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ARTIGO ARTICLE
Do direito incondicional à condicionalidade do direito:
as contrapartidas do Programa Bolsa Família

Unconditional to conditional rights:


counterparts in Brazil’s Family Allowance Program

Giselle Lavinas Monnerat 1


Mônica de Castro Maia Senna 2
Vanessa Schottz 3
Rosana Magalhães 4
Luciene Burlandy 5

Abstract This paper analyzes the concepts and Resumo Este artigo analisa a concepção e desa-
challenges of the counterpart contributions de- fios em torno da exigência de contrapartidas do
manded by Brazil’s Family Allowance Program, Programa Bolsa Família (PBF). A obrigatorie-
which requires mandatory school attendance for dade de inserção de crianças e adolescentes na
children and adolescents, and healthcare for chil- escola e de crianças, gestantes e nutrizes nos ser-
dren, pregnant women and breast-feeding moth- viços de saúde é central no desenho do PBF e, à
ers. These issues are prompting much discussion semelhança do que ocorre em outros países, tem
in Brazil and elsewhere in the world. This study sido alvo de intensa polêmica. Busca-se, assim,
charts theoretical aspects that underpin argu- mapear a discussão teórica que embasa os argu-
ments for and against conditional cash transfer mentos favoráveis e contrários aos programas de
programs, through a review and systematization transferência monetária condicionada, utilizan-
of the literature and a study of the related legisla- do como estratégia metodológica a sistematiza-
tion. This analysis demonstrates that the oppo- ção bibliográfica e estudo da legislação do PBF. A
nents of counterpart obligations claim they breach análise demonstra que, se de um lado, estão aque-
unconditional rights to citizenship. Some sup- les que rejeitam as contrapartidas sob alegação de
porters of these conditional transfers believe that que estas feririam o direito incondicional de ci-
1
Departamento de Política a return is required for these benefits, while oth- dadania, de outro, situam-se os que defendem as
Social, Faculdade de Serviço
ers see such requirements as a strategy for ensur- condicionalidades sob argumentos distintos. Aqui
Social, UERJ. Rua São
Francisco Xavier 524/ 829, ing easier access to social welfare services, thereby estão tanto concepções que entendem que é preci-
Maracanã. 20550-900 Rio breaking away from the cycle of poverty. Although so dar algo em troca do recebimento do benefício
de Janeiro RJ.
latter view is present in Brazil’s original Family quanto aquelas que vêem tais exigências como
glmonnerat@yahoo.com.br
2
Programa de Estudos Pós- Allowance Program, the manner in which sup- estratégia para favorecer o acesso aos serviços so-
graduados em Política plementary legislation defines the application of ciais e romper o ciclo da pobreza. Esta última
Social, Escola de Serviço
the conditions is coercive and remote from the visão está presente nos documentos oficiais do
Social, UFF.
3
Federação de Órgãos para concept of social insertion. programa. Porém, na legislação complementar, a
Assistência Social e Key words Social policy, Conditional income operacionalização das condicionalidades é defi-
Educacional (FASE).
4
transfers, Social welfare nida de forma coercitiva, distanciando-se da con-
Departamento de Ciências
Sociais, Escola Nacional de cepção de inserção social.
Saúde Pública, FIOCRUZ. Palavras-chave Política social, Transferência
5
Departamento de Nutrição
condicionada de renda, Assistência social
Social, Faculdade de
Nutrição, UFF.
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Monnerat, G. L. et al.

Introdução destaque o desenvolvimento de experiências de


transferência condicionada de renda que recupe-
A preocupação em prover assistência social aos ra, sob novas bases, a polêmica em torno da in-
mais pobres acompanha a história da formação serção social e da cobrança de contrapartidas dos
e posterior desenvolvimento do capitalismo. A beneficiários.
ruptura com os padrões de relações típicas da Também no Brasil, mudanças no padrão de
ordem feudal e a visibilidade e emergência da proteção social vêm sendo adotadas nas últimas
pobreza enquanto questão social introduziram, décadas, ainda que com grandes especificidades
desde cedo, o debate sobre a associação entre em relação aos países europeus. Neste sentido, é
assistência e trabalho. crucial reconhecer que os altos índices de pobre-
Ainda nos séculos XVII e XVIII, no contexto za bem como as fragilidades do nosso sistema de
de constituição do mercado de trabalho, predo- proteção social dão o tom da complexidade dos
minava uma concepção moralista da pobreza, problemas a serem enfrentados.
que atribuía as causas da condição de pobre a É no esteio desse processo que se verifica, desde
falhas de caráter individual. Assim, a prestação os anos 1990, uma profusão de experiências de
da assistência social assumia caráter punitivo que implementação de programas de transferência
exigia em troca da “ajuda” a realização de traba- condicionada de renda dirigidos à população
lhos forçados por parte dos beneficiários. pobre. Entretanto, é somente com a criação do
Rupturas com esta lógica são gestadas ao fi- Programa Bolsa Família (PBF), em 2003, que este
nal do século XIX, no contexto da emergência do tipo de programa se espalha por todo o país,
operariado como ator político e do conseqüente atingindo grau de cobertura significativo.
