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INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
NATUREZA E CULTURA
NA POESIA DE PEDRO CASALDÁLIGA
CUIABÁ-MT
2016
MICHAEL JHONATAN SOUSA SANTOS
CUIABÁ-MT
2016
AGRADECIMENTOS
Fernando Pessoa
RESUMO
In this work we analyze the poetics of Pedro Casaldáliga, emeritus bishop of the
Prelature of São Félix do Araguaia, Mato Grosso, Brazil, aiming to understand
how the aesthetic resources used by the author express themes concerning
culture and nature. The study allowed us to identify, in the poems, the
recurrence of images according to which, “nature is a scripture" as well as
metaphoric fusions of the notions of divinity, science and nature. The processes
of aspect figuration of the relationship between human beings and nature were
also of vital importance for understanding the studied texts. In this context,
images in which emerge the look at nature and the observation of natural
spaces are great highlights. We found that the structures upon which such
figures are engendered express severe criticism against the production,
circulation and legitimating of scientific knowledge, as well as remarkable
sensitivity in his approach to people and nature, showing a reverse logic to that
of capitalism and also deep admiration for natural beauty.
INTRODUÇÃO.....................................................................................................9
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................141
BIBLIOGRAFIA...............................................................................................146
9
INTRODUÇÃO
inermes / dos trinta e oito posseiros” ou “os carnaubais abrem em leque / seus
verdes documentos, / ainda não arquivados” (2006, p. 30). Cita a poeta Cora
Coralina, doceira que se aproveita do produto das abelhas: “fabricam suas
abelhas / o sábio suco da vida. / Palavra de cera e chama” (1989, p. 47). Há
uma diferença entre as palavras da natureza e as da cultura, mas são
igualmente “palavra”: “Há uma ‘visão programática’ / e uma vivência sofrida. /
Palavra escrita em papel. / Palavra lavrada em vida.” (1976, p. 57). O voo de
uma gaivota é uma “Mensagem à flor do sono, à flor do rio”, quando “por
engano, a tiro, morta... / Mensagem cifrada. / Palavra interrompida.” (1978, p.
97).
No âmbito da tradição literária mato-grossense, no tocante a essa
imagem, Casaldáliga dialoga, dentre outros, com Marilza Ribeiro (2005, p. 65)
“Quem já percebeu o rastro da sucuri em noite de lua cheia? Por sobre seus
sinuosos traços, há uma escritura primitiva que anuncia acontecimentos”. Num
contexto literário mais amplo, apresenta relações com imagens produzidas por
Mario Quintana, como no poema “Escrevo diante da janela” (2013, p. 9), por
exemplo, “Vago, solúvel no ar, fico sonhando... / E me transmuto... iriso-me...
estremeço... / Nos leves dedos que me vão pintando”.
A partir dessas considerações, analisemos o poema a seguir, que está
publicado no livro Cantigas menores.
A BÍBLIA NA PEDRA
Sobre essas rochas de miséria,
a Bíblia apenas escrita
pode ser uma blasfêmia.
“Bíblia” estaria “na pedra” e, esta, estaria naquela. Seriam como um só objeto.
Em virtude do baixo índice de referencialidade que esse enunciado mantém,
devemos compreendê-lo figurativamente. Nesse caso, trata-se de uma
metáfora, isso porque a composição do título, ao que parece, propõe uma
semelhança essencial entre a “Bíblia” e a “pedra”.
O significante “Bíblia” pode ser entendido no sentido mais amplo
possível, mas isso não modifica o fato de ele remeter sempre à noção de
escritura. Por outro lado, “pedra” designa um elemento da natureza, que existe
independentemente de um processo criativo humano1. A preposição “em”
cumpre, porque justaposta à preposição “sobre”, a função de instalar a
escritura dentro da matéria mineral sólida, da pedra. Assim, a escritura compõe
a pedra, e vice-versa. Parafraseando Octavio Paz, quando discorre sobre a
conjugação dos opostos na imagem poética (1976, p. 38), traduziríamos tal
metáfora da seguinte maneira: a escritura é a pedra e a pedra é a escritura.
Não se trata de uma tautologia, uma vez que se compreende, embasados no
mesmo autor, que a imagem poética, ao constituir-se, não anula a
singularidade e a existência dos termos significantes díspares que mobiliza.
Ainda assim, cria a unidade desses termos, nesse caso, a metáfora. Devido a
isso, a ausência de superficialidade ou exterioridade da “Bíblia” não anula a
sua visualização.
Embora se verifique que é importante a noção de escritura para a leitura
que apresentamos deste poema, não podemos negar que ela poderia ser
suscitada por meio de outro termo que não fosse o significante “Bíblia”. Em
virtude disso, somos levados a concluir que esse significante tem, ao menos,
um duplo valor no poema. Primeiro: por designar um livro, “a Palavra de Deus”,
e por ser, metaforicamente, parte de uma “pedra”. No contexto do poema,
“Bíblia” sugere a existência de um todo que é escritura divina. Nesse sentido,
tem valor metonímico.
Graças a isso, podemos dizer que o significante “pedra” também adquire
valor metonímico, visto que a metáfora, por meio da qual é sugerida a
semelhança essencial entre Bíblia/escrita/pedra, mobiliza todos os termos que
1
“Pedra”, no contexto do poema, sugere, ainda, a intertextualidade “Pedro/pedra/Igreja” ou
“Bíblia/pedra/Igreja”, a qual pode constituir um percurso de leitura para este poema. Sem prejuízo de tal
possibilidade de leitura, por razões de recorte, nesta análise consideramos o termo somente como a
menção a um elemento da natureza.
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linguístico, tudo que não se deixa traduzir, pela fala, e transportar pela escrita
de uma linguagem, constitui a escritura (DERRIDA, 1973, p 12).
O advento da cibernética, para Derrida, demonstra, cabalmente, o
conceito em questão. Isso porque, nesse âmbito, a comunicação de certas
informações somente pode ser feita de modo grafado, criptografado. Qualquer
tradução desses criptogramas para a linguagem falada, ou fonetização desse
conteúdo, implicaria numa perda de integridade da informação, que somente
existe de modo íntegro em sua condição de significante. Essa tecnologia
apresentou, para além de toda retórica, um mundo escrito. O teórico, contudo,
adverte: esse fato “anunciou-se desde sempre.” (DERRIDA, 1973, p. 11).
