhou para cima, arrastando a prancha na areia, o seu cabelo preto
molhado solto em farrapos pelo vento.

Estive, pois, e pregaste-me um susto de morte. Há quanto tempo é queestais aqui?

68
Há uns dez minutos. Como é que vais subir a prancha pelas escadas?

Estava a pensar nisso, mas agora que tu apareceste todos os meus problemas estão
resolvidos. Há uma corda debaixo do banco. Se me atirares uma ponta, eu ato-a à
prancha e tu podes puxá-la.

A tarefa foi realizada na perfeição. Robert içou a prancha através da janela aberta e
logo a seguir surgiu a própria Emma, a cara, as mãos e os pés cheios de areia seca,
as pestanas pretas de pontas espetadas como as de uma estrela-do-mar. Ela ajoelhou-
se no parapeito da janela e riu-se para ele.

Ora, que grande sorte! Como é que eu ia fazer? Mal consegui carregá-la ao longo da
praia, quanto mais escada acima.

Por baixo da areia tinha a cara roxa de frio. Ele ordenou:

Vá lá, entra, e fecha a janela... esse vento é gelado. Como é que conseguiste ir
nadar? Vais morrer de pneumonia.

Não vou nada.

Ela saltou para o chão e observou-o, enquanto ele enrolava a escada para dentro e
fechava a janela. Esta não fechava bem e continuava a haver uma corrente de ar
cortante como a ponta de um cutelo.

Eu estou habituada. Em Abril costumávamos sempre nadar, quando éramos crianças.

Não estamos em Abril. Estamos em Março. É Inverno. O que é que o teu pai ia
dizer?

Oh, não ia dizer nada. Está um dia tão bonito e eu já estava farta de caiar... já viste a
minha parede magnificamente branca? O problema é que faz o resto do estúdio
parecer uma pocilga. Além disso, eu não estava a nadar, estava a fazer surf e as
ondas mantiveram-me quente. E depois
69
sem nenhuma mudança de expressão significativa: Vieste visitar o Ben? Ele está no
Sliding Tackle.

Sim, eu sei.

Como é que sabes?

Porque deixei lá o Marcus com ele.

O Marcus. Ela ergueu as suas sobrancelhas bem marcadas considerando o facto. O


Marcus também veio? Meu Deus, deve ser uma coisa mesmo importante!

Ela tremeu ligeiramente. Robert disse:

Vê se vestes qualquer coisa.

Ah, estou bem. Ela foi buscar um cigarro à mesa, acendeu-o e depois afundou-se no
velho sofá, de costas, com os pés apoiados no braço.

Recebeste a minha carta?

Recebi, pois. Com Emma a ocupar todo o sofá não havia mais sítio nenhum onde se
sentar, a não ser a mesa, por isso ele colocou a pilha de revistas no chão e sentou-se.
Tive pena de teres perdido o teu chapéu de sol.

Emma riu-se.

Mas ficaste contente em relação ao Ben.

Claro.

É espantoso como está a resultar bem. Inacreditável. E ele gosta mesmo de me ter
por cá.

Não me passou uma única vez pela cabeça que ele não fosse gostar.

Ah, não me venhas com essa conversa. Sabes bem que foi isso que pensaste. Ao
almoço, naquele dia, eras todo sobrolho franzido e cepticismo. Mas, sabes, é
realmente o casal perfeito. O Ben não tem de me pagar para lhe manter a casa limpa
e arranjada, nem de se incomodar com pormenores tediosos, com dias de folga e
selos do seguro, nem tem de se envolver emocionalmente. Ele não sabia que a vida
podia ser tão simples.
70
Tens notícias do Christopher?

Emma voltou a cabeça para o lado para olhar para ele.

Como é que sabes do Christopher?

Foste tu que me disseste. No restaurante do Marcello. Recordas-te?

Pois foi. Não, não tenho notícias. Mas deve estar em Brookford por esta altura, no
auge dos ensaios. Não deve ter tido tempo para escrever. De qualquer modo, tem
havido muito que fazer por aqui, tratar da casa, cozinhar e coisas assim. Não
acredites quando ouvires dizer que os artistas nunca comem. O apetite do Ben é
insaciável.

Disseste-lhe que voltaste a encontrar o Christopher?

Deus me livre! E estragar o calmo decorrer da nossa vida? Nem sequer mencionei o
nome dele. Sabes, ficas muito melhor com essas roupas do que com as que te vi em
Londres. Quando te vi pela primeira vez pensei logo que não eras do tipo de passar
os dias abotoado em fatos cinzento-escuros. Quando é que chegaram?

Chegámos ontem à tarde. Ficámos no Castelo. Emma fez uma careta.

Com todas aquelas palmeiras em vasos e aqueles casacos de caxemira? Bah!

É muito confortável.

O aquecimento central faz-me febre-dos-fenos. Nem consigo respirar.

Ela apagou o cigarro no meio do cinzeiro a transbordar, tirou os pés do sofá,


levantou-se, afastou-se dele, na direcção da janela, desatando o cinto do roupão
enquanto andava. Tirou uma pilha de roupas de debaixo de uma almofada e, de
costas para ele, começou a vestir-se. Perguntou:

Porque é que tu e o Marcus vieram juntos?

O Marcus não conduz.

Há comboios. E não foi isso que eu quis dizer.

71
Pois não, eu sei. Ele agarrou num dos ovos de porcelana pintados e começou a
mexer-lhe como um árabe trata um terço do rosário de lamentações. Viemos tentar
persuadir o Ben a voltar aos Estados Unidos.

Houve um grande golpe de vento súbito que se abateu contra o vidro da janela do
estúdio, como uma onda rebentando e rugindo sobre o telhado por cima deles, como
o troar de um comboio que passasse. Um bando de gaivotas elevou-se gritando das
rochas, atiradas para o céu. E depois, tão de repente como tinha começado, parou.

Emma perguntou:

Porque é que ele tem de voltar?

Por causa da tal exposição retrospectiva.

Ela deixou cair o roupão turco branco e a sua silhueta foi projectada, de jeans,
enfiando uma camisola de lã azul-marinho pela cabeça.

Mas eu pensei que ele e o Marcus tivessem resolvido tudo quando estiveram em
Nova Iorque, em Janeiro.

Nós também pensávamos que sim. Mas, sabes, esta exposição está a ser financiada
por um particular.

Eu sei disse Emma, virando-se e libertando o seu cabelo preto da gola da camisola.
Li tudo sobre isso na Realties. A senhora Kenneth Ryan. A viúva do homem rico em
homenagem ao qual existe o Museu de Belas-Artes de Queenstown. Estás a ver
como estou bem informada? Espero que estejas impressionado.

E a senhora Kenneth Ryan quer uma pré-inauguração.

Então porque é que não disse logo?

Porque ela não estava em Nova Iorque. Estava a apanhar sol em Nassau, ou nas
Baamas, ou em Palm Beach, ou noutro sítio qualquer. Eles nunca estiveram com ela.
Estiveram apenas com o conservador do museu.
72
E agora a senhora Ryan quer que Ben Litton lá volte para que ele possa dar uma
pequena festa com champanhe e exibi-lo, como um trofeu, a todos os seus amigos
influentes. É de dar a volta ao estômago.

Ela fez mais do que decidir, Emma. Ela veio cá persuadi-lo.

Queres dizer que ela veio a Inglaterra?

Quero dizer que veio a Inglaterra, à Galeria Bernstein, a Porthkerris. Ela veio
comigo e com o Marcus, ontem, e está neste momento no bar do Hotel Castelo a
beber martinis muito gelados e à espera que vamos todos almoçar com ela.

Bem, eu cá não vou de certeza.

Tens de vir. Temos de ir todos. Ele olhou para o relógio. E estamos atrasados.
Despacha-te, por favor.

O Ben já sabe da pré-inauguração?

Por esta altura, já sabe. O Marcus já lhe deve ter dito.

Ela apanhou uma capa de lona castanha do chão e vestiu-a por cima da camisola.
Quando a cabeça passou pela gola, disse:

Ele pode não querer ir.

Queres dizer que não queres que ele vá?

Quero dizer que ele se instalou aqui outra vez. Não anda de um lado para o outro,
não anda inquieto, não anda sequer a beber muito. Anda a trabalhar como um jovem
e o que anda a fazer é fresco, novo e melhor do que nunca. O Ben tem sessenta anos,
sabias? Olhando para ele, é difícil de acreditar, mas tem quase sessenta anos. Não
será possível que todo esse vaguear constante pelo mundo possa já não o estimular,
mas simplesmente esgotá-lo? Ela voltou para o sofá para se sentar, de frente para
Robert, o seu rosto sério ao mesmo nível do dele. Por favor, se ele não quiser ir, não
tentem persuadi-lo.
73
Robert continuava com o ovo de porcelana na mão. Olhou-o com intenção, como se
as suas convoluções de azul e verde fornecessem miraculosamente uma resposta
para todos os problemas. Depois, com cuidado, voltou a colocá-lo na tigela de vidro
ao pé dos seus iguais.

Ele retorquiu:

Falas como se isto fosse alguma coisa importante, como se ele voltasse para os
Estados Unidos outra vez para dar aulas, como se ele não fosse voltar durante anos.
Mas não é assim. É simplesmente uma festa. Ele não precisa de estar longe mais do
que alguns dias. Ela abriu a boca num novo protesto, mas ele antecipou-se-lhe. E
não te deves esquecer de que esta exposição é uma grande homenagem ao Ben.
Investiu-se muito dinheiro e muito trabalho de organização, e talvez o mínimo que
ele pode fazer...

Furiosa, Emma interrompeu-o.

O mínimo que ele pode fazer é ir exibir-se como um macaquinho de estimação na


frente de uma americana gorda. E o que ainda torna isso mais horrível, é que ele
gosta desse tipo de coisas. É isso que eu detesto, que ele goste.

Se gosta, qual é o problema? Já que gosta, se quiser ir, vai.

Ela calou-se. Sentou-se, de olhos no chão e boca franzida, como a de uma criança.
Robert terminou o seu cigarro, apagou-o, levantou-se e disse, com mais brandura:

Vá lá, despacha-te, senão vamos chegar atrasados. Tens um casaco?

Não.

Então uns sapatos, deves ter uns sapatos.

Ela apalpou debaixo do sofá, tirou um par de sandálias de couro e levantou-se


metendo-lhes dentro os pés descalços. Ainda tinha os pés cheios de areia e a capa de
lona tinha pingos de cal.
74
Ela concluiu:

Não posso ir almoçar ao Castelo com este aspecto.

Que disparate! Ele tentou um tom animador. Vais dar que falar aos habitantes. Dar
um pouco de cor às suas vidas interminavelmente monótonas.

Não há tempo para voltar a casa? Nem sequer tenho pente.

Há-de haver um pente no hotel.

Mas...

Não há mesmo tempo. Já estamos atrasados. Vá lá, anda daí...

Saíram juntos do estúdio, subiram a rampa e começaram a andar na direcção do


porto pela estrada cheia de sol. Depois do gelo do estúdio, o ar sabia a quente, a luz
do mar era reflectida nas paredes caiadas das casas e encandeava como o brilho da
neve.
75
Emma não quis entrar no Sliding Tackle.

Eu espero aqui. Vai lá tu buscá-los.

Está bem.

Ele atravessou o empedrado e ela reparou como ele tinha de baixar a cabeça para
passar por baixo do pátio coberto. A porta do pub fechou-se atrás dele. Ela foi-se
aproximando do carro dele e inspeccionou-o com interesse, porque era dele e
deveria, por conseguinte, fornecer mais pistas sobre o seu carácter, como uma
prateleira de livros, ou as gravuras que um homem pendura nas paredes da sua casa.
Mas, para além de ser verde-escuro, de ter faróis de nevoeiro, jantes metalizadas e
uns quantos autocolantes do Automóvel Clube, o Alvis revelava pouco. No banco do
condutor havia um boné de iweed, cigarros no painel de instrumentos, um livro de
mapas. No banco de trás, cuidadosamente dobrado, um tapete de tartã, espesso e de
aspecto caro. Ela decidiu que ou ele era confiante ou descuidado, mas também tinha
sorte, pois o tapete não tinha sido roubado.

Uma rajada de vento soprou vinda do mar e Emma tremeu. Depois do mergulho e
das correntes de ar do estúdio, ainda estava com muito frio. Tinha as mãos tolhidas
pelo frio, completamente sem cor, as unhas roxas. Mas o metal do carro estava
quente e, procurando conforto, encostou-se
77
l
a ele, de pernas e braços abertos sobre a capota, com as mãos espalmadas como uma
estrela-do-mar.

A porta do pub abriu-se e Robert Morrow emergiu mais uma vez, curvando-se
cautelosamente. Vinha sozinho.

Não estão?

Não. Estamos atrasados, eles fartaram-se de esperar e apanharam uma boleia de


volta para o hotel. Ele abriu a porta do lado do condutor, agarrou no seu boné e pô-lo
na cabeça, puxado para cima do nariz, acrescentando mais um ângulo pronunciado
ao seu perfil formidável. Anda... Debruçou-se, abriu a outra porta e Emma
despegou-se da capota e entrou para o lado dele.

Deixaram o porto para trás, lá em baixo, arrancaram estrada acima, através da


cidade, subiram as estreitas ruas íngremes, passaram por entre correntezas de casas
chiques, por tabuletas que diziam ”Quartos e pequeno-almoço” e por jardins
fronteiros onde palmeiras tristes curvavam as cabeças ao sabor do vento. Entraram
na rua principal, ainda a subir, e voltaram em direcção ao Hotel Castelo; sempre a
subir, penetraram no caminho da entrada do hotel; a subida continuou por entre
curvas de hidrângeas, de ulmeiros reclinados para a terra, e, por fim, chegaram ao
topo da colina, penetrando num espaço aberto de campos de ténis, relvados e um
minicampo de golfe. O hotel tinha sido em tempos uma casa de campo e nadava no
seu ambiente genuíno. Um poste branco e uma corrente mantinham os carros
afastados da área de gravilha, em frente do hotel, onde estava sentado, em cadeiras
de repouso, um grupo de hóspedes destemidos, com cachecóis, luvas e embrulhados
em mantas, como passageiros de um transatlântico. Estavam a ler livros ou jornais,
mas quando o Alvis retumbou estrada acima e estacionou com um triturar maciço de
gravilha estes foram baixados e, em alguns casos, foram tirados óculos, e a
78
chegada de Emma e Robert observada e registada como se fossem visitantes de
outro planeta. Robert observou:

Somos, provavelmente, a primeira coisa emocionante que acontece desde que o


gerente caiu na piscina.

Uma vez dentro das portas giratórias, o calor atingiu-os como um forno acabado de
abrir. Emma dissera desprezar aquele conforto, mas naquele momento era bem-
vindo.

Ela observou:

Espero que estejam no bar. Vai tu à frente, eu já lá vou ter. Tenho de tentar livrar-me
de alguma desta areia.

Na casa de banho das senhoras lavou as mãos e a cara e limpou a areia dos pés com
a parte de trás dos jeans, como um adolescente a tentar dar brilho aos sapatos. Havia
um estojo pretensioso de escovas e pentes num toucador que pretendia dar um ar de
arrumado, e ela usou o pente partindo-lhe metade dos dentes, mas reduzindo a massa
emaranhada a uma espécie de ordem. Quando se voltava na direcção da porta, viu-se
no grande espelho. Sem maquilhagem, jeans coçados, pingos de cal. Despiu a capa
ofensiva, mas depois enfureceu-se consigo mesma por se estar a importar com uma
coisa tão trivial como a sua aparência e voltou a vesti-la. Eles iriam pensar que ela
era uma estudante de arte extravagante. Um modelo. A amante de Ben Litton. Que
pensassem. Como Robert Morrow tinha dito, dar-lhes-ia algo de que falar.

Mas quando saiu da casa de banho e atravessou o longo vestíbulo atapetado, ficou
agradecida por Robert Morrow não a ter abandonado e ido ter com os outros, como
ela lhe sugerira. Estava, em vez disso, à espera dela ao pé da secretária do porteiro, a
ler um jornal de domingo que tinha sido deixado em cima da cadeira. Quando a viu,
dobrou o jornal, voltou a deixá-lo onde estava antes e mostrou-lhe um sorriso de
encorajamento.

79
Fizeste um trabalho magnífico opinou.

Destruí o pente do hotel. Que, por sinal, era bem bonito e até pertencia a um
conjunto. Não precisavas de esperar. Já aqui estive antes e sei o caminho.

Então vamos.

Faltava um quarto para as duas e a movimentada hora do almoço de domingo tinha


terminado. Apenas alguns alcoólicos convictos ainda estavam sentados no bar,
agitando os seus gins com água tónica e a começarem a ficar um pouco corados. Ben
Litton, Marcus Bernstein e a senhora Kenneth Ryan estavam do outro lado, reunidos
no espaço acrescentado à sala por uma enorme janela panorâmica. A senhora Ryan
estava sentada no lugar do lado da janela, contra um fundo que mais parecia um
cartaz de uma agência de viagens uma extensão de mar azul, uma pitada de céu e as
verdes ondulações do minicampo de golfe. Os dois homens, Ben no seu bleus de
operário francês e Marcus no seu fato escuro, estavam a conversar, ligeiramente
virados para ela, de forma que foi a senhora Ryan quem primeiro viu Emma e
Robert.

Olhem quem chegou... anunciou ela.

Eles voltaram-se. Ben continuou sentado, mas Marcus levantou-se e foi


cumprimentar Emma, de braços abertos, o seu prazer em vê-la genuíno,
demonstrativo e muito pouco britânico. Às vezes conseguia ser quase
embaraçosamente austríaco.

Emma, minha querida. Até que enfim que chegaste.

Ele pôs-lhe as mãos nos ombros e beijou-a, formalmente, em ambas as faces. Que
prazer em ver-te outra vez, depois deste tempo todo. Há quanto tempo? Cinco anos?
Seis? Temos muito que conversar. Anda conhecer a senhora Ryan.

Agarrou-lhe na mão para a conduzir. Mas a tua mão é uma pedra de gelo. O que é
que tens estado a fazer?

80
Nada disse Emma, trocando um olhar com Robert, desafiando-o a dizer mais coisas.

E de sandálias... Como é que aguentas? Senhora Ryan, esta é a filha do Ben, Emma,
mas não lhe aperte a mão, senão morre com o choque.

Há outras maneiras piores de morrer observou a senhora Ryan apertando-lhe a mão.


Como está?

Apertaram as mãos.

Devo dizer que está muito fria. Num impulso insensato, Emma disse:

Estive a nadar. Foi por isso que chegámos atrasados. E é por isso que estou tão mal
vestida. Não houve tempo de voltar a casa para mudar de roupa.

Ah, mas não está nada mal vestida. Sente-se... temos tempo para mais uma bebida,
não temos? A sala de jantar não nos vai fechar as portas nem nada que se pareça,
pois não? Robert, era muito simpático da sua parte se nos pedisse mais uma rodada.
O que é que quer beber, Emma?

Eu... não quero nada. Ben deu uma tossidela. Bom... um xerez.

Nós estamos todos a beber martinis, Robert. Se também quiser... Emma sentou-se
cuidadosamente na cadeira que Marcus tinha deixado vaga, consciente de que o pai
estava a observá-la do outro lado da mesa.

Eu não acredito que esteve realmente a nadar afirmou a senhora Ryan.

Não foi bem. Só entrei e saí. Havia ondas enormes.

Mas não vai apanhar uma constipação horrível? Isso não pode fazer-lhe bem.
Voltou-se para Ben. Com certeza que o senhor não aprova que se nade com um frio
destes. Não tem influência nenhuma sobre a sua filha?

O tom dela era alegre e brincalhão. Ben deu uma resposta qualquer e ela continuou,
dizendo-lhe que ele devia ter

81
vergonha... que ela estava mesmo a ver que ele era um pai desnaturado...

Emma deixou de ouvir. Estava demasiado ocupada a olhar. Porque a senhora Ryan
não era velha, nem gorda, mas jovem, bonita e muito atraente, e de cabelo de um
louro-dourado e muito bem penteada, nos seus brilhantes sapatos de pele de
crocodilo não havia um único pormenor que não emanasse verdadeiro prazer. Os
seus olhos eram enormes e azuis como violetas, a boca carnuda e afável, e, quando
sorria, como agora, revelava duas filas perfeitas de dentes americanos, brancos e
certos. Vestia um fato de fazenda cor-de-rosa elegantíssimo, a gola e os punhos
debruados a pique branco engomado. Diamantes brilhavam-lhe nas orelhas, a lapela,
as mãos cuidadas. Não havia nada de vulgar nela, nada rude. Até o perfume era
como o das flores.

O facto de ela ter estado longe de si seis anos é mais uma razão para tomar conta
dela agora.

Eu não tomo conta dela... ela é que toma conta de mim...

Ora aí está um verdadeiro homem a falar...

A sua voz suave e do Sul fazia as palavras parecerem uma carícia.

Os olhos de Emma desviaram-se para o pai. A atitude dele era característica: pernas
cruzadas, cotovelo direito em cima do joelho, o queixo apoiado no polegar, um
cigarro entre os dedos, o fumo subindo na frente dos olhos. Os seus olhos estavam
pretos como café, profundamente sombreados, e observavam a senhora Ryan como
se ela fosse um novo espécime fascinante, apanhado entre as lâminas de vidro de
uma amostra de laboratório.

Emma, a tua bebida.

Era Marcus. Ela arrastou os olhos de Ben e da senhora Ryan e voltou-se para ele
aliviada.
TI a

82
Ah, obrigada...

Ele sentou-se ao lado dela.

O Robert falou-te da pré-inauguração?

Sim, falou.

Estás zangada connosco?

Não.

E era verdade que não estava. Não se podia estar zangada com um homem tão
sincero que ia tão directo aos assuntos.

Mas não queres que ele vá?

O Robert disse isso?

Não, não disse. Mas eu conheço-te muito bem. E sei o quanto esperaste para estar
com o Ben. Mas é por pouco tempo.

Claro. Ela olhou para a bebida. Ele vai mesmo, então?

Vai, vai mesmo. Mas não antes do fim do mês.

Estou a ver.

Marcus disse com brandura:

Se quisesses ir com ele...

Não. Não, não quero ir à América.

Importas-te de ficar sozinha?

Não. Não me incomoda. E, como tu dizes, não será por muito tempo.

. Podias vir para Londres e ficar comigo e com a Helen. Podias ficar no quarto do
David.

E onde é que o David dormia?


É muito triste, ele está num colégio interno. Partiu-me o coração, mas eu agora sou
um inglês e o meu filho foi-me arrancado aos oito anos. Fica connosco, Emma. Em
Londres há muitas coisas para ver. A Galeria Tate foi remodelada e está uma obra de
arte...

Sem querer, Emma começou a sorrir.

83
De que te estás a rir, criança horrível?

Estou-me a rir de seres tão desavergonhado. Com uma mão levas o meu pai e com a
outra ofereces-me a Galeria Tate. E acrescentou ela ninguém se deu ao trabalho de
me dizer que a senhora Ryan era a Rainha de Beleza do Sul da Virgínia.

Nós não sabíamos respondeu Marcus. Nunca a tínhamos visto. Ela veio a Londres
num impulso, entrou nas Galerias Bernstein anteontem, disse que queria falar com
Ben Litton e foi a primeira vez que lhe pus a vista em cima.

Bem, vale, de facto, a pena pôr-lhe a vista em cima.

Pois vale concordou ele. Observou a senhora Ryan com os seus olhos de cachorro
triste. Olhou para Ben. Voltou a olhar para o seu martini e tocou na casca do limão
com o indicador. Pois vale disse outra vez.

A chegada deles, tarde, à sala de jantar causou uma certa excitação. A melhor mesa
tinha sido reservada para eles, a mesa redonda ao pé da janela, e era necessário
atravessar a sala a todo o comprimento para lá chegar. A senhora Ryan foi à frente,
ciente da adulação de todos os olhos na sala e aparentemente despreocupada. Estava
bastante habituada a isso. Atrás dela seguiu Marcus, com um aspecto coçado, mas
estranhamente distinto e obviamente interessante. Depois Robert e Emma e, por fim,
Ben. Ben ficou para trás para apagar o cigarro e fez o que se chama a entrada de
uma estrela, parando por momentos, na entrada, para falar com o chefe do serviço,
de forma que quando avançou para dentro da sala foi o único centro das atenções.

”Ben Litton... É o Ben Litton”, dizia-se em sussurro, enquanto ele passava por entre
as mesas, magnífico no seu macaco azul francês, com o lenço vermelho e branco
atado ao pescoço, o cabelo branco espesso como o de um jovem, um caracol como
uma vírgula caindo-lhe para a testa.

84
”Ben Litton... sabes, o pintor.”

Foi excitante. Toda a gente sabia que Ben Litton tinha um estúdio em Porthkerris,
mas se se estava determinado a vê-lo de facto, tinha de se descer à cidade, encontrar
um pub de pescadores chamado Sliding Tackle e aí sentar-se, na escuridão abafada,
fazendo com que um copo de cerveja quente durasse o mais possível, e esperar que
ele entrasse. Assemelhava-se bastante a uma forma estranha de observar pássaros.

Mas naquele dia Ben Litton abandonara os seus lugares habituais e estava ali, no
Hotel Castelo, prestes a comer um almoço de domingo, como qualquer outro ser
humano normal. A montanha tinha ido a Maomé. Uma senhora de uma certa idade
observava-o descaradamente através do seu lorinhão e ouviu-se mesmo um visitante
texano lamentar o facto de ter deixado a máquina fotográfica no quarto.

Emma trocou um olhar com Robert Morrow e conseguiu a tempo reprimir uma
gargalhada.

Ben chegou, por fim, à mesa, instalou-se no lugar de honra, à direita da senhora
Ryan, agarrou numa ementa e sugeriu, apenas levantando um dedo, que o
empregado dos vinhos deveria ser chamado. Gradualmente, a excitação na sala de
jantar esmoreceu, mas era óbvio que seriam o objecto de todas as atenções durante o
resto da refeição.

Emma disse para Robert:

Eu sei que não devia aprovar... que me devia envergonhar de um exibicionismo tão
evidente, mas ele sai-se sempre bem.

Bem, pelo menos fez-te rir e deixaste de parecer toda aflita e nervosa.

Podias ter-me dito que a senhora Ryan era jovem e bonita.

É de facto bonita. Mas não penso que seja tão jovem como parece. Bem conservada
é mais o termo.

85
Isso é o tipo de observação de mau gosto que uma mulher faria.

Peço desculpa. Foi dito com a melhor boa vontade do mundo.

Mesmo assim devias ter-me dito.

Não perguntaste.

Não, mas eu fiz um comentário qualquer sobre velhos americanos gordos e nem
mesmo nessa altura me corrigiste.

Talvez não me tenha apercebido de que era tão importante para ti.