processo de lutas pelo reconhecimento dos direi- O PBF – cuja gestão deve se pautar na des-
tos políticos. Abre-se espaço, assim, para a pro- centralização, intersetorialidade e controle social
pagação de idéias não liberais que contribuem – exige das famílias beneficiadas o cumprimento
para a tematização do direito ao trabalho e para de uma agenda de compromissos – as chamadas
o redimensionamento das questões morais e so- condicionalidades – traduzidas na obrigatorie-
ciais ligadas à pobreza, que terão impacto pro- dade de inserção de crianças, adolescentes, ges-
fundo no desenho futuro das políticas sociais. tantes e nutrizes em determinados programas de
A partir desse momento, a perspectiva de res- saúde e de crianças e adolescentes na escola. Em
ponsabilidade individual em arcar com os cus- situação de não cumprimento de tais exigências,
tos da reprodução da própria vida cede lugar à as famílias beneficiárias devem ser desligadas do
noção de que todos devem participar na provi- Programa.
são de bem-estar a todos os cidadãos. O Estado O objetivo deste artigo consiste precisamente
adquire papel central na regulação da vida social em analisar a concepção de contrapartidas no
e a constituição do Welfare State representou a desenho do Programa Bolsa Família, tendo
institucionalização de um relativo consenso acerca como referência o debate internacional sobre o
da noção de pobreza como uma questão social, tema. Busca-se, assim, examinar os diversos ar-
sendo dever do Estado equacioná-la. gumentos favoráveis e contrários à formulação
A despeito das condições macroeconômicas de programas de transferência de renda condi-
positivas de vários países que desenvolveram o cionada para melhor situar o caso brasileiro. A
Welfare State no século XX, o avanço dos direitos revisão bibliográfica e o estudo da legislação
de cidadania conformou, ao menos na Europa, sobre o PBF foram os principais procedimen-
generosos sistemas de proteção social que, na sua tos metodológicos que subsidiaram a discus-
concepção, desvincularam a relação tradicional são aqui empreendida.
entre assistência e trabalho. É justamente esta vi-
são solidarista de direito social que permite inau-
gurar concepções de sistemas abrangentes de pro- Programas de transferência de renda
teção social universais e sem condicionalidades. no cenário internacional
Todavia, no cenário recente marcado pela re-
estruturação do mundo do trabalho e pela cha- Origens
mada crise do Welfare State, o debate sobre as dos programas de transferência de renda
relações entre assistência e trabalho vem sendo
retomado a partir do enfoque sobre os desafios Os programas de transferência de renda não
da inserção social, o que implica, para alguns são propriamente uma novidade na história re-
estudiosos, redimensionar a noção clássica de cente das políticas sociais. Diversos autores, en-
direito social. No âmbito deste processo, ganha tre eles Silva1, Suplicy2, Lavinas3 e Branco4, reali-
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zam importante resgate das origens e do debate e promover o mercado de trabalho capitalista
em torno de tais programas, tanto nos Estados era necessário acabar com o direito incondicio-
Unidos da América quanto na Europa. nal dos pobres à assistência6. Com efeito, o tom
De acordo com Suplicy2, uma primeira pro- moralista do debate sobre a ajuda aos pobres no
posta de renda para todos como meio de sobre- século XIX e a reforma da Lei dos Pobres de 1834
vivência é feita por Thomas More em seu livro reforçaram a crítica a qualquer tipo de transfe-
Utopia, de 1516. No entanto, é somente com a rência monetária aos grupos pauperizados.
Speenhamland Law, promulgada na Inglaterra em A Poor Law Reform de 1834 substituiu a Spe-
1795, que se pode falar mais especificamente da enhamland Law e pôs fim às dificuldades de cons-
origem deste tipo de assistência1. Trata-se do pri- tituição de um mercado de trabalho livre, haja
meiro programa de transferência de renda co- vista que, além da assistência aos pobres ter se
nhecido na Europa industrial e que marca uma tornado residual, a abolição total da Lei do Do-
inflexão na política social desenvolvida na Ingla- micílio (Act of Settlement de 1662), restituiu a
terra desde 1536 sob a vigência das denominadas mobilidade espacial do trabalhador. Neste cená-
Leis do Pobres. De acordo com Pereira5, as Leis rio, tem fim o direito ao rendimento mínimo e o
dos Pobres formavam “um conjunto de regula- indivíduo, agora “livre” para se estabelecer em
ções pré-capitalistas que se aplicava às pessoas qualquer paróquia, tem que garantir sua sobre-
situadas à margem do trabalho, como idosos, vivência no contexto da sociabilidade competiti-
inválidos, órfãos, crianças carentes, desocupados va do capitalismo. Para Pereira5, a crítica à prote-
voluntários e involuntários, etc.”. Neste contexto, ção institucional cria as condições para o con-
os pobres “válidos” eram obrigados a aceitar qual- fronto ideológico entre assistência social e traba-
quer tipo de trabalho, a mendicância era castiga- lho, além da disseminação da concepção liberal
da e somente os incapacitados tinham direito à de que a pobreza é fruto do paternalismo e da
assistência social. Na verdade, a gestão da pobre- tutela estatal.
za tinha caráter mais punitivo do que protetor. Sob a regência da Lei dos Pobres de 1834, os
Criada num contexto de grande perturbação pobres desempregados e incapazes ficaram sem
social e agravamento da pobreza, a Speenhamland assistência, restando apenas a reclusão nos al-
Law inglesa reconhece o direito dos pobres ao bergues, onde a estigmatização e a violação dos
recebimento de uma renda mínima, independente direitos marcaram a intervenção pública sobre a
de seus proventos e em função de uma tabela questão da pobreza no século XIX.
que dependia do preço do pão e do número de Na contramão das críticas às propostas de
filhos. Para Polanyi6, tratava-se de assegurar o transferência de renda aos pobres, Thomas Pai-
“direito de viver”, pois quando não era possível ne, um dos ideólogos da revolução francesa e
garantir, através do trabalho, o suficiente para pioneiro na formulação de uma renda básica in-
sobreviver, cabia à sociedade fazer a complemen- condicional, formulou, ainda no século XVIII,
tação de renda. Nesta mesma ocasião, a assis- os argumentos segundo os quais todos teriam
tência social é estendida aos pobres capacitados direito a usufruir da riqueza de uma nação. En-
para o trabalho, situação inovadora para a épo- tendeu que a origem da pobreza está na propri-
ca e absolutamente contrária a lógica capitalista edade privada, o que justificaria a implementa-
que se queria consolidar5. ção de uma transferência de renda para todos1,2,3,6.