Nessa perspectiva, pode-se dizer que há sempre uma parte do real que é
escritura e vice-versa, o que se pode inferir também das seguintes
considerações de Roland Barthes, no contexto do livro Aula (2004):
Nascer e morrer
é fácil.
O difícil é viver.
2
Ilustra bem esse procedimento a narrativa bíblica que engendrou a máxima: “quem não
tem pecado, que atire a primeira pedra”. Citamos por achar interessante a intertextualidade que
a estrutura do poema suscita.
“E os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério; e, pondo-a no
meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando. E na lei nos
mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-
o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra.
E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está
sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela. E, tornando a inclinar-se, escrevia na
terra. Quando ouviram isto, redarguidos da consciência, saíram um a um, a começar pelos
mais velhos até aos últimos; ficou só Jesus e a mulher que estava no meio. E, endireitando-se
Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus
acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu
também te condeno; vai-te, e não peques mais.” (Evangelho segundo João, Cap. 8, versos 8 a
11).
No próximo capítulo, veremos o auto “Deus nasce na casa do vaqueiro”, em que,
formalmente, Casaldáliga procede de modo semelhante.
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que permite ouvir a língua fora do poder [...] eu a chamo, quanto a mim:
literatura.” (p. 15).
Nessa ótica, ao abandonar o diálogo ou a dialética acerca da culpa pela
morte do pássaro, o poema escapa à possibilidade de engendrar um erro,
culpando a quem quer que seja, deslocando-se, portanto, do discurso do
poder. Assim, não classifica os posicionamentos apresentados como corretos
ou não. Subverte, desse modo, o poder que existe na língua e, escapando à
ordem classificativa que é a linguagem (BARTHES, 2004), mantém em
permanente suspensão uma conclusão última acerca da culpa.
Tal fato, em nosso entendimento, não implica numa neutralidade do
poeta quanto à situação de destruição de natureza que se processa no poema.
Isso porque, conforme se depreende de Barthes (2004), a opção pelo discurso
literário é o mais genuíno modo de luta contra o poder, uma vez que, vencer o
poder na linguagem é derrotá-lo no campo que lhe garante engendrar-se não
apenas na história e na política, mas em todos os aspectos da vida humana.
Na sequência da análise, percebe-se que a quarta e a quinta estrofes
paralisam a progressão temporal do relato, o aspecto narrativo do poema,
como se pode observar:
Assim, os versos “Teu coração moído por esta terra amiga / dará uma flor
sonora, e outros pássaros netos” referem-se ao ciclo natural de decomposição
orgânica que fertiliza o solo, possibilitando o crescimento das plantas.
Isoladamente, “flor sonora” figura como o poema que nasce a partir da
circunstância narrada, a qual lhe serviu de “adubo”. Refere-se, também, a um
conceito de poema que coloca em evidência o que é da sua especificidade – a
musicalidade, característica que herda do pássaro. Os “pássaros netos”
referem-se, por sua vez, tanto à continuação da espécie quanto, num sentido
mais amplo, à continuação de toda a vida.
É importante frisar que a utilização dos termos “sonora”, “pássaros” e
“cantiga”, no quarteto final, retesa ainda mais o já complexo campo semântico
inscrito pela ambiguidade do significante “canção”, reforçando a indissociação
e a alternância rítmica entre vida e morte. Assim, o poema constitui-se como
uma imagem do ciclo natural da vida e da morte. A escrita, por sua vez, figura
como o elemento que possibilita a articulação em unidade das diferenças
existentes entre esses momentos, tanto em nível formal, quanto de conteúdo.
Logo, no regime de verdade concebido pelo poema, ela é um elemento
essencialmente natural, um fato do qual nenhum ser humano pode se esquivar,
mesmo que o desconheça.
A partir dessa conclusão, pode-se afirmar que a natureza figura como
escrita, como poema do qual fazem parte “o sol e a chuva, o vento e a lua”
(CASALDÁLIGA, 1978, p. 87), a vida e a morte. Ao concluir a leitura da estrofe,
percebe-se que o fim triste da ave não se dissipou apenas em virtude de sua
reintegração à vida, mas também porque houvera se reconstituído em
escritura.
Tal compreensão nos permite interpretar a última estrofe de modo
coerente com a postura social impressa nos poemas de Casaldáliga,
cientificamente atestada por diversos pesquisadores. Observando-a, verifica-se
que o eu lírico, dirigindo-se ao canarinho, afirma: “os pássaros netos”
receberão uma herança de sua cantiga de “rota”, que significa “direção”. Ou
seja, cantiga direcionada “para todos os meninos pobres e analfabetos...”.
Desconsiderando-se a metáfora da natureza como escritura, poder-se-ia
afirmar que o conteúdo engendrado pela “canção” é direcionado às pessoas
desprovidas de riqueza e de cultura letrada, as quais seriam protagonistas de
44
ECOLOGIA SUPREMA
É proibido poluir
a imagem de Deus,
que é o homem.
4
Ver o poema “Especulações em torno da palavra homem”, de Carlos Drummond de Andrade.
Disponível em: http://palavraguda.wordpress.com/2007/12/24/especulacoes-em-torno-da-
palavra-homem/. Acesso em: 07/11/2014.
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lhe basta atestar que existe, Lander acrescenta que para Jan Berting (1993) ela
foi produzida nas religiões judaico-cristãs. Isso, porém, não é consenso entre
os estudiosos do tema e nem reflete a visão de Casaldáliga acerca do assunto.
Por essa razão citamos Keith Thomas (2010), na obra O homem e o
mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (de
1500 a 1800), que aponta e problematiza essa separação compreendendo-a,
também, como um fundamento de práticas sociais destrutivas da natureza e de
culturas que se organizam em desacordo com elas. Para ele, trata-se de um
fundamento teológico que legitimou uma visão coletiva de mundo, segundo a
qual “Deus” havia criado a natureza para suprir todas as necessidades e
desejos do homem. Entretanto, o teórico não afirma categoricamente que a
disjunção entre sagrado, natureza e humano é um elemento que se produziu
devido às religiões judaico-cristãs.