Uma mulher bonita e Ben Litton, e não te apercebeste de que era importante? É
muito mais do que isso: é letal. Pelo menos tu e o Marcus não precisam de fazer
nenhum tipo de persuasão. O Ben vai para a América. Um piscar daquelas pestanas e
já estava a meio do Atlântico.

Acho que não estás a ser inteiramente justa. As pestanas mais compridas do mundo
não o levariam a fazer nada que ele não quisesse fazer.

Pois não, mas ele nunca conseguiria resistir a um desafio.

A voz dela era fria. Robert disse:

Emma.

Ela virou-se para olhar para ele. O que é?

O teu despeito está a começar a notar-se. Ele tirou a medida ao dito entre o polegar e
o indicador. Só um bocadinho.

Pois... bem... Ela decidiu mudar de assunto. Quando é que voltas para Londres?

Esta tarde. Ele olhou para o relógio. Pelos vistos com algum atraso. Precisamos de
nos ir embora assim que eu conseguir convencer a madame seis milhões.
Mas a senhora Ryan não estava nada preocupada. O almoço arrastou-se por quatro
etapas, passando pelo vinho, pelo brande e pelo café, servidos agora na vazia sala de
jantar, porque ela não queria sair da mesa. Por fim, aproveitando uma pausa na
conversa, Robert limpou a garganta e observou:

Marcus, desculpem interromper, mas acho que devíamos pensar em irmos embora,
temos uma viagem de quinhentos quilómetros pela frente.

A senhora Ryan parecia espantada.

Mas que horas são?

Quase quatro. Ela riu-se.

Já! É como em Espanha. Uma vez fui a um almoço em Espanha e só nos levantámos
da mesa às sete e meia da tarde. Porque é que o tempo passa tão depressa quando
estamos realmente a divertir-nos?

Causa e efeito disse Ben.

Do outro lado da mesa ela sorriu para Robert.

Não quer partir já, pois não?

Bem... assim que for possível.

Mas eu queria ver o estúdio. Não posso vir do outro lado do Atlântico até Porthkerris
e não ver o estúdio do Ben. Não podíamos só passar por lá de caminho para
Londres?

A sugestão, feita de ânimo leve, foi recebida em silêncio. Robert e Marcus


pareceram ambos momentaneamente confusos: Robert porque não se queria
demorar mais tempo e Marcus porque sabia que a coisa que Ben mais detestava era
que lhe inspeccionassem o estúdio. Emma também sentiu um aperto no coração. O
estúdio estava um caos: não o caos do Ben, que não tinha qualquer importância, mas
o seu próprio caos. Pensou no escadote, no balde de cal, no roupão turco e no fato-
de-banho que ela tinha deixado
87
abandonados no chão, nos cinzeiros a transbordar, no sofá velho e na areia por todo
o lado. Olhou para Ben, rezando para que ele recusasse. Olharam todos para Ben,
como marionetas à espera para ver de que forma é que ele ia mexer os fios. Mas por
uma vez ele não os deixou ficar mal.

Minha cara senhora Ryan, apesar do prazer que me daria mostrar-lhe o meu estúdio,
penso que devo fazer-lhe notar que este não fica no caminho para Londres.

Olharam todos para ela, para ver como é que iria encaixar aquilo, mas ela limitou-se
a fazer uma cara feia. Eles riram-se de alívio e a senhora Ryan também acabou por
se rir de boa vontade.

Está bem, eu sei quando sou vencida. Começou a agarrar na mala e nas luvas. Mas
há mais uma coisa. Vocês foram todos tão simpáticos comigo que eu não quero
continuar a ser uma estranha. O meu nome é Melissa. Acham que são capazes de me
chamar assim?

E mais tarde, enquanto os homens estavam a carregar o carro, pôde conversar a sós
com Emma.

Você foi especialmente simpática observou. O Marcus disse-me que tinha voltado de
Paris para estar com o seu pai, e aqui estou eu a afastá-lo de si outra vez.

Emma, que sabia que não tinha sido especialmente simpática, sentiu-se culpada.

A exposição tem de estar primeiro.

Eu tomo bem conta dele prometeu Melissa Ryan. ”Pois”, pensou Emma, ”tenho a
certeza de que sim.”

E, no entanto, sem querer, gostara da americana. Havia qualquer coisa no porte do


queixo dela e na claridade dos seus olhos azul-violeta que fazia Emma perguntar-se
se, dessa vez, o Ben não teria prazer na sua habitual vitória fácil. E se as coisas não
corressem a sua maneira logo desde o início,

88
era muito provável que ele desencorajasse. Ela sorriu para a senhora Ryan.
Retorquiu:

Suponho que em breve ele estará outra vez em casa. Agarrou na pele de marta cor de
mel que se encontrava

nas costas de uma cadeira e ajudou a senhora Ryan a vesti-la. Saíram do hotel juntas.
Estava mais frio agora. O calor do Sol tinha desaparecido e um frio glacial, como
geada, elevava-se do mar. Robert pusera a capota do Alvis e Melissa, embrulhada na
pele de marta, foi despedir-se de Ben.

Mas não é um adeus respondeu-lhe, segurando-lhe na mão e olhando-a nos olhos. É


um au revoir.

Claro. E se me mandar dizer quando é que o seu avião chega ao aeroporto Kennedy,
arranjo maneira de alguém o ir esperar.

Marcus disse:

Eu faço isso. O Ben nunca na vida mandou dizer nada a ninguém, muito menos
horas de chegada. Adeus, Emma, minha querida, e não te esqueças de que te
convidei para ficares connosco o tempo que quiseres quando o Ben estiver na
América.

És um amor, Marcus. Nunca se sabe. Sou muito capaz de ir.

Beijaram-se. Ele entrou para o banco de trás e Melissa Ryan para o da frente, as suas
pernas elegantes enroladas na manta do carro de Robert. Ben fechou a porta, depois
baixou-se para continuar a sua conversa com ela através da janela aberta.

Emma. Era Robert. Ela voltou-se.

Oh, adeus, Robert.

Para surpresa dela, ele tirou o seu boné e inclinou-se para a beijar.

Ficas bem?

Ela ficou sensibilizada.

89
Fico, claro.

Se quiseres alguma coisa, dá-me uma apitadela para a galeria.

O que é que eu poderia querer?

Não sei. É só uma ideia. Adeus, Emma. Ficaram, ela e Ben, a olhar até o carro
desaparecer ao

longo do túnel de árvores. Depois da partida, nenhum deles falou, até que Ben
limpou a garganta e observou, com ar sério, como se estivesse a dar uma aula:

Que cabeça tão interessante que aquele jovem tem. O crânio estreito e os maxilares
fortes. Gostava de o ver de barba. Dava um bom santo, ou talvez um pecador. Gostas
dele, Emma?

Ela encolheu os ombros.

Suponho que sim. Mal o conheço.

Ele voltou-se para se irem embora e viu o pequeno grupo de hóspedes do hotel que,
de partida para passeios, vindos do golfe, ou sem nada que fazer, se agarravam ao
menor sinal de distracção, tinham ficado para testemunhar a partida de Melissa.
Quando Ben os fixou com os seus olhos negros, ficaram desconcertados, viraram as
costas e começaram a andar como se tivessem sido apanhados a fazer qualquer coisa
vergonhosa.

Ele abanou a cabeça estupefacto e disse:

Acho que já me chega de ser olhado como se fosse um chimpanzé com duas
cabeças. Anda, vamos para casa.

90
III

Ben Litton partiu para a América no fim de Março, viajando de Porthkerris para
Londres via British Railways e de Londres para Nova Iorque num Boeing da BOAC.
No último momento, Marcus Bernstein decidiu ir com ele e os jornais da tarde
traziam fotografias da partida de ambos Ben com o seu cabelo branco como uma
crista ao sabor da brisa e Marcus quase obliterado pelo seu chapéu preto. Ambos
pareciam ligeiramente constrangidos.

Foi de Marcus que Emma recebeu o molho de jornais americanos que traziam nas
suas colunas os comentários de todos os críticos conceituados do país. Eram
unânimes nos elogios que faziam do projecto do Museu de Belas-Artes de
Queenstown. As artes aclamavam-no como um exemplo perfeito de arquitectura,
luminosidade e exposição imaculada. E a exposição de Ben Litton era coisa a não
perder, de forma alguma. A obra do artista nunca mais voltaria a estar na sua
totalidade patente ao público e os dois ou três retratos pré-guerra, emprestados por
particulares, só por si valiam uma visita, quanto mais não fosse para ver como um
único homem podia ser pintor, psiquiatra e confessor ao mesmo tempo.

”Ben Litton usa o seu pincel como um bisturi de cirurgião, primeiro pondo a
descoberto a doença, escondida, depois tratando-a com extrema compaixão."

91
A palavra ”compaixão” também era utilizada em relação aos seus desenhos do
tempo da guerra os grupos dos abrigos clandestinos, os combatentes isolados e uma
série de esboços salvos do tempo da ofensiva aliada em Itália. Da sua obra do pós-
guerra, diziam: ”Há pintores que partem para a abstracção a partir da Natureza. Ben
Litton parte para a abstracção a partir da imaginação, e uma imaginação tão viva que
é difícil acreditar que estas pinturas vitais não tenham sido produzidas por um
homem de metade da sua idade.”

Emma leu as críticas e deixou-se invadir pelo orgulho. A pré-inauguração teve lugar
a 3 de Abril e a 10 ainda não havia notícia do regresso de Ben, mas ela ocupou os
dias com tarefas domésticas de passar o tempo e acabou por se mudar para o estúdio
para acabar de o caiar. Isto exigia-lhe pouca concentração mental e a sua mente
vagueava pelo futuro, entregando-se ao tipo de sonhar acordada, a que, um mês
antes, nunca se teria dado ao luxo. Mas agora sentia que as coisas tinham mudado.
Quando fora à estação levar Ben ao comboio para Londres, ele tinha-lhe dado um
beijo de despedida com ar distraído, é certo, como se se tivesse esquecido, por
momentos, de quem ela era, mas ainda assim tinha-a beijado, o que era,
seguramente, um marco. E quando, eventualmente, ele se fartasse da adulação do
público americano e regressasse a Porthkerris, ela via-se a ir esperá-lo ao comboio,
prática e eficiente, a secretária perfeita. Talvez da próxima vez que ele partisse para
um canto distante, mas obviamente colorido, do Globo, levasse Emma, e ela
reservaria os bilhetes, trataria das ligações e manteria Marcus informado dos
movimentos dele.

Depois, um dia ou dois mais tarde, chegou uma carta de Marcus, com o carimbo de
Londres. Ela abriu-a esperançosa, pensando que lhe diria que Ben vinha aí, mas, na
verdade,

92
era simplesmente para dizer que Marcus voltara para Londres sozinho e que Ben
tinha ficado em Queenstown.

O Museu de Belas-Artes é fascinante e se eu pudesse também tinha ficado. Abarca


todas as formas de arte, tem um pequeno teatro e sala de concertos e uma colecção
de joalharia russa que tem de ser vista para se acreditar. A cidade de Queenstown em
si é encantadora, cheia de casas georgianas de tijolo vermelho, plantadas em
relvados verdes e veladas por cornizos em flor... parece que estão lá todas desde o
tempo de Guilherme e Maria, mas, na verdade, vi uma em processo de construção o
relvado a ser moldado em formas arredondadas e os cornizos em pleno
desenvolvimento. É, de certeza, o que dá viver num clima quente e temperado.

Redlands (a propriedade dos Ryan) é uma enorme casa branca com um ”átrio
coberto” assente em colunas, onde o Ben se instala numa cadeira de repouso e
manda vir refrescos de menta por um mordomo chamado Henry. O Henry vai
trabalhar todos os dias num Chevrolet lilás e espera, num futuro não muito
longínquo, vir a ser advogado. É um jovem brilhante e merece realizar a sua
ambição. Também há uma série de campos de ténis, uma cerca vedando um campo
com cavalos fogosos e a inevitável piscina. O Ben, como podes imaginar, não monta
nem joga ténis, mas, quando não está a acrescentar alguma cor local à exposição
retrospectiva, passa longas horas a flutuar na piscina num colchão de borracha.
Lamento que ele tenha ficado longe de ti durante tanto tempo, mas acredito,
sinceramente, que precisa deste descanso. Trabalhou duramente ao longo dos
últimos anos e um pouco de descontracção

93
inofensiva não lhe fará mal nenhum. Se te sentires sozinha, o nosso convite continua
de pé. Anda ficar connosco. Gostávamos tanto que viesses. Saudades.

Marcus.

A caiação estava acabada e o chão do estúdio esfregado. Os desenhos do Ben tinham


sido empilhados e guardados em pastas numeradas. As suas canetas e pincéis postos
por ordem e diversas bisnagas de tinta de óleo solidificada, em tempos utilizadas e
depois abandonadas, tinham sido discretamente atiradas para o caixote do lixo.

Não havia mais nada para fazer.

Ele tinha partido havia duas semanas quando chegou o postal de Christopher. Emma
estava em casa, na cozinha, a fazer café e sumo de laranja, ainda embrulhada no
roupão e com o cabelo atado atrás num rabo-de-cavalo, quando o carteiro, que era
um jovem atrevido de camisa aberta no peito, enfiou a cabeça pela porta e disse:

Como estás esta manhã, beleza?

Óptima, obrigada respondeu Emma, que andava a contas com o atrevimento dele,
desde que tinha voltado de Paris.

Ele acenou-lhe com um molho de cartas.

Todas para o teu velho. Mas., aqui... está um postal para ti. Observou a gravura antes
de Emma lho arrancar da mão. Essas coisas são tão vulgares que não sei como é que
tipos decentes as compram.

Pois claro que não sabes disse Emma rudemente, mal vendo a senhora gorda de
biquini antes de voltar o postal para ver de quem era. O carimbo era de Brookford.

Querida Emma, quando é que vens visitar-me? Não posso ir ver-te porque andamos
atarefadíssimos com os

94
ensaios de Dead on Time. O telefone de Brookford é o
678 e a melhor hora é por volta das dez da manhã, antes de começarmos a trabalhar.
O encenador é um tipo simpático, o contra-regra um pavor, todas as raparigas têm
sardas e não são tão bonitas como tu. Saudades saudades saudades.

Christo.

A cabina telefónica mais próxima ficava quase a dois quilómetros, por isso Emma
desceu a rua até à mercearia a cair de velha, onde comprou cigarros, enlatados e
sabonetes, e telefonou daí.

Era um telefone antigo, com o auscultador em partes separadas e um gancho onde se


carregava para chamar a telefonista. Emma sentou-se em cima de uma grade de
cerveja e esperou que a ligação fosse feita, enquanto uma gata cinzenta e branca,
gorda como uma almofada, se veio deitar em cima dos joelhos dela.

O telefone foi por fim atendido por uma mulher de ar zangado.

Teatro Brookfield.

Posso falar ao Christopher Ferris?

Não sei se ele já chegou.

Importava-se de ver?

Eu vou ver. Quem é que lhe digo que é?

Diga-lhe que é Emma.

A mulher zangada afastou-se. Podia ouvir-se várias vozes, tagarelando. Um homem


lá longe gritava: ”Eu disse aqui e não ali, sua estúpida.” Depois ouviram-se passos e
uma voz. Era Christo.

Emma.

Estás aí Não sabiam se estavas.

95
Claro que estou... vamos começar a ensaiar dentro de cinco minutos... Recebeste o
meu postal?

Esta manhã.

O Ben leu-o?

Ele esperava, obviamente, que ele o tivesse lido.

O Ben não está cá. Está na América. Pensei que soubesses.

Como é que havia de saber?

Tem vindo em todos os jornais.

Os actores não lêem jornais e se o fazem é sempre para lerem sobre teatro. Mas se o
velho está na América, porque é que não me disseste e não vieste fícar comigo?

Por mil razões.

Diz duas.

Bem, ele só tencionava ficar uma semana, no máximo. E eu não sabia onde é que tu
estavas.

Eu disse-te. Em Brookford.

Eu nem sequer sei onde é que fica Brookford.

A trinta e cinco minutos de Londres e há comboios de meia em meia hora. Vem,


anda, por favor. Vem e fica comigo. Estou a morar numa cave sinistra. Cheira a
caruncho e a gatos velhos, mas é muito acolhedora.

Christo, não posso. Tenho de ficar aqui. O Ben vai voltar a qualquer momento, e...

Contaste-lhe que me voltaste a encontrar?

Não, não contei.

Porquê?
O assunto não veio à baila.

Queres dizer que tiveste medo?

Não foi nada disso. Era simplesmente... irrelevante.

Nunca ninguém me chamou irrelevante e se ficou a rir. Oh, gatinha, vem lá. O meu
pequeno ninho de cave precisa do toque de uma mulher. De ser esfregado e assim,
estás a ver?

96
Não posso ir antes de o Ben voltar para casa. Depois vou tentar.

Nessa altura vai ser demasiado tarde. Já terei mandado limpar tudo. Por favor.
Arranjo-te um bilhete de graça para o espectáculo. Ou dois bilhetes e podes trazer
uma amiga. Ou três bilhetes e podes trazê-las todas.

A voz dele dissolveu-se num tom de riso. Ele sempre se tinha rido das próprias
piadas.

Sim, muito engraçadinho retorquiu Emma, mas também se estava a rir.

Estás só a fazer-te cara. Não ficaste comigo em Paris nem vens cuidar da lida da
casa nas regiões selvagens de Surrey. O que é que eu tenho de fazer para conquistar
o teu coração?

Conquistaste-o há anos e é teu desde então. A sério, estou desejosa de te ver. Mas
não posso ir. Não posso ir antes de o Ben voltar.

Christo disse um palavrão.

O telefone começou a fazer pip-pi-pip.

Então ficamos assim disse Christo. Avisa-me quando mudares de ideias. Adeus.

Adeus, Christo.

Mas ele já tinha desligado. Sorrindo com ar tolo e recordando cada palavra que ele
dissera, ela voltou a pousar o auscultador. A gata nos seus joelhos ronronou e Emma
percebeu que ela estava prestes a produzir uma família a qualquer momento. Um
velhote entrou na loja para comprar duas onças de tabaco e, quando ele saiu, Emma
agarrou na gata, pô-la com jeito no chão e procurou no bolso moedas para pagar a
chamada.

Quando é que os gatinhes nascem? perguntou. A velhota por trás do balcão


chamava-se Gertie e usava

dentro e fora de casa uma enorme boina que lhe caía para cima das sobrancelhas.
97
Só o tempo o pode dizer, minha querida. Ela pôs o dinheiro de Emma dentro da sua
gaveta, que era uma lata velha, e deu-lhe o troco. Só o tempo o pode dizer.

Obrigada por me ter deixado usar o seu telefone.

Foi um prazer respondeu Gertie, que estava sempre de ouvido desavergonhadamente


à escuta e voltava a transmitir cada palavra do que ouvira.

Em Março parecia estar-se em pleno Verão. Agora, em Maio, fazia um frio de


Novembro e chovia a cântaros. Ele nunca tinha concebido Porthkerris com chuva:
sempre a imaginara com os azul-brilhantes do Verão, alegre com as asas brancas das
gaivotas e dos iates, tudo deslumbrante à luz de um sol resplandecente. Mas agora as
vagas de chuva, levadas por um vento cortante de oeste, eram atiradas contra as
janelas do hotel como punhados de seixos. As rajadas de vento faziam bater as
janelas, depois assobiavam por baixo das portas, entravam pelas chaminés e faziam
voar cortinados, um vento gélido e inelutável.

Era sábado e Robert, deitado na cama, tinha estado a dormir. Olhou para o relógio e
viu que faltavam cinco para as três, por isso pegou num cigarro, acendeu-o e
continuou deitado a olhar o céu plúmbeo que ultrapassava a janela a grande
velocidade e à espera que o telefone tocasse.

O telefone tocou precisamente às três. Ele levantou o auscultador.

São três horas disse o porteiro.

Muito obrigado.

Tem a certeza de que está acordado?

Tenho. Estou acordado.

Terminou o cigarro, apagou-o, vestiu o roupão turco branco e dirigiu-se à casa de


banho para tomar um duche quente. Não gostava de dormir à tarde, detestava
acordar

98
com a boca pastosa e a sentir que estava à beira de uma violenta dor de cabeça, mas
depois de ter conduzido desde Londres, durante toda a noite, fora impossível ficar
acordado. Tinha almoçado cedo e deixado recado ao porteiro para o chamar. Mas o
vento, assobiando enquanto ele dormia, acordara-o primeiro.

Vestiu-se, pôs uma camisa lavada, deu o nó na gravata, agarrou no casaco do fato e
depois mudou de ideias e vestiu antes uma camisola de lã de gola alta. Penteou-se,
meteu as coisas que tinha em cima do toucador nos bolsos das calças, tirou uma
gabardina de trás da porta e desceu.

No salão ouvia-se o silêncio do meio da tarde. Residentes mais idosos dormitavam,


ressonando levemente no ar seco aquecido. Praticantes de golfe frustrados
observavam a chuva, chocalhando moedas nos bolsos das calças de golfe,
perguntando-se se o tempo iria levantar, se haveria tempo para nove buracos antes
de escurecer.

O porteiro aceitou a chave de Robert e pendurou-a.

Vai sair?

Vou, e talvez o senhor me possa ajudar. Eu queria ir à Galeria da Sociedade dos


Artistas. Creio que é uma antiga capela transformada. Faz alguma ideia de onde
fica?

É lá em baixo na parte velha da cidade. Conhece o caminho?

Conheço o Sliding Tackle disse Robert, e o porteiro sorriu. Gostava de homens que
tinham pubs como referência.

Bem... vai como se fosse para o Sliding Tackle, mas volta para cima na rua antes de
lá chegar. Sobe na direcção oposta ao porto. É uma rua estreita muito íngreme, que
vai dar a um largo. A galeria fica do outro lado do largo. Vê-se logo. Tem grandes
cartazes cá fora... apesar de ninguém conseguir perceber o que é que querem dizer...

99
Bem, vamos lá a ver. Muito obrigado.

Não tem de quê. O porteiro rodou a porta giratória e Robert foi atirado para o frio
cortante. A chuva batia-lhe na cabeça desprotegida, ele recolheu-se mais para dentro
da gabardina e atravessou cautelosamente a gravilha, tentando evitar as poças
maiores. Já dentro do carro este cheirava a húmido e a mofo, cheiros estranhos que
se sobrepunham aos habituais de couro e de cigarros. Ligou o motor e o
aquecimento começou a zumbir. Havia uma folha presa no limpa-vidros, mas
quando ele o ligou a folha foi desalojada e arrancada do vidro molhado pelo vento.

Desceu para a cidade completamente deserta, abandonada, os seus habitantes em


estado de sítio devido ao tempo. Apenas um polícia ensopado estava de serviço no
sopé da colina e uma velhinha debatia-se com um guarda-chuva. As ruas estreitas
funcionavam como chaminés para o vento, que afunilava por elas acima, frio e feroz
como uma torrente, e quando entrou na estrada do porto viu que a maré estava cheia
e o próprio porto cinzento e agitado por ondas de crista branca.

Encontrou a rua que o porteiro lhe descrevera. Subia na direcção oposta do porto,
entre casas amontoadas, as pedras da rua molhadas e brilhantes como as escamas de
um peixe acabado de pescar. Subia até ao cimo da colina e dava para um largo
pitoresco. Robert viu a antiga capela, um edifício sombrio e sólido que contrastava
em absoluto com o cartaz que tinha à porta.

SOCIEDADE DE ARTISTAS DE PORTHKERRIS

EXPOSIÇÃO DE PRIMAVERA

Entrada 5 xelins

Por baixo deste havia um estranho motivo em púrpura

- a sugestão de um olho aberto, uma mão de seis dedos.


100
Robert pensou que era capaz de compreender o ponto de vista do porteiro.

Estacionou o carro, subiu os degraus molhados, entrou e foi imediatamente assaltado


pelo cheiro de um aquecedor a petróleo. Viu que a antiga capela tinha sido caiada, as
paredes acrescentadas em altura para exibir altas janelas interiores e tinha
liberalmente pendurados quadros de todos os tipos e tamanhos.

Logo depois da porta da entrada estava uma senhora de chapéu de feltro com os
joelhos cobertos por uma manta. De um lado, tinha uma mesa de madeira com
catálogos e uma tigela de dinheiro, do outro o aquecedor a petróleo, ao calor do qual
tentava aquecer um par de mãos de nós de dedos vermelhos.

Ah, feche a porta, feche a porta implorou quando Robert entrou trazido por uma
rajada de vento. Ele encostou-se à porta, fechando-a e procurando no bolso das
calças duas meias-coroas. Que dia mais frio continuou ela, e é isto o Verão. O senhor
é o meu primeiro visitante esta tarde. É um visitante, não é? Não é uma cara que eu
tenha visto por aí.

Não, nunca aqui estive antes.

Temos uma colecção bastante interessante. Vai querer um catálogo, claro. Mais
meia-coroa, por favor. Mas penso que concordará comigo que vale a pena.

Obrigado disse Robert, mal se ouvindo. Agarrou no catálogo, decorado com o


mesmo motivo

púrpura do olho e da mão que o cartaz lá fora, e abriu-o ao acaso, percorrendo com
os olhos a lista de artistas à procura do nome que procurava.

Hum... algum artista em particular? A mulher que estava à secretária parecia


hesitante, mas tinha um brilho indiscreto nos olhos.

101
Não... nenhum em particular.

Apenas interessado em geral, suponho. Está instalado em Porthkerris?

Estou... Ele começou a afastar-se dela. De momento estou.

Robert começou a percorrer devagar a longa sala, fingindo interesse por todos os
quadros. Tinha encontrado o nome, Pat Faraaby. Número 24. A Viagem, de Pat
Farnaby. Parou bastante tempo no número 23, depois continuou.

A cor saltou-lhe à vista. Havia uma sensação de grande altura, uma sensação
estonteante, como a vertigem. E, no entanto, ao mesmo tempo uma sensação de
elação, como se se estivesse por cima das nuvens, preso, suspenso, entre o azul e o
branco.

”Tens de lá ir”, tinha dito Marcus. ”Quero que formes uma opinião tua. Não podes
continuar o homem que guarda os livros o resto da tua vida. Além disso, gostava de
ver a tua reacção.”

E fora assim. Aquela nota alta e pura de cor simples.

Algum tempo depois, voltou ao pé da senhora insistente. Tinha a consciência de que


ela o tinha estado a observar o tempo todo. ”Agora”, pensou, ”estava de olho a
brilhar como um pisco ansioso à espera de uma migalha.”

Aquele é o único quadro de Pat Farnaby?

Receio bem que sim. Foi tudo o que conseguimos persuadi-lo a trazer-nos.

Ele vive por aqui, não vive?

Vive. Na Gollan.

Gollan?

Fica a uns dez quilómetros, na estrada do pântano. É uma quinta.