No entanto, no cenário de expansão da revo- Entretanto, foi preciso esperar até o século XX
lução industrial, esta lei logo se mostrou um im- para que os trabalhadores conquistassem direi-
peditivo para a formação de um mercado de tra- tos políticos e sociais.
balho nos moldes capitalistas, tendo sido dura-
mente criticada a partir do final do século XVIII. O debate sobre
As principais críticas ressaltavam que o fato do os programas de transferência de renda
indivíduo receber assistência mesmo que estives- no século XX até os dias atuais
se empregado fazia com que se tornasse impro-
dutivo, já que o salário podia ser complementa- O debate que surge a partir das experiências
do pela ajuda externa. Ademais, a existência de internacionais sinaliza que a principal polêmica
fundos públicos para subsidiar os salários era em torno do tema se refere à discussão renda
vista como o principal impedimento à constitui- mínima versus direito ao trabalho e direitos so-
ção do proletariado industrial ao mesmo tempo ciais versus contrapartidas exigidas dos beneficiá-
em que, contraditoriamente, provocava o acha- rios4. Assim, o que está em questão é saber se, no
tamento dos salários6. Considerava-se, assim, que atual quadro de transformação societária, os
para conter a improdutividade dos empregados programas de transferência monetária contribu-
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Monnerat, G. L. et al.

em para aprofundar os direitos de cidadania, ou, Também na Europa, desde os anos 1930, di-
ao contrário, concorrem para sua negação e re- versos países introduziram programas de trans-
gressão. A sistematização dessa polêmica não é ferência de renda nas formas de benefícios desti-
tarefa fácil, dado que as análises sobre o tema nados a crianças, idosos, deficientes, inválidos, aos
são variadas, assim como também são diversas com baixos rendimentos e os relativos ao seguro
as propostas e experiências de programas de desemprego. O primeiro país a implementar este
transferência monetária. tipo de programa foi a Dinamarca em 1933, se-
No século XX, notadamente após a Primeira guida da Inglaterra em 1948, Alemanha em 1961,
Guerra Mundial, amplia-se a defesa em torno Holanda em 1963, Bélgica em 1974, Irlanda em
dos programas de transferência monetária como 1974, Luxemburgo em 1986 e mais recentemente
solução para o problema do desemprego. As pro- a França em 1988, apresentando cada qual dife-
postas de implementação destes programas as- rentes padrões e nomenclaturas. Interessa salien-
sumem, em diferentes contextos, denominações tar que, diferentemente dos Estados Unidos, a ins-
e perspectivas diversas. tituição destes programas na Europa se deu sob a
Nos Estados Unidos, as propostas de implan- influência do debate sobre a Seguridade Social
tação de programas de transferência monetária inaugurado, nos anos 1940, por Beveridge4,5,7,8.
emergem em 1935 com o Programa de Auxílio às É efetivamente após a Segunda Guerra Mun-
Famílias com Crianças Dependentes (Aid for fa- dial, com a consolidação dos Welfare States, que
milies with dependent children – AFDC), que pa- acontecem mudanças importantes no padrão de
gava um complemento às famílias com renda intervenção social nas economias capitalistas
abaixo de um determinado valor. Nos anos 1960, avançadas, notadamente na Europa. Neste cená-
os programas de transferência monetária foram rio, uma outra perspectiva de justiça social acom-
bastante tematizados, tendo sido aprovado, em panha a ação social do Estado, onde a figura do
1974, o Crédito Fiscal por Remuneração Recebi- pobre merecedor dá lugar ao indivíduo porta-
da (Earned Income Tax Credit - EITC), que era dor de direitos.
um complemento monetário às famílias, com Nos países europeus, sobretudo, desenvolve-
crianças, inseridas no mercado de trabalho. A se um forte debate acerca da inadequação do
formatação de tais programas nos Estados Uni- Welfare State diante dos dilemas da sociedade sa-
dos está associada à concepção de imposto ne- larial e do pleno emprego. É, portanto, nessa cir-
gativo e a processos de focalização e critérios rí- cunstância que as proposições em torno dos pro-
gidos de inserção no mercado de trabalho1,2. gramas de transferência monetária são retoma-
Milton Friedman é identificado como o idea- das como parte da reflexão sobre o futuro do
lizador do imposto negativo. Representando a Welfare State e do questionamento da centralida-
corrente liberal, essa proposta apóia-se na idéia de do trabalho como meio privilegiado de acesso
de minimização do Estado interventor por consi- à renda.
derar que grande parte dos problemas de ordem Nesta conjuntura, o debate sobre os progra-
fiscal deve-se justamente ao alargamento das ações mas de transferência monetária é intensificado e
estatais. Uma das preocupações centrais do impos- surgem propostas que se diferenciam, principal-
to negativo é a promoção de uma estratégia de mente, pela forma de conceber a relação entre
transferência monetária que não seja capaz de cri- renda e trabalho (se vinculada ou desvinculada),
ar um estímulo ao ócio. Para tanto, é fixada uma se a favor da condicionalidade ou incondiciona-
linha de pobreza, através de um rigoroso teste de lidade, focalizado ou universal ou ainda se adota
meios, acima da qual a pessoa paga o imposto e a perspectiva da substituição ou complementa-
abaixo recebe um determinado valor complemen- riedade ao sistema de proteção existente.