Em seu texto, Thomas resguarda certa inocência do cristianismo-
judaísmo. Para tanto, argumenta que as escrituras sagradas judaicas, na
Europa, eram interpretadas segundo o pensamento grego; que mesmo entre os
teólogos havia divergência quanto às posturas que deviam ser mantidas frente
às demais espécies; que em diversas culturas figuram mitos, inclusive entre
grupos indígenas americanos, de legitimação divina da superioridade do
homem sobre os viventes em geral; que diversos povos adoradores da
natureza destruíram ecossistemas inteiros sem qualquer ajuda do cristianismo.
No âmbito dessa argumentação, ele afirma, ainda, que aqueles que buscaram
centrar no cristianismo a responsabilidade ideológica pela exploração
sistemática e destrutiva de espaços naturais em todo o planeta,
superestimaram a “extensão em que as ações humanas eram determinadas
apenas pela religião oficial”. Nesse sentido, Thomas entende que houve uma
apropriação das ideias do cristianismo pela lógica da acumulação de riquezas.
Baseados nisso, podemos afirmar que a desconstrução operada pelo/no
poema não visa o cristianismo em si, mas sim a ideia de um Deus separado da
natureza e que legitima a total subordinação desta aos desejos do ser humano.
Tal distinção entre o cristianismo e essa ideia nos permite supor que o ato de
desconstrução, observado no poema, operou-se em favor de uma
compreensão do que seja Deus anterior ao século XIII, mas que permanece
em nossos dias em outras materialidades além da poética de Casaldáliga. Isso
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existe fora da escritura, sem o significante, e de que o inteligível não existe sem
o sensível, que lhe determina a validade.
Semelhantemente, como primeiro passo da desconstrução, Casaldáliga
constrói a imagem de que a ciência, como verdade inteligível que dita leis, é
“Deus”. O segundo passo é a inserção da palavra “homem”, no jogo metafórico,
e a consequente criação do paradoxo.
A desconstrução se torna visível por três motivos. O primeiro pode ser
traduzido na afirmação de que a revelação do sagrado não é transcendente.
O segundo é a sugestão de que não há verdade, já que esta não pode
ser um paradoxo. Ou, se há verdade, ela é um paradoxo, assim, não pode
constituir um parâmetro de julgamento do ser humano e de determinação de
suas ações. A verdade não pode, por conseguinte, ser uma lei que se produz
na cultura, que se observa na natureza ou que é ditada por Deus.
No poema, a “ecologia suprema” refere-se, assim, à liberdade do ser
humano de se relacionar com os demais seres vivos e os espaços que
compartilham. É, portanto, a essa natureza que não se pode poluir. Sua
articulação metafórica a “Deus” e a uma “verdade suprema” aponta, em
primeira análise, para o conceito de livre arbítrio e, em última, para a
experiência libertadora que seria o conhecimento da verdade. Há nisso uma
intertextualidade com o Evangelho segundo João, capítulo 8, versículo 32: “E
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
O terceiro elemento desencadeador da desconstrução de uma
colonialidade do saber, que opera sobre a separação entre a mente e o corpo,
é a fusão do inteligível com o sensível. Somente como paradoxo, a verdade
suprema que é Deus resultaria libertadora. No poema, ocorre a fusão de Deus,
da ciência e da natureza suprema, no ser humano (espécie e práticas culturais)
e na natureza como um todo, já que, conforme observamos, esses termos não
são dissociados na poética de Casaldáliga. Assim, tudo passa a ser como um
signo concreto de presença divina.
A depender do modo como se lê a vírgula terminal do segundo verso, o
poema comporta o entendimento de que o “homem é Deus”. Em tal leitura não
teríamos um paradoxo, mas a figuração metafórica de um antropocentrismo.
Isso, do nosso ponto de vista, não explicaria a relação entre o sensível e o
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PRESENÇAS
Encontro-me sempre
entre o instante e a morte.
Encontro-me sempre
com um livro em frente,
com um homem dolente,
e uma paisagem e a corrente,
e o sol incandescente,
e o sono, por fim, clemente.
E um pássaro e um menino e uma árvore, viventes.
outridade, tendo em vista que as palavras não são jamais próprias, mas
pertencem a todos (1982, p. 219). Isso implicaria uma volta ao Ser, conforme o
teórico, e também como pode ser depreendido do poema, tanto em virtude do
último verso: “E Deus persistentemente presente...”, como por causa das rimas,
que ocorrem no sufixo “ente”, em oito dos doze versos; no décimo segundo,
duas vezes, na forma de homeoteleuto, na palavra ‘persistentemente’. O
vocábulo “ente”, em uma de suas acepções filosóficas, uso mais raro, conforme
Nicola Abbagnano (2007), significa “Deus”. O uso em questão ocorre na obra
de Vicenzo Gioberti, intitulada Introdução ao Estudo da Filosofia (1840), a partir
da seguinte fórmula “O ente cria o existente” (GIOBERTI, 1840, p. 183 apud
ABBAGNANO, 2007, p. 334). Nossa opção de tal leitura do vocábulo, deve-se
ao fato de ela ser mais coerente com a obra de Casaldáliga.
A respeito da materialidade dos encontros, o etólogo Boris Cyrulnik
(1995) nos trouxe algumas conclusões. Primeira: uma condição para que haja
encontro é a continuidade da interação, a sucessão de encontros. Segunda:
todo encontro é precedido de um movimento preliminar e ambíguo que guarda
sempre a incerteza entre uma intenção afetuosa ou agressiva. Ademais, o
estudioso nos instiga perguntando: a que devemos o acaso de nossos
encontros?
Nesse entendimento, em nível sonoro, tem-se a noção de continuidade
expressa através da predominância de rimas com os mesmos fonemas, como
ocorre em oito dos doze versos. Além do advérbio “sempre”, que aparece em
todos os versos do poema, de modo explícito e implícito, marcando, tanto por
seu significado quanto por sua ocorrência, o sentido de continuidade.
Por outro lado, no que se refere à ambiguidade do encontro, na segunda
estrofe, tem-se o seguinte: “Encontro-me sempre / entre o instante e a morte.”