Quer dizer que ele é agricultor?

102
Não, não. Ela riu-se. ”Felizmente”, pensou Robert, como se ela estivesse a seguir as
indicações técnicas de uma peça antiga. Ele mora no palheiro por cima do celeiro.
Aqui. Ela puxou para si um pedaço de papel e escreveu uma morada. Se quer visitá-
lo, tenho a certeza de que o encontrará aqui.

Ele agarrou no papel.

Muito obrigado.

Começou a encaminhar-se para a porta.

Mas não quer ver o resto da exposição?

Talvez noutra altura.

É tão interessante. Parecia que o seu coração se partiria se ele não visse mais alguns
quadros.

Tenho a certeza que sim. Mas fica para outra vez. Foi nesse momento que pensou
em Emma Litton. Com a mão na maçaneta, virou-se para trás. Já agora, se eu
quisesse encontrar a casa de Ben Litton... é perto daqui? A casa, não é o estúdio.

Sim, claro, é mesmo ao virar da esquina. A cerca de uns duzentos metros estrada
abaixo. Tem um portão azul. Vê-se logo. Mas sabe que o senhor Litton não está, não
sabe?

Sim, eu sei.

Está na América.

Sim, também sei disso.

Continuava a chover a cântaros. Ele voltou a entrar no carro, pôs o motor a trabalhar
e conduziu-o por uma rua abaixo tão estreita quanto inclinada. Ao pé do portão azul
deixou-o estacionado, ocupando a rua toda, entrou pelo portão, desceu um lanço de
escadas, que conduziam a um pátio de laje onde havia vasos de plantas que pareciam
afogadas e um banco de madeira pintado, lentamente desintegrado pela humidade. A
casa em si era longa e baixa, de rés-do-chão.

103
mas os telhados desnivelados e os tubos de chaminé desiguais indicavam que tinham
sido em tempos duas pequenas casas, ou mesmo três. Aporta da frente estava pintada
de azul, a condizer com o portão, e tinha um golfinho de cobre como aldraba.

Robert bateu. Um jorro de água escorreu de cima de uma goteira defeituosa,


molhando-o. Ele recuou, olhou para cima, para ver de onde vinha a água, e ao fazê-
lo a porta abriu-se.

Ele disse:

Boa-tarde. A goteira tem um buraco.

De onde diabo surgiste tu?

De Londres. Devias mandá-la arranjar, senão enferruja.

Vieste de Londres para me dizer isso?

Não, claro que não. Posso entrar?

Claro... Ela afastou-se para trás segurando a porta aberta, para ele entrar. Tu és do
mais desconcertante que pode haver. Estás sempre a aparecer sem mais nem menos,
sem avisar.

Como é que alguém te pode avisar se não tens telefone? E não havia tempo para
cartas.

É sobre o Ben?

Robert entrou, baixando a cabeça sob o lintel da porta, enquanto desabotoava a


gabardina molhada.

Não. Deveria ser?

Pensei que ele talvez tivesse chegado.

Pelo que sabemos, ainda se está a bronzear ao balsâmico sol da Virgínia.

Bom, então?

Ele virou-se para olhar de frente para ela. Ocorreu-lhe então que, de uma forma
estranha, ela era tão imprevisível como o próprio tempo. Cada vez que a via, ela
parecia uma

104
pessoa diferente. Naquele dia usava um vestido de riscas vermelhas e laranja e meias
pretas. Tinha o cabelo apanhado atrás, na nuca, com um travessão de tartaruga, e a
franja crescera. Estava demasiado comprida, ia meter-se-lhe nos olhos, conferia-lhe
um olhar vesgo. Enquanto a olhava, ela puxou a franja para trás, tirando-a da cara
com a palma da mão. Era um gesto simultaneamente defensivo e desarmante que a
fazia parecer muito jovem.

Ele tirou o pedaço de papel do bolso e estendeu-lho. Ela leu-o em voz alta.

Pat Farnaby, quinta Gollan Home. Olhou para ele. Onde é que arranjaste isto?

Deu-me a mulher da galeria de arte.

Pat Farnaby?

O Marcus está interessado.

Porque é que não veio ele?

Queria uma segunda opinião. A minha.

Já formaste alguma?

É difícil de dizer depois de ver só um quadro. Pensei que talvez conseguisse ver
mais alguns.

Emma advertiu:

Ele é um jovem muito estranho.

Eu já estava à espera disso. Sabes onde fica a quinta Gollan?

Claro. Pertence ao senhor e à senhora Stevens. Costumávamos ir fazer piqueniques


de Verão nos rochedos. Mas desde que cheguei ainda não os fui visitar.

Podes vir comigo agora? Para me indicar o caminho?

Como é que vamos?

O carro está lá fora. Eu vim de carro de Londres a noite passada.

Deves estar exausto.


Não, dormi um bocado.

105
Onde é que estás instalado?

No hotel. Podes vir? Agora?

Claro.

Vais precisar de um casaco. Emma sorriu-lhe.

Se puderes esperar trinta segundos, eu vou buscar um.

Depois de ela sair, o barulho dos seus passos ouviu-se num corredor sem passadeira.
Robert acendeu um cigarro e ficou a olhar em volta, intrigado não só pela forma
estranha da casa mas também porque esta representava o lado menos familiar, o lado
doméstico da personalidade tempestuosa de Ben Litton.

A porta da frente azul tinha-o conduzido directamente para a sala de jantar, de tecto
baixo e com pouca luz. Havia uma grande janela, com vista para o mar, o seu
parapeito profundo apinhado de plantas de interior gerânios, hera e um pote
vitoriano cheio de rosas cor-de-rosa. O chão era de laje, semeado de tapetes de cores
vivas, havia livros e revistas por todo o lado e muita cerâmica espanhola azul e
branca. Numa lareira de granito, ao nível do chão, um tronco ardia lentamente,
flanqueado por cestos de lenha molhada; por cima dela estava pendurado o único
quadro da sala.

O seu olho profissional tinha reparado nele assim que entrara, mas agora aproximou-
se para o inspeccionar mais de perto. Era um grande óleo de uma criança em cima
de um burro. A menina usava um vestido vermelho, segurava um ramo de
margaridas brancas e tinha uma coroa delas nos seus cabelos negros. O burro estava
enterrado até aos joelhos na luxuriante erva de Verão e lá muito atrás o mar e o céu
inundados por uma névoa de bom tempo. Os pés pendentes da menina estavam
descalços e os olhos pareciam claros no brilho moreno do seu rosto.

106
Emma Litton, pelo pai. Robert perguntava-se quando é que teria sido pintado.

O vento elevou-se, com um súbito guincho de bruxa, e atirou uma torrente de chuva
contra a janela. Era um som arrepiante e ele capacitou-se de que aquele podia ser um
sítio solitário para se viver; perguntou-se o que é que Emma encontraria para fazer
num dia assim. Quando ela voltou, trazendo o casaco e um par de botas de borracha,
que começou a calçar, ele perguntou-lhe isso mesmo.

Oh, limpo a casa, cozinho e vou às compras. Tudo isso leva bastante tempo.

E esta tarde? O que é que estavas a fazer esta tarde quando eu bati à porta?

Emma puxou com força a bota que estava a calçar.

Estava a passar a ferro.

E à noite? O que é que fazes à noite?

Normalmente saio. Dou passeios e coisas assim. Vou ver as gaivotas e os corvos-
marinhos. Vejo o pôr do Sol, apanho lenha para a lareira...

Sozinha? Não tens amigos?

Tenho, mas os miúdos que viviam aqui quando eu era pequena cresceram todos e
foram-se embora.

Parecia uma resposta triste. Num impulso, Robert disse:

Podias voltar comigo para Londres. A Helen ia adorar que fosses.

Sim, eu sei, mas não vale a pena, pois não? Afinal de contas, o Ben vai voltar de um
momento para o outro. É só uma questão de dias.

Ela começou a vestir o casaco. Era azul-marinho e juntamente com as meias pretas e
as botas de borracha parecia uma menina de escola.

Tiveste notícias do Ben? perguntou Robert.

Do Ben? Deves estar a brincar.

107
Começo a desejar que nunca tivéssemos sugerido que ele voltasse à América.

Porquê?

Porque não parece justo em relação a ti.

Oh, pelo amor de Deus, eu estou bem. Ela sorriu.

Vamos?

A quinta dos Stevens ficava numa extensão cinzenta de pântano que se estendia até
aos rochedos. Coberta de líquenes cinzentos, embutida como uma pedra perfurando
a terra, poderia ser simplesmente mais um afloramento maior de granito. O caminho
que descia a partir da estrada causava uma ferida profunda entre as altas vedações de
pedra, coroadas de espinheiros e silvas. O carro avançou aos solavancos pelo
caminho abaixo, atravessou uma pequena ponte, um bando de gansos brancos e, por
fim, o terreiro estridente da quinta, devido ao cantar de um galo pequeno.

Robert parou o carro e desligou o motor. O vento estava a amainar, a chuva parecia
ter congelado num nevoeiro vindo do mar, denso como fumo. Havia vários sons de
quinta

vacas a mugir, galinhas a cacarejar, a trepidação distante de um tractor.

Agora como é que eu encontro o homem? perguntou Robert.

Ele vive no palheiro do celeiro... sobe os degraus até à porta dele.

Os degraus de pedra já estavam ocupados por uma série de galinhas molhadas,


bicando grãos de cereais, e por um gato malhado com ar aborrecido. Por baixo deles,
na lama do terreiro, uma enorme porca chapinhava para trás e para diante. Havia um
forte cheiro a estrume. Robert suspirou.

As coisas que eu tenho de fazer em nome da Arte. Abriu a porta do carro e começou
a sair. Queres vir?

Penso que serei mais útil se não for atrapalhar.

108
Vou tentar não me demorar muito.

Ela observou-o enquanto ele atravessava, com cuidado, o pátio alagado da quinta,
afastava a porca com o pé e subia cautelosamente os degraus. Ele bateu à porta e
depois, quando não houve resposta, abriu-a e entrou. A porta fechou-se atrás dele.
Quase ao mesmo tempo abriu-se outra porta, na casa da quinta desta vez, e a senhora
Stevens surgiu, de botas, impermeável até aos tornozelos e chapéu de oleado preto.
Trazia um grande pau e descia o caminho do jardim, espreitando por entre a chuva
para ver quem é que estava dentro do grande carro verde.

Emma abriu a janela.

Olá, senhora Stevens. Sou eu.

Quem?

Emma Litton.

A senhora Stevens desfez-se numa exclamação de espanto deliciado e levou a mão


ao peito.

Emma! Mas que surpresa! Não te vejo sabe Deus há quanto tempo. O que é que
estás aqui a fazer?

Vim com um senhor que queria falar com o Pat Farnaby. Está lá em cima com ele.

O teu pai já voltou?

Não, ainda está na América.

Estás sozinha, então.

É isso mesmo. Como está o Ernie? O Ernie era o senhor Stevens.

Está óptimo, mas hoje teve de ir à cidade, ao dentista, por causa da placa. Dá-lhe
vómitos, mal consegue mante-la na boca. Por isso sou eu quem tem de recolher as
vacas...

Num impulso, Emma disse:

Eu vou consigo...
Está tudo molhado.

109
Eu tenho botas... além disso, vou gostar do passeio. Na verdade, ela gostava da
senhora Stevens, uma mulher que se mantinha inesgotavelmente alegre em todas as
circunstâncias. Atravessaram a vedação e começaram a andar no campo alagado.

Tens estado no estrangeiro, não tens? perguntou a senhora Stevens. Não sabia que
tinhas voltado. Foi uma pena o teu pai ter de partir assim. Mas suponho que não se
pode evitar, sendo ele o tipo de homem que é...

A entrevista com Pat Farnaby foi difícil, no mínimo. Ele era um jovem impetuoso,
muito pálido e subalimentado, com uma guedelha ruiva e barba a condizer. Os seus
olhos eram verdes e desconfiados como os de um gato faminto e parecia estar muito
sujo. Os seus aposentos também transpiravam sujidade, mas isto Robert já esperava,
e, por conseguinte, ignorou-o.

O que ele não esperava, contudo, era tanta agressividade. Pat Farnaby não gostava
que estranhos entrassem sem serem convidados nem anunciados quando estava a
trabalhar. Robert desculpou-se e explicou que estava ali para tratar de negócios,
perante o que o jovem lhe perguntou simplesmente o que é que ele estava a tentar
vender.

Vencendo a irritação, Robert tentou outra táctica. Com alguma cerimónia apresentou
o cartão de Marcus Bernstein.

O senhor Bernstein pediu-me que viesse visitá-lo, talvez ver o seu trabalho,
descobrir quais são os seus planos...

Não tenho planos nenhuns respondeu o artista. Eu nunca faço planos. Tratou o
cartão como se estivesse contaminado e não devesse ser tocado, de forma que
Robert foi obrigado a pô-lo no canto de uma mesa cheia de tralha desarrumada.

Vi o seu quadro na galeria em Porthkerris, mas é só um quadro.

110
O OUTRO LADO DO AMOR

E então?

Robert limpou a garganta. O Marcus era infinitamente melhor a tratar daquele tipo
de coisas, nunca perdia a calma. Aquela paciência levava tempo a cultivar, Robert
sabia-o. A sua estava a escorregar-lhe como uma corda gordurosa por entre os dedos.
Agarrou-a com mão firme.

Gostava de ver mais alguns dos seus trabalhos. Os olhos pálidos de Pat Farnaby
semicerraram-se.

Como é que me encontrou? perguntou, suando como um criminoso encurralado.

Deram-me a sua morada na galeria. Emma Litton veio comigo para me indicar o
caminho. Talvez conheça a Emma.

Tenho-a visto por aí.

Pareciam não estar a chegar a lado nenhum. No silêncio que se seguiu, Robert
deixou os seus olhos percorrerem o estúdio malcheiroso. Havia apenas os sinais
mais sórdidos de habitação humana uma cama como um ninho a desintegrar-se, uma
frigideira suja, umas meias nojentas de molho dentro de um balde, uma lata de
feijões aberta, o rebordo denteado da tampa levantado. Mas também havia muitas
telas, amontoadas, espalhadas, em cima de cadeiras, encostadas às paredes. Um
potencial tesouro desconhecido. Ansioso por inspeccioná-las, arrastou os olhos para
voltar a encarar o olhar fixo e frio do artista.

Disse por fim, com brandura:

Senhor Farnaby, eu não tenho todo o tempo do mundo.

Posta à prova, a resistência de Pat Farnaby quebrou-se. Pareceu ficar de imediato


inseguro. A arrogância e a rudeza eram as suas defesas contra os caprichos de um
mundo mais sofisticado. Coçou a cabeça, franziu o sobrolho, fez uma cara de
resignação e por fim foi buscar umas quantas telas que virou para a luz.
É o que há informou, com voz pouco firme, e recuou para ficar ao pé de Robert.
Enquanto o fazia, Robert tirou um maço de cigarros novo do bolso e estendeu-o ao
jovem. No silêncio que se seguiu, Pat Farnaby desembrulhou com cuidado o plástico
envolvente, tirou um cigarro, acendeu-o e depois, com os movimentos furtivos de
um homem que não deseja ser observado, enfiou o maço dentro do seu bolso das
calças.

Uma hora depois, Robert voltou para o carro. Emma, à espera dele, viu-o descer os
degraus do celeiro e atravessar com prudência o terreiro da quinta. Ela inclinou-se
para lhe abrir a porta e quando ele se sentou ao seu lado, perguntou-lhe:

Como é que te saíste?

Penso que bem. Ele parecia cauteloso, mas excitado.

Ele mostrou-te o trabalho dele?

A maior parte.

E é bom?

Acho que sim. Podemos estar à beira de uma coisa extremamente importante, mas
está tudo numa confusão tão grande que é difícil ter a certeza. Não está nada
emoldurado, não há nenhuma sequência nem ordem...

Eu tinha razão, não tinha? Ele é um tipo um bocado estranho, não é?

Completamente passado concordou Robert. Sorriu-lhe. Mas um génio.

Ele fez inversão de marcha no pátio e voltou para o caminho em direcção à estrada.
Ia a assobiar desafmadamente por entre dentes e Emma sentiu, por trás da excitação
dele, a satisfação de um trabalho bem feito.

112
Ela observou:

Agora vais querer falar com o Marcus.

Eu disse que lhe telefonava imediatamente. Afastou a manga para descobrir o


relógio e viu as horas. Seis e um quarto. Ele disse que esperava na galeria até às sete
e depois ia para casa.

Se quiseres podes deixar-me no cruzamento e eu vou a pé para casa.

Ora, porque é que havia de fazer isso?

Eu não tenho telefone e tens de voltar depressa para o hotel.

Ele sorriu.

Não é assim tão urgente. Se não fosses tu é provável que eu ainda andasse à procura
do Pat Farnaby. O mínimo que posso fazer é levar-te a casa.

Estavam agora no pântano, muito acima do mar. O vento tinha amainado bastante,
mudando para oeste, e em frente o céu parecia estar a abrir e a desintegrar-se, havia
inesperadas extensões de azul, que aumentavam a cada momento, e raios diluídos de
sol. Emma disse:

Vai estar uma noite magnífica e enquanto falava teve a consciência de que não
queria que Robert voltasse para o hotel e a deixasse a passá-la sozinha. Ele tinha
surgido de forma inesperada, naquele dia sombrio, tinha-lhe dado forma e objectivo,
enchera-o do companheirismo de uma aventura partilhada e agora ela não queria que
o dia acabasse.

Indagou:

Quando é que voltas para Londres?

Amanhã de manhã. Domingo. Tenho de estar na galeria segunda de manhã. Tem


sido um fim-de-semana cheio.

Então só havia aquela noite. Ela imaginava-o a telefonar a Marcus do telefone ao pé


da cama. Depois tomaria um banho, talvez uma bebida, e desceria para jantar. Aos
sábados,

113
à noite, o Hotel Castelo dava pequenos bailes havia uma banda de casacos brancos e
parte da sala era disponibilizada para dançar. Muito influenciada por Ben, Emma
fora levada a encarar tais divertimentos como coisas insuportavelmente finas e
aborrecidas, mas naquela noite sentia que seria divertido mandar as opiniões rígidas
de Ben para o diabo. Ansiava pelas toalhas brancas engomadas, pelos sucessos
musicais dos últimos anos, pelo ritual da lista dos vinhos, pelo brilho aumentado das
luzes em tons rosados.

A seu lado, Robert falou inesperadamente, interrompendo o fio dos seus


pensamentos.

Quando é que o teu pai pintou o quadro em que estás em cima do burro?

Porque é que perguntaste isso de repente?

Estava a pensar nisso. É encantador. Pareces tão solene e importante.

Foi assim que me senti, solene e importante. Eu tinha seis anos e foi a única pintura
que ele fez de mini. O burro chamava-se Mokey. Costumava carregar-nos para cima
e para baixo para a praia, juntamente com os cestos de piquenique e coisas assim.

Viveste sempre naquela casa?

Sempre não. Só desde que o Ben casou com a Hester. Antes disso ficávamos em
qualquer lado: em pensões ou em casa de amigos. Às vezes acampávamos
simplesmente no estúdio. Era bastante divertido, mas a Hester dizia que não tinha a
menor intenção de viver como uma cigana, por isso comprou as casas e arranjou-as.

Ela fez um bom trabalho.

Pois fez, ela era esperta. Mas o Ben nunca pensou naquela casa como lar. O seu lar é
o estúdio e quando está em Porthkerris passa o menos tempo possível em casa.
Penso que as associações da casa à Hester o deprimem um pouco.

114
Está sempre à espera que ela entre e lhe diga que ele está atrasado para qualquer
coisa, ou que está a sujar o chão de lama, ou que está a largar tinta nas almofadas do
sofá...

O espírito criativo parece florescer na desordem. Emma riu-se.

Achas que quando tu e o Marcus tornarem o Pat Farnaby rico e famoso ele vai
continuar a querer viver com as galinhas da senhora Stevens?

Isso é o que vamos ver. Mas se sempre vier para Londres, não há dúvida de que
alguém vai ter de lhe dar uma boa esfrega e limpar-lhe o pó imemorial daquela barba
escrofulosa. Mesmo assim... Ele espreguiçou-se luxuriosamente, curvando as costas
contra o banco de couro. Vai valer a pena.

Tinham subido a colina e estavam agora a descer a longa estrada que conduzia a
Porthkerris. O mar, à luz calma do fim da tarde, modificara o azul translúcido de
asas de borboleta; a maré estava vazia e a enorme baía era um arco de areia recém-
lavada. A chuva deixara tudo a luzir e fresco e à medida que deixavam os pântanos e
os campos para trás, e desciam através das ruas estreitas, Emma via janelas abertas
de par em par para deixar entrar o ar fresco do fim da tarde e apanhar os cheiros
fortes de rosas e lilases provenientes de pequenos jardins.

Também havia outros cheiros. Cheiros de sábado à noite, de peixe a fritar e


perfumes baratos. E havia pessoas percorrendo os passeios com as suas melhores
roupas, uns quantos precoces visitantes de Verão e rapazes e raparigas, de mãos
dadas, que se encaminhavam para o cinema e para os pequenos cafés que orlavam a
estrada do porto.

Enquanto estavam parados no cruzamento ao pé do polícia de serviço, Robert


observou-os.

O que é que os jovens apaixonados fazem em Porthkerris ao sábado à noite, Emma?


115
Depende do tempo.

O polícia fez-lhes sinal para avançarem.

O que é que nós vamos fazer? perguntou Robert.

Nós?

Sim. Tu e eu. Queres ir jantar fora?

Por um momento Emma perguntou-se se tinha estado a suspirar em voz alta.

Bem... eu... não tens de te sentir obrigado a...

Eu não me sinto obrigado a nada. Gostava. Onde vamos? Ao meu hotel? Ou


detestavas?

Não... claro que... que não detestava.

Talvez haja algum sítio italiano interessante de que gostes mais.

Não há sítios italianos interessantes em Porthkerris.

Pois, já calculava que não houvesse. Então vai ter de ser com palmeiras e
aquecimento central.

Também há uma banda informou Emma, sentindo que devia avisá-lo. Aos sábados à
noite. E as pessoas dançam.

Dito assim parece uma coisa indecente.

Pensei que não gostasses desse tipo de coisas. O Ben não gosta.

Não me desagrada absolutamente nada. Como a maior parte das coisas, pode ser
bastante divertido se for feito com a pessoa certa.

Nunca tinha pensado nisso dessa forma. Robert riu-se e voltou a olhar para o
relógio.

Seis e meia. Vou levar-te a casa, vou voltar ao hotel, mudo de roupa, ligo para o
Marcus e depois volto para te buscar. Sete e meia é tempo suficiente?
Ofereço-te uma bebida convidou Emma. Há uma garrafa de uísque Uncle Remus’
Genuine Ole Rye que deram ao Ben há dez anos e ainda não foi aberto. Sempre
desejei saber o que é que tem dentro

116
Mas Robert não ficou entusiasmado.

Talvez seja melhor tomar apenas um martini.

No hotel foi buscar a chave e com ela três recados.

A que horas foram deixados os recados?

As horas estão anotadas. Três e quarenta e cinco, cinco horas e cinco e meia. Um
senhor Bernstein, a telefonar de Londres. Disse para lhe ligar assim que chegasse.

Eu ia fazê-lo, de qualquer forma, mas obrigado. Franzindo um pouco o sobrolho,


pois uma impaciência

assim não era característica de Marcus, Robert subiu para o seu quarto. Os
telefonemas copiosos eram perturbadores. Perguntava-se se Marcus teria ouvido
rumores de que outra galeria qualquer andasse atrás do jovem artista. Ou talvez
tivesse repensado a questão da obra de Farnaby e quisesse cancelar tudo.

No seu quarto, as cortinas tinham sido corridas, a cama feita, o aquecimento ligado.
Sentou-se na cama, agarrou no auscultador e deu o número da galeria. Retirou os
três recados do bolso e dispô-los ao lado uns dos outros em cima da mesa-de-
cabeceira. ”O senhor Bernstein gostava que lhe ligasse. O senhor Bernstein ligou,
telefona mais tarde. O senhor Bernstein...”

Kent 3778. Galerias Bernstein.

Marcus...

Robert, graças a Deus que finalmente te consegui apanhar. Recebeste os meus


recados?

Três. Mas eu disse que te ligava por causa do Farnaby.

Isto não é sobre o Farnaby. Isto é sobre o Ben Litton.

Havia um vestido que ela vira em Paris, tremendamente


Caro, de cavas, muito simples.

117
Mas quando é que vais usar um vestido assim? perguntara a senhora Duprés, e
Emma, gozando o luxo da compra, respondera:

Oh, um dia. Numa altura qualquer especial. Nunca tinha havido uma altura assim até
àquela noite.

Agora, com o cabelo enrolado ao alto e pérolas nas orelhas, Emma enfiou
cuidadosamente o vestido preto pela cabeça, correu o fecho, apertou o cinto
minúsculo e o seu reflexo no espelho deu-lhe a certeza de que aqueles milhares de
francos tinham sido bem gastos.

Quando Robert chegou, ela estava na cozinha, debatendo-se com o saco de cubos de
gelo para os martinis que ele prometera preparar. Ela ouviu o carro dele, o bater da
porta, o portão a abrir e a fechar, os seus passos enquanto descia os degraus a correr
e, em pânico, atirou o gelo para um prato de vidro, foi abrir-lhe a porta e viu que o
dia sombrio se tinha transformado numa noite limpa e perfeita, azul-rubi e povoada
de estrelas.

Surpreendida, exclamou:

Que noite tão bonita.

Espantosa, não está? Depois de todo aquele vento e chuva Porthkerris parece
Positano. Ele entrou e Emma fechou a porta. Até há uma Lua a subir do mar para
completar a ilusão. Agora só precisamos de uma guitarra e de um tenor a cantar
Santa Lúcia.

Talvez encontremos algum.

Ele tinha mudado para um fato cinzento-escuro, camisa engomada com um


colarinho impecável e um brilho de botões de punho brancos, ligados a ouro,
aparecia-lhe no pulso. O seu cabelo castanho-alourado estava outra vez liso e muito
bem penteado e trazia consigo o cheiro fresco de limão do aftershave.

118
Ainda queres preparar um martini? Tenho tudo pronto, estava só a tentar arranjar o
gelo... Ela voltou à cozinha, levantando a voz para falar através da porta aberta. O
gim e o martini estão em cima da mesa, juntamente com um limão. Ah, e vais
precisar de uma faca para cortar o limão.

Ela abriu uma gaveta, encontrou uma faca pontiaguda e muito afiada, e levou-a, com
o balde do gelo, para a sala.

Que pena o Ben não estar aqui. Ele adora martinis, só que nunca se lembra das
proporções certas e enche-os de limão...