tar à renda auferida através do trabalho1. A Renda Básica Incondicional (RBI) de Van
Dessa forma, o imposto negativo apresenta Parijs9,10,11 se referencia na perspectiva de que o
componentes fortemente baseados no individu- Welfare State não se sustenta mais e, por isso,
alismo, no mercado auto-regulador e na con- uma renda universal, incondicional, independen-
cepção de que o pobre precisa ser constantemen- te do trabalho e dos testes de meios e de qualquer
te estimulado ao trabalho, criando fortes pro- contrapartida é fundamental para conferir cida-
cessos de estigmatização social. Grande parte dania aos excluídos. Para o autor, a combinação
das críticas ao imposto negativo, conforme mos- desses critérios se configura numa resposta ao
tra Branco4, relaciona-se à perspectiva de mone- desafio conjunto de enfrentar a pobreza e o de-
tarização do apoio social, além de desconsiderar semprego, a partir de um novo paradigma no
o aspecto multidimensional da pobreza, já que qual a renda é desvinculada do trabalho.
elimina a prestação dos demais serviços sociais. Com base nas transformações contemporâ-
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neas no mundo do trabalho, Aznar12 e Gorz13,14 manência no programa, pois que o objetivo prin-
entendem que, em face da lógica atual em que a cipal é preparar o indivíduo para a inserção ou
produtividade vem aumentando pari passu à di- reinserção no mercado de trabalho.
minuição do emprego da força de trabalho, a Nos Estados Unidos, vêm se discutindo e de-
renda não pode ser conseqüência da quantidade senvolvendo, desde os anos 1980, experiências de
de trabalho. Diferente de Van Parijs, estes auto- programas de transferência monetária que con-
res propõem que os programas de transferência dicionam a prestação da assistência social ao exer-
monetária sejam complementares e não substi- cício de algum tipo de trabalho. No governo
tutivos ao sistema de proteção social. Ronald Reagan, sob a influência da crítica liberal
Assim, a Renda Social proposta por André ao Welfare State, as reformas empreendidas no
Gorz13,14 e o Segundo Cheque defendido por Guy campo da política social passam a se associar à
Aznar12 partem da concepção de que a desvincula- idéia de workfare.
ção da renda de um trabalho produtivo é humi- Para Rosanvallon8, é possível identificar nesta
lhante e estigmatizante e, portanto, baseia-se na perspectiva do workfare uma importante conver-
proposição de um sistema de transferência de ren- gência filosófica com a noção de pobreza que pre-
da associada à redução progressiva do tempo de dominou até meados do século XIX. Para o au-
trabalho para todos aliada a uma política de quali- tor, a orientação que preside a cobrança de con-
ficação profissional efetiva e consistente. A redu- trapartida no âmbito do workfare americano nos
ção do tempo de trabalho teria o potencial de anos 1980 não se enquadra no debate sobre a
geração de novas oportunidades para todos e de constituição de novos direitos sociais: Apreendido
distribuição da riqueza socialmente produzida. A nessa perspectiva, o tema do workforce era equívo-
idéia é de que se possa criar a sociedade de tempo co; correspondia mais a uma estratégia de enqua-
livre, na qual as pessoas poderiam desenvolver dramento e de disciplina dos pobres, principalmen-
com liberdade seus projetos pessoais e sociais13,14. te dos jovens, do que uma nova abordagem dos di-
Entre os críticos da proposta de alocação uni- reitos sociais e de inserção na sociedade 8.
versal, é possível perceber a preocupação com os Particularmente na década de 1990, dissemi-
desdobramentos da dissociação da renda do tra- nou-se a idéia de que a assistência social ofertada
balho nos processos de integração e inserção so- pelo Welfare State americano criava dependência
ciais. Rosanvallon8, um dos principais represen- e uma certa permissividade com relação aos esfor-
tantes desta vertente, chama atenção para o fato ços pessoais necessários para a inserção no mer-
de que repensar as relações entre direitos sociais, cado de trabalho. Com a intenção de romper com
renda e trabalho implica compreender os impac- esta lógica, é proposto, no governo Bill Clinton, a
tos da crise do trabalho nas redes de sociabilidade redução do tempo de permanência dos beneficiá-
e nos circuitos de reciprocidade e solidariedade. rios nos programas de transferência monetária.
Para este autor, a cidadania passiva alimentada Assim, após o prazo de dois anos, os beneficiári-
pelo Welfare State teria reforçado o papel do Esta- os que não tivessem retornado ao mercado de
do como principal agente da solidariedade e en- trabalho deveriam prestar serviços à coletividade.
fraquecido os circuitos de responsabilização soci- Segundo Rosanvallon8, tais mudanças não foram
al. A perspectiva de universalização dos benefícios muito bem sucedidas visto que houve resistência
sociais sem contrapartida ou envolvimento dos por parte de sindicatos de trabalhadores que te-
atores sociais não seria, portanto, capaz de solu- miam a redução do número de empregos e tam-
cionar os problemas atuais ligados à pobreza e bém de liberais que previam que a intervenção do
exclusão social. Nesta direção, a inserção social é Estado fosse ampliada, principalmente em razão
assinalada por Rosanvallon8 como uma nova da necessidade de incrementar o número de em-
concepção de direito social. pregos. Os democratas também rechaçavam a
A principal expressão da vertente de inserção idéia de contrapartidas por acreditarem que este
social é o programa Renda Mínima de Inserção tipo de cobrança fere os direitos de cidadania.
