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Mariza Peirano
___________________________________________________________________________
1
Esta é uma versão atualizada de “Etnografia, ou a teoria vivida”, texto da conferência de
abertura de “A graduação em campo” de 2007, evento organizado pelo Núcleo de
Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo e divulgada em
<http://journals.openedition.org/pontourbe/1890>. Agradeço a José Guilherme Magnani
pelo convite e a Rosana Guber pela sugestão de incluir o texto nesta publicação. O tom
coloquial explica-se pela audiência original, composta de alunos de graduação.
1
Malinowski evitou a descrição que chamou de sociológica, que seria resultado de
uma observação externa, “do lado de fora” ― não a desmerecia totalmente, mas
dizia que a utilizava apenas quando indispensável para dissipar concepções falsas e
definir alguns termos.
2
Mais contemporânea foi a preocupação com a etnografia no final dos anos 1980 e
início dos 1990. No contexto então chamado de pós-moderno, a etnografia passou a
ser abertamente criticada pelos próprios antropólogos, tendo como motivação
central a característica politicamente incorreta do que ficou conhecido como o
realismo do passado e sua “autoridade etnográfica”. Nesse movimento, incluíam-se
Paul Rabinow, que falava de um estágio além da etnografia; Martyn Hammersley,
que se perguntava o que estava errado com a etnografia; e Nicholas Thomas, que se
posicionava abertamente contra a etnografia.3
A etnografia hoje
member’s contributions to the study of a particular social institution (e.g. death or marriage)
in a cross-cultural framework”. Cf. <http://hraf.yale.edu/teach-ehraf/ethnology-and-
ethnography-in-anthropology/>. Acessado em 01/03/2018.
3
Nacional Superior; no ISCTE, de Lisboa, em 2007; e em Leiden, na Holanda, em 2009.
A periodicidade dos encontros e as publicações que se seguiram indicavam que a
etnografia passava a ser não apenas uma prática aceitável, mas desejável, sobre a
qual se pretendia debater e afinar concepções.
2005 viu o início do blog Savage minds: notes and queries in Anthropology, um site
dedicado a “fazer antropologia em público”.4 O título Savage minds foi adotado em
referência ao livro de Lévi-Strauss ― embora para o próprio autor La pensée
sauvage significava ambiguamente “violeta selvagem” e “pensamento selvagem”, os
editores adotaram savage minds justamente por capturar a natureza indisciplinada
dos blogs acadêmicos. Em 2010, o American Anthropologist considerou-o o site
central da comunidade de antropólogos norte-americanos. Como os tempos
mudam, depois de 12 anos, o título do blog foi trocado para anthro{dendum}, com
algumas repercussões positivas e muitas negativas. Se Savage minds ofendia a
muitos participantes ― que não compreendiam a noção de "savage" para Lévi-
Strauss ―, a outros a mudança era apenas uma atitude “politicamente correta”.
Gracejos quanto ao {dendum} também não faltaram. Ao fim e ao cabo, a (benéfica)
indisciplina foi colocada sob controle.5
4
surgia como uma alternativa potente. Com um conselho editorial de uma centena
de membros de várias nacionalidades, e tornando a publicação acessível a todos via
internet aberta, o projeto contempla grande divulgação, incluindo a tarefa de
republicar artigos e ensaios clássicos da antropologia.6
Finalmente, outro indício do que vem ocorrendo nas últimas décadas advém de
lugares que antes foram sítios privilegiados de pesquisa e que, hoje, reagem ao
termo “antropologia”. Sabemos que a disciplina historicamente tendeu a dividir o
mundo: há um século estavam, de um lado, seus poucos praticantes, geralmente
oriundos de uma pequena, mas dominante, fração do globo (Europa e Estados
Unidos); de outro, os nativos possíveis, o resto do mundo (populações inteiras da
Melanésia, Oceania, Ásia, depois África e América do Sul). São justamente essas
últimas populações que, ao mesmo tempo que recusam a expressão “antropologia”
por suas conotações coloniais após a independência de seus respectivos países,
recuperam o termo “etnografia”. O passado pecaminoso fica eliminado e o presente
se abre. Assim, sob o guarda-chuva protetor da etnografia, especialmente no
contexto africano, uma antropologia camuflada é levada a cabo por filósofos,
geógrafos, educadores e sociólogos. O direito de fazer etnografia é de todos, e a
todos é desejável uma perspectiva etnográfica. Mas a antiga disciplina, a
“antropologia” propriamente, não tem o mesmo prestígio; em questão nos centros,
tornou-se ainda mais “envergonhada” fora deles. (Aqui, cabe lembrar que a
antropologia não é privilégio de autodenominados antropólogos, como atestam, no
Brasil, as carreiras magníficas de Florestan Fernandes, sociólogo, e Antonio Candido,
crítico literário.)7
7
Ver Peirano (1981) sobre a trajetória dos dois autores no desenvolvimento das ciências
sociais no Brasil. Cf. homepage
<http://www.marizapeirano.com.br/teses/the_anthropology_of_anthropology.htm>.