Compreendemos a palavra instante, no sentido mobilizado por Casaldáliga, da
forma como propõe Octavio Paz: o instante diz respeito à experiência do
poético, na qual
5
Informação disponível em http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/documentos/Subs11-
Natal2015.pdf. Acesso em: 10/02/2016.
74
profanos” (p. 485). Nessa perspectiva, a duração profana “corre, por assim
dizer, paralelamente ao tempo sagrado” (ELIADE, 1997, p. 485).
Desse modo, há duas formas de entender a relação entre os tempos
sagrado e profano, de acordo com Eliade (1997). Na primeira, o tempo sagrado
é separado e oposto à temporalidade profana, em outras palavras, o conceito
de um continuum tempo sagrado exclui a temporalidade profana. Nesse
raciocínio, é fato que a maior parte do tempo que Gutiérrez (2000) e
Casaldáliga compreendem como sagrado é, para Eliade (1997), profano. Isso
porque para a teologia da libertação “concretamente, não há duas histórias,
uma profana e outra sagrada, ‘justapostas’ ou ‘estreitamente unidas’, mas um
só devir humano assumido irreversivelmente por Cristo, Senhor da história”
(GUTIÉRREZ, 2000, p. 204).
Não obstante, como o tempo profano figura apenas na condição de uma
aparência de interrupção na duração sagrada, conforme citado (ELIADE,
1997), até o conceito de continuum tempo sagrado sugere certa indistinção
entre as temporalidades de que tratamos, na medida em que a diferença seria
apenas aparente.
Na segunda forma de compreensão, qualquer tempo pode se tornar
sagrado. Em virtude disso, pode-se concluir que entre as temporalidades
sagrada e profana há uma ligação. Tal entendimento assemelha-se à
compressão expressa na poética de Casaldáliga, segundo a qual o divino está
em todas as coisas.
Tendo por base tais considerações, chamamos a atenção, então, para
as situações geográficas que, atribuídas ao significante “advento”, tornam seu
significado relativo. É fato que constitui um tempo sagrado. Mas a articulação
dos substantivos “advento” e “Ilha do Bananal”, aparentemente, distancia
Casaldáliga das proposições da teologia da libertação.
Desse modo, a imagem do “Deus feito homem” suscitada pelo termo
“advento”, que, recorrentemente, tanto na obra de Casaldáliga quanto na
teologia da libertação conota o absoluto, o universal, o todo, sofre uma
relativização geográfica. Apesar disso, seu caráter de universalidade se
mantém, em virtude da grafia reiterada do termo “Homem”, com ‘h’ maiúsculo,
que não remete a um homem específico, mas à humanidade e à utilização do
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Porém, a classificação sintática dos versos dois e três não pode ser feita
com tanta precisão. A relação semântica que esses versos estabelecem com o
inicial não permite tomá-los como aposto do vocábulo “cavalo”, visto que não
restringem ou explicam o sentido desse substantivo.
Podemos, então, assumir que se estruturam sobre orações coordenadas
como a que se verifica no verso inicial. Caso em que se compõem de duas
assindéticas e uma sindética aditiva, respectivamente. A viabilidade dessa
leitura requer uma presença elíptica do verbo “ir”, na terceira pessoa do
singular, presente do indicativo, interna às intercalações por vírgula. A forma
oculta flexionada seria o “vai”.
Nessa estrutura, a relação que se estabelece entre os termos “novo”,
“velho” e “meia idade”, dada pelo verbo, é de semelhança e de simultaneidade.
De semelhança por cumprirem a mesma função sintática. De simultaneidade
em virtude de as temporalidades a que remetem estarem contidas no mesmo
tempo, o presente do indicativo. Coopera com esse efeito, ainda, o uso da
conjunção aditiva “e”, elíptica e expressa, nos versos dois e três,
respectivamente, e a predominância da coordenação assindética, conforme
explica Sant’Anna Martins (1997) no estudo da estilística da frase.
Tal estrutura pode ser interpretada, assim, como indício de uma unidade
do tempo que suprime a ideia de sequência. Isso porque, isolando-se as
marcas de tempo, inclusive o verbal, teríamos a formação do que podemos
chamar de um “presente interminável”, composto por “passado”, “agora” e
“futuro”. Isso não significa, a nosso ver, que os tempos em questão deixem de
existir na lógica engendrada pelo poema, mas que existem no presente. É
como se três tempos participassem da viajem, ou caminhada, que realiza o eu
poético num momento do presente.
Embora temerária, porque nada pode garantir que de fato exista uma
presença elíptica do verbo “ir” no interior das intercalações por vírgula, tal
leitura encontra suporte no fato de que o poeta mobiliza, predominantemente,
orações coordenadas assindéticas na composição do poema. Duas conjunções
ocorrem em todo o texto, elas são “e” e “ou”, aditiva e alternativa,
respectivamente. Esta apresenta uma única ocorrência, no terceto final.
79
Aquela, por outro lado, pode ser depreendida em todas as orações que
compõem o poema. Com relação ao elemento tempo, o uso da conjunção “e”,
no poema, provoca o efeito de concomitância. Devido a isso e a não utilização
das demais conjunções, torna-se inviável precisar uma ordem temporal para os
acontecimentos expostos pelo eu poético.
Desse modo, as considerações sobre o tempo nos versos iniciais podem
ser estendidas para todo o texto. Isso provoca, dentre os efeitos, como
decorrência, pouco nexo lógico existente entre as orações coordenadas
assindéticas (MARTINS, 1997). Além disso, a total supressão de uma
sequência temporal na ordem das ações executadas pelo eu lírico e dos
acontecimentos por ele narrados, corroborando para a impressão de
concomitância. Supondo-se que o espaço percorrido seja o da “Ilha do
Bananal”, como sugere o título, esse efeito de unidade do tempo é o que
possibilita que esse espaço, existente sob tal designação somente a partir do
século XVII, possa ser contemporâneo ao nascimento do Cristo, acontecimento
ocorrido há mais de 2000 anos. A única sequência resguardada por
Casaldáliga é a dos versos.