Robert não retorquiu. Ocorreu então a Emma que ele não fizera qualquer esforço
para se pôr à vontade. Não tinha feito nada em relação à preparação das bebidas,
nem sequer acendido um cigarro, e isto só por si era estranho, pois ele era
normalmente do mais descontraído e calmo. Mas agora havia nele um nítido
constrangimento e, com o coração apertado, Emma perguntou-se se ele já estaria a
arrepender-se da noite que iam passar juntos.

Ela foi pôr o limão ao pé dos copos vazios, disse para si mesma que estava a
imaginar coisas e voltou-se para sorrir rapidamente para ele.

Ora então, de que precisas mais?

De mais nada respondeu Robert, e meteu as mãos nos bolsos das calças. ”Não é o
gesto de um homem que vai beber um martini.” Na lareira, um tronco a arder
descaiu partindo-se e espalhando um mar de faúlhas.

Talvez fosse o telefonema que o tivesse perturbado.

Falaste com o Marcus?

Falei. Na verdade, ele tinha estado a tentar apanhar-me durante quase toda a tarde.

E claro que não estavas. Ficou satisfeito quando lhe contaste sobre o Pat tarnaby?

119
Ele não tinha estado a ligar por causa do Pat Farnaby.

Ah não? De repente, ela teve medo. São más notícias?

Não, claro que não, mas podem não te agradar. É sobre o teu pai. Sabes, ele
telefonou ao Marcus esta manhã, dos Estados Unidos. Queria que o Marcus te
dissesse que ele e a Melissa se casaram ontem, em Queenstown.

Emma capacitou-se de que ainda tinha a faca na mão, que esta era muito afiada e
que podia cortar-se, por isso pousou-a, muito cuidadosamente, ao lado do limão.

Casaram. A palavra evocou no seu pensamento uma imagem histérica de um


casamento: de Ben com uma flor branca numa casa de botão do seu casaco bambo
de bombazina; de Melissa Ryan no seu fato de fazenda cor-de-rosa, coberta por um
véu branco e por papelinhos; de sinos de igreja dementes repicando a sua mensagem
pelos campos verdejantes da Virgínia que Emma nunca tinha visto. Era como um
pesadelo.

Ela percebeu que Robert Morrow ainda estava a falar, a sua voz num tom
monocórdico e calmo.

O Marcus acha que de uma forma obscura a culpa é dele. Porque ele pensou que a
pré-inauguração era uma boa ideia e porque esteve com eles em Queenstown, viu-os
juntos o tempo todo e não percebeu o menor indício de que isto ia acontecer.

Emma lembrou-se da descrição de Marcus da casa bonita, viu Ben enjaulado pelo
dinheiro de Melissa, um tigre a andar para trás e para diante com todos os seus
impulsos criativos castrados pelo luxo e percebeu que subestimará Melissa Ryan ao
imaginar que Ben seria desencorajado pelo facto de ter de lutar pelo que queria. Ela
não tinha considerado até que ponto ele o quereria.

Subitamente, ficou zangada.

120
Ele nunca devia ter ido à América. Não havia necessidade. Ele queria simplesmente
ser deixado em paz para continuar a pintar.

Emma, ninguém o obrigou a ir.

Não é que o casamento vá durar. O Ben nunca foi fiel a uma mulher mais de seis
meses e não estou a ver a Melissa Ryan disposta a isso.

Robert disse com brandura:

Talvez desta vez resulte e dure.

Mas tu viste-os juntos no dia em que se conheceram. Não conseguiam tirar os olhos
um do outro. Se ela fosse velha e feia, nada o teria arrastado de Porthkerris.

Mas ela não era velha nem feia. Ela é muito bonita, extremamente inteligente e
muito rica. E se não tivesse sido a Melissa Ryan, em breve teria sido outra qualquer,
e, o que é mais... ele continuou, rapidamente, antes que Emma pudesse interromper
sabes tão bem como eu que isso é verdade.

Ela disse com amargura:

Mas, pelo menos, estaríamos juntos mais de um mês. Robert abanou a cabeça,
irremediavelmente.

Oh, Emma, deixa-o. O tom dele enfureceu-a.

Ele é meu pai. O que é que há de errado em querer estar com ele?

Ele não é nem um pai nem um marido ou um amante ou um amigo. Ele é um artista.
Como aquele maníaco obcecado que fomos visitar esta tarde, também é um artista.
Não têm tempo para os nossos valores ou padrões. Tudo e toda a gente têm de estar
em segundo lugar.

Segundo lugar? Eu não me importava de estar em segundo lugar, ou terceiro, ou


quarto. Mas eu vim sempre no fim de uma longa lista de prioridades. A pintura dele,
os
121
romances dele, o seu perpétuo deambular pelo mundo inteiro; até depois do Marcus
e de ti. São todos mais importantes para o Ben do que eu alguma vez fui.

Então deixa-o em paz. Pensa outra coisa qualquer para variar. Deixa este sítio,
abandona essa ideia. Arranja um emprego.

Já fiz tudo isso. Andei a fazê-lo durante os últimos dois anos.

Então volta comigo para Londres e fica com o Marcus e com a Helen. Sais de
Porthkerris, vai dar-te tempo para te habituares à ideia de o Ben estar casado outra
vez, para decidires o que queres fazer a seguir.

Talvez eu já tenha decidido.

Já lá estava, no mais recendido da sua mente. Como se estivesse a observar o palco


da plateia às escuras de um teatro. À medida que um cenário desaparece, o novo
cenário entra lentamente no palco. Um cenário diferente. Outra sala, talvez. Outra
vista de outra janela.

Mas não quero ir para Londres.

E esta noite?

Emma franziu o sobrolho. Tinha-se esquecido.

Esta noite?

Vamos jantar juntos.

Ela sentiu que não conseguia.

Acho melhor não...

Vai fazer-te bem...

Não vai nada. E estou com uma dor de cabeça horrível...

Era uma desculpa inventada à pressa e ficou espantada quando percebeu que era
realmente verdade. Uma dor penetrante como o princípio de uma enxaqueca, sentia
os olhos arrastados por arames para a parte de trás da cabeça. Pensar em comida,
galinha com molho, gelado, causava-lhe náuseas.
122
Eu não conseguiria ir. Não conseguiria. Robert disse suavemente:

Não é o fim do mundo.

E o velho e reconfortante cliché foi de mais para Emma. Para seu horror, começou a
chorar. Cobriu a cara com as mãos, enterrando as pontas dos dedos no cabelo,
tentando parar, sabendo que chorar só ia piorar as coisas, que cegaria de dor, que ia
ficar agoniada...

Ouviu-se dizer o nome dela e em duas passadas ele tinha atravessado o espaço que
os separava. Abraçou-a, embalando-a e deixando-a chorar sobre as imaculadas
lapelas cinzentas do seu fato caro. Emma não tentou afastar-se, ficou quieta,
firmemente esmagada contra o seu próprio desgosto, hirta e insensível, e odiando-o
pelo que ele lhe tinha feito.
123
Jane Marshall, de copo meio de uísque com gelo, na mão, perguntou:

E o que é que aconteceu depois?

Não aconteceu nada. Ela não quis vir jantar e parecia que ia ter um ataque de nervos,
por isso meti-a na cama, dei-lhe uma bebida quente e uma aspirina, a seguir voltei
para o hotel e jantei sozinho. Depois, na manhã seguinte, no domingo, fui lá a casa
para me despedir antes de voltar para Londres. Ela estava levantada, muito pálida,
mas parecia estar bem.

Tentaste outra vez que ela viesse contigo?

Tentei, mas ela foi inflexível. Por isso despedimo-nos e vim-me embora. E desde
então não há notícias.

Mas com certeza que consegues descobrir onde ela está.

Não há maneira de descobrir. Não há telefone, nunca houve. O Marcus escreveu,


claro, mas a Emma parece ter herdado a aversão característica do Ben a responder a
cartas. Não houve mais notícias.

Mas isso é de doidos. Hoje, em pleno século xx... deve haver alguém que vos possa
dizer...

Não há ninguém. A Emma não falava com ninguém. Não havia mulher-a-dias que
fosse limpar a casa, era ela que fazia tudo. Foi essa a grande razão inicial, porque ela
voltou

125
para Porthkerris, para tratar da casa do Ben. Claro que ao fím de duas semanas de
silêncio absoluto o Marcus não aguentou mais e fez uma chamada para o
proprietário do Sliding Tackle, que é o pub que o Ben costumava frequentar. Mas o
Ben estava fora há seis semanas e Emma nunca se aproximava do sítio.

Então têm de ir a Porthkerris e perguntar.

O Marcus não está disposto a isso.

Porque não?

Por muitas razões. Emma já não é nenhuma criança. Ela foi magoada e o Marcus
respeita o facto de que se ela quer que a deixem em paz ele não tem o direito de
interferir. Ele convidou-a para vir para Londres e ficar com ele e com a Helen... Pelo
menos até ela assentar os pés na terra outra vez. Mais do que isso não pode fazer. E
há ainda outra razão.

Eu sei afirmou Jane. É a Helen, não é?

É concordou Robert, detestando admiti-lo. A Helen ressentiu-se desde sempre com o


ascendente que o Ben tem sobre o Marcus. Houve vezes em que ela de boa vontade
teria visto o Ben afogar-se. Mas aceitou tudo porque tinha de aceitar, porque orientar
a carreira do Ben faz parte do trabalho do Marcus, e sem o Marcus para o manter
mais ou menos na linha só Deus sabe o que teria sido do Ben Litton.

E ela, agora, não quer que ele comece a matar-se por causa da Emma.

Precisamente.

Jane agitou o copo, deixando o gelo bater no vidro. Inquiriu:

E tu?

Ele olhou para cima. Eu o quê?


126
Sentes-te envolvido?

Porque é que perguntas?

Pareces envolvido.

Mal conheço a rapariga.

Mas estás preocupado com ela. Ele pensou nisso.

Pois estou concordou, por fim. Sim, suponho que estou preocupado. Só Deus sabe
porquê.

O copo dele estava vazio. Jane pousou a sua bebida e levantou-se para levar o copo
dele e servir-lhe outro uísque. De trás dele, enquanto servia o gelo, perguntou:

Porque não vais tu a Porthkerris tentar descobrir?

Porque ela não está lá.

Não está?... Sabes que ela não está lá? Mas não me tinhas dito isso.

Depois do telefonema inútil para o Sliding Tackle, o Marcus começou a ficar muito
ansioso. Ligou para a polícia local, eles descobriram alguns factos e ligaram para
nós. Casa fechada, estúdio fechado, correios com ordem de guardar toda a
correspondência até novo aviso. Ele estendeu o braço para aceitar a nova bebida que
Jane lhe estendia por cima das costas do sofá. Obrigado.

E o pai dela?... Ele sabe?

Sabe. O Marcus escreveu a contar-lhe. Mas não se pode esperar que o Ben fique
perturbado por aí além. Afinal de contas, ele ainda está a meio do que pode ser
considerado uma lua-de-mel e Emma anda a vaguear pela Europa sozinha desde os
catorze anos. Não te esqueças de que isto não é uma relação normal entre pai e filha.

Jane suspirou.

Ah, pois não.

Robert sorriu-lhe. Ela era uma pessoa reconfortantemente com os pés na terra e fora
por essa razão que, num
127
impulso, ele tinha aparecido nessa noite para tomar uma bebida a caminho de casa
quando vinha do trabalho. Normalmente, a vida dupla que ele levava com Marcus
Bernstein, trabalhando com ele na galeria e vivendo na mesma casa, não apresentava
nenhuma tensão. Mas naquele momento as coisas estavam difíceis. Robert voltara
de uma viagem de negócios a Paris e encontrara Marcus muito inquieto e incapaz de
se concentrar durante muito tempo no que quer que fosse, a não ser no problema de
Emma Litton. Depois de ter discutido o assunto com ele, Robert capacitou-se de que
Marcus se culpava do que tinha acontecido e se recusava a discutir com
profundidade a sua culpa. Helen, por outro lado, era completamente insensível à
questão e tinha a opinião determinada de que ele não se devia envolver mais naquela
questão lamentável. Naquele momento, a tensão por que ambos andavam a passar
estava no auge e tinha arruinado por completo o ambiente doméstico de Milton
Gardens.

O tempo não ajudava nada à situação. Depois de uma Primavera fria, Londres fora
invadida por uma verdadeira onda de calor. As manhãs irrompiam por entre neblinas
cujas gotículas se dissolviam gradualmente em dias após dias de sol escaldante. As
mulheres iam trabalhar de vestidos de cavas, os homens desembaraçavam-se dos
casacos e sentavam-se às secretárias em mangas de camisa. Os parques, à hora do
almoço, enchiam-se de gente espojada a fazer piqueniques. As lojas e os restaurantes
abriam toldos às riscas e escancaravam janelas em busca da mais pequena brisa. Nas
ruas, os carros estacionados escaldavam, os passeios ofuscavam e o alcatrão
derretido agarrava-se às solas dos sapatos.

O calor, como uma epidemia monstruosa, invadira até os calmos recessos verde-
secos da Galeria Berstein. Tinha havido durante todo o dia uma torrente
interminável de
128
visitantes e possíveis clientes, pois a estação turística transatlântica já começara e
aquela ia ser, provavelmente, a altura de mais trabalho para eles. E no fim daquilo
tudo, Robert, enquanto ia no carro para casa, deu por si a desejar uma cara nova,
uma bebida fresca e uma conversa que não tivesse nada a ver com artistas, fossem
renascentistas, impressionistas ou pop.

Jane Marshall veio-lhe imediatamente à ideia.

A casa dela ficava num pátio estreito, entre Sloane Square e Pimlico Road. Quando
virou para entrar na rua, parou à beira do passeio, tocou a buzina duas vezes e ela
apareceu à janela aberta do andar de cima, de mãos no parapeito, o cabelo louro
caindo-lhe para a cara enquanto se debruçava para fora para ver quem era.

Robert! Pensei que ainda estavas em Paris.

Ainda estava há dois dias. Tens por aí qualquer coisa como uma bebida alcoólica
demorada e fresca para um trabalhador exausto?

Claro que tenho. Espera um pouco. Vou descer para te abrir a porta.

Ele sempre achara a casa dela encantadora. Em tempos fora a casa de um cocheiro.
Tinha umas escadas estreitas e inclinadas que conduziam directamente ao 1.° andar.
Aí havia uma salinha de entrada, uma sala de estar e uma cozinha e, subindo mais
um lanço de escadas, no sótão de telhado inclinado, o quarto dela e a casa de banho.
No começo era uma casa bastante sem graça, mas desde que Jane tinha iniciado o
seu negócio de decoração que a tornara num mimo. Transformou a sala de estar
numa sala de trabalho, mas mesmo assim as peças de tecido, as franjas, as almofadas
e os pequenos pedaços de bricabraque que ela tão habilidosamente escolhia estavam
espalhados por todos os cantos possíveis, tornando a sala tão alegre e colorida como
uma manta de retalhos

129
Jane ficou encantada por vê-lo. Tinha passado a manhã com uma mulher maçadora
que queria a casa, em St. John’s Wood, toda decorada de creme, o que ela chamava
”Redecoração em magnolia”. Depois fora uma sessão com uma jovem actriz em
ascensão que procurava qualquer coisa de sensacional para o seu apartamento novo.

Esteve aqui sentada durante horas a mostrar-me fotografias do tipo de coisa que
tinha em mente. Eu tentei dizer-lhe que ela devia era chamar um bulldozer e não
uma decoradora de interiores, mas ela não me deu ouvidos. Esta gente nunca me dá
ouvidos. Uísque?

Isso é a coisa mais simpática que me disseram em todo o dia disse Robert,
sucumbindo no sofá em frente da janela aberta.

Ela serviu duas bebidas, assegurou-se de que ele estava fornecido de cigarros e
cinzeiro e depois instalou-se calmamente de frente para ele. Era uma mulher muito
bonita. O seu cabelo louro era escorrido e forte, cortado em redondo até ao queixo.
Os seus olhos eram verdes e o nariz arrebitado, a boca doce, mas implacável. O seu
casamento desfeito tinha deixado certas cicatrizes no seu carácter e nem sempre era
das pessoas mais tolerantes, mas havia nela uma franqueza que ele achava tão
refrescante como um copo de água fria, e parecia sempre deliciosa.

Vim aqui com o objectivo propositado de não falar de trabalho. Como é que
acabámos a falar do Ben Litton?

Fui eu que puxei o assunto. Andava intrigada. Cada vez que estava com a Helen ela
fartava-se de fazer alusões veladas, mas depois recusava-se a dizer mais coisas. Ela
anda muito transtornada por isto, não anda?

Só porque, em tempos, o Ben Litton fez com que o Marcus andasse destroçado.

Ela conhece a Emma?


130
Não a vê desde que ela foi para a Suíça há seis anos.

É difícil julgar as pessoas com justeza quando não as conhecemos bem afirmou
Jane.

Às vezes é difícil ser-se justo até quando as conhecemos. E agora... ele inclinou-se
para a frente para apagar o cigarro vamos deixar cair o assunto e fazer um acordo
tácito para não voltarmos a mencioná-lo. Vais fazer alguma coisa esta noite?

Absolutamente nada.

Então porque é que não vamos à procura de um terraço, com ou sem jardim, para
jantarmos?

Eu gostava concordou Jane.

Vou ligar à Helen a dizer que não vou para casa...

Nesse caso... ela levantou-se vou tomar um duche e mudar de roupa. Não me
demoro.

Não há pressa nenhuma.

Fica à vontade... arranja outra bebida. Tens aqui cigarros e um jornal da tarde,
algures, se te deres ao trabalho de procurar...

Ela subiu as escadas. Ele ouviu-a andar de um lado para o outro, saltos altos no chão
de laje. Cantava baixinho, um pouco para o desafinado. Ele pousou o copo, foi até à
sala, descobriu finalmente o telefone por baixo de um monte de chitas às flores e
ligou para Helen a dizer que não ia jantar a casa. Depois voltou para servir a sua
terceira bebida da noite, alargou o nó da gravata e deixou-se cair mais uma vez no
sofá.

O uísque tinha-o reanimado ligeiramente e sob a influência da sua frescura límpida o


cansaço passava de fadiga de fim de dia a uma lassidão agradável. O jornal tinha
uma ponta de fora debaixo de uma almofada, ele puxou-o e depois viu que não era o
Evening Standard, mas o Stage.

- Jane.

131
Sim!

Não sabia que lias o Stage.

Não leio.

Mas está aqui.

Está? Ela não pareceu particularmente interessada. A Dinah Burnett deve ter-se
esquecido dele. É a tal actriz que precisa do bulldozer.

Ele folheou-o ao acaso.

”Precisa-se. Bailarina para vários tipos de dança.”

Virou para a página do teatro de repertório. Estavam a representar Shakespeare em


Birmingham, uma reposição em Manchester e em Brookford, estreia de uma nova
peça...

Brookford.

O nome disparou da página e atingiu-o como uma bala. Ele endireitou-se no sofá,
dobrou o jornal ajeito e leu o artigo todo.

A temporada de Verão do Teatro de Repertório de Brookford abriu esta semana com


a primeira representação de Daisies on the Glass, uma comédia em três actos do
escritor local Phyllis Jason. Esta peça, leve mas bem estruturada, apresenta a actriz
Charmian Vaughan no papel principal de Stella. Os outros papéis são secundários,
mas John Rigger, Sophie Lambart e Christopher Ferris todos ajudam a levar a
divertida intriga ao seu clímax, a Sara Rutheford é encantadoramente natural no
papel de noiva. Tommy Childers consegue uma encenação viva e o cenário, pelo
artista cénico Brian Dare, provocou um aplauso espontâneo do entusiástico público
da primeira noite.

Christopher Ferris.

Pousou cuidadosamente o jornal, pegou num cigarro

132
e acendeu-o. Christopher Ferris. Ele tinha-se esquecido de Christopher.

Mas agora, de um emaranhado de recordações, ouvia de novo a voz de Emma,


naquele primeiro dia, quando ele lhe dera de almoço no restaurante do Marcello.

”Ouviu falar do Christopher? Por puro acaso, eu e o Christopher voltámos a


encontrar-nos em Paris. E ele veio trazer-me esta manhã ao Lê Bourget.”

E lembrou-se, na frente dela do outro lado da mesa, percebendo subitamente a razão


do sorriso dela, do brilho da sua pele e do fulgor dos seus olhos.

E mais tarde, no estúdio gelado em Porthkerris, o assunto Christopher tinha vindo à


baila outra vez, entre outros assuntos de discussão mais importantes. ”Deve estar em
Brookford por esta altura”, tinha dito Emma. ”No auge dos ensaios.”

Ele levantou-se e foi até à base das escadas.

Jane.

Sim.

Estás quase pronta?

Estou só a maquilhar-me.

Onde é que fica Brookford?

Em Surrey.

Quanto tempo é que levamos até lá?

Brookford? Oh, cerca de quarenta e cinco, cinquenta minutos.

Ele olhou para o relógio.

Se saírmos já, ou assim que pudermos... não devemos chegar demasiado tarde.

Jane apareceu no topo das escadas, com um espelho numa mão e uma escova de
rimel na outra.

Demasiado tarde para quê?


Vamos ao teatro.

133
Pensei que íamos jantar fora.

Mais tarde, talvez. Mas primeiro vamos a Brookford, ver uma comédia bem
estruturada chamada Daisies on the Grass...

Endoideceste?

Do escritor local Phylis Jason.

Endoideceste mesmo.

Eu explico no caminho. Sê querida e despacha-te. Enquanto desciam a M. 4, Jane


perguntou:

Queres dizer que ninguém sabe deste jovem a não ser tu?

A Emma não disse ao Ben porque ele nunca gostou do Christopher. A Helen diz que
ele tinha ciúmes do miúdo.

E também não disse ao Marcus Bernstein.

Penso que não.

Mas disse-te a ti.

Sim, disse. Disse-me logo no primeiro dia. E não percebo porque é que não pensei
nele antes.

Ela está apaixonada por ele?

Não sei. De certeza que gosta muito dele.

Achas que a encontramos em Brookfíeld?

Se não encontrarmos, era capaz de apostar que o Christopher Ferris sabe onde ela
está. Jane não retorquiu. Pouco depois ele acrescentou, com os olhos ainda fixos na
estrada que corriam a grande velocidade: Desculpa lá isto. Prometi que não
voltávamos a falar do assunto, e aqui estou eu a levar-te para as regiões selvagens de
Surrey.

Porque é que estás tão ansioso por encontrar a Emma? perguntou Jane.
Por causa do Marcus. Gostava de descansá-lo.

Estou a ver.

Porque se o Marcus ficar descansado, a Helen vai acalmar e a vida ficará bastante
mais confortável para todos
nó.

134
Bem, parece-me uma boa razão... Olha, acho que temos de virar aqui.

O Teatro de Repertório de Brookford deu algum trabalho a encontrar. Andaram para


baixo e para cima na High Street, depois pediram indicações a um polícia com ar
cansado e em mangas de camisa. Ele disse-lhes que andassem cerca de um
quilómetro a partir do centro da cidade; depois de subirem uma rua secundária,
chegaram a um beco sem saída, onde descobriram o enorme edifício de tijolo, que
mais parecia um salão paroquial do que outra coisa, mas a palavra ”Teatro”, escrita
por cima da porta, em letras de néon, morria à luz quente da noite.

Cá fora havia carros estacionados à beira do passeio e, ao lado destes, com os pés na
valeta, estavam duas meninas sentadas a brincar com um carrinho de bebé partido.
Havia cartazes.

PRIMEIRA REPRESENTAÇÃO DAISIES ON THE GRASS

DE PHYLIS JASON Uma comédia em três actos

Encenação de TOMMY CHILDERS

Jane ficou parada a observar aquela fachada nada auspiciosa.

Pobre teatro.

Robert pôs-lhe a mão por baixo do cotovelo.

Vamos.

Subiram um lanço de degraus de pedra que dava para uma pequena sala de estar,
com um quiosque de cigarros de um lado e uma bilheteira do outro. Na bilheteira
estava uma rapariga a fazer tricô.

135

(
Lamento muito, mas o espectáculo já começou informou ela, quando Robert e Jane
apareceram do outro lado do vidro.

Pois, foi o que nós pensámos. Mas queremos dois bilhetes à mesma.

Para onde?

Oh... Bem., plateias.

São quinze xelins, por favor. Mas vão ter de esperar até ao segundo acto.

Há algum sítio onde possamos beber qualquer coisa?

O bar é lá em cima.

Muito obrigado. Ele pegou nos bilhetes e no troco. Suponho que conhece todos os
que aqui trabalham.

Sim, conheço...

Conhece o Christopher Ferris...

Ah, são amigos dele?

Bem, amigos de uma amiga. É o seguinte, será que ele tem cá a irmã... pelo menos,
ela é meia-irmã dele. Chama-se Emma Litton.

A Emma está a trabalhar aqui.

Está a trabalhar aqui? No teatro?

Exactamente. Como ajudante de contra-regra. A nossa ajudante adoeceu com uma


apendicite e Emma disse que vinha ajudar. Claro que a voz dela tornou-se
profissional o senhor Childers normalmente gosta de pessoas do meio que já tenham
tido alguma experiência de palco, sabe, na RADA ou noutro sítio qualquer, para que
possam acumular pequenos papéis. Mas já que ela aqui estava e não tinha nada que
fazer, ele deixou-a ficar com o lugar. Só até a nossa ajudante estar melhor.

Estou a ver. Acha que poderemos falar com ela?

Bem, depois do espectáculo acho que sim. Mas o senhor Childers não quer ninguém
nos bastidores antes de O espectáculo terminar.
136
O OUTRO LADO DO AMOR

Não faz mal. Nós esperamos. Muito obrigado.

Não tem de quê. Foi um prazer.

Subiram para uma segunda sala de estar maior e sentaram-se a beber cerveja e a
falar com o empregado do bar até que um sumido barulho de aplausos anunciou o
fim do 1.° acto. As luzes acenderam-se, as portas abriram-se e um pequeno rio de
gente emergiu à procura de bebidas. Jane e Robert esperaram até ao primeiro sinal
de chamada, depois também eles entraram no auditório, tendo comprado dois
programas pelo caminho e sido conduzidos aos seus lugares por uma jovem
impaciente de macaco de nylon. A assistência nessa noite era, de facto, escassa e
Jane e Robert eram as únicas pessoas sentadas na terceira fila. Jane olhou em volta
com um olho profissional.

Penso que em tempos foi um salão paroquial decidiu. Ninguém teria construído nada
tão feio para ser um teatro. Mas devo dizer que o decoraram com bastante
imaginação e a iluminação e as cores estão bastante bem. Que pena não terem mais
público...

O pano subiu por fim para dar início ao 2.° acto.