Acessado em 27/03/2018
5
Há, nesses indícios, um aspecto que é necessário examinar. O ressurgimento da
etnografia como procedimento na pesquisa geralmente é compreendido como a
introdução, ou aceitação, de um "método". Tal acontece na prática dos cientistas
sociais africanos tanto quanto em revistas como Ethnography. Assim, basicamente
uma metodologia, a etnografia é vista como uma prática flexível e, em princípio,
acessível e aberta a sociólogos, historiadores, geógrafos, filósofos. Em alguns casos,
inclusive, fazer etnografia é a forma de um autor se diferenciar e se distinguir em
sua disciplina: na África, positivamente; no Brasil, não tanto, se pensamos nos
sociólogos e cientistas políticos. Aqui, pesquisa de campo é “coisa de antropólogo”.
É nesse contexto que sugiro que a (boa) etnografia de inspiração antropológica não
é apenas uma metodologia ou uma prática de pesquisa, mas a própria teoria vivida.
Uma referência teórica não apenas informa a pesquisa, mas é, ela mesma, o par
inseparável da etnografia. É o diálogo íntimo entre ambas, teoria e etnografia, que
cria as condições para a renovação e sofisticação da disciplina ― a “eterna
juventude” de que falou Weber. No fazer etnográfico, a teoria está, de maneira
óbvia, em ação, emaranhada nas evidências empíricas. Mais: a união de etnografia e
teoria não se manifesta apenas no exercício monográfico. Ela está presente no dia a
dia acadêmico, em sala de aula, nas trocas entre professor e aluno, nos debates com
colegas e pares, e especialmente na transformação de eventos de que participamos
ou que observamos em “fatos etnográficos”, como diria Evans-Pritchard. Desta
perspectiva, a etnografia é uma forma de ver e ouvir, uma maneira de interpretar,
uma perspectiva analítica, a própria teoria em ação.8
8 Ver Mariza Peirano (2006). A Teoria Vivida e outros ensaios de antropologia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
6
termo “disciplina” ― no contexto norte-americano, até há pouco uma falha ―, a
ênfase recai agora sobre “teoria etnográfica”, apontando para a essência do
empreendimento que se chamou “antropologia” no início do século passado nos
países centrais. Joga-se fora a água, mas o bebê sobrevive: sendo a antropologia,
agora, uma “disciplina” mirada na alteridade (e não no exotismo), cala-se sobre os
aspectos negativos de um passado colonial e enfatiza-se o potencial teórico do
“outro”.9 Uma virada significativa.
Etnografias e monografias
Mencionei antes a expressão “fato etnográfico”, cunhada nos anos 1950 por Evans-
Pritchard. Em contraste com o fato social durkheimiano, o fato etnográfico não
estava apenas refletido no caderno de campo do pesquisador, mas era criado pelo
antropólogo. Para atingir essa proeza, certas qualidades do pesquisador eram
necessárias: abandonar-se sem reservas, possuir características intuitivas, afinar-se
com o grupo estudado, ter um temperamento específico, dispor de habilidade
literária. Essa perspectiva de Evans-Pritchard obviamente ia contra a ideia da
antropologia como ciência, e ele se sentiu à vontade para aproximá-la da arte,
escandalizando muitos e motivando reações contrárias na época. A capacidade
intelectual e a preparação teórica seriam indispensáveis, naturalmente, mas só elas
não produziriam um bom antropólogo.10
9Em 1996, Bruno Latour publicou o breve (e ótimo) “Not the question” na newsletter da
Associação Americana de Antropologia, justamente chamando a atenção para o fato de os
antropólogos não valorizarem suas fantásticas realizações. Cf.
