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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

MICHAEL JHONATAN SOUSA SANTOS

NATUREZA E CULTURA
NA POESIA DE PEDRO CASALDÁLIGA

CUIABÁ-MT
2016
MICHAEL JHONATAN SOUSA SANTOS

NATUREZA E CULTURA NA POESIA DE PEDRO CASALDÁLIGA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Estudos de Linguagem do Instituto
de Linguagens da Universidade Federal de Mato
Grosso, como requisito para a obtenção do título
de Mestre em Estudos de Linguagem.

Área de Concentração: Estudos Literários

Orientadora: Profª Drª Célia Maria Domingues da


Rocha Reis

CUIABÁ-MT
2016
AGRADECIMENTOS

Ao concluir este trabalho, realizado com muito entusiasmo e dedicação,


um marco para o aspecto profissional da minha vida, como para todos os
outros, quero agradecer.
Agradeço a Deus, por tudo, mas, principalmente pelas pessoas que
colocou no meu caminho ao longo desse curso.
Dentre essas pessoas, agradeço, especialmente, a professora Célia
Maria Domingues da Rocha Reis. Sou grato pelo seu carinho, pela orientação e
pelo zelo com que se dedicou a este trabalho, que sem ela não seria possível.
Meus agradecimentos às professoras Marinete Luzia Francisca de
Souza e Ida Alves, que compuseram a banca avaliadora e enriqueceram o
trabalho que agora apresentamos; e a todos os professores que, de modos e
em tempos diferentes, contribuíram para a realização deste estudo,
especialmente, a Denize Dall' Bello, Soraia Lima Arabi e Vinicius Carvalho
Pereira.
Sou grato a toda a minha família e aos meus colegas de trabalho pelo
apoio imenso que me deram.
Só a Natureza é Divina, e ela não é Divina...

Fernando Pessoa
RESUMO

No presente trabalho, analisamos a poética de Pedro Casaldáliga, bispo


emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia-MT, Brasil, visando compreender
como os recursos estéticos que ele utiliza expressam temática relativa à cultura
e à natureza. O estudo permitiu-nos identificar nos poemas a recorrência de
imagens segundos as quais a “natureza é uma escritura”, bem como fusões
metafóricas entre as noções de divindade, ciência e natureza. Mostraram-se,
também, de fundamental importância para a compreensão dos textos
analisados, os processos de figuração de aspectos dos relacionamentos entre
os seres humanos e a natureza. Neste âmbito, destacam-se imagens em que
figura o olhar para a natureza e a observação dos espaços naturais.
Verificamos que as estruturas sobre as quais essas figuras se produzem
expressam crítica às formas de produção, circulação e legitimação do
conhecimento científico, sensibilidade no trato com as pessoas e a natureza,
numa lógica inversa a do capital, e admiração frente às belezas naturais.

Palavras-chave: Pedro Casaldáliga; poesia; natureza e cultura.


ABSTRACT

In this work we analyze the poetics of Pedro Casaldáliga, emeritus bishop of the
Prelature of São Félix do Araguaia, Mato Grosso, Brazil, aiming to understand
how the aesthetic resources used by the author express themes concerning
culture and nature. The study allowed us to identify, in the poems, the
recurrence of images according to which, “nature is a scripture" as well as
metaphoric fusions of the notions of divinity, science and nature. The processes
of aspect figuration of the relationship between human beings and nature were
also of vital importance for understanding the studied texts. In this context,
images in which emerge the look at nature and the observation of natural
spaces are great highlights. We found that the structures upon which such
figures are engendered express severe criticism against the production,
circulation and legitimating of scientific knowledge, as well as remarkable
sensitivity in his approach to people and nature, showing a reverse logic to that
of capitalism and also deep admiration for natural beauty.

Key Words: Pedro Casaldáliga; Poetry; Nature and Culture


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................9

CAPÍTULO I. PRINCÍPIOS POÉTICOS DA NATUREZA..................................15

1.1 A natureza como escritura divina................................................................16

1.2 A presença do sagrado nas imagens da natureza......................................47

CAPÍTULO II. (DES)ENCONTROS COM A NATUREZA..................................71

2.1 Homens (des)encontrados..........................................................................72

2.1.1 O tempo e espaço do encontro................................................................74

2.1.2 A paz dos homens passando mal.............................................................83

2.1.3 Dos encontros com o outro ao encontro com o Outro..............................90

2.2 Foge, Maria!.................................................................................................97

CAPÍTULO III. PAISAGENS POÉTICAS........................................................104

3.1 Em busca da perfeição.............................................................................104

3.2 A composição do espaço como registro da alma do tempo.....................107

3.3 A experiência da paisagem e a escrita do corpo......................................111

3.4 Entre o Lago e a História..........................................................................126

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................141

BIBLIOGRAFIA...............................................................................................146
9

INTRODUÇÃO

Admiração e expectativa na experiência fugaz da leitura de três versos.


Pareceram, por um triz, resolver os mistérios, expor os segredos de uma ordem
existencial desde o início do tempo estabelecida, porém, sempre inapreensível
em sua completude. Tal mistério, brotando da imagem de uma natureza
suprema, sem rompê-la, entranhando-se nela, infundia em nós a convicção de
não sermos totalmente transitórios, consciência suscitada pela poesia, afirma
Octavio Paz (1982).
Estávamos frente a um poema de Pedro Maria Casaldáliga Plá. A
análise desses versos supriu necessidades pessoais. Queríamos entender o
que havia acontecido no momento da leitura. A partir de então, interessou-nos
o modo como temas relacionados à “natureza” eram tratados na literatura,
especialmente, na poesia Pedro Casaldáliga. Isso nos levou a empreender o
presente estudo.
Nele, analisamos sua poética visando compreender como os recursos
estéticos que mobiliza expressam temática relativa à cultura e à natureza, e os
efeitos de sentido que esses temas provocam nos poemas.
Considerando tal objetivo, apresentamos três justificativas à execução
deste trabalho. A primeira refere-se ao valor estético literário da obra em
questão. Quanto a este valor, no prefácio ao livro Antologia retirante (1978, p
15), jogando com a constituição histórica e social do significado do termo
“natureza”, Casaldáliga afirma ser “naturalmente, retirante da Poesia
hermética”. A despeito disso, as imagens que elabora emaranham,
problematizam e harmonizam, de modo inesperado e criativo, situações sócio
históricas e posições filosóficas que conferem a seus textos universalidade.
Cultivada, mas natural, o poeta nos diz:

Amigos, não busqueis nestes meus versos a Poesia


profissional. Dou o verso, como davam seu leite as vacas
branquinegras que meu pai ordenhava, de madrugada e ao
entardecer; como dá o seu pregão o chico-preto de nosso
quintal, atrás da catedral-barracão de São Félix; como dá o
meu povo retirante o seu olhar, sua prece, seu golpe rítmico de
enxada, sua pancada libertadora no arame do Latifúndio; como
dou a amargura, o sorriso, a mão estendida, o testemunho do
que já vi, do que espero. Joan Maragall queria apenas “a
10

Palavra Viva”. Eu só reconheço aquela Poesia em comunhão


emocionada com a Terra, com o Homem, com o Céu.
(CASALDÁLIGA, 1978, p. 15)

Esclarecimentos como esses despertaram em nós algumas questões,


inicialmente, quando refletíamos sobre os elementos que agregavam valor de
obra de arte às criações de Pedro: para ele, a poesia surge de modo natural,
no sentido de algo que é “espontâneo”, ou tudo que é natural é, de certo modo,
poético? Ainda que haja nas palavras do poeta uma crítica explícita à poesia
que se volta para ela mesma, para as sutilezas do seu fazer, sem
preocupações com a representação social, como não admitir um grau
considerável de hermetismo, quando os seus versos captam metaforicamente
e se assemelham, por exemplo, a fenômenos da natureza e a compreensão
destes constitui o objetivo das ciências?
Em virtude dessas questões, partimos da hipótese de que um dos
modos como Casaldáliga agrega valor estético aos seus escritos estrutura-se,
fundamentalmente, em imagens que articulam natureza e cultura.
A segunda refere-se aos valores, por assim dizer, semântico-
existenciais, possíveis em função do valor estético, da estrutura poética que
lhes garante o efeito (CANDIDO, 1995). No tocante a esses valores,
Casaldáliga faz de sua obra uma imagem da emoção que sente pela beleza
que percebe na natureza e nos homens e de luta contra a opressão exercida
pelos próprios homens, uns sobre outros, menos favorecidos.
Sua obra expõe posicionamentos opostos a um dos aspectos mais
perniciosos que as práticas sociais contemporâneas assumem. Precisamente,
àquele que decorre das influências culturais do capitalismo sobre o
comportamento do indivíduo, tornando seus atos e valores, o modo como se
relaciona com os outros, condicionados pela lógica econômica. Isso cria um
padrão de envolvimento entre as pessoas, que transparece nas ações
cotidianas dos sujeitos e implica em um negligenciar das necessidades, mesmo
que primárias, do outro. Por conta disso, conforme Ciro Marcondes Filho
(2005), o homem moderno tende a não ‘viver’ de fato, porque não se relaciona
com os ambientes à sua volta, não se envolve com o outro, passando por eles
sem notá-los, apressadamente.
11

Assim, como “naturalmente” retirante da poesia hermética, surge, na


qualidade de imagem poética, na obra de Pedro, um “eu” também retirante.
Retirante de um mundo

[...] recriado à imagem contabilizada do Lucro. Sem Deus, sem


Homem, sem Cosmos. Onde nem o Ar, nem as Plantas, nem
os Animais, nem o Homem são reconhecidos como âmbito de
encontro e vida. Onde a Terra é um capital, o Índio um
obstáculo, o Camponês um marginal-da-terra, e o Operário um
braço-ferramenta (1978, p. 14).

Retirante de um mundo onde a natureza é uma abstração contabilizável


e as pessoas são reduzidas ao papel que desempenham nos enredos do
capital. O percurso desse “eu”, como veremos, é marcado pelos encontros que
mantém com seus semelhantes viventes e com a natureza como um todo.
A menção ao termo “imagem”, no fragmento acima destacado, não diz
da imagem poética. O termo é utilizado num sentido amplo para referir as
imagens produzidas pela cultura capitalista.
Quanto a isso, analisando os imperativos impostos por essa cultura e as
estratégias das quais ela se vale, o comunicólogo Norval Baitello (2005)
discorre a respeito de como a proliferação das imagens se alinha à lógica do
capital. Segundo ele, isso gera um tipo de violência que, embora se dê por
imagens, não se restringe ao sentido da visão, visto que logra, também, ser
invisível, pois se dissemina através do imaginário que acompanha todo o
movimento da cultura.
No bojo desse processo, não apenas um conjunto de critérios e valores
dita a maneira como as pessoas vão se relacionar com seu entorno. Mas,
sobretudo, estabelece-se um processo amplo de desumanização do outro.
Graças a isso, problemas como a humilhação, exploração e violência física,
cujo resultado, não raro, é a morte, impostos aos trabalhadores pobres do
campo brasileiro são, sistematicamente, negligenciados, tanto pela sociedade
quanto pelo Estado.
Nesse sentido, por um lado, a obra de Pedro Casaldáliga se configura,
explicitamente, como oposição aos valores vinculados ao capitalismo
predatório. Por outro, critica o modo e os critérios sobre os quais se sustentam,
tacitamente, determinados comportamentos e atitudes que, no seu cerne, são
12

de exclusão social. No tocante a isso, interessa-nos, conforme dito, analisar a


obra de Casaldáliga buscando compreender os recursos estéticos por meio dos
quais ele tematiza a natureza e a cultura. E compreender como as imagens
poéticas disso resultantes se situam frente ao contexto acima exposto, em
situações vividas na região de São Félix do Araguaia, no Estado de Mato
Grosso, e em outras, mais amplas, em nível mundial.
A terceira justificativa apresentada foi a necessidade de desenvolver
estudos críticos sobre a literatura produzida em Mato Grosso
contemporaneamente. Quanto a essa questão, observa-se que, a despeito do
valor estético literário que tais obras apresentem, não tendo sido produzidas no
contexto dos grandes centros econômicos, elas não tendem a alcançar grande
circulação, tanto no que se refere ao público leitor quanto no que tange aos
espaços acadêmicos. Por esse motivo, pode-se dizer que a produção artística
advinda dessas regiões, não só a de Pedro Casaldáliga, mas também a de
outros escritores, não chega a cumprir função social ampla e significativa, visto
que é próprio da obra de arte, sobretudo a literária, só fazer sentido, ganhar
existência e modificar o mundo por meio da relação com seus apreciadores.
Filho de camponeses, Pedro nasceu na Catalunha, em 16 de fevereiro
de 1928. Da ordem dos Claretianos, chegou ao Brasil em 1968. Em 1971
tornou-se Bispo. O país vivia a ditadura militar, ainda assim, Pedro se insurgia
política e socialmente ao tomar partido dos interesses dos índios e dos
pequenos proprietários de terras (MAGALHÃES, 2001). Ainda em 1971,
lançou a Carta Pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e
a marginalização social”, texto que o colocaria, definitivamente, na mira dos
poderosos.
Em relação aos procedimentos metodológicos da presente pesquisa, a
primeira parte se constituiu numa leitura apreciativa da obra poética de Pedro
Casaldáliga. Após, observamos os temas tratados. Pela recorrência que
apresentou, selecionamos o eixo “natureza e cultura”. A partir disso,
procuramos agrupar o maior número de poemas que versassem sobre a
temática escolhida. E compará-los entre si, levando em conta elementos como
figuração, versificação e sonoridade.
Do grupo de textos resultante desse processo, selecionamos o corpus
da pesquisa. Os critérios dessa seleção foram os seguintes: a) a utilização e o
13

emprego, criativo e inesperado, dos recursos da linguagem atravessada pela


poesia; b) textos dos quais se pudesse depreender: 1) princípios de natureza e
suas implicações culturais; 2) relacionamento com a natureza; 3) observação
do espaço natural.
A fim de valorizar os textos poéticos em sua integridade, ancoramo-nos
na proposta metodológica de Antonio Candido (2006). Segundo esta, a
compreensão integral da obra literária requer uma leitura que considere o modo
como o contexto histórico e social do qual ela emerge, que lhe é externo,
infunde-se em sua estrutura interna. Trata-se de um processo que se faz por
meio de inferências e da percepção de paralelismos entre comportamentos,
individuais ou sociais, e a estrutura sobre a qual se assenta o poema. A
abordagem metodológica de análise dos textos constituiu-se, assim, de dois
instrumentais: por um lado, o estudo dos aspectos estruturais, por outro,
conhecimentos sobre sociedade, produzidos em áreas afins.
Para a investigação dos modos de constituição estruturais das imagens
poéticas e reflexão acerca do sentido que essas estruturas sugerem, pautamo-
nos, principalmente, nos conhecimentos produzidos por Octavio Paz (1976)
(1982), Alfredo Bosi (1977), Jean Cohen (1974) e Adorno (2003).
O critério fundamental a partir do qual selecionamos o arcabouço teórico
pertinente ao aspecto externo dos poemas, no sentido proposto por Candido
(2006), foi o de não aplicar categorias à obra de Casaldáliga, mas depreender
dela seus próprios mecanismos de funcionamento. Em seguida, a partir dos
direcionamentos daí resultantes, selecionamos o arcabouço teórico e tentamos
desenvolver comparações entre este e o posicionamento apresentado nos
textos de Casaldáliga, chamando a atenção para convergências, divergências
e possibilidades de leitura daí decorrentes. O desenvolvimento da pesquisa
permitiu descrever três percursos de leitura do conjunto de poemas
selecionado, os quais foram estruturados em capítulos.
No primeiro, “Princípios poéticos da Natureza”, tratamos de dois temas
recorrentes. De início, a metáfora de que a natureza, o universo, a realidade,
tudo o que é abarcado nesse âmbito nas mais diversas perspectivas é, desde
sempre, uma escritura. O outro se refere à fusão entre Natureza e divindade,
bem como aos desdobramentos figurativos, filosóficos e teológicos
engendrados por esse procedimento. Para a reflexão acerca da figura segundo
14

a qual “a natureza é um texto”, ancoramo-nos no conceito de “escritura”


delineado por Jacques Derrida na Gramatologia (1973). Sobre a relação
“divindade/natureza”, a análise pautou-se nos estudos de Raymond Williams
(2011), acerca da continuidade nominal do termo “natureza” e sua mudança de
significação na história, e nos estudos de Keith Thomas (2010) sobre as
mudanças de atitude para com a natureza no período de 1500 a 1800, dentre
outros.
O segundo capítulo, “(Des)encontros com a natureza”, tem por enfoque
as imagens poéticas dos relacionamentos homem/natureza, o que chamamos
de “encontros". Na primeira parte desse capítulo, buscamos destacar essas
imagens e seu modo de constituição, os sentidos que mobilizam e reverberam.
Em seguida, foram analisados os processos figurativos relacionados às
consequências, para o homem e para o meio ambiente, desses diferentes
modos de encontro. Subsidiaram o estudo dessas relações e a reflexão acerca
das estruturas pelas quais elas se expressam, dentre outros, Baitello (2005),
Marcondes Filho (2005), Eliade (1992-1997) e Gutiérrez (2000).
Na última parte da dissertação, “Paisagens poéticas”, estudamos os
recursos de composição das imagens da natureza enquanto espacialidade, o
que compreendeu categorias como lugar e paisagem. Na sequência,
examinamos as funções que tais categorias desempenham nos poemas
analisados e no conjunto da obra. Centralmente, fundamentamos as análises
no estudo acerca das paisagens poéticas, de Michel Collot (2013), e do espaço
na literatura, de Osman Lins (1976).
15

CAPÍTULO 1. PRINCÍPIOS POÉTICOS DA NATUREZA

Neste capítulo, tratamos de dois temas recorrentes na obra poética de


Pedro Casaldáliga, dedicando especial atenção ao estudo dos expedientes
formais dos quais o poeta se vale ao elaborá-los.
O primeiro diz respeito à metáfora de que a “natureza”, o “universo”, a
“realidade”, tudo o que se abarca com essas palavras nas mais diversas
perspectivas, é, desde sempre, uma escritura divina. O segundo refere-se às
imagens em que natureza e sagrado/religião fundem-se. Entendemos que o
modo como o poeta articula esses temas, em boa parte de sua obra, confere-
lhe poeticidade, tendo em vista apresentarem alto grau de conotação e, por
isso, de valor estético (BOSI, 1977).
A repercussão das temáticas selecionadas para este capítulo, o modo
como se reiteram e se ressignificam em cada poema, faz-nos considerá-las
como um “princípio” que, sendo expresso liricamente, justifica o seu estudo
neste trabalho.
Abbagnano (2007) explica que “princípio” é o ponto de partida ou o
fundamento que deve ser suposto como verdadeiro, a fim de servir de base,
direcionar, nortear argumentos ou conclusões que possam ser tomados como
corretos. Assim, nesta etapa do trabalho, não visamos alcançar um sentido de
“natureza” em seu uso para descrever espaços ditos naturais, quando assume
valor adjetivo. Buscamos, na obra de Casaldáliga, um sentido anterior a este,
conforme explica Raymond Williams (2011), segundo o qual natureza é a
constituição essencial do mundo; é o nome dado à “qualidade intrínseca e
essencial de qualquer coisa em particular” (p. 91). Isso importará, sobretudo,
quando tratarmos do modo como ‘natureza’ e ‘divindade’ engendram certa
organização do mundo, como veremos mais detidamente na segunda parte
deste capítulo.
“Princípio” é um poder que determina, previamente, os resultados a que
se pode chegar. Assim, quando dizemos “princípios poéticos da natureza”,
podemos induzir ao raciocínio, equivocado, de que existe no objeto deste
16

estudo uma visão segundo a qual a existência humana está previamente


determinada e estaria fadada a um fim específico. Os princípios que
percebemos na obra de Casaldáliga não se referem a qualquer ordenança que
limite o ser humano em seu pleno exercício de escolher e de mudar, quer as
chamemos de “vontade” de Deus ou de leis da natureza.
Porque poéticos, os princípios que apontamos na obra de Casaldáliga
subtraem-se a essa predeterminação significada pelo valor filosófico do termo
“princípio”. Assim, não imprimem classificações estanques do que seja a
natureza, o homem e Deus. Quanto ao sentido de “Natureza” que visamos
suscitar, não propõe, por seu turno, uma distinção rígida entre o homem e o
mundo natural, considerando o elemento sagrado por que são permeados.
Assim, os “princípios poéticos de natureza”, porque poéticos, conforme
verificaremos, consoante Octavio Paz (1976), não são excludentes. Apesar das
diferenças, na obra de Casaldáliga, a “natureza” é tanto uma flor num vaso,
uma mata de eucaliptos para reflorestamento, a fauna e a flora que povoam a
região do Araguaia, metonímias da biodiversidade terrestre, os rios, o céu, o
mar, o sol, como também o ser humano. Por esse motivo, pudemos entendê-la
como uma essencialidade presente em todos os seres e coisas, viventes ou
não.
Nessa perspectiva, chamamos os elementos destacados de “princípios
de natureza” porque figuram como a base que permite a harmonização de
elementos diversos entre si e, às vezes, opostos, realizando o movimento da
imagem poética, consoante Octavio Paz (1976), orientando escolhas formais. É
isso o que se verifica através do estudo da metáfora de que a “natureza é uma
escritura divina” ou mesmo quando se observam aspectos da relação entre
natureza e divindade. Em alguns poemas, esses princípios são objeto da
atenção do eu lírico, em outros, essa instância poética se posiciona em face de
fenômenos sociais e naturais tendo-os por pressuposto.

1.1 A natureza como escritura divina

Cremos em ti, forjador da Criação,


poeta primeiro de tudo quanto é beleza e vida e encontro.
(CASALDÁLIGA, 2005, p. 34)
17

Os versos acima se inscrevem no poema “Credo da Ecologia Total”.


Nele, Casaldáliga reporta-se à crença judaico-cristã, reafirmando que Deus
criou o mundo em seis dias e, no sétimo, descansou. A partir disso, compõe a
imagem do Deus-poeta, figura segundo a qual tudo o que fora criado neste
período seria um texto poético, o “primeiro”. Depreende-se do livro bíblico do
Gênesis, que tal obra divina compreende, certamente, tudo aquilo que
chamamos de natureza, em seus elementos químicos, físicos e orgânicos, na
relação que eles mantêm entre si, incluindo-se aí todo o universo.
A utilização do numeral ordinal expressa a crença concomitante na
existência de outros poetas. Desse modo, legitima-se o poder criativo do
homem em face de qualquer ordenamento que impeça o pleno exercício de
escolher e de mudar, quer os chamemos de destino ou desígnios de Deus, lei
natural – como a de que toda ação gera uma reação igual ou maior; ou
determinação biológica – segundo a qual haveria humanos “naturalmente”
superiores e inferiores; ideologia ou história. Assim, o poema se abre à
compreensão de que a obra humana pode ser igual à divina, tanto em termos
de conteúdo, “beleza e vida e encontro”, sendo este o fim último de todas as
coisas, o valor supremo que Casaldáliga dá à existência, quanto na forma
assumida por esse conteúdo, que seria a da escrita poética. Se,
metaforicamente, a natureza é um texto divino, este texto pode ser matéria-
prima para toda obra humana. À imagem de um Deus livre para criar, foi feita a
humanidade. Em virtude do numeral ordinal, os versos expressam não apenas
uma visão de fé no Criador, mas também no homem. Não há, por isso, uma
distinção entre a escrita humana e a divina, entre a cultura e a natureza.
Nos termos postos pelos versos em epígrafe, a “natureza é um texto
poético”. No bojo dessa figura, o mundo, ou o real e tudo aquilo que se possa
abarcar com essas palavras nas mais diversas perspectivas, é, desde sempre,
uma escritura.
Na obra Literatura europeia e Idade Média latina (1996), E. R. Curtius
traça um panorama histórico do desenvolvimento da metáfora segundo a qual a
“natureza é um livro”. Essa imagem é semelhante à elaborada por Casaldáliga.
Considerando a literatura europeia em suas heranças clássicas, Curtius cita
ocorrências a partir século XII. Segundo ele:
18

A ideia do mundo ou da Natureza como um “livro” se originou


na eloquência do púlpito, foi adotada depois pela especulação
filosófica-mística medieval e passou em fim ao uso geral da
linguagem. No curso desse desenvolvimento, o “livro do
mundo” foi muitas vezes laicizado, isto é, alheado de sua
origem teológica, porém, nem sempre – o que pretendo
mostrar com alguns exemplos (1996, p. 398).

Derrida (1973) apresenta uma ressalva, partindo da mencionada obra de


Curtius, quanto a essa figura. O teórico da desconstrução afirma que tal
metáfora extrapola o conceito de “livro”. Essa imagem, segundo ele, faz com
que se perceba a real dimensão do “texto”. Conforme explica, o livro é um
objeto que propõe começo e fim para o assunto de que trata, sugerindo uma
totalidade, algo acabado. Quando Casaldáliga utiliza a metáfora em questão,
não suscita esse entendimento. Por isso, neste trabalho, optamos por tratar de
uma escrita ou escritura da natureza, não nos limitando à noção de livro.
Embora Derrida (1973) não trate a “natureza” como sendo uma escritura
poética, mas como escritura apenas, justificamos nossa escolha por seus
estudos porque seu conceito de escritura apresenta convergências com o que
entendemos por poético, a partir da obra de Casaldáliga.
Essa metáfora ocorre de modos esteticamente diversos e inesperados
ao longo de toda a obra de Casaldáliga, desde os haicais ou “noemas” até as
preces poéticas. Em algumas dessas ocorrências, gera efeito de
estranhamento, em outras, é quase imperceptível, e há ainda aquelas em que
sua formação parece ser fundamental à compreensão de todo o poema. Não
implica, necessariamente, qualquer menção ao Deus cristão ou aos símbolos
do cristianismo, o que não significa inexistência de intertextualidade, ou um
afastamento em relação à base religiosa. Assim, às vezes, o eu lírico nomeia
certas ações do ser humano sobre a natureza em termos de uma quebra na
“canção” (1978, p. 87), de uma “interrupção na mensagem cifrada” (1978, p.
97), ou como o ato de tornar impotente o “telegrama” de que a natureza é o
texto (2006, p. 101).
De diferentes modos, ocorre essa figura, como no poema “A reta da
opção”: “Do teu coração, irmão, / ao coração da estrutura / ... a reta de tua
opção!” (1982, p. 31). Há aqueles em que a natureza é um documento, como
nos versos “As laranjeiras ainda / garantem, murchas de luto, / os documentos
19

inermes / dos trinta e oito posseiros” ou “os carnaubais abrem em leque / seus
verdes documentos, / ainda não arquivados” (2006, p. 30). Cita a poeta Cora
Coralina, doceira que se aproveita do produto das abelhas: “fabricam suas
abelhas / o sábio suco da vida. / Palavra de cera e chama” (1989, p. 47). Há
uma diferença entre as palavras da natureza e as da cultura, mas são
igualmente “palavra”: “Há uma ‘visão programática’ / e uma vivência sofrida. /
Palavra escrita em papel. / Palavra lavrada em vida.” (1976, p. 57). O voo de
uma gaivota é uma “Mensagem à flor do sono, à flor do rio”, quando “por
engano, a tiro, morta... / Mensagem cifrada. / Palavra interrompida.” (1978, p.
97).
No âmbito da tradição literária mato-grossense, no tocante a essa
imagem, Casaldáliga dialoga, dentre outros, com Marilza Ribeiro (2005, p. 65)
“Quem já percebeu o rastro da sucuri em noite de lua cheia? Por sobre seus
sinuosos traços, há uma escritura primitiva que anuncia acontecimentos”. Num
contexto literário mais amplo, apresenta relações com imagens produzidas por
Mario Quintana, como no poema “Escrevo diante da janela” (2013, p. 9), por
exemplo, “Vago, solúvel no ar, fico sonhando... / E me transmuto... iriso-me...
estremeço... / Nos leves dedos que me vão pintando”.
A partir dessas considerações, analisemos o poema a seguir, que está
publicado no livro Cantigas menores.

A BÍBLIA NA PEDRA
Sobre essas rochas de miséria,
a Bíblia apenas escrita
pode ser uma blasfêmia.

(CASALDÁLIGA, 1976, p. 33)

Inicialmente, verifica-se que o título, “A Bíblia na pedra”, coloca-se em


oposição ao primeiro verso, que se inicia com a preposição “sobre”. A variação
nas preposições indica não apenas uma variedade de lugares da escrita, mas
permite supor a existência de conceitos de escrita diversos no poema. Essa
oposição remete à existência de uma escrita interna e de uma escrita externa.
Na medida em que se situa a “Bíblia” “na pedra”, por oposição à “Bíblia
apenas escrita” “sobre” a pedra, verifica-se a sugestão de uma fusão da noção
de escrita, representada pela bíblia, em um elemento do espaço. Assim, a
20

“Bíblia” estaria “na pedra” e, esta, estaria naquela. Seriam como um só objeto.
Em virtude do baixo índice de referencialidade que esse enunciado mantém,
devemos compreendê-lo figurativamente. Nesse caso, trata-se de uma
metáfora, isso porque a composição do título, ao que parece, propõe uma
semelhança essencial entre a “Bíblia” e a “pedra”.
O significante “Bíblia” pode ser entendido no sentido mais amplo
possível, mas isso não modifica o fato de ele remeter sempre à noção de
escritura. Por outro lado, “pedra” designa um elemento da natureza, que existe
independentemente de um processo criativo humano1. A preposição “em”
cumpre, porque justaposta à preposição “sobre”, a função de instalar a
escritura dentro da matéria mineral sólida, da pedra. Assim, a escritura compõe
a pedra, e vice-versa. Parafraseando Octavio Paz, quando discorre sobre a
conjugação dos opostos na imagem poética (1976, p. 38), traduziríamos tal
metáfora da seguinte maneira: a escritura é a pedra e a pedra é a escritura.
Não se trata de uma tautologia, uma vez que se compreende, embasados no
mesmo autor, que a imagem poética, ao constituir-se, não anula a
singularidade e a existência dos termos significantes díspares que mobiliza.
Ainda assim, cria a unidade desses termos, nesse caso, a metáfora. Devido a
isso, a ausência de superficialidade ou exterioridade da “Bíblia” não anula a
sua visualização.
Embora se verifique que é importante a noção de escritura para a leitura
que apresentamos deste poema, não podemos negar que ela poderia ser
suscitada por meio de outro termo que não fosse o significante “Bíblia”. Em
virtude disso, somos levados a concluir que esse significante tem, ao menos,
um duplo valor no poema. Primeiro: por designar um livro, “a Palavra de Deus”,
e por ser, metaforicamente, parte de uma “pedra”. No contexto do poema,
“Bíblia” sugere a existência de um todo que é escritura divina. Nesse sentido,
tem valor metonímico.
Graças a isso, podemos dizer que o significante “pedra” também adquire
valor metonímico, visto que a metáfora, por meio da qual é sugerida a
semelhança essencial entre Bíblia/escrita/pedra, mobiliza todos os termos que

1
“Pedra”, no contexto do poema, sugere, ainda, a intertextualidade “Pedro/pedra/Igreja” ou
“Bíblia/pedra/Igreja”, a qual pode constituir um percurso de leitura para este poema. Sem prejuízo de tal
possibilidade de leitura, por razões de recorte, nesta análise consideramos o termo somente como a
menção a um elemento da natureza.
21

compõem o título e textualmente se assenta sobre a interdependência deles.


Assim, não faria sentido afirmar que “Bíblia” tem valor metonímico e “pedra”
não.
Esse recurso pode, assim, ser considerado como um modo pelo qual o
poeta indica que até os menores elementos da natureza seriam parte de uma
totalidade indivisível. Uma maneira pela qual ele evidencia que cada parte é
essencial à existência de um todo, semelhantemente ao que ocorre em um
texto. Sugere, assim, “que as rochas, os rios, os oceanos, os climas, as
plantas, os animais e os seres humanos são interdependentes” (BOFF, 2002,
p. 9). A partir de tais considerações, enfatizamos que a “Bíblia” e o sentido de
“escritura” a que ela remete, não são uma característica inerente a uma única
“pedra”, mas a toda a natureza.
Além disso, por intertextualidade, “Bíblia” remete ao significante
“sagrada”, de Bíblia Sagrada ou Sagradas Escrituras, logo, à noção de
divindade. Dessa forma, a ideia de escritura, de totalidade e de divindade são,
igualmente, mobilizadas nessa palavra, no contexto do título do poema. Ou
seja, embora “Bíblia” remeta, em função da metáfora, a uma totalidade que é
escritura, autorizando-nos a falar, também, em metonímia, devemos levar em
consideração, ainda, o fato de ela ser tomada, geralmente, como a “palavra de
Deus”. Logo, no poema, teríamos que tanto a Bíblia quanto a pedra seriam
escritura ou palavra divina.
Com base no exposto, verifica-se que as relações significantes
propostas no poema excedem o conceito de linguagem segundo o qual ela é
um sistema de signos. Isto por sugerirem que tanto os textos quanto a própria
realidade se compõem, essencialmente, de uma determinada forma de escrita.
Em função disso, propomos pensar essas relações por meio do conceito
de “escritura” delineado por Jacques Derrida, em Gramatologia (1973). Nessa
perspectiva, por escritura nomeia-se todo um conjunto de fenômenos, desde o
cinema até a dança, passando por todos os gestos físicos de inscrição,
ideográficos e pictóricos (p. 11), dentre os quais as linguagens se inseririam.
Esse conceito denomina “práticas” ou materialidades comunicativas, atos de
informação apenas existentes enquanto tal, e que, por isso, não comunicáveis
por meio de uma linguagem falada ou da sua tradução escrita (p. 12). Em
outras palavras, tudo aquilo que não pode ser comunicado através do signo
22

linguístico, tudo que não se deixa traduzir, pela fala, e transportar pela escrita
de uma linguagem, constitui a escritura (DERRIDA, 1973, p 12).
O advento da cibernética, para Derrida, demonstra, cabalmente, o
conceito em questão. Isso porque, nesse âmbito, a comunicação de certas
informações somente pode ser feita de modo grafado, criptografado. Qualquer
tradução desses criptogramas para a linguagem falada, ou fonetização desse
conteúdo, implicaria numa perda de integridade da informação, que somente
existe de modo íntegro em sua condição de significante. Essa tecnologia
apresentou, para além de toda retórica, um mundo escrito. O teórico, contudo,
adverte: esse fato “anunciou-se desde sempre.” (DERRIDA, 1973, p. 11).
Nessa perspectiva, pode-se dizer que há sempre uma parte do real que é
escritura e vice-versa, o que se pode inferir também das seguintes
considerações de Roland Barthes, no contexto do livro Aula (2004):

[...] quer o definamos, com Lacan, como o impossível, o que


não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique,
em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma
ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a
linguagem).