(RMI), instituído na França em 1988. O RMI é Assim, ao analisar a experiência americana,
um programa destinado a todas as pessoas mai- Rosanvallon8 associa a lógica e ideologia do work-
ores de 25 anos que não aufiram renda suficiente fare mais diretamente às reformas implementa-
para a garantia da sobrevivência. Para a seleção das na década de 1980. Com efeito, para este au-
da população, é utilizado o recurso de testes de tor, na era Clinton há certo afastamento da críti-
meios, sendo que a proteção ao beneficiário se ca moralista ao Welfare State que predominou
estende à garantia de acesso à saúde e moradia, na década anterior, prevalecendo a idéia de que o
dentre outros serviços sociais8,15. No desenho do trabalho é mais importante do que o apoio gra-
RMI, não há previsão de limite de tempo de per- tuito do Estado.
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Monnerat, G. L. et al.

No entanto, quando este autor compara as serem feitos de forma individual e vir se traduzin-
políticas de inserção social promovidas nos Esta- do em um tipo de inserção cada vez mais precária
dos Unidos e na Europa, a partir principalmente dos beneficiários do programa1.
dos anos 1990, demonstra que existem importan- Também na América Latina, os programas
tes clivagens entre as duas experiências que se origi- de transferência monetária estão bastante disse-
nam, fundamentalmente, dos diferentes tipos de minados e as principais experiências têm sido
Estado de Bem-Estar erigidos nestas regiões. Nos acompanhadas da exigência de contrapartidas por
Estados Unidos , se consolidou um modelo de parte dos beneficiários. Na maioria dos progra-
welfare residual, cuja lógica liberal de não interven- mas desenvolvidos nos países latino-americanos,
ção estatal produziu um tipo de política de inser- a questão da contrapartida/condicionalidade as-
ção estrita. Os conservadores liberais temiam que sume recortes um pouco diferentes quando com-
essa perspectiva de política social viesse a ampliar parados com a perspectiva de inserção social de-
ou recolocar a questão da intervenção do Estado, senvolvida, por exemplo, na França. Em nosso
especificamente na geração de mais empregos continente, predomina a lógica de cobrança de
públicos. Na Europa, ao contrário, a experiência contrapartidas no sentido da inserção nos servi-
dos programas de inserção social foi desenvolvi- ços de saúde e educação, cujo objetivo é ampliar o
da sob a cultura e tradição de um Welfare State acesso da população beneficiária aos direitos so-
universal – redistributivo – o que trouxe, na visão ciais, não se tratando, pois, de buscar (re) inserir
de Rosanvallon8, possibilidades mais fecundas o indivíduo no mercado de trabalho. Estas dife-
para se pensar o redimensionamento dos direitos rentes visões sobre a inserção social estão, certa-
sociais e da inserção no mundo do trabalho. mente, relacionadas às diferentes realidades do
Sobre a noção de inserção presente no dese- sistema de seguridade social presentes na Europa
nho do RMI, é preciso ressaltar dois pontos im- e América Latina.
portantes: o primeiro é que ao aderir ao progra- No Brasil, de igual modo, o Programa Bolsa
ma a pessoa assina um contrato com o Estado Família (PBF) caracteriza-se como um progra-
aceitando a sua participação nas diversas ações ma de transferência monetária que exige contra-
voltadas para a sua inserção social; o segundo é partidas relacionadas à inserção nos serviços de
que as ações devem ser definidas a partir da ne- educação e saúde.
cessidade e da capacidade de cada um, havendo,
portanto, a necessidade de um acompanhamen-
to individual através das instituições estatais1,8,16. Contrapartidas no Programa Bolsa Família
Além disso, o beneficiário do RMI tem a garantia
de acesso a um conjunto de serviços sociais. Ro- Não é nenhuma novidade demarcar que o pa-
sanvallon8 argumenta que este programa de in- drão de proteção social historicamente construí-
serção apresenta a qualidade de conjugar o direi- do no Brasil caracterizou-se pelo predomínio de
to social, à medida que é acessível a todos aqueles uma lógica corporativista e meritocrática, em que
que estão excluídos, a um contrato, visto que exi- os direitos sociais estavam vinculados à prote-
ge contrapartidas. Nesse caso, as contrapartidas ção de determinadas categorias profissionais con-
representam uma nova forma de relação entre tra riscos de perda da sua capacidade laboral e
indivíduo e sociedade que também se responsa- baseavam-se na contribuição prévia. Por outro
biliza pela inserção social. lado, aos excluídos do mercado formal de traba-
No entanto, há muitas polêmicas com rela- lho eram destinadas ações assistenciais pontuais.
ção ao RMI. A crítica mais severa se dirige a exi- Essa lógica de construção dos direitos sociais
gência de celebração de um contrato, visto que contribuiu enormemente para interditar as pos-
isso, na visão de muitos analistas, facilitaria o de- sibilidades de desenvolvimento de um sistema de
senvolvimento de controle rígido sobre os benefi- proteção social abrangente e universal entre nós.
ciários, sendo também uma forma de estigmati- A introdução do conceito de seguridade so-
zação social. cial no texto constitucional de 1988 buscou rom-
Chama atenção também a crítica à visão re- per com o padrão acima referido, consagrando
ducionista da inserção enquanto possibilidade de a universalidade dos direitos sociais e a respon-
empregar as pessoas em empresas e instituições sabilização do Estado em prover tais direitos
em detrimento de se pensar a inserção como pro- como princípios norteadores da organização do
cesso amplo e permanente de cada indivíduo. Sen- sistema de proteção social brasileiro. No entan-
do assim, a exclusão não é entendida como fenô- to, a institucionalização da noção de seguridade
meno coletivo e estrutural. Para alguns autores, social tem enfrentado enormes resistências, que
uma prova disto é o fato dos contratos do RMI põem em risco o próprio ideário constitucional.