<https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1111/an.1996.37.3.1.2>.
Acessado em 22/03/2018.
10
Cf. Evans-Pritchard ([1950] 1972). Social anthropology. London: Routledge & Kegan Paul.
7
etnográfico. Na verdade, elas estão plantadas nos eventos que são selecionados e
interpretados por meio de um vínculo forte, que tanto pode ser de simpatia como
de ambiguidade ou, até mesmo, de indiferença.11 Neste encontro singular entre o
etnógrafo e o grupo observado, a teoria brota como um terceiro elemento para o
pesquisador (um Terceiro, na concepção de Charles Peirce), como uma convenção
flexível que gera um diálogo produtivo.
8
confrontou a teoria econômica da época; Evans-Pritchard revisitou a
bruxaria; Mary Douglas introduziu a noção de pureza; Leach questionou a
ideia de que sociedade e cultura se sobrepõem necessariamente ― e, a
partir do trabalho de todos esses autores, nosso conhecimento e nossa
compreensão sobre esses temas ampliaram-se;
(iii) terceiro, confirmam a ideia de que a surpresa e os acasos são elementos
fundamentais do conhecimento etnográfico. Essa surpresa, de que
falaram tanto Malinowski quanto Lévi-Strauss e, mais tarde, T. N. Madan,
não decorre apenas de uma ingenuidade assumida ― que não é de todo
negativa ―, mas é parte da inquietação e do interesse que o etnógrafo
experimenta no trabalho de campo. Mais uma vez, esses sentimentos
estão no pesquisador, o que possibilita, como sabemos, fazer pesquisa
etnográfica tanto em lugares distantes como em próximos. Malinowski
mencionou como, prevendo a existência de muitos “mistérios
etnográficos”, ocultos sob o aspecto trivial de tudo que se vê, o etnógrafo
fica à espreita de fatos significativos.13
13A referência a “mistérios etnográficos” por Malinowski está na página 50 (cap. II) de
Argonautas do Pacífico Ocidental (São Paulo: Abril, 1984). Lévi-Strauss desenvolveu a ideia
de “dúvida antropológica” no artigo “The scope of anthropology”, publicado em Structural
Anthropology II (New York: Basic Books, 1976). Esta ideia foi retomada em 1994 por T. N.
Madan como “o sentido de surpresa” da etnografia, no livro Pathways: approaches to the
study of society in India (Delhi: Oxford University Press, especialmente na p. 159). Ver,
também, o artigo de Serge Tcherkézoff “Louis Dumont, a comparação das sociedades e o
diálogo cultural, publicado em 2017 em Sociologia & Antropologia (vol. 7, n. 3: 683-713).
9
recente por Tristes tropiques, de Lévi-Strauss, um autor mais teórico que
etnográfico, mas que, neste livro, por muito tempo relegado às margens da
antropologia, dá seu testemunho mais vulnerável como pesquisador.
A boa etnografia
Aqui, entro em um terreno perigoso e pergunto: o que faz uma “boa etnografia”?
Por que as monografias clássicas permanecem? O que torna uma etnografia melhor
que outra? No Brasil, vários antropólogos reagiram de forma incômoda à
provocação do cientista político Fábio Wanderley Reis à antropologia no final dos
anos 1980. Ele se queixava de que a disciplina dava mau exemplo às ciências sociais,
em geral zombando “dos longos depoimentos em estado bruto de mulheres da
15
Ver Michael M. J. Fischer (2007). “Culture and cultural analysis as experimental systems”.
Cultural Anthropology, vol. 22, n. 1: 1-65.
10
periferia urbana” caras aos antropólogos.16 Naquele momento, decidi reagir à ironia
lembrando que esses relatos também eram entediantes para antropólogos, mas
talvez se igualassem às tabelas estatísticas dos cientistas políticos ― necessárias,
mas nem por isso menos enfadonhas. Procurei defender a ideia de que a
antropologia não se reduzia a descrições grosseiras, mas resultava de um feedback
entre pesquisa e teoria ― no sentido da especificidade do caso concreto e no
caráter mais universal da sua manifestação.17
17Ver Mariza Peirano (1995). A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará
(especialmente o capítulo 1).