Outra leitura possível dos elementos intercalados por vírgulas é a de que
sejam apenas frases nominais justapostas. O que não muda as conclusões já
apresentadas acerca do tempo, apenas as reforça. Nesse caso, os dois
extremos são colocados lado a lado, depois, no verso seguinte, é colocado o
tempo que se estabeleceria no intervalo entre eles. Graças a essa organização
e à ausência de conjunções subordinativas, não há nos versos uma relação de
progressão ou regressão temporal, mas, também, de similaridade e
concomitância entre o “novo”, o “mediano”, e o “velho”. Assim, conforme nossa
perspectiva, também essa estrutura remete ao que chamamos de um “presente
interminável”.
A despeito do modo como sejam lidos, além das relações semânticas
evidenciadas pelos adjetivos que lhes modificam e pelo verbo “ir”, no caso de
os versos se assentarem sobre orações coordenadas, há pouco nexo entre os
substantivos “verde”, “burro” e “coração”. A estrutura sintática dos três versos
iniciais é recorrente. Era de se esperar que essa tendência se mantivesse no
aspecto figurativo. Isso, porém, não ocorre. O que apenas ressalta a
80
participam, mas propõe uma harmonia entre eles. O que os faz partilhar do
mesmo caminho, colocando-os lado a lado. Tal procedimento, em nível
semântico, é recorrente no poema, sobretudo nas duas primeiras estrofes.
Nesse sentido, nos versos “Na sempre-viva de um só conselho / recolho
as flores, vozes esparsas”, o elemento intercalado por virgula é um aposto
explicativo do substantivo “flores”. Através dele se verifica que cada flor,
embora da mesma espécie, a “sempre-viva”, possui uma particularidade,
demarcada pelo termo “esparsa”. Este, por seu emprego no poema, pode
variar quanto à significação. Na qualidade de adjetivo, remete a “espalhado”,
“disperso”; na de substantivo, designa uma composição poética que varia
“entre 8 e 16 septissílabos” (MOISÉS, 2004, p. 165). Quer numa, quer noutra
acepção, singulariza o substantivo “flores”. Num caso, diz que cada “flor” tem
seu lugar próprio, noutro, que cada uma se constitui obra específica.
Em todo caso, em nossa percepção, esse aposto reitera o sentido de
particularidade e independência. Como nos três primeiros versos, essa
característica não isola os elementos, no caso, as “flores”, mas permite a
reunião entre eles. Assim, a pluralidade pode se condensar na singularidade de
um “só conselho”. Verifica-se, ainda, a existência de um relacionamento,
pautado na confiança, entre o eu lírico e a natureza. O que se depreende do
fato de o eu poético ser aconselhado pelas “flores”. De certo modo, ele divide
com elas um ponto de vista. Nisso observamos, então, um aspecto do que
temos chamado encontro do homem com a natureza.
Os versos “No voo rasteiro da senda antiga / congrego o sonho das
muitas garças” apresentam estrutura semântica semelhante aos que lhe
antecederam. O substantivo “sonho”, precedido do artigo definido “o”, é um
elemento comum às “muitas garças”. A unidade que ele produz não é
espontânea, mas resulta da ação de “congregar” do eu lírico. Desta ação
depreende-se a existência de um relacionamento de intimidade entre o sujeito
poético e a natureza que o envolve. Em virtude disso, podemos dizer que há
entre os versos quarto, quinto, sexto e sétimo uma relação de paralelismo
semântico, o qual não se concretiza em nível morfossintático porque o sétimo
verso não apresenta aposto.
O verso oitavo, “E a fé me cerca, teimosa amiga”, introduzido pela
conjunção aditiva “e”, reitera a questão do tempo apontada no título e nos três
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versos iniciais. Esta, como dissemos, estende-se por todo o poema. Nesse
sentido, o termo “cercar”, conjugado no presente do indicativo, evidencia que a
“fé” é um elemento exterior ao sujeito poético, coincidindo, assim, com espaço
natural que o envolve, e o adjetivo “teimosa”, conota que é persistente. A
articulação entre o tempo verbal empregado e a noção de persistência revela a
ideia de algo “persistentemente presente” (CASALDÁLIGA, 1979, p. 69.)
No que tange a essa temporalidade, dos versos 4 a 7, a concomitância e
a semelhança entre passado, presente e futuro é reiterada pelo tempo verbal, a
que se submetem às referências a essas temporalidades, e pelo paralelismo
semântico, conforme demonstramos. Nesses versos, remetem a tais tempos o
substantivo composto “sempre-viva”, o adjetivo “antiga” e o substantivo simples
“sonho”.
Nessas estrofes, observamos, portanto, que Casaldáliga cria uma
imagem do encontro do homem com a natureza e com seus semelhantes
humanos, a partir de uma noção de liberdade que permite o compartilhar de
opiniões e de caminhos. Essa extensão da imagem do encontro à espécie
humana respalda-se no fato de o sujeito poético não ser uno, mas constituído
por uma outridade vital. O que se depreende do verso: “e o coração na meia
idade”.
O “coração” e o eu, elíptico, conforme dito, estão mutuamente
implicados, constituem, por metonímia, um mesmo sujeito. Ainda assim, a
imagem poética revela um eu que é constituído de um “outro”. Dito de outra
forma: “a imagem poética é outridade” (PAZ, 1976, p. 102). Em outras palavras,
a experiência do encontro, porque poética, nutre-se na outridade. Por isso, no
poema “Presenças” (CASALDÁLIGA, 1979, p. 69), o eu lírico afirma “encontro-
me sempre”.
No que se refere às duas primeiras estrofes, consoante a Octavio Paz
(1976), verificamos que a outridade é tanto um fenômeno constitutivo da
consciência quanto diz respeito às relações sociais que os indivíduos mantêm
entre si. Trata-se de um processo em que cada sujeito se reconhece enquanto
tal nas relações que estabelece com os outros. Para que isso se efetive, são
fundamentais, conforme se depreende do referido autor, a diferença e a
semelhança. O sujeito se percebe diferente, ao passo que também se
reconhece no outro. Nos versos, “diferença” associa-se à imagem da liberdade,
83
MEGALÓPOLE
As ruas se entrecruzam
sem nunca se encontrar,
transbordando de gente.