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A adoção de medidas voltadas à estabilização municípios. Cabe às famílias beneficiárias do PBF
monetária, eficiência macroeconômica e restrição manter as crianças e adolescentes na escola, cum-
dos gastos públicos, sobretudo a partir da segun- prindo a exigência de 85% de freqüência escolar.
da metade dos anos 1990, constrangeu as possibi- As famílias também devem estar vinculadas aos
lidades de construção de políticas sociais mais serviços de saúde para acompanhamento de cri-
abrangentes e universais, dando espaço para a anças de zero a seis anos, das gestantes e nutrizes
defesa e implantação de ações focalizadas nos gru- em programas de saúde específicos, estando pre-
pos mais pobres. Dentro desse cenário, marcado vista ainda a participação em atividades educati-
pela grave crise econômica (expressa nas altas ta- vas sobre saúde e nutrição.
xas de desemprego e no aumento da informalida- Recomenda-se a adoção de programas com-
de) e pela emergência de novos atores sociais na plementares, tais como aqueles voltados à gera-
cena pública, o tema da pobreza e das desigualda- ção de emprego e renda; cursos profissionalizan-
des sociais ganha relevo na agenda pública, inci- tes; micro-crédito; compra de produção agrícola
tando o debate político e acadêmico em torno da familiar, entre outros. Estas ações, no entanto,
questão e cobrando respostas dos governantes. não integram o conjunto de condicionalidades
Assim, os anos 1990 assistem a uma profu- imposto pelo Bolsa Família, fato que levanta
são de experiências e programas públicos volta- questões sobre o alcance das contrapartidas
dos à garantia de renda mínima para famílias como estratégia de inclusão social, tal como enun-
em situação de vulnerabilidade social e fome. ciado em documentos oficiais do programa.
Iniciativas municipais e estaduais ganham fôlego O tempo de permanência no Programa não é
enquanto crítica à centralização decisória, ao as- estipulado, mas a legislação do PBF (Portaria
sistencialismo, ao clientelismo e à descontinui- Interministerial 551 de 9 de novembro de 200517)
dade das ações governamentais, conformando é muito clara quanto aos motivos de desliga-
as estratégias e a dinâmica das mudanças insti- mento das famílias, sendo um deles justamente
tucionais no campo da proteção social. Tais pro- o descumprimento das condicionalidades. A lei
gramas buscavam associar ao benefício monetá- define ainda que todas as instâncias de governo
rio o estímulo à freqüência escolar e o acesso aos têm responsabilidade na gestão das condiciona-
serviços básicos de saúde. lidades, porém é sobre o município que recai a
Inspirado nessas experiências municipais, o maior parte das tarefas, principalmente aquelas
governo federal criou alguns programas nacio- relativas à oferta dos serviços de educação e saú-
nais de transferência monetária, o que permitiu de previstas.
sua difusão no cenário nacional. Todavia, pro- A exigência de contrapartidas é, portanto, um
blemas relativos ao caráter fragmentado e pou- ponto central do desenho do PBF e vem se tra-
co eficaz destes programas persistiam. Buscan- duzindo em uma questão bastante polêmica. A
do responder, em parte, a essa questão, o gover- controvérsia aparece, por um lado, no reconhe-
no federal criou em 2003 o Programa Bolsa Fa- cimento de que as condicionalidades do progra-
mília (PBF), unificando quatro destes progra- ma têm potencial de pressionar a demanda so-
mas anteriormente existentes (Bolsa-Escola, Bol- bre os serviços de educação e saúde, o que, de
sa Alimentação, Auxílio-gás e Cartão Alimenta- certa forma, pode representar uma oportunida-
ção). Como dito na lei de criação do programa, de ímpar para ampliar o acesso de um contin-
tal unificação visa melhorar a gestão e aumentar gente importante da população aos circuitos de
a efetividade do gasto social através da otimi- oferta de serviços sociais e, por outro lado, se
zação e racionalização, ganhos de escala e fa- traduz na idéia de que, à medida que o direito
cilidade da interlocução do governo federal social é condicionado ao cumprimento de obri-
com estados e municípios17. gatoriedades, podem ser ameaçados os princípi-
O PBF prioriza a família como unidade de os de cidadania3.
intervenção, sendo destinado àquelas que se en- O debate em torno das contrapartidas dos
contram em situação de pobreza ou de extrema programas de transferência monetária abarca
pobreza. O critério é fixado por uma linha esta- diferentes posições. Lavinas18 afirma que a con-
belecida a partir da renda familiar, cujo valor é trapartida condiciona o direito constitucional à
de, no máximo, R$ 120,00 per capita17. assistência ao cumprimento de exigências numa
Ao unificar os programas de transferência situação em que os potenciais beneficiários já es-
monetária, o PBF incorpora as diversas condici- tão em situação bastante vulnerável. Por outro
onalidades exigidas nos programas anteriores, lado, Silva19 compreende a contrapartida como
sendo que a oferta dos serviços e o monitora- uma possibilidade de combinação do assistenci-
mento das condicionalidades fica a cargo dos al/compensatório com o estrutural, visto que,
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Monnerat, G. L. et al.