18
Bruno Latour (2006). “Como terminar uma tese de sociologia: pequeno diálogo entre um
aluno e seu professor (um tanto socrático)”. Cadernos de Campo, vol. 14/15, ed. esp. 15
anos (1991-2006): 339-52.
11
experiência e sua narrativa. É hora, portanto, de levar a sério a linguagem, que,
afinal, une etnografia e teoria de forma indelével. Parto do pressuposto de que toda
teoria antropológica tem como base, implícita ou explicitamente, uma determinada
concepção da linguagem ― por exemplo, Boas a desenvolveu ele próprio;
Malinowski adotou a teoria nativa trobriandesa; Lévi-Strauss inspirou-se em
Saussure e Jakobson; o mesmo fez Leach, Mary Douglas e (em parte) Sahlins; e
Turner apoiou-se em Jung e Sapir. Se é impossível escapar desta condição, é melhor
fazê-la de forma consciente. Precisamos, então, tornar claros nossos pressupostos,
nossa forma de naturalizar a linguagem.
Em nosso senso comum ocidental, acreditamos que a linguagem pouco tem a ver
com outros fenômenos sociais. A linguagem diferencia-se tanto das demais
atividades que, por exemplo, consideramos legítimo fazer uma entrevista e analisar
apenas seu conteúdo referencial. Supomos também natural que a transcrição de
uma conversa seja feita por alguém que não participou dela. E julgamos aceitável
pensar que a função exclusiva da linguagem seja a de descrever coisas, ou falar
sobre elas. Em suma, acreditamos que o principal papel da linguagem é relacionar
uma palavra e uma coisa.
12
nos quais ocorrem. Se etnografia é ação, então, não estamos apenas trocando
ideias; estamos “fazendo coisas” com as palavras. Um depoimento ou uma
entrevista não são somente relatos referenciais e propositivos, não apenas duplicam
uma realidade mental que descreve o mundo por equivalentes verbais. Muitos
significados são produzidos numa conversa além dos que são verbalizados. De novo,
Malinowski foi o primeiro antropólogo a alertar para o perigo de pensar que a
linguagem apenas duplica o processo mental. Seguindo os próprios trobriandeses,
ele enfatizou a função pragmática e lembrou que palavras têm poder ― uma ideia
que desenvolveu especialmente ao tratar dos encantamentos.19
Quem faz pesquisa de campo sabe que, junto aos atos de referência ou descrição, a
fala consiste de atos concomitantes de “indexação”, marcando e criando limites
para a própria comunicação. Importa, assim, quem fala, para quem fala, por que
fala; os atributos sociais das pessoas envolvidas; o tempo, o lugar, a ocasião, o
objetivo. Por isso, é interessante quando o etnógrafo revê histórias contadas e
relembra o contexto ― i.e., a escolha do lugar, as pessoas presentes, o ritmo da voz,
os personagens citados na narração ― e observa que aquilo que parecia um simples
relato pode ser uma reivindicação, um ato de legitimação, uma declaração de posse
dirigida não necessariamente ao etnógrafo, mas aos demais presentes.20
19
Ver B. Malinowski (1935). Coral gardens and their magic. London: G. Allen and Unwin.
(vol. 2: The language of magic and gardening), p. 7: “There is nothing more dangerous than
to imagine that language is a process running parallel and exactly corresponding to mental
process, and that the function of language is to reflect or to duplicate the mental reality of
man in a secondary flow of verbal equivalents. The fact is that the main function of language
is not to express thought, not to duplicate mental processes, but rather to play an active
pragmatic function in human behaviour. Thus in its primary function it is one of the chief
cultural forces and an adjunct to bodily activities. Indeed, it is an indispensable ingredient of
all concerted human action”. Ver, também, B. Malinowski (1923). “The problem of
meaning”. In Ogden, C.K. & Richards, I. A. (eds.). The meaning of meaning. London: Kegan
Paul.
20
Ver um ótimo exemplo em Cristhian T. da Silva (2002). Borges, Belino e Bento: a fala ritual
entre os tapuios de Goiás. São Paulo: Annablume. Nesse pequeno livro, uma entrevista
sobre “identidade” (um dos clichês de Latour) torna-se um ato de reivindicação de
legitimidade dirigido à plateia presente.