Casa de pobre,
Foto de rico.
(A imagem
Confina a tragédia...)
Casa de rico,
foto de pobre
(A imagem
dispensa o remorso...)
Tu não és máquina,
tu vales mais que a máquina
e toda máquina é tua!
AS ÁGUAS DA BARRAGEM
- As águas, Maria,
chegaram aqui. (São José fugia
de Tucuruí).
É o destino duro
do filho, Maria.
A barragem certa,
incerto o futuro,
a Amazônia aberta
e o Povo no escuro.
(Herodes queria
novamente a morte.
São José fugia
da Eletronorte).
– As águas, Maria,
chegaram aqui. (São José fugia
de Tucuruí).
6
http://www.eletronorte.gov.br/opencms/opencms/aEmpresa/
102
BELEZA PERFEITA
7
Pode ser citado, também, da obra Metamorfoses, de Ovídio, os versos 243 a 297 do Livro II, a
história do artista Pigmalião e de Galatéia, sua escultura que ganhou vida. (BULFINCH, 2006,
p. 72)
106
pinta uma tela de sua esposa. Quando julga ter alcançado a perfeição, percebe
que sua modelo está morta. Isso parece ocorrer porque a perfeição estaria
além de toda possibilidade humana, por pressupor uma apreensão integral
daquilo que visa retratar.
Essas reflexões iniciais nos levaram a questão: o que é essa “beleza
perfeita”, no poema? Tal expressão respeita ao nome que o eu lírico utiliza
para se referir à paisagem descrita, como se verifica no sétimo e no vigésimo
versos, respectivamente: “A beleza perfeita destas águas amigas”, “para não
calcinar tanta beleza”. Assim, a expressão referir-se-ia, primeiramente, na
ordem do poema, às belezas naturais. O conceito de percepção, incluído no de
paisagem acima citado, diz que “olhar”, naturalmente, “é um ato estético”
(COLLOT, 2013, p. 18).
Assim, tendo em vista as relações de intertextualidade entre “Beleza” e
“Belo”, pode-se verificar que, no poema, aquela palavra respeita a um
posicionamento estético particular em relação à natureza, enquanto objeto da
obra de arte, na medida em que o texto apresenta teor metapoético.
Em relação a esse posicionamento estético, o verbo “querer”, no
contexto do primeiro verso, conjugado na primeira pessoa do presente do
indicativo, apresenta um paradigma na leitura do poema, que é também de
criação artística, revelando a permanente incompletude do eu lírico. O “quero”
é sempre um agora, ainda não satisfeito, logo, revela uma busca de satisfação
(REIS, 2006).
Tal fato diferencia, essencialmente, o eu poético de que tratamos, do
protagonista do conto de Poe, porque ele considera sua obra incompleta,
estando, assim, aquém da perfeição. Além dessa diferença, a apreensão da
beleza, através da arte, em O retrato oval, é um “aprisionar a vida” e isso não
ocorre no poema em análise, como veremos adiante. Neste, embora busque
registrar a “alma”, termo que pode ser entendido como sinônimo de “vida”, de
uma experiência, esse ato se concretiza como a apreensão de um trânsito das
coisas entre o real e a arte.
Contudo, essa incompletude do eu artista é ambígua, em virtude de o
poema se intitular “Beleza perfeita”, como se a “beleza” já tivesse sido
alcançada. Assim, a perfeição é uma busca; ao mesmo tempo, um fim já
alcançado. Isso sugere o entendimento de algo que seria como uma limitação
107
solta a esperança/ única terra onde cresce o Reino” (Versos Adversos, 2006, p.
95); “Paz inquieta”: “Dá-nos, Senhor, aquela Paz inquieta, / que não nos deixa
em Paz!” (Versos Adversos, 2006, p. 103).
Se o eu lírico, em movimento, aparece imóvel e o espaço natural, que é
imóvel, aparece em movimento, poderíamos dizer que a descrição que ele faz
desse espaço é mais de si mesmo do que daquilo que percebe? A resposta é
sim, se adicionalmente tomarmos por base a metáfora “O caminho que a gente
é / o caminho que a gente faz” (Versos Adversos, 2006, p. 54, 55). O que isso
sugere? Que, ao descrever os “caminhos” que percorreu, o sujeito descreve a
si mesmo. O modo como Casaldáliga constrói a relação entre o ser e o espaço
que o envolve tende a reduzir a diferença entre o eu e o mundo, que é
“característica do momento moderno” (COLLOT, 2013, p. 11). Reduz a tal
ponto que esse “eu” torna-se, ele mesmo, o caminho que percorre. A paisagem
poética é construída como algo que é “tanto interior como exterior, tanto
subjetiva quanto objetiva, sem que se possa dar a uma ou a outra a prioridade
desses elementos” (COLLOT, 2013, p. 187). Ademais, tal reflexão, suscitada
pela estrutura do poema em análise, reverbera problemas enfrentados pelos
estudiosos do texto literário ao se questionarem acerca do que é uma
paisagem literária. Nesse sentido, Collot recorre aos escritos de Jean-Pierre
Richard, o qual afirma que “a paisagem de um autor talvez também seja esse
mesmo autor, tal como se oferece completamente a nós, como sujeito e como
objeto de sua própria escrita” (RICHARD, 1967 apud COLLOT, 2013, p. 55).
Prosseguindo, Casaldáliga poderia ter formulado uma metonímia,
condensando “a vida exuberante da floresta múltipla”, oitavo verso, em uma de
suas partes. Isso tornaria desnecessária a enumeração de substantivos, o
paralelismo e a gradação que se estabelece das “águas”, às “nuvens” e ao
“sol”, além da personificação dos elementos da natureza, desenvolvidas a partir
desse verso. Isso reduziria, drasticamente, o efeito de estaticidade do sujeito
lírico e o dinamismo do espaço natural. Contudo, o poeta prefere valorizar,
igual e singularmente, os seres vivos que compõem a floresta e o que está em
seu entorno. Entretanto, cabe destacar que, se no interior do poema essa
estrutura indica uma não opção pela metonímia, não se pode dizer o mesmo no
que se refere ao conjunto da obra. Neste âmbito, a floresta, do modo como
Casaldáliga a compõe, formula a reiteração de metonímias da Terra, enquanto
110
Esse modo de entender a poesia pode ser ilustrado pelo quarto verso:
“– creme, limão, canário –”. Entre travessões, a ruptura semântica que ele
provoca é grande, em relação aos versos anteriores, a ponto de sugerir que o
assunto do qual se tratava, a escrita da alma do tempo que é a composição do
espaço, foi encerrado. Porém, em nível figural, esse verso deve ser entendido
como uma recorrência da sinestesia que se estabeleceu antes dele. Nessa
perspectiva, conter o tempo e certificar-se de que não se está sonhando
requereria, necessariamente, uma escrita que engendrasse sentidos
correspondentes aos do corpo.