Nessa concepção, a escritura compreende e excede a linguagem,


tangenciando-se, por isso, com o real. Ela é a articulação em unidade da
diferença entre espaço e tempo. É, portanto, a experiência do espaço e do
tempo. Enquanto significante, é anterior a qualquer significado (DERRIDA,
1973, p. 80). A escritura, nessa vertente teórica, é designada como rastro ou
arquiescritura:

Arquiescritura, possibilidade primeira da fala, e em seguida da


“grafia” no sentido estrito, lugar natal de “usurpação”
denunciada desde Platão até Saussure, este rastro é a
abertura da primeira exterioridade em geral, a enigmática
relação do vivo com o seu outro e de um dentro com um fora:
espaçamento. O fora, exterioridade “espacial” e “objetiva” de
que acreditamos saber como a coisa mais familiar do mundo,
como a própria familiaridade, não apareceria sem o grama,
sem a diferença como temporalização, sem a não-presença do
outro inscrita no sentido do presente, sem a relação com a
morte como estrutura do presente vivo. (DERRIDA, 1973, p.
80).
23

Uma peculiaridade do poema que viemos analisando é, então, o ato ou


efeito de a escritura ter-se como objeto de si mesma. Assim, temos, em alguma
medida, o real a lançar luz sobre aspectos de si mesmo.
Nessa ótica, demonstramos que no poema existe uma afirmação ou, ao
menos, a sugestão dela, de que a própria natureza, em todos os seus
aspectos, constitui-se de uma escritura. Verificou-se, ainda, a existência de
uma escritura interna e de uma externa.
Pela oposição desses lugares no poema, constata-se que a escrita
interna é boa e sagrada e a externa pode ser ruim, profana e blasfema.
Contudo, é preciso avaliar cuidadosamente essa oposição, visto que ela se dá
através da repetição do mesmo significante.
Se estivéssemos analisando o poema numa lógica em que o sentido
precedesse o significante, a palavra “Bíblia” carregaria a acepção de sagrado,
à qual remete por intertextualidade. Isso poderia nos encaminhar diretamente à
oposição mundano/divino. Tal antagonismo, todavia, não explicaria a reiteração
desse significante no poema. Por isso, preferimos manter o sentido de sagrado
num lugar secundário, atribuindo ao significante “Bíblia” valor de metonímia,
como já dissemos. Isso nos permite explicar porque a relação de oposição
divino/mundano pode se realizar através do mesmo significante.
Se colocássemos as relações intertextuais de “Bíblia” que a tratam como
texto sagrado, ou a relação “natureza/bíblia como escritura de Deus” em uma
posição primária, deveríamos fazê-lo para os dois momentos em que a palavra
ocorre no texto. Disso resultaria uma contradição segundo a qual o profano e
sagrado definiriam modalidades de experiência homônimas, o contrário daquilo
que afirma Mircea Eliade (1992, p. 14). Ademais, numa acepção lógica, se é
verdade que o significante “Bíblia” carrega o significado de sagrado, não pode
ser verdadeira uma proposição em que, simultaneamente, ele carregue o
sentido de profano. Um elemento, para constituir-se como verdade, exclui o
outro, mas o poema ignora esse fato.
Por outro lado, compreendendo o termo “Bíblia” como elemento
metonímico, coloca-se em posição primária sua qualidade essencial de
escritura. Assim, a reiteração desse significante pode ser interpretada como um
indício de que não o precede “uma verdade ou um sentido já constituídos”
24

(DERRIDA, 1973, p. 18). Através de tal reiteração, verifica-se, no poema, que o


significado “sagrado” não precede, ou determina, o significante “Bíblia”; que
não existe um conjunto de verdades ou sentidos pensados que sejam
anteriores a esse significante, tal como Derrida (1973) preconiza. Abre-se a
possibilidade de uma “Bíblia” blasfema. É em virtude de o sentido não
anteceder o significante que o mesmo termo pode designar realidades tão
opostas quanto o sagrado e o profano, sem gerar uma contradição
insustentável. Tais conclusões não seriam possíveis se a sacralidade da
escritura bíblica fosse tomada como uma verdade que a precede e determina
seu sentido, caso em que teríamos de tratar de duas bíblias diferentes,
negando a reiteração do significante como evidência.
Assim, o conceito segundo o qual “a linguagem é um sistema de signos”
(JAKOBSON, 1960, p. 162 apud DERRIDA, 1973, p. 16) demonstra-se de dois
modos insuficiente para a análise do texto em questão.
Primeiro, o poema joga com a desconstrução da significação de sagrado
atribuída ao significante “Bíblia”, sugerindo que este pode apontar tanto para o
sagrado quanto para o profano. A disparidade entre o significado pré-
concebido, arbitrário, e o significante, evidenciada na reiteração deste, desloca
o processo de leitura da mensagem que a escrita carrega para a própria
escrita. Tal fato escapa ao conceito de linguagem acima exposto porque a
própria noção de signo supõe a existência de um significado sem
correspondência significante, portanto, que todo o significado é anterior ao
significante: “É preciso um significado transcendental para que a diferença
entre significado e significante seja, em algum lugar, absoluta e irredutível.”
(DERRIDA, 1973, p. 24). O segundo modo pelo qual isso é demonstrado
consiste em que, ao lançar mão da metáfora “a natureza é uma escritura”, o
poema remete às considerações de Barthes (2004), de que há sempre um
aspecto do real inapreensível à linguagem enquanto sistema, mas que, de
algum modo, tangencia-se com a escritura, na medida em que também esta é
inapreensível à linguagem.
Admitindo-se os argumentos apresentados, passemos à análise da
proposição metafórica de que a natureza, assim como a “Bíblia”, é uma
escritura divina. Essa escrita é, simultaneamente, interna e externa. Derrida
(1973) estuda diversas ocorrências dessa metáfora, explorando a noção de
25

escritura em cada uma delas. Examinemos o poema através dos caminhos


abertos por essa exploração.
O teórico lança em suspeição a naturalidade do significado e o
convencionalismo do significante. Faz isso procedendo a uma desconstrução
da visão aristotélica segundo a qual, entre os sentimentos humanos e as coisas
da realidade exterior a nós, haveria uma relação de tradução natural e de que
os sons emitidos pela voz seriam os significantes desse significado primeiro,
natural. Justifica seu procedimento porque, segundo essa visão, restaria à
escritura, unicamente, uma condição mundana, por ser exterior ao próprio ser:
a condição de significante exterior. Dessa maneira, ao discorrer a respeito da
noção de escritura, Derrida projeta restabelecê-la ao seu lugar de direito, à sua
condição de Arquiescritura ou, ao menos, busca descrever os mecanismos que
impelem a escritura ao universo da técnica e da cultura.
Analisando o desenvolvimento das reflexões filosóficas e científicas
relativas à linguagem, o autor afirma que, desde a antiguidade clássica, foi
concedido à escrita, enquanto objeto de estudo e meio de acesso ao
conhecimento em geral, um lugar de inferioridade em relação à fala. Sobretudo
por esta implicar a presença de um falante como evidência “lógica”. A ciência, o
logos, produz verdades a partir da presença de uma evidência. Quando o
sentido de verdade requer a presença, negando o ausente, há um aspecto do
que Derrida (1973) chama logocentrismo. Uma vez que, em relação à fala, a
escrita indica a ausência, esta foi tida como mentirosa.
As noções filosóficas e teológicas de verdade distanciaram a noção de
significante desse conceito. Com efeito, a escritura foi tomada por mundana,
técnica e artificiosa, nunca passível de comunicar a sinceridade ou a
espontaneidade do sujeito, do ser. Caracteres esses atribuídos à fala. Vale
lembrar que Platão condena os poetas, por serem perigosos para os sentidos
ideais (verdadeiros). A crítica de Derrida ao logos consiste, assim, em afirmar,
dentre outras questões, que a verdade só aparece através da ausência-
presença: “sem a não-presença do outro inscrita no sentido do presente” tudo
que nos é exterior “não apareceria” (DERRIDA, 1973, p. 80).
À voz, por sua vez, foi atribuída qualidade de natural e verdadeira. O fato
de o sujeito ouvir-se permite-lhe idealizar-se a si mesmo. Da audição
decorreria, portanto, a primeira idealização do ser, consequentemente, sobre
26

ela recairia certa prerrogativa de verdade. Dessa relação resultaria uma


tendência a que os sujeitos valorizassem mais suas próprias necessidades e
as de seu grupo, por menores que sejam, em detrimento de todo o universo
que não pode ser ouvido, que está ausente, excluído dos sentidos, o que,
segundo Derrida (1973), chamamos de etnocentrismo.
Há, na poética de Casaldáliga, um eu lírico que se indigna e se ressente,
desencantado, dessa condição frente à verdade que a tradição filosófica e as
ciências relegaram à escrita, e que nossa cultura absorveu:

NÓS TEMOS A PALAVRA

mas não temos a voz...


e eles
têm
a Globo!

(CASALDÁLIGA, 1989, p. 54)

Tais considerações importam-nos porque, em oposição a essas


correntes filosóficas e a uma cultura que relega a palavra escrita à
inferioridade, as metáforas nas quais a natureza figura como escritura, supõem
a naturalidade do significante, como verifica Derrida (1973). Contudo, a mera
utilização dessa metáfora não garante um deslocamento da lógica etnocêntrica,
na qual o sentido de verdade e as prerrogativas da presença unicamente se
dão em virtude de um processo sonoro.
Nesse sentido, tanto em termos de forma quanto de conteúdo, no poema
“A Bíblia na pedra”, o significante, a escritura, coloca-se como anterior ao
significado, por ser parte da própria composição da natureza, em nível
metafórico. Em nível estrutural, o significante “Bíblia” rejeita, em parte, a
acepção de sagrado que normalmente lhe é atribuída e que tende a lhe
anteceder e a determinar sua interpretação, conforme já exposto. Busquemos
agora determinar se a metáfora da natureza como escritura divina presente no
poema de Casaldáliga se assenta sobre a lógica do etnocentrismo, na qual o
privilégio da presença e da verdade relaciona-se ao som da voz, nos termos
apresentados.
27

Partamos, pois, da identificação dos lugares interno e externo. Através


da oposição desses lugares, sugere-se que a escrita interna é boa, natural e
sagrada. A externa pode ser ruim, profana, blasfema. Por oposição, associa-se
à cultura. Esse par antagônico é equivalente a outros; externo e interno
correspondem, respectivamente, a mundano/divino, cultural/natural,
ausência/presença, significante/significado, fala/língua. O ponto de vista teórico
de Derrida (1973), que temos considerado, supõe que a superação desses
pares de opostos permitiria colocar a escritura no lugar que lhe é devido com
relação à fala, procedendo ao deslocamento em relação ao etnocentrismo. O
que Derrida busca é estabelecer a compreensão de que não é concebível a
noção de interioridade e exterioridade do signo, já que este não pode existir
sem uma exterioridade. Em síntese, propõe que o significado é constituinte do
significante (1973, p. 14). Embora procedendo à desconstrução desses
conceitos, não visa, contudo, à destruição deles, ou à inauguração de um
pensamento onde não caibam, como se depreende do fragmento abaixo:

“Morte da fala” é aqui, sem dúvida, uma metáfora: antes de


falar de desaparecimento, deve-se pensar em uma nova
situação da fala, em sua subordinação numa estrutura cujo
acorde ela não será mais. Afirmar, assim, que o conceito de
escritura excede e compreende o de linguagem supõe, está
claro, uma certa definição da linguagem e da escritura (1973, p.
10).

É nessa perspectiva que Derrida aborda a obra de Rousseau e identifica


nela um modelo de presença que nega a lógica da fala e do etnocentrismo,
estabelecida desde Platão na cultura ocidental (1973, p. 20), o que evidencia
por meio da reflexão acerca de uma metáfora da natureza como escrita.
Segundo ele, Rousseau propõe a “presença a si no sentimento, no cogito
sensível que carrega simultaneamente em si a inscrição da lei divina.” (Derrida,
1973, p. 20). Em outras palavras, Rousseau instala no coração do homem,
metaforicamente, a escritura da natureza, sagrada e divina, sendo ela o que
garante ao sujeito a consciência de si.
Tal procedimento não é diferente, em termos semânticos, daquilo que
Pedro Casaldáliga faz ao instalar a “Bíblia na pedra”, na medida em que
28

compreendemos o caráter metonímico do termo pedra e a interioridade


conotada pela preposição “em”.
Entretanto se, por um lado, consoante Derrida (1973), Rousseau supera
o etnocentrismo decorrente da lógica fonocêntrica ao propor presença por meio
da ausência, isto é, através da escrita, por outro, acentua os contornos da
oposição externo/interno, pois postula que escrita externa não pode ser uma
continuação da interna ou o contrário. Em nível metafórico, não visa às
semelhanças, mas à exclusão da escrita exterior. Vejamos como isso se
processa no fragmento do texto de Rousseau, recortado por Derrida:

A Bíblia é o mais sublime de todos os livros. Mas, enfim, é


livro... não é em algumas folhas esparsas que se deve procurar
a lei de Deus, mas sim no coração do homem, onde sua mão
se dignou a escrevê-la. (ROUSSEAU apud DERRIDA, 1973, p.
19).

Assim, tendo analisado a metáfora da natureza como escritura divina na


obra de Rousseau, Derrida (1973) apresenta, entre suas conclusões, a
seguinte leitura:

Há portanto uma boa e uma má escritura: boa e natural, a


inscrição divina no coração e na alma; perversa e artificiosa, a
técnica, exilada na exterioridade do corpo. Modificação
totalmente interior do esquema platônico: escritura da alma e
escritura do corpo, escritura do dentro, escritura do fora,
escritura da consciência e escritura das paixões, assim como
há uma voz da alma e uma voz do corpo [...] (p. 21)

Em “A Bíblia na pedra”, Casaldáliga constitui um desvio maior da lógica


etnocêntrica, se considerarmos o poema em comparação ao texto de
Rousseau. Isso porque, como demonstramos, além de, metaforicamente,
inscrever a escritura no coração, assim como no espaço, o procedimento por
meio do qual isso se realiza vale-se de um único significante para designar a
escritura nesses dois lugares. Desse modo, fica reduzida a oposição entre o
externo e o interno, o mundano e o divino, o “eu” e o mundo, o cultural e o
natural. Nesse sentido, quando questionado acerca da perspectiva teológica
que professa, o poeta afirma que a teologia da libertação visa, “antes de tudo e
sobretudo, superar toda dicotomia” (CASALDÁLIGA, 1988, p. 15).
29

Em convergência com essa postura, verifica-se que, no poema, abre-se


a possibilidade de que o elemento mínimo da escritura, “apenas escrita”, não
seja, necessariamente, profano. Isso legitima o poder criador do homem, como
responsável por sua própria história e, de certo modo, inocenta a escritura. O
simples fato de o poema existir e de essa possibilidade ser nele enunciada,
mantém em permanente suspensão uma conclusão última acerca da essência
da escritura.
Verifica-se ainda que, no poema, a função de blasfêmia, profana, de que
a escrita pode se revestir, refere-se não à escritura em si (não implica uma boa
ou má escritura) e nem mesmo ao lugar (externo/interno) em que ela se
encontra. Pelo contrário, a condição de exterioridade da escritura decorreria de
se ter imbricado na composição da “rocha”, conforme o primeiro verso, a
“miséria”, o que é sinalizado com a preposição “de”.
Considerando a crítica ao etnocentrismo-logocentrismo, produzida no
âmbito dessa figura, a “miséria” seria efeito colateral do manufaturamento
inadequado da escritura. Assim, a “pedra”, enunciada no título do poema, não
corresponde à “rocha de miséria”, verificada no primeiro verso. A primeira é
essencialmente natural, a segunda é marcada por uma cultura de anulação das
necessidades do outro, uma cultura etnocêntrico-logocêntrica. Logo, a
possibilidade de uma má escritura, no poema em análise, não advém de uma
mudança na escritura, como atesta a reiteração do significante “Bíblia”, mas de
uma operação do homem sobre seus semelhantes e sobre a natureza (a
natureza da escritura, principalmente), a qual impele a escritura natural e
sagrada para a exterioridade do ser, em prejuízo deste.
Na medida em que a natureza é um texto escrito por Deus, a todos é
dado o direito à sua leitura e à interpretação, embora nem todos estejam
alfabetizados para esse exercício. Assim, no bojo de uma desconstrução do
logocentrismo, produzida no poema em análise, coloca-se, também a crítica à
ideia de um “Deus” dogmatizado, que seria uma “bíblia petrificada”. Trata-se de
uma crítica a conhecimentos estabelecidos como verdades absolutas, a qual
veremos em outras imagens na segunda parte deste capítulo. Isso explica
porque o poeta-padre legitima diversas concepções de sagrado, decorrentes
de diferentes culturas, reunidas em imagens da natureza. Tanto do ponto de
vista estético-literário, quanto no que se refere à postura social impressa na
30

obra, tal figura se mostra relevante para a compreensão da poética de


Casaldáliga.
No que tange a isso, analisemos, também, o poema a seguir, publicado
em 1978, na obra Antologia retirante.

CANÇÃO QUEBRADA POR UM CANARINHO MORTO

Ferido no olho, ferido na pata,


de um jeito covarde que mata,
não haverá quem o cure, a ferida é fatal.
__ “Água boricada.”
__ “Banhos de água e sal.”
__ “Não tem pomada
pra sarar pardal?”

Não pudemos salvá-lo ...


O estilingue de um menino
acabava de matá-lo.

__ “Que nada, gente, que nada!”


Ele não morreu de pedrada.
Morreu do mesmo pesar
de ver como agrada
a meninos e homens matar ...!

Cerrou os olhos, rendido


de tanto mirar com medo.
E interrompeu seu latejar
como um relógio de brinquedo.

Enquanto a chuva, chorando,


cegava a sacada do dia,
ele se estava transformando
em morte e em poesia.

Canarinho morto sem razão alguma,


pardo e amarelo como esta canção,
que o sol e a chuva e o vento e a lua
encontrem florido teu bom coração!

Teu coração moído por esta terra amiga


dará uma flor sonora, e outros pássaros netos
recolherão a herança de tua rota cantiga
para todos os meninos pobres e analfabetos ...

(CASALDÁLIGA, 1978, p. 87)

A assonância e a aliteração, em /a/ e /f/, respectivamente; o paralelismo


sintático interno ao primeiro verso, composto por duas sequências de verbos
no particípio passado, contração prepositiva mais substantivo; a relação de
31

causa e consequência, do primeiro para o segundo, e entre as orações que


compõem o terceiro; as rimas com colocações irregulares, primeiramente
emparelhadas, depois, intercaladas; e a inserção de diálogos na primeira
estrofe, conferem a ela um ritmo tenso, que percorrerá todo o poema, e sobre o
qual nos deteremos à frente. Nessa estrofe é apresentada a situação que dá
motivo ao poema: a morte de um pássaro “sem razão alguma”. Para essa
consideração preliminar, importamos de Tomachevski (1971) o conceito de
motivo associado, por compreendermos, em virtude da organização narrativa e
dramática mobilizada por Casaldáliga que, nesse nível de estruturação, a
escrita do poema é efeito da morte do pássaro, o que fica demonstrado a partir
da quinta estrofe.
Essas considerações iniciais revelam que o texto poético trata não
somente da degradação do meio ambiente, da confrontação entre
compreensões diversas da natureza humana, mas, também, de um modo de
apreender fatos do cotidiano, em estado bruto, e de sua transformação em
poesia. É, portanto, um texto metapoético. Essa transformação é o que permite
perceber que, para Casaldáliga, a natureza não é apenas escritura, mas
escritura poética.
Partindo-se dessa constatação e tendo como pressuposto que a palavra
“canção”, em ambos os momentos em que aparece no poema, remete à
escrita, verifica-se uma discrepância entre o título e o poema em si. Naquele, a
morte do pássaro equivale a uma quebra na “canção” – a forma passiva
analítica não deixa dúvida quanto ao fato de que a “canção” preexiste à morte.
Apesar disso, não representa qualquer informação sobre sua constituição e
origem. Revestem-se, pois, de ambiguidade. No poema, por outro lado, a ave
transforma-se em poesia, “canção parda e amarela”, em virtude do evento de
sua morte. Portanto, tal “canção” é derivada do fim da vida, ou seja, da morte.
Conclui-se, inicialmente, que a escrita da “canção” constitutiva do poema
difere da que constitui a “canção” mencionada no título, que essas escritas são
opostas, porque uma requer a vida e a outra tem como motivo associado a
morte, a violência. Tal conclusão é semelhante à que Derrida (1973)
apresentou acerca da obra de Rousseau, anteriormente citada, ou seja, há
uma boa e uma má escritura.
32

Partindo dessas evidências textuais, procuramos o processo figurativo


segundo o qual a escrita constitutiva da “canção” mencionada no título é uma
escrita da natureza e, ainda, que essa escrita é divina.
A despeito da diferença e da aparente oposição, textualmente
verificáveis, como no primeiro poema analisado (“A Bíblia na pedra”),
Casaldáliga utiliza um único significante a fim de referenciar as duas escrituras.
Tal recurso reduz a diferença entre uma escritura que, para se constituir,
requer a vida, e outra, que surge a partir da morte. Ao mostrar a vida e a morte
através do mesmo significante, Casaldáliga rompe com uma memória
discursiva.
Desde já, é possível antecipar, baseados nessa repetição e no fato de
que, segundo Octavio Paz (1976), a imagem poética tende a criar a unidade
dos opostos, sem, contudo, anular as diferenças existentes entre eles, que
morte e vida não se opõem no contexto do poema. Consequentemente, a
violência, representada pela “pedrada”, inscreve-se num lugar que não é o do
“mal” a ser combatido, e a escrita, por seu turno, é alçada a um status de
privilégio, porque tanto a vida quanto a morte seriam momentos da mesma
escritura.
Essa não oposição entre vida e morte é recorrente na obra de Pedro
Casaldáliga, podendo ser observada em outros poemas, como no “Hai-Kai do
sertão”, inserida em Versos Adversos (2006, p. 111):

Nascer e morrer
é fácil.
O difícil é viver.

Jogando com a temporalidade do verso e com sua pausa terminal, o


poeta sugere a antítese entre o início da vida e o seu fim. Tal figura se conclui
porque a oposição se mantém. Contudo, sob o segundo verso, surge a unidade
desses momentos opostos, que passam a ser sob o mesmo significante. As
diferenças se mantêm, porque a imagem poética não é redutora, mas elas não
inviabilizam a unidade, o efeito figurativo (PAZ, 1976).
Superada a oposição entre o princípio e o fim, o poema mobiliza outro
par de opostos, o “fácil” e o “difícil”, para também propor sua superação. Se
“nascer” e “morrer” ocupam o mesmo ponto, pois são fáceis, “viver”, que é o
33

“difícil”, não apenas se posiciona no intervalo entre o nascimento e a morte,


mas, paradoxalmente, refere-se ao percurso que se deve fazer para retornar ao
ponto de onde se partiu. Desse modo, não se pode falar de oposição entre
“fácil” e “difícil”, na medida em que se considera a noção de movimento e
circularidade que o poema imprime. “Difícil” é o caminho de retorno ao “fácil”.
Assim, se tomarmos o significante “vida” como índice de sacralidade e a
imagem do pardal como metonímia da natureza, é possível afirmar que a morte
do pássaro figura como uma “quebra” na escritura divina, que é a “canção”
mencionada no título. Por intertextualidade, pode-se demonstrar que a obra de
Casaldáliga, poética e teológica, autoriza os dois procedimentos. Isso não
excluiria outras leituras, como a de que, se o canto dos pássaros é um modo
de comunicação, a mensagem sonora fora interrompida quando uma das
partes foi alvejada por uma pedrada (a pedra com função instrumental de
aniquilamento). Assim, cessou o som, a canção foi quebrada. Contudo,
isoladamente, essa leitura não explica o caráter metapoético do texto.
Vejamos a segunda estrofe:

Não pudemos salvá-lo ...


O estilingue de um menino
acabava de matá-lo.

(CASALDÁLIGA, 1978, p. 87)

Trata-se de um terceto. Com versos irregulares e uma rima interpolada


pobre, tanto no que se refere ao critério gramatical quanto em relação ao
fônico, representa uma conclusão à primeira estrofe. Na primeira estrofe, o
recurso dramático requer o diálogo, logo, os travessões e as aspas marcam o
discurso de uma segunda pessoa, além do eu lírico. No primeiro verso desse
terceto, constata-se a morte; estes interlocutores inscrevem-se igualmente na
primeira pessoa do plural, evidenciada na conjugação do verbo “poder”, dando
conta da impotência humana diante da morte.
No segundo e no terceiro verso dessa estrofe, é apresentado o
responsável pelo ocorrido: “O estilingue de um menino/ acabava de matá-lo”.
Esse é o ponto de vista do eu lírico, fato que pode ser inferido em virtude da
ausência dos mencionados sinais de pontuação.
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Ao colocar “o estilingue” na condição de sujeito do verbo “acabar”,


Casaldáliga formula uma prosopopeia. Por meio dessa figura, personifica o
objeto e mobiliza a cultura e a história nele imbricadas, responsabilizando-as
pela morte. Subjaz à sua utilização uma concepção acerca da natureza
humana, a de que a humanidade pode ser ensinada, na medida em que se
isenta o “menino” de culpa. Em virtude desse significante, que remete à
inocência, pode-se afirmar que a isenção é completa ou que a inclusão do
indivíduo numa cultura de violência não o corrompe, mesmo depois de
consumado um ato de violência. Essa generalização é possível em virtude de o
poeta ter utilizado o artigo indefinido “um” para se referir ao “menino”. Isso
possibilita compreender que esse papel pode ser ocupado por qualquer ser
humano.
Essa concepção não atrela o que há de bom na espécie humana à
noção de uma natureza que desaparece no contato com certas culturas. Desse
modo, para Casaldáliga, a cultura não corrompe o homem, no sentido de fazê-
lo mau. Diverge, assim, de Rousseau, para quem o “o homem nasce bom, a
sociedade o corrompe.” Entendemos que, para Casaldáliga, algumas culturas
degradam os seres humanos, como degradam os outros elementos da
natureza. Nesse sentido, a violência não é “o mal”, mas é semelhante à
catástrofe natural que se produz em decorrência da degradação da natureza.
Williams (2011) traça um histórico do desenvolvimento das ideias sobre
a natureza. Segundo esse histórico, o sentido de “natureza” suscitado pelos
versos remete à noção de essência: “em latim, teria se dito natura rerum,
mantendo “natureza” para qualidade essencial e adicionando a definição das
coisas” (p. 91). Nesse caso, afirma-se que a “natureza” do homem, enquanto
espécie, não é má, violenta e assassina. A personificação, expressa, assim,
uma preocupação com os costumes que são passados entre as gerações.
A estrofe seguinte é uma quintilha na qual predomina a regularidade da
redondilha maior. Vejamo-la separadamente:

__ “Que nada, gente, que nada!”


Ele não morreu de pedrada.
Morreu do mesmo pesar
de ver como agrada
a meninos e homens matar ...!

(CASALDÁLIGA, 1978, p. 87)


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Essa estrofe representa uma exceção, em vista da irregularidade métrica


predominante no poema. Tal fato também aparece no aspecto fônico, no qual
ocorrem três rimas ricas. Nessa forma, inscreve-se o desdém à conclusão
apresentada pelo eu lírico nos versos anteriores, o que enseja sua entrada num
processo de reflexão acerca da natureza humana. Nesse contexto, o décimo
primeiro verso, “– Que nada, gente, que nada!”, não deve ser lido como um
eufemismo em relação ao ato de violência praticado, mas como um mecanismo
de argumentação contrário ao ponto de vista expresso na estrofe anterior.
Na perspectiva que se apresenta a partir de então, a razão da morte do
pássaro não fora a “pedrada” ou o “estilingue”, mas o fato de que “agrada / a
meninos e homens matar”. Justapondo-se essa ocorrência da palavra “menino”
à do nono verso, evidencia-se a imagem, o caráter metonímico de que se
reveste o termo no poema.
Através da repetição, recurso que tantas vezes parece tender à
redundância, mas que, segundo Alfredo Bosi (1977), é meio do qual a palavra,
temporalidade, vale-se para se constituir imagem, simultaneidade, o poeta
constrói uma metonímia para fazer referência à humanidade. A imagem surge
nítida pela repetição da ideia de totalidade manifesta na reiteração da
desinência de plural nas palavras “meninos” e “homens”. Tomando a
humanidade como referente, esses termos tendem à redundância. Contudo, na
apreensão do desenvolvimento humano, da meninice à vida adulta, coloca-se
outra ideia de totalidade – a da existência humana. Entre “meninos” e
“homens”, inscreveu-se apenas o tempo; há, portanto, uma repetição, da
mesma espécie que se estabelece entre os ecos de uma rima. Para além de
constituir a figura, esse recurso agrega sentido, como explica Bosi:

Entre a primeira e a segunda aparição do signo correu o


tempo. O tempo que faz crescer a árvore, rebentar o botão,
dourar o fruto. A volta não reconhece, apenas, o aspecto das
coisas que voltam: abre-nos, também, o caminho para sentir o
seu ser. [...] A volta é um passo adiante na ordem da
conotação, logo na ordem do valor. Os pousos se parecem uns
com os outros. São necessários ao fôlego do viajor, mas na
marcha cada passo, mesmo o que leva ao pouso, é um novo
passo. (BOSI, 1971, p. 31)
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Assim, “meninos e homens”, no contexto da estrofe e da figura em


questão, referem-se à noção de que a espécie humana é má desde o momento
em que nasce à maturidade completa, em oposição, inclusive formal, ao terceto
antecedente.
A noção de totalidade que a metonímia visa abarcar quando se remete
às partes é importante para a compreensão do poema. Observemos, então, a
relação entre a palavra terminal do terceiro verso da estrofe em questão e as
iniciais do seguinte, são elas: “pesar/ de ver”.
“Pesar”, na condição de substantivo, refere-se à tristeza; na de verbo
transitivo, ao ato de medir a massa de um corpo qualquer, nesse sentido, é
sinônimo de “examinar”; ainda nessa qualidade, refere-se à ação, intelectual e
física, de sobrecarregar e entristecer, respectivamente, algo ou alguém. Tais
leituras podem ser comportadas pelo poema, uma vez que ele ressalta tanto a
tristeza frente à morte, tomando-a por si mesma, quanto constitui uma análise
dos motivos que levaram ao fim de uma vida. Além de referir-se a uma
operação lógica, e a um estado emotivo, essa palavra imprime conotação tátil.
A possibilidade de que esse termo possa ser lido nesses diferentes sentidos e
de que estes convivam no poema, sem que disso resulte a ruptura de sua
coerência, pode ser entendida como esboço de uma ampla sinestesia, que
retomaremos adiante. Por enquanto, basta dizer que “pesar de ver” constitui
uma sinestesia entre tato e visão.
Por outro lado, considerada na condição de substantivo, a relação que
“pesar” mantém com “agrada”, significante terminal do verso seguinte, constitui
uma antítese. Essa figura coloca em evidência a amarga e desconcertante
unidade, ou seja, que um mesmo acontecimento, seja ele qual for, pode
funcionar segundo lógicas distintas e até opostas. Que a violência gratuita, no
caso, é a tristeza de uns e a alegria de outros.
Essas figuras, sinestesia e antítese, ocorrem no espaço de dois versos.
Isoladamente, a antítese, na medida em que envolve os pares
felicidade/tristeza, funciona de modo a abarcar a totalidade dos sentimentos,
repetindo um mecanismo próprio à metonímia. Considerando-se a relação que
tais imagens mantêm entre si no contexto da estrofe, verifica-se que uma
articula sentidos concretos, sensíveis, corpóreos, e a outra mobiliza sentidos
intelectuais, abstratos, imateriais. Estes se relacionam ao ato de “pesar”, no
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sentido de examinar. Consequentemente, constitui-se uma segunda sinestesia,


mais ampla, porque funde o concreto e o abstrato para tratar dos fatos
narrados, a morte do pássaro como condição de escrita do poema.
No contexto da obra, tanto poética quanto teológico-científica, de
Casaldáliga, essa relação adquire importância fundamental para a
compreensão do homem e do mundo, como adverte Alfredo Bosi no prefácio
que faz a Versos Adversos (2006). Nesse sentido, concreto e abstrato não se
opõem, assim como, analogamente, os conceitos de espírito, Espírito de Deus
e espiritualidade não se opõem àquilo que se pode chamar matéria ou material.
Para o poeta, toda ação ou criação humana, toda realidade, possui uma
dimensão espiritual (CASALGÁLIGA, VIGIL. 1992). Toda possibilidade de
compreensão integral da realidade passaria, necessariamente, pela
compreensão dessa dimensão e de sua não oposição à matéria, como se pode
verificar, por intertextualidade, na obra Espiritualidad de la Liberación
(CASALGÁLIGA, VIGIL, 1992), no tópico “La integralidad: sin dicotomías y sin
reducionismos”:

Para la espiritualidad de la liberación la realidad, siendo


dialéctica, es unitaria e integral: •no está dividida verticalmente
(lo natural y lo sobrenatural, lo material y lo espiritual, la historia
profana y la historia sagrada); •ni horizontalmente (este mundo y
el otro, el tiempo y la eternidad, la historia y la escatología); •ni
antropologicamente (el individuo y la sociedad, la persona y la
comunidad, lo interior y lo exterior, lo privado y lo público, lo
religioso y lo político, la falsa alternativa entre la conversión
personal y la transformación estructural). No es
trascendentalista, pero sí trascendente; no es inmanentista, pero
sí acepta y vive el compromiso en la inmanencia. La dimensión
de la trascendencia se le hace «trasparencia» en la inmanencia.
Ni es espiritualista, con un Dios sin Reino, ni es materialista, con
un Reino sin Dios. Vive la síntesis integrada que Jesús vivió y
nos reveló: por el Dios del Reino y el Reino de Dios. (p. 141.)

Tais considerações servem-nos para dizer que a sinestesia, na


qualidade de imagem poética, formula a fusão entre sentidos corpóreos e
sentidos intelectuais, entre concreto e abstrato, imanência e transcendência.
Ademais, coopera para que a experiência do poético se dê em termos de um
conhecimento universal e integrado acerca daquilo que se narra. Desse modo,
embora apresente elaboração diversa e até sutil se comparada às abundantes
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prosopopeias e à metonímia, colabora para a formação do sentido que esta


visa constituir. Na medida em que ocorre a fusão, a sinestesia revela que a
imanência é a transcendência e vice-versa, ideia que, fora da imagem,
somente pode formular-se e conceber-se como contradição. A esse respeito,
retomamos as ponderações de Octavio Paz (1976):

Cada imagem – ou cada poema composto de imagens –


contém muitos significados contrários ou dispares, aos quais
abarca ou reconcilia sem suprimi-los. [...] Épica, dramática ou
lírica, condensada em uma frase ou desenvolvida em mil
páginas, toda imagem aproxima ou conjuga realidades
opostas, indiferentes ou distanciadas entre si. Isto é, submete à
unidade a pluralidade do real. O poeta nomeia as coisas: estas
são plumas, aquelas pedras. E de súbito afirma: as pedras são
plumas, isto é aquilo. Os elementos da imagem não perdem
seu caráter concreto e singular: as pedras continuam sendo
pedras, ásperas, duras, impenetráveis, amarelas de sol ou
verdes de musgo: pedras pesadas. E as plumas, plumas:
leves. A imagem resulta escandalosa porque desafia o
princípio da contradição: o pesado é o ligeiro. (p. 38)

Se, na segunda estrofe, Casaldáliga personifica o “estilingue”, a


prosopopeia não deve ser entendida num sentido unicamente retórico, uma vez
que, como dissemos, toda ação ou criação humana, toda a realidade, para
Casaldáliga, possui espiritualidade, nesta acepção:

Más de una vez utilizaremos en vez de espíritu o espiritualidad


ciertos sinónimos relativos (sentido, conciencia, inspiración,
voluntad profunda, dominio de sí, valores que guían, utopia o
causa por las que se lucha, talante vital) [...] Podemos entender
la espiritualidad de una persona o de una determinada realidad
como su carácter o forma de ser espiritual, como el hecho de
estar adornada de ese carácter, como el hecho de vivir o de
acontecer con espíritu, sea ese espíritu el que fuere.
(CASALGÁLIGA; VIGIL, 1992, p. 13)

Dessa maneira, a figura em questão recupera a cultura relativa ao ato de


violência, porque flagra um aspecto invisível do real. Revelando a
espiritualidade, sentido e intenção, que compõe o “estilingue”, demonstra que o
real é a fusão entre material e imaterial. Assim, embora a segunda e a terceira
estrofes apresentem pontos de vista opostos acerca da origem e da motivação
dos fatos narrados – o fim da vida, simultâneo à quebra da canção, e o
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acontecimento da escrita poética – pode-se observar que o texto poético reúne


tais posicionamentos e cria uma característica comum a eles, ao chamar
atenção para uma realidade que é, simultaneamente, dual e una.
Um motivo para que isso ocorra é o de que, na poesia, as palavras não
dividem, regulam ou limitam o sentido umas das outras, mas são divididas
entre as imagens no poema. Assim, a mesma palavra coopera para a formação
de mais de uma imagem poética, como na pintura, quando um mesmo objeto
aparece em mais de um plano, ou sob luzes diversas.
Outro motivo é o fato de, nas estrofes que se seguem, o eu lírico
abandona o diálogo acerca de quem ou o quê seriam os
responsáveis/culpados pela morte do pássaro e passa a tratar do fato em si, o
que pode ser entendido como uma fusão dos opostos na imagem da morte, ou,
ainda, como uma maneira de inocentar a humanidade evitando a emissão de
um juízo2.
Em procedimentos formais como esse se demonstra o que é literatura,
segundo Roland Barthes (2004). Conforme explica ele, na língua, “servidão e
poder se confundem inelutavelmente” e acrescenta que, “infelizmente, a
linguagem humana é sem exterior” (p. 15). Desse modo, Barthes (2004) afirma
que todas as nossas relações comunicativas pautam-se sobre “discursos de
poder”: “chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por
conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe” (p. 10). A exceção a essa
regra é a literatura: “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico

2
Ilustra bem esse procedimento a narrativa bíblica que engendrou a máxima: “quem não
tem pecado, que atire a primeira pedra”. Citamos por achar interessante a intertextualidade que
a estrutura do poema suscita.
“E os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério; e, pondo-a no
meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando. E na lei nos
mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-
o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra.
E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está
sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela. E, tornando a inclinar-se, escrevia na
terra. Quando ouviram isto, redarguidos da consciência, saíram um a um, a começar pelos
mais velhos até aos últimos; ficou só Jesus e a mulher que estava no meio. E, endireitando-se
Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus
acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu
também te condeno; vai-te, e não peques mais.” (Evangelho segundo João, Cap. 8, versos 8 a
11).
No próximo capítulo, veremos o auto “Deus nasce na casa do vaqueiro”, em que,
formalmente, Casaldáliga procede de modo semelhante.
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que permite ouvir a língua fora do poder [...] eu a chamo, quanto a mim:
literatura.” (p. 15).
Nessa ótica, ao abandonar o diálogo ou a dialética acerca da culpa pela
morte do pássaro, o poema escapa à possibilidade de engendrar um erro,
culpando a quem quer que seja, deslocando-se, portanto, do discurso do
poder. Assim, não classifica os posicionamentos apresentados como corretos
ou não. Subverte, desse modo, o poder que existe na língua e, escapando à
ordem classificativa que é a linguagem (BARTHES, 2004), mantém em
permanente suspensão uma conclusão última acerca da culpa.
Tal fato, em nosso entendimento, não implica numa neutralidade do
poeta quanto à situação de destruição de natureza que se processa no poema.
Isso porque, conforme se depreende de Barthes (2004), a opção pelo discurso
literário é o mais genuíno modo de luta contra o poder, uma vez que, vencer o
poder na linguagem é derrotá-lo no campo que lhe garante engendrar-se não
apenas na história e na política, mas em todos os aspectos da vida humana.
Na sequência da análise, percebe-se que a quarta e a quinta estrofes
paralisam a progressão temporal do relato, o aspecto narrativo do poema,
como se pode observar:

Cerrou os olhos, rendido


de tanto mirar com medo.
E interrompeu seu latejar
como um relógio de brinquedo.

Enquanto a chuva, chorando,


cegava a sacada do dia,
ele se estava transformando
em morte e em poesia.

(CASALDÁLIGA, 1978, p. 87)

Cessando a progressão, realizam um movimento que é próprio à poesia.