por exemplo, é a própria exigência de manter cri- do em vista a necessidade de reverter tal exigência
anças na escola que permitiria minimizar os efei- em oportunidade de inserção social. Desta for-
tos do trabalho infantil sobre as oportunidades ma, pode-se afirmar que a adoção de condicio-
de escolaridade de crianças e jovens. Logicamen- nalidades em programas de transferência de ren-
te que, dentro desta perspectiva, não cabe ne- da somente é válida quando entendida e imple-
nhum grau de punição às famílias. mentada como estratégia de ampliação do aces-
No entanto, quanto a este debate, é preciso, so aos serviços sociais e políticas de emprego e
em primeiro lugar, ter em mente que a contra- renda, não sendo, portanto, o mero reflexo de
partida exigida não se configura em termos de uma visão restritiva do direito social.
contribuição financeira tal como no passado Sobre essa perspectiva, interessa analisar o
meritocrático de nossa política social. Mas isso, conteúdo e a dimensão das ações de controle e
de fato, é insuficiente para descartar a reflexão acompanhamento das condicionalidades adota-
sobre a pertinência ou não desta exigência. As- das pelos formuladores do Programa e traduzi-
sim, permanece a questão: a contrapartida é uma das na legislação. Com efeito, conta-se hoje com
cobrança indevida, já que o direito é uma prer- uma base legal bastante detalhada para exercer
rogativa dos membros de uma sociedade? Ou é controles rigorosos sobre as famílias beneficiári-
aceitável, principalmente no caso brasileiro, por- as, na qual as punições vão desde o bloqueio do
que se trata de envolver as famílias num circuito benefício por trinta dias até seu cancelamento. O
virtuoso de direitos e deveres com potencial para conteúdo punitivo desta legislação é bastante
ultrapassar o assistencialismo e fomentar a cul- surpreendente porque, até então, o conjunto de
tura cívica e garantir o acesso a uma rede extensa dispositivos legais permitia imaginar que a con-
de proteção social? cepção em torno das condicionalidades tinha
Como demonstra a experiência internacio- caráter primordialmente estratégico, no sentido
nal, ao exigir uma contrapartida dos beneficiá- da ampliação do acesso dos beneficiários aos ser-
rios, os programas de transferência monetária viços sociais.
introduzem, ao mesmo tempo, a difícil escolha No entanto, uma questão crucial colocada
entre, de um lado, romper com a noção de direi- pelo Bolsa Família é a conhecida fragilidade da
to incondicional, à medida que os compromis- institucionalidade pública para acompanhar o
sos tornam os beneficiários co-responsáveis pela cumprimento das condicionalidades, o que per-
superação de suas dificuldades, e, de outro lado, mite que se questione a capacidade dos municí-
adotar a estratégia de exigir contrapartidas com pios para realizar esta tarefa a contento.
a perspectiva de atacar, de uma só vez, várias Diante do reconhecimento de que a imple-
dimensões da pobreza. Esta última vertente visa, mentação descentralizada de programas sociais
portanto, suprir uma deficiência de longa data, tende a produzir, no nível local, interpretações
atendendo a um conjunto de carências jamais singulares e muitas vezes diferentes dos objetivos
consideradas no rol de políticas e programas enunciados pelos formuladores do programa, o
sociais brasileiros. No entanto, tal perspectiva governo federal optou por adotar a estratégia de
torna-se bastante complexa quando a legislação incentivar financeiramente os municípios que
referente ao PBF se preocupa em detalhar o pro- mantiverem determinado nível de qualidade da
cesso de punição às famílias que não cumprirem gestão do programa. Para isso, foi criado o Índi-
as condicionalidades. ce de Gestão Descentralizada (IGD) que agrupa
Permanece, assim, na ordem do dia, a insti- quatro variáveis, sendo que uma delas mede o
gante questão condicionalidade versus incondicio- grau de controle das condicionalidades do PBF.
nalidade dos programas de transferência monetá- Decerto, é bastante provável que o Bolsa Fa-
ria. No caso brasileiro, para além dessa polariza- mília provoque efeitos positivos do ponto de vista
ção, a aposta dos idealizadores do PBF é de que tal da ampliação do acesso à educação e saúde, no-
exigência pode favorecer a cidadania pois a re- tadamente de uma fração da população que his-
laciona à ampliação do exercício do direito à saú- toricamente apresenta baixo poder de utilização
de e educação, ainda incompletos entre nós. Com destes serviços. É possível até que um contingen-
efeito, é de se notar que a condicionalidade é apre- te não desprezível de pessoas que nunca freqüen-
sentada, pelos formuladores do Programa, como tou os serviços de educação e saúde seja incluído,
sinônimo de inclusão social e emancipação. via o Bolsa Família, pela primeira vez neste cir-
Entretanto, não se pode deixar de pontuar cuito, mesmo que ainda limitado, de cidadania
que, uma vez exigidas condicionalidades, é pre- social.
ciso traçar mecanismos consistentes de acompa- Este certamente tende a ser um dos efeitos
nhamento social das famílias beneficiárias, ten- esperados da implementação das condicionali-
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Ciência & Saúde Coletiva, 12(6):1453-1462, 2007


dades. No entanto, se o incentivo do governo novidades mais importantes no desenho do Bol-
federal para deslanchar o acompanhamento das sa Família e, ao mesmo tempo, uma polêmica
condicionalidades se resumir ao financiamento, central do programa. Muitos questionam a legiti-
há o risco de disseminação de uma concepção midade da contrapartida, já que este benefício é
restrita da questão, cuja conseqüência é o desen- um direito social e deve ter caráter incondicional.