”O salão de casa da senhora Edbury, em Gloucestershire”, dizia a nota do programa,


e ali estava ela, completa, com janelas panorâmicas, escadas, sofá, mesa com
bebidas, mesa com telefone, mesa baixa com revistas (para a senhora pegar e folhear
ociosamente em momentos em que não sabia o que fazer com as mãos?) e três
portas.

Uma casa cheia de correntes de ar murmurou Jane.

Vai ficar melhor quando fecharem as janelas panorâmicas.

Mas a janela panorâmica tinha de ficar aberta, pois dava entrada à ingénua (Sara
Rutheford

é encantadoramente natural

137
no papel de noiva), que se atirou para cima do sofá e se desfez em lágrimas. O
semblante de Jane mostrava uma expressão atenta e de incredulidade deliciada.
Robert afundou-se mais no seu lugar.

Era uma peça horrível. Mesmo que tivessem visto o 1.° acto, e assim conseguido
desemaranhar a meada enleada da intriga, teria sido à mesma uma peça horrível.
Enredava-se em clichés, personagens desnecessárias (havia mesmo uma mulher-a-
dias cómica), entradas e saídas forçadas e telefonemas oito só durante o 2.° acto.

Quando o pano desceu, Robert sugeriu:

Vamos tomar mais qualquer coisa. Era capaz de beber um brande duplo depois disto.

Não me vou mexer daqui respondeu Jane. Não vou quebrar o encanto. Não via uma
peça assim desde os sete anos. E o cenário faz-me ficar completamente nostálgica.
Mas há uma coisa que salta à vista, Robert.

O que é?

O Christopher Ferris é muito, muito bom...

Era, de facto. Quando ele tinha entrado no palco, a arrastar os pés, no papel do
inseguro estudante universitário que acabaria por roubar a heroína ao noivo corretor
da bolsa, Daisies on the Grass mostrou a sua primeira ténue centelha de vida. O
texto dele não era melhor do que o dos outros, mas o seu controlo do discurso da
personagem era perfeito e ele conseguia torná-lo engraçado ou triste, ou
distorcidamente encantador. Para representar o papel vestia calças de bombazina,
uma camisola de lã larga e óculos de armação de tartaruga, mas mesmo estes
andrajos não conseguiam disfarçar a sua elegância, nem a sua beleza, nem a graça
natural das suas pernas longas quando se movia.

E não é só muito bom, é também muito atraente continuou Jane. Começo a ver
porque é que a meia-irmã

138
ficou tão contente, por, acidentalmente, ter voltado a encontrá-lo em Paris. Eu
própria não me importava nada de o encontrar por acaso.

O 3.° acto tinha o mesmo cenário, mas agora era de noite. A Lua azul brilhava
através da janela aberta e a descer as escadas vinha a noiva, carregando uma mala,
em bicos de pés, pronta a fugir, ou a ser raptada, ou a fazer o que quer que tinha
passado a última hora a decidir. Robert não se conseguia lembrar. Estava à espera
que Christopher voltasse ao palco. Quando isso aconteceu, observou-o o tempo todo,
separadamente, absorto e cheio de admiração. Por aquela altura, Christopher já tinha
a assistência, pequena como era, na palma da mão. Como Robert observava, também
eles observavam. Christopher coçou a cabeça e eles riram-se. Tirou os óculos para
beijar a rapariga e eles riram-se outra vez. Voltou a pô-los para lhe dizer adeus para
sempre, fez-se silêncio e depois foi um assoar de narizes. E quando tudo terminou e
o elenco se alinhou para a chamada ao palco, os aplausos foram longos, e todos para
Christopher.

O que é que vamos fazer agora? perguntou Jane.

O bar só fecha daqui a mais dez minutos. Vamos tomar qualquer coisa.

Voltaram para o bar. O empregado do bar perguntou:

Então, gostaram do espectáculo?

Bem, não sei... eu... Jane foi mais corajosa.

Pensamos que foi horrível disse ela, mas muito delicadamente. E eu apaixonei-me
pelo Christopher Ferris.

O empregado do bar sorriu.

É um espanto, não é? Foi uma pena terem vindo esta noite, com tão pouca
assistência. O senhor Childers esperava a

139
que sendo a senhora Jason daqui, esta peça atrairia público. Mas não se consegue
vencer uma onda de calor.

Normalmente fazem boas casas? quis Jane saber.

Umas vezes melhores, outras piores. Ora, o último espectáculo que fizemos foi
Present Laughter... Essa encheu completamente a casa.

É uma boa peça opinou Robert.

Qual era o papel de Christopher Ferris? perguntou Jane.

Ora, deixe-me ver. Ah, já sei, era o jovem argumentista. Sabe, aquele que anda de
volta das cadeiras e come biscoitos. Chama-se Ronald Maule na peça. Ah, é uma
personagem muito engraçada, Christopher Ferrus tinha esse papel. Levou a casa ao
rubro. Enquanto limpava os copos, olhou para cima, para o relógio. Lamento muito,
mas tenho de vos pedir para terminarem as vossas bebidas... está na hora de fechar...

Sim, claro. Já agora, como é que se chega aos bastidores? Queremos falar com a
Emma Litton.

Podem entrar pelo auditório e depois pela porta à direita do palco. Mas cuidado com
o senhor Collins, o contra-regra. Ele não é lá grande apreciador de visitantes.

Obrigado agradeceu Robert. E boa-noite. Voltaram a entrar no teatro. O pano tinha


sido levantado

outra vez e o palco era de novo revelado, mas sem a ribalta o cenário parecia menos
animador do que nunca. No palco, um jovem debatia-se com o seu sofá, tentando
desviá-lo para o lado, e alguém, algures, tinha deixado uma porta aberta, de forma
que todo o teatro era percorrido por uma corrente de ar abafada. A rapariga dos
programas andava a fazer uma ronda, levantando os lugares vazios e recolhendo
embalagens de chocolate e maços de cigarros vazios que atirava parr” uma lata de
lixo.

140
Não há nada mais deprimente do que um teatro vazio observou Jane.

Começaram a descer na direcção do palco. Enquanto se aproximavam, Robert


capacitou-se de que não era um rapaz quem se debatia sozinho com o pesado sofá,
mas uma rapariga com uma velha camisola de lã azul e jeans.

Quando estava suficientemente perto, disse:

Desculpe, será que pode ajudar-me?...

Ela voltou-se para olhar para ele, e Robert, não querendo acreditar, deu consigo cara
a cara com Emma Litton.

141
Após um segundo de silêncio e bocas abertas, Emma parou de tentar afastar o sofá e
endireitou-se. Ele pensou que ela parecia muito mais alta e magra, a luz fria do palco
não era lisonjeadora, os seus pulsos pendurados como paus das mangas arregaçadas.
Mas o pior era o cabelo. Ela tinha cortado o cabelo e agora a sua cabeça parecia
pequena e vulnerável, como se forrada com a pele de um animal.

Havia nela também o instinto animal da vigilância. Um olhar assustado como se


esperasse que ele fizesse o primeiro movimento, dissesse a primeira palavra, antes
de ela saber para que lado saltar. Robert enterrou as mãos nos bolsos numa tentativa
deliberada de parecer e sentir-se natural e saudou:

Olá, Emma!

Ela fez uma tentativa de sorriso e disse:

Este sofá parece que foi enchido com chumbo e perdeu as rodas no processo.

Não há ninguém que te possa ajudar? Ele avançou na direcção da beira do palco, do
seu lado, de modo que ficou a olhar para ela de baixo para cima. Parece muito
pesado.

Há, já vem alguém daqui a pouco.

Ela parecia não saber o que fazer com as mãos. Esfregou-as na parte de trás dos
jeans, como se estivessem sujas,
143
e depois cruzou os braços Era um movimento curiosamente defensivo que lhe fazia
sobressair os ossos dos ombros por baixo do algodão fino da camisa.

O que é que estás aqui a fazer?

Viemos ver Daisies on the Grass... chegámos há pouco de Londres. Esta é Jane
Marshall. Jane, esta é Emma.

Elas sorriram, fizeram acenos de cabeça e murmuraram ”Como está”. Emma tornou
a virar-se para Robert.

Sabias... sabias que eu estava aqui?

Não, mas sabia que o Christopher estava e pensei que tu talvez estivesses.

Estou a trabalhar há umas semanas. Arranjei qualquer coisa para fazer.

Robert não fez comentários, e, talvez desconcertada pelo silêncio dele, Emma
sentou-se, de repente, no sofá que deveria estar a mudar de sítio. As mãos dela
pendiam-lhe com indiferença entre os joelhos. Momentos depois, ela perguntou:

Foi o Marcus que te mandou?

Não. Viemos só fazer-te uma visita. Ter a certeza de que estavas bem...

Eu estou bem.

A que horas te despachas daqui?...

Daqui a uma meia hora. Tenho de vagar o palco para o ensaio de amanhã de manhã.
Porquê?

Pensei que talvez pudéssemos ir a um hotel qualquer comer uma sande e beber
qualquer coisa. Eu e a Jane não jantámos...

Ah, isso é simpático! Ela não pareceu entusiasmada. Bem... o problema é que... eu
normalmente deixo qualquer coisa no forno no apartamento... Uma caçarola ou isso.
Se não for assim, o Johnny e o Chris nunca comem nada. Temos de lá voltar, senão
queima-be.
144
O Johnny?

O Johnny Rigger. Era o noivo. Sabes, o outro homem. Ele mora com o Christo... e
comigo.

Estou a ver.

Fez-se outro silêncio. Emma, desconcertada, debatia-se com os seus instintos mais
hospitaleiros.

Eu convidava-os para vir, se quisessem, mas só há umas quantas latas de cerveja...

Nós gostamos de cerveja disse Robert prontamente.

E o apartamento está numa balbúrdia horrível. Nunca parece haver tempo para o
limpar como deve ser. Quero dizer, agora que eu estou a trabalhar.

Nós não nos importamos com isso. Como é que se vai para lá?

Bem... têm carro?

Temos. Está lá fora.

Sim... Bem. Se esperarem lá fora, o Christo e eu vamos ter com vocês, mais tarde.
Se estiverem de acordo. E depois mostramo-vos onde é.

Esplêndido. E o Johnny?

Oh, o Johnny vai mais tarde.

Nós vamos esperar por vocês.

Robert tirou as mãos dos bolsos, virou-se e subiu com Jane a pequena rampa do
auditório. Quando chegaram à saída, e Robert segurava uma das portas aberta para
Jane passar, o diabo pareceu soltar-se no palco.

Onde raio se meteu aquela Litton? Robert foi a tempo de ver Emma saltar do sofá
como se este tivesse começado a arder para começar a tentar mais uma vez desviar o
pesado apetrecho. Um homenzinho de barba preta irrompeu ao palco, parecendo um
pirata dos mais mal-humorados.

145
Olha, queridinha, eu disse-te para tirares daí a porcaria do sofá e não te deitares nele.
Santo Deus, nunca mais vejo a hora de a outra rapariga voltar e de te ver daqui para
fora...

Ou se atirava a ele ou se retirava. Para bem de Emma, Robert retirou-se.

A porta fechou-se atrás dele, mas enquanto atravessavam a sala ainda se podia ouvir
a voz:

Que ela é uma atrasadinha já todos sabemos, mas ninguém consegue ser tão
monstruosamente estúpido como tu...

Encantador comentou Jane, enquanto desciam as escadas. Robert não respondeu,


porque até que a chama de fúria que o tinha consumido de repente se apagasse, ele
não seria capaz de dizer nada: Deve ser o senhor Collins, o contra-regra. Não é um
tipo nada simpático com quem se trabalhe.

Alcançaram a porta da rua, desceram os degraus, atravessaram o passeio e entraram


no carro. Estava escuro agora, um crepúsculo fresco e suave tinha descido sobre a
cidade, mas o calor do dia ainda se detinha, mantido pelos estreitos limites da rua,
pelas pedras da rua e dos passeios quentes do sol. Por cima deles a placa do teatro
luzia, mas quando entraram no carro alguém do lado de dentro do edifício apagou-a.
O divertimento da noite terminara. Robert tirou os cigarros, deu um a Jane, acendeu-
o, e tirou outro para si. Momentos depois sentia-se um pouco mais calmo.

Disse:

Ela cortou o cabelo.

Ai sim? Como é que era antes?

Comprido, sedoso e escuro.

Ela não quer que lá vamos esta noite. Sabes disso, não sabes?

Sim, sei disso. Mas temos de ir. Não precisamos de ficar muito tempo.
146
E eu detesto cerveja.

Desculpa. Talvez alguém te faça um café.

Não é sequer um trabalho que exija miolos. A criatura mais idiota saída da RADA
era capaz de o fazer com mais competência do que tu.

Collins estava a desabafar, a descarregar as tensões e frustrações do dia numa maré


de invectivas dirigida apenas a Emma. Ele odiava-a. O que tinha qualquer coisa a
ver com Christopher; com o facto de o pai dela ter êxito e ser famoso. A princípio,
ela tentara defender-se, mas agora tinha mais que fazer do que ir contra aquela maré
venenosa. Com Collins, não se podia ganhar. Ela limitava-se a ouvir, continuava
com o seu trabalho, tentava não o deixar perceber o quanto ele conseguia perturbá-la
profundamente.

Conseguiste este trabalho porque eu preciso de alguém para me ajudar... Deus me


perdoe. Não o conseguiste porque o Christo meteu a colher nem porque um idiota
qualquer se dispôs a pagar vinte mil por um Ben Litton de manchas vermelhas num
fundo azul. Eu sou mais esperto do que isso, como por esta altura, sem dúvida, já
descobriste. Por isso não comeces a pensar que podes andar para aí feita indolente a
receber os teus amiguinhos de narizes empertigados... e da próxima vez que eles
condescenderem em visitar o nosso modesto espectáculo, tem o cuidado de lhes
dizeres para esperarem até termos acabado. Agora vê se tiras esse sofá da porcaria
do caminho...

Eram quase onze quando ele, finalmente, a deixou ir, depois ela encontrou Christo à
sua espera no gabinete de Tommy Childers. A porta estava aberta, ela ouviu-os a
conversar, bateu, meteu a cabeça dentro e disse:

Já estou pronta. Desculpa ter demorado tanto.

147
Christo levantou-se.

Não faz mal. Apagou o cigarro. Até amanhã, Tommy.

Até amanhã, Christo.

Obrigado por tudo.

Tudo bem, companheiro...

Desceram em direcção à porta do palco. Ele pôs-lhe um braço em volta da cintura


enquanto caminhavam. Os seus corpos quentes tocaram-se, estava calor de mais
para tal contacto, mas ela achou-o reconfortante. Lá fora, no pequeno beco que dava
para a rua, ele parou, ao pé dos contentores, para acender outro cigarro. Observou:

Demoraste-te imenso. O Collins esteve a chatear-te?

Ele ficou furioso porque o Robert Morrow esteve cá.

O Robert Morrow?

O que trabalha na galeria com o Marcus. É cunhado do Marcus. Eu contei-te. Veio


ver o espectáculo... Trouxe uma rapariga com ele.

Christo ficou parado a olhar para ela.

Veio ver o espectáculo ou ver-te a ti?

Acho que nos veio ver aos dois.

Ele não pode tentar levar-te de volta, pois não? Dizer que tu és menor ou coisa
assim?

Claro que não.

Então tudo bem.

Sim, suponho que sim. Mas, sabes, portei-me como uma idiota, convidei-os para
irem ao apartamento. Eu não tencionava convidá-los, mas acabei por fazê-lo sem
saber como, e eles vêm. Estão à nossa espera dentro do carro. Oh, Christo, desculpa.
Ele riu-se.

- - Eu cá não me importo.

148
Eles não vão ficar muito tempo.

Não me importo que fiquem a noite toda. Não fiques com um ar tão trágico.

Abraçou-a e beijou-a na cara. Ela pensou como desejava que a noite, o dia, aquele
dia interminável, pudesse acabar ali e agora. Era a única coisa que lhe daria
verdadeira satisfação. Tinha medo de Robert. Estava demasiado cansada para lhe
fazer frente, para responder a perguntas, para tentar fugir àqueles olhos cinzentos
observadores. Estava demasiado cansada para competir com a amiga dele, que era
loura, bonita e com um ar quase indecentemente fresco no seu vestido de cavas azul-
marinho. Estava demasiado cansada para limpar o apartamento para eles, para
esconder roupas, desviar guiões e levantar copos vazios, para abrir latas de cerveja,
fazer café e tirar o jantar de Christo do forno.

Christo esfregou o queixo na face dela.

O que é que se passa? perguntou meigamente.

Nada.

Ele não gostava que ela dissesse que estava cansada. Ele nunca estava cansado. Ele
não sabia o que a palavra significava.

Ele disse ao ouvido dela:

Foi um bom dia, não foi?

Foi, claro. Ela afastou-se dele. Um bom dia. Com os braços enlaçados, desceram o
beco na direcção

da rua. Robert ouviu as suas vozes e saiu do carro para ir ao encontro deles. Eles
vinham na direcção dele, dentro e fora das manchas de luz formadas pelos
candeeiros da rua. Caminhavam como amantes, Emma arrastando uma camisola de
lã, Christo com um guião volumoso debaixo de um braço e um cigarro entre os
dedos.

Quando chegaram ao pé do carro, pararam.

Olá cumprimentou Christopher, sorrindo.

149
Christo, este é Robert Morrow e a menina Marshall...

Senhora Marshall corrigiu Jane docemente, reclinando-se no banco.

Olá, Christopher.

Desculpem termos demorado tanto tempo afirmou Christo. A Emma só agora me


disse que estavam aqui. E ela esteve a ter a sua discussão nocturna habitual com o
Collins, por isso estivemos todos bastante ocupados. Creio que vêm connosco tomar
uma cerveja ou coisa assim. Lamento muito, mas não temos nada mais forte.

Tudo bem disse Robert. Se nos indicarem o caminho...

Claro.

O apartamento ficava na cave de uma vivenda que fazia parte de uma correnteza de
medonhas casas vitorianas que em tempos tinham visto melhores dias. Exibiam
frontões impressionantes e uma decoração constituída por efeitos ornamentais dos
tijolos e por janelas com vitrais, mas a rua em si era sombria e os cortinados das
janelas salientes das salas da frente oscilavam tristemente e nem todos muito limpos.
Degraus de pedra gastos conduziam a uma zona onde havia contentores e um ou
dois vasos de gerânios mortos. Enquanto desciam, ouviu-se um miado furioso de um
gato frustrado e uma coisa preta em forma de rato disparou pelas escadas acima
entre as pernas deles. Jane deixou escapar um gritinho de susto.

Não faz mal tranquilizou Emma. É só um gato. Christo abriu a porta e entrou à
frente, acendendo as

frias luzes do tecto, pois o apartamento era mobilado e não possuía candeeiros.
Johnny tinha começado a fazer alguns de garrafas de Chianti, mas não fora além da
compra de fichas e de um par de abat-jonrs coloridos. As salas do
150
apartamento haviam sido meio transformadas e ainda era tristemente óbvio que as
suas intenções originárias tinham sido cozinhas, despensas e marquises. Um antigo
fogão fora arrancado da parede e o vazio daí resultante preenchido com prateleiras,
que ninguém se tinha dado ao trabalho de pintar
e que serviam de baú para livros, sapatos, guiões, cigarros,
cartas e uma pilha de revistas velhas. Havia um divã que fora tapado com uma
cortina cor de laranja e por almofadas mal cheias, mas que continuava,
teimosamente, a ser uma cama. Havia uma ou duas cadeiras de cozinha
desengonçadas, uma mesa desdobrável e o chão de laje estava coberto por uma
escassa carpete velha que há muito perdera a cor e a maior parte do pêlo. As paredes
tinham sido caiadas, mas havia manchas bolorentas de humidade que pareciam
mapas

e os cantos de um cartaz de uma tourada, colado aos tijolos,


estavam a começar a enrolar-se. Cheirava a ratos e a caruncho e, mesmo naquela
quente noite de Verão, o próprio ar
abafado era húmido, como o interior de uma gruta.

Christo atirou o guião para cima de uma mesa e foi abrir,


a janela, que era protegida por uma grade de ferro, comouma prisão. Vamos apanhar
ar fresco. Temos de ter tudo fechado por causa dos gatos, entram por qualquer
buraco. O que é que querem beber?... Há cerveja, se o Johnny não a bebeu
toda... ou talvez queiram café. Temos café, Emma?... jtm

Há café instantâneo. Não compro do outro porque não há onde fazê-lo. Sentem-se...
sentem-se em cima da cama. Sentem-se em qualquer lado. Há cigarros...

Ela encontrou-os, uma caixa de cinquenta, ofereceu-os a todos e procurou um


cinzeiro enquanto Robert os acendia. Não havia cinzeiro, por isso ela desceu o
corredor de laje até à cozinha para ir buscar uns quantos pires. O lava-louça estava
cheio de pratos sujos e, por um momento, ela não
151
conseguiu saber quando é que os tinham usado, quando é que ali estivera pela última
vez, de que período da história das coisas atrasadas datavam. Numa tentativa de se
lembrar com clareza, a manhã pareceu-lhe ter sido há três semanas. Nunca nenhum
dia durara tanto tempo. Passava das onze da noite e ainda não acabara. E ainda tinha
de dar de jantar aos rapazes, de ferver água para fazer café, de encontrar o abre-
- latas.

Encontrou dois pires limpos e levou-os aos outros. Christo tinha posto um disco. Ele
não era capaz de fazer nada, nem sequer falar, sem uma perpétua música de fundo.
Era Ella Fitzgerald e Cole Porter.

Every time we say good-bye I die a little.

Estavam a falar sobre Daisies on the Grass.

Se consegues dar vida a um guião daqueles dizia Jane a Christopher, de certeza que
vais longe. Ela estava a rir-se. Emma pousou o cinzeiro e Jane olhou para cima.
Obrigada... há alguma coisa que eu possa fazer?

Não, nada. Vou só buscar uns copos. Quer cerveja ou prefere café.

Café seria incomodar muito?

Não, de maneira nenhuma... Eu também vou beber café...

De volta à cozinha, fechou a porta, para que eles não ouvissem o barulho dos pratos,
pôs um avental e colocou uma cafeteira ao lume. Quando abria o gás, o lume
aparecia sempre numa enorme chama repentina, a qual lhe pregava sempre sustos de
morte. Encontrou um tabuleiro, chávenas e pires, a lata do café, o açúcar e as latas
de cerveja numa caixa por baixo do lava-louça. Havia escaravelhos no chão

152
e o Johnny não tinha despejado o balde do lixo. Ela agarrou nele para o ir despejar
no contentor, mas enquanto o fazia a porta abriu-se atrás de si e ela virou-se para dar
de caras com Robert Morrow.

Ele olhou para o balde.

Para onde é que vais levar isso?

Para lado nenhum respondeu Emma, furiosa por ter sido apanhada. Virou-se para
voltar a pô-lo debaixo do lava-louça, mas ele agarrou-lhe no braço e tirou-lho,
olhando com repugnância para a mistura de ervas de chá, latas abertas e sacos de
papel molhados.

Para onde é que isto vai? Derrotada, Emma disse-lhe:

Para o contentor. Ao pé da porta. Por onde entrámos. Ele levou-o, desceu o corredor,
com ar ridículo, e Emma

voltou para o lava-louça e desejou que ele não tivesse vindo. Ele não se enquadrava
em Brookford; no teatro; ali, no apartamento. Ela não queria que ele tivesse pena
dela. Porque, afinal de contas, não havia nada de que ter pena. Ela estava feliz, não
estava? Estava com Christo, e isso era a única coisa que importava, não tinha nada a
ver com a forma como Morrow e Robert tratavam dos assuntos deles.

Rezava para que ele e a sua amiga imaculada já se tivessem ido embora quando
Johnny Rigger voltasse.

Quando ele regressou, com o balde vazio, ela estava a lavar pratos, tentando dar a
impressão de que estava muito ocupada. Voltou a cabeça por cima do ombro e disse
firmemente:

Obrigada. Eu não me demoro nada esperando que ele percebesse a insinuação e a


deixasse em paz.

Mas não adiantou. Ele fechou a porta, pôs o balde no chão e agarrando Emma pelos
ombros virou-a, obrigando-a a encará-lo Ele vestia um fato impecável que parecia
ser
153
fresco, uma camisa azul e uma gravata escura. Emma, com o esfregão numa das
mãos e um prato na outra, foi obrigada a olhar para cima e a encarar aqueles olhos
cinzentos penetrantes.

Ela disse:

Não devias ter vindo. Porque é que vieste?

O Marcus tem andado preocupado contigo. Ele tirou-lhe o esfregão e o prato e


debruçou-se para voltar a colocá-los dentro do lava-louça apinhado. Talvez lhe
devesses ter dito onde estavas.

Bom, agora já lhe podes dizer, não podes? Olha, Robert, tenho muito que fazer e não
há espaço para duas pessoas nesta cozinha...

Ai não? Ele estava a sorrir. Encostou-se a um lado da mesa e tinha agora o rosto ao
mesmo nível do dela. Sabes, esta noite, quando te vi no teatro, não te reconheci.
Porque é que cortaste o cabelo?

Ele conseguia ser tão desarmante. Emma levou uma das mãos à nuca.

Quando eu comecei a trabalhar no teatro era uma maçada. Atrapalhava-me, estava


muito calor e sujava-se sempre de tinta quando andava a trabalhar nos cenários.
Aqui não há onde o lavar, e mesmo que o lavasse ia levar horas a secar. Ela
detestava falar do cabelo. Tinha saudades dele; sentia a falta do seu peso e
familiaridade e da terapia calmante de o escovar todas as noites. Então uma das
raparigas do teatro cortou-mo. Tinha ficado caído no tapete verde, como uma meada
de seda castanha, e Emma sentira-se uma assassina.

Gostas de trabalhar no teatro? Ela pensou em Collins.

Não muito.

Tens de o fazer?...
154
Não, claro que não. Mas o Christo está aqui o dia todo, sabes, e não há grande coisa
para eu fazer. Brookford é terrivelmente monótono. Eu nem sequer sabia que
existiam sítios tão monótonos. Por isso, quando aquela rapariga ficou doente por
causa do apêndice o Christo arranjou maneira de eu ir dar uma ajuda.

O que é que vais fazer quando ela voltar?

Não sei. Ainda não pensei nisso.

Por detrás dela, a cafeteira começou a ferver. Emma virou-se rapidamente para
apagar o gás e colocou a cafeteira em cima do tabuleiro, mas Robert objectou:

Ainda não.

Ela franziu o sobrolho.

Eu ia fazer café.

O café pode esperar. Primeiro vais deitar tudo cá para fora.

O rosto de Emma fechou-se.

Não há nada para deitar cá para fora.

Claro que há. Eu quero poder dizer ao Marcus o que é que aconteceu. Por exemplo,
como é que vieste parar a casa do Christopher?