Esse verso funciona também como uma “passagem” inesperada ou
como a entrada oculta de uma caverna subterrânea, num terreno que se
esperava plano. Depois que se é sugado por essa fenda, já no quinto verso,
percebe-se que a “borboleta”, numa organização de enredo, acabara de “pulsar
entre” os “olhos” do eu lírico. Em outras palavras, a “borboleta”, nos três
primeiros versos, tem função unicamente figural, serve para ilustrar o gesto de
“escrever a alma do tempo”. No quinto e no sexto, porém, é qualificada como
um elemento do espaço natural, da paisagem. Isso se processa num mesmo
período sintático, dividido em seis versos, sugerindo que aquilo sobre o que se
escreve e o que se escreveu pertencem a uma mesma ordem, denunciando a
semelhança última entre a palavra poética e aquilo sobre o que ela diz. Assim,
a borboleta é, simultaneamente, um elemento da escrita do eu lírico e um ser
118
vivo que compõe o ambiente sobre o qual ele está a escrever. Quanto a isso,
frisamos a reiteração da imagem sinestésica que a aproximação entre os
termos “pulsar” e “olhos” constitui.
Da mesma forma, sem abandonar a sinestesia, no quinto e no sexto
verso, o tom inicial cede lugar a uma narrativa. Com os sentidos entorpecidos
pela “beleza”, o eu lírico passa a enumerar aspectos daquilo que está vivendo
ou sonhando. Depois do estranhamento provocado pela imagem da borboleta,
já não há mais certeza. A ambiguidade entre o que é, ou não, realidade é
acentuada pelas reticências, no fim do sexto verso, e pela utilização do termo
“bêbados” em referência aos “olhos”, que, nesse caso, são considerados como
metonímia do corpo, em virtude das retomadas da sinestesia.
Em suma, do primeiro ao sexto verso ocorre uma sinestesia entre
percepções de sentido puramente intelectuais e sentidos físicos, como a visão,
o tato e todos aqueles sugeridos pelo quarto verso: “– creme, limão, canário –".
Os seres, os fenômenos e os sentidos, sensório-motores e da escrita, transitam
da realidade poética para a física e vice-versa, sendo-lhes comum a “beleza
perfeita”. Na primeira estrofe, esse trânsito é realizado pelo eu lírico, pela
borboleta, e, em última instância, pelo leitor. Este, após ser sugado pelo quarto
verso, surpreendido, percebe que a “borboleta” é tanto a escrita poética do eu
lírico, quanto à realidade que o envolve, o espaço que ele percebe.
Entendemos, então, essa insistente reiteração da sinestesia como uma
busca por condensar os sentidos do corpo no poema, a fim de perpetuar o
momento de experiência da paisagem natural por meio da escrita. Essa forma
recorrente encontra sua justificativa se considerarmos que
porque organiza o sensível. Para ele, essa organização já seria uma escrita, de
modo que há uma relação de filiação entre a percepção e a criação artística e
literária. No que se refere a isso, há, também, uma convergência com os
ensinamentos de Derrida (1973), já que este considera que a experiência do
espaço e do tempo no corpo é uma escritura, “uma cadeia gráfica (“visual” ou
“tátil”, “espacial”)” (p. 80), que pode, eventualmente, adaptar-se a uma forma
linear. Nessa perspectiva, seria possível experienciar o espaço geográfico
através das palavras, ideia essa com a qual concorda o geógrafo sino-
americano Yi-Fu Tuan: “uma pessoa pode conhecer um lugar tanto de modo
íntimo como conceitual” (1983, p. 7).
No sentido de refletir sobre a aparência dessa paisagem literária, é
preciso conhecer o receptor sensorial, o eu poético que percebe e recria esse
espaço. Trata-se de entender como Casaldáliga poetiza a relação entre um ser
e seu meio e não apenas a poetização de um espaço geográfico referencial,
vivido pelo poeta, portanto, passível de identificação.
A sinestesia é a fusão, na linguagem, de dois ou mais sentidos físicos
(tato, paladar, olfato, visão e audição) para dar ou sugerir a compreensão de
uma ideia. Trata-se de uma das figuras mais utilizadas cotidianamente,
sobretudo, destaque nosso, para comunicar credibilidade, verdade,
espacialidade e realidade, conforme explicam, dentre outros, Yi-Fu Tuan (1983)
e o antropólogo Ashley Montagu (1988).
Contudo, na poesia, entendemos que essa imagem deve ser pensada
frente ao caráter infinito da experiência poética, da multiplicidade que ela
almeja condensar nas palavras. Assim, ressaltamos as diferenças extremas
existentes entre os aparelhos sensório-motores das muitas espécies de seres
vivos de nosso planeta. Conforme Collot (2013, p. 19)
de que esses personagens são representantes, visto que o texto não fornece
elementos para atestar qualquer pertencimento desse tipo. Não apenas ele,
mas, em diversos poemas de Casaldáliga, aparecem seres poéticos que não
assumem uma religião, nacionalidade, ou cultura específicos, da mesma
maneira que não pertencem às diferentes classes sociais. Conforme
compreendemos, a esses, as autoras chamaram “eu humanidade” (2014, p.
66).
A partir desse pressuposto, o poema trataria de como a humanidade
concebe o espaço, também por isso a sinestesia torna-se significante, porque
se refere àquilo em que, inegavelmente, somos mais parecidos e estaria além
das diferenças culturais. Por um lado, esse recurso pode ser entendido como
uma tentativa de ampliar o alcance comunicativo das palavras, um gesto de
engajamento. Por outro, seria visto como mecanismo de criação de um espaço
universal.