13
Abordagens mais recentes reconhecem que estudar o fenômeno da fala por seu
valor proposicional é apreciar apenas uma fração dos significados transmitidos em
um diálogo.21 Se, por muito tempo, a ênfase recaía nos conceitos e nas imagens
mentais, a inclusão do objeto empírico permitiu uma guinada teórica crucial,
revelando uma dinâmica intrínseca ao ato de fala. Menciono brevemente três temas
e três autores que têm sido fundamentais na prática teórico-etnográfica
contemporânea:
21
Baseio-me, aqui, no breve e excelente artigo de Michael Silverstein (1997) “Language as
part of culture”. In: Tax, S. & Freeman, L. G. (eds.). Horizons of anthropology (2ª ed.).
Chicago: Aldine, pp. 119-131.
22
Ver Charles Peirce (1955). Philosophical writings of Peirce (selected and edited by Justus
Buchler). New York: Dover. Cf. especialmente capítulos 6 e 7.
14
ouvindo bem?” se testa o canal de comunicação, o contato (função
fática), que é diferente da pergunta metalinguística “Vocês estão me
entendendo?”, referente ao código.23 Uma mensagem verbal dificilmente
preencheria apenas uma função; assim, é preciso levar em conta a
hierarquia entre elas.
(iii) Resta falar sobre a eficácia, que Marcel Mauss considerou um elemento
central de sua arquitetura teórica, e que posteriormente foi incorporada
nos objetivos mais gerais da antropologia. Não agimos no vácuo; não
conhecemos só para compreender. “A magia precisa dar resultados para
ser aceita.” Proposta para a linguagem, a característica “performativa”
identificada por John L. Austin impulsiona a questão da eficácia intrínseca
à socialidade.24 Expressões “performativas”, como autorizar, batizar,
declarar guerra, advertir não são avaliadas em termos do seu caráter de
verdade, como as proposições usuais, mas em termos de sinceridade e
de eficácia. Palavras, assim como outras ações, têm uma “força” especial
(“locucionária”, quando declarativa, ou “ilocucionária”, no caso de
expressões performativas), e essa força não é adicionada à ação, mas
intrínseca a ela.
Escrevendo o vivido
23
A função emotiva centra-se naquele que fala; a conativa dirige-se àquele com quem se
fala; a referencial enfatiza o contexto; a poética refere-se à própria mensagem; a fática testa
o meio de comunicação; e a metalinguística está vinculada ao próprio código. Ver Roman
Jakobson (1960 [1956]). “Linguistics and poetics”. Presidential Address to the Linguistic
Society of America. In: Sebeok, T. A. (org.). Style in language. New York: Wiley, pp. 350-77.
24
Stanley Tambiah foi o precursor em adotar as lições de J. L. Austin na antropologia. Cf.
<https://www.marizapeirano.com.br/entrevistas/stanley_tambiah.htm>, especialmente p.
19. Ver também os capítulos “Form and meaning of magical acts” e “A performative
approach to ritual”, de Culture, thought, and social action: an anthropological perspective.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 1985. “Form and meaning” foi publicado pela
primeira vez em 1973 e republicado, em 2017, em HAU: Journal of Ethnographic Theory, vol.
7, n. 3. Cf. <https://www.haujournal.org/index.php/hau/article/view/hau7.3.030>. Acessado
em 10/03/2018.
15
Termino lembrando apenas que outros sentidos, como olfato, visão, tato, percepção
espacial, atmosfera geral, sentimentos, todos estão presentes na comunicação. Eles
formam, com a linguagem, o que Malinowski chamou de “contexto da situação”.