Telefonei-lhe, de manhã cedo, nesse domingo. Fui à cabina e telefonei-lhe. Estavam


a fazer um ensaio geral, por isso ele estava no teatro. Sabes, ele já me tinha pedido
para vir para Brookford e ficar com ele, mas eu não podia por causa do Ben.

Já tinhas falado com ele nessa manhã, quando eu me fui despedir de ti?

Já.

E não me disseste?

Não, não te disse. Queria começar uma coisa nova, uma vida completamente nova,
sem que ninguém soubesse.

Estou a ver. Por isso telefonaste ao Christopher...


155
Foi. E nessa noite ele pediu o carro emprestado ao Johnny Rigger, foi-me buscar a
Porthkerris e trouxe-me para aqui. Fechámos a casa juntos e deixámos a chave do
estúdio no Sliding Tackle.

O proprietário do Sliding Tackle não sabia onde tu estavas.

Eu não lhe disse para onde ia.

O Marcus telefonou-lhe.

O Marcus não devia ter feito isso. O Marcus já não é responsável por mim. Eu já
não sou nenhuma criança.

O que o Marcus sente não é simplesmente responsabilidade, Emma, mas uma


verdadeira afeição, e tu devias perceber isso. Tiveste notícias do Ben?

Tive. Recebi uma carta na segunda-feira, de manhã, antes de sair de Porthkerris. E


uma de Melissa, também... convidando-me para ir visitá-los.

E respondeste? Emma abanou a cabeça.

Não.

Estava envergonhada por isso e baixou rapidamente os olhos para mexer numa unha
falhada de um polegar.

Porquê?

Ela encolheu os ombros.

Não sei. Suponho que pensei que só ia atrapalhar.

Eu teria pensado que até atrapalhar era preferível a isto... O gesto dele abarcou a
cozinha em desordem, todo o apartamento bolorento.

Não foi uma observação muito feliz.

O que é que há de errado com isto?

Não é só este sítio, é também aquele teatro a cair de podre, o lunático de barba que
te estava a gritar para tirares o sofá...
Bom, disseste-me para arranjar um emprego.

156
Não um emprego destes. Tens miolos, falas três línguas e pareces ser minimamente
inteligente. Que tipo de emprego é esse de andar a empurrar mobília num teatro de
(((3.a cias...?

O meu verdadeiro trabalho é estar com o Christo! Depois daquela explosão, houve um
silêncio terrível.

Um carro passou na rua lá fora. A voz de Christopher ouviu-se através do corredor,


emolvida pela suave música de fundo. Um gato começou a miar. Robert disse, por fim:

Queres que diga isso ao teu pai? Emma passou outra vez ao ataque.

Bem me parecia que foi por isso que vieste. Espiar para contar ao Ben.

Eu vim simplesmente para descobrir onde estavas e como estavas.

Não te esqueças de lhe dar os pormenores macabros todos. Não nos importa, e, de qualquer
modo, ele está-se nas tintas.

Emma...

Não te esqueças de que ele não é um pai vulgar, normalzinho, como tu gostas tanto de me
dizer.

Emma, queres fazer o favor de me ouvir!...

Mal tinha pronunciado a última palavra, quando a porta atrás dele se abriu de par em par e
uma voz entaramelada e alegre o interrompeu.

Olha que conversa tão agradável que vocês estão a ter!

Robert voltou-se. À entrada estava o jovem que tinha representado o papel do corretor da
bolsa enfadonho, em Daisies on the Grass. Só que agora já não era enfadonho, estava
simplesmente muito bêbedo, e, para se aguentar de pé, agarrava-se à parte de cima da
ombreirada porta, como um
157
macaco a balançar num trapézio. As suas pernas vacilantes não faziam nada para
afastar tal impressão.

Olá, querida disse para Emma. Largou a ombreira e entrou na minúscula cozinha,
tornando-a insuportavelmente apinhada. Com as palmas das mãos assentes em cima
da mesa, inclinou-se para a frente para beijar Emma. O beijo foi sonoro, mas não
chegou a mais de dez centímetros da cara dela.

Temos visitas observou ele e um grande carro estacionado lá fora. Dá um grande


estilo ao bairro. As pernas dele tornaram a vacilar e por um segundo o peso do seu
corpo foi suportado apenas pelos braços. Sorriu expansivamente para Robert. Como
te chamas?

Chama-se Robert Morrow ripostou Emma com secura. Vou fazer-te café.

Eu não quero café. Eu não quero café. Levantou o punho para acompanhar as
palavras e de novo as pernas atraiçoaram-no. Desta vez Robert apanhou-o e
segurou-o direito.

Obrigado, amigo. Foi muito civil da sua parte. Emma, e que tal qualquer coisa para
aquecer o estômago? Para saciar o apetite? Sabes qual é a rotina. Espero que tenhas
convidado este tipo simpático para ficar para jantar. Também há uma loura apetitosa
na outra sala, a ter uma conversa e pêras com o Christopher. Sabes alguma coisa
dela?

Ninguém se deu ao trabalho de lhe responder. Emma virou-se para o fogão, tirou a
tampa da cafeteira e voltou a colocá-la. Johnny Rigger olhou para as costas dela e
depois para Robert, aparentemente à espera de que a vida, com todas as suas
confusões, lhe fosse explicada.

Robert não se atrevia a falar. Ansiava por agarrar aquele bêbedo aos tombos pelo
cachaço e atirá-lo para um lado qualquer; de preferência para o contentor, onde ele
tinha

158
acabado de deitar o conteúdo malcheiroso do balde do lixo. Depois voltaria para
tratar de Emma da mesma maneira, atirava-a para o banco de trás do carro e levava-
a para Londres, para Porthkerris, para Paris para qualquer lado, longe daquela cave
horrível, do teatro, da cidade suburbana deprimente.

Ele olhava para o virar de costas teimoso dela, desejando que ela se voltasse e
olhasse de frente para ele. Mas ela não se mexeu e o seu pescoço delgado, a sua
cabeça rapada e os ombros caídos, que noutras circunstâncias teriam apelado à
simpatia dele, não fizeram mais do que enfurecê-lo.

Ele disse, por fim, em tom formal:

Isto é, pura e simplesmente, uma perda de tempo para toda a gente. Penso que é
melhor eu e Jane irmos embora.

Emma aceitou-o em silêncio, mas o Johnny fartou-se de protestar:

Oh, tens de ficar, amigo. Fica e come qualquer coisa...

Mas Robert já tinha passado por ele com um empurrão e ia a meio do corredor.
Encontrou os outros dois numa grande conversa e completamente a leste de qualquer
tipo de drama. Christopher estava a comentar:

Sim, é uma peça maravilhosa. E que papel! Pode ser-se criativo nele; no entanto,
sem nunca o sobrecarregar nem interferir na encenação...

E recordou-se, com amargura, da velha anedota sobre os actores.

”Ora, vamos lá falar de ti, meu amigo. O que é que tu pensaste da minha actuação?”

Suponho que não estão a discutir Daisies on the Grass.

Christopher olhou em volta.

Santo Deus, não! Present Laughter. O que é que a Emma está a fazer?

159
O teu amigo acaba de chegar.

O Johnny? Sim, vimo-lo entrar aos tombos.

Ele está bêbedo.

Está muitas vezes. Nós enchemo-lo de café e metemo-lo na cama. De manhã acorda
como novo. É uma pena.

Há alguma razão particular por que ele tenha de estar aqui contigo e com a Emma?

Christopher ergueu as sobrancelhas.

Todas as razões. A sua voz era fria. O apartamento é dele. Ele chegou aqui primeiro.
Eu fui o segundo. A Emma fez uma terceira entrada muito confortável.

Houve uma pausa na conversa. Jane, antevendo o pior, interviu habilidosamente.

Robert, está a fazer-se tarde... Agarrou na mala e nas luvas e levantou-se do divã.
Talvez seja melhor irmos andando.

Mas não tomaste o teu café. Ou a cerveja, ou qualquer coisa. O que é que a Emma
está a fazer?

O melhor que pode para manter o senhor Rigger de pé informou-o Robert. Sugiro
que a vás ajudar. As pernas dele não parecem estar a aguentar-se lá muito bem.

Christopher, encolhendo os ombros, reconheceu o facto. Esticou as pernas, que


estavam enroladas na cadeira baixa onde tinha estado sentado, e levantou-se.

Bem, se têm mesmo de ir...

Penso que sim. Obrigado por...

As palavras esvaíram-se. Não havia nada de que lhe agradecer. Christopher parecia
divertido e Jane mais uma vez veio em socorro de Robert.

Obrigada pela tua maravilhosa actuação desta noite. Não a esqueceremos. Ela
estendeu-lhe a mão. Adeus.

Adeus. Adeus. Robert.


160
Adeus, Christopher. E nessa altura ele teve de se obrigar a dizê-lo. Cuida da Emma.

Voltaram para Londres, transgredindo o limite de velocidade. Na auto-estrada, a


agulha do velocímetro não parava de subir. Oitenta, noventa, cem...

Jane disse:

Vais meter-te em sarilhos.

Já estou ripostou Robert secamente.

Discutiste com a Emma?

Discuti.

Pareceu-me que estavas um pouco tenso. Foi porquê?

Meter o nariz onde não sou chamado. Dar sermões. Intrometer-me na vida dos
outros. E tentar fazer uma rapariga extremamente inteligente ser minimamente
sensata. Além do mais, estava com um aspecto horrível. Com cara de doente.

Isso passa-lhe.

A última vez que a vi estava morena como uma cigana, com o cabelo até à cintura e
toda ela irradiava frescura, como um fruto maduro delicioso. Recordou-se do prazer
de um beijo de despedida. Porque é que as pessoas têm de fazer coisas tão horríveis
a si próprias?

Não sei respondeu Jane. Talvez por causa do Christopher.

Como é que te entendeste com ele? Quero dizer, para além de te teres apaixonado.

Ela ignorou isso.

É esperto. Decidido. E ambicioso. Penso que vai longe. Mas sozinho.

Queres dizer sem Emma?

Eu diria que sim.

Mesmo à uma da manhã Londres era uma cidade viva, cheia de luzes e de tráfego
Voltaram para Sloane Squrr
161
e apanharam a rua estreita que conduzia ao pátio onde ficava a casa de Jane. Ao pé
de casa dela ele desligou o motor do Alvis e podia ouvir-se o silêncio. Os candeeiros
da rua faziam brilhar o empedrado da rua, luzir o capot do carro e o cabelo louro e
brilhante de Jane. Ele começou a procurar um cigarro, mas Jane fê-lo primeiro.
Meteu-lhe o cigarro na boca e acendeu-lho. Nesse instante, os olhos dela ficaram
maiores e misteriosamente sombreados; havia também uma pequena sombra
sedutora, como um borrão, por baixo da curva do seu lábio inferior.

Ela apagou o isqueiro. Ele comentou:

Foi uma noite horrível. Desculpa.

Foi uma coisa diferente. Foi interessante.

Ele tirou o boné e atirou-o para o banco de trás.

Achas que eles estão a viver juntos? perguntou ele.

Meu querido, não sei.

Mas ela está apaixonada por ele.

Eu diria que sim.

Durante um momento ficaram em silêncio. Depois Robert espreguiçou-se,


dobrando-se para trás, após a longa viagem. Ele disse:

Não chegámos a jantar, pois não? Tu, não sei, mas eu tenho fome.

Se quiseres faço-te uns ovos mexidos. E sirvo-te um grande uísque com gelo.

Estás a fazer-me crescer água na boca... Riram-se, baixinho. ”Riso da noite”, pensou
ele. ”Riso

de almofada.” Levou-lhe uma das mãos à nuca, penetrou-lhe os cabelos com os


dedos e debruçou-se para a beijar nos lábios. Ela sabia a doce e a fresco. Os lábios
dela abriram-se, ele atirou o cigarro fora e abraçou-a com força.

Um momento depois ele afastou os lábios doa dela.

162
De que estamos à espera, Jane?

De uma coisa. Ele sorriu.

De quê?

De mim. Não quero começar uma coisa que nunca vai ser acabada. Não quero ser
magoada outra vez. Nem por ti, Robert, e só Deus sabe o quanto eu gosto de ti.

Ele disse:

Eu não te vou magoar. Estava a falar a sério e beijou a sombra por baixo dos lábios
dela.

E, por favor pediu ela, mais Littons, não. Largou-a então, saíram do carro e
fecharam as portas tão

silenciosamente como tinham rido juntos. Jane encontrou a chave, Robert tirou-lha
da mão e abriu a porta, entraram, Jane acendeu a luz, começou a subir as escadas
estreitas e Robert fechou a porta, devagar, atrás deles.

163
Uma das delícias da grande casa antiga de Milton Gardens era viver nela no Verão.
Ao fim de um dia quente e abafado de Junho, e depois das frustrações de uma
viagem a passo de caracol e a cheirar a combustível por Kensington High Street, era,
de facto, um prazer entrar pela porta da frente e fechá-la atrás de si com um fim
feliz. A casa estava sempre fresca. Cheirava a flores e a cera. Em Junho, as
nogueiras rebentavam e ficavam tão carregadas de folhas e de flores cor-de-rosa e
brancas que as casas circundantes desapareciam de vista, os sons do tráfego eram
abafados e apenas um ou outro avião ocasional quebravam a calma da noite.

Aquele dia era um exemplo clássico desse alívio particular. Previa-se trovoada e
desde manhã que a temperatura se elevava firmemente à medida que as nuvens da
tempestade se juntavam. Sob uma atmosfera tão carregada, a cidade sufocava de
calor. Por essa altura, os parques estavam empoeirados, a relva pisada a ficar
castanha e o ar em volta tão refrescante como uma golada rápida de água morna.
Mas ali, em casa, Helen tinha os dispositivos de rega a funcionar no relvado, uma
lufada de ar fresco e húmido entrava pela porta aberta no outro extremo do
vestíbulo, dando as boas-vindas a Robert quando este entrou em casa.

Atirou o chapéu para cima da cadeira do vestíbulo, agarrou nas suas cartas e
chamou:

Helen?
165
Ela não estava na cozinha. Atravessou o vestíbulo, saiu, desceu os degraus para o
jardim e encontrou-a, juntamente com um tabuleiro de chá, um livro não lido e um
cesto de costura. Estava com um vestido de algodão de cavas, um par de alpergatas
velhas e o sol descobrira-lhe sardas, grandes como manchas de tinta, no nariz.

Ele atravessou a relva na direcção dela, despindo o casaco do fato.

Ela disse:

Apanhaste-me sem fazer nada.

E muito bonita. Atirou o casaco para cima das costas de uma cadeira de ferro forjado
pintada e sucumbiu ao lado dela. Que dia! Ainda há alguma coisa nesse bule?

Não, mas posso fazer mais.

Porque é que não posso ser eu a fazer? respondeu Robert automaticamente, mas sem
entusiasmo notável.

Ela não respondeu à pergunta hipotética, levantou-se e levou o bule para dentro.
Havia um prato de biscoitos, ele tirou um e começou a comê-lo, alargando o nó da
gravata com a outra mão. Sob os dispositivos de rega a relva crescia espessa e verde.
Estava a precisar de ser cortada outra vez. Ele inclinou-se para trás e fechou os
olhos.

Fazia agora seis semanas que estivera em Brookford à procura de Emma Litton e
durante todo aquele tempo não tinha sabido notícias dela. Depois de discutir o
assunto com Marcus e Helen escrevera a Ben, dizendo-lhe que Emma estava com
Christopher Ferris, que havia reencontrado em Paris. Que ela estava a trabalhar no
teatro de repertório em Brookford. Que ela estava bem. Não podia, na verdade, dizer
mais nada. Para surpresa sua, Ben confirmara a recepção da carta, não escrevendo
directamente para Robert, mas
166
numa nota de rodapé, escrita à mão, numa carta para Marcus. O objectivo da carta
em si era puramente profissional, escrita à máquina no impressionante papel
timbrado do Museu de Belas-Artes. A exposição retrospectiva de Litton estava agora
terminada. Tinha sido um êxito retumbante em todos os sentidos. Ora, a nova
exposição, uma colecção póstuma de desenhos de um génio porto-riquenho, que
tinha morrido recentemente em circunstâncias obscuras num sótão de Greenwich
Village, estava bem encaminhada e ele e Melissa estavam a aproveitar a
oportunidade para uma viagem ao México. Tencionava começar a pintar outra vez.
Não sabia quando voltaria a Londres. Mandava cumprimentos. E depois, por baixo
da assinatura, nos gatafunhos indecifráveis de Ben:

Recebi uma carta de R. Morrow. Por favor, agradece-lhe. A Emma sempre gostou
muito do Christopher. Só espero que as maneiras dele tenham melhorado.

Marcus mostrara-o a Robert.

Não sei o que é que esperavas dissera-lhe secamente, mas foi isto que obtiveste.

E fora assim que tudo terminara. Pela primeira vez, Robert deu consigo inteiramente
de acordo com a sua irmã Helen. Os Litton eram brilhantes, imprevisíveis e
encantadores. Mas recusavam submeter-se a qualquer padrão de comportamento
preestabelecido e não se ajudariam a si mesmos. Por isso eram impossíveis.

Para sua surpresa, descobriu que Emma era fácil de esquecer. Conseguia tirá-la da
cabeça tão implacavelmente como um baú cheio de coisas velhas relegado para o
recanto mais esconso de um sótão distante e poeirento. A sua vida ficara de imediato
tão cheia que o vazio deixado pela
167
ausência dela fora, quase de um momento para o outro, preenchido por ocupações
mais válidas.

Na galeria andavam muito ocupados. Os dias dele eram uma roda-viva de possíveis
clientes, visitantes estrangeiros e jovens artistas ansiosos de pastas a abarrotar com
as suas pinturas insalubres. A Galeria Bernstein faria uma exposição dos seus
trabalhos? A Galeria Bernstein apoiaria aquela chama de novo talento? A resposta
era normalmente não, a Galeria Bernstein não o faria, mas Marcus era um homem
bondoso e era regra da casa que nenhum jovem fosse recambiado para Glasgow,
Bristol ou Newcastle, ou para onde quer que vivesse, sem uma boa refeição no
estômago e a importância da viagem de regresso no bolso dos jeans genuinamente
manchados de tinta.

Robert descobriu que a sua vitalidade ia ao encontro daquelas exigências e que,


correndo a toda a velocidade, a sua energia não podia abrandar ou não abrandaria.
Não suportava dar consigo sem fazer nada e preenchia deliberadamente os seus
tempos livres com distracções diferentes, um surpreendente número das quais
estavam relacionadas com Jane Marshall.

O facto de as horas de trabalho dos dois nem sempre coincidirem não o


desencorajava de forma alguma. Por vezes ele aparecia para uma bebida em casa
dela, de caminho para casa vindo da galeria, e encontrava-a ainda de bata, a coser
fita em metros e metros de cortinado, ou a resolver as dificuldades de uma sanefa
recortada em papel milimétrico. Outras vezes ela estava fora da cidade e ele ocupava
a noite com trabalho físico desgastante, cavando o jardim ou cortando a relva.

Um fim-de-semana ele e Jane foram a Bosham, onde o irmão de Jane tinha uma
pequena casa de praia e mantinha um catamarã ancorado nas águas agitadas do
Hard.
168
Velejaram durante todo o domingo. Havia uma brisa estável, um sol brilhante e
bronzeante, e, no final do dia, sonolentos de tanto ar fresco, sentaram-se no pub da
aldeia a beber canecas de cerveja e a jogar às moedas. Voltaram para Londres muito
tarde, com a capota do Alvis para trás e o vento a soprar pedaços de nuvem para a
cara das estrelas. Helen tinha começado outra vez a dizer:

Acho que devias casar com ela.

Robert ignorava a suspeita incomodativa de que ele se andava a portar mal e


respondia apenas:

Talvez case.

Mas quando? De que é que estás à espera?

Ele não respondia, porque não sabia. Só sabia que aquela não era a altura certa para
fazer planos; nem balanços; nem para começar a analisar os sentimentos que nutria
por Jane.

Fora perturbado por Helen, que voltava com o seu tabuleiro de chá. Ela pousou-o e a
mesa de ferro rangeu no empedrado quando o empurrou na direcção dele. Ela
informou:

O Marcus ligou à hora do almoço.

Marcus tivera de voltar à Escócia. O baronete escocês amante de uísque, que tinha
estado tão ansioso por despachar os seus tesouros artísticos, estava a ser contrariado
pelo filho, que, presumivelmente, herdaria os tesouros da família e não queria que
fossem vendidos já. Ou, se a ideia era vendê-los, ele queria três vezes mais do que o
seu sedento pai estava preparado para pedir. Depois de muitos telefonemas
dispendiosos, Marcus decidira com relutância que tinha de ser feita outra visita ao
Norte da fronteira. Os negócios tinham de vir sempre antes dos confortos e
preferências pessoais, e se, para pôr as mãos naqueles quadros, tinha de dormir em
camas húmidas e quartos gélidos e comer refeições
169
terrivelmente mal cozinhadas, então ele estava pronto a fazê-lo.

Como é que lhe estão a correr as coisas’’

Ele foi reservado. Estava, sem dúvida, a falar de uma sala de qualquer barão, com o
proprietário velho a ouvir de um canto da sala e o proprietário novo do outro.

Ele conseguiu os quadros?

Não, mas vai conseguir. Se não todos, pelo menos alguns... Ela afastou-se um pouco,
atravessando a relva, para mudar o dispositivo de rega. Ele está determinado em
relação ao Raeburn disse ela, por cima do ombro. Compra-o por qualquer preço.

Robert deitou o chá e começou a ler o jornal da tarde. Quando Helen voltou, ele
estendeu-lho, aberto, numa página central.

O que é isto? perguntou ela.

Essa rapariga. A Dinah Burnett...

Quem é?

Já lhe devias conhecer a cara. É uma jovem actriz com um agente publicitário
eficiente. Cada vez que se abre um jornal ou uma revista há uma fotografia dela
debruçada sobre um piano, a abraçar um gatinho ou a fazer qualquer coisa
igualmente trivial.

Helen fez uma cara cómica perante a fotografia sexy e ousada e leu a legenda em
voz alta.

Dinah Burnett, a ruiva que teve tanto impacto na série televisiva Detective, anda
agora em ensaios para a nova peça de Amos Monihan, The Glass Door, a sua
primeira aposta séria no teatro. ”Estou assustada”, disse ela ao nosso repórter
especial, ”mas muito orgulhosa por ter sido escolhida para esta peça maravilhosa.” A
senhora Burnett tem vinte e dois anos e é de BarnsIcy.
170
Não sabia que havia uma nova peça do Amos Monihan a estrear. Quem é o
encenador?

Mayo Thomas.

Então ela deve ser boa actriz. Extraordinário, o talento que pode haver por trás de
caras realmente muito estúpidas. Mas porque é que me mostraste isto de repente?

Por nenhuma razão especial, na realidade. É que a Jane anda-lhe a decorar um


apartamento. A princípio ia ser uma coisa muito modesta, mas assim que ela
conseguiu este papel achou que tinha passado a pertencer à classe dos grandes
gastadores; sabes, casas de banho espelhadas e colchas de pele de marta branca.

Muito bem comentou Helen. Voltou a atirar o jornal para o colo dele, mas ele estava
com demasiado calor e preguiça para o apanhar, por isso escorregou-lhe do joelho
para o chão. Pouco depois, Helen começou de uma forma desordenada a reunir as
coisas do chá. Agarrou no tabuleiro e começou a andar para casa.

E o jantar? perguntou. Vais a casa da Jane ou ficas por cá?

Vou a casa da Jane.

Óptimo. Eu como uma fatia de queijo. Está demasiado calor para cozinhar, de
qualquer modo.

Quando ela se foi, ele acendeu um cigarro e ficou sentado a ouvir os pombos e a ver
as sombras crescerem na relva. Quando acabou o cigarro, voltou para dentro de casa,
subiu ao seu apartamento, onde tomou um duche, fez a barba e mudou para jeans e
uma camisa fresca. Enquanto estava a servir a primeira bebida da noite, o telefone
tocou. Ele encheu o copo até meio de soda e foi à sua secretária atender. Era Jane.

- - Robert?

171
Sim.

Sou eu, querido. Olha, era só para te avisar para não chegares antes de por volta das
oito...

Porquê, estás a receber algum amante?

Antes fosse. Não, é a Dinah Burnett, teve uma ideia nova para a casa de banho,
diabos a levem, e quer vir cá depois dos ensaios para falar sobre isso.

Para uma rapariga que está tão orgulhosa por entrar naquela maldita peça pensa
muito em coisas materiais, não achas?

Então estiveste a ler o jornal da tarde. Aquele anúncio dá-me a volta ao estômago.

Não percebo porque é que não se deu ao trabalho de mencionar que estava a decorar
um apartamento, que tinha escolhido uma decoradora de interiores muito conhecida,
a Jane Marshall, de vinte e sete anos, 34, 26, 36, para a ajudar. Querias ir jantar fora?
É que não estou vestido para isso.

Não, claro que não, está demasiado calor. Tenho galinha fria e estava a pensar em
fazer uma salada.

Eu vou numa garrafa de vinho fresco.

Delicioso.

Então até às oito.

Sim, às oito. Ele estava prestes a pousar o auscultador quando ela voltou a insistir.

Não venhas antes e desligou.

Perplexo, ele pousou o auscultador e depois decidiu que devia ter imaginado uma
certa ansiedade na voz dela. Foi buscar gelo para a bebida.

Deliberadamente, Robert chegou um pouco atrasado, mas mesmo assim, quando


parou ao pé da casa de Jane, ainda havia um Fiat azul estacionado à porta. Ele
buzinou duas vezes, como era habitual, e saiu do carro, levando a garrafa do vinho.
Quase de imediato, a porta da frente abriu-se e
172
Jane apareceu com umas calças coçadas de algodão cor-de-rosa e uma blusa cavada.
O cabelo caía-lhe para a cara e parecia, para a Jane, extremamente perturbada,
fazendo gestos agitados com a mão e apontando para o andar de cima. Ele estava
divertido. Foi beija-la.

O que é que se passa?

Ela aceitou a garrafa de vinho.

Ela ainda cá está. Nunca mais se vai embora. Não pára de falar. E agora que tu
chegaste, nada a fará arrancar.

Dizemos que vamos sair e que já estamos atrasados.

Suponho que vale a pena tentar. Tinham estado a falar em sussurro. Depois ela disse
em voz alta:

Não tinha a certeza se eras tu. Anda, sobe. Ele seguiu-a pela estreita escada
inclinada.

Dinah, apresento-te o Robert Morrow... Apresentou-os com naturalidade, antes de ir


à cozinha pôr o vinho. Ele ouviu a grande porta do frigorífico a abrir e fechar
enquanto ela guardava a garrafa.