Octavio Paz (1976) explica que o poema “apresenta-se como um círculo ou
uma esfera” (p. 12), que é um universo “no qual o fim é também um princípio
que volta” (p. 12). Entendemos que a relação que a segunda, a quarta e a
quinta estrofes mantêm entre si evidencia esse movimento de retorno sobre si
mesmo que é o poema. Nesse caso, isso se dá não em virtude da repetição de
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um fonema, de uma determinada cadência, ou sequer de uma ideia, mas


decorre da narração de um mesmo fragmento de tempo, sob prismas
diferentes. Essas estrofes retomam o instante que antecede imediatamente a
morte do “passarinho”, realizando o movimento de voltar ao mesmo ponto que
é característico do texto poético.
Nessa perspectiva, na segunda estrofe, o verbo “acabar”, conjugado na
terceira pessoa do pretérito imperfeito é, em si mesmo, contraditório porque se
refere a um fim, no caso, à morte, que não cessa de acontecer, e que, portanto,
não é um fim: “o estilingue” “acabava de matá-lo”. Tal recurso diz respeito tanto
à compreensão de que a violência, num sentido geral, não cessa de acontecer,
quanto pode ser lido como um indício formal de que o momento da morte será
retomado nas estrofes seguintes, conforme já expresso. Portanto, nessa
primeira focalização, o fim da vida apresenta-se como algo inevitável, que
resiste a todos os esforços humanos.
Na quarta estrofe, de modo comovente, transparece a fragilidade da vida
e o corpo, aquilo que pulsa, em seu caráter transitório, assume valor de
patético na seguinte comparação: “E interrompeu seu latejar / como um relógio
de brinquedo”. A quinta estrofe acrescenta um elemento novo, se
considerarmos o andamento do texto poético, não o desta análise: o fim da
vida ocorre concomitantemente à escrita do poema. Se a morte é o motivo da
escritura do poema, este parece ser uma tentativa de escapar a ela.
Compreendemos esse triplo movimento de apreender e apresentar a
hora da morte, enfatizando aspectos que lhe são diversos, como a tentativa de
abarcar e expor o fato narrado em sua totalidade.
Nesse ponto da leitura, torna-se possível compreender que o significante
“canção”, no título, não se refere apenas ao poema, que se deseja inscrito
nessa forma composicional de texto poético. Primeiramente, porque a partir
dos versos “ele se estava transformando / em morte e em poesia”, relemos as
estrofes que os antecederam, esforçando-nos, a fim de depreendermos delas
esse duplo processo de transformação sofrido pela vida/pássaro em virtude de
um ato de violência. E, segundo, porque essa transformação não implica numa
perda. Ao contrário, as características do “pardal” são “herdadas” pelo poema.
Nesse sentido, a canção do poeta não difere da canção da natureza,
sugerindo-se que aquela é uma continuação desta. A “canção” do poeta é
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“parda e amarela”, porque essa era a cor do pássaro, conforme o segundo


verso da sexta estrofe.
A dupla transformação sofrida pelo passarinho é apreendida tanto na
narração do fim da vida quanto pelo ritmo poético, elemento primordial para a
poesia (PAZ, 1976). Ou seja, as mesmas palavras e imagens são a
transformação em morte, apreendida pela narração, e a transformação em
ritmo, apreendida pelo poema.
O ritmo revela-se no movimento de alternância, mantido por Casaldáliga
ao longo de todo o poema. Surge, assim, tanto da relação que se estabelece
entre sílabas fracas e fortes, ou breves e longas, quanto das que se
estabelecem entre vida e morte; entre silêncio, “canção quebrada”, e som,
“canção” refeita; entre o “eu” e o “tu”, reclamados pelo caráter dramático do
poema; entre o sensível e o inteligível, em que implicam as prosopopeias; entre
o relato e a poesia; entre a natureza e a cultura. No que se refere às
implicações dessa formação rítmica, destacamos as considerações de Alfredo
Bosi (1971).

A alternância é inerente ao processo dialético do real. O lado


fenomênico dos opostos que se alternam cedo se impôs à
observação dos filósofos. Heráclito, poeta pensador à escuta
da Natureza e do seu discurso interno, ouviu, na unidade do
cosmos, o ritmo dos contrários [...] Todo ser vivo passa por
estados ou movimentos que só consegue nomear dentro de um
sistema de opostos relativos: o frio é frio em relação ao quente;
o lento é lento em face do rápido; e vice-versa. Ora, o ritmo
cava na matéria viva justamente a figura da passagem, que é a
mudança de estado. Feita a mudança, há nova passagem, com
a volta a estados anteriores: o que é o papel da repetição.
Assim, o movimento operado pelo ritmo se faz: a) do mesmo
para o outro (passagem para a alteridade), b) do outro para o
mesmo (passagem para a repetição). O movimento que muda
as coisas para, depois, reproduzi-las, e que as reproduz para
de novo mudá-las, rege-se, no fundo, por um esquema cíclico
(p. 90, 91).

Mediante essa compreensão do que seja ritmo, atesta-se que a trama do


fim da vida, da qual decorre a quebra na canção, é também a do nascimento
do poema.
Essa unidade que é, simultaneamente, processual e estática, aparece
nitidamente na última estrofe, quando o processo bioquímico de decomposição
é metaforizado, confundindo-se com nascimento/composição do poema.
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Assim, os versos “Teu coração moído por esta terra amiga / dará uma flor
sonora, e outros pássaros netos” referem-se ao ciclo natural de decomposição
orgânica que fertiliza o solo, possibilitando o crescimento das plantas.
Isoladamente, “flor sonora” figura como o poema que nasce a partir da
circunstância narrada, a qual lhe serviu de “adubo”. Refere-se, também, a um
conceito de poema que coloca em evidência o que é da sua especificidade – a
musicalidade, característica que herda do pássaro. Os “pássaros netos”
referem-se, por sua vez, tanto à continuação da espécie quanto, num sentido
mais amplo, à continuação de toda a vida.
É importante frisar que a utilização dos termos “sonora”, “pássaros” e
“cantiga”, no quarteto final, retesa ainda mais o já complexo campo semântico
inscrito pela ambiguidade do significante “canção”, reforçando a indissociação
e a alternância rítmica entre vida e morte. Assim, o poema constitui-se como
uma imagem do ciclo natural da vida e da morte. A escrita, por sua vez, figura
como o elemento que possibilita a articulação em unidade das diferenças
existentes entre esses momentos, tanto em nível formal, quanto de conteúdo.
Logo, no regime de verdade concebido pelo poema, ela é um elemento
essencialmente natural, um fato do qual nenhum ser humano pode se esquivar,
mesmo que o desconheça.
A partir dessa conclusão, pode-se afirmar que a natureza figura como
escrita, como poema do qual fazem parte “o sol e a chuva, o vento e a lua”
(CASALDÁLIGA, 1978, p. 87), a vida e a morte. Ao concluir a leitura da estrofe,
percebe-se que o fim triste da ave não se dissipou apenas em virtude de sua
reintegração à vida, mas também porque houvera se reconstituído em
escritura.
Tal compreensão nos permite interpretar a última estrofe de modo
coerente com a postura social impressa nos poemas de Casaldáliga,
cientificamente atestada por diversos pesquisadores. Observando-a, verifica-se
que o eu lírico, dirigindo-se ao canarinho, afirma: “os pássaros netos”
receberão uma herança de sua cantiga de “rota”, que significa “direção”. Ou
seja, cantiga direcionada “para todos os meninos pobres e analfabetos...”.
Desconsiderando-se a metáfora da natureza como escritura, poder-se-ia
afirmar que o conteúdo engendrado pela “canção” é direcionado às pessoas
desprovidas de riqueza e de cultura letrada, as quais seriam protagonistas de
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ações de violência, e que o poema almeja a retirada dessas pessoas de tal


condição, através da educação, da alfabetização.
Subjaz, de fato, no poema, uma preocupação com aquilo que se ensina
às crianças, conhecimento que, incorporado pela sociedade, passa de geração
para geração, como o “estilingue”. Contudo, o termo “analfabetos” não assume
sentido escolar e portanto, científico. Da mesma forma, “pobres” não se refere
às pessoas que não possuem capital financeiro. Se assim fosse, o poema não
apresentaria coerência externa com sua emergência contextual, nem interna, já
que em todo ele o sentido de escritura remete a um universo de questões mais
amplo do que o suscitado pelo termo “alfabetização” em sentido escolar. Uma
leitura mais condizente com o que se constrói no conjunto dos versos é a de
que esses “analfabetos” são aqueles que não sabem ler a natureza e
reconhecer nela o valor da vida, sendo, por isso, também “pobres”.
De fato, a “canção” tem por propósito criar um conhecimento, uma
capacidade de ler e escrever, que impossibilite a destruição da natureza e, por
conseguinte, da humanidade desde sempre inscrita nela. O conhecimento
produzido pelo poema, como se observou, não se sustenta sobre a imposição
de julgamentos e de posturas, como se depreende do deslocamento em
relação ao discurso da culpa, mas engendra uma “consciência emancipada e
justa” (SOUZA, REIS, 2014, p. 16). Logo, está direcionado a todas as pessoas
que comungam de um saber que autoriza, mesmo que tacitamente, a violência.
Desse modo, o processo de transformação/decomposição que o “pardal”
sofre a partir do momento em que é alvejado até se refazer em poesia pode ser
entendido como um processo de tradução. No presente caso, em conformidade
com Derrida, no texto Teologia da tradução (2005), tal processo define o ato ou
efeito de reconhecer a destinação final do conhecimento, que é um “todo”
manifesto tanto como Deus quanto como natureza. Esse “todo” permitiria ao
ser humano desenvolver a consciência de comungar de uma essência divina.
Assim, visando formular um saber que se deseja integral, o poema
aspira traduzir a escrita que a natureza é. Simultaneamente, formula uma
crítica a todo o conhecimento que engendra práticas de violência, ao afirmar
que o “canarinho” foi morto sem “razão alguma”. Chama de “analfabetos” e
“pobres” àqueles que destroem a natureza e seus semelhantes humanos. O
poeta demonstra que não se pode tratar de crise ambiental sem levar em
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consideração as estruturas econômicas e as de produção e legitimação do


conhecimento que a possibilitam. Nesse sentido, o poema reverbera a
afirmação de que “a crise ambiental é uma crise da razão, do pensamento, do
conhecimento” (LEFF, 2009, p. 18). Constitui-se, assim, como uma crítica ao
logos, como também verificamos no poema “A Bíblia na Pedra”.
Diante disso, o que cria Casaldáliga quando afirma que a natureza é
uma escrita, como nos poemas analisados? O que significa dizer que a escrita
poética não é diferente da natureza? O que quer dizer “dou o verso, como
davam seu leite as vacas branquinegras que meu pai ordenhava, de
madrugada e ao entardecer; como dá o seu pregão o chico-preto de nosso
quintal” (1978, p. 15)?
Em ambos os poemas analisados neste tópico, percebemos que as
imagens da natureza como texto constituem uma crítica à ciência, à verdade,
ao logocentrismo. Pautam-se na compreensão de que estes fragmentam a
realidade e criam nela oposições excludentes, engendrando violências. No
primeiro caso, chegamos a isso por uma historicização da figura consoante à
desconstrução do logocentrismo empreendida por Derrida (1973) e através de
uma reflexão acerca de como Casaldáliga recria essa imagem. No segundo,
essa crítica se configurou porque o poema busca constituir um conhecimento
pleno acerca da situação que narra, através de uma articulação rítmica dos
opostos natureza e cultura, dentre outros. Também porque, no bojo desses
opostos, não emite um juízo, uma verdade, escapando, assim, ao erro. E
ainda, porque chama “analfabetos” àqueles que não leem a natureza. Não ler a
natureza é tirar uma vida, ação que não contem “razão alguma”.
Isso significa que Casaldáliga propõe uma inseparabilidade fundamental
entre natureza e cultura em sua poética, como veremos nos próximos capítulos
por outros vieses. Diríamos, então, que isso se torna significativo em suas
imagens porque nossas sociedades separam natureza e cultura,
categoricamente.
Todavia, não é bem isso o que fazemos. Para designar o modo como
socialmente criamos relações entre temas diversos e como vivemos sob a
égide dessa diversidade interligada, Bruno Latour (1994), no trabalho
denominado Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica, utiliza
46

o termo “híbridos”. Em entrevista concedida a Renato Sztutman e Stelio Marras


(2004), afirma:

Usei o termo “híbrido” para começar a discussão, ele descreve


bem o fato de que quando você fala em garrafas de água
mineral, por exemplo, você vai encontrar a legislação, os
problemas de poluição e a água vai se por a diferir, a se
complicar, deixando de estar situada como um matter of fact 3.
(p. 405)

Esse movimento provocado pela hibridação ele chama, também, de


“rede” (1994), conceito que ilustra com a imagem mítica do “fio de Ariadne”:
“tanto à esquerda quanto à direita, as finas redes traçadas pelas pequenas
mãos de Ariadne continuam a ser mais invisíveis do que aquelas tecidas pelas
aranhas” (1994, p. 10). Portanto, o autor entende que cultura e natureza não
são elementos que, socialmente, aparecem separados, mas relacionam-se
ainda que um por um “tênue fio” (1994). A fragmentação do fio que provoca a
separação entre natureza e cultura, dentre outras, explica Latour (1994), ocorre
somente na ciência, que nega a evidência das redes (p. 8).
Definindo a lógica dessa fragmentação, ele afirma o seguinte: “Os
críticos desenvolveram três repertórios distintos para falar de nosso mundo: a
naturalização, a socialização e a desconstrução” (1994). O grupo da
“naturalização” engloba o que Latour (1994) chama de ciências do real – são
aquelas que tratam dos fenômenos químicos, físicos e biológicos nos mais
diversos níveis. Seriam as ciências da natureza. As ciências humanas entram
no repertório da “socialização” e as da linguagem no da “desconstrução”.
Isoladamente, cada um desses repertórios constitui um potente instrumento de
análise, mas juntos anulam-se mutuamente, afirma Latour (1994). E, por ser
assim, a nossa ciência não dá conta da realidade em suas redes:

O buraco de ozônio é por demais social e por demais narrado


para ser realmente natural; as estratégias das firmas e dos
chefes de Estado, demasiado cheias de reações químicas para
serem reduzidas ao poder e ao interesse; o discurso da
ecosfera, por demais real e social para ser reduzido a efeitos
de sentido. Será nossa culpa se as redes são ao mesmo tempo
reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas
como a sociedade? (p. 12)
3
“Questão de fato”.
47

Porque a ciência apresenta essa incapacidade, Latour (1994) afirma que


ela está em crise.
O poema “Canção quebrada por um canarinho morto” também reverbera
a afirmação de uma crise do saber. Podemos dizer que, nele, Casaldáliga
sobrepõe os três repertórios de conhecimento de que trata Latour (1994).
Assim, a investigação acerca da morte do “passarinho” evidencia que esse
acontecimento é parte da natureza, uma pausa no discurso, e algo relativo à
sociedade.
Se um saber é, simultaneamente, capaz e incapaz de constituir-se como
parâmetro de julgamento, avaliação e classificação de um fenômeno sobre o
qual se detêm, podemos dizer que ele é nulo? Partamos dessa indagação para
refletir sobre as questões do próximo tópico.

1.2 A PRESENÇA DO SAGRADO NAS IMAGENS DA NATUREZA

ECOLOGIA SUPREMA

É proibido poluir
a imagem de Deus,
que é o homem.

(CASALDÁLIGA, 1984, p.27)

Por meio de metáforas, o poema acima assinala um conhecimento


acerca do respeito dos humanos pelos seus semelhantes e pela natureza.
Jogando com a temporalidade da escrita (BOSI, 1977, p. 32), o título, como
também o primeiro e o segundo versos, criam a expectativa de que esse
conhecimento é uma grande revelação, um ensinamento, um conceito ou
mesmo uma lei. Todavia, o terceiro completa o sentido rompendo com essa
expectativa e trazendo à luz um saber de aparente simplicidade.
A aproximação entre os termos “ecologia” e “suprema” abre as portas
para essa leitura. “Ecologia” é uma palavra do campo semântico do discurso
científico. Enquanto ramo da ciência, especifica o estudo dos “relacionamentos
de todos os seres vivos e não vivos entre si e com seu entorno” (BOFF, 2006,
p. 9). A partir desse significante, inicia-se a sugestão de que o poema se
48

constituirá em um conceito, um ensinamento ou lei da natureza, algo supremo


e imutável. Inicialmente, é designação de ciência.
Esse termo remete, ainda, à ideia de “natureza” por meio da noção de
interação entre os organismos vivos que ela contém. Na contemporaneidade,
natureza se chama ecologia (BARBOSA, 2005, p. 63). A etimologia reforça
essa leitura. “Eco”, do grego “oikos”, significa lugar em que se habita, ou
moradia (BOFF, 2006, p. 9). Todavia, como já dissemos, o termo ecologia
denota não o estudo do lugar, especificamente, mas o estudo das relações que
se passam em dado lugar. Pode-se dizer que o vocábulo se forma a partir de
um raciocínio metonímico. Tratar-se-ia de uma metonímia que emprega um
termo especificador de lugar (continente) para dizer, também, dos seres que
nele habitam (contidos). Assim, temos um deslocamento em que “natureza”
designa um lugar e uma ciência, mas, não apenas. Nomeia, também, as
relações entre seres.
“Suprema”, por sua vez, remete a uma natureza que é o poder máximo,
visto que o termo é também uma referência à divindade. Consequentemente,
faz rejeitar qualquer noção de fragmentação, a despeito das várias ecologias
que sugiram desde que o termo fora utilizado pela primeira vez, em 1869
(BOFF, 2006, p. 9). Desse modo, no título do poema, ciência e religião
aproximam-se como instituições munidas de poder para criar verdades.
A esse respeito, Raymond Williams (2011) explica que a natureza é
representada, na maior parte da história, como algo superior ao homem, como
algo divino, portanto, pertinente à religião. Conforme o mesmo autor, tal ideia
se altera a partir das grandes conquistas mercantilistas do século XIV e XV.
Nesse período, no contexto cultural europeu, o ser humano passa a se ver
como não pertencente à natureza, mas, superior a ela, com o poder científico
de observá-la. Sente-se, por isso, no direito de explorá-la, o que culmina no
capitalismo predatório, devastador tanto de naturezas quanto de culturas.
História que depreendemos, também, das considerações de Keith Thomas:

Ao traçar uma sólida linha divisória entre o homem e os


animais, o principal propósito dos pensadores do início do
período moderno era justificar a caça, a domesticação, o hábito
de comer carne, a vivissecção (que se tornara prática científica
corrente, em fins do século XVII) e o extermínio sistemático de
animais nocivos e predadores. Mas essa insistência tão grande
49

em distinguir o humano do animal também teve consequências


importantes para as relações entre os homens. Com efeito, se
a essência da humanidade era definida como consistindo em
alguma qualidade específica, seguia-se então que qualquer
homem que não demonstrasse tal qualidade seria humano sub-
humano ou semianimal. [...] No início da era moderna, havia na
Inglaterra grupos exclusivos, como a Família do Amor, de
quem se dizia no período elisabetano que “qualquer um que
não pertença à sua seita é visto por eles como um animal sem
alma”. Mas igual atitude de exclusão do outro se notava, em
escala ainda maior, face aos povos “primitivos” que não
dispunham de atributos como os que também faltavam aos
animais: tecnologia, linguagem inteligível, religião cristã. (2010,
p. 55)

Tais momentos parecem estar paradoxalmente reunidos no título do


poema, na sua força coercitiva de poder. Isso reitera a sua sugestão de lei.
Será natural, divina, ou da ciência? Diante do exposto, será mesmo lei?
Uma resposta a esse questionamento deve, certamente, considerar que
o “Deus” dos monoteístas teve na natureza, enquanto princípio singular,
abstrato e, não raramente, personificado, uma “concorrente” (WILLIAMS, 2011,
p. 92). A história dessa concorrência é antiga e intensa, acrescenta o teórico.
Nesse sentido, ele explica que, na Idade Média, a diferença entre esses
princípios reguladores da vida, por assim dizer, foi preservada numa fórmula
geral “Deus é o primeiro absoluto, mas a Natureza é sua ministra e deputada”
(WILLIAMS, 2011, p. 92). Já no século XIX, no âmbito das discussões sobre a
Teoria da Evolução, mesmo aqueles que descartavam a ideia de “Deus”,
reconheciam a “natureza” como apta a “selecionar”, no sentido cognitivo desse
termo, numa espécie de personificação. A esse respeito, Sidney Barbosa
(2005, p. 63) afirma que o movimento ecológico surgiu do abalo que a explosão
da bomba atômica provocou nos “pilares-dogmas” da Ciência, que ele chama
“religião da era burguesa”.
Vejamos como essa relação historicamente complexa se resolve no
poema e o que ele expressa em função disso.
O primeiro verso, com a aliteração da consoante /p/, que é impressora
de uma sensação sonora explosiva e de uma tatilidade pesada, segundo
Monteiro (1991, p. 102), alternada pela também bilabial, explosiva e pesada,
/b/, reforça esse poder, essa ideia de supremacia que é, ambiguamente, da
natureza, da ciência e de “Deus”. Em outras palavras, em diálogo com título,
50

essa sonoridade reforça a sugestão e a expectativa de que o poema é, ou


apresenta, uma lei.
O sentido imperativo do primeiro verso pode ser apontado, ainda, no
emprego das vogais: “É proibido poluir”. A primeira vogal, aberta, /e/; as
demais, /i/ /o/ /u/, segundo Monteiro (1991, p.102), podem indicar
estreitamento, arredondamento, fechamento, respectivamente. Para nós, no
contexto do poema, sugerem a demarcação de limites. Assim, observamos que
a estrutura sonora do verso relaciona-se com o sentido que o poema deseja
imprimir. Além de imperativo, o verso inicia-se com o verbo ser, conjugado no
presente do indicativo em terceira pessoa do singular. Tal construção é própria
de quando se busca criar conceitos.
Prosseguindo, o segundo verso, “a imagem de Deus”, encerra em si
uma supremacia – a identidade visual da divindade. Tal verso recupera em si a
força significativa constante no título. Isso porque a imagem do Deus supremo
relaciona-se agora, inegavelmente, a uma natureza suprema ou a uma
“ecologia suprema”. Isso faz supor a revelação do mistério – que pode ser a
própria natureza divina, a maior de todas as leis da natureza, ou a ciência
suprema.
A partir desse segundo verso, podemos tratar com mais propriedade
tanto do ritmo quanto das imagens sugeridas pelo poema. Os versos são
irregulares em sua métrica e apresenta aliterações e assonâncias.
De acordo com Alfredo Bosi (1997), reiterar um som significa realizar
uma operação dupla e ondulante: ida e vinda, volta e ida. Bosi explica que essa
é uma estratégia pela qual o discurso poético busca evocar imagens, pela
recuperação da sensação de simultaneidade que elas causam. Tal processo é
amplamente utilizado na construção do poema, principalmente na reiteração
dos sons e do ritmo.
Entretanto, a camada das imagens suscitadas em virtude dele é fluida,
fugidia, sem contornos definidos. Isso não decorre de uma falta de qualidade
estética dos versos. Pelo contrário, provém da qualidade com que articula
imagens cujas predicações se relacionam intensamente, conforme explica
Raymond Williams (2011):
51

Eu já mencionei a Natureza como ministra de Deus. Conhecer


a Natureza implicava em conhecer a Deus, embora houvesse
uma controvérsia radical com relação aos meios para esse
conhecimento: se pela fé, pela especulação, pela razão
correta, ou pela investigação e experimento físico. Mas a
Natureza, ministra ou deputada, precedeu, ou foi amplamente
sucedida, pela Natureza do monarca absoluto. Essa é uma
característica de certas fases do fatalismo em muitas culturas e
períodos. Não é que a Natureza seja incognoscível: como
súditos, conhecemos nosso monarca. Mas seus poderes são
tão grandes e seus exércitos, às vezes, aparentemente, tão
caprichosos, que não pretendemos controlá-los. Ao contrário,
confinamo-nos a diversas formas de petição ou apaziguamento
[...] Como tantas vezes, há uma área indeterminada entre esse
monarca e a noção mais manejável de ministra de Deus. Uma
incerteza de propósito é tão evidente na Natureza
personificada quanto no Deus personificado: é ele previdente
ou indiferente, regularizador ou caprichoso? (p. 94, 95)

Assim, a ideia de um Deus supremo e de uma natureza suprema evoca


imagens que não apresentam traços ou contornos definitivos e uniformes, mas
mostram-se “como um todo integrante do múltiplo” (BOSI, p. 16, 1977).
A expectativa que a complexidade dessas imagens suscita é ampliada
pela coincidência da pausa de fim de verso com a pausa de curta duração, a
vírgula, na passagem do segundo para o terceiro verso. Essa pausa, como
observa Adorno (2003, p. 149), é volátil, adequa-se perfeitamente ao desejo de
quem se expressa. No entanto, na proximidade com outros sujeitos, revela um
amplo potencial para se ajustar a demandas diversas. Dessa maneira, ela
intensifica a ambivalência que se estabelece em torno da relação
“Deus/Natureza” no poema, a qual, por sua vez, remete à história dessa
relação (WILLIAMS, 2011). A depender do modo como essa pausa é
significada pelo leitor, pode indicar também que o ser humano é “Deus”,
questão a que retornaremos adiante. Em função dessa mobilidade, Adorno
(2003, p. 148-149) afirma que “todo escritor encontra-se em permanente
perigo” frente aos sinais de pontuação, especialmente, frisa ele, se esse sinal
for uma vírgula.
A partir da estrutura do poema nesses versos iniciais, bem como no
título, e a partir também dos aspectos semânticos a que isso remete, observa-
se, por um lado, a evocação da ideia de uma natureza e ciência suprema e, por
outro, de um Deus supremo. O trabalho escritural justapõe, num mesmo
52

contexto, substantivos de contextos diferentes. Através da ideia de supremacia


neles contida, é gerada a semelhança exigida pela metáfora.
Verifica-se, assim, uma primeira metáfora. Pode-se dizer, portanto, que
a ecologia suprema é a imagem de Deus ou que a natureza é a imagem de um
Deus supremo ou, ainda, que a natureza suprema é Deus. Nesse contexto, não
se deve desconsiderar o sentido de relacionamento entre seres vivos e destes
com seu meio ambiente, que a palavra ecologia engendra. Dessa forma, não
poluir é o ato que garante um modo de convívio social e ambiental “supremo”.
Da mesma maneira, as considerações apresentadas não nos permitem
descartar a ideia de uma “ciência suprema” e, nesse sentido, tal ciência
suprema é “Deus”. Assim, a ambiguidade entre Deus, natureza e ciência se
mantém.
As relações de sentido estabelecidas entre o título e os dois primeiros
versos despertam sensações e expectativas que decorrem, talvez, dos
sentimentos vinculados à própria crença em uma natureza ou Deus supremos,
que organizam todas as coisas.
O terceiro verso, porém, cria um rompimento com essas relações, pois
dá forma às imagens inexatas que até ali vigoravam. Isso pode ser verificado
tanto na mudança do ritmo quanto no fim da gradação que se estabelecia até o
segundo verso. A expectativa do leitor só seria satisfeita por um conceito
universal, mas o verso “que é o homem” parece apenas reiterar um
conhecimento comum ao cristão. Assim, a expectativa é rompida, pois o
sagrado não é transcendente, parafraseando o dizer de Alfredo Bosi (1977).
Tem-se, dessa forma, a seguinte metáfora: a natureza suprema é a imagem de
Deus; a imagem de Deus é o homem.
Embora o último verso dê ao leitor uma sensação de conforto, uma vez
que o desloca do universo abstrato inicial e permite a ele organizar os sentidos
do poema com base em um mundo sensível, esse efeito é parcial, e logo se
esvai. Ou, como diz Carlos Drummond de Andrade em um verso semelhante
ao de Casaldáliga, “Mas que coisa é o homem?”4.

4
Ver o poema “Especulações em torno da palavra homem”, de Carlos Drummond de Andrade.
Disponível em: http://palavraguda.wordpress.com/2007/12/24/especulacoes-em-torno-da-
palavra-homem/. Acesso em: 07/11/2014.
53

Portanto, o terceiro verso não simplifica o conteúdo mobilizado nos dois


primeiros, não simplifica a natureza, nem a noção de Deus. Tampouco nos diz
o que é a natureza suprema. Mas produz um efeito de simplificação.
“Ecologia Suprema” revela, pois, não um aspecto do mundo concreto,
mas uma complexa maneira de ver o mundo e de agir sobre ele e nele, que se
apresenta, contudo, de modo desembaraçado. O poema constitui um
ensinamento que fala do respeito do homem para com seus semelhantes, do
homem para com a natureza e do homem para com “Deus”.
O verso terminal aparece como uma solução às questões suscitadas
pelos iniciais, assim como pelo título. Esse efeito, porém, decorre de um
elaborado processo de utilização dos recursos da escrita poética. Assim, a
imagem do “homem” é evocada como meio de dar forma a Deus e à natureza.
Aparentemente, algo como uma gradação descendente na complexidade das
imagens. Isso se produz, também, a partir da estrutura sonora do terceiro
verso, com a predominância dos sons vocálicos. Considerando um critério
fonético, esses sons são mais facilmente produzidos que os consonantais.
A despeito disso, a figura que o verso introduz é um paradoxo. Este
reside justamente no fato de que coexistem na imagem do ordinário, do
comum, do “homem”, a natureza suprema, a ciência suprema e o sagrado.
Todavia, na medida em que Casaldáliga inscreve a “Deus”, a “natureza
suprema” e a “ciência suprema” numa figura como o paradoxo, coloca esses
elementos além, ou aquém, de qualquer racionalidade, de qualquer
possibilidade de sistematização e de verdade. Desse modo, o que é que não
se pode poluir? Questão que se justifica porque, se, na realidade, não sabemos
o que é “Deus”, a “natureza suprema” ou a “ciência suprema”, tampouco
sabemos o que é o ser humano, embora saibamos, sobre este, que as
tentativas de o definir desencadearam genocídios e justificaram violências
diversas, quer tenham sido considerados critérios pertinentes ao sagrado – tais
como “filhos” de “Deus”, ou não; quer os critérios tenham sido os científicos –
como o racional e o irracional, a superioridade das “raças” e dos gêneros, ou
classificação em humanos e não-humanos; quer tenham sido sociais – como
aquilo que em um grupo se considera “natural”. Dentre as violências que, de
algum modo, aí se produziram estão a que se estabelece contra a criança e a
exploração do trabalho infantil; as desigualdades entre os gêneros e a
54

coisificação da mulher; a violência contra homossexuais; a escravidão dos


negros e a colonização da África; o nazismo e o extermínio de judeus; a
violência contra “doentes” mentais e “deficientes”; até a legitimação social de
um sistema econômico pautado na “sobrevivência do mais forte”.
Ainda assim, em virtude do paradoxo, a conclusão a que chegamos é a
de que o poema não constitui uma lei, mas joga com sua estrutura,
subvertendo-a. Por meio dessa subversão, Casaldáliga desconstrói um saber
em favor de outro.
A opção pelo termo desconstrói para definir a ação poética se justifica
porque o texto permite supor que o poeta realizou, primeiro, uma escavação,
“dessedimentação” da estrutura da lei. Depois a reconstruiu, mantendo-lhe a
aparência, para formar uma espécie de “anti lei”. Realiza, assim, o percurso
que Derrida denomina desconstrução:

O “estruturalismo” era então dominante. “Desconstrução”


parecia ir nesse sentido, já que a palavra significava certa
atenção às estruturas (as quais não são simplesmente nem
ideias, nem formas, nem sínteses, nem sistemas). Desconstruir
era também um gesto estruturalista, em todo o caso, um gesto
que assumia certa necessidade da problemática estruturalista.
Mas era também uma gesto anti-estruturalista – e seu destino
se deve, por um lado, a esse equívoco. Tratava-se de desfazer,
decompor, dessedimentar as estruturas (todas as espécies de
estruturas, linguísticas, “logocêntricas” e “fonocêntricas” – o
estruturalismo sendo então dominado, sobretudo, por modelos
linguísticos, da linguística dita estrutural que se dizia também
saussuriana, socioinstitucionais, políticos, culturais e,
sobretudo, e antes de tudo, filosóficos). [...] Mas desfazer,
decompor, dessedimentar as estruturas, movimento mais
histórico, em um certo sentido, que o movimento
“estruturalista”, o qual se encontrava, desse modo, recolocado
em questão, não era uma operação negativa. Mais que
destruir, era preciso também compreender como um “conjunto”
se tinha construído e, para isso, reconstruí-lo. (2005, p. 23, 24)

Isto é, optamos por esse conceito porque Casaldáliga desconstrói uma


estrutura da lei. Nesse sentido, retomamos a pergunta que inicialmente
orientou esta análise: será, essa lei, natural, divina ou da ciência? A resposta a
essa questão já não tem, em última análise, relevância, por causa da
identidade metafórica desses termos no poema e de sua condensação
55

paradoxal no “homem”. Já não está em questão, assim, a origem da lei no


poema, mas os contornos históricos da estrutura desconstruída.
Em virtude da semelhança entre divindade, natureza e humano, no
poema, podemos designar, genericamente, a estrutura desconstruída como a
de um saber colonizado. Isso porque a colonialidade dos saberes opera, dentre
outros modos, sobre a não identidade ou semelhança entre “Deus”, a natureza
e o humano (LANDER, 2005, p. 9). Nesse caso, “humano” define não apenas a
espécie, mas, também, as práticas humanas, que são a cultura e, no âmbito
desta, a ciência.
Na apresentação que faz à obra A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (2005, p. 3),
Porto-Gonçalves permite compreender os saberes colonizados como um
conjunto epistemológico legado pelos europeus aos povos colonizados, que os
impede de produzir e acessar os mais diversos conhecimentos de uma
perspectiva própria. Isso pode ser depreendido do fragmento abaixo, no qual a
expressão “Colonialidade do Saber”, com as iniciais maiúsculas, titula o livro
em questão, cujo tema é a colonização do saber:

A Colonialidade do Saber nos revela, ainda, que, para além do


legado de desigualdade e injustiças sociais profundos do
colonialismo e do imperialismo, já assinalados pela teoria da
dependência e outras, há um legado epistemológico do
eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a
partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que
lhes são próprias. Como nos disse Walter Mignolo, o fato de os
gregos terem inventado o pensamento filosófico, não quer dizer
que tenham inventado O Pensamento. O pensamento está em
todos os lugares onde os diferentes povos e suas culturas se
desenvolveram e, assim, são múltiplas as epistemes com seus
muitos mundos de vida. Há, assim, uma diversidade epistêmica
que comporta todo o patrimônio da humanidade acerca da
vida, das águas, da terra, do fogo, do ar, dos homens. Aqui,
nesse livro, a crítica ao eurocentrismo é uma crítica à sua
episteme e sua lógica que opera por separações sucessivas e
reducionismos vários. Espaço e Tempo, Natureza e Sociedade
entre tantas.