volvimento de mero controle da freqüência es- Por outro lado, no caso brasileiro, que apresenta
colar e da adesão às ações de saúde. muitas fragilidades no processo de constituição
A rigor, a idéia-chave do acompanhamento da seguridade social, é preciso, segundo os ideali-
das condicionalidades deveria englobar ações so- zadores do Programa, criar mecanismos que es-
ciais mais amplas com vistas a potencializar uma timulem a inserção das famílias nos serviços de
rede de proteção social em torno dos beneficiári- educação e saúde, tendo em vista a perspectiva de
os do programa. Desse modo, se, por um lado, ruptura com o ciclo reprodutivo da pobreza.
essa perspectiva do acompanhamento está vin- Cabe ressaltar que as condicionalidades do
culada à concepção de condicionalidade enquan- PBF apresentam características bastante diferen-
to uma estratégia que visa, de alguma forma, in- tes da maioria das experiências européias. En-
terferir nas situações estruturais responsáveis pela quanto o eixo central das propostas desenvolvi-
persistência da pobreza, por outro lado, a legisla- das na França foi, por exemplo, o de resgatar
ção que regulamenta a forma de gestão do acom- vínculos com a atividade produtiva no mercado
panhamento das condicionalidades, como vimos, de trabalho e com as distintas redes de sociabili-
se aproxima mais da concepção de punição e fis- dade20, na experiência nacional, talvez em razão
calização do que propriamente dos objetivos de não termos constituído um Welfare State uni-
enunciados de inserção social. versalista, o benefício monetário foi condiciona-
Chama-se atenção, então, para a necessidade do à freqüência da criança, da nutriz e gestante às
de se proceder a uma diferenciação entre contro- ações de saúde e educação, com repercussões dis-
le estrito da freqüência escolar e da inserção nos tintas no alcance da intervenção pública na área
serviços de saúde e acompanhamento social dos social.
beneficiários. Este último requer estabelecimen- Em que pese a diferença acima mencionada,
to de vínculo com as famílias e propostas de in- observa-se que tal como na experiência francesa,
tervenção social mais amplas. a lógica da contrapartida exigida no PBF está
Não obstante os desafios mencionados, deve- embasada numa perspectiva de que os direitos
se acrescentar que a presença de condicionalida- sociais são definidos de forma “contratual”, arti-
des no PBF pode favorecer a gestão intersetorial culando direito e obrigação. Embora no caso
das políticas sociais, mesmo que ainda dentro brasileiro não haja expediente que configure um
do espectro de ação da educação, saúde e assis- contrato em termos jurídicos, a articulação entre
tência. Obviamente que se corre o risco destas direito e obrigação é também central, estando
ações ficarem limitadas à justaposição de ações claras as punições e os motivos de desligamento
muito pontuais. das famílias do programa.
Outro aspecto a ser problematizado com re- No que tange aos principais dilemas da im-
lação às contrapartidas é que, mesmo supondo plementação das condicionalidades, pode-se di-
que o acompanhamento das condicionalidades zer que se, por um lado, tais exigências têm po-
ocorra em condições ideais, é igualmente válido tencial para facilitar o acesso de camadas da po-
indagar sobre o alcance e qualidade da educação pulação que dificilmente conseguiriam chegar aos
pública vis à vis às exigências atuais do mercado serviços, por outro, coloca a dúvida sobre a ca-
de trabalho, tendo em vista promover a inde- pacidade de os serviços de educação e saúde ab-
pendência das famílias com relação ao benefício. sorverem adequadamente o aumento de deman-
Importa também investigar a capacidade dos ser- da resultante da implementação do programa.
viços de saúde para absorver o aumento de de- O mais grave é que estamos diante de uma situ-
manda que possivelmente o programa provoca- ação em que se questionam as condições e a ca-
rá, assim como questionar a condição marginal pacidade mesma dos municípios ofertarem o que
que as ações ditas estruturais parecem represen- de mais básico está previsto no elenco de direitos
tar no contexto de implementação do PBF. sociais, isto é, as ações de saúde e educação.
A perspectiva de punir as famílias que não
cumprirem as condicionalidades parece incom-
Considerações finais patível com os objetivos de promoção social do
Programa. Nesta direção, não se pode deixar de
A exigência de contrapartidas é talvez uma das considerar as condições que as famílias pobres
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Monnerat, G. L. et al.

dispõem para atender as requisições impostas, mediários virtuosos, tais como a esperada am-
tendo em vista as dificuldades cotidianas de so- pliação do acesso aos serviços sociais e a promo-
brevivência a que a maioria está exposta. ção da intersetorialidade, questões altamente re-
Do ponto de vista das possibilidades de re- levantes dentro do atual quadro de instituciona-
versão de algumas condições estruturais que ge- lidade das políticas sociais no país.
ram a pobreza, o Bolsa Família apresenta, com Como se vê, trata-se de um debate ainda em
certeza, inúmeras fragilidades. Ademais, é preci- curso, que envolve uma série de questões com-
so assinalar que as expectativas de superação da plexas, as quais merecem ser aprofundadas.
pobreza depositadas no programa são bastante
elevadas se considerarmos o grau de desigualda-
de social existente, o acúmulo de vulnerabilida-
des que a população pobre está submetida, a
debilidade do nosso sistema de proteção social e,
em geral, o baixo valor do benefício. Com efeito,
não se podem secundarizar os efeitos da históri- Colaboradores
ca lógica de submissão da política social à políti-
ca econômica. GL Monnerat, MCM Senna e V Schottz partici-
Ainda assim, é crucial compreender em que param da concepção, redação e revisão crítica do
medida as condicionalidades do programa ten- artigo. R Magalhães e L Burlandy participaram
dem a potencializar processos e resultados inter- da redação e revisão crítica do artigo.

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