Dinah Burnett estava sentada no grande sofá de Jane, ao pé da janela aberta, com as
pernas enroladas por baixo do corpo, parecendo que estava à espera de um
fotógrafo, de um entrevistador ou de um possível amante. Era uma rapariga bonita e
vistosa e Robert pensou que nenhuma fotografia lhe podia fazer justiça. Tinha
cabelo arruivado e olhos verde-claros, pele de pêssego e uma constituição com
proporções que são normalmente descritas como ”generosas”. Usava um vestido
simples, curto, de um verde a condizer com os olhos e que talvez tivesse sido
concebido para mostrar o mais possível dos seus braços macios e bem torneados e
das suas pernas intermináveis. Calçava sandálias grosseiras, os seus pulsos
chocalhavam com pulseiras de ouro e nas orelhas, brilhando através da exuberância
do cabelo, enormes argolas de ouro. Os seus dentes eram brancos e certos ^
173
pestanas longas e pretas como fuligem e era difícil de acreditar que tivesse nascido
em Barnsley.

Muito prazer cumprimentou Robert. Apertaram as mãos. Acabei de ler tudo sobre si
no jornal da tarde.

A fotografia é medonha, não é? Ela ainda tinha um indício simpático de um sotaque


de Yorkshire. Pareço uma empregada de bar desgostosa. Mas, mesmo assim,
suponho que é melhor do que nada.

Ela sorriu-lhe, todo o seu encanto feminino emergindo ao engodo de mais um


homem atraente e Robert, lisonjeado e estimulado pela simpatia dela, instalou-se na
outra ponta do sofá. Ela continuou:

Eu não devia de forma nenhuma estar aqui, mas a Jane está a decorar o meu novo
apartamento e eu hoje encontrei uma revista americana com uma casa de banho
fabulosa e tinha de a trazer, depois dos ensaios, para lhe mostrar.

Como é que está a correr a peça?

Oh, é muito excitante.

É sobre quê?

Bem, é...

Nesta altura, Jane reapareceu vinda da cozinha e interrompeu bruscamente.

Que tal uma bebida? Dinah, o Robert e eu, na verdade, vamos sair, mas temos tempo
à conta para uma bebida antes de ires.

Oh, isso é muito simpático. Se têm a certeza. Gostava de um copo de cerveja.

E tu, Robert?

Parece-me uma ideia simpática, eu vou buscar...

Não, deixa estar. Eu vou. Ela tirou a tampa de uma garrafa de cerveja e encheu um
copo habilmente, sem espuma. Dinah, o Robert é negociante de arte, trabalha na
Galeria Bernstein, em Kent Street.
174
Ah, é, a sério? exclamou a senhora Burnett, de olhos arregalados e interessada, mas
sem perceber muito bem. Vende quadros e coisas assim?...

Bem, sim...

Jane levou a cerveja de Dinah, puxou uma pequena mesa e pousou o copo.

O Robert é um homem com muitas potencialidades informou ela. Está sempre a


viajar para Paris ou Roma, para fazer grandes negócios, não é, Robert? Ela voltou
para o tabuleiro das bebidas. Dinah, devias pedir-lhe para procurar um quadro para o
novo apartamento. Precisas de uma coisa moderna por cima da lareira e, nunca se
sabe, pode ser um investimento. Uma coisa para vender quando os bons papéis se
acabarem.

Não me fales em acabar. Ainda agora comecei. Além disso, não seria muito caro?

Não tão caro como essa casa de banho americana. Dinah sorriu cativante.

Mas eu acho sempre que uma casa de banho é terrivelmente importante.

Jane tinha servido mais duas bebidas que levou e deu uma a Robert. Depois
instalou-se numa cadeira do lado oposto ao sofá e olhou para ambos do outro lado
da mesa baixa.

Bem, o apartamento é teu, gatinha condescendeu ela.

O seu tom de voz estava um pouco ácido. Robert atalhou rapidamente:

Ainda não me falou da nova peça... The Glass Door. Quando é que estreia?

Quarta-feira. Esta quarta-feira, pelos vistos. No Regent Theatre.

- Temos de tentar arranjar bilhetes, Jane.


175
Sim, claro concordou Jane.

Só de pensar na primeira noite fico doente dos nervos. Sabe, é o meu primeiro papel
a sério no teatro, e se o Mayo não fosse um encenador tão fabuloso, eu tinha
desistido há semanas...

Ainda não nos disse sobre o que é.

Bem, é... Ah, sei lá. É sobre um jovem, oriundo de uma família normal da classe
operária. Escreve um livro, que vem a ser um best seller, e ele torna-se numa espécie
de celebridade... sabem como é, começa a aparecer na televisão e assim. Depois
anda metido com gente do cinema, vai sempre enriquecendo cada vez mais e
começa a ficar cada vez mais nojento. Bebe, tem muitas aventuras amorosas, na
prática quer é andar na boa vida. E depois, claro, no fim, o telhado cai-lhe em cima,
tudo se desmorona como um castelo de cartas e ele acaba exactamente no ponto em
que começou: na casa da mãe, na cozinha, com a sua velha máquina de escrever e
uma folha de papel em branco. Parece corriqueiro, eu sei, mas é comovente e real e
o diálogo é do outro mundo.

Acha que vai ter êxito?

Não vejo como é que pode não ter. Mas claro que eu sou suspeita.

Que papel é que faz?

Oh, sou só uma das muitas raparigas. Mas sou diferente, porque engravido.

Encantador murmurou Jane.

Mas não é nada sórdido, absolutamente nada Dinah garantiu-lhe. Quando li o guião
pela primeira vez, não sabia se havia de chorar ou de rir. É a vida real, suponho.

Claro. Jane acabou a sua bebida, pousou o copo vazio e olhou para o relógio. Disse,
cortante Robert, vou
176
subir para mudar de roupa. Não podemos chegar atrasados, senão vão ficar todos à
nossa espera. Ela levantou-se. Vais desculpar-me, não vais, Dinah?

Claro, e obrigada por teres sido tão simpática em relação à casa de banho. Eu
telefono-te para te dizer o que decidi.

Sim, faz isso.

Depois de ela subir, Dinah sorriu mais uma vez, confiadamente, para Robert.

Espero não estar a demorar-vos. Vou-me embora quando acabar a minha bebida,
mas, neste momento, vivo num sítio tão atafulhado que é deprimente. E está tanto
calor, não está? Quem me dera que trovejasse. Se ao menos trovejasse, ficava muito
mais fresco.

Esta noite vai trovejar, tenho a certeza. Conte-me, como é que conseguiu esse papel?

Bem, o Amos Monihan, sabe, o que escreveu a peça, tinha-me visto na televisão, na
série Detective, ligou para o Mayo Thomas e disse que pensava que eu era a pessoa
certa para o papel. Por isso fui a uma audição. Na realidade, é tudo.

E quem é que faz o papel principal? O jovem! O escritor?

Aí é que está o desafio. Os produtores queriam um grande nome, alguém famoso.


Mas o Mayo tinha descoberto um rapaz novo, tinha-o visto numa companhia
qualquer da província e, não sei como, convenceu o homem do dinheiro a dar-lhe
uma oportunidade.

Então têm um desconhecido no papel principal?

É isso mesmo confirmou Dinah. Mas, acredite -me, ele é muito bom.

Ela terminou a sua bebida. Lá em cima, Jane andava de um lado para o outro no
quarto, abrindo e fechando gavetas. Robert levantou-se para voltar a encher o copo
vazio.
177
Quer a outra metade?

Não, a sério, obrigada. É melhor não os demorar mais tempo... Ela levantou-se,
puxando o vestido para baixo e afastando o seu comprido cabelo do pescoço. Gritou
para as escadas:

Vou sair. Adeus, Jane!

Oh, adeus. O tom de Jane parecia mais amigável, agora que a sua visita estava, na
realidade, de saída.

Dinah começou a descer as escadas e Robert seguiu-a, tencionando, num gesto


simpático, acompanhá-la ao carro. Por cima do cabelo exuberante dela, ele
debruçou-se para abrir o trinco da porta da frente de Jane. Lá fora, o pátio dormia ao
calor abafado do fim da tarde.

Ele disse:

Vou fazer figas por quarta-feira.

Bem haja.

Saíram para a rua. Ele abriu a porta do Fiat para ela entrar. Perguntou:

Como é que se chama o tal jovem actor?

Dinah deslizou para o lugar do condutor, revelando mais a perna do que era bom
para a tensão de qualquer um. Respondeu:

Christopher Ferris.

Ele pensou: ”Então era por isso que a Jane não queria que eu me encontrasse
contigo.”

Christopher Ferris? Eu conheço-o.

Conhece? Que engraçado.

Pelo menos... conheço a irmã dele.

Eu não sei nada sobre a família dele.


Ele nunca falou dela? Nunca mencionou a Emma?

Nunca disse uma palavra. Mas também os homens, normalmente, não falam sobre as
irmãs, pois não?

178
Ela riu-se, fechou a porta do carro, mas a janela estava aberta e Robert encostou nela
o cotovelo, como um marinheiro com um pé entre a porta.

Ele disse:

Gostava de lhe desejar boa sorte.

Eu amanhã dou-lhe o seu recado.

Eu não podia telefonar-lhe?

Bem, suponho que sim, mas as chamadas não são propriamente bem-vindas quando
estamos a trabalhar. Depois ela teve uma ideia brilhante. Já sei, tenho o número de
casa dele, algures. Tive de lhe telefonar uma vez para lhe dar um recado do Mayo.

Ela agarrou na mala, que estava no banco do lado, e começou a vasculhar. Tirou um
guião, uma bolsa, um lenço, um frasco de bronzeador, uma agenda. Folheou a
agenda.

Cá está, Flaxman 8881. Quer que lho escreva?

Não, eu não me esqueço.

Talvez ele lá esteja... Não sei o que é que ele faz nos tempos livres. Ela voltou a
sorrir. Imagine, pensar que o senhor o conhece. O mundo é pequeno, não é?

É. O mundo é pequeno. Ela pôs o motor a trabalhar.

Bom, foi um prazer conhecê-lo. Adeus. Ele afastou-se.

Adeus.

O pequeno carro roncou rua abaixo e ele observou-o a afastar-se. No cruzamento, no


final da rua estreita, parou por um momento, depois arrancou, virou à esquerda e
desapareceu, o som do seu motor engolido pelo rugido anónimo que era o tráfego de
Londres.

Ele voltou para dentro de casa, fechou a porta e subiu as escadas. Não havia
qualquer som vindo do quarto.
Jane.

179
Ela começou imediatamente a andar de um lado para o outro, como se estivesse
ocupada.

Jane.

O que é?

Anda cá.

Mas não estou...

Anda cá abaixo.

Momentos depois, ela apareceu no topo das escadas, embrulhada num roupão fino.
O que é?

É o Christopher Ferris retorquiu Robert.

Ela olhou fixamente para baixo, para ele, a sua expressão fechada e de súbito
implacável.

O quê sobre Christopher Ferris?

Sabias que ele entrava nesta peça. Que ele está em Londres há este tempo todo.

Ela desceu as escadas na direcção dele. Quando tinha o rosto à sua altura, disse com
frieza:

Pois sabia.

Mas não me disseste. Porquê?

Talvez porque não acredito em remexer em águas passadas. Além disso, prometeste.
Mais Littons, não.

Isto não tem nada a ver com essa promessa.

Então porque é que estás tão exaltado e perturbado? Olha, Robert, eu acho que em
relação a este assunto penso da mesma forma que a tua irmã Helen. A actuação da
Galeria Bernstein, num campo profissional, relativamente ao Ben Litton, está muito
bem, mas os compromissos relacionados com essa família não devem ir para além
disso. Sei da situação da Emma, do tipo de vida que ela tem levado e tenho pena
dela. Fui a Brookford contigo e vi aquele teatrinho arrepiante e aquele apartamento
horrível. Mas ela é adulta e, como tu próprio disseste, altamente inteligente... O que
180
é que tem que o Christopher esteja em Londres? Isso não quer dizer que a Emma
tenha sido abandonada. Faz parte do trabalho dele e ela aceitá-lo-á como tal, tenho a
certeza.

Isso continua a não explicar porque é que não me disseste.

Talvez porque soubesse desde o princípio que tu começarias a andar às voltas como
um cão demente. Imaginando o pior, censurei a minha responsabilidade,
simplesmente porque a pobre rapariga é filha do Ben Litton. Robert, tu viste-a. Ela
não quer ser ajudada. E, se tentares, estarás apenas a interferir...

Ele disse devagar:

Não sei se estás a convencer-me ou a ti própria.

Grande parvo, estou a tentar fazer com que vejas a verdade.

A verdade é que, pelo que sabemos, Emma Litton está sozinha, a viver numa cave
bolorenta com um bêbedo paralítico.

Não foi isso que ela escolheu fazer?

Ela atirou-lhe a pergunta e depois, antes de ele poder responder, passou por ele de
raspão, a caminho do carro das bebidas, e começou a andar de um lado para o outro
com copos vazios e tampas de garrafas de cerveja numa fraca encenação de estar a
fazer arrumações. Ele olhava, com uma grande tristeza, as costas dela, a mancha
dourada de cabelo, a cintura fina, as mãos habilidosas e pequenas. Ela era
implacável.

Ele disse com brandura:

A Dinah Burnett deu-me o número do Christopher. Talvez fosse melhor eu ligar-lhe


daqui.

Faz como quiseres. Ela levou os copos para a cozinha. Robert agarrou no telefone
dela e digitou o número de que se lembrava. Jane voltou para levar as garrafas
vazias,.

181
Está. Era Christopher.

Christopher, fala Robert Morrow. Não sei se se recorda, eu fui a Brookford...

Para ver a Emma. Sim, claro. Esplêndido! Como é que soube onde me encontrar?

A Dinah Burnett deu-me o seu número. Também me contou sobre The Glass Door.
Parabéns.

Guarde-os até vermos o que os críticos têm a dizer.

Mesmo assim, é um grande esforço. Olhe, queria saber de Emma.

A voz de Christopher tornou-se cautelosa.

Sim?

Jane tinha voltado da cozinha e estava agora ao pé da janela, de braços cruzados, a


olhar lá para baixo, para a rua.

Onde é que ela está?

Em Brookford.

No apartamento? Com o seu amigo?

O meu amigo? Ah, o Johnny Rigger? Não, ele foi-se embora. Uma manhã chegou
aos ensaios bêbedo e o encenador pô-lo fora. A Emma está sozinha.

Cuidadosamente, controlando a sua cólera, Robert disse:

Não pensou uma única vez em ligar ao Marcus Bernstein, ou para mim, para nos
dizer isso?

Bem, eu teria pensado nisso, mas, antes de me vir embora de Brookford, Emma
obrigou-me a prometer que não o faria. Por isso, como vê, não podia fazê-lo.
Enquanto Robert, num silêncio agitado, tentava aceitar aquela desculpa, Christopher
continuou, parecendo de repente muito mais novo e não tão seguro de si mesmo.
Mas vou-lhe dizer o que fiz, no entanto. Senti-me um pouco culpado por a deixar
assim... por isso escrevi ao Ben.
Escreveu a queml Ao pai dela.
182
Mas que diabo podia ele fazer? Ele está na América... está no México.

Eu não sabia que ele estava no México, mas escrevi-lhe, ao cuidado da Galeria
Bernstein, e anotei ”por favor enviar” no envelope. Sabe, achei que alguém devia
saber o que tinha acontecido.

E a Emma? Ela ainda está a trabalhar no teatro?

Estava quando eu me vim embora. Sabe, não fazia sentido ela vir para Londres
comigo. Eu ensaio de manhã à noite e nunca teríamos tempo para nos vermos. Além
disso, se The Glass Door sair de cena ao fim de uma semana, vou precisar outra vez
do meu antigo emprego, em Brookford. O Tommy Chilers está muito gentilmente a
guardar-me o lugar. Por isso, decidimos que seria melhor que a Emma lá ficasse.

E se The Glass Door ficar em cena dois anos?

Nesse caso não sei o que aconteceria. Mas, neste momento, vou ser franco consigo.
As coisas são um pouco complicadas. Esta casa onde eu estou a morar é da minha
mãe. Estou a morar com a minha mãe. Está a ver, com as coisas no ponto em que
estão, é um pouco complicado.

Pois disse Robert. Pois, estou a ver... como você diz, é complicado.

Ele pousou o auscultador. Jane, não se virando da janela, perguntou:

O que é assim tão complicado?

Ele está a morar com a Hester, a mãe. E ela está, obviamente, a recusar que um
Litton ponha os pés em casa dela. Cabra idiota. E o companheiro de apartamento
bêbedo foi despedido, por isso Emma está sozinha. E, para aliviar a consciência,
Christopher escreveu ao Ben Litton a contar o que aconteceu. E o que me apetecia
era atá-los
183
a todos a um grande pedregulho e atirá-los para um lago sem fundo.

Eu sabia que isto ia acontecer afirmou Jane. Ela virou-se então para o encarar, com
os braços ainda rigidamente cruzados, e ele viu não só que ela estava zangada, mas
também muito perturbada.

Isto entre nós podia ser bom... sabes disso, não sabes, tão bem como eu? E foi por
isso que não te disse nada sobre Christopher, porque eu calculava, que se tu
soubesses, seria o fim de tudo.

Ele desejou conseguir dizer ”Não tem de ser o fim”, mas era impossível.

De certa forma, Robert, cumpriste, de facto, a tua promessa. Nunca mencionaste


Emma. Mas ela esteve o tempo todo no mais recôndito da tua mente.

Agora que tinha sido dito, assim com tanta clareza, ele via que aquilo era verdade.
Depois disse, inutilmente:

Só porque, de uma forma extraordinária qualquer, eu estou envolvido com ela.

Se estás envolvido com ela é porque queres estar. E isso não chega, Robert. Isso para
mim não chega. Eu não me contento com segundos lugares. Prefiro passar sem.
Pensei que isso tinha ficado claro. Comigo tem de ser tudo ou nada. Não posso
passar pelo mesmo outra vez.

Ele compreendeu. Mas a única coisa que podia fazer era pedir desculpa.

Acho que... talvez seja melhor ires-te embora.

Ela continuava de braços cruzados, uma barreira contra ele. Não havia nenhuma
forma de dizer adeus. Ele não conseguia beija-la. Não conseguia dizer com
frivolidade: ”Foi bom”, como era hábito nas comédias amorosas mais vulgares. E
nunca conseguiria perdoar-lhe o facto de ter tentado afastá-lo de Emma.

184
- Eu vou.
Ele disse:

É melhor. Mas quando ele começou a descer as escadas, ela lembrou-se de uma
coisa. Esqueceste-te do vinho.

Esquece o vinho retorquiu Robert.


185
10

A canção terminou. As luzes diminuíram de intensidade. Charmian, no papel de


Oberon, avançou para o seu discurso final. A música de Mendelssohn, gravada em
cassete, pois as reduzidas dimensões do Teatro de Repertório de Brookford não
permitiam espaço para uma orquestra, penetrava a cave escura do auditório e
evocava para Emma, sentada à secretária do ponto, toda a magia essencial de uma
noite de Verão.

Agora, até ao raiar do dia.

Fadas, errai à vontade pelo palácio...

Era o fim da primeira semana de Sonho de Uma Noite de Verão. O fiasco financeiro
de Daisies on the Grass tinha levado a direcção à encenação de Shakespeare, o que,
embora implicasse o dobro do trabalho para toda a gente, assegurava um subsídio da
Secretaria de Estado da Cultura e casas cheias, compostas, na sua maior parte, por
população escolar.

Agora Emma já não estava a trabalhar para Collins, o contra-regra. Havia uma nova
assistente de contra-regra, uma jovem acabada de sair da escola de drama, dedicada,
forte e aparentemente imune à língua afiada de Collins. Ela estava no palco agora,
com a língua de veludo cinzento e as
187
asas prateadas de Cobweb, a fada, pois o enorme elenco de Sonho de Uma Noite de
Verão exigia que cada elemento dacompanhia fosse chamado a representar um
papel.
Devido a isso, Tommy Childers tinha pedido a Emma para voltar e dar uma
mãozinha nas actividades de bastidores. Durante as duas semanas anteriores, ela
tinha realizado uma série de tarefas ajudara no guarda-roupa, trabalhara nos
cenários, batera guiões à máquina e passara o tempo todo a ir buscar sandes e
cigarros e a fazer bules de chá intermináveis.
Nessa noite, tinha-lhe sido dada a tarefa de ponto e passara todo o tempo com os
olhos colados à cópia, aterrorizada com medo de se perder, de passar uma fala, de
deixar alguém ficar mal. Mas agora, à medida que a peça chegava ao
fim, e sabendo o resto de cor, ela permitiu que a sua concentração se descontraísse
um pouco e se desse ao luxo de observar o palco.J
Charmian usava uma coroa de folhas cor de esmeralda, I

um tabardo prateado e calças também prateadas nas suas pernas longas e elegantes.
O público, preso pela antiga magia das palavras, ficava sem fôlego, encantado.

Vamos, depressa; Esperar-vos-ei ao raiar do dia.

Para aumentar o limitado espaço lateral dos dois lados do palco, Tommy Childers
tinha mandado construir uma rampa que partia do palco e penetrava na coxia do
auditório.

Agora Oberon e Titânia, de mãos dadas, e seguidos por um séquito de fadas, faziam
a sua saída do palco iluminado por esta rampa, a correr, com as roupas esvoaçando
como asas,
exuberantes, descendo para a escuridão; rápidos e silenciosos, subiam a coxia e
saíam lá atrás com uma subitaneidade ” tão airosa que desapariciam quase sem
ruído, sem rasto.

188
Depois o palco era deixado a Sara Rutherford, no papel de Puck, iluminada por um
único foco.

Se nós, sombras que somos, vos desagradamos Imaginai apenas (e tudo reparado
ficará)

Ela tinha uma pequena flauta. Quando chegou à parte ”E, posto isto, boa-noite a
todos”, tocou nela o trecho que era o tema da música de Mendelssohn.

Depois, triunfante, ”Dai-me as vossas mãos, se somos amigos, e ficai certos que
Robim vos compensará um dia.” E escuridão, e pano, aplausos.

Tudo acabado. Emma deixou escapar um suspiro de alívio por nada ter corrido mal,
fechou a cópia do ponto e recostou-se na cadeira. O elenco estava a voltar ao palco
para a primeira chamada. Quando passava por ela, o rapaz que fazia o papel de Nick
Bottom baixou-se para lhe sussurrar:

O Tommy pediu-me para te dizer que está um tipo qualquer à tua espera. Estava
sentado na Sala Verde há meia hora, mas o Tommy levou-o para o gabinete dele.
Pensou que talvez fosse um pouco mais privado para vocês. É melhor ires ver do
que se trata.

À minha espera? Mas quem é?

Bottom já estava no palco. O pano subiu, houve nova explosão de aplausos, e


sorrisos, e vénias, e cortesias...

O primeiro pensamento de Emma foi que fosse Christo. Mas se fosse Christo,
porque é que ele não tinha dito? Ela desceu os degraus de madeira e caminhou pelo
corredor que dava para o patamar das escadas que subiam da porta do palco. Em
frente, ao fundo de um pequeno corredor, a porta da Sala Verde estava entreaberta,
mostrando um vislumbre do velho sofá de veludo e os antigos cartazes emoldurados
nas paredes. O gabinete de Tommy Childers partia desse corredor. A porta estava
fechada.
189
Atrás dela, os aplausos esvaíram-se e depois elevaram-se para a segunda chamada
ao palco.

Ela abriu a porta.

Era uma sala minúscula, pouco maior do que um armário; mal chegava para conter a
secretária, duas cadeiras e um ficheiro. Ele estava sentado atrás da secretária, na
cadeira do Tommy, por trás do caos pessoal e privado de guiões, cartas, provas de
programas e notas de encenação. A parede por trás dele estava forrada de fotografias
pregadas com tachas. Alguém lhe fizera uma chávena de chá, mas ele não se tinha
dignado a bebê-la, e estava na frente dele, horrivelmente fria, intacta. Vestia calças
cinzento-pérola, um blusão de bombazina castanho-avermelhada, uma camisa de
algodão azul-escuro e uma gravata amarela cor de cromo, de nó alargado, de forma
que o botão de cima da camisa aparecia. Estava mais bronzeado do que nunca,
parecia cerca de dez anos mais novo e quase indecentemente atraente.

Estava a fumar um cigarro americano e um cinzeiro cheio de beatas era indicativo


do tempo que tinha estado à espera de Emma. Quando ela entrou, ele voltou a
cabeça para olhar para ela, descansando o cotovelo em cima da secretária, o queixo
pousado no polegar. Os seus olhos, através do véu de fumo de cigarro, continuavam
escuros, sombreados e ilegíveis.

Ele disse, parecendo extremamente irritado:

O que é que tens estado a fazer?

E Emma ficou demasiado aturdida para fazer outra coisa se não dizer-lhe:

A fazer de ponto.

Vá lá, entra de uma vez e fecha a porta.

Ela fez o que lhe mandaram. Os aplausos vindos do auditório ficaram lá fora. Ela
descobriu que o seu coração estava a bater muito depressa, mas se era devido ao
choque, ao
190
prazer ou a certa apreensão, era impossível de saber. Falou por fim, mal se ouvindo:

Pensei que estavas na América.

E estava, esta manhã. Vim hoje. E ontem... pelo menos suponho que foi ontem, estas
datas e horas internacionais a mudarem complicam a vida a um nível alarmante... Eu
estava no México. Sim. Ontem. Em Acapulco.

Emma procurou uma cadeira às apalpadelas, sentou-se nela com muito cuidado
antes que as suas pernas fraquejassem.

Em Acapulco?

Sabias que os aviões que vão para Acapulco estão todos pintados de cores
diferentes? E à medida que se vai para sul, as hospedeiras do ar fazem uma espécie
de striptease de uniforme. Fascinante. Ele continuou a observá-la. Emma, há
qualquer coisa de diferente em ti. É isso, cortaste o cabelo. Que boa ideia! Vira-te e
deixa-me ver atrás. Ela fê-lo, virando a cabeça cautelosamente e observando-o pelo
canto do olho. Está muito melhor. Não sabia que tinhas uma cabeça com uma forma
tão boa. Toma um cigarro.

Ele empurrou o maço para o outro lado da secretária. Emma tirou um e ele acendeu-
lho, protegendo a chama com as suas mãos familiares e bonitas. Enquanto sacudia o
fósforo, disse com naturalidade:

Muitas cartas têm atravessado o Atlântico. Nenhuma delas escrita por ti.

Era uma repreensão.

Pois não. Eu sei.

É difícil de compreender. Não que eu me importasse particularmente, embora deva


dizer que, já que deve ter sido a primeira carta que alguma vez te escrevi, teria sido
agradável receber uma resposta. Mas com Melissa foi diferente. Ela queria que
viesses para os Estados Unidos e ficasses
191
connosco, ainda que só por uma curta visita. Sempre foste uma pessoa muito
cumpridora desse tipo de coisas. O que é que aconteceu?