A desconstrução da colonialidade de um saber no poema em análise


consiste, então, em que a natureza-cultura permeada por um elemento
supremo, o qual, paradoxalmente, procura definir-se no “humano”, proibe a
56

poluição de si mesma. Em outras palavras, não apenas a implicação mútua


desses termos - “Deus”, natureza, e humano - metaforicamente elaborada,
constitui a desconstrução, porque reuniria esses elementos tradicionalmente
separados pelo eurocentrismo (LANDER, 2005, p. 8). Ela se produz, também,
porque as ideias de uma “natureza suprema” e de uma “ciência suprema” como
algo produzido pela humanidade, e ainda, de um Deus supremo,
fundamentaram, por assim dizer, a poluição da natureza e do humano pelo
próprio homem. Assim, o poema desconstrói uma estrutura na qual esses
elementos são dissociados e permitem a poluição da natureza pelo homem e
as consequências disso advindas.
Nesse sentido, na obra supracitada apresentada por Porto-Gonçalves,
inscreve-se o artigo Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos, de
autoria de Edgardo Lander. Neste trabalho, Lander explica que a colonização
dos saberes é uma articulação entre as formas de produção do capital e as
formas de produção do conhecimento na modernidade, a fim de infundir nos
povos uma visão segundo a qual, o conhecimento científico moderno é
universal e natural. Dito de outra maneira, que esse saber abrange todos os
povos e é a tradução das leis da natureza, organizadoras do mundo em seus
aspectos diversos. Resulta disso, conforme explica o autor, a imposição
hegemônica de um conhecimento segundo o qual a organização social
moderna é a concretização das leis naturais. Assim sendo, Lander afirma que é
necessário desconstruir esse conhecimento e fornecer alternativas ao
pensamento. Para tanto, na primeira parte de seu trabalho, historiciza os
aspectos que considera como fundadores dessa forma de perceber o mundo.
Em seguida, apresenta alternativas para o pensamento que se opõe a ela.
A historicização realizada por Lander (2005) servirá, pois, para
iniciarmos a delimitação da estrutura desconstruída por Casaldáliga no poema
em análise.
O primeiro elemento fundador de uma colonialidade do saber, de acordo
com Lander, é a separação entre Deus (sagrado), o humano (espécie humana
e práticas humanas) e a natureza. Essa distinção, afirma ele, é um dos
substratos fundamentais “das formas particulares do conhecer e do fazer
tecnológico da sociedade ocidental” (2005, p. 9). Em nossa opinião,
esquivando-se de uma afirmação quanto à origem dessa separação, porque
57

lhe basta atestar que existe, Lander acrescenta que para Jan Berting (1993) ela
foi produzida nas religiões judaico-cristãs. Isso, porém, não é consenso entre
os estudiosos do tema e nem reflete a visão de Casaldáliga acerca do assunto.
Por essa razão citamos Keith Thomas (2010), na obra O homem e o
mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (de
1500 a 1800), que aponta e problematiza essa separação compreendendo-a,
também, como um fundamento de práticas sociais destrutivas da natureza e de
culturas que se organizam em desacordo com elas. Para ele, trata-se de um
fundamento teológico que legitimou uma visão coletiva de mundo, segundo a
qual “Deus” havia criado a natureza para suprir todas as necessidades e
desejos do homem. Entretanto, o teórico não afirma categoricamente que a
disjunção entre sagrado, natureza e humano é um elemento que se produziu
devido às religiões judaico-cristãs.
Em seu texto, Thomas resguarda certa inocência do cristianismo-
judaísmo. Para tanto, argumenta que as escrituras sagradas judaicas, na
Europa, eram interpretadas segundo o pensamento grego; que mesmo entre os
teólogos havia divergência quanto às posturas que deviam ser mantidas frente
às demais espécies; que em diversas culturas figuram mitos, inclusive entre
grupos indígenas americanos, de legitimação divina da superioridade do
homem sobre os viventes em geral; que diversos povos adoradores da
natureza destruíram ecossistemas inteiros sem qualquer ajuda do cristianismo.
No âmbito dessa argumentação, ele afirma, ainda, que aqueles que buscaram
centrar no cristianismo a responsabilidade ideológica pela exploração
sistemática e destrutiva de espaços naturais em todo o planeta,
superestimaram a “extensão em que as ações humanas eram determinadas
apenas pela religião oficial”. Nesse sentido, Thomas entende que houve uma
apropriação das ideias do cristianismo pela lógica da acumulação de riquezas.
Baseados nisso, podemos afirmar que a desconstrução operada pelo/no
poema não visa o cristianismo em si, mas sim a ideia de um Deus separado da
natureza e que legitima a total subordinação desta aos desejos do ser humano.
Tal distinção entre o cristianismo e essa ideia nos permite supor que o ato de
desconstrução, observado no poema, operou-se em favor de uma
compreensão do que seja Deus anterior ao século XIII, mas que permanece
em nossos dias em outras materialidades além da poética de Casaldáliga. Isso
58

porque, durante a Idade Média, na Inglaterra, o discurso corrente já era o de


que “Deus” dera a natureza aos homens para a usarem ao seu “bel-prazer”,
uma interpretação bíblica que se ancorava no instrumental da filosofia grega
clássica, como se verifica no fragmento abaixo:

Na Inglaterra dos períodos Tudor e Stuart, a visão tradicional


era a de que o mundo fora criado para o bem do homem e as
outras espécies deviam se subordinar aos seus desejos e
necessidades. Tal pressuposto fundamenta as ações dessa
ampla maioria de homens que nunca pararam um instante para
refletir sobre a questão. Entretanto, os teólogos e intelectuais
que sentissem a necessidade de justificá-lo, podiam apelar
prontamente para os filósofos clássicos e a Bíblia. A natureza
não fez nada em vão, disse Aristóteles, e tudo teve um
propósito. (THOMAS, 2010, p. 21)

A referência a Aristóteles apresentada por Thomas respeita ao conceito


de telos. Este consiste no entendimento de que todas as coisas têm um fim
definido por natureza, do qual não podem escapar (GONÇALVES, 2006).
Lembramos, quanto a isso, que “os princípios poéticos da natureza”, na obra
de Casaldáliga, não se referem a qualquer ordenança que limite o ser humano
em seu pleno exercício de escolher e de mudar, quer as chamemos de
“vontade” de Deus ou leis da natureza. Logo, a leitura bíblica de Casaldáliga
acerca da relação entre Deus, a natureza e o homem, não tem suas raízes na
filosofia grega. Consequentemente, os homens não teriam um fim predefinido
por Deus ou por sua própria natureza
Servem como evidência desse ato de desconstrução, na forma como o
temos apresentado, os estudos teológicos de Casaldáliga sobre espírito e
matéria. Nesse âmbito, a palavra “Espírito”, grafada com a letra inicial
maiúscula, é uma referência a Deus. Tais estudos, como o poema em análise,
expõem, demarcada a origem cultural, o entendimento de que o Espírito estaria
em todas as coisas, assim como tudo seria permeado de espiritualidade,
conforme se pode perceber a seguir:

Estos conceptos de espíritu y espiritualidad como realidades


opuestas a lo material y a lo corporal provienen de la cultura
griega. De ella pasaron al castellano, al portugués, al francés,
al italiano, e incluso al inglés y al alemán… Es decir, casi todo
lo que puede llamarse «cultura occidental» está como infectado
59

de este concepto griego de lo espiritual. No pasa lo ismo, por


ejemplo en la lengua quechua o guaraní o aymara. Tampoco el
idioma ancestral de la Biblia, la lengua hebrea, el mundo
cultural semítico, entienden así lo espiritual. Para la Biblia,
espíritu no se opone a materia, ni a cuerpo, sino a maldad
(destrucción); se opone a carne, a muerte (la fragilidad de lo
que está destinado a la muerte); y se opone a la ley (la
imposición, el miedo, el castigo) En este contexto semántico,
espíritu significa vida, construcción, fuerza, acción, libertad. El
espíritu no es algo que está fuera de la materia, fuera del
cuerpo o fuera de la realidad real, sino algo que está dentro,
que inhabita la materia, el cuerpo, la realidad, y les da vida, los
hace ser lo que son; los llena de fuerza, los mueve, los
impulsa; los lanza al crecimiento y a la creatividad en un ímpetu
de libertad. En hebreo, la palabra espíritu, ruah, significa viento,
aliento, hálito. El espíritu es, como el viento, ligero, potente,
arrollador, impredecible. Es, como el aliento, el viento corporal
que hace que la persona respire y se oxigene, que pueda
seguir viva. Es como el hálito de la respiración: quien respira
está vivo; quien no respira está muerto. El espíritu no es otra
vida sino lo mejor de la vida, lo que la hace ser lo que es,
dándole caridad y vigor, sosteniéndola e impulsándola.
Diremos de algo que es espiritual por la presencia que en sí
tenga de espíritu. Nosotros, desde ahora ya, abandonamos el
sentido griego del término espíritu y miraremos de acercarnos
al sentido bíblico, indígena, afro, menos dicotómicamente
«occidental». (CASALDÁLIGA; VIGIL, 1992, p. 13)

Então, um dos saberes coloniais desconstruídos no poema é o que se


refere à separação entre Deus, ser humano e natureza. Desconstrói-se,
consequentemente, uma visão de mundo segundo a qual a finalidade do ser
humano é subjugar os demais seres vivos. Em última instância, trata-se da
desconstrução de um fundamento teológico que legitima o predomínio do
homem sobre a natureza. Logo, da desconstrução de um aparato
epistemológico que engendrou o domínio e a destruição de culturas, ditas
“selvagens” e não humanas, porque habitantes de regiões hostis ao europeu,
regiões não civilizadas. Em nossa perspectiva, a permanência desse saber,
mesmo que tácita, supõe a permanência das práticas que ele originou. Como
se observa no fragmento acima, a desconstrução ocorre em favor de um saber
que é captado tanto nas relações sociais e linguísticas que o poeta observa em
seu cotidiano, quanto numa leitura bíblica que desconsidera a filosofia grega.
Contudo, para além da perspectiva grega de leitura da Bíblia, não se
pode sustentar que as narrativas contidas nessas escrituras rejeitam totalmente
a compreensão de que o homem deve dominar sobre a natureza. Por isso, na
60

poética de Casaldáliga, reverberam figuras segundo as quais não se deve


defender a natureza por ela mesma, mas por ela enquanto casa comum da
humanidade: “não estou lutando pela terra em si, estou lutando pela terra para,
pela terra habitat.” (CASALDÁLIGA apud SOUZA e REIS, 2014, p. 165).
Conforme depreendemos dos escritos de Edgardo Lander (2005), no
bojo da separação entre Deus, o homem e a natureza, produziu-se outro
aspecto importante da episteme eurocêntrica: a cisão entre a mente e o corpo,
o logos e o mundo. Lander acrescenta que “somente sobre a base destas
separações – base de um conhecimento descorporizado e descontextualizado
– é concebível esse tipo muito particular de conhecimento que pretende ser
des-subjetivado (isto é, objetivo) e universal” (p. 9).
Em nosso trabalho, consideramos essa separação como o segundo
saber colonial que se observa desconstruído no texto em análise.
A ideia de um conhecimento científico que se pretende universal é
sugerida, no poema, pela utilização do termo “ecologia”, compreendido na sua
acepção de ciência, articulada à palavra “suprema”. Tal articulação, como
dissemos, é o primeiro elemento que faz o poema suscitar a expectativa de que
se constitui na exposição de algo imutável do qual ninguém tem poder para se
evadir, como uma lei natural, um conceito científico – uma verdade, a lógica
máxima, enfim.
O fato de essa “ciência suprema” ser, metaforicamente, o “Deus
supremo” intensifica a conotação de verdade/poder que ela possui. Mas não
somente, uma vez que o movimento poético de ida e volta, o retorno sobre si
mesmo, acrescenta-lhe o sentido de imaterialidade, de descorporeidade.
Metaforicamente fundidos, os termos “Deus” e “ecologia suprema”, na sua
acepção de ciência, conotam poder, natureza, universalidade, imaterialidade,
direito de punir, capacidade de dizer o que é o correto e o verdadeiro, de definir
leis e criar mundos. Podemos dizer que, em consonância com Lander (2005),
figura como um saber do colonizador na medida em que se deseja universal e
determinador dos demais.
Não sabemos precisar por quanto tempo dura o efeito dessa metáfora,
ou durou, na primeira leitura que fizemos desse poema. Sobre isso, podemos
apenas dizer que é o tempo necessário para se fazer a leitura de um
heptassílabo, cuja pausa sonora de fim de verso coincide com a pausa
61

proposta por uma vírgula, e deslocar os olhos para o verso seguinte.


Acrescentamos que é um tempo extremamente fugaz. Isso é, porém,
insuficiente para descrever a imagem. Ainda assim, diremos que, até o
segundo verso, o poema constrói, em nível de versificação, figuração,
sonoridade, sintaxe e léxico, conforme visto, a imagem de algo dotado de
capacidade para expor o maior de todos os mistérios. A esse conhecimento
poderíamos chamar de uma “verdade suprema”, referindo-nos a um saber
“des-subjetivado”, descontextualizado e descorporizado, em consonância com
Lander (2005).
Podemos dizer que, inicialmente, jogando com nossas expectativas de
conhecimento do sagrado, de conhecimento de uma verdade suprema, o
poema nos diz que “nem tudo que reluz é ouro”. Em outras palavras, nem tudo
que se apresenta como verdade e como divindade é, de fato, o que diz ser.
Jogando em dois planos, a primeira etapa dessa desconstrução é a
própria insurgência metafórica da “ciência deusa”. Através dessa figura,
Casaldáliga revela a identidade entre a ideia de uma ciência que se deseja
universal e a ideia de um Deus supremo. Ambos com poder de proibir, de
determinar a conduta dos sujeitos.
Porque Lander (2005) não trata diretamente dessa identidade,
recorremos, novamente, à desconstrução empreendida por Derrida, na obra
Gramatologia (1973). Esse teórico entende que vivemos durante a época do
logos, porque nossa cultura rebaixa a escritura como elemento constitutivo da
presença, como evidência de verdade, conforme dito no tópico anterior. Isso
implica dizer que nossa ciência e que nossas práticas sociais são guiadas pela
busca da verdade como significado. Trata-se da procura por um saber
inteligível que existe em plena inteligibilidade – sem qualquer aspecto sensível
- e que rebaixa e determina o modo como as coisas sensíveis se organizam.
Pelo fato de que “não há significado que escape, mais cedo ou mais tarde, ao
jogo das remessas significantes, que constitui a linguagem” (DERRIDA, 1973,
p. 8), essa busca seria interminável e estaríamos, então, à procura de um logos
absoluto ou infinito, noção esta que Derrida associa à ideia de um Deus infinito:
“as teologias infinitistas são sempre logocentrismos” (p. 87). A proposta de
Derrida, no que tange a isso, é a de que entendamos que o significado não
62

existe fora da escritura, sem o significante, e de que o inteligível não existe sem
o sensível, que lhe determina a validade.
Semelhantemente, como primeiro passo da desconstrução, Casaldáliga
constrói a imagem de que a ciência, como verdade inteligível que dita leis, é
“Deus”. O segundo passo é a inserção da palavra “homem”, no jogo metafórico,
e a consequente criação do paradoxo.
A desconstrução se torna visível por três motivos. O primeiro pode ser
traduzido na afirmação de que a revelação do sagrado não é transcendente.
O segundo é a sugestão de que não há verdade, já que esta não pode
ser um paradoxo. Ou, se há verdade, ela é um paradoxo, assim, não pode
constituir um parâmetro de julgamento do ser humano e de determinação de
suas ações. A verdade não pode, por conseguinte, ser uma lei que se produz
na cultura, que se observa na natureza ou que é ditada por Deus.
No poema, a “ecologia suprema” refere-se, assim, à liberdade do ser
humano de se relacionar com os demais seres vivos e os espaços que
compartilham. É, portanto, a essa natureza que não se pode poluir. Sua
articulação metafórica a “Deus” e a uma “verdade suprema” aponta, em
primeira análise, para o conceito de livre arbítrio e, em última, para a
experiência libertadora que seria o conhecimento da verdade. Há nisso uma
intertextualidade com o Evangelho segundo João, capítulo 8, versículo 32: “E
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
O terceiro elemento desencadeador da desconstrução de uma
colonialidade do saber, que opera sobre a separação entre a mente e o corpo,
é a fusão do inteligível com o sensível. Somente como paradoxo, a verdade
suprema que é Deus resultaria libertadora. No poema, ocorre a fusão de Deus,
da ciência e da natureza suprema, no ser humano (espécie e práticas culturais)
e na natureza como um todo, já que, conforme observamos, esses termos não
são dissociados na poética de Casaldáliga. Assim, tudo passa a ser como um
signo concreto de presença divina.
A depender do modo como se lê a vírgula terminal do segundo verso, o
poema comporta o entendimento de que o “homem é Deus”. Em tal leitura não
teríamos um paradoxo, mas a figuração metafórica de um antropocentrismo.
Isso, do nosso ponto de vista, não explicaria a relação entre o sensível e o
63

inteligível como possibilidade de constituição da liberdade e de acesso à


“imagem de Deus”, à ciência e à natureza suprema.
Em vista disso, entendemos que a figura em questão não constitui uma
usurpação da supremacia divina em favor do homem. Certamente configura-se
como intertextualidade de tudo aquilo que se diz sobre a pessoa de Jesus de
Nazaré, “o Cristo”, signo mais concreto, a nosso ver, da síntese Deus-homem,
e de quem fala o Evangelho de João (cap. 1, versículos 1 e 14), “No princípio
era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. [...] E o Verbo se
fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória”. Um “Deus”, que é a
natureza e o conhecimento que produz liberdade, além ou aquém da
racionalidade, da verdade, mas que, desde sempre, é palavra.
Essa imagem é o elemento que nos permitiu, inicialmente, abordar
aspectos da poética de Casaldáliga a partir da visão teórica de Derrida (1973).
Nela percebemos o profundo engajamento do poema na direção de
transformar, pela escritura poética, uma situação de opressão, seja ela qual for,
pelo fato de não impor uma compreensão do Deus que oprime.
Assim, entendemos a condensação da ciência, de Deus e da natureza,
no homem, como a desconstrução da colonialidade do saber que opera sobre a
cisão entre a mente e o corpo. Essa desconstrução não se apresenta como
uma destruição, o que se depreende da manutenção da estrutura da lei no
poema, mas como a ação de fazer essa estrutura funcionar de outro modo, que
é apreendido pelo poeta através da observação de seu entorno, conforme
certificam os fragmentos abaixo:

Nuestro pueblo no es cartesiano. Parte de los fenómenos


naturales, está fuera del reloj noche, día, sol, luna, la tierra y
los ciclos de su fecundidad, son sus horas y sus señales…
Pueblo de hechos, de lugares, de fechas, de símbolos… muy
concretos, muy materiales. Es un pueblo «sacramental»,
apegado a los signos que se pueden besar, llevar, tocar. La
misma naturaleza es cuasi-sacramental. Esto se percibe
también de un modo emblemático en su religiosidad, y en la
religiosidad indígena aún persistente. Y en el sincretismo como
forma de resistencia. (CASALDÁLIGA; VIGIL, 1992, p. 35)

Nuestro pueblo es universalmente, profundamente,


efusivamente religioso. Chorrea religión por todas partes. Y ahí
es evidente la herencia indígena y la herencia negra, como
también la bien o mal traída herencia ibérica. [...] Esa
religiosidad arranca de una especie de connaturalidad para
64

descubrir el misterio y vivir en él y apelar al mismo. El Espíritu y


los «espíritus» forman parte de la cosmovisión de la mitología y
de la cotidianeidad: el nacimiento y la muerte, el cultivo de la
tierra, los viajes, las bendiciones y los castigos se palpan. La
explicación más inmediata y espontánea es siempre
«sobrenatural», mítica. La ecología no es una moda ni una
necesidad o previsión de sobrevivencia. La tierra es la madre,
es santa, es la diosa, «Pacha Mama»… La Naturaleza es la
gran casa «natural» de la família humana. Aquí la ecología es
lo que etimológicamente significa la palabra: la «oikos» (la
casa), aunque no tan «logía»: no un estudio racional, sino una
vivencia. Los indígenas achacan al blanco el placer de la caza
por la caza. (CASALDÁLIGA; VIGIL, 1992, p. 43)

Como a desconstrução indica não a destruição, mas uma


desestruturação, podemos dizer que, no poema, Deus, a ciência e a natureza
suprema, como entes desconexos e que predeterminam os modos de vida das
pessoas, seguem existindo em convivência com um Deus, uma natureza e uma
ciência fundada no homem. Isso pode ser atestado pelo fato de, numa
estrutura de lei, cunhar-se a não-lei e, ainda, porque na desconstituição da
opressão, engendrar-se a proibição. Isso nos permite verificar que o poema
não destrói um saber, um sagrado e uma natureza em favor do que
poderíamos chamar de “outras verdades”, mas convida culturas e saberes a
dialogarem entre si e a não se poluírem.
Relativamente a isso, o contexto socioeconômico e geográfico da região
do Araguaia, onde habita o poeta-bispo Casaldáliga, é, historicamente,
marcado por conflitos armados entre tribos indígenas, posseiros e jagunços de
grandes fazendeiros. Tais conflitos decorrem das condições indignas de vida a
que são submetidas diversas comunidades, das disputas por terras, da
exploração pelo trabalho escravo, dentre outras razões.
Considerando-se tal emergência histórica, pode-se afirmar que o poema
contempla e busca harmonizar culturas indígenas e não indígenas,
convidando-as a se unirem em prol de um objetivo comum, que seria “a não
poluição”, ou seja, o fim dos assassinatos e das condições subumanas de vida
a que são submetidos alguns grupos.
Nessa perspectiva, as culturas indígenas, por meio da imagem de uma
natureza suprema, têm o seu sagrado representado. A este respeito,
remetemo-nos, ainda, ao fragmento acima destacado acerca da espiritualidade
do povo latino-americano. Por outro lado, também as culturas não indígenas e
65

não latino-americanas, no sentido acima recortado por Casaldáliga, são


representadas por meio do verso “a imagem Deus”, que evoca a noção do
Deus cristão, e por meio do título do poema, que conota uma ciência suprema.
Em uma terceira imagem, fundem-se as duas primeiras. Assim, é possível ver
o contexto externo à obra tornando-se interno e se infundindo na estrutura do
texto, tal como preconiza Antonio Candido (2006, p. 13).
Desse modo, o valor supremo da vida – humana, mas não somente – é
o que se verifica em “Ecologia Suprema”. Depreende-se dele que homem e
natureza são iguais, ambos se apresentam como significante divino e
materialização de saber libertador. Por essa razão, a imperatividade de que o
poema se vale não concebe um discurso de dominação e exploração da
natureza, o qual foi amplamente utilizado para justificar a exploração e a
violência em diversas culturas, na medida em que estas eram consideradas
selvagens, como também o eram os ambientes em que viviam (THOMAS,
2010). Essa característica também não produz um efeito que limita o que seja
Deus, a natureza, ou o homem.
A valoração do ser humano e da natureza, conectados por uma noção
de sagrado, é percebida, também no seguinte poema:

PRESENÇAS

Encontro-me sempre falando


com amigos ausentes.

Encontro-me sempre
entre o instante e a morte.

Encontro-me sempre
com um livro em frente,
com um homem dolente,
e uma paisagem e a corrente,
e o sol incandescente,
e o sono, por fim, clemente.
E um pássaro e um menino e uma árvore, viventes.

E Deus persistentemente presente...


(CASALDÁLIGA, 1979, p. 69)

A noção de “presença” é fundamental para o entendimento da ciência da


escritura ou gramatologia, nos traços que lhe confere Derrida (1973). Ela é
66

importante, também, para a compreensão da obra poética de Casaldáliga. A


esse respeito, vale mencionar que um dos capítulos do livro Antologia retirante
intitula-se “Presenças”, da mesma maneira que o poema transcrito. Por esse
motivo, antes de tratarmos, especificamente, de natureza, nos termos acima
expostos, entendemos que ainda são necessárias algumas considerações
sobre como se insere essa noção nas imagens poéticas de Casaldáliga.
A “presença de Deus”, conceito resultante de uma profissão de fé, é um
fator inerente – natural – a todos as culturas e à natureza para o poeta,
conforme vimos até aqui, em sua obra poética e teológica. Esse modelo de
presença divina implica na compreensão de que o sagrado é natural e, por
outro lado, indica uma imparcialidade de Deus quanto à existência humana e
aos processos da vida. Essa imparcialidade não é entendida como uma falta de
amor para com a criação, mas como um amor que dá liberdade, que não
determina ou predestina os homens. O Criador, tratado aqui como imagem
poética, é chamado, assim, “o Deus do silêncio” (2006, Versos adversos, p.
103). Quanto ao silêncio, tanto Derrida (1973) quanto Casaldáliga, em sua obra
poética, consideram-no como índice de ausência e de presença. Desse modo,
Deus é, simultaneamente, presença e ausência. Mantém, por isso, certa
semelhança com a escritura do mundo, da qual tratamos no tópico anterior,
porque o rastro e a escrita, são, também, simultaneamente presença-ausência
(DERRIDA, 1973).
O sentido de presença que deu origem ao etnocentrismo da cultura
ocidental, que fundamentou a ciência moderna desde suas bases clássicas e
que fora dele essa ciência não teria sido possível, é diferente do que
descrevemos acima. Depreende-se de Derrida (1973) que, nessa perspectiva,
“presença” pode referir-se ao encontro empírico, ou físico, de duas pessoas, do
qual resultaria, sempre, uma tendência a que elas se privilegiassem
mutuamente com um sentido de verdade, naturalidade ou espontaneidade em
detrimento de outras que estivessem ausentes no momento desse encontro.
Ou, ainda, diz respeito à presença da evidência como condição de verdade na
ciência, em detrimento de todo o universo ausente da fórmula, do conceito, do
experimento etc. Assim, a verdade passou a ser um privilégio da presença e
um valor a ser buscado. Além disso, Derrida (1973) demonstra que esse modo
de fazer ciência supõe a existência de um significado transcendental que
67

predeterminaria todos os processos existentes. Em última análise, isso


equivale à noção de uma presença divina, conforme conclui, entendida em
termos de uma “lógica”, “verdade” ou “racionalidade” infinitas que ao homem
cabe descobrir.
Tendo em vista essas considerações acerca da noção de presença, bem
como as apresentadas no tópico anterior deste trabalho, analisemos o texto
poético em questão.
“Presenças” constitui-se de doze versos irregulares, os quais se dividem
em quatro estrofes. O poema estrutura-se sobre o verbo “encontrar”, que se
repete de modo expresso no primeiro, terceiro e quinto versos e, de modo
elíptico, nos oito últimos. Sem deixar de ser um eixo das relações culturais e
naturais, a noção de encontro proposta pelo poeta sugere, primeiramente, um
estado de comunhão consigo mesmo, uma consciência de si; depois, com o
próximo, com a natureza, e com Deus, que textualmente figura em todos os
encontros propostos pelo eu lírico.
O “encontro” consigo mesmo, expresso no pronome reflexivo “me”, não
se submete a nenhuma causalidade, embora se dê juntamente a outros
encontros. Pelo contrário, a repetição da construção “encontro-me”, seguida
dos diversos objetos indiretos, sugere que encontrar-se a si mesmo – estar em
comunhão consigo mesmo – é que figura como condição para um encontro
efetivo com as coisas animadas e inanimadas, culturalmente significativas, com
os demais seres viventes, humanos ou animais, e com Deus.
Essa construção sintática deixa entrevistas intertextualidades bíblicas. A
primeira, do Evangelho de São Mateus, cap. 22, diz respeito ao seguinte texto:
“Ama a teu próximo como a ti mesmo”. A segunda, referente ao Evangelho de
São João, cap. 4, no que tange à seguinte indagação: como pode alguém amar
a Deus, que não vê, se não ama a seu próximo, a quem vê? Daí verifica-se que
o encontro adquire um duplo valor no poema: ocorre tanto em nível espiritual
quanto material. Há o desdobramento daquele sobre este, como se verificou no
conjunto dos poemas analisados.
Nessa acepção, é revelador que Octavio Paz tenha demarcado seu
posicionamento no que se refere à inspiração, como processo criativo da
poesia, em termos do encontro que o poeta, entidade que surge no momento
da escrita do poema, tem com o outro que é ele mesmo, baseado na noção de
68

outridade, tendo em vista que as palavras não são jamais próprias, mas
pertencem a todos (1982, p. 219). Isso implicaria uma volta ao Ser, conforme o
teórico, e também como pode ser depreendido do poema, tanto em virtude do
último verso: “E Deus persistentemente presente...”, como por causa das rimas,
que ocorrem no sufixo “ente”, em oito dos doze versos; no décimo segundo,
duas vezes, na forma de homeoteleuto, na palavra ‘persistentemente’. O
vocábulo “ente”, em uma de suas acepções filosóficas, uso mais raro, conforme
Nicola Abbagnano (2007), significa “Deus”. O uso em questão ocorre na obra
de Vicenzo Gioberti, intitulada Introdução ao Estudo da Filosofia (1840), a partir
da seguinte fórmula “O ente cria o existente” (GIOBERTI, 1840, p. 183 apud
ABBAGNANO, 2007, p. 334). Nossa opção de tal leitura do vocábulo, deve-se
ao fato de ela ser mais coerente com a obra de Casaldáliga.
A respeito da materialidade dos encontros, o etólogo Boris Cyrulnik
(1995) nos trouxe algumas conclusões. Primeira: uma condição para que haja
encontro é a continuidade da interação, a sucessão de encontros. Segunda:
todo encontro é precedido de um movimento preliminar e ambíguo que guarda
sempre a incerteza entre uma intenção afetuosa ou agressiva. Ademais, o
estudioso nos instiga perguntando: a que devemos o acaso de nossos
encontros?
Nesse entendimento, em nível sonoro, tem-se a noção de continuidade
expressa através da predominância de rimas com os mesmos fonemas, como
ocorre em oito dos doze versos. Além do advérbio “sempre”, que aparece em
todos os versos do poema, de modo explícito e implícito, marcando, tanto por
seu significado quanto por sua ocorrência, o sentido de continuidade.
Por outro lado, no que se refere à ambiguidade do encontro, na segunda
estrofe, tem-se o seguinte: “Encontro-me sempre / entre o instante e a morte.”
Compreendemos a palavra instante, no sentido mobilizado por Casaldáliga, da
forma como propõe Octavio Paz: o instante diz respeito à experiência do
poético, na qual

[...] o tempo cronológico – a palavra comum, a circunstância


social ou individual – sofre uma transformação decisiva: cessa
de fluir, deixa de ser sucessão, instante que vem depois e
antes de outros idênticos e se converte em começo de outra
coisa (1976, p. 53).
69

Nesses termos, pode-se ver o “instante” e a “morte” como uma


dualidade do tempo, sobretudo, quando se considera que todo momento é
tanto suscetível de ser consagrado à poesia, deixando de ser sucessão, no
sentido proposto por Paz (1976), quanto de ser mortal. Não se trata, assim, de
uma oposição exclusiva, visto que o “instante” e a “morte” se harmonizam na
imagem do tempo.
A partir de informações contextuais acerca do escritor e do espaço em
que se inscreve o poema, pode-se afirmar que, no nono verso, a palavra
“paisagem” diz respeito a um espaço natural diante do qual o eu lírico se
encontra. A expressão “a corrente”, sobretudo em função do artigo definido “a”,
que mostra ao leitor que o elemento por ele sucedido já é de seu
conhecimento, refere-se às cercas dos latifúndios, ao acúmulo de bens, tema
amplamente reiterado na obra de Casaldáliga.
Assim, o verso diz da separação homem-natureza imposta pelo
capitalismo, metaforizada no termo “corrente”, à humanidade em geral e, em
especial, aos moradores empobrecidos das grandes cidades, aos índios e aos
pequenos proprietários de terras, ou os sem-terra, sujeitos sociais estes, cujas
relações com o espaço natural não se limitam às de consumo e exploração,
mas são afetivas.
Essa separação não deve, contudo, ser entendida somente como
produto da destruição dos espaços naturais e sua substituição por cidades e
latifúndios. Se assim for, a “corrente” pode figurar até como algo benéfico,
como o limite que permite preservar o natural, como a fronteira que garante a
sobrevivência da natureza. Tratar-se-ia, assim, de uma proteção da natureza
pela natureza. Porém, tal leitura não pode ser sustentada nem recorrendo ao
posicionamento político de Casaldáliga, nem à sua poética. Quanto àquele,
questionado por Marinete Souza (2009, p.159) acerca do fato de que as lutas
ambientais poderiam tirar o foco das lutas de classe, o poeta responde que “É
possível que tirem, o que seria lamentável porque acabaríamos defendendo a
água, a floresta, o ar e esqueceríamos de defender a pessoa humana.”
A partir dessa resposta, pode-se verificar que a proteção à natureza,
para o poeta, supõe a proteção ao ser humano. Não há na poética de
Casaldáliga uma imagem na qual a conservação da natureza suponha sua
70

separação do ser humano, questão de que trataremos no capítulo terceiro.


Desse modo, o verso remete-nos a um fenômeno da contemporaneidade que
costuma passar despercebido, qual seja: sentindo os efeitos maléficos da
devastação da natureza, aqueles mesmos que a empreenderam por meio de
processos exploratórios e, em virtude disso acumularam riqueza, adquirem
terras de “natureza virgem” por preços que não podem ser pagos pela maioria
das pessoas e, amparados por discursos de preservação ambiental, fazem
desses espaços seus refúgios naturais, segundo Williams (2011). A “corrente”
refere-se, assim, não somente às cercas das grandes propriedades de
monoculturas, inclui também as praias, cachoeiras, bosques, e matas
cercadas; espaços naturais que passam a ser privados. Em nome da
conservação, inacessíveis ficam às pessoas sem capital financeiro.
No décimo primeiro verso, “E um pássaro e um menino e uma árvore,
viventes”, valendo-se, sintaticamente, do polissíndeto e de um aposto que
sintetiza e unifica os elementos que lhe precedem, é expressa a postura do eu
lírico de valoração da natureza e do ser humano, de igual modo. Chama-se a
atenção para a utilização, reiterada, dos artigos indefinidos “um” e “uma”. Estes
conferem generalização aos termos que lhes sucedem. Em virtude disso,
compreende-se que o “encontro” possui um caráter absoluto, que não requer
um tempo, espaço, sujeito e espécie específicos.
O engajamento, entendido aqui como o conjunto de recursos por meio
dos quais o texto rompe com as estruturas de poder presentes na linguagem,
fica por conta do modo como o poeta omite as preposições nos cinco últimos
versos do poema. Com isso, tendo em vista a ambiguidade da presença divina
e da escritura, para que o leitor compreenda o poema, precisa escolher,
exercitar sua liberdade, entre as preposições regidas pelo verbo “encontrar”, no
conjunto das circunstâncias sugeridas pelo poeta. Ao final do poema,
percebemos, então, que nos encontramos sempre escolhendo.
71

CAPÍTULO 2. (DES)ENCONTROS COM A NATUREZA

Neste capítulo, a princípio, nosso propósito foi o de estudar a poética de


Casaldáliga a fim de perceber nela as imagens dos “encontros” com a
natureza. A experiência de “encontro” que buscávamos foi a que se delineou
por meio da análise do poema “Presenças” (CASALDÁLIGA, 1979, p. 69),
apresentada no capítulo anterior.
Entendemos por meio dessa análise que, para Casaldáliga, todo
encontro é sempre um encontro consigo mesmo, sem deixar de ser um
relacionamento do sujeito com tudo que lhe é exterior. Em todos eles há
presença divina; têm tanto valor espiritual quanto material; são todos
suscetíveis de se tornarem poéticos, deixando de ser sucessão, quanto de
serem mortais; dão-se tanto através da presença quanto da ausência; são
ocasiões de aprendizagem; são sempre precedidos da incerteza quanto a uma
intenção afetuosa ou agressiva. Alguns encontros são condição à perpetuação
da vida humana e a de todas as espécies. Em virtude de os “encontros” serem
fundamentais para a manutenção da vida, consideramos que sejam parte da
natureza.
Entretanto, depreendemos do poema que existem forças – as
“correntes” do capital – que tentam inviabilizar os “encontros”. Paradoxalmente,
elas também os engendram. Devido a isso, consideramos o jogo de elipse das
preposições no poema “Presenças”, uma expressão da liberdade que cada
sujeito possui para determinar seu lugar nos “encontros”. Nessa liberdade,
percebemos a possibilidade primeira do “desencontro” como uma divergência
de opiniões e de posicionamentos frente à vida e o mundo. Uma vez que ela é,
para Casaldáliga, uma prerrogativa humana, entusiasmou-nos estudar as
imagens dos encontros e dos desencontros com a natureza.
Para tanto, o capítulo tem dois enfoques. Primeiro buscamos destacar
as imagens dos encontros e dos desencontros com a natureza, seu modo de
constituição e aquilo que se recria na poesia através delas. Num segundo
momento, foram analisados os processos figurativos relacionados a alguns
aspectos das consequências, para o homem e para o meio ambiente, desses
diferentes modos de encontro.
72

2.1 Homens (des)encontrados

ADVENTO NA ILHA DO BANANAL

Vou a cavalo da liberdade,


o verde novo, o burro velho
e o coração na meia idade.
Na sempre-viva de um só conselho

recolho as flores, vozes esparsas.


No voo rasteiro da senda antiga
congrego o sonho das muitas garças.
E a fé me cerca, teimosa amiga.

As vacas dobram sinos calados,


longe dos Homens desencontrados
– a paz dos Homens passando mal.

Maria canta, prenhe de Advento


e, atento o mundo ou desatento,
Deus vem ao mundo pelo Natal.

(CASALDÁLIGA, 1982, p. 81)

Este poema foi publicado no livro A cuia de Gedeão (1982). Casaldáliga


constrói nele uma imagem do “desencontro”, que surge como uma ação sofrida
pela humanidade. Essa figura apresenta contornos bem definidos, se
comparada às vezes em que ocorre em outros poemas. Ainda assim, é de
difícil apreensão porque a maior parte dos versos é dedicada à construção de
uma relação tempo/espaço, enquanto que o termo “desencontro” ocorre
apenas uma vez. Tal fato dificulta a apreensão da imagem que nos esforçamos
para destacar, como também confere certo hermetismo ao poema como um
todo, efeito que se observará no decorrer da análise.
O exame inicial dessa imagem mostra que o “desencontro” é um
fenômeno coletivo. Consiste na ausência de harmonia, de paz, de
concordância entre os indivíduos e de “encontro” com a natureza, mas não
apenas isso. O conteúdo e a estrutura do poema sugerem que é, também, uma
condição humana frente ao cosmos.
73

Difere do conflito. Este, embora seja uma temática amplamente


abordada por Casaldáliga, não figura em toda a obra como um estado
permanente do homem, enquanto que o desencontro, sim.
Considerada a quantidade de versos que o poeta dedica ao tema
“natureza”, nove de um total de quatorze, observa-se, de início, que uma
condição do desencontro é estar afastado do convívio com a natureza. Esse
afastamento é tanto físico como espiritual, já que, no poema, o espaço natural
sugere um estado de harmonia, como se observa em: “as vacas dobram sinos
calados”. E o desencontro associa-se a uma crise na “paz” entre os homens: “–
a paz dos Homens passando mal”.
Igualmente importante para a compreensão do poema e da imagem que
buscamos delinear, é articulação tempo e espaço. A partir dela, podemos
concluir que o desencontro não é somente estar distanciado da natureza, mas
estar afastado dela num período de tempo específico. Esse tempo é o da
gestação do Deus feito homem, o “Advento”5, e o da “encarnação do Verbo”, o
Natal.
Tal leitura é fiel às imagens no poema, contudo, diverge da realidade.
Não se sustentaria uma análise na qual se afirmasse que a “paz”, de espírito e
nas relações sociais, é um privilégio das pessoas que mantêm contato com
espaços naturais, como a “Ilha do Bananal”. Ou que a “paz” se opõe à vida
urbana, ou ainda, que somente pode ser fruída no período de celebração do
Natal. Esse fato é a primeira evidência de um processo figurativo: há um
distanciamento entre o mundo criado pelas imagens e o mundo exterior a elas,
histórico, real, segundo Octavio Paz (1976). Apesar dessa distância, os poetas
afirmam que “suas imagens nos dizem algo sobre o mundo e sobre nós
mesmos e que esse algo, ainda que pareça um disparate, nos revela, de fato, o
que somos” (PAZ, 1976, p. 45).
O que é esse algo que o poema em questão nos revela sobre o mundo e
nós mesmos, sobre a existência humana? Essa é uma pergunta à qual não se
pode dar uma resposta completa. Todavia, a partir dela, buscamos refletir
acerca do processo construtivo do poema, na sua relação com a história. Por

5
Informação disponível em http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/documentos/Subs11-
Natal2015.pdf. Acesso em: 10/02/2016.
74

meio desse procedimento, esperamos elucidar a relação tempo-espaço no


poema e, com isso, definir uma imagem do desencontro na humanidade.