Esta noção nos lembra que a ideia de contexto tem que ser ampliada em relação ao
seu uso comum e que a situação na qual as palavras são enunciadas não é
irrelevante na expressão linguística. Sem um estímulo do momento, diz Malinowski,
não há fala. Em cada caso, portanto, a fala e a situação estão coladas, e o “contexto
da situação” é indispensável para sua compreensão.25
O que faz o etnógrafo, então? Realizada a pesquisa, não é possível apenas repetir o
que se viu e se ouviu ― até citações precisam de contextualização. É necessário
interpretar, traduzir, elaborar o diálogo que esteve presente na pesquisa de campo
nos seus aspectos relevantes. O grande desafio é transformar a indexicalidade vivida
durante a pesquisa em texto. Tudo o que foi experiência antes precisa agora adquirir
uma forma escrita; é necessário explicitar o potencial de força ilocucionária, atestar
as fontes de eficácia das experiências partilhadas. E é forçoso colocar em palavras
sequenciais, em frases sucessivas, parágrafos, capítulos, o que foi ação. Aqui talvez
esteja uma das dificuldades maiores da etnografia, porque se espera do resultado
uma contribuição, uma pergunta nunca articulada ou a expansão de uma postura
teórica antes preterida. Para esta tarefa, não há receitas preestabelecidas; a
inventividade é bem-vinda porque ela ajuda a refletir, na forma, a essência da
surpresa/teoria etnográfica.26
Um recurso seria voltar, por exemplo, às monografias clássicas para lembrar que
cada uma adotou uma forma e que muitas foram as estratégias de transformação da
25
Mais recentemente, Vincent Crapanzano propôs a imagem de “cena” para dar conta de
mudanças da realidade objetiva para experiências que são criativas, mas pairam no limite da
percepção comum. Cf. Vincent Crapanzano (2005). “A cena: lançando sombra sobre o real”.
Mana, vol. 11, n. 2: 357-383.
26 O difícil tema sobre a escrita etnográfica foi exemplarmente discutido por Julieta Quirós
(2014) em “Etnografar mundos vívidos. Desafíos de trabajo de campo, escritura y enseñanza
en antropología”. Publicar, ano XII n. XVII, online. Sua feliz inovação em criar diálogos
ficcionais indicou as possibilidades infinitas da criatividade na escrita. Ver especialmente
Julieta Quirós (2011) El Porqué de los que Van. Peronistas y Piqueteros en el Gran Buenos
Aires (una antropología de la política vivida). Buenos Aires, Antropofagia.
16
pesquisa em texto. Talvez esse retorno nos indique que não basta a orientação do
professor ― “escreva, descreva, escreva, descreva…” ― para evitar cair em “relatos
entediantes das mulheres da periferia urbana”. Nas monografias clássicas,
encontramos tanto o conhecido “Imagine-se o leitor…”, de Malinowski (um
conativo, para usar o conceito de Jakobson), quanto os relatos mais referenciais dos
ritos Ndembu, de Turner (mas cujas redundâncias revelam aspectos inesperados); a
transformação do significado de bruxaria pelas traduções etnográficas feitas por
Evans-Pritchard entre os Azande; as diferentes versões teóricas de um mesmo ritual
por Bateson, até os diálogos contextualizados entre Crapanzano e Tuhami. Que
outros caminhos eles poderiam ter seguido?
Nunca houve uma fórmula ou um modelo a ser adotado por todos os autores
porque, afinal, a antropologia não é uma ciência positiva. E, nesse contexto não
científico, muitos títulos espirituosos ou provocativos foram utilizados. Não parece
por acaso que temos livros com títulos inesperados (Argonauts of the Western
Pacific, La pensée sauvage, Peddles and princes) tanto quanto artigos (“Virgin birth”,
“Twins, birds and vegetables”, “Some muddles in the models”). Afastada a ideia
banal de serem apenas uma estratégia mercadológica ― que na verdade facilmente
poderia reverter de forma negativa por sua irreverência ―, talvez esses títulos
denunciem um aspecto mais profundo. Talvez eles evidenciem o empenho do
etnógrafo em trazer a experiência vivida da pesquisa e do impacto sobre o
pesquisador para seus leitores. Hoje, em parte passada a voga do exagero ou do
pedantismo, a persistência do caráter poético dos títulos, tanto quanto a arquitetura
das monografias, pode eventualmente indicar aquele pequeno detalhe do grande
empreendimento existencial e intelectual da etnografia. Pode, nesse sentido,
apontar para a complexidade da tarefa que é comunicar uma nova descoberta e
reavaliar a teoria acumulada, fazendo-a espiralar e alcançar novos patamares,
desvendar novas questões, trazer novas dúvidas, ampliar o leque de possibilidades
interpretativas e, assim, finalmente, manter a tradição da eterna juventude das
ciências sociais.
17
Mariza Peirano
Palavras-chave:
Sumário:
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