Não sei. Suponho que fiquei... desapontada por não teres voltado para casa. Levei
algum tempo a habituar-me à ideia de estares casado. Depois, quando passei a
aceitá-la... já se tinha tornado demasiado tarde para responder às vossas cartas. E
cada dia que passava piorava as coisas: tornava a tarefa mais impossível. Eu não
sabia que quando se fazia uma coisa de que não se estava particularmente
orgulhoso... se tornava cada vez mais difícil desfazê-la. Ele não fez comentários.
Continuou simplesmente a fumar, a observá-la. Disseste muitas cartas. Quem é que
te escreveu?

Bem, recebi uma carta do Marcus, claro. Essa era de negócios. E depois uma
bastante formal, de Robert Morrow. Dizia que tinha estado aqui a ver uma peça
qualquer e que tinha tomado uma bebida contigo e com o Christopher. Não consegui
perceber, contudo, se ele tinha vindo especificamente para ver a peça ou para te ver
a ti.

Sim. Bem...

Assim que percebemos que ainda estavas viva, aparentemente ocupada e sem
qualquer intenção de nos visitar, a Melissa e eu partimos no nosso avião colorido
para o México, onde ficámos em casa de uma velha estrela de cinema louca que vive
numa casa cheia de periquitos. Depois, ontem, voltámos para Queenstown, e eis
senão quando eu descubro mais uma carta à minha espera.

De Robert?

Não. De Christopher.

Ela não conseguiu conter-se.

De Christopher!

Ele deve ser um jovem excepcionalmente talentoso. Com representação em Londres,


tão novo, com tão pouca
192
experiência. Claro que eu sempre soube que ele faria um

êxito flagrante da sua vida. Ou isso ou acabava na prisão...

Mas mesmo aquela provocação não conseguiu distraí-la.

Queres dizer o Christopher! Escreveu-te a ti?

Dito nesse tom, parece insultuoso.

Mas porquê?

Só consigo imaginar que ele se tenha sentido muito responsável.

Mas... Estava a formar-se uma ideia na sua mente. Uma suspeita tão maravilhosa
que, se não fosse verdade, tinha de ser desfeita imediatamente. Mas tu não voltaste
por causa dessa carta? Voltaste para pintar. Para ir para Porthkerris pintar outra vez?

Bem, claro, visto a longo prazo, sim. O México foi inspirador. Têm um cor-de-rosa
extraordinário nos edifícios, nos quadros e nas próprias roupas...

Talvez te tenhas fartado de Queenstown e da América insistiu ela. Nunca tiveste


muito jeito para ficar mais de alguns meses no mesmo sítio. E, claro, vais ter de
visitar o Marcus. E de começar a pensar numa nova exposição.

Ele olhou-a fixamente sem expressão.

Para quê esse catálogo de motivos?

Bem, tem de haver alguma razão.

Acabei de te dizer. Vim para te ver.

Ela não queria o cigarro que ele lhe tinha dado. Inclinou-se para a frente e apagou-o,
depois esmagou as mãos no colo, as palmas apertadas uma contra a outra, os dedos
entrelaçados. Interpretando mal o silêncio dela, Ben pareceu ficar ofendido.

Penso que ainda não percebeste bem qual é a situação. Eu vim literalmente do
México, li a carta de Christopher, despedi-me da Melissa e meti-me outra vez num
avião. Não tive tempo de mudar de camisa. Sujeitei-me a mais
193
onze horas de voo, o tédio quebrado apenas por uma série de refeições intragáveis,
que sabiam todas a plástico. Pensas que suporto torturas destas para vir falar com o
Marcus Bernstein sobre mais uma exposição?

Mas, Ben...

Ele estava, contudo, embalado e pouco disposto a ser interrompido.

E, depois de chegar, vou para Claridges, onde a Melissa teve a amabilidade de me


reservar antecipadamente um quarto por telegrama. Cedo a tomar um banho, ou uma
bebida, ou uma refeição decente? Não. Entro para o táxi mais lento deste lado do
Atlântico e viajo, debaixo de uma chuva indescritível, para Brookford disse a
palavra como se fosse uma coisa desagradável, onde, após intermináveis indicações
incorrectas, acabo por encontrar o teatro de repertório. O táxi está neste momento lá
fora, a cobrar uma soma monumental. E se não me acreditas, podes ir lá fora ver.

Eu acredito disse Emma rapidamente.

E depois, quando te dignas aparecer, da única coisa que sabes falar é do Marcus
Bernstein e de uma qualquer exposição hipotética. Sabes uma coisa? És uma fedelha
ingrata. Um exemplo típico da geração moderna. Não mereces ter um pai.

Ela replicou:

Mas eu já estive sozinha antes. Estive sozinha durante anos. Na Suíça, em Florença,
em Paris. Nunca me vieste ver nessas alturas.

Não precisavas de mim nessas alturas ripostou Ben secamente. E eu sabia o que
estavas a fazer e com quem estavas. Desta vez, quando li aquela carta de
Christopher, conheci os primeiros vagos sinais de preocupação. Talvez porque o
Christopher, sobretudo o Christopher, nunca teria escrito se ele próprio não estivesse
preocupado. Porque é que não me disseste que o tinhas encontrado em Paris?
194
Pensei que não te ia agradar.

Depende do tipo de pessoa em que ele se tornou. Ele mudou muito do rapazinho que
vivia connosco em Porthkerris?

Parece o mesmo... Mas é alto... Está um homem agora. Determinado, ambicioso e,


talvez, um pouco egocêntrico. E com todo o encanto do mundo. Falar dele a Ben era
como tirarem-lhe um peso dos ombros. Emma sorriu. Confessou: E eu adoro-o.

Ben, aceitando o facto, devolveu o sorriso.

Pareces a Melissa a falar do Ben Litton. Afinal, parece que esse jovem Christopher e
eu temos muito em comum. É irónico que tenhamos perdido tantos anos a
detestarmo-nos um ao outro. Talvez eu devesse travar conhecimento com ele de
novo. Desta vez, talvez nos déssemos um pouco melhor.

Sim, penso que sim.

A Melissa vem ter comigo dentro de uma semana ou duas. Vem para Porthkerris.

Viver lá em casa? perguntou Emma, incrédula. Ben estava divertido.

A Melissa? Lá em casa? Deves estar a brincar. Já foi reservada uma suite no Hotel
Castelo. Vou levar a vida de um peixe-dourado enfiado num aquário, mas talvez, à
medida que envelheço, a existência sibarita estejá a começar a revelar os seus
encantos.

Mas ela não se importou? De ires a casa, assim? Beija-la e deixá-la sem sequer teres
tempo para mudar de camisa?

Emma, a Melissa é uma mulher esperta. Ela não tenta amarrar um homem ou possuí-
lo. Ela sabe que a melhor maneira de nos ligarmos a alguém que se ama é... com
muito jeito... dar-lhe liberdade. As mulheres levam muito tempo a aprender isso. A
Hester nunca aprendeu. E tu?
195
Eu estou a aprender respondeu Emma.

O mais extraordinário é que eu acredito que estás mesmo.

Por aquela altura já estava escuro. O que tinha acontecido de forma despercebida,
enquanto conversavam, a escuridão aumentando imperceptivelmente até o rosto de
Ben, à minúscula distância que os separava, ser simplesmente uma mancha, o seu
cabelo uma coisa branca. Havia um candeeiro em cima da secretária, mas nenhum
dos dois se mexeu para o acender. A penumbra cercava-os, a porta fechada mantinha
o resto do mundo lá fora. Eles eram os Litton; uma família; juntos.

Enquanto conversavam, podiam ouvir os sons rotineiros vindos dos bastidores do


teatro. A última chamada ao palco. Vozes. Collins a insultar um infeliz electricista.
Passos apressados, correndo escada acima para os camarins, ansiosos por saírem,
por se libertarem dos fatos e da maquilhagem, por apanharem autocarros, por irem
para casa, por cozinhar ceias e lavar meias e, talvez, por fazer amor. Passos de um
lado para o outro, dentro e fora da Sala Verde. ”Querida, tens um cigarro? Onde está
a Delia? Alguém viu a Delia? Não houve nenhum telefonema para mim, pois não?”

Os sons diminuíam à medida que a dois e dois ou três e três deixavam o teatro.
Desciam as escadas, batiam com a porta e saíam para a rua estreita. Um carro
arrancava. Algures um homem começou a assobiar.

Por trás de Emma, a porta foi abruptamente aberta e a suave escuridão foi quebrada
por um rectângulo de luz amarela.

Desculpem interromper-vos... Era Tommy Childers. Não precisam de luz? Ele


carregou no interruptor e Ben e Emma ficaram paralisados, a pestanejar, como um
casal de corujas sonolentas. Só queria uma coisa da minha secretária, antes de ir para
casa.
196
Emma levantou-se, desviando a cadeira do caminho.

Tommy, sabias que era o meu pai?

Não tinha a certeza disse Tommy, sorrindo para Ben. Pensei que estava na América.

Toda a gente pensava que eu estava na América. Até a minha mulher antes de eu me
despedir dela. Espero que não lhe tenha causado nenhum inconveniente termos
estado aqui tanto tempo no seu gabinete.

De maneira nenhuma. O único problema é que o guarda-nocturno está a ficar um


pouco impaciente em relação à porta do palco. Eu digo-lhe que tu a fechas, Emma.

Sim, claro.

Bem... Boa-noite, senhor Litton... Ben pôs-se de pé.

Tinha pensado em levar Emma comigo para Londres esta noite. Não tem objecções
a isso?

Absolutamente nenhuma afirmou Tommy. Ela tem andado a trabalhar como uma
escrava durante as últimas duas semanas. Faz-lhe bem tirar uns dias de descanso.

Emma objectou:

Não sei porque é que estás a pedir ao Tommy quando nem sequer me perguntaste a
mim.

Eu não te pergunto coisas cortou Ben. Digo-tas.

Tommy riu-se. Disse:

Nesse caso, espero que vão à estreia. Ben não percebeu.

Estreia?

Secamente, Emma esclareceu-o.

Ele quer dizer à antestreia do Christopher. Na quarta-feira.

Já? Provavelmente nessa altura já estou em Porthkerns. Teremos de ver isso.


197
Devia tentar sugeriu Tommy. Apertaram as mãos. Foi um prazer conhecê-lo.
Emma... para ti, até um dia destes...

Talvez na próxima semana, se The Glass Door sair de cena...

Não sai nada replicou Tommy. Se o que Christo fez à Daisies on the Grass servir de
referência, vai ficar em cena tanto tempo como A Ratoeira. Não te esqueças de
fechar a porta.

Ele afastou-se escada abaixo. Ouviram-lhe os passos a descer o beco, por baixo da
janela, em direcção à rua. Emma suspirou. Sugeriu:

Acho melhor irmos embora. O motorista do táxi ou perde a esperança de te voltar a


ver ou vai morrer de velho à espera.

Mas Ben tinha-se instalado outra vez na cadeira do Tommy.

Já vamos sossegou ele. Só mais uma coisa. Tirou outro cigarro do maço americano.
Queria perguntar-te umas coisas sobre Robert Morrow.

Ele tinha uma voz do mais desconcertante e calmo. Nunca mudava ou variava as
suas inflexões, de forma que se estava constantemente a ser apanhado de surpresa.
Todos os nervos do corpo de Emma saltaram em alerta, mas ela apenas disse, com
suficiente naturalidade:

O que é que tem o Robert Morrow?

Eu sempre tive um... pressentimento em relação àquele jovem.

Ela tentou ser superficial.

Queres dizer, para além de admirares a forma da cabeça dele.

Ele ignorou a observação.

Perguntei-te uma vez se gostavas dele e tu disseste: ”Suponho que sim. Mal o
conheço.”

198
E então?

Conhece-lo melhor, agora?

Bem, sim, suponho que sim.

Quando ele veio a Brookford, dessa vez, ele não estava simplesmente a visitar o
teatro, pois não? Ele veio ver-te.

Veio à minha procura. Não é bem a mesma coisa.

Mas deu-se ao trabalho de vir à tua procura. Pergunto-me porquê.

Talvez tenha sido levado pelo famoso sentido de responsabilidade dos Bernstein.

Pára de rodear a questão.

O que é que queres que te diga?

Quero que me digas a verdade. E que sejas honesta contigo mesma.

O que é que te faz pensar que não o fiz?

Porque houve uma luz que se apagou nos teus olhos. Porque te deixei em Porthkerris
radiosa e morena como uma cigana. Por causa da forma como te sentas, da forma
como andas, da tua aparência. Ele acendeu então o cigarro. Talvez te esqueças que
ando a observar as pessoas, a dissecar as suas personalidades, a pintá-las, há mais
anos do que os que tu tens. E não foi o Christopher quem te fez ficar infeliz. Tu
própria já me disseste isso.

Talvez tenhas sido tu.

Tretas? Um pai? Zangada, talvez. Magoada e ressentida. Nunca de coração


despedaçado. Fala-me do Robert Morrow. O que é que correu mal?

A pequena sala ficou de súbito insuportavelmente abafada. Emma levantou-se e foi à


janela, abriu-a de par em par, apoiando o cotovelo no parapeito e inspirando grandes
golfadas de ar fresco e lavado pela chuva.

Ela disse:

Suponho que nunca me dei ao trabalho de compreender que tipo de pessoa ele
realmente era.

199
Não percebo.

Bem... Encontrá-lo pela primeira vez como eu o encontrei, fez com que começasse
tudo de uma forma errada. Eu nunca pensei nele como uma pessoa com uma vida
particular e uma existência privada, com gosto e aversões... e amantes. Ele apenas
fazia parte da Galeria Bernstein, tal como o Marcus faz parte da Galeria Bernstein.
Estão lá simplesmente para cuidar de nós. Para organizar exposições, trocar cheques,
fazer reservas em hotéis e assegurar que a vida, para os Litton, no mínimo corra
sobre rodas. Ela voltou-se para franzir o sobrolho ao pai, perplexa pela sua própria
revelação. Como é que eu pude ser tão idiota?

Talvez o tenhas herdado de mim. O que é que pôs fim a essa ilusão feliz?

Oh, não sei. Várias coisas. Ele foi a Porthkerris para ver os quadros do Pat Farnaby e
pediu-me para ir à Gollan com ele, porque não sabia o caminho. Estava a chover, um
tempo muito tempestuoso, ele trazia uma camisola de lã vestida e riu-se de muitas
coisas. Sei lá, mas foi agradável. E íamos jantar juntos, mas ele... bem... de qualquer
modo, eu fiquei com dor de cabeça, por isso acabei por não ir. Depois vim para
Brookford para morar com o Christo e não pensei mais em Robert Morrow até
àquela noite em que ele veio ao teatro. Eu estava a vagar o palco, voltei-me, e ali
estava ele. E trazia uma rapariga com ele. Ela chama-se Jane Marshall e é uma
decoradora de interiores, ou uma coisa assim muito talentosa. É bonita, bem-
sucedida na vida e pareciam um casal. Sabes o que eu quero dizer? Um casal calmo,
auto-sufíciente e... unido. E eu senti como se alguém me tivesse fechado uma porta
na cara e me tivesse deixado do lado de fora, ao frio.

Ela voltou-se então da janela, voltou para o pé da secretária e sentou-se nela, de


costas para o pai, agarrou numa
200
borracha e começou a brincar com ela, passando-a como uma catapulta por entre os
dedos.

Eles foram ao apartamento tomar uma cerveja ou um café, ou coisa assim, o Robert
e eu tivemos uma discussão horrível, ele saiu sem se despedir e levou Jane Marshall
com ele. Voltaram para Londres de carro e, imagina-se... ela tentava
desesperadamente manter a voz clara viveram felizes para sempre. De qualquer
forma, não o vi desde então.

Foi por isso que não deixavas o Christopher dizer-lhe que estavas sozinha?

Foi.

Ele está apaixonado por essa rapariga?

O Christo pensou que sim. Ele achou-a encantadora. Disse que se o Robert não
casasse com ela, era porque estava a precisar de ir ao médico.

E a discussão foi sobre o quê?

Emma mal se conseguia recordar. Tentando rever a situação, esta apresentava-se tão
dolorosamente como um disco de gramofone a andar para trás na rotação máxima.
Uma troca de palavras gritadas, sem sentido, dolorosas, de que se arrependia.

Oh, sobre tudo. Tu. O facto de eu não ter respondido à tua carta. E Christo. Eu penso
que ele imagina que Christo e eu estamos loucamente apaixonados um pelo outro,
mas quando íamos a chegar aí eu estava tão furiosa que não me dei ao trabalho de o
desiludir.

Talvez isso tenha sido um erro.

Sim, talvez.

Queres ficar aqui, em Brookford?

Não tenho mais sítio nenhum para onde ir.

Tens Porthkerris.

Emma virou-se para ele a sorrir.

Comigo? Em casa?
201
Porque não?

Por mil razões. Voltar para a casa do paizinho nunca resolveu nada. Além disso, não
se pode fugir do interior da própria cabeça.

Ele ia, finalmente, a caminho. O enganar-se a si próprio e a inquietação das últimas


seis semanas tinham terminado. O Alvis, como um caçador que regressa a casa,
virou para oeste, atravessou a ponte e entrou na M.4. Robert conduziu-o sempre na
faixa da maior velocidade e manteve o velocímetro com prudência e todo o cuidado
nos cem, pois a frustração de ser detido, naquela altura, por uma patrulha da polícia,
seria de mais para ele. À medida que se aproximava do aeroporto de Londres, o
primeiro trovão penetrou o ar pesado e parado, e ele parou no primeiro desvio para
pôr a capota. Foi mesmo a tempo. Quando voltou à estrada, a noite sombria entrou
em erupção como um vulcão. O vento, com uma brusquidão incrível, soprava de
oeste e levava à frente nuvens negras. Quando veio, a chuva foi uma autêntica
explosão, rios dela, como uma carga de água de monção, contra a qual o limpa-pára-
brisas dificilmente conseguia competir. Em segundos, a superfície da estrada ficou
inundada, reflectindo os raios lívidos dos relâmpagos bifurcados que rasgavam o
céu.

Ocorreu-lhe que talvez fosse sensato parar e esperar até passar o pior da tempestade,
mas naquele momento a sensação de alívio que sentia por estar a fazer o que tinha
subconscientemente querido fazer durante semanas era mais forte do que quaisquer
ideias de precaução. Por isso continuou, a enorme curva da auto-estrada aproximou-
se dele, chiou por baixo das rodas e foi afastada numa onda; já uma coisa do
passado; rejeitada e esquecida, juntamente com as suas próprias ténues
incertezas.

202
Encontrou o teatro fechado. Através da luz do candeeiro da rua, conseguiu ler os
cartazes: ”SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO.” Apagado, deserto, o sítio tinha
um ar sombrio como o do salão paroquial que em tempos fora. A porta estava
fechada a sete chaves; todas as janelas às escuras.

Ele saiu do carro. Estava mais fresco agora. Debruçou-se para o banco de trás, tirou
uma camisola de lã que ali estava desde o fim-de-semana em Bosham e vestiu-a por
cima da camisa. Fechou a porta e depois viu o táxi solitário, à espera, na beira do
passeio, o motorista deitado em cima do volante. Podia estar morto.

Está alguém ali dentro?

Tem de estar, amigo. Estou à espera que me paguem. Robert caminhou pelo passeio
até à rua estreita, pela

qual, há tanto tempo, Emma e Christopher tinham caminhado como amantes,


abraçados. Daquele lado do edifício sombrio havia uma janela com luz no 1.° andar.
Ele desceu o beco às escuras, tropeçou num caixote de lixo e encontrou uma porta
aberta. Lá dentro, um lanço de escadas conduzia ao andar de cima, palidamente
iluminado por uma luz acesa no patamar do 1.° andar. Foi assaltado pelo cheiro
sediço do teatro a tintas e veludo bafiento. De cima vinha o murmúrio de vozes e ele
subiu as escadas na sua direcção, encontrou o pequeno corredor e a porta a dizer
”GABINETE DO ENCENADOR” entreaberta e deixando escapar um fio de luz.

Ele abriu a porta, as vozes cessaram abruptamente e deu por si à entrada de um


gabinete minúsculo e apinhado, a olhar para as caras espantadas de Ben e Emma
Litton.

Emma estava sentada em cima da secretária, de costas para o pai, de frente para
Robert. Usava um vestido curto, de feitio simples como um fato-macaco, e as suas
longas pernas estavam despidas e bronzeadas. A sala era tão
203
pequena que com ele na entrada estava apenas a um braço de distância dela. Ele
pensou que ela nunca estivera tão bonita. O seu alívio e prazer ao ver Emma foram
tão grandes que o inesperado da presença de Ben Litton se tornou insignificante. O
próprio Ben também não ficou surpreendido. Ergueu simplesmente as suas
sobrancelhas pretas e exclamou:

Bem, vejam só quem apareceu agora.

Robert pôs as mãos nos bolsos e começou a dizer:

Pensei...

Ben levantou uma mão.

Já sei. Pensaste que eu estava na América. Bem, não estou, estou em Brookford. E
quanto mais cedo sair deste sítio e voltar para Londres, melhor.

Mas quando é que?...

Mas Ben já estava a apagar o seu cigarro e a levantar-se, interrompendo-o


implacavelmente.

Por acaso não viste um táxi em frente do teatro?

Vi. O motorista parecia estar fossilizado ao volante.

Pobre tipo. Tenho de ir descansá-lo.

Eu trouxe o meu carro informou Robert. Se quiseres, levo-te de volta para Londres.

Tanto melhor. Vou pagar ao homem e mandá-lo embora.

Emma não se tinha mexido. Agora, Ben contornava a secretária e Robert desviou-se
para o deixar sair.

A propósito, Robert, a Emma também vem. Tens espaço para ela?

Mas claro.

Na entrada olharam um para o outro. Depois Ben fez um aceno de cabeça satisfeito.
Esplêndido disse. Espero lá fora por vocês.
204
Sabias que ele vinha? Emma abanou a cabeça.

Tinha alguma coisa a ver com a carta que o Christopher lhe escreveu?

Emma fez que sim com a cabeça.

Ele veio hoje dos Estados Unidos para ter a certeza que estavas bem?

Emma voltou a fazer que sim com a cabeça, com os olhos a brilhar.

Ele tinha estado no México com a Melissa. Mas veio directamente para aqui. Nem o
Marcus sabe que ele está no país. Nem sequer foi a Londres. Apanhou um táxi do
aeroporto para Brookford. E não estava zangado por causa do Christopher e diz que
se eu quiser posso voltar para Porthkerris com ele.

E vais?

Oh, Robert, não posso passar a vida toda a fazer os mesmos erros. Esse também foi
um erro da Hester. Queríamos as duas que o Ben se encaixasse nas nossas ideias de
marido simpático aplicado e de pai doméstico bondoso. O que era tão realista como
tentar enjaular uma pantera. E quando penso como são tristes as panteras enjauladas!
Além disso, o Ben já não é problema meu. É um problema da Melissa.

Robert perguntou:

Então qual é o preço, agora, tendo em vista vir no fim de uma longa lista de
prioridades?

Emma fez-lhe uma careta.

Sabes, o Ben uma vez disse que tu tinhas uma cabeça nobre, que devias deixar
crescer a barba e que depois te pintava. Mas se eu tentasse pintar-te, seria com um
grande balão a sair da boca com ”EU BEM TE DISSE” escrito.

Eu nunca disse isso a ninguém em toda a minha vida. E certamente que não fíz esse
caminho todo para isso.
205
O que é que vieste dizer?

Que se eu soubesse que estavas sozinha tinha vindo há muitas semanas. Que se eu
conseguir dois bilhetes para a estreia do Christo, quero que venhas comigo. Que
peço desculpa por ter gritado contigo, da última vez que aqui estive.

Eu também gritei.

Detesto discutir contigo, mas, de uma forma qualquer extraordinária, estar longe de
ti é mil vezes pior. Não parava de dizer a mim próprio que era simplesmente uma
coisa que tinha acabado e estava esquecida. Mas estiveste o tempo todo no mais
recôndito da minha mente. A Jane sabia. Ela disse-me isso esta noite, que soube
desde sempre.

A Jane?...

Tenho vergonha de o dizer, mas tenho andado a fazer a Jane andar às voltas e ao
mesmo tempo a tentar evitar enfrentar a horrível verdade.

Mas foi por causa da Jane que eu obriguei o Christopher a prometer que não te
ligava. Eu pensei...

E foi por causa do Christopher que eu não voltei a Brookford.

Pensaste que tínhamos uma relação amorosa, não pensaste?

Não era isso que eu devia pensar?

És um grande idiota, o Christopher é meu irmão. Robert agarrou-lhe na cabeça com


as duas mãos, pôs-lhe

os polegares por baixo do queixo e aproximou a cara dela da dele. Antes de beija-la,
disse:

E como é que eu podia saber?

Quando voltaram ao carro, não havia sinais de Ben, mas tinha-lhes deixado um
recado, preso entre o limpa-vidros
No
vidro da frente.
206
Como uma multa de estacionamento observou Emma.

Era uma carta nada convencional, escrita numa folha de papel forte rasgada do bloco
de desenhos do Ben e no cimo da folha com dois retratos minúsculos dois perfis de
frente um para o outro. Não havia a menor possibilidade de confundir o queixo
protuberante dela e o nariz formidável de Robert.

É para nós. É para nós os dois. Lê em voz alta. Robert fê-lo.

”O motorista do táxi pareceu ficar aborrecido por ter de voltar para Londres sozinho,
por isso decidi acompanhá-lo. Vou estar em Claridges, mas preferia não ser
incomodado antes do meio-dia de amanhã.”

Mas se eu não for para Claridges antes do meio-dia, para onde é que vou?

Devias vir comigo. Para Milton Gardens.

Mas não tenho nada. Nem sequer tenho uma escova de dentes.

Eu compro-te uma escova de dentes disse Robert, beijou-a e depois continuou a ler a
carta, ”Por essa altura já devo ter tido tempo de recuperar o sono e de esfriar o
champanhe e estarei pronto para comemorar o que quer que tenham para me dizer.”

Que velho tão manhoso! Soube desde o princípio. ”Saudades, e que Deus vos
abençoe. Ben.”

Um momento depois, Emma perguntou:

É tudo?

Não. Ele entregou-lhe a carta e Emma viu, por baixo da assinatura de Ben, um
pequeno terceiro desenho. Uma madeixa de cabelo branco, uma cara bronzeada, um
par de olhos escuros e cruelmente observadores.
207
Auto-retrato classificou Robert. Ben Litton por Ben Litton. Deve ser único. Um dia
talvez o possamos vender por milhares de libras.

”Saudades, e que Deus vos abençoe aos dois.”

Nunca hei-de querer vendê-lo disse Emma.

Nem eu. Vamos, minha querida, está na hora de ir para casa.

Вам также может понравиться