2.1.1 O tempo e o espaço do encontro

Iniciando nossa reflexão pelo título do poema, observa-se nele a relação


entre dois substantivos, os quais remetem a um tempo e a um espaço
especificado geograficamente. “Advento” é o termo que designa, no Ano
Litúrgico Católico, o período de quatro semanas que antecede o Natal, festa de
celebração do nascimento de Cristo. Evento que, por sua vez, possui um
sentido de grande importância para os Cristãos.
Na perspectiva de Mircea Eliade (1997), podemos considerar o termo
“advento” como indício de um “tempo sagrado”. Esse conceito se refere ao
“tempo no qual se coloca a celebração de um ritual e que é, por esse fato, um
tempo sagrado, quer dizer: um tempo essencialmente diferente da duração
profana que o antecede” (ELIADE, 1997, p. 482). Não obstante,

Todo tempo, qualquer que ele seja, se abre para um tempo


sagrado ou, por outras palavras, pode revelar aquilo a que
chamaríamos, por expressão cômoda, o absoluto, quer dizer, o
sobrenatural, o sobre-humano, o supra-histórico. (ELIADE,
1997, p. 482)

Através do recorte e justaposição destes aspectos da conceituação de


“tempo sagrado”, evidencia-se a compreensão de que a diferença entre o
tempo sagrado e o profano não instaura uma oposição. Além disso, sintetiza-se
que, a despeito de sua heterogeneidade, todo tempo possuiria uma “substância
comum”, na visão de Mircea Eliade (1997). Assim, entendemos os tempos
sagrado e profano como não excludentes, mesmo que, em outros pontos de
seu trabalho, Eliade os oponha categoricamente: “Ora, a primeira definição que
se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano” (ELIADE, 1992, p. 13).
Tal esclarecimento tem por objetivo poder aproximar a visão teórica de Eliade
da teológico-existencial de Casaldáliga.
Como já observamos no capítulo anterior, o sagrado e o profano não
constituem realidades opostas e excludentes para Casaldáliga, mas
aproximam-se. Por outro lado, conforme Gustavo Gutiérrez (2000, p. 247), a
75

teologia da libertação assume o seguinte pressuposto: “desde que Deus se fez


homem, a humanidade, cada homem, a história, é o templo vivo de Deus vivo.
O ‘profano’, o que está fora do templo, não existe mais”. Assim, tudo aquilo que
se entende por “profano” seria apenas aparência, visto que, essencialmente, a
“encarnação do Verbo” estabeleceu uma sacralidade universal.
O raciocínio hermenêutico no qual o teólogo sustenta sua compreensão
do sagrado e do profano estrutura-se a partir da leitura de textos bíblicos que
versam sobre a “Casa de Deus” – lugar sagrado. Embora o argumento de
Gutiérrez (2000) se concentre numa noção relacionada ao espaço, a sua
conclusão acerca do “profano” é eminentemente temporal. O fim do profano e o
início da predominância do sagrado dão-se no momento, de certo modo
arquetípico, da “encarnação do Verbo”, o Natal. Trata-se de uma visão de fé
ancorada numa leitura teológica.
A presença de Deus na “corrente” do capital, como observamos no
poema “Presenças”, por exemplo, é uma figura que recria essa visão teológica
de mundo. Em seu cerne, tal imagem reverbera uma das contradições mais
pungentes da compreensão do que seja Deus no Cristianismo, a de que esse
Ser Supremo de amor está e é constitutivo até das pessoas e eventos mais
danosos (ou aparentemente danosos) para a humanidade. Por isso
deveríamos amar nossos inimigos, porque Deus estaria neles. Talvez seja esse
o maior inconveniente de uma leitura dos ensinamentos de Cristo, que coloca
em primeiro plano uma sacralidade universal que consiste em reconhecer a
presença libertadora de Deus em todos os homens, o que “impede de falar com
propriedade de um mundo profano” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 202).
Estabelecer a distinção entre o sagrado e o profano no que tange ao
tempo é também uma questão que se coloca Eliade (1997). Porém, embora
busque a diferença entre tais temporalidades, ressaltamos que características
do tempo sagrado apresentadas pelo teórico podem ser entendidas como uma
predominância desta temporalidade, em detrimento da profana, ou, pelo
menos, como uma não oposição entre os tempos em questão. Além da
justaposição de citações desse autor, de início apresentada, referimo-nos,
centralmente, ao fato de que ele (1997) defende que os tempos sagrados
formam um “continuum que só aparentemente é interrompido pelos intervalos
76

profanos” (p. 485). Nessa perspectiva, a duração profana “corre, por assim
dizer, paralelamente ao tempo sagrado” (ELIADE, 1997, p. 485).
Desse modo, há duas formas de entender a relação entre os tempos
sagrado e profano, de acordo com Eliade (1997). Na primeira, o tempo sagrado
é separado e oposto à temporalidade profana, em outras palavras, o conceito
de um continuum tempo sagrado exclui a temporalidade profana. Nesse
raciocínio, é fato que a maior parte do tempo que Gutiérrez (2000) e
Casaldáliga compreendem como sagrado é, para Eliade (1997), profano. Isso
porque para a teologia da libertação “concretamente, não há duas histórias,
uma profana e outra sagrada, ‘justapostas’ ou ‘estreitamente unidas’, mas um
só devir humano assumido irreversivelmente por Cristo, Senhor da história”
(GUTIÉRREZ, 2000, p. 204).
Não obstante, como o tempo profano figura apenas na condição de uma
aparência de interrupção na duração sagrada, conforme citado (ELIADE,
1997), até o conceito de continuum tempo sagrado sugere certa indistinção
entre as temporalidades de que tratamos, na medida em que a diferença seria
apenas aparente.
Na segunda forma de compreensão, qualquer tempo pode se tornar
sagrado. Em virtude disso, pode-se concluir que entre as temporalidades
sagrada e profana há uma ligação. Tal entendimento assemelha-se à
compressão expressa na poética de Casaldáliga, segundo a qual o divino está
em todas as coisas.
Tendo por base tais considerações, chamamos a atenção, então, para
as situações geográficas que, atribuídas ao significante “advento”, tornam seu
significado relativo. É fato que constitui um tempo sagrado. Mas a articulação
dos substantivos “advento” e “Ilha do Bananal”, aparentemente, distancia
Casaldáliga das proposições da teologia da libertação.
Desse modo, a imagem do “Deus feito homem” suscitada pelo termo
“advento”, que, recorrentemente, tanto na obra de Casaldáliga quanto na
teologia da libertação conota o absoluto, o universal, o todo, sofre uma
relativização geográfica. Apesar disso, seu caráter de universalidade se
mantém, em virtude da grafia reiterada do termo “Homem”, com ‘h’ maiúsculo,
que não remete a um homem específico, mas à humanidade e à utilização do
77

significante “mundo”, também reiterada. Logo, convivem, no poema, o lugar e o


universal, o relativo e o absoluto.
O procedimento de relativização geográfica do absoluto, empreendido
por Casaldáliga, não é estranho à perspectiva teórica de Mircea Eliade (1997).
Este assume a relatividade do tempo ao afirmar que a temporalidade sagrada
constitui um eterno presente, passível de ocorrer em qualquer lugar no qual
haja alguém disposto a por em acontecimento um determinado ritual, conforme
se verifica no fragmento abaixo:

Na religião como na magia, a periodicidade significa sobretudo


a utilização indefinida de um tempo mítico tornado presente.
Todos os rituais têm a propriedade de se passarem agora,
neste instante. O tempo que viu o acontecimento comemorado
ou repetido pelo ritual em questão é tornado presente, «re-
presentado», se assim se pode dizer, tão recuado no tempo
quanto se possa imaginar. [...] Encarado a esta luz, o esforço
de Sõren Kierkegaard para traduzir a condição cristã na
fórmula «ser contemporâneo de Jesus» mostra-se menos
revolucionário do que parece à primeira vista. (p. 486-487)

Nessa perspectiva, observa-se no título do poema a sobreposição de


pelo menos dois tempos: o do “advento”, sagrado, eternamente “presentado”, e
o demarcado historicamente no substantivo próprio “Ilha do Bananal”. Desse
modo, a celebração reiterada do ritual não é uma complementação do gesto
salvador primeiro que a existência histórica de Jesus possui para os Cristãos.
Portanto, o aspecto relativo decorrente da determinação do lugar não invalida o
caráter absoluto da “encarnação do Verbo”, mas supõe um processo de fazer
concomitantes temporalidades diversas.
Essa concomitância de temporalidades, vagamente vista no título,
prenuncia um processo construtivo que propõe a unidade de elementos
díspares, o qual se concretiza ao longo do poema, sobretudo nas duas estrofes
iniciais. Vejamos como essa unidade é expressa quanto ao elemento tempo.
O primeiro verso inicia-se com o verbo irregular “ir”, conjugado na
primeira pessoa do presente do indicativo; constitui, portanto, uma oração.

Vou a cavalo da liberdade,


o verde novo, o burro velho
e o coração na meia idade.
78

(CASALDÁLIGA, 1982, p. 81)

Porém, a classificação sintática dos versos dois e três não pode ser feita
com tanta precisão. A relação semântica que esses versos estabelecem com o
inicial não permite tomá-los como aposto do vocábulo “cavalo”, visto que não
restringem ou explicam o sentido desse substantivo.
Podemos, então, assumir que se estruturam sobre orações coordenadas
como a que se verifica no verso inicial. Caso em que se compõem de duas
assindéticas e uma sindética aditiva, respectivamente. A viabilidade dessa
leitura requer uma presença elíptica do verbo “ir”, na terceira pessoa do
singular, presente do indicativo, interna às intercalações por vírgula. A forma
oculta flexionada seria o “vai”.
Nessa estrutura, a relação que se estabelece entre os termos “novo”,
“velho” e “meia idade”, dada pelo verbo, é de semelhança e de simultaneidade.
De semelhança por cumprirem a mesma função sintática. De simultaneidade
em virtude de as temporalidades a que remetem estarem contidas no mesmo
tempo, o presente do indicativo. Coopera com esse efeito, ainda, o uso da
conjunção aditiva “e”, elíptica e expressa, nos versos dois e três,
respectivamente, e a predominância da coordenação assindética, conforme
explica Sant’Anna Martins (1997) no estudo da estilística da frase.
Tal estrutura pode ser interpretada, assim, como indício de uma unidade
do tempo que suprime a ideia de sequência. Isso porque, isolando-se as
marcas de tempo, inclusive o verbal, teríamos a formação do que podemos
chamar de um “presente interminável”, composto por “passado”, “agora” e
“futuro”. Isso não significa, a nosso ver, que os tempos em questão deixem de
existir na lógica engendrada pelo poema, mas que existem no presente. É
como se três tempos participassem da viajem, ou caminhada, que realiza o eu
poético num momento do presente.
Embora temerária, porque nada pode garantir que de fato exista uma
presença elíptica do verbo “ir” no interior das intercalações por vírgula, tal
leitura encontra suporte no fato de que o poeta mobiliza, predominantemente,
orações coordenadas assindéticas na composição do poema. Duas conjunções
ocorrem em todo o texto, elas são “e” e “ou”, aditiva e alternativa,
respectivamente. Esta apresenta uma única ocorrência, no terceto final.
79

Aquela, por outro lado, pode ser depreendida em todas as orações que
compõem o poema. Com relação ao elemento tempo, o uso da conjunção “e”,
no poema, provoca o efeito de concomitância. Devido a isso e a não utilização
das demais conjunções, torna-se inviável precisar uma ordem temporal para os
acontecimentos expostos pelo eu poético.
Desse modo, as considerações sobre o tempo nos versos iniciais podem
ser estendidas para todo o texto. Isso provoca, dentre os efeitos, como
decorrência, pouco nexo lógico existente entre as orações coordenadas
assindéticas (MARTINS, 1997). Além disso, a total supressão de uma
sequência temporal na ordem das ações executadas pelo eu lírico e dos
acontecimentos por ele narrados, corroborando para a impressão de
concomitância. Supondo-se que o espaço percorrido seja o da “Ilha do
Bananal”, como sugere o título, esse efeito de unidade do tempo é o que
possibilita que esse espaço, existente sob tal designação somente a partir do
século XVII, possa ser contemporâneo ao nascimento do Cristo, acontecimento
ocorrido há mais de 2000 anos. A única sequência resguardada por
Casaldáliga é a dos versos.
Outra leitura possível dos elementos intercalados por vírgulas é a de que
sejam apenas frases nominais justapostas. O que não muda as conclusões já
apresentadas acerca do tempo, apenas as reforça. Nesse caso, os dois
extremos são colocados lado a lado, depois, no verso seguinte, é colocado o
tempo que se estabeleceria no intervalo entre eles. Graças a essa organização
e à ausência de conjunções subordinativas, não há nos versos uma relação de
progressão ou regressão temporal, mas, também, de similaridade e
concomitância entre o “novo”, o “mediano”, e o “velho”. Assim, conforme nossa
perspectiva, também essa estrutura remete ao que chamamos de um “presente
interminável”.
A despeito do modo como sejam lidos, além das relações semânticas
evidenciadas pelos adjetivos que lhes modificam e pelo verbo “ir”, no caso de
os versos se assentarem sobre orações coordenadas, há pouco nexo entre os
substantivos “verde”, “burro” e “coração”. A estrutura sintática dos três versos
iniciais é recorrente. Era de se esperar que essa tendência se mantivesse no
aspecto figurativo. Isso, porém, não ocorre. O que apenas ressalta a
80

dificuldade de se estabelecer conexões lógicas entre os termos em questão,


com a qual nos defronta o poema.
Do ponto de vista da figuração, na medida em que esses termos
constituem sujeitos da ação comunicada pelo verbo, “verde” pode ser
considerado como prosopopeia. Indica, assim, a existência de uma natureza
viva e zelosa, que acompanha o eu lírico em seu percurso. O termo funciona
como hipônimo de toda a flora. O vocábulo “burro” relaciona-se a este porque
designa um vivente não humano, um aspecto da natureza, além disso, não
apresenta conotação pejorativa. “Coração”, por sua vez, é uma metonímia do
“eu”, elíptico no primeiro verso, indica seu tempo de vida. A “meia idade” é,
assim, a metade do caminho, a metade da vida.
Constata-se, então, uma independência semântica e sintática existente
entre os elementos que compõem os três primeiros versos, quer assentem-se
estes sobre orações coordenadas quer sobre frases nominais. Apesar dessa
disparidade, o elemento tempo, neles recorrente em heterogeneidade, mostra-
se uno, como vimos. Por outro lado, a relação que se estabelece entre os
termos “eu”, elíptico no primeiro verso, “verde”, “burro” e “coração” também é
de semelhança e de simultaneidade. Isso se dá em virtude tanto do tempo
verbal quanto da conjunção “e”, elíptica e expressa, que os relaciona, nos
versos dois e três, respectivamente, fato do qual resulta a impressão de que
esses seres caminham juntos. Além disso, tais termos têm em comum o fato de
serem “viventes”, segundo denominação abstraída do poema “Presenças”.
Nesse sentido, também aparecem como unidade, a despeito da independência
que apresentam.
Partindo da perspectiva de Bosi (1977), segundo a qual “o discurso
tende a recuperar a figura mediante um jogo alternado de idas e voltas; séries
de re(o)corrências” (p. 23), a nosso ver, a reiteração dessa independência
sintática e semântica é, então, a constituição figurativa da “liberdade”,
mencionada no primeiro verso. Nesse caso, “liberdade” seria não ser
dependente de algo ou alguém e nem tornar qualquer ser ou fenômeno
dependente de si. Quanto à reiteração da sugestão de unidade entre esses
termos livres, é um aspecto do que temos chamado de encontro do homem
com a natureza. Isso porque um eu viaja/vai junto com o “verde” e com um
“burro”. Esse encontro não suprime as particularidades dos seres de que dele
81

participam, mas propõe uma harmonia entre eles. O que os faz partilhar do
mesmo caminho, colocando-os lado a lado. Tal procedimento, em nível
semântico, é recorrente no poema, sobretudo nas duas primeiras estrofes.
Nesse sentido, nos versos “Na sempre-viva de um só conselho / recolho
as flores, vozes esparsas”, o elemento intercalado por virgula é um aposto
explicativo do substantivo “flores”. Através dele se verifica que cada flor,
embora da mesma espécie, a “sempre-viva”, possui uma particularidade,
demarcada pelo termo “esparsa”. Este, por seu emprego no poema, pode
variar quanto à significação. Na qualidade de adjetivo, remete a “espalhado”,
“disperso”; na de substantivo, designa uma composição poética que varia
“entre 8 e 16 septissílabos” (MOISÉS, 2004, p. 165). Quer numa, quer noutra
acepção, singulariza o substantivo “flores”. Num caso, diz que cada “flor” tem
seu lugar próprio, noutro, que cada uma se constitui obra específica.
Em todo caso, em nossa percepção, esse aposto reitera o sentido de
particularidade e independência. Como nos três primeiros versos, essa
característica não isola os elementos, no caso, as “flores”, mas permite a
reunião entre eles. Assim, a pluralidade pode se condensar na singularidade de
um “só conselho”. Verifica-se, ainda, a existência de um relacionamento,
pautado na confiança, entre o eu lírico e a natureza. O que se depreende do
fato de o eu poético ser aconselhado pelas “flores”. De certo modo, ele divide
com elas um ponto de vista. Nisso observamos, então, um aspecto do que
temos chamado encontro do homem com a natureza.
Os versos “No voo rasteiro da senda antiga / congrego o sonho das
muitas garças” apresentam estrutura semântica semelhante aos que lhe
antecederam. O substantivo “sonho”, precedido do artigo definido “o”, é um
elemento comum às “muitas garças”. A unidade que ele produz não é
espontânea, mas resulta da ação de “congregar” do eu lírico. Desta ação
depreende-se a existência de um relacionamento de intimidade entre o sujeito
poético e a natureza que o envolve. Em virtude disso, podemos dizer que há
entre os versos quarto, quinto, sexto e sétimo uma relação de paralelismo
semântico, o qual não se concretiza em nível morfossintático porque o sétimo
verso não apresenta aposto.
O verso oitavo, “E a fé me cerca, teimosa amiga”, introduzido pela
conjunção aditiva “e”, reitera a questão do tempo apontada no título e nos três
82

versos iniciais. Esta, como dissemos, estende-se por todo o poema. Nesse
sentido, o termo “cercar”, conjugado no presente do indicativo, evidencia que a
“fé” é um elemento exterior ao sujeito poético, coincidindo, assim, com espaço
natural que o envolve, e o adjetivo “teimosa”, conota que é persistente. A
articulação entre o tempo verbal empregado e a noção de persistência revela a
ideia de algo “persistentemente presente” (CASALDÁLIGA, 1979, p. 69.)
No que tange a essa temporalidade, dos versos 4 a 7, a concomitância e
a semelhança entre passado, presente e futuro é reiterada pelo tempo verbal, a
que se submetem às referências a essas temporalidades, e pelo paralelismo
semântico, conforme demonstramos. Nesses versos, remetem a tais tempos o
substantivo composto “sempre-viva”, o adjetivo “antiga” e o substantivo simples
“sonho”.
Nessas estrofes, observamos, portanto, que Casaldáliga cria uma
imagem do encontro do homem com a natureza e com seus semelhantes
humanos, a partir de uma noção de liberdade que permite o compartilhar de
opiniões e de caminhos. Essa extensão da imagem do encontro à espécie
humana respalda-se no fato de o sujeito poético não ser uno, mas constituído
por uma outridade vital. O que se depreende do verso: “e o coração na meia
idade”.
O “coração” e o eu, elíptico, conforme dito, estão mutuamente
implicados, constituem, por metonímia, um mesmo sujeito. Ainda assim, a
imagem poética revela um eu que é constituído de um “outro”. Dito de outra
forma: “a imagem poética é outridade” (PAZ, 1976, p. 102). Em outras palavras,
a experiência do encontro, porque poética, nutre-se na outridade. Por isso, no
poema “Presenças” (CASALDÁLIGA, 1979, p. 69), o eu lírico afirma “encontro-
me sempre”.
No que se refere às duas primeiras estrofes, consoante a Octavio Paz
(1976), verificamos que a outridade é tanto um fenômeno constitutivo da
consciência quanto diz respeito às relações sociais que os indivíduos mantêm
entre si. Trata-se de um processo em que cada sujeito se reconhece enquanto
tal nas relações que estabelece com os outros. Para que isso se efetive, são
fundamentais, conforme se depreende do referido autor, a diferença e a
semelhança. O sujeito se percebe diferente, ao passo que também se
reconhece no outro. Nos versos, “diferença” associa-se à imagem da liberdade,
83

no modo como se apresenta no poema, e “semelhança” à do encontro, que


permite aos sujeitos poéticos partilharem caminhos, ensinamentos e sonhos.
Nessa perspectiva, não apenas “o coração” figura como um “outro” que
compõe o eu poético, mas também “o verde”, “o burro”, “as flores” e “as
garças”. Na medida em que esses termos desempenham o mesmo papel em
relação ao eu lírico, podemos dizer, parafraseando Octavio Paz (1976, p. 102),
que permitem reconhecer o outro no uno, devolvendo a linguagem à sua
natureza metafórica: tornar presentes os outros. Assim, o “sonho”, “congregado
de muitas garças”, e o “conselho”, recolhido “em vozes esparsas”, podem ser
considerados, igualmente, como aquilo que se aprende ouvindo as pessoas e
observando a natureza, nos mais diversos lugares e comunidades.

2.1.2 A paz dos homens passando mal

A penúltima estrofe do poema é um terceto

As vacas dobram sinos calados,


longe dos Homens desencontrados
– a paz dos Homens passando mal.
(CASALDÁLIGA, 1982, p. 81)

É possível depreender do verso inicial a conjunção “e”, elíptica, antes do


artigo definido “a”, flexionado no plural. Isso conota concomitância entre a ação
nele expressa e as expostas nos versos anteriores, conforme temos apontado.
A relação que “as vacas” mantêm entre si, demarcada pelo verbo
“dobrar”, sugere um estado de harmonia ou simultaneidade na execução de
uma ação. O que se assemelha aos relacionamentos que se firmaram entre o
eu lírico e outros sujeitos poéticos nas duas primeiras estrofes. O verso faz
referência à cultura de pendurar um badalo no pescoço dos bovinos. Dentre os
motivos para o uso desse equipamento está a proteção de trabalhadores
contra ataques sorrateiros dos animais.
Entre os significantes “sinos” e “calados” se estabelece uma relação
antitética do tipo som/silêncio, movimento/estaticidade. Esta, articulada com o
uso do verbo “dobrar”, torna evidente uma ausência de movimentos físicos por
parte das “vacas”. Isso não significa uma ausência de ação, conforme indica o
84

verbo. Somando isso ao significado de natal suscitado pelo poema e, no âmbito


da estrofe, evocado pelo significante “sino”, entendemos o efeito de harmonia
sugerido pelo verso. Ele indica o sincronismo de movimentos e vibrações
sonoras, no caso, de não movimentos e não vibrações. Conota, ainda, algo
imaterial, da ordem do espírito, que associamos à noção de “paz”, consigo
mesmo e com outros indivíduos.
Com base nisso, o advérbio “longe”, que inicia o verso seguinte, pode
indicar, primeiro, o distanciamento espacial de um lugar de encontro, que no
poema é definido pela proximidade com a fauna e a flora. Segundo, o desvio
de um modo de se relacionar com as pessoas e ambientes que preconiza a
“liberdade” e suscita harmonia e unidade.
Tais possibilidades de compreensão do termo “longe” não devem ser
vistas de modo dissociado na reflexão sobre poema. Tampouco no que
respeita a obra de Casaldáliga, como se no contato contínuo com a natureza
configurasse sempre o encontro, no sentido que temos tratado, e a vida na
cidade figurasse sempre como desencontro. Essa dissociação pode ser
operante no estudo de diversos poemas, como o que estamos analisando, ou
no abaixo citado:

MEGALÓPOLE

As janelas dos prédios


no espaço invadido
se olham sem se ver.

As ruas se entrecruzam
sem nunca se encontrar,
transbordando de gente.

E sob um sol ausente de si mesmo


o ar está afogando
e está morrendo o povo.

(CASALDÁLIGA, 2006, p. 40)

A impossibilidade de assumirmos tal dissociação como parâmetro de


uma abordagem geral decorre de a reflexão, na poética de Casaldáliga, não se
concentrar, predominantemente, sobre o lugar. Mas sobre as relações que as
pessoas estabelecem nos lugares e com eles. Isso faz surgir imagens que
85

remontem aos processos históricos – especialmente políticos e


socioeconômicos – nos quais se ancoram algumas das relações dos seres
humanos entre si e com os diversos espaços que habitam. Tais imagens
permitem perceber que esses processos não são circunscritos espacialmente.
Assim, a natureza não é sempre retratada como lugar de encontro, nem o
desencontro figura como efeito irremediável da cidade.
Posta tal ressalva, até este ponto do trabalho, os “homens
desencontrados” são aqueles que, de certa forma, acham-se privados de
identificação com seus semelhantes humanos e viventes em geral por um
“distanciamento”. Em virtude da grafia da palavra “homem”, com “h” maiúsculo,
depreendemos que se trata de um fenômeno coletivo, conforme dito.
Temos compreendido esse distanciamento através da análise das
“intimidades” do poema, dos “fatores que atuam na organização interna, de
maneira a constituir uma estrutura peculiar” (CANDIDO, 2006, p. 13). Desta,
surgiu uma imagem do encontro, como algo delimitado por um espaço de
convivência com a natureza, e do desencontro como um estar afastado deste
espaço. Mas isso constitui uma parte da leitura.
Compreender este “longe” como o desvio de um modo de se relacionar
com as pessoas e ambientes que preconiza a “liberdade” e suscita harmonia e
unidade, requer o entendimento de elementos exteriores ao texto, porque eles
concorrem para estruturação interna dessas imagens. Deve-se buscar, então,
fundir o interno e o externo “numa interpretação íntegra” (CANDIDO, 2006, p.
13).
No tocante a isso, interessaram-nos os trabalhos de Norval Baitello
(2005) e Ciro Marcondes Filho (2009) sobre um fenômeno social, relativo ao
século XX, mas que nos é contemporâneo, por eles denominado,
respectivamente, “perda do presente” ou “incapacidade de viver o presente”.
Segundo Baitello (2005), esse fenômeno está associado com o
estabelecimento da aparência como paradigma de relações das pessoas entre
si e com os espaços que as envolvem na contemporaneidade. Pouco a pouco,
nossos olhos foram “sedados” por uma excessiva, acelerada e padronizada
produção de imagens, orientada por uma lógica de apropriação infinita do
mundo. Então, deixamos de sentir o outro em materialidade, como corpo, e
passamos a lidar com ele como lidamos com as imagens. Por fim, o outro se
86

tornou uma imagem. Casaldáliga apreende aspectos desse fenômeno da


cultura no poema “Evasão” (2006, p. 59):

Casa de pobre,
Foto de rico.
(A imagem
Confina a tragédia...)

Casa de rico,
foto de pobre
(A imagem
dispensa o remorso...)

Paralelamente, os sentidos corporais, que supõem relacionamento


íntimo e que propõem ir além da imagem, e, nesse sentido, além da aparência,
perderam efetividade comunicativa. Deixaram, assim, de se constituir como
acordes importantes no estabelecimento dos vínculos sociais, explica Baitello
(2005), ou, em consonância com Casaldáliga, de encontros. A perda desses
sentidos engendrou a “perda do presente” porque, pode-se dizer, dificultou a
ocorrência dos encontros. A lógica da imagem, que é a aparência, permite a
“evasão” dos encontros. Sem estes não há presença e nem presente, o que se
depreende de Baitello e dos poemas de Casaldáliga.
Nesse sentido, podemos entender o eu poético que “vai” (“vou a cavalo
da liberdade”) como um sujeito que se retira de um mundo onde o homem foi
“recriado à imagem contabilizada do Lucro” (CASALDÁLIGA, 1978, p. 14). O
termo imagem aí é empregado pelo poeta num sentido amplo para referir-se às
imagens produzidas pela cultura capitalista e não às imagens poéticas.
As imagens produzidas pelo capitalismo, conforme vimos em Baitello
(2005), funcionam segundo a lógica da aparência, enquanto que as poéticas
mobilizam todos os sentidos da percepção (CHCLOVSKI, 1976). Casaldáliga
refere-se, então, a um “eu retirante” de um mundo no qual o ser humano
perdeu materialidade e passou a ser imagem daquilo que possui ou realiza.
Nesse âmbito, retirante de um padrão comportamental que desconsidera a
existência, por detrás dos dados, de “um manto de sofrimento e humilhação
condenando as pessoas a morrerem antes do tempo” (BOFF, 2012, p. 18).
Semelhantemente, Marcondes Filho (2005) trata a questão da perda do
presente, na contemporaneidade, como consequência da perda do corpo, ou
87

do sentido de corporeidade, nas relações dos sujeitos entre si e com os


espaços que os envolvem. Contudo, ele apresenta outro motivo para isso.
Segundo o autor, vivemos orientados por uma busca constante por
produtividade. Isso nos leva a tentar realizar o máximo de tarefas em um
mínimo de tempo, sempre visando à atividade seguinte. Esse modo de viver
que, para Marcondes, é não viver, decorre de uma cultura de acumulação de
riquezas e de um fascínio que os meios técnicos de produção, as máquinas,
exercem sobre nós. A razão de tal fascínio, explica ele, é a ilusão de
indestrutibilidade que as máquinas produzem.
Buscando “ganhar tempo”, vivendo aceleradamente, considerando-nos
uns aos outros por aquilo que produzimos, anulamos as particularidades de
cada sujeito, o tempo que cada um leva para se alimentar, entrosar-se,
aprender, namorar... Reduzimo-nos, assim, às máquinas, tornamo-nos
automáticos, o que é figurado pelo autor como um “perder a vida”. Por isso, a
obra que serve a tais comentários intitula-se Perca tempo: é no lento que a vida
acontece (2005). Sobre isto, na poética de Casaldáliga (2006, p. 110), citamos
o noema 3:

Tu não és máquina,
tu vales mais que a máquina
e toda máquina é tua!

A relação entre um “automatismo” no trato com as pessoas e o


ambiente como motivo de “perda do presente”, também é discutida por Viktor
Chclovski (1976), no texto A arte como procedimento. Em tal trabalho, esse
estudioso opõe-se à compreensão de que “a arte é pensar por imagens”.
Chclovski centra seu posicionamento, conforme nossa leitura, em função do
verbo “pensar”, quando este supõe um processo “natural” da mente através do
qual, invariavelmente, busca-se uma “economia de energias” nos usos da
língua, bem como nas demais ações. Desse processo de “economia”, explica
Chclovski (1976), pode decorrer um “automatismo” que leva à impossibilidade
de perceber as pessoas e os espaços no tempo presente da vida de cada
sujeito. Por sua vez, a arte visa justamente o oposto desse modo de percepção
algébrico e automático:
88

No processo de algebrização, de automatismo do objeto, obtemos a


máxima economia de forças perceptivas: os objetos são, ou dados
por um só de seus traços, por exemplo o número, ou reproduzidos
como se seguíssemos uma fórmula, sem que eles apareçam à
consciência. [...] Assim a vida desaparecia, se transformava em
nada. A automatização engole os objetos, os hábitos, os móveis, as
mulheres, o medo à guerra. [...] E eis que para devolver a sensação
de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra,
existe o que se chama arte. (CHCLOVSKI, 1976, p. 44, 45)

Chclovski (1976) não discorre sobre possíveis interesses políticos e


econômicos sustentados por tal concepção sobre o pensamento humano e as
ações dos homens entre si. Ressaltamos, apesar disso, que suas ideias
convergem com as de Casaldáliga no ponto em que este também entende a
poesia como um modo de romper com uma compreensão da humanidade
limitada à “imagem contabilizada do lucro” (CASALDÁLIGA, 1978, p. 14), o que
pode ser entendido como uma humanidade percebida de modo algébrico.
Assim, em consonância com os estudos de Baitello (2005), Marcondes
Filho (2005) e Chclovski (1976), verificamos que a imagem do desencontro,
elaborada por Casaldáliga, designa um padrão de comportamento norteado
pelo consumo e pela competição, no qual as pessoas se percebem umas às
outras de forma mecânica, algo que se evidencia por um distanciamento dos
lugares de encontro com o outro e com a natureza.
Nesse sentido, mais que a entrada de um discurso direto do eu lírico, o
travessão que inicia tal verso parece indicar uma síntese do desencontro. Isso
nos aproxima de uma proposição metafórica segundo a qual o desencontro é
“a paz dos Homens passando mal”.
A relação que se estabelece entre “a paz” e “Homens”, nesse verso,
seria do mesmo tipo que verificamos entre “um só conselho” e “vozes
esparsas”, e entre “o sonho” e “muitas garças”. Haveria um paralelismo
semântico. Isso não ocorre em função do desencontro. É, assim, a ocorrência
do singular, “a paz” entre a pluralidade dos “homens”, que está comprometida.
Tal singularidade ou unidade é o que consideramos, nos versos anteriores, o
ato ou efeito produzido pelo encontro. Desse modo, percebemos que é o
encontro das pessoas entre si e com os espaços que as envolvem que está em
crise.
89

Assim, o desencontro é expresso como uma “perda do presente”,


enquanto o encontro é um “presente interminável”. Em consonância com isso,
nos versos finais da terceira estrofe, nos quais o tema é o desencontro, os
verbos abandonam o tempo presente e assumem a forma nominal do particípio
passado e gerúndio, respectivamente.
O desencontro figura, portanto, como um acontecimento que marcou
decisivamente um grupo humano, engendrando nele a característica dos
“desencontrados”. Constituído por uma “perda do presente” verbal, tal estado
se expressa no gerúndio “passando” que, no contexto do verso, conota uma
situação continuamente inacabada.
Tal efeito se produz não apenas em função da flexão do verbo, apoia-se,
também, na sonoridade do verso. Em “– a paz dos Homens passando mal”, a
assonância em /a/, afirmamos com base em Lemos Monteiro (1991, p. 100),
indica uma forma ampla, conota extensão, algo que se prolonga. De acordo
com o mesmo autor (1991, p. 102), os fonemas /s/ e /z/ imprimem sensação
auditiva de prolongamento. Nesse sentido, registramos a aliteração nesses
fonemas. Contribuem, ainda, para tal efeito, a ocorrência da consoante /l/, que
sugere “deslizamento”, e a aliteração do fonema /p/, incidente nas duas
primeiras sílabas tônicas.
Quanto à estrutura geral, o poema é um soneto com versos
eneassílabos, e rimas organizadas no esquema ABAB, CDCD, EEF, GGF.
Essa forma coesa e bem marcada se dá também com sintaxe. Apesar
disso, as figuras são constituídas sobre uma ausência de nexo entre os termos
que mobilizam, como visto. Isso gera uma aparência de isolamento entre esses
termos que, como mostra a análise, é um modo de figuração da liberdade que
possibilita o encontro.
Tal estrutura, que engendra a aparência de falta de nexo, ao mesmo
tempo em que os paralelismos e reiterações apontam para a imagem de um
todo bem ajustado e conectado, estabelece-se em todo o poema. Corrobora
para essa aparência de falta de nexo entre o título, as estrofes iniciais e a
última, o fato de que, nos onze primeiros versos, não ocorrem os termos
“advento”, “Ilha do Bananal”, “Maria”, “atento” “mundo”, “Deus” e “Natal”, mas
apenas uma relação homem natureza que figura como encontro.
90

A despeito disso, antes de começarmos a análise deste poema, ele


funcionava como um todo; sequer precisávamos explicar o que seriam
“Homens desencontrados”. Por isso, porque se apresenta sempre como uma
imagem acabada, “forma formada”, “é em face desse processo inteiro de
significação que se deve repensar o sistema das repetições e os paradigmas
que a análise descobre no poema”, afirma Bosi (1977, p. 27). O sistema de
paradigmas e repetições “é a marca que leva à forma nítida” (1977, p. 27), por
esse motivo, o objetivo de nossa análise é compreender como os diferentes
traços cooperam entre si para a formação do todo.

2.1.3 Dos encontros com o outro ao encontro com o Outro

No ensaio “A outra margem” (1982), Octavio Paz discorre sobre a


experiência do sagrado como um encontro com o “Outro”. Ele utiliza esse
termo para designar “Deus” em culturas diversas, como uma extensão do
conceito de outridade. Intitulamos esse tópico do trabalho em referência a esse
conceito.
Adentremos, pois, a quarta estrofe do poema para, sobrepondo as
repetições, definir a imagem do encontro.

Maria canta, prenhe de Advento


e, atento o mundo ou desatento,
Deus vem ao mundo pelo Natal.

(CASALDÁLIGA, 1982, p. 81)

O que primeiro nos chamou atenção, em nível semântico, foi a


possibilidade de uma relação entre o “dobrar de sinos”, no nono verso, e o
canto de “Maria”, no décimo segundo. Há aí a sugestão de uma harmonia
sonora, de acordo com a qual o canto de “Maria” seria acompanhado pelo
badalar de “sinos calados”. Por analogia a isso, em todo o poema, as rimas
podem ser lidas como a expressão estrutural dessa articulação sonora entre
elementos distintos. Configuraria, assim, na estrutura do poema, o que
semanticamente é apontado pelos termos “sinos” e “canto”. Cooperam,
portanto, para a formação das imagens do (des)encontro.
91

O canto de “Maria” se harmoniza com a natureza e, embora a referência


histórica que serve ao verso conte mais de 2000 anos, partilha o tempo
presente demarcado pelo verbo. Desse elo sonoro entre o “cantar” e o “badalar
de sinos”, depreende-se proximidade. Em virtude disso, o espaço construído
nas três estrofes iniciais pode ser interpretado como o do presépio, que é o
estábulo onde Jesus nasceu, segundo a fé cristã e os textos bíblicos. Tal
espaço é recriado por Casaldáliga a partir de elementos da fauna e da flora
brasileiros. Assim, essa estrofe converte o espaço construído nas anteriores
num lugar de encontro com o “Outro”.
Nesse contexto, observamos que, no poema, Casaldáliga parte da
sobreposição entre os tempos sagrado e profano para uma estrutura que
mostra que o profano é apenas aparente e o tempo é uno. Assim, não faz
sentido considerar os termos “Advento” e “Natal” como indício de tempo. Essa
compreensão é confirmada pelo fato de que, na estrofe final, “Advento” designa
o filho de Maria e “Natal” o meio do qual ele se vale para vir ao mundo. A
questão que nos coloca o poema é, então, elucidar a função do “natal” na
imagem encontro, já que não designa um tempo apenas.
No “Auto Sacramental Sertanejo Deus nasce na casa do vaqueiro”,
publicado na obra Cuia de Gedeão (1982), Casaldáliga vale-se de uma
estruturação do tempo, e no seu bojo, da imagem do encontro, que é
semelhante a que viemos observando no poema “Advento na Ilha do Bananal”.
Devido a isso e porque apresenta o natal como temática, apreciemos esse
texto, a fim de possibilitar uma melhor compreensão do poema em análise.
Trata-se de um drama. Nele, o poeta emprega como técnicas de
redação principais, a narração em prosa e o diálogo, além de articular citações
bíblicas, poemas e letras de canção. Centradamente, dialoga com as “Tristezas
do jeca” (1922), composta por Angelino de Oliveira.
A peça estrutura-se de modo a delinear certa compreensão do natal
através da resolução de conflitos que se desdobram ao longo enredo. Essas
intrigas apresentam-se como barreiras à instauração do comportamento que
Deus haveria tentado gerar na humanidade por meio do nascimento de Jesus.
A trama desenrola-se em torno de onze personagens. São eles: Luís,
Cida e Marlene, uma família de camponeses que presta serviços na fazenda
“Sóboi”; José e Maria, peregrinos, e o filho recém-nascido deles, chamado
92

“Deus-salva-o-seu-Povo”, parido no curral próximo à casa de Luís e sua


família; Conceição, mulher cujo irmão é assassinado numa briga de bar;
Carlos, homem que, movido pelo desespero e pela embriaguez, num ato
impensado, mata um amigo numa briga de bar; Afonso e outros dois
funcionários da fazenda, que procuram o assassino a fim de fazer justiça; Além
disso, há um narrador e um coral que cooperam para a construção da trama de
modo extradiegético.
Na noite de natal, Cida, a esposa, a sós na cozinha, prepara a mesa:

uma jarra com flores de flamboyant, uma bandeja de bolo e a


vela de Natal. Depois, pega o Evangelho, abre-o e volta-se
para o público, perguntando: CIDA: Vocês sabem mesmo que
festa celebramos esta noite? Que significa “Natal”? Por que
Jesus nasceu assim tão pobre? É bom ser pobre? Deus quer
que sejamos pobres? Deus quer que haja pobre e ricos? Quem
é mesmo, para nós, que nasceu em Belém? Para que nasceu?
Jesus vai nascer mesmo nesta noite, ou já nasceu uma vez por
todas, naquela noite, em Belém [...] ? (CASALDÁLIGA, 1982, p.
66)

Como se pode observar, a fala da personagem coloca em confronto o


tempo histórico, marcado pela injustiça social e pela violência e o tempo
sagrado de celebração do ritual de nascimento de Cristo, evento que teve o
objetivo de instaurar a “Paz na terra”, conforme o evangelho de Lucas, capítulo
2, versículo 14. Prefigura-se aqui o movimento suscitado pelo tempo sagrado,
que é entendido por Eliade (1997), como o “eterno presente”. Isso porque a
personagem questiona sua contemporaneidade ao nascimento Cristo, como se
aguardasse gozar dos efeitos desse acontecimento sagrado. Assim, como no
poema “Advento na Ilha do Bananal”, faz-se referência a um tempo ritual que
se relaciona com o tempo histórico.
Essa cena é interrompida pela entrada de Marlene, filha do casal.
Eufórica, a menina informa a mãe que uma jovem acabara de dar à luz um
menino no curral. Cida pensa se tratar de um equivoco, mas logo entra Luís,
seu esposo, e confirma o fato. Uma índia chamada Maria, acompanhada de
seu esposo, o sertanejo José, acabara de dar à luz um menino. Embora
estivesse lendo o evangelho naquilo que se refere ao nascimento de Jesus,
nem Cida, nem sua família percebem a semelhança entre os acontecimentos
93

que estão vivendo e as circunstâncias em que nasceu Jesus. Mesmo assim, a


família decide abrigar o casal de peregrinos e seu filho.
De modo semelhante ao que ocorre no poema em análise, no auto, o
encontro com o Deus nascido no curral, é precedido pelo contato com animais,
como se depreende da cena a seguir:

Eu fui atrás da vaca moura, fugida, andei o pasto primeiro,


passei a cerca, cheguei até o córrego... E voltei no rastro dela,
como se o coração me chamasse para o curral. E a mourinha
estava lá. Veio sozinha, como se o bezerro a chamasse.
Estava deitada, perto do recém-nascido, bafejando nele,
amorosa; e do outro lado o burrinho pedrês olhava para ele,
deitando sobre ele as orelhas grandes, como dois sinos
assombrados... (CASALDÁLIGA, 1982, p. 68)

A narrativa prossegue de modo que apenas o público percebe que os


camponeses estavam acolhendo a Sagrada Família. Somente ao final da trama
os santos revelam-se às demais personagens enquanto tal.
Com o desenrolar dos acontecimentos no contexto das cenas, a voz do
narrador extradiegético responde às perguntas que Cida dirige ao público na
primeira cena, que corresponde ao primeiro fragmento apresentado. Assim,
enquanto as personagens se preparam para cear, a voz do narrador ecoa:
“quando alguém abre sua casa ao pobre e ao peregrino, quando alguém
descobre o próximo no desconhecido, ... É Natal” (CASALDÁLIGA, 1982, p.
71).
Na cena seguinte, o início da refeição é adiado pela entrada de
Conceição, mulher que chora a morte de Antonio, seu irmão assassinado.
Maria, José e as demais personagens a consolam. Pouco depois ela sai de
cena e entra Carlos:

(Golpe seco de música estridente, como de ventania, que


apaga a vela...). (Entra Carlos, um peão, ferido no rosto, no
braço, camisa rasgada, ensanguentado. Assustado e quase
caindo. Com uma faca pingando de sangue.). [...] LUÍS (ele,
CIDA, e JOSÉ segurando a CARLOS e fazendo-o sentar. Este
se mostra receoso e olha para a porta.): Que foi, Carlos? Foi
briga, Carlos? CARLOS: Foi... Matei o Antônio, Luís! (cobrindo
o rosto com o braço e soluçando). Enlouqueci... ! Perdi a
cabeça, Luís... ! Matei o Antônio! [...] CARLOS: Não sei se não
me estão seguindo... LUÍS: Você entrou na minha casa. Você
94

está ferido, e eu respondo por ti. CARLOS: (pondo a mão sobre


o braço de LUÍS) Você sabe que a fazenda nos despediu a
todos... A gente, quando fica sem serviço, vira cachorro loco no
meio da estrada. Acabrunhados, sem rumo, fomos um magote
beber umas pingas na venda do Mané... Bebemos demais! A
bebida tomou conta da gente, e brigamos... Antonio me
ameaçou, me xingou todo, me feriu... e eu matei o Antônio!
(Chora) Eu matei o Antônio, meu Deus... ! Colega da gente,
irmão da gente, sofredor como a gente por essas matas e
fazendas... Eu o matei com minhas mãos. [...] (JOSÉ toma as
mãos de CARLOS) CARLOS: O senhor vai sujar as mãos de
sangue. JOSÉ: Todo sangue derramado no mundo nos suja
um pouco a todos. Todos somos responsáveis pelo sangue dos
irmãos... ! (CASALDÁLIGA, 1982, p. 76-77).

Maria entra nesse diálogo e fala a Carlos sobre arrependimento. Mais


uma vez a cena é interrompida por uma música natalina, os personagens ficam
em silêncio, meditando. Em seguida, novamente ecoa a voz do narrador:
“Sempre que alguém se arrepende... ...Deus nasce de novo nele... E é Natal!
Toda vez que um coração recupera a ternura... É Natal” (CASALDÁLIGA, 1982,
p. 77).
Quando Maria começa a se revelar à família como mãe de Jesus,
Marlene a interrompe, referindo-se a Carlos: “mamãe, as feridas dele sararam!”
(p. 78). Diante disso, a santa arremata: “o arrependimento sara todas as
feridas”.
Antes que possa continuar, é interrompida pela chegada do capataz da
fazenda, Afonso, e de mais dois sujeitos, seus auxiliares. Ele indaga a todos
acerca do assassino, a quem procura para fazer justiça “com sangue”. A mãe
de Cristo responde que o homicida não estava no meio deles, que uma vida
não se justificava com uma morte e que era noite de natal. Dizendo não querer
saber de “conversa mole”, Afonso chama-a de mentirosa. A santa, porém, não
cede e afirma:

Somente não tem Natal para os corações fechados pelo ódio,


meu filho! EMPREITEIRO (avançando, brusco): digo que me
entreguem o assassino! (MARIA e JOSÉ o detêm. [...] MARIA:
Já te disse, Afonso, que o assassino não está aqui...
EMPREITEIRO: Não foi esse bem aí quem matou o Antônio?
JOSÉ: Quem matou o Antônio... Foi o egoísmo da fazenda!
Quem matou o Antônio foi a pinga dos companheiros todos!
Quem matou o Antônio foi a valentia dos corações arrogantes
como o teu! Quem matou o Antônio foi o desespero do Antônio
e a solidão do Carlos e o desemprego dos peões e este mundo
95

de injustiça e de cobiça e de lucro, que embrutece a vocês


todos e não os deixa viver como irmãos. (CASALDÁLIGA,
1982, p. 79).

Quanto à fala de José acerca do assassinato, ressaltamos que se


estrutura de modo semelhante ao verificado no poema “Canção quebrada por
um canarinho morto” (CASALDÁLIGA, 1978, p. 87), analisado no primeiro
capítulo. Assim, a inocência de Carlos é elaborada através da personificação
de elementos de uma cultura de violência, que negligencia as necessidades
humanas e torna as pessoas incapazes de se perceberem fraternalmente.
No decorrer desse diálogo, Maria entrega o menino Jesus a Afonso. O
perseguidor devolve-lhe a criança e retira-se com seus auxiliares, desprovidos
da intenção de matar. Depois, a santa entrega Jesus a Carlos e, antes de
desaparecer com seu esposo em luz e música, profere as seguintes palavras:

É Natal... Sim! É Natal de verdade, Carlos. Teu coração é o


presépio. Esta casa do vaqueiro Luís é Belém. Carlos: este
menino é Jesus, o Filho de Deus, que nasceu na noite de
Natal, num curral de Belém, Pobre entre os pobres. E nasce na
casa do vaqueiro Luís. E nasce em teu coração arrependido. E
nasce todo o dia em todo o lugar, onde alguém planta um pé
de Justiça e de Paz, onde a Palavra de Deus é acolhida com
amor... ! (CASALDÁLIGA, 1982, p. 79).

A partir dos fragmentos acima citados, é possível comparar o “Auto


Sacramental Sertanejo Deus nasce na casa do vaqueiro” com o poema
“Advento na Ilha do Bananal”.
Quanto ao processo de titulação das obras, em “Deus nasce na casa do
vaqueiro”, o absoluto é relativizado pelo lugar. Depois, na última definição de
“Natal” apresentada, percebemos que o lugar é universalizado em virtude da
presença do sagrado, de modo semelhante ao que ocorre no poema. Em
ambos os textos apresentados ocorrem diversos encontros.
Outra contiguidade entre eles é a estruturação do tempo, conforme já
exposto. No auto, instaura-se, em função dessa estrutura, uma ambiguidade
entre os tempos histórico/profano e sagrado porque Maria, José e Jesus ceiam
com Cida e sua família. Isso poderia levar ao entendimento de que a narrativa
consiste em um recontar o nascimento de Cristo, acrescentando-lhe
personagens, deslocando-lhe o espaço, mas mantendo o tempo em que o
96

acontecimento se passou. Embora essa ambiguidade permaneça, a utilização


do termo “revolver” dirime essa compreensão e permite verificar que Jesus,
Maria e José, fisicamente, tornam-se contemporâneos de Cida e sua família, e
não o contrário.
Em última instância, o estabelecimento dessa ambiguidade indica que o
tempo é uno, como no poema “Advento na Ilha do Bananal”. Ela é um dos
elementos fundamentais para tornar o drama emocionante. Isso porque, sem
que Cida e os demais personagens percebam, as falas de Maria e José
funcionam, simultaneamente, em duas lógicas distintas: a do tempo sagrado e
a histórica, entendida como aparentemente profana. Em virtude desse
funcionamento ambíguo, a fala dos santos ajusta-se duplamente ao enredo.
No auto, o termo “Natal” designa o encontro em qualquer tempo. Sempre
que ocorre, na lógica proposta pelo texto, todo espaço se converte num
presépio em Belém e todo o tempo passa a ser o da encarnação do Verbo. O
mesmo se pode dizer acerca do poema. O lastro estrutural que permite tal
afirmação é a repetição do verbo “ir” na primeira e na última estrofes. Naquela,
afirma-se “eu vou”. Nesta, o “Deus vem ao mundo pelo Natal”. Há, assim, a
demarcação de um movimento no sentido do encontro, no caso, com o Divino.
Assim, observamos que em ambos os textos o significante “Natal” define
um acontecimento, mais do que um tempo. Esse acontecimento é o encontro,
no sentido mais amplo do que ocorre na obra de Casaldáliga.
Semelhante imagem pressupõe, primeiramente, a figuração de um
relacionamento com a natureza, no modo como ela se apresenta no presépio.
Nessa situação, conota alegria, simplicidade, desapego às riquezas materiais,
e abertura a todas as pessoas, independentemente das diferenças físicas e
sociais. Posteriormente, refere-se a um relacionamento do sujeito consigo
mesmo, com o outro e com o sagrado. A imagem do encontro, em ambos os
textos, compõe-se dessas formas de relacionamento.
Desse modo, identificamos nos textos em questão que essa imagem
apresenta, por assim dizer, pelo menos três níveis sobrepostos. Dizemos
sobrepostos, no caso, porque esses níveis são figurados isoladamente ao
longo da poética de Casaldáliga.
97

Em virtude disso, é possível um agrupamento dos poemas tendo as


imagens do encontro como critério. Nesse sentido, teríamos três modalidades
de encontros na poética de Casaldáliga.
A primeira dessas modalidades pode ser nomeada como “o encontro do
ser humano consigo na natureza”, podendo ser representada, dentro outros,
pelo poema “Nas águas claras do brejo”: [...] “o Homem olhava o Mundo / nos
olhos claros do brejo, imagem dos próprios olhos.” (CASALDÁLIGA, 2006, p.
75). No caso deste poema, Casaldáliga reporta-se ao mito de Narciso,
sugerindo que o olhar para natureza de um lugar, possibilita o encontro consigo
mesmo e também com toda a humanidade.
Na segunda modalidade, situam-se aqueles poemas em que figura o
“encontro com o Outro na natureza”. É representativo desse grupo, o texto “À
gata Geró”: “Às vezes Geró, / na espera calada, / tu e eu, só, / (... E Deus, de
cilada)” (CASALDÁLIGA, 2006, p. 68). Trata-se de um poema cuja temática é a
relação entre um ser humano e um animal, mediada pelo olhar.
O terceiro conjunto de imagens do “encontro” na poética de Casaldáliga
é aquele em que são figurados aspectos das relações dos seres humanos
entre si, de modo direto, tal como se apresenta no poema a seguir:

__ “ Indo ou vindo outro veículo,


baixe os faróis”.
Não ofenda com os seus olhos,
donos da estrada comum,
a luz dos olhos que passam
trazendo também Verdade.

(CASALDÁLIGA, 2006, p. 126)

2.2 Foge, Maria!

A partir do que já apresentamos, o “desencontro”, na poética de


Casaldáliga, sugere uma condição frente ao cosmos. Trata-se de um desvio no
tempo-espaço que afasta a natureza, a humanidade e o sagrado dos sujeitos.
Quanto a essa imagem, vejamos o poema a seguir:

AS ÁGUAS DA BARRAGEM

(Na Paróquia de São José, padroeiro de TUCURUÍ,


98

depois de visitar o acampamento dos desalojados pela


barragem)

- As águas, Maria,
chegaram aqui. (São José fugia
de Tucuruí).

É o destino duro
do filho, Maria.
A barragem certa,
incerto o futuro,
a Amazônia aberta
e o Povo no escuro.

(Herodes queria
novamente a morte.
São José fugia
da Eletronorte).

(CASALDÁLIGA, 1989, p. 46)

O acontecimento que serve de referência histórica ao texto poético é a


construção de uma usina hidroelétrica no Rio Tocantins, no município de
Tucuruí, localizado no Estado do Pará.
Composto de três estrofes, o poema engendra a compreensão de que a
Eletrobrás Eletronorte ignorou os impactos sociais e ambientais em que a usina
implicaria, visando somente o lucro. Constitui, portanto, forte crítica de cunho
social e ecológico à empresa.
O pré-texto entre parênteses define, enfaticamente e na ordem a seguir,
um lugar sagrado, um espaço geográfico e um acontecimento histórico, que
demarca o tempo. O efeito de ênfase decorre dos parênteses e da grafia em
caixa alta do nome “Tucuruí”.
A primeira estrofe é um terceto

– As águas, Maria,
chegaram aqui. (São José fugia
de Tucuruí).

(CASALDÁLIGA, 1989, p. 46)

Quanto aos recursos sonoros, há ocorrência de rimas, interna e externa.


Observamos, também, assonância em /a/ e /u/. Tais recursos tornam ágil a
leitura dos versos e colaboram para a sugestão de um sentimento de espanto
99

frente a um ambiente de eminente perigo, que parece ser a motivação do


enunciado. Enfatiza esse efeito o uso de uma prosopopeia, figura que eleva “as
águas” à condição de sujeito da oração que compõe o primeiro e segundo
verso. Introduzido por travessão, aquele evidencia que alguém se dirige
verbalmente a “Maria”. A ausência de resposta da mulher contribui para a
impressão de que o enunciado foi motivado por um sentimento de espanto. A
história dos desalojados de Tucuruí permite analogias com esse sentimento
que perpassa a estrofe, já que se vivia sob a incerteza quanto aos limites da
área inundável:

As insuficiências do processo de aerofotogrametria em área


florestada levaram a que fosse subestimado consideravelmente
o contingente populacional suscetível de ser afetado pelo
enchimento do reservatório. Consequentemente, foram
alagadas áreas de assentamento do Getat nas Glebas do Meio
e Repartimento e nos loteamentos Andorinha e Mojuzinho.
Foram igualmente atingidas áreas das Glebas Tucuruí e
Parakanã, onde a própria Eletronorte anteriormente havia
instalado famílias expropriadas. Tais famílias que para ali
haviam sido levadas em 1982, já haviam permanecido, antes,
por cerca de três anos, vivendo em situação de incerteza e sob
restrições quanto ao plantio de culturas permanentes e à
realização de benfeitorias em suas áreas de origem.
(ACSELRAD, 1991, p. 63)

Nesse sentido, para a ONG Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do


Sul – NEJ/RS (2009), a falta de planejamento da barragem tornou o alcance do
lago “imprevisível e, na época, milhares de pessoas tiveram que sair às
pressas de suas casas, pois a água já estava próxima”. A ação expressa no
segundo verso, a partir do ponto final, coopera com essa leitura. Fez-se
necessário “fugir” das “águas”.
Analisando mais demoradamente esse verso, destacamos que a
designação de santidade “São”, antecedente ao substantivo “José”, produz
ambiguidade no texto. Isso ocorre devido a uma relação de intertextualidade
que se estabelece entre o poema e a narrativa do nascimento de Jesus Cristo,
segundo o evangelho de São Mateus, cap. 2, versículos de 12 a 23. Além dos
termos “Maria”, “São” e “José”, tal efeito se produz, também, em virtude da
ideia de fuga.
100

Essa ambivalência se consolida, gradativamente, nas estrofes seguintes.


Na segunda porque se repete o substantivo “Maria” e acrescenta-se que ela
tem um “filho”, cujo “destino” é “duro”, adjetivo que pode, a nosso ver, ser
tomado como uma referência à cruz de Cristo.
Casaldáliga estrutura a última estrofe de modo a equiparar a
“Eletronorte” a “Herodes”. Segundo a narrativa bíblica, “Herodes” era rei sobre
Israel, no tempo em que nasceu Jesus. Sabendo do nascimento do “Messias”
em Belém, intentou matá-lo, por medo de perder o trono. Para tanto, ordenou o
extermínio de todas as crianças nascidas até dois anos antes do momento em
que foi informado do nascimento do novo rei.
Em nosso entendimento, essa equiparação não é esperada pelo leitor e,
por isso, produz um efeito de “revelação”. Esse efeito ocorre porque
Casaldáliga deixa de sugerir uma ambiguidade entre “Maria” e “Santa Maria”
para afirmar que a “Mãe de Deus” pode ser qualquer “Maria”.
Os recursos que usa para gerar esse resultado consistem em adiar ao
máximo a utilização do termo “Eletronorte”, última palavra do poema,
intensificando o efeito de revelação através do suspense, e em contar os
eventos relacionados à barragem de modo a evidenciar uma relação com a
fuga de Belém da Sagrada Família, produzindo intertextualidades.
Através de tais recursos, o poeta torna concomitantes tempos
historicamente distanciados, o tempo em que nasceu Cristo e aquele em que a
“Eletronorte” empreendeu a construção da usina de Tucuruí. Ressaltamos que
o procedimento é semelhante ao utilizado no poema “Advento na Ilha do
Bananal” e no Auto Sacramental “Deus nasce na casa do vaqueiro”.
Quanto ao histórico de construção da usina de Tucuruí, de acordo com
Laura Coutinho Pinto (2012), os estudos acerca do potencial hidroelétrico da
região começaram na década de 1950. A partir de 1960, o governo militar
incentivou o projeto a fim de “incrementar políticas para o desenvolvimento e
integração da Amazônia e para atender a indústria de alumínio gerada pelos
jazigos de bauxita da região” (PINTO, 2012). A implantação da barragem se
deu em duas etapas: a primeira de 1976 a 1992 e a segunda de 1998 a 2006.
101

Para a Eletrobrás Eletronorte (2016)6, que executou o projeto, Tucuruí


constitui a maior usina hidroelétrica genuinamente brasileira e é a quarta maior
do mundo. Nas páginas da empresa na “internet”, é modelo de cuidado com o
meio ambiente e de consciência social:

Exemplo dessa dedicação à preservação da natureza é a


Usina Hidrelétrica Tucurui, no Pará, onde diversos programas
ambientais estão sendo conduzidos [...] Especial atenção é
dada às comunidades indígenas atingidas por linhas de
transmissão e pelas Usinas Hidrelétricas Balbina e Tucuruí.

Destacamos, porém, “Os estudos de caso da Comissão Mundial de


Barragens – Hidroelétrica de Tucuruí” (2000, p. 22), que mostram o seguinte:

A construção e a entrada em operação da UHE Tucuruí


ocorreu anteriormente ao estabelecimento das exigências
legais para o licenciamento ambiental na legislação ambiental
brasileira. Entretanto, vários dispositivos legais pré-existentes
não foram levados em consideração pelas autoridades e pelo
empreendedor, como aqueles incluídos no Código de Águas,
que determinava que o aproveitamento para energia hidráulica
não poderia comprometer a alimentação e necessidades das
populações ribeirinhas, da salubridade pública, da navegação,
da conservação e livre circulação dos peixes, dentre outras. A
variável ambiental no planejamento do setor elétrico foi
incorporada tardiamente, no caso da UHE Tucuruí. Na sua fase
de construção as medidas para o tratamento das questões
sociais foram implementadas de maneira reativa pela
Eletronorte, sem a orientação de políticas voltadas para o
reassentamento e ressarcimento das populações afetadas,
bem como para o enfrentamento de situações emergenciais.

Esse mesmo relatório indica que os estudos de viabilidade da barragem


previram uma inundação de 1630 km². A que ocorreu foi de, aproximadamente,
2900 km²:

Com o represamento das águas, formou-se um lago artificial,


hoje dimensionado em aproximadamente 2 875 km², um dos
maiores do mundo. Foram submersos 170 km de rodovia
federal, trecho em que existiam 10 escolas e 13 povoados/vilas
- Repartimento, Breu Branco, Remansão do Centro,
Remansinho, Jatobal, Vila Bela, Ipixuna, Vila Braba, Coari,
Santa Tereza do Tauari, Chiqueirão, Areião, Canoal - a cidade
de Jacundá e parte de terras dos municípios de Tucuruí,

6
http://www.eletronorte.gov.br/opencms/opencms/aEmpresa/
102

Itupiranga e Nova Jacundá. (COMISSÃO MUNDIAL DE


BARRAGENS, 2000, p. 102, 103)

Previu-se o movimento populacional de cerca de 11.250 pessoas. Com


base no relatório em questão (2000, p. 123), esse número pode ter sido de 25
a 35.000 pessoas, até 1980:

Os grandes “perdedores” foram, sem dúvida, alguns dos


segmentos da população local – pequenos produtores rurais,
comunidades indígenas, ribeirinhos. Desses, alguns foram
submetidos a deslocamentos, reassentamentos e indenizações
mal dimensionadas que implicaram em perdas materiais e
culturais. (COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, 2000, p.
190)

Quanto ao referido relatório, ressaltamos, ainda, o estudo da percepção


das comunidades atingidas pela barragem. Neste, verificamos inicialmente que
o projeto da usina foi recebido por essas populações com entusiasmo. O
trabalho das mídias local e nacional muito concorreu para o surgimento desse
sentimento. Estas anunciaram a Usina de Tucuruí como a “chegada do
progresso e do desenvolvimento para a região” (p. 143). Através desse
discurso, suprimiu-se um debate mais amplo sobre a questão. Depois de
instalada a barragem, as diferenças de compreensão acerca do “progresso”
ficaram evidentes para as populações atingidas, como pode ser observado na
fala do líder de uma dessas comunidades:

A natureza cobria as necessidades do povo. E agora vai tudo


para a enriquecer a Eletronorte, para o governo despachar
para os políticos comprarem votos. Foi um compromisso que
ela assumiu com as empresas estrangeiras. E cadê a luz que a
Eletronorte prometeu. (COMISSÃO MUNDIAL DE
BARRAGENS, 2000, p. 190)

A despeito de diversas constatações semelhantes a essas que


apresentamos, a Eletrobrás Eletronorte defende que a obra não causou danos
sociais. Afirma, ao contrário, que os sujeitos desapropriados em função da
usina receberam o apoio necessário à manutenção de seu modo de vida,
apesar da radical modificação do espaço em que habitavam.
Tendo em vista essas questões, em que consiste, então, o desencontro
no poema? A “fuga” de “Maria”, termo que conota “qualquer mulher” tanto
103

quanto “Mãe de Deus”, associa-se ao “longe”, que vimos no poema “Advento


na Ilha do Bananal”. Nesse sentido, a implementação da usina de Tucuruí,
conforme o poema, provoca o afastamento de “Maria” de um grupo de
pessoas. Estas, por conseguinte, perderiam um tempo presente que
conglomera fatos historicamente tão distanciados quanto o nascimento de
Jesus e a implantação da barragem. Assim, o desencontro figura como uma
ação sobre a natureza que provoca um distanciamento dos sujeitos entre si e
um desencontro com o “Outro”.
Como vimos nos tópicos anteriores, essa imagem pressupõe um
comportamento e um modo de pensar que desconsidera as necessidades
alheias, que desconsidera o outro. Conforme apresentado, de várias
perspectivas, a implantação da usina de Tucuruí reflete aspectos da imagem
do desencontro.
104

CAPÍTULO 3. PAISAGENS POÉTICAS

Neste capítulo, dividido em duas partes, estudamos poemas em que a


natureza assume a qualidade de paisagem, termo entendido aqui em
consonância com Michel Collot (2013), como “espaço percebido” (p. 17).
Na primeira parte, dedicamo-nos à compreensão dos procedimentos de
construção desse espaço, a partir da análise das imagens poéticas, bem como
procuramos identificar e refletir acerca dos sentidos que emergem dessas
paisagens, do modo como são percebidas e apresentadas.
No segundo momento, propomos uma leitura da poética de Casaldáliga
a partir das funções que as paisagens naturais desempenham em sua obra.

3.1 Em busca da perfeição

Quanto à parte inicial, vejamos o poema “Beleza perfeita”, publicado no


livro Antologia retirante (1979, p. 43):

BELEZA PERFEITA

Quero escrever a alma desta hora,


Como quem prega na lapela de festa
a borboleta última
- creme, limão, canário -
que acaba de pulsar entre meus olhos
bêbados de formosura...
A beleza perfeita destas águas amigas;
a vida exuberante da floresta múltipla:
o sarã rasteiro chapinhando,
o alto louro moço,
a imbaúba-figueira de lapela virada ,
o vermelho estendido
e a taboca fiandeira
de filamentos amarelos e de lancetas verdes-claras.
Revoa um papagaio travesso de alegria.
Cruzamos ilhas, lagos, enseadas.
As nuvens lassas dão ao rio quieto
um tom de transida madrepérola.
E o sol de Mato Grosso faz-se tíbio
para não calcinar tanta beleza.

O barco pára. Falam os meninos


105

do tão falado amor.


e riem duas mocinhas morenas, na margem,
descalças, despenteadas,
pura beleza índia em bruto.
Outra vez se adiou o casamento!

Ronca o motor de novo. A menina


de mil sangues cruzados
- Ásia, África, Europa: Ó América! -
me sorri com dentes espaçados
e umas tranças minúsculas,
emoldurada na luz,
pela janela aberta à flor do rio.

Depois, entre as páginas do livro


-a palavra e margem paralelas-
uma inhuma de peitilho branco
alça vôo, inefável, dessa areia
eriçada de um verde calafrio.

Dividido em quatro estrofes, respaldando-se numa impressionante


demonstração/experienciação de sensibilidade para com o espaço natural, o
poema traz recursos da narração e da lírica.
Preliminarmente, destacamos que a noção de universo e
microuniversos, reiterada nas imagens da terra e em suas metonímias, ao
longo da obra de Casaldáliga (SOUZA, REIS, 2014), foi o que nos despertou
para a ambiguidade do título do poema. A metonímia, usada como referência
ao universo, aos vegetais e aos animais do nosso planeta, acrescentamos,
pressupõe um Todo conectado – a ideia de um Ser supremo que está em todas
as coisas e as movimenta num ciclo cósmico. Essa compreensão decorreu de
o qualificador “perfeita” encaminhar-nos a um campo semântico semelhante ao
suscitado pela palavra ‘suprema’, no contexto do poema “Ecologia Suprema”,
já analisado neste trabalho.
A busca pela perfeição, ou a “beleza perfeita”, é um tema que, na
literatura, recorrentemente, associa-se à frustração, à dor e à morte. Essa
associação atravessou milênios. Nesse sentido, citamos o conto O retrato
Oval7, de Edgar Alan Poe (1982). Nessa obra, o protagonista é um artista que

7
Pode ser citado, também, da obra Metamorfoses, de Ovídio, os versos 243 a 297 do Livro II, a
história do artista Pigmalião e de Galatéia, sua escultura que ganhou vida. (BULFINCH, 2006,
p. 72)
106

pinta uma tela de sua esposa. Quando julga ter alcançado a perfeição, percebe
que sua modelo está morta. Isso parece ocorrer porque a perfeição estaria
além de toda possibilidade humana, por pressupor uma apreensão integral
daquilo que visa retratar.
Essas reflexões iniciais nos levaram a questão: o que é essa “beleza
perfeita”, no poema? Tal expressão respeita ao nome que o eu lírico utiliza
para se referir à paisagem descrita, como se verifica no sétimo e no vigésimo
versos, respectivamente: “A beleza perfeita destas águas amigas”, “para não
calcinar tanta beleza”. Assim, a expressão referir-se-ia, primeiramente, na
ordem do poema, às belezas naturais. O conceito de percepção, incluído no de
paisagem acima citado, diz que “olhar”, naturalmente, “é um ato estético”
(COLLOT, 2013, p. 18).
Assim, tendo em vista as relações de intertextualidade entre “Beleza” e
“Belo”, pode-se verificar que, no poema, aquela palavra respeita a um
posicionamento estético particular em relação à natureza, enquanto objeto da
obra de arte, na medida em que o texto apresenta teor metapoético.
Em relação a esse posicionamento estético, o verbo “querer”, no
contexto do primeiro verso, conjugado na primeira pessoa do presente do
indicativo, apresenta um paradigma na leitura do poema, que é também de
criação artística, revelando a permanente incompletude do eu lírico. O “quero”
é sempre um agora, ainda não satisfeito, logo, revela uma busca de satisfação
(REIS, 2006).
Tal fato diferencia, essencialmente, o eu poético de que tratamos, do
protagonista do conto de Poe, porque ele considera sua obra incompleta,
estando, assim, aquém da perfeição. Além dessa diferença, a apreensão da
beleza, através da arte, em O retrato oval, é um “aprisionar a vida” e isso não
ocorre no poema em análise, como veremos adiante. Neste, embora busque
registrar a “alma”, termo que pode ser entendido como sinônimo de “vida”, de
uma experiência, esse ato se concretiza como a apreensão de um trânsito das
coisas entre o real e a arte.
Contudo, essa incompletude do eu artista é ambígua, em virtude de o
poema se intitular “Beleza perfeita”, como se a “beleza” já tivesse sido
alcançada. Assim, a perfeição é uma busca; ao mesmo tempo, um fim já
alcançado. Isso sugere o entendimento de algo que seria como uma limitação
107

do ato de criação poética por parte de Casaldáliga, embora também indique


que tal limite não é estático, como se verifica ao longo do poema.
Essa busca é entendida aqui como estética, mas não apenas, porque
resulta de um modo específico de compreender a vida em algumas de suas
relações. Tal tentativa de registrar, no sentido de dar um caráter memorável,
documental à “alma” de um momento, captada do espaço natural, é a
expressão de uma experiência de percepção espacial, que engendra uma
paisagem. Assim, o poema gera a impressão de que a “alma” do tempo
consiste no movimento do espaço.
Por esse motivo, embora o tempo, enquanto conceito, não seja o
elemento motivador deste trabalho, mas o espaço, importa traçarmos algumas
considerações sobre aquele, antes de nos determos sobre este.

3.2 A composição do espaço como registro da alma do tempo

Nesse sentido, chamamos a atenção para um efeito peculiar produzido


pelo texto: a impressão de que o eu lírico ocupa um ponto fixo no
espaço/tempo. E de que os demais elementos movimentam-se frente ao seu
olhar. Vários componentes textuais cooperam para essa impressão. O primeiro
reside na carga semântica dos dois versos iniciais: relatar uma experiência,
através da escrita, aparece como uma ação semelhante à de “pregar” ou reter.
Ora, somente tentamos reter aquilo nos escapa, porque é móvel. Ademais,
lembramos que, para Alfredo Bosi (1976, p. 13), a imagem é um processo de
“fixação” dos sentimentos que fecundaram um momento, inclusive, a imagem
escrita, que é a poética.
O segundo componente é a relação entre o eu lírico, estático, e a
borboleta, tomada como metonímia da natureza, móvel, nos versos três a
cinco. No geral, o efeito de que tratamos decorre de o poeta suprimir a
informação de que o eu poético está em deslocamento, adiada até o décimo
sexto verso, e do paralelismo sintático aplicado à descrição do espaço natural,
presente em oito dos vinte versos da estrofe primeira. Tanto um quanto outro
recurso, confere dinamismo e velocidade à descrição da paisagem. A
aproximação deles ao termo “bêbado” sugere que o espaço natural provoca no
eu lírico uma profusão de sensações. Isso compromete sua percepção
108

sensório-motora, afetando sua capacidade de discernir entre o que é real e o


que é efeito dessa provocação.
Graças à utilização desses recursos, as ações do eu poético são
imperceptíveis, no início, o que realça o espaço natural, evidenciando-lhe o
movimento e a vida. Isso pode ser percebido, também, na personificação da
fauna, da flora e da atmosfera, que as alça à condição de personagens. Tal
recurso garante, por exemplo, às “nuvens”, no décimo sétimo verso, o poder de
“dar ao rio” “um tom de transida madrepérola”.
Essa impressão de movimento do espaço e repouso do eu lírico, que
efetivamente se move, é dissipada somente pelo primeiro verso da segunda
estrofe. Ela remete ao “paradoxo da flecha”, proposto por Zenão de Eléia,
discípulo de Parmênides, citado por Osman Lins, na obra Lima Barreto e o
espaço romanesco:

A cada momento do tempo, lembra Zenão, ocupa a flecha


disparada um determinado espaço; ocupar um determinado
espaço quer dizer: estar em repouso. Seria possível, somando
vários repousos, obter o movimento, esse trânsito no espaço e
no tempo? Conclui estar imóvel a flecha que voa – e talvez
tenha razão. (1976, p. 63)

Em consonância com essa figura, a descrição que Casaldáliga faz da


paisagem não a toma como algo simplesmente “dado”, “acabado” ou “imóvel”.
Assim, o poeta subverte o próprio ato de descrever, o qual “envolve a
imobilidade do objeto descrito” (MOISÉS, 2004, p. 118). Instaura-se, assim,
uma antítese, já que o ato de descrever provoca um efeito antagônico em
relação ao que busca. Tal figura, depreendida da estrutura textual apenas,
consoa com outras semelhantes a ela na obra de Casaldáliga. E, no conjunto,
sugere uma ideia que pode assim ser sintetizada: a caminhada, a busca, a
experiência do momento, é um fim em si mesma, tanto quanto o é o ponto em
que se deseja chegar e deve ser vivida enquanto tal. O que pode ser
observado em poemas como “Retificação”: “Saber esperar, sabendo / ao
mesmo tempo, forçar / as horas daquela urgência / que não permite esperar
[...]” (Antologia Retirante, 1978, p. 163); “Segura, solta”: “segura os pés dessa
danada pressa / que te impede de seguir o povo calmo [...] E solta o coração, /
109

solta a esperança/ única terra onde cresce o Reino” (Versos Adversos, 2006, p.
95); “Paz inquieta”: “Dá-nos, Senhor, aquela Paz inquieta, / que não nos deixa
em Paz!” (Versos Adversos, 2006, p. 103).
Se o eu lírico, em movimento, aparece imóvel e o espaço natural, que é
imóvel, aparece em movimento, poderíamos dizer que a descrição que ele faz
desse espaço é mais de si mesmo do que daquilo que percebe? A resposta é
sim, se adicionalmente tomarmos por base a metáfora “O caminho que a gente
é / o caminho que a gente faz” (Versos Adversos, 2006, p. 54, 55). O que isso
sugere? Que, ao descrever os “caminhos” que percorreu, o sujeito descreve a
si mesmo. O modo como Casaldáliga constrói a relação entre o ser e o espaço
que o envolve tende a reduzir a diferença entre o eu e o mundo, que é
“característica do momento moderno” (COLLOT, 2013, p. 11). Reduz a tal
ponto que esse “eu” torna-se, ele mesmo, o caminho que percorre. A paisagem
poética é construída como algo que é “tanto interior como exterior, tanto
subjetiva quanto objetiva, sem que se possa dar a uma ou a outra a prioridade
desses elementos” (COLLOT, 2013, p. 187). Ademais, tal reflexão, suscitada
pela estrutura do poema em análise, reverbera problemas enfrentados pelos
estudiosos do texto literário ao se questionarem acerca do que é uma
paisagem literária. Nesse sentido, Collot recorre aos escritos de Jean-Pierre
Richard, o qual afirma que “a paisagem de um autor talvez também seja esse
mesmo autor, tal como se oferece completamente a nós, como sujeito e como
objeto de sua própria escrita” (RICHARD, 1967 apud COLLOT, 2013, p. 55).
Prosseguindo, Casaldáliga poderia ter formulado uma metonímia,
condensando “a vida exuberante da floresta múltipla”, oitavo verso, em uma de
suas partes. Isso tornaria desnecessária a enumeração de substantivos, o
paralelismo e a gradação que se estabelece das “águas”, às “nuvens” e ao
“sol”, além da personificação dos elementos da natureza, desenvolvidas a partir
desse verso. Isso reduziria, drasticamente, o efeito de estaticidade do sujeito
lírico e o dinamismo do espaço natural. Contudo, o poeta prefere valorizar,
igual e singularmente, os seres vivos que compõem a floresta e o que está em
seu entorno. Entretanto, cabe destacar que, se no interior do poema essa
estrutura indica uma não opção pela metonímia, não se pode dizer o mesmo no
que se refere ao conjunto da obra. Neste âmbito, a floresta, do modo como
Casaldáliga a compõe, formula a reiteração de metonímias da Terra, enquanto
110

universo e microuniversos, de que tratam Marinete Souza e Célia Reis (2014),


conforme citado anteriormente.
Feita tal ressalva, num texto no qual a narrativa fosse prioridade, essa
metonímia para descrever a floresta seria mais vantajosa, pois poderia garantir
ao leitor a compreensão do espaço, sem adiar a progressão do relato e a
comunicação de informações importantes, como a de que o eu lírico está em
uma viagem com a finalidade de participar de uma cerimônia de casamento.
Conclui-se, por isso, que, apesar de mobilizar estruturas narrativas, as
escolhas do poeta não se orientaram pela lógica da narrativa, cujo valor
fundamental é a progressão, como explica Octavio Paz (1976).
Nesse sentido, Casaldáliga consegue manter, no poema, uma
permanente tensão entre a progressão linear do relato e a circular do poema
que, por isso, tende à imobilidade. Tomando as considerações de Octavio Paz
(1976, p.12) sobre a prosa e o verso, o relato e a poesia, podemos dizer que
Casaldáliga mantém o eu lírico que cria num espaço indefinido, que é,
simultaneamente, prosa, “gênero tardio, filho da desconfiança do pensamento
ante as tendências naturais do idioma. [...] que é primordialmente um
instrumento de crítica e análise”; e poesia, “forma natural de expressão dos
homens [...] que ignora o progresso e a evolução”. Em outras palavras, esse eu
lírico está posicionado, simultânea e ambiguamente, na história e no sonho, na
cultura e na natureza.
Reportando-nos, novamente, a Lins (1976, p. 83), é possível nomear o
recurso de composição do espaço poético, empregado por Casaldáliga, por
“ambientação oblíqua ou dissimulada”. Trata-se de um processo de criação que
enlaça o surgimento do espaço à ação, no caso, o olhar do personagem. Outra
característica desse processo de composição, de acordo com Lins (1976),
também observável no poema, é a ausência de uma “descrição pura” em favor
de um espaço “narrado”, materializado em ações. Nesse sentido, entendemos
as formas nominais dos verbos em “chapinhando”, “virada” e “estendido” e a
personificação nos versos: “As nuvens lassas dão ao rio quieto / um tom de
transida madrepérola”.
No poema, a enumeração de substantivos equivale ao olhar do eu lírico e
associa-se ao seu exercício de foco visual, permitindo-nos compreender que o
espaço poético é, para ele, paisagem, uma vez que se constitui na medida da
111

sua contemplação. Além disso, o estudo da primeira estrofe indica que a


escrita do espaço natural, na qual se concretiza o desejo de “escrever a alma”
do tempo, assemelha-se, por comparação, ao detalhe, ao “pregar na lapela”,
que é parte de uma experiência maior, a “festa”. Acareando essa comparação,
que também é uma metonímia, com o modo pelo qual a “floresta” é retratada,
concluímos que a parte é, essencialmente, semelhante ao todo. No que
respeita à “floresta”, tal relação de semelhança pode ser observada no oitavo
verso, que se encerra com o sinal de dois pontos. Isso indica que,
sintaticamente, tudo aquilo que é enumerado até o décimo quarto verso é
também “a vida exuberante da floresta múltipla”. Essa “vida exuberante” liga,
essencialmente, os seres e fenômenos citados do verso oitavo ao vigésimo.
Desse modo, como a “lapela” está para a “festa”, em termos de
comparação e metonímia, e a fauna e flora estão para a “floresta”, em termos
de semelhança essencial, o eu lírico deseja que a sua escrita se assemelhe,
em nível de “alma”, à integralidade da experiência que ele vivencia, a qual
também podemos denominar “beleza perfeita”.
Assim, a “beleza perfeita” é a paisagem contemplada pelo eu lírico, o
fazer poético, condição à existência desse eu e de tal espaço e a experiência
que propicia o contato com a “beleza”. Casaldáliga não apenas justapõe essas
instâncias, nomeando-as igualmente, mas promove uma fusão entre elas. A
compreensão da ambiguidade daí resultante e dos percursos de leitura que ela
engendra é, a nosso ver, importante para o entendimento do poema “Beleza
perfeita” e também de outros aspectos da obra de Casaldáliga.

3.3 A experiência da paisagem e a escrita do corpo

Ao elucidar as bases culturais daquilo que chama de “pensamento-


paisagem”, Collot (2013, p.13) nos explica que o interesse científico-cultural-
político contemporâneo pela “paisagem” não é uma moda, mas um fato que
corresponde a uma mudança coletiva de mentalidade. Essa nova mentalidade
opõe-se, fundamentalmente, a uma atitude de relacionamento com o espaço
que privou grande parte da humanidade de uma experiência sensível da
natureza, em favor do domínio do meio ambiente. Do ponto de vista conceitual,
112

a noção de paisagem envolve pelo menos três elementos,


unidos numa relação complexa: um local, um olhar e uma
imagem. As teorias da paisagem deram ênfase ora ao primeiro,
ora ao último desses componentes, em detrimento do segundo.
Por muito tempo, o local foi considerado como modelo que a
arte devia imitar, conforme a concepção tradicional de mimésis.
Os modernos tenderam a inverter essa hierarquia, insistindo no
papel das representações artísticas, que nos fazem achar
belos os locais em si próprios indiferentes. É a tese da
“artialização”, segundo a qual, na expressão de Wilde, a
natureza imita a arte. Essas duas interpretações dominantes e
opostas têm em comum o mesmo inconveniente, que é
instaurar uma relação de sentido único entre os componentes
da paisagem [...] Para escapar da alternativa entre o construído
e o dado, considerarei, portanto, a paisagem como um
fenômeno, que não é nem uma pura representação, nem uma
simples presença, mas o produto do encontro entre o mundo e
um ponto de vista. É o olhar que transforma o local em
paisagem e que torna possível sua artialização, mesmo que a
arte o oriente e o informe em retorno (p. 17-8).

Ao mobilizar a expressão “beleza perfeita” para nomear a experiência de


percepção espacial vivida pelo eu lírico, o espaço percebido e o próprio poema,
Casaldáliga cria uma relação de semelhança entre um corpo, que garante a
percepção, a natureza e o poema, que é um produto cultural de ordem
simbólica. Em virtude dessa recorrência nominal, da ambiguidade de uma
“perfeição incompleta” e do dinamismo que apresenta o espaço natural,
podemos afirmar que o poeta coloca-se em um lugar diverso das
interpretações dominantes mencionadas no fragmento. No poema, a emoção
do eu lírico frente à maravilha que a natureza é não faz com que o texto deixe
de almejar a grandeza, pois é, também, “beleza perfeita”. Assim, não há nem
artialização e nem uma mera cópia. Mas, de fato, um ser que admira a
natureza e que crê na palavra, exaltando-as igualmente.
Caso seja assim, paisagens verificáveis na obra de Casaldáliga devem
propor-nos uma libertação “do dualismo arraigado no pensamento ocidental” (p.
18) e levar-nos

a ultrapassar um certo número de oposições que o estruturam,


como as do sentido e do sensível, do visível e do invisível, do
sujeito e do objeto, do pensamento e da matéria, do espírito e
113

do corpo, da natureza e da cultura. Entre esses termos que a


nossa tradição filosófica opõe ou subordina, a paisagem
instaura uma interação que nos convida a pensar de outro
modo. (COLLOT, 2013, p. 18)

No âmbito desta análise, não podemos assinalar todas essas


“ultrapassagens”. Porém, no que se refere ao par “sujeito/objeto”, observamo-la
no tópico anterior. Supõe a ultrapassagem do par “sentido/sensível”, o fato de
eles poderem ser referidos, no poema, através da mesma expressão, que é a
“beleza perfeita”.
Além desses pontos já apresentados, observar as superações de que
trata Collot (2013), na paisagem poética, requer, primeiramente, compreender
como os recursos da escrita, utilizados por Casaldáliga, expressam a
percepção que o eu lírico tem do espaço natural, explicando sua emoção
diante dele. Para tanto, é imprescindível que conheçamos esse ser escrito pelo
poeta. Segundo, é necessário entender o modo como esse eu poético, que
deseja escrever, julga tornar seu texto semelhante àquilo que vivenciou. Em
outras palavras, como a “beleza perfeita” da natureza vivida passa a ser a
“Beleza perfeita”, obra de arte.
Os três versos iniciais, que dizem respeito ao cuidado do eu poético com
o registro daquilo que está vivenciando, compondo uma informação sobre a
experiência de escrever poemas, formam uma unidade comunicativa. São
suficientes para constituir um período composto por subordinação, cujo objetivo
seria nos informar sobre uma comparação. A despeito disso, Casaldáliga
separa essa unidade em três partes, operando uma quebra na unidade
sintática do período, através da pausa de fim de verso.
De acordo com Jean Cohen, no estudo que faz de versificação (1979),
esse é um procedimento geral do texto poético. Ele explica que entre um verso
e o outro há sempre uma pausa ou silêncio, cujo signo gráfico é o branco que
se estende do fim de um ao início do outro, na linha seguinte. O autor
acrescenta que, na linguagem cotidiana, o silêncio funciona em sincronia com
as unidades de sentido, facilitando a comunicação, porém, na poesia, ele é
uma ruptura dessas unidades que dificulta o processo comunicativo. Por isso, a
poesia “está, por assim dizer, a meio caminho entre a compreensão e a
114

incompreensão. É precisamente a esse nível que a poesia pretende situar-se”


(p. 83). A conclusão de Cohen é a de que “o verso é antífrase” (p. 61).
Nesse sentido, o que Casaldáliga realiza nesses versos? Ele cria uma
quase dissolução da comparação e uma ênfase sobre o primeiro verso, para a
qual corroborou a utilização da vírgula. A ruptura no sentido é também
acentuada por coincidir com a pausa terminal do primeiro verso e com a
vírgula, uma mudança do ritmo lógico (TAVARES, 2009), na passagem para os
versos seguintes. Essa mudança rítmica é percebida porque o verso inicial
expressa euforia ou deslumbramento, mantendo um tom exclamativo, sugere a
elipse do sinal de pontuação. Os versos seguintes, por outro lado, são
contidos; o eu lírico tenta se justificar, explicando o que deseja: “escrever como
quem prega”.
Para Collot (2013, p.18), essa mudança rítmica é análoga aos momentos
da percepção do espaço pela visão: o estético e o do pensamento,
respectivamente. O estético é pré-discursivo, diz da experiência sensível do
mundo, que é “fonte do conhecimento e do pensamento reflexivo”. O outro, por
sua vez, é da ordem conceitual, é abstrato. O retorno deste àquele lhe é
fortalecedor e revigorante, conforme Collot.
No poema, contraditoriamente, o desejo do eu lírico é de que esse
retorno, tentativa de perpetuar o instante fugidio da experiência sensível da
natureza, da beleza, manifesta na paisagem, dê-se pelo ato de escrever. Para
tanto, tal escrita só pode ser literária, já que esta pressupõe tal retorno ao pré-
reflexivo, o vivido, pelo viés do discurso: a linguagem literária deve ser
“sensível como a experiência da qual procede” (COLLOT, 2013, p. 46). Em
síntese, tal escrita é uma prática contrária a si mesma porque, discursivamente,
tenta assemelhar-se ao não discurso. Alfredo Bosi (1976) trata dessa
contradição ao afirmar que a palavra tem que vencer a si mesma para
constituir-se poética.
Nesse sentido, no primeiro verso, ocorre uma sinestesia resultante da
tentativa de apreender fisicamente o “tempo”, que é, naturalmente, fluxo, logo,
inapreensível, impalpável. Se é emocionante o efeito que essa imagem
provoca em nós, ele somente fora possível porque a imagem ganhou o
destaque de um verso, em detrimento da unidade sintática, em virtude da
pausa e da ruptura do ritmo lógico.
115

Semelhantemente, o sentido de comparação, nos versos 2 e 3, é


atenuado porque se apoia mais na sintaxe do período que na estrutura de
versificação. Isso não é acidental, o eu lírico não apenas explica seu desejo,
passando da euforia a uma atitude de reflexão. Essa passagem corresponde a
uma tentativa de mobilizar sentidos sensório-motores para dizer da ação de
escrever, e, por consequência, daquilo que se está escrevendo. Isso engendra
outras sinestesias, porque transita-se do abstrato para o concreto. Assim, a
ação de refletir, implicada no intuito de explicar do eu lírico, procura referenciais
naquilo que é papável, mas diz do que escapa ao corpo.
Por isso, ao tentar conter a experiência de percepção do espaço natural,
esse ser poético recorre ao tato. A palavra tomada por Casaldáliga para
expressá-lo é o verbo “pregar”, na terceira pessoa do singular, no presente do
indicativo.
Tal apelo pode ser entendido também como uma tentativa de assegurar-
se acerca do que é, ou não, real, tendo em vista que, no sexto verso, o eu lírico
admite-se embriagado pela “beleza”, sem controle de seus sentidos físicos.
Podemos dizer que essa confusão perceptiva se origina na própria experiência
da paisagem, que é marcada, no poema, pela beleza. Sendo assim, como
demonstram os versos, antecipamos que essa tentativa está fadada ao
insucesso.
A designação “paisagem” espelha em sua história essa dubiedade entre
o real e as distorções que ele pode sofrer em virtude de um estado de
embriaguez. Em outras palavras, entre o real e o figurativo, o imaginário.
Conforme Collot (2013), a palavra “paisagem”

parece haver surgido nas línguas românicas somente no


século XVI e ter sido, a princípio, utilizada pelos pintores, para
designar um quadro com paisagem. Esse é, além disso, o
único sentido registrado em 1549 pelo dicionário francês/latim
de Estienne; mas, muito rapidamente, se fez acompanhar da
que é hoje sua acepção mais corrente, de “extensão de uma
região que o olho pode abarcar em seu conjunto”. Desde de
muito cedo, então, sentido próprio e sentido figurado estão
intimamente associados; não há a paisagem “real” de um lado
e sua “figuração” de outro: é próprio da paisagem já
apresentar-se sempre como uma configuração da região (p. 49,
50).
116

Por essa razão, lembramos que, segundo Russell (1925, apud


MONTAGU, 1988), é o tato que nos garante a compreensão daquilo que é real.
Assim, podemos dizer que o eu lírico tenta, simultaneamente, assegurar-se da
veracidade daquilo que seus olhos veem, da experiência que está vivendo e
perpetuá-la pelo viés da escrita.
Quanto à tentativa de conter o tempo, seu intuito parece não ser bem-
sucedido. Isso se verifica, dentre outros elementos, na imagem da “borboleta”.
Esta conota algo intangível e inapreensível. No poema, compara-se à “alma” do
tempo, à essência da experiência que o eu lírico deseja registrar. Podemos
dizer que a “borboleta” escapa para o verso seguinte, em virtude de uma pausa
terminal. O que evidencia, também, o caráter significante do silêncio no poema.
Já a ambiguidade entre o sonho e o real, que o eu lírico tenta suprimir
através do apelo tátil, também é intensificada pela imagem da “borboleta”. Isso
porque o quinto verso, ao dar-lhe contornos mais nítidos, através da conjunção
explicativa “que”, faz-nos perceber seu trânsito do texto escrito pelo eu poético,
para a natureza, e vice-versa, bem como duvidar da percepção do eu lírico.
Esse duplo intento do eu poético casaldaliguiano é análogo a um
funcionamento geral da figura na poesia. Como toda imagem, conforme explica
Alfredo Bosi (1976, p. 21, 22), ele busca a permanência, a superação do tempo
por meio da apreensão simultânea do global. Por outro lado, à medida em que
emprega seus recursos para concretizar esse intento, a palavra poética,
através das recorrências pelas quais persegue o efeito figural, “faz o que pode
para nos distrair das penas que inflige a consciência do tempo e da
contradição” (p. 27). Por isso, Bosi, descrente, afirma que a imagem poética
“não pode fazer o milagre de me dar o todo, agora agora” (p. 33).
Em consonância com isso, no nível da versificação, o poema sugere
uma certa insuficiência da escrita, trata da sua incapacidade de conter o tempo,
na medida em que deixa a “borboleta” escapar para o verso seguinte e em que
o verbo “querer”, no primeiro verso, instaura o paradigma da permanente
incompletude. Em outros níveis, porém, urde a certeza de que a “beleza
perfeita” pode ser abarcada através do ato de escrever. Assim, coloca em
tensão afirmações contrárias.
117

A despeito disso, resulta do poema a imagem nítida de que o ato de


“pregar na lapela de uma festa a última borboleta” é semelhante ao de escrever
poemas e de que estes são, essencialmente, aquilo sobre o que versam.
Apenas de modo esfumado a escritura poética aparece incapaz de conter o
real, o tempo e o espaço, em sua plenitude ou essência. Por isso, é justo dizer
que, se Bosi (1977) é cético quanto aos poderes da imagem poética e de sua
escritura, Octavio Paz (1976) tem outro ponto de vista a esse respeito. Para
ele:

A linguagem indica, representa; o poema não explica nem


representa: apresenta. Não alude à realidade, pretende – e às
vezes o consegue – recriá-la. Portanto, a poesia é um penetrar,
um estar ou ser na realidade. (p. 50)

Esse modo de entender a poesia pode ser ilustrado pelo quarto verso:
“– creme, limão, canário –”. Entre travessões, a ruptura semântica que ele
provoca é grande, em relação aos versos anteriores, a ponto de sugerir que o
assunto do qual se tratava, a escrita da alma do tempo que é a composição do
espaço, foi encerrado. Porém, em nível figural, esse verso deve ser entendido
como uma recorrência da sinestesia que se estabeleceu antes dele. Nessa
perspectiva, conter o tempo e certificar-se de que não se está sonhando
requereria, necessariamente, uma escrita que engendrasse sentidos
correspondentes aos do corpo.
Esse verso funciona também como uma “passagem” inesperada ou
como a entrada oculta de uma caverna subterrânea, num terreno que se
esperava plano. Depois que se é sugado por essa fenda, já no quinto verso,
percebe-se que a “borboleta”, numa organização de enredo, acabara de “pulsar
entre” os “olhos” do eu lírico. Em outras palavras, a “borboleta”, nos três
primeiros versos, tem função unicamente figural, serve para ilustrar o gesto de
“escrever a alma do tempo”. No quinto e no sexto, porém, é qualificada como
um elemento do espaço natural, da paisagem. Isso se processa num mesmo
período sintático, dividido em seis versos, sugerindo que aquilo sobre o que se
escreve e o que se escreveu pertencem a uma mesma ordem, denunciando a
semelhança última entre a palavra poética e aquilo sobre o que ela diz. Assim,
a borboleta é, simultaneamente, um elemento da escrita do eu lírico e um ser
118

vivo que compõe o ambiente sobre o qual ele está a escrever. Quanto a isso,
frisamos a reiteração da imagem sinestésica que a aproximação entre os
termos “pulsar” e “olhos” constitui.
Da mesma forma, sem abandonar a sinestesia, no quinto e no sexto
verso, o tom inicial cede lugar a uma narrativa. Com os sentidos entorpecidos
pela “beleza”, o eu lírico passa a enumerar aspectos daquilo que está vivendo
ou sonhando. Depois do estranhamento provocado pela imagem da borboleta,
já não há mais certeza. A ambiguidade entre o que é, ou não, realidade é
acentuada pelas reticências, no fim do sexto verso, e pela utilização do termo
“bêbados” em referência aos “olhos”, que, nesse caso, são considerados como
metonímia do corpo, em virtude das retomadas da sinestesia.
Em suma, do primeiro ao sexto verso ocorre uma sinestesia entre
percepções de sentido puramente intelectuais e sentidos físicos, como a visão,
o tato e todos aqueles sugeridos pelo quarto verso: “– creme, limão, canário –".
Os seres, os fenômenos e os sentidos, sensório-motores e da escrita, transitam
da realidade poética para a física e vice-versa, sendo-lhes comum a “beleza
perfeita”. Na primeira estrofe, esse trânsito é realizado pelo eu lírico, pela
borboleta, e, em última instância, pelo leitor. Este, após ser sugado pelo quarto
verso, surpreendido, percebe que a “borboleta” é tanto a escrita poética do eu
lírico, quanto à realidade que o envolve, o espaço que ele percebe.
Entendemos, então, essa insistente reiteração da sinestesia como uma
busca por condensar os sentidos do corpo no poema, a fim de perpetuar o
momento de experiência da paisagem natural por meio da escrita. Essa forma
recorrente encontra sua justificativa se considerarmos que

A experiência da paisagem, revelando a secreta continuidade


que une o mundo ao corpo e o corpo ao espírito, convida-nos a
redefinir as relações entre natureza e cultura. Essa experiência
resulta de uma interação entre o corpo, o espírito e o mundo e
se inscreve no prolongamento das trocas que nosso organismo
mantém com o meio natural. O “sentimento da natureza”
origina-se nessa relação vital, que é tanto fisiológica quanto
afetiva e simbólica. O corpo, sede de nossos sentimentos e
pensamentos, é também a natureza em nós, e é através dele
que nos comunicamos com ela. (COLLOT, 2013, p. 40)
119

Nesse sentido, a escrita sinestésica nos propõe uma fusão entre


natureza e cultura, na medida em que a paisagem surge como configuração de
elementos naturais e culturais. Fauna, flora, atmosfera e o corpo do eu poético,
com os sentidos sensório-motores que produz, encontram expressão e
correspondência em termos como “escrever”, “festa”, “livro”, dentre outros,
culminando no uso indeterminado do termo “beleza” para referir aspectos da
paisagem tanto quanto da cultura, incluindo-se nestes a própria poesia, que
Collot (2013, p. 43) considera uma produção do “espírito” humano. Desse
modo, a despeito da preferência da cultura ocidental pela visão

A paisagem não poderia se reduzir a um puro espetáculo. Ela


se oferece igualmente aos outros sentidos, e tem relação com
o sujeito inteiro, corpo e alma. Não apenas se dá a ver, mas
também a sentir e a ressentir. Na paisagem, distância se mede
pelo ouvido e pelo olfato, conforme a intensidade dos ruídos,
segundo a circulação dos fluidos aéreos e dos eflúvios, e a
proximidade se experimenta na qualidade tátil de um contorno,
no aveludado de uma luz, no sabor de um colorido. Todas
essas sensações comunicam-se entre si por sinestesia e
suscitam emoções, despertam sentimentos e acordam
lembranças [...] A experiência da paisagem não é, portanto,
unicamente visual, e o próprio panorama comporta uma parte
de invisibilidade cujo limite é marcado pelo horizonte, que
convida a preencher as lacunas do olhar pelo trabalho da
imaginação ou pelo impulso do movimento. Longe de ficar
estática como uma imagem, a paisagem é um espaço a
percorrer, a pé, num veículo ou em sonho [...] (COLLOT, 2013,
p. 51, 52).

Entre as limitações naturais da percepção humana e o preenchimento


das lacunas, dela advindas pela imaginação, configura-se a coautoria natureza
e cultura da paisagem.
Feitas tais considerações, assumimos que o mecanismo textual através
do qual o eu lírico visa apreender e expor a “beleza perfeita” por meio da
escrita é, predominantemente, sinestésico. Aparentemente, o trânsito dos seres
e fenômenos entre a “beleza perfeita” da natureza e a da obra poética é
mediada pela transformação das impressões físicas advindas do ambiente em
palavras, engendrando nestas um fundamento significante que é biológico.
Tal conhecimento, produzido pelo texto poético de Casaldáliga,
assemelha-se ao ponto de vista de Jean-Pierre Richard (apud COLLOT, 2013,
p. 58), para quem a percepção é uma forma de linguagem, possui um estilo,
120

porque organiza o sensível. Para ele, essa organização já seria uma escrita, de
modo que há uma relação de filiação entre a percepção e a criação artística e
literária. No que se refere a isso, há, também, uma convergência com os
ensinamentos de Derrida (1973), já que este considera que a experiência do
espaço e do tempo no corpo é uma escritura, “uma cadeia gráfica (“visual” ou
“tátil”, “espacial”)” (p. 80), que pode, eventualmente, adaptar-se a uma forma
linear. Nessa perspectiva, seria possível experienciar o espaço geográfico
através das palavras, ideia essa com a qual concorda o geógrafo sino-
americano Yi-Fu Tuan: “uma pessoa pode conhecer um lugar tanto de modo
íntimo como conceitual” (1983, p. 7).
No sentido de refletir sobre a aparência dessa paisagem literária, é
preciso conhecer o receptor sensorial, o eu poético que percebe e recria esse
espaço. Trata-se de entender como Casaldáliga poetiza a relação entre um ser
e seu meio e não apenas a poetização de um espaço geográfico referencial,
vivido pelo poeta, portanto, passível de identificação.
A sinestesia é a fusão, na linguagem, de dois ou mais sentidos físicos
(tato, paladar, olfato, visão e audição) para dar ou sugerir a compreensão de
uma ideia. Trata-se de uma das figuras mais utilizadas cotidianamente,
sobretudo, destaque nosso, para comunicar credibilidade, verdade,
espacialidade e realidade, conforme explicam, dentre outros, Yi-Fu Tuan (1983)
e o antropólogo Ashley Montagu (1988).
Contudo, na poesia, entendemos que essa imagem deve ser pensada
frente ao caráter infinito da experiência poética, da multiplicidade que ela
almeja condensar nas palavras. Assim, ressaltamos as diferenças extremas
existentes entre os aparelhos sensório-motores das muitas espécies de seres
vivos de nosso planeta. Conforme Collot (2013, p. 19)

Dos mundos animais ao mundo humano, há, certamente, uma


filiação, mas também uma transformação. Ambos testemunham
a espacialidade constitutiva de todo sujeito e a subjetividade do
espaço que o cerca. Mas o animal vive imerso em seu meio, do
qual mal se distingue e ao seio do qual presta atenção tão-
somente aos objetos portadores de significações ligados a
funções precisas, que delimitam as fronteiras de um território
fechado em si mesmo, sem comunicação com o de outras
espécies. Só o homem mantém, frente ao seu meio, a distância
necessária a uma visão de conjunto e à abertura de um mundo
121

comum que ultrapassa os limites do território. Essa abertura é


a condição para o aparecimento da paisagem e está ligada à
conquista da posição vertical que define o homem como um
“ser de distâncias”.

Administrando essas diferenças, ora enfatizando-as ora neutralizando-


as, em favor do prazer, a literatura está povoada de personagens dotados de
força e percepção animais, bem como de animais com intelecto humano. A
propósito disso e porque Casaldáliga nomeia por “América” a índia citada na
terceira estrofe do poema em análise, lembramos Iracema “da grande nação
Tabajara”. A virgem dos lábios de mel é “mais rápida que a corça selvagem”
(ALENCAR, 2015, p.5).
Porque essa possibilidade, gerada pela literatura, amplia o espectro
daquilo que entendemos por sinestesia nas diversas áreas do conhecimento,
citamos Chclovski (1976), que considera a arte como uma experiência não
apenas intelectual, mas também física e sensorial. Ao cunhar o conceito de
singularidade enquanto procedimento artístico, Chclovski exemplifica-o através
de um texto de Tolstoi, Kholstomer, no qual “a narração é conduzida por um
cavalo e os objetos são singularizados pela percepção emprestada ao animal,
e não pela nossa” (p. 46).
Essas considerações expõem possibilidades de uso da sinestesia na
literatura e visam suscitar uma pergunta acerca de quais elementos textuais,
utilizados por Casaldáliga, garantir-nos-iam que o eu poético que viemos
analisando é da espécie humana. Afinal, um mesmo espaço vivido não é o
mesmo para um homem e para uma mosca, ou qualquer outro animal
(CYRUNIK, 1997), e em se tratando de sinestesia, entendemos que isso
precisa ser definido. Ora, as considerações de Collot (2013, p. 19) sobre o
mundo animal e o humano já deveriam ser suficientes para nos afastar dessa
questão, uma vez que o poema nos oferece à análise uma paisagem. Contudo,
a paisagem pode surgir tanto da visão humana como da animal, pode surgir até
da “visão” conferida pelo artista a um objeto qualquer. Naquele caso, devido
aos estudos acerca dos diversos seres vivos, não poderíamos falar apenas de
uma transposição do modo de percepção humana.
Com base apenas no poema “Beleza perfeita”, essa pergunta não pode
ser respondida seguramente, primeiro porque o eu lírico desaparece, na
122

qualidade de primeira pessoa do singular, nos seis versos inicias, para


reaparecer somente no trigésimo verso. Quando reaparece, não podemos
afirmar que promove qualquer ação que possa distingui-lo como humano. Isso
porque há uma utilização reiterada do verbo na terceira pessoa, que cria uma
indeterminação no que se refere ao sujeito da enunciação. Assim, torna-se
difícil identificar suas características, ou saber se está se referindo a si mesmo,
de fato, ou a outras pessoas. Além disso, a reiteração da sinestesia sugere, em
última instância, uma dissolução desse eu no espaço natural que o envolve,
logo, uma total superação da separação entre o sujeito e o objeto. Assumimos
que esse eu lírico escrito por Casaldáliga seja humano porque, se não fosse,
seria o único animal a dominar a linguagem humana em toda a obra do poeta.
Embora Casaldáliga personifique a fauna e flora, dê a elas linguagem e
capacidade comunicativa, isso não constitui sequer uma aproximação às
fábulas, nas quais os animais são dotados de todos os atributos humanos.
Por causa da sinestesia, essa conclusão é fundamental. Mas,
isoladamente, é insuficiente para compreendermos o espaço criado por
Casaldáliga. Ocorre que um “mesmo” espaço vivido por um “mesmo” corpo
próprio também não é o “mesmo”. Ou seja, a experiência do espaço resulta de
outros elementos, além dos aparelhos sensório-motores, assim, é provável que
um “mesmo” espaço não seja o “mesmo” para um índio e para um latifundiário,
sobretudo, no que diz respeito aos espaços naturais. Nesse sentido, Coelho
(2009, p. 38-39) explica que os alemães valorizam, essencialmente, os
espaços fechados; eles necessitam de tais espaços para se concentrar e
produzir, bem como consideram espaços com portas abertas informais. O
americano, por outro lado, forçado a viver a portas fechadas, tem “a impressão
de um alheamento à sua pessoa, de uma esnobação ou mesmo de uma
“conspiração” contra ele” (COELHO, 2009, p. 39).
Assim, entender a “beleza perfeita”, na medida em que ela se apresenta
no rio, nas plantas e no céu, requer que saibamos qual a cultura componente
do modo de ver e sentir o espaço do eu lírico em questão. Quanto a isso,
Marinete Souza e Célia Maria (2014) analisam a obra de Casaldáliga
apresentando diversos personagens poéticos por ele criados. São o posseiro, a
quebradeira de coco, o índio, o sem-terra, o latifundiário, o peão, entre outros.
O eu poético de que tratamos não parece pertencer a qualquer um dos grupos
123

de que esses personagens são representantes, visto que o texto não fornece
elementos para atestar qualquer pertencimento desse tipo. Não apenas ele,
mas, em diversos poemas de Casaldáliga, aparecem seres poéticos que não
assumem uma religião, nacionalidade, ou cultura específicos, da mesma
maneira que não pertencem às diferentes classes sociais. Conforme
compreendemos, a esses, as autoras chamaram “eu humanidade” (2014, p.
66).
A partir desse pressuposto, o poema trataria de como a humanidade
concebe o espaço, também por isso a sinestesia torna-se significante, porque
se refere àquilo em que, inegavelmente, somos mais parecidos e estaria além
das diferenças culturais. Por um lado, esse recurso pode ser entendido como
uma tentativa de ampliar o alcance comunicativo das palavras, um gesto de
engajamento. Por outro, seria visto como mecanismo de criação de um espaço
universal.
Quando o geógrafo Tuan define o objeto e os objetivos da obra Espaço
e lugar: a perspectiva da experiência (1983), faz as seguintes ponderações,
que nos permitem melhor compreender esse apelo produzido pela sinestesia:

Considerando os dotes humanos, de que maneira as pessoas


atribuem significado e organizam o espaço e o lugar? Quando
se faz esta pergunta o cientista social é levado a ver a cultura
como fator explicativo. A cultura é desenvolvida unicamente
pelos seres humanos. Ela influencia intensamente o
comportamento e os valores humanos. A sensação de espaço
e lugar dos esquimós é bem diferente da do americano. Essa
abordagem é válida, mas não leva em conta o problema dos
traços comuns, que transcendem as particularidades culturais
e, portanto, refletem a condição humana. (p. 6)

Com efeito, Tuan busca explicar a constituição do espaço entendendo


como os sentidos sensório-motores funcionam nesse processo. Por isso,
partindo do pressuposto de que a sinestesia abrangeria, num processo
comunicativo, um traço comum a toda humanidade, lembramos que o desejo
de “escrever” do eu lírico materializa-se numa enumeração, que se estabelece
dos versos sétimo ao vigésimo, dos elementos composicionais da floresta,
gradativamente, do próximo ao longínquo, do aqui ao horizonte, das plantas ao
cosmos.
124

Se pensado verso por verso, tal recurso diz respeito a uma apreensão
unicamente visual do espaço, logo, cada verso indicaria um instante de foco, a
apreensão fulminante de um “quadro” do espaço. Semelhante análise correria
o risco de perder a dimensão de totalidade que a floresta representa, como
também a tensão entre o movimento e a imobilidade que o poema propõe,
conforme já visto.
Outro método é possível. Octavio Paz (1976) explica-nos que a imagem
poética moderna normalmente excede o espaço de um verso. Nesse sentido,
podemos procurar o efeito imagético que o conjunto desses versos introduz e
não apenas o que eles produzem isoladamente. Essa escolha ressaltaria o
caráter de velocidade e movimento que eles impõem e o valor de narrativa, ou
registro de viagem, que o poema adquire no todo. Assim como estaria em
maior consonância com o modo pelo qual efetivamente percebemos o espaço.
Este não é segmentado, embora a percepção da paisagem ocorra de modo
que uma extensão de espaço só se dá ao olhar ocultando outras, “deixa-nos
pressentir a presença” (COLLOT, 2013, p. 24) das extensões ocultadas.
Nesse sentido, a ocorrência da conjunção aditiva “e”, elíptica em oito dos
treze versos que compõem a enumeração em questão, cumpre a função de
juntar os “quadros” que cada verso pinta. A noção de velocidade e dinamismo
do espaço natural, dada pelos diversos recursos de que tratamos, e de
percurso, verificável, principalmente, no décimo sexto verso, coloca esses
quadros em movimento. Em virtude, ainda, do efeito de estaticidade que recai
sobre o eu lírico, esse espaço natural resulta mais cinematográfico que
fotográfico, portanto, mais narrativo que descritivo.
A despeito disso, é preciso ter em mente que o tato, o paladar, o olfato e
a audição aparecem imbrincados no circuito de imagens do poema, porque a
experiência da imagem “vem enraizada no corpo” (BOSI, 1976, p. 13). Assim,
quer cinematográfico, quer fotográfico, narrativo ou descritivo, devemos
considerar que Casaldáliga submete essas formas à poesia e que o poema
recorre insistentemente à sinestesia. Na enumeração através da qual se
compõe a imagem da floresta, os termos “chapinhando”, “fiandeira” e
“madrepérola” possuem valor sinestésico. Conforme dito, tal recurso torna o
espaço narrado/descrito universal, porque pretende apresentar também a
125

sensação física do espaço, que transcende “as particularidades culturais e,


portanto, reflete a condição humana” (TUAN, 1983, p. 6).
Escolher entre narrar ou descrever, participar ou observar é, segundo
Lukács (1965), “uma questão ligada à posição do escritor em face da vida” (p.
94). Com base nesse autor, compreende-se que a narração é a forma mais
apropriada ao engajamento artístico, porque permite a percepção das
mudanças sofridas pelos sujeitos que apresenta. No que tange ao poema
“Beleza perfeita”, o sucessivo apelo sinestésico também pode ser lido como um
recurso de engajamento.
Na segunda estrofe, o movimento do barco e som do motor cessam; na
ordem do poema, a beleza da natureza cede lugar à beleza da cultura
indígena, como se verifica no vigésimo quinto verso: “pura beleza índia em
bruto”. Amplia-se, assim, a ambiguidade em torno do termo “beleza” e, com ele,
Casaldáliga refere-se à cultura e à natureza, além de indicar uma busca
estética que visa apreender a essência das experiências vividas nessas
esferas. Apreensão, conforme exposto, que se dá por meio da escrita e que
não se deseja diferente do vivido. Por isso, nesta sextilha, a sinestesia atinge,
diretamente, metade dos versos. As palavras “para”, “falam”, “falado” e “riem”
referem-se, respectivamente, mas não isoladamente, aos sentidos do tato, da
audição e da visão.
Na estrofe seguinte, uma septilha, a nova menção ao som do motor
revela o apelo reiterado à sinestesia, que temos frisado. Esta é sucedida pela
hipérbole “dos mil sangues cruzados” e pela metáfora da menina índia que
representa a América. É interessante observar que a utilização dos travessões
cumpre função semelhante à verificada na primeira ocorrência desse sinal de
pontuação no poema. Naquele caso, cruzaram-se tato, paladar, visão e
audição. Resultou disso a compreensão de que a “borboleta” estava em
trânsito entre a arte e o ambiente que lhe servia de substrato. Neste caso, o
espaço entre travessões é também de um cruzamento, do qual resulta a
“América”. Também o efeito de sentido é semelhante. Depois dos travessões, a
mobilização do verbo “sorrir”, do termo “emoldurada” e do jogo de luz e sombra
sugere que a índia é um elemento da arte. Assim, se, num nível de enredo,
antes deles, a menina é uma das personagens colocadas em cena por
126

Casaldáliga, depois, sua condição passa a ser a de uma modelo que posa para
um pintor, ou, ainda, a de uma imagem pintada.
Nesse sentido, não apenas a “borboleta” e a “inhuma”, na última estrofe,
circulam entre a escrita do eu lírico e experiência do vivido, a arte e a vida, mas
também o fazem as pessoas e as culturas. Neste poema, a índia América, e,
principalmente, seu sorriso, que abandonam a moldura. Em outras palavras, é
nesse sentido que entendemos toda a terceira estrofe, como a imagem da
menina índia, América, “emoldurada na luz”.
Ainda na estrofe terminal, o tempo já passou, como indica o advérbio
“depois”; a “alma” do momento escapou ao eu lírico, e à sua escrita. Passada a
euforia e recuperados os sentidos físicos, ele expressa consciência da
limitação de seus versos e da criação poética como um todo. Tal limitação,
como dissemos de início, não é estanque. Assim, se o momento escapa à sua
escrita, a beleza permanece, como atesta a imagem da “inhuma”.
A abordagem sinestésica feita pelo poeta, dá à beleza natural e à
cultural um caráter comum a toda a humanidade, porque o modo de acesso a
ela busca articular os significantes da escrita aos do corpo.
Assim, no poema, a “beleza perfeita” é a arte, a natureza e certos
comportamentos sociais, identificados como culturas. Expressa-se no título, no
trânsito de seres vivos do espaço sobre o qual se escreve para a escrita em si,
e o contrário, na descrição e personificação da natureza e da cultura, nas quais
a beleza, das pessoas e das paisagens ecoa. A “beleza perfeita” cria um forte
sentimento de respeito às diferenças e ao meio ambiente. Com isso,
Casaldáliga permite-nos compreender que o espaço é uma dimensão
permeada de temporalidade e é a própria experiência física e intelectual, de um
indivíduo qualquer que o possibilita.

3.4 Entre o Lago e a História

Na poética de Casaldáliga, as imagens da natureza são bastante


heterogêneas, cumprindo funções diversas, mesmo quando consideradas
somente aquelas que surgem na condição de paisagem. Elas o são desde a
127

evidência e a denúncia de crimes (Versos Adversos, 2006, p. 67) até a prática


inútil da beleza (Antologia Retirante, 1978, p. 85). Isso porque constituem um
de seus elementos fundamentais, à maneira de um “coração” num organismo,
desempenhando função vital.
No poema “Beleza perfeita”, na qualidade de espaço, essas imagens
dizem, como exposto acima, de um modelo de perfeição, buscado tanto no
campo das relações sociais, quanto na natureza e na arte, apontando, em
última instância, para a perfeição divina. A esse respeito, lembramos que a
associação da noção de belo ao campo da arte é posterior ao século XVIII,
antes disso, a beleza não era mencionada como algo produzível pelo homem
(ABBAGNANO, 2007).
Segundo a teoria do belo no platonismo, a beleza é o lugar de encontro
do homem com substâncias ideais; a releitura dessa teoria pelo neoplatonismo
ganhou corpulência teológica e mística porque as substâncias ideais de que
falou Platão foram unificadas na ideia de Deus, ou Uno, do qual todas as
coisas boas emanam e para o qual retornam (ABBAGNANO, 2007). Por um
lado, a compreensão da beleza como meio de acesso a Deus e, por outro, da
persistência da presença paradoxal divina em todas as coisas, além de nos
remeter ao poema “Presenças”, já analisado neste trabalho, caracteriza a
conexão da parte com o todo evidenciada na reiteração das metonímias da
terra (SOUZA; REIS, 2014), constituindo, por isso, uma leitura plausível.
Comparando “Beleza perfeita” a outros poemas, verificamos que
constitui uma exceção. Trata-se de um dos poucos textos em que Casaldáliga
produz um eu lírico livre de angústias ou de preocupações sociais, no qual não
é feita qualquer menção à violência ou à exploração do ser humano. Pelo
contrário, o eu lírico contempla e reflete, de modo prazeroso, sobre o espaço
natural que o envolve. Quando se refere à cultura indígena e à formação da
América, não o faz em termos do processo de destruição cultural, dizimação de
vidas humanas, animais e vegetais que teria representado a colonização
portuguesa no Brasil. Mas, com leveza e graciosidade, o bispo-poeta aborda
questões como o “amor”, o “casamento”, a natureza, a cultura e,
principalmente, a possibilidade de a “beleza” interligar esses elementos. Não se
trata de um alheamento às questões sociais e históricas, ou da recriação de um
128

índio ideal, mas de uma opção artística, muitas vezes preterida. Opção esta
sobre a qual doravante nos deteremos.
Esse processo de comparação permitiu-nos agrupar os textos poéticos
de Casaldáliga, que versam sobre o espaço natural, em três conjuntos,
segundo a função desempenhada pelas imagens dessa espacialidade.
O menor desses conjuntos abarca textos nos quais o eu poético
contempla a natureza e esse ato não é interrompido por qualquer indício de dor
ou sofrimento, assemelhando-se, nesse sentido, ao poema “Beleza perfeita”.
Nestes poemas, a contemplação do espaço natural e a reflexão acerca dele
adquirem importância em si mesmos. Internamente ao conjunto, pudemos
observar que uns se destacam em lirismo e conotação enquanto há outros que
aglutinam imagens do espaço natural, compondo uma descrição da paisagem.
“Criaturas Irmãs”, terceira parte da obra Antologia retirante (1978), além de nos
fornecer uma boa amostra desse conjunto, inicia-se com o poema “Plantei um
jardim” (Antologia Retirante, 1978, p. 85), que citamos abaixo, a fim de ilustrar
o grupo tratado:

Plantei um jardim. Cultivo flores


em vasos e em latas.
Pratico a beleza inutilmente.

Rego as folhas verdes e seus gritos efêmeros.


Protejo-as da ventania,
do sol calcinador. Dou, cada dia,
três ou quatro olhares protetores,
e surpreendo a Criação fazendo-se ...

Elas, nunca me disseram como sentem


este humano desvelo sem cobiças;
mas vivem, florescem, me acompanham;
atendem as visitas, gratamente,
como falando por mim, como dizendo-me;
circundam de paz o Araguaia,
e balizam de esperas, de perguntas,
de respostas, de cantos florescidos,
o horizonte longamente opaco.

Além de “gracioso”, “suave” e “leve” são termos que qualificam,


justamente, o poema acima transcrito. Considerando-se a potencialidade
129

expressiva dos fonemas, é possível concluir que essas qualidades decorrem


não apenas da temática amena, o “cultivo de flores”, mas também da camada
fônica, que suscita essas impressões. Nesse sentido, destacamos a ampla
utilização de assonâncias nas vogais abertas /a/ e /e/. Ao longo do poema, /a/
apresenta 52 repetições, e /e/, 59; juntos totalizam um grupo de ocorrências
33% maior do que o constituído pelos três outros fonemas vocálicos, que
totalizam apenas 76 repetições. Aqueles fonemas, de acordo com Lemos
Monteiro (1991), sugerem “sentimentos positivos” (p. 100), o que nos autoriza a
relacioná-los às sensações de suavidade, leveza e, em última instância, de
prazer e felicidade, no contexto do poema. Assim, o valor expressivo dos
fonemas em questão evidencia-se pelo seu uso reiterado.
Nas duas primeiras estrofes, observamos que o “jardim” é apresentado
como um lugar que pode ser habitado, visitado, amado, cuidado e cultivado.
Ele constitui o “aqui” em que vive o eu lírico. Na terceira, por outro lado, há uma
projeção do jardim sobre o entorno do Rio Araguaia. Trata-se de uma
sobreposição do “aqui” sobre o “lá”. Em outros termos, de um colocar o “aqui”
em perspectiva. Indeterminação justificada pelo caráter metonímico desses
lugares.
Em virtude disso, é possível depreender do poema uma categoria
daquilo que Collot (2013) chama de “pensamento-paisagem”: a superação da
oposição entre natureza e cultura.
Nesse sentido, se, nos três primeiros versos, o poeta refere-se às
plantas de “jardim”, nos quatros últimos percebemos que essas plantas não se
diferenciam daquelas que compõem as matas ciliares do Rio Araguaia. Essa
relação de semelhança entre o “jardim” e a floresta constitui uma leitura
possível em virtude da concordância do verbo “circundar”, terceira estrofe,
sexto verso, com o pronome “elas”, que inicia a estrofe anterior e remete ao
significante “flores”. Este, por sua vez, funciona como uma metonímia de
planta. Outro elemento que atesta tal leitura é a utilização do significante
“Criação”, na segunda estrofe, usado como referência ao “jardim”, mas que
conota também a ação divina de dar existência ao mundo na visão do
cristianismo. Nisso verificamos o valor metonímico do “jardim”, que se
apresenta conectado com o todo, que é a “Criação”. Em virtude desse
deslocamento do próximo ao distante, o poema sugere uma paisagem, sem,
130

contudo, descrevê-la, fato que se explicita no último verso, quando o poeta


utiliza a palavra “horizonte”.
Assim, a semelhança entre o “jardim” e a floresta, o próximo e o distante,
permite verificar que a natureza pode ser “cultivada”, em outras palavras, que
não se opõe à cultura, quando esta opera livre de “cobiças”. Desse modo, o
poema sugere que qualquer elemento da flora, cultivado ou espontaneamente
gerado, é igualmente natureza, passível de ser visitado, habitado e amado. O
que diferenciaria tais elementos entre si seria, nesse sentido, o modo como nos
relacionamos com eles, se por “cobiça”, se por afeto.
À ação humana que visa um contato afetivo homem-natureza,
Casaldáliga chama prática “inútil da beleza”. O termo “inútil”, nesse caso, não
possui valor pejorativo. Ao contrário, conota um interesse pela coisa em si, uma
relação de afeto genuíno com a natureza, porque dela não espera uma
contrapartida. Isso não significa que, ao longo da obra do poeta, os elementos
da fauna e da flora sejam desprovidos de sua importância nutritiva para a vida
humana, como se verifica em diversos poemas, como “Bananas”, no qual é
feita uma apologia ao consumo dessa fruta, exaltando suas propriedades:
“Exuberantes ubres tropicais. / Gulodice de macacos. / Solução de emergência.
Proletárias. Vitamina de pobre. [...] – Nossas bananas de cada dia, / nos daí
hoje!” (CASALDÁLIGA, 1978, p. 105).
Essa compreensão do que seja natureza, engendrada pelo poema,
opõe-se fundamentalmente a um padrão de atitudes, vigente há pelo menos
um século, quando o assunto tratado é a proteção e o cuidado com o meio
ambiente natural ou conservação da natureza. Sobre esse padrão, em
Domesticando o mito da natureza selvagem, os antropólogos Gómez-Pompa e
Kaus (2000) explicam que visões tradicionais de conservação “afirmam que
existe uma relação inversa entre as ações humanas e o bem-estar do meio
ambiente natural” (p. 127). Dentro dessas perspectivas, a natureza é algo
distante do homem e deve assim ser mantida. Tal posicionamento é errôneo,
embora fundamente diversas políticas ambientais, de acordo com os autores
citados.
Em nossa opinião, o fato de os impactos ambientais provocados pelo
desmatamento urbano serem pouco abordados e estudados pelas diversas
mídias e pela academia, respectivamente, se comparados àqueles que
131

ocorrem em florestas e em outras áreas preservadas, somente atesta uma


visão coletiva de que a fauna e a flora urbanos, quer de jardins, quer de
quintais, não são natureza como o são a biodiversidade dos parques florestais.
Mediante esse processo, que em consonância com Raymond Williams (2011)
podemos chamar “abstração da natureza” a tudo aquilo que deriva da ação do
homem sobre seu meio, a população das cidades pôde acompanhar,
insensivelmente, a redução da flora urbana, a queda das árvores de fundos de
quintais. Nesse sentido, explica Williams (2011), é como se o ser humano fosse
dotado de um toque profano e a natureza fosse tudo aquilo que permanece
“imaculado” ou “tudo o que não fora tocado ou estragado pelo homem: a
natureza como locais solitários, como o selvagem” (p. 103). Logo, não nos
vemos destruindo a natureza quando resolvemos cortar uma árvore que
cultivávamos como se fosse um pomar.
Ao projetar seu “jardim” no “horizonte” para o qual se esvai o Rio
Araguaia, o eu lírico opõe-se latitudinalmente a esse modo de pensar a flora
cultivada e de relacionamento com ela. Plantar um “jardim” pode ser conservar
a natureza e se relacionar com ela de modo sensível. Dessa maneira, o poema
diz do cuidado com uma natureza na qual o ser humano está integrado, por
fazer parte da “Criação”, de modo que, cuidar do meio ambiente natural, é
também cuidar de si mesmo.
Esse conhecimento produzido pelo poema ressoa em outros campos do
saber. Na área da ecologia histórica, segundo Philippe Descola (1997),
desconstrói-se a imagem da Floresta Amazônica como um ecossistema
formado sem interferência humana e afirma-se justamente o contrário,
demonstrando impacto favorável da ação de populações indígenas sobre a
floresta:

A abundância dos solos antropogênicos e sua associação com


florestas de palmeiras ou de árvores frutíferas silvestres
sugerem que a distribuição dos tipos de floresta e de
vegetação na região resulta, em parte, de vários milénios de
ocupação por populações cuja presença recorrente nos
mesmos sítios transformou profundamente a paisagem vegetal.
As próprias concentrações artificiais de certos recursos
vegetais teriam influído na distribuição e na demografia das
espécies animais que deles se alimentavam, de tal modo que a
132

natureza amazônica é, na verdade, muito pouco natural,


podendo ser considerada, ao contrário, o produto cultural de
uma manipulação muito antiga da fauna e da flora. Embora
sejam invisíveis para um observador inexperiente, as
consequências desta antropização estão longe de ser
irrelevantes, sobretudo no que diz respeito à taxa de
biodiversidade, mais elevada nas porções de floresta
antropogênicas do que nas porções de floresta não
modificadas pelo homem. (p. 243-4)

A seleta de poemas, aqui representados pelo “Plantei um jardim”, e as


relações de intertextualidade entre este e o “Beleza perfeita”, sugerem uma
imagem-síntese para nomear o conjunto em questão: “natureza cultivada em
poemas”.
No segundo grupamento, reunimos aqueles poemas cujas imagens do
espaço natural compõem-se, internamente, em função de um sentimento de
incômodo infligido aos seres poéticos pelo capitalismo e suas práticas,
tornando-se fundamentais para o efeito de crítica social que esses textos
produzem. Esse tipo de funcionalidade do espaço natural pode ser observada
quando as imagens da natureza são mobilizadas para criticar e denunciar as
injustiças nas relações sociais, a distribuição desigual de itens necessários à
vida humana digna, ou ainda, as questões relativas à dominação e exploração
da natureza e o modo como isso é sentido por diversos grupos sociais. Não se
trata da temática dos poemas em si, mas do modo como as imagens do
espaço natural se articulam, em função de uma crítica ao capitalismo e seus
efeitos perniciosos, não figurando exclusivamente como adorno, plano de fundo
ou elemento mobilizado a fim de ser rompido para que um terceiro ganhe
ênfase.
Compõe esse grupo, dentre outros, o “Hai kai da lua ocupada” (Águas
do tempo, 1977, p. 40):

Cada vez que olho a lua


sinto o pé de Amstrong
em meus olhos.
133

Na obra Pedro Casaldáliga e a poética da emancipação, Marinete Souza


e Célia Reis (2014) analisam o poema acima demonstrando seu caráter crítico
e irônico. As autoras destacam a particularização de sentido do termo “lua”,
através da forma nominal do verbo ocupar, que, no caso, indica uma
privatização deste satélite natural. Tal ocupação, no contexto do poema,
acrescentam, evidencia a oposição entre valores culturais diversos: “os de
conquista (com referência específica aos Estados Unidos) e os de liberdade no
convívio com a Natureza (os do povo da região do Araguaia)” (p. 66). Ademais,
situam-no em sua emergência histórica, fundindo texto e contexto numa leitura
dialética, conforme orientação de Antonio Candido (2006). Desse modo, as
estudiosas demonstram que a paisagem lunar, no poema, propicia uma
reflexão acerca da “corrida para a lua”, disputada entre a União Soviética e os
Estados Unidos no período da Guerra Fria e sobre o papel das mídias de
comunicação em massa nesse processo.
Partindo desse pressuposto, verificamos que o poema em questão se
inscreve no conjunto de que tratamos porque a “lua”, enquanto elemento da
paisagem natural, não se separa do efeito de crítica ao paradigma capitalista
de relação entre homem e natureza que o texto engendra. Embora haja uma
quase ruptura de sentido do primeiro para o segundo verso, ela não se
concretiza, porque não há um isolamento da carga semântica da palavra “lua”,
que, a nosso ver, sugere, no poema, uma contemplação prazerosa do espaço.
Em consonância com isso, Marinete Souza e Célia Reis (2014) afirmam que o
verso indica a “frequência do ato, hábito cultural (ritual de muitas etnias) que
revela o poder da lua iluminando a noturnidade da terra com seus
encantadores e misteriosos espetáculos cromáticos” (p. 65).
No verso segundo, através do substantivo próprio “Armstrong”, é
apresentado o produto da chegada do homem à “lua”. Introduz-se no poema,
por meio deste verso, o sentimento de angústia. Tal sentimento, porém, não
decorre apenas da ação de “Armstrong”, mas também, do fato de essa ação
ser precedida por uma sensação de prazer e implicar na sua suspensão.
Jogando com a transitividade do verbo “sentir”, a imagem que se conclui no
pronome possessivo “meus” aplicado ao órgão da visão, já no último verso, é
uma sinestesia. Assim, a ação do astronauta sobre a “lua” é vivida pelo eu
poético como um contato físico incômodo. Compõe-se uma figura a partir da
134

qual se sugere, tomando a “lua” como metonímia da natureza, a não separação


entre o que seria o corpo do eu poético e o meio ambiente natural que o
envolve, apontando para a não separação entre sujeito e objeto e para uma
identidade última entre o homem e o mundo. Assim, a quase ruptura que
mencionamos não se concretiza, porque, figurativamente, o homem e a “lua”
são um só. A sugestão de ruptura serve, então, para confrontar situações,
temporalidades e significações diversas da natureza, provenientes de culturas
diferentes. Como o efeito produzido por esse confronto é de crítica ao
paradigma de dominação do homem sobre a natureza, cunhado pelo
capitalismo, o espaço natural constitui-se em função desse efeito, tornando-se
inseparável dele.
Outros poemas apresentam esse nível de integração entre as imagens
do espaço natural e as formas usadas para criticar os comportamentos sociais
e políticos engendrados pelo capitalismo, dentre os quais citamos, ainda, da
obra Águas do tempo (1977), o “Embiruçu” (p. 28) e “As águas da barragem”
(p. 46).
Dentro desse grupo, mesmo tendo em vista tal estruturação comum,
verificamos um alto grau de heterogeneidade entre os poemas, o que nos
obrigou a formar o terceiro conjunto.
Ocorreu que as imagens do espaço natural tendem a escapar dessa
relação intrínseca com o que temos chamado função de “crítica aos
mecanismos políticos e econômicos de opressão a diversos grupos sociais
brasileiros”, mas que pode ser entendido, de modo mais amplo, como formas
do engajamento, e assumir, por assim dizer, o protagonismo dos poemas. Em
virtude disso, aparecem deslocadas ou contrastando com essas formas,
produzindo efeitos diversos.
Se “Beleza perfeita”, por suas qualidades, pode ser entendido como um
dos textos que melhor representa o primeiro conjunto, é também representativo
do terceiro o texto “Junto ao vosso canto”, que transcrevemos abaixo, tentando
manter a mesma diagramação usada na obra Versos adversos (2006, p. 13), a
fim de que observemos o contraste entre as imagens da natureza e as formas
do engajamento, de que tratamos:
135

Meu silêncio seja


meu poema, irmãos, Quero ouvir o Povo!
junto ao vosso canto.
Quero ouvir o grito
Seja minha ausência das crianças mortas
como um voo de garças comandando a vida.
abraçando a tarde, Quero ouvir as covas
nesse voo de garças dos peões de trecho
que invadiu o dia soletrando vivos
com o vosso canto. os perdidos nomes.
Quero ouvir os pobres
Velhos de esperança num clamor de enxadas
– tantas luas cheias, conquistando a terra.
tantas noites foscas – Quero ouvir a dança
eu e o Araguaia das aldeias novas
já nos conhecemos, nas antigas flautas
rios de um só rio, acordando o mundo.
ajeitando o curso
entre Deus e o Povo. Toda a minha sede,
cuia de silêncio,
Junto ao vosso canto, beba em vosso canto
boca coletiva, o Araguaia novo,
seja meu silêncio luta nas enchentes,
posto de joelhos festa no banzeiro,
uma escuta nova. Povo, Povo, Povo!

Composto de sete estrofes, organizadas em duas colunas, o poema


“Junto ao vosso canto” (2006, p. 13) está inteiramente metrificado em
redondilhas menores. Movimentando o significante “silêncio” e remetendo-se à
escritura poética, reformula um modelo de presença, tema que discutimos no
primeiro capítulo, que passa a se concretizar, também, a partir da inexistência
de som, da ausência física, da “escuta” dos “mortos”.
Na segunda estrofe, evoca-se um relacionamento afetivo com a
natureza, marcado pela contemplação prazerosa do espaço, como um
parâmetro de comparação. Na seguinte, esse relacionamento é colocado numa
linha temporal, indicada pelos ciclos lunares e pelo termo “velhos”, elementos
que visam dar noção da intimidade existente entre o eu lírico e o espaço
natural, personificado, que o envolve, compreensão essa que requer uma
leitura metonímica da palavra “Araguaia”.
Até a quarta estrofe, não é possível indicar qualquer contraste entre as
imagens do espaço natural e as formas do engajamento, manifestas na
constante menção ao “coletivo” e a uma luta que se perpetua para além da
presença corporal e da vida orgânica de cada homem.
136

Porém, na estrofe quinta e sexta, esse contraste aparece nítido, o que


decorre, também, da estruturação em colunas na qual o poema é apresentado.
A partir daí, embora desloque imagens como as antíteses vida/morte,
novo/antigo, recursos de repetição como a anáfora, e a insistência em sons
nasalizados, decorrentes do gerúndio, as estrofes resultam referenciais. Como
produto dessa disjunção entre as imagens do espaço natural e as formas do
engajamento, a primeira coluna ganha em lirismo e a segunda, em detrimento
desta qualidade, em historicidade. Não é, assim, demasiado dizer que a quinta
e a sexta estrofes apresentam um estilo diferente das demais.
Nessas estrofes, ao reiterar “seu desejo de ouvir os mortos”, o eu lírico
promove um clamor por justiça social. Na septilha terminal, quando mobiliza o
termo “sede”, o poema intertextualiza o “Sermão da montanha”, segundo São
Mateus, capítulo 5, verso 6, no que tange às bem-aventuranças: “Bem-
aventurados os que têm [...] sede de justiça, porque serão saciados”. Tal
compreensão, contudo, não reconcilia as imagens da natureza e a forma dada
pelo engajamento, na quinta e na sexta estrofe, dificultando uma leitura em que
estas sejam tangenciadas por aquelas.
A disjunção entre as imagens da natureza na qualidade de espaço
percebido, de belezas naturais, e as formas criadas pelo engajamento é uma
estrutura comum à obra de Casaldáliga. Estes são, com efeito, textos divididos
entre uma experiência sensível, afetiva e, às vezes, estética do meio ambiente
natural e o engajamento literário que anima a poética dele. Motivados pela
intertextualidade que se estabelece entre essa estrutura e o poema “Aldeia
Tapirapé”, de Antologia Retirante (1976, p. 195), no qual o poeta se refere a tal
separação como que a justificando, apresentando-lhe os motivos, chamamos o
grupo de textos em que esse fenômeno ocorre de “entre o Lago e a História”.
Em virtude disso, vejamos o referido poema:

Do outro lado um pássaro responde ao meu silêncio,


confirmando a mútua profecia.
(Os pássaros são livres quando os homens o são.)
E um peixe tucunaré, como uma rubrica,
salta, rompendo a água,
selada pela luz e a treva
unidas em penumbra de anistia.
137

Eu sou o mundo inteiro.


Todos os tempos são, comigo, esta hora
de ocaso, sobre o lago.

Duas canoas se abrem, em ângulo e signo,


ao Lago e a História.

Cantídio dava, esta noite, suas pistas principais.


Como seu povo era, no Princípio.
Como chegou o tori com suas ofertas
[...]

O poema “Aldeia Tapirapé” compõe-se de doze estrofes irregulares, das


quais transcrevemos as três primeiras e os versos iniciais da quarta.
Na primeira estrofe, percebemos que o eu lírico narra uma experiência
de contemplação e vivência da natureza na qualidade de espaço. O elemento
textual que possibilita essa afirmação é a locução adverbial de lugar “do outro
lado”. No verso primeiro, é feita uma menção ao som e, nos dois finais, a
“água” é caracterizada, sugerindo a percepção de espaço natural pela visão. O
surgimento da paisagem se dá, assim, pela sinestesia. A pergunta que
fazemos é, portanto, como a sensação de espacialidade pode surgir tão forte,
tão bela, já na primeira estrofe, com base nesses tão poucos elementos
materiais do texto?
Os dois elementos textuais que dizem do espaço são aplicados de modo
vago. A locução “do outro lado” poderia referir-se à “aldeia”. Quanto ao termo
“água”, só na segunda estrofe percebemos que é referência a um “lago”,
quando, então, ressignificando-o, podemos propor uma leitura por metonímia.
Por conseguinte, esses elementos não explicam a sensação de espacialidade
provocada pela estrofe.
Tuan (1983) afirma que o “espaço é liberdade” (p. 3). Talvez a sensação
de espacialidade que a primeira estrofe suscita decorra, em parte, de o poeta
relacionar imagens da natureza, tanto da fauna quanto da atmosfera, ao
significante “livres”, fazendo-as, por essa relação simples, sugerir uma
paisagem, mesmo sem descrevê-la totalmente.
A percepção, como propõe Michel Collot (2013), “não somente reúne os
dados dos sentidos, mas integra o que não lhe é dado diretamente: por
exemplo, a face oculta dos objetos” (p. 24). Nessa perspectiva, aquilo que o
138

texto apresenta como visível sugere uma espacialidade não dita, logo, invisível.
De tal maneira, Casaldáliga consegue criar o espaço caracterizando-o
minimamente.
Para que tal explicação seja cabível em termos epistemológicos, não se
pode perder de vista o conhecimento produzido pelo poema “Beleza perfeita”,
de que os elementos da experiência sensível transitam para a escritura poética.
Em outros termos, segundo Collot (2013, p. 46), não se pode ignorar que a
expressão poética assemelha-se à experiência sensível da qual procede.
Nesse sentido, a percepção, como a escritura poética,

não nos dá a ver a extensão de uma região [de um país] se


não ocultando outras regiões do olhar, das quais, no entanto,
deixa-nos pressentir a presença, fazendo com que o nosso
aqui se comunique virtualmente com o próprio mundo inteiro,
que é o horizonte dos horizontes, e como tal, inesgotável.
(COLLOT, 2013, p. 24)

Desse modo, mesmo que não ofereça um processo de descrição


minucioso, como o realizado no poema “Beleza Perfeita”, o poeta deixa-nos
entrever, no efeito que o espaço provoca no eu lírico, uma paisagem.
Esse efeito, estabelecido desde os versos iniciais, diz respeito a uma
compreensão que a paisagem, segundo Collot (2013), pode suscitar em nós, e
que, acrescenta ele, os poetas, desde o romantismo, buscaram apresentar.
Nesse contexto, a paisagem é aquilo que

transgride a oposição entre sujeito e objeto, o individual e o


universal; embora possa assumir todos os valores da
afetividade mais íntima, a convergência dos olhares faz dessa
afetividade um lugar comum para mim e para os outros (p. 27)

Os “olhares” são aqui o do poeta, o do eu poético e o do leitor. A


paisagem, por seu turno, é tanto o próprio poema quanto pode se referir a um
espaço referencial, que ele visa à recriação e universalização. Nessa
perspectiva, verifica-se que, a partir de uma compreensão ampla do que seja
139

“liberdade”, o eu poético propõe uma semelhança entre si e o meio ambiente


que o envolve “(Os pássaros são livres quando os homens o são)”.
Esse ponto de similitude marcado pelo significante “livres” prenuncia um
momento de indistinção maior entre o homem (o eu) e o mundo, o qual aparece
nítido no verso “Eu sou o mundo inteiro”. Este apresenta uma subjetividade
que, frente à paisagem, flagra-se, surpreendentemente, constituída pelo
“outro”, que é “o mundo inteiro”. O verso também se refere a um interior que se
vê constituído pelo exterior. Isso não indica uma fusão do sujeito com o seu
meio, já que a própria paisagem supõe um distanciamento entre esses
elementos. É certo, contudo, que se refere ao engajamento presente na obra
de Casaldáliga. Assim, as imagens da natureza, engendradas pelo poema, são
também de engajamento.
A partir desses versos, o poema apresenta características semelhantes
às destacadas na segunda coluna de “Junto ao vosso [...]”. Em outros termos,
ocorre a ruptura entre as imagens da natureza e as formas do engajamento
que distingue o grupo de poemas dos quais estamos a tratar. Tal ruptura,
porém, não se dá sem aviso ou explicações, como ocorre em diversos textos.
Esse aviso, tanto ao leitor quanto ao eu lírico, vem da paisagem, silencioso,
mas se faz ouvir no canto dos pássaros, em forma de texto ou de pintura, como
sugere o termo “rubrica”, na primeira estrofe. Trata-se de um indicativo de
mudança no modo de escrever, suscitado por uma mudança assunto.
Uma das premissas sobre as quais Collot (2013) estrutura seus estudos
sobre a paisagem é a de que mais do que fazer pensar e ter ideias a
possibilidade dessas ideias “está inscrita na própria percepção da paisagem”
(p. 17). O teórico explica que esse modo de “pensar” não decorre do interior do
sujeito, determinando-lhe a existência, totalmente, nem lhe é exterior apenas.
A experiência vivida pelo eu poético, tal como apresentada no dístico
“Duas canoas se abrem, em ângulo e signo,/ ao Lago e a História”, refere-se,
justamente, a esse momento de encontro entre um ser e o mundo, sendo este
reconhecido como significante que possibilita aquele pensar. A relação que a
estrofe em questão mantém com as que a sucedem deixa implícita a opção
pela “História”, feita pelo eu lírico.
O dístico é importante não apenas para a compreensão desse poema. A
nosso ver, constitui-se como uma opção de leitura para todo um conjunto de
140

poemas produzidos por Casaldáliga, explicando mudanças bruscas de estilo no


interior de alguns deles. Além disso, reiteram a imagem de que a natureza é
um texto. Isso permite concluir que a reflexão produzida sobre as paisagens
naturais e culturais na obra poética de Casaldáliga propõe a superação de
dicotomias nas quais se fundam comportamentos sociais de exploração e
destruição do homem e dos espaços que habita e dos quais depende para
sobreviver.
141

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No primeiro capítulo deste trabalho, depreendemos do poema “A Bíblia


na pedra” a metáfora de que a natureza é uma escritura divina. Tendo por base
os estudos de Derrida (1973), pudemos observar que tal figura supõe a
naturalidade do significante e, por consequência, sua primazia sobre o
significado. Em virtude dela, concluímos que esse poema propõe um
deslocamento da busca pelo significado para uma contemplação das
possibilidades do significante. Tanto a forma quanto o conteúdo desse texto
poético sugeriram esse deslocamento, como vimos na análise, e isso nos
animou à investigação dessa proposta.
Norteados pela reflexão acerca da estrutura do poema, bem como
ancorados em Derrida (1973), interpretamos a imagem de que a natureza é
uma escritura divina como a desconstrução de um etnocentrismo/logocentrismo
e como o indício de uma inseparabilidade entre natureza e cultura na poética
de Casaldáliga. O estudo do poema seguinte, “Canção quebrada por um
canarinho morto”, confirmou tais interpretações. Permitiu observarmos que a
figura da natureza como texto nutre a desconstrução de uma forma de produzir
e transmitir conhecimento, de criar verdades, que opera a partir da
fragmentação e da exclusão de aspectos do real. Características estas
logocêntricas e etnocêntricas. Baseados no conceito de rede (LATOUR, 1994),
verificamos que o poema procura se constituir num saber que se opõe à
fragmentação e à exclusão como lógica e que se entende como filiado e
herdeiro do conhecimento uno, rítmico e escrito que a natureza constituiria.
Na segunda parte desse capítulo, estudamos o poema “Ecologia
suprema”. Nele analisamos os processos figurativos por meio dos quais
Casaldáliga formula a presença do sagrado nas imagens da natureza.
Primeiramente, demonstramos que Casaldáliga cria uma identidade metafórica
entre Deus-natureza-ciência por meio de recursos que colocam em primeiro
plano a ideia de poder conotada por esses termos. Depois, o poeta insere a
humanidade nesse jogo metafórico produzindo um paradoxo e condensando o
inteligível no sensível.
Ancorados em Derrida (1973, 2005), Lander (2005) e Keith Tomas
(2010), demonstramos que, por meio das imagens da natureza, nas relações
142

que elas mantêm com o sagrado e com um conceito de ciência, Casaldáliga


realiza exercícios de desconstrução de formas cristalizadas de pensar a
natureza, a cultura, e o ser humano. Essa desconstrução ocorre em favor de
uma cultura que, marcada por uma colonialidade que a desvaloriza, procura,
ainda assim, resistir a esse mecanismo de opressão. Essa resistência pode ser
entendida como uma das molas da poética de Casaldáliga. Propulsionam não
apenas as imagens da natureza, mas todas as estruturas que figuram a
liberdade.
Na análise do poema “Presenças”, verificamos tanto a recorrência dessa
figuração da liberdade como também procuramos tornar mais nítida a
paradoxal imagem da presença divina na natureza e na cultura. Isso nos
possibilitou a entrada no capítulo seguinte, porque permitiu-nos observar
aspectos do modo como Casaldáliga poetiza as relações dos sujeitos com seu
meio ambiente natural e cultural. Percebemos que poderíamos dividir as
imagens que versavam sobre tais questões em dois grandes grupos.
Ancorados em Gutiérrez (2000) e em Eliade (1992, 1997), a tais grupos
chamamos de imagens dos (des)encontros com a natureza.
A partir desse pressuposto, analisamos o poema “Advento na Ilha do
Bananal”, bem como o comparamos com outros textos de Casaldáliga. Esse
procedimento permitiu uma subdivisão das imagens do encontro com a
natureza em quatro categorias: encontro com a natureza; encontro consigo
através da natureza, encontro com a divindade na natureza; encontro com o
outro. As imagens do desencontro, por sua vez, expressaram a incapacidade
dos sujeitos desencontrados de viver o presente; um distanciamento desses
sujeitos em relação aos seus semelhantes, à natureza e ao sagrado.
Na terceira parte deste trabalho, poderíamos ter mantido em perspectiva
essas categorias de relacionamento com o espaço natural, mas, uma vez
formada uma paisagem da poesia de Casaldáliga, optamos pelo “lago”. Isto é,
tendo em vista, ainda, a inseparabilidade entre natureza e cultura na poética de
Casaldáliga, optamos por estudar a formação das paisagens poéticas a partir
das imagens da natureza em consonância com os conhecimentos produzidos
por Collot (2013). Esse estudo nos permitiu observar um constante exercício,
por parte do poeta, de elaborar a superação de dicotomias, dentre as quais
destacamos a sujeito/objeto, experiência/expressão e corpo/mente.
143

Quanto aos procedimentos de constituição das imagens que


identificamos através deste trabalho, destacamos que a figura de que a
natureza é um texto formula-se, recorrentemente, através da repetição de
termos que designam o ato ou efeito da escrita. Tal repetição ocorre, contudo,
somente na camada significante dos textos. Isso porque, em nível de
significação, ocorrem mudanças de sentido que sugerem realidades opostas,
como “Bíblia” sagrada e “Bíblia” profana ou “canção da vida” e “canção da
morte”. Há, portanto, estabilidade quanto ao significante e variação quanto ao
significado. A repetição é um dos fundamentos de toda a linguagem poética, o
que caracteriza o procedimento é o fato de que através do mesmo nome
Casaldáliga designa realidades apostas, formulando uma não oposição entre
elas. As imagens da presença divina na natureza e na cultura, a despeito da
variedade que apresentam, recorrentemente conotam um processo de fusão do
inteligível com o sensível. Este pode ser lido em ternos de uma fusão do
significado no significante. Em última instância, remete a imagem do “Deus”
feito homem, do verbo feito carne.
Em nossa opinião, essa fusão é fundamental para a compreensão da
obra de Casaldáliga e a sinestesia é a forma mais recorrente quando o poeta
procura expressá-la, como observamos, principalmente, nos capítulos um e
três.
No âmbito do segundo capítulo, a partir do estudo das imagens dos
encontros com a natureza, demonstramos que Casaldáliga produz textos nos
quais sagrado e profano, absoluto e relativo assemelham-se. Isso ocorre
porque o poeta organiza seus textos de modo que as formas e conteúdos que
articula conotem, simultaneamente, questões relativas ao universo do sagrado
e do profano. Às vezes isso se faz de modo evidente, como no “Auto
sacramental sertanejo Deus nasce na casa do vaqueiro”, mas na maior parte
das ocorrências cria-se uma ambiguidade que se mantém mesmo após a
leitura e análise dos textos. Desse modo, sugere-se que, quanto à aparência,
não há diferença entre o sagrado e o profano, ou, ainda, que o “profano” não
passa da aparência de algo que é, essencialmente, sagrado.
144

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