Quando o geógrafo Tuan define o objeto e os objetivos da obra Espaço
e lugar: a perspectiva da experiência (1983), faz as seguintes ponderações,
que nos permitem melhor compreender esse apelo produzido pela sinestesia:
Se pensado verso por verso, tal recurso diz respeito a uma apreensão
unicamente visual do espaço, logo, cada verso indicaria um instante de foco, a
apreensão fulminante de um “quadro” do espaço. Semelhante análise correria
o risco de perder a dimensão de totalidade que a floresta representa, como
também a tensão entre o movimento e a imobilidade que o poema propõe,
conforme já visto.
Outro método é possível. Octavio Paz (1976) explica-nos que a imagem
poética moderna normalmente excede o espaço de um verso. Nesse sentido,
podemos procurar o efeito imagético que o conjunto desses versos introduz e
não apenas o que eles produzem isoladamente. Essa escolha ressaltaria o
caráter de velocidade e movimento que eles impõem e o valor de narrativa, ou
registro de viagem, que o poema adquire no todo. Assim como estaria em
maior consonância com o modo pelo qual efetivamente percebemos o espaço.
Este não é segmentado, embora a percepção da paisagem ocorra de modo
que uma extensão de espaço só se dá ao olhar ocultando outras, “deixa-nos
pressentir a presença” (COLLOT, 2013, p. 24) das extensões ocultadas.
Nesse sentido, a ocorrência da conjunção aditiva “e”, elíptica em oito dos
treze versos que compõem a enumeração em questão, cumpre a função de
juntar os “quadros” que cada verso pinta. A noção de velocidade e dinamismo
do espaço natural, dada pelos diversos recursos de que tratamos, e de
percurso, verificável, principalmente, no décimo sexto verso, coloca esses
quadros em movimento. Em virtude, ainda, do efeito de estaticidade que recai
sobre o eu lírico, esse espaço natural resulta mais cinematográfico que
fotográfico, portanto, mais narrativo que descritivo.
A despeito disso, é preciso ter em mente que o tato, o paladar, o olfato e
a audição aparecem imbrincados no circuito de imagens do poema, porque a
experiência da imagem “vem enraizada no corpo” (BOSI, 1976, p. 13). Assim,
quer cinematográfico, quer fotográfico, narrativo ou descritivo, devemos
considerar que Casaldáliga submete essas formas à poesia e que o poema
recorre insistentemente à sinestesia. Na enumeração através da qual se
compõe a imagem da floresta, os termos “chapinhando”, “fiandeira” e
“madrepérola” possuem valor sinestésico. Conforme dito, tal recurso torna o
espaço narrado/descrito universal, porque pretende apresentar também a
125
Casaldáliga, depois, sua condição passa a ser a de uma modelo que posa para
um pintor, ou, ainda, a de uma imagem pintada.
Nesse sentido, não apenas a “borboleta” e a “inhuma”, na última estrofe,
circulam entre a escrita do eu lírico e experiência do vivido, a arte e a vida, mas
também o fazem as pessoas e as culturas. Neste poema, a índia América, e,
principalmente, seu sorriso, que abandonam a moldura. Em outras palavras, é
nesse sentido que entendemos toda a terceira estrofe, como a imagem da
menina índia, América, “emoldurada na luz”.
Ainda na estrofe terminal, o tempo já passou, como indica o advérbio
“depois”; a “alma” do momento escapou ao eu lírico, e à sua escrita. Passada a
euforia e recuperados os sentidos físicos, ele expressa consciência da
limitação de seus versos e da criação poética como um todo. Tal limitação,
como dissemos de início, não é estanque. Assim, se o momento escapa à sua
escrita, a beleza permanece, como atesta a imagem da “inhuma”.
A abordagem sinestésica feita pelo poeta, dá à beleza natural e à
cultural um caráter comum a toda a humanidade, porque o modo de acesso a
ela busca articular os significantes da escrita aos do corpo.
Assim, no poema, a “beleza perfeita” é a arte, a natureza e certos
comportamentos sociais, identificados como culturas. Expressa-se no título, no
trânsito de seres vivos do espaço sobre o qual se escreve para a escrita em si,
e o contrário, na descrição e personificação da natureza e da cultura, nas quais
a beleza, das pessoas e das paisagens ecoa. A “beleza perfeita” cria um forte
sentimento de respeito às diferenças e ao meio ambiente. Com isso,
Casaldáliga permite-nos compreender que o espaço é uma dimensão
permeada de temporalidade e é a própria experiência física e intelectual, de um
indivíduo qualquer que o possibilita.
índio ideal, mas de uma opção artística, muitas vezes preterida. Opção esta
sobre a qual doravante nos deteremos.
Esse processo de comparação permitiu-nos agrupar os textos poéticos
de Casaldáliga, que versam sobre o espaço natural, em três conjuntos,
segundo a função desempenhada pelas imagens dessa espacialidade.
O menor desses conjuntos abarca textos nos quais o eu poético
contempla a natureza e esse ato não é interrompido por qualquer indício de dor
ou sofrimento, assemelhando-se, nesse sentido, ao poema “Beleza perfeita”.
Nestes poemas, a contemplação do espaço natural e a reflexão acerca dele
adquirem importância em si mesmos. Internamente ao conjunto, pudemos
observar que uns se destacam em lirismo e conotação enquanto há outros que
aglutinam imagens do espaço natural, compondo uma descrição da paisagem.
“Criaturas Irmãs”, terceira parte da obra Antologia retirante (1978), além de nos
fornecer uma boa amostra desse conjunto, inicia-se com o poema “Plantei um
jardim” (Antologia Retirante, 1978, p. 85), que citamos abaixo, a fim de ilustrar
o grupo tratado:
texto apresenta como visível sugere uma espacialidade não dita, logo, invisível.
De tal maneira, Casaldáliga consegue criar o espaço caracterizando-o
minimamente.
Para que tal explicação seja cabível em termos epistemológicos, não se
pode perder de vista o conhecimento produzido pelo poema “Beleza perfeita”,
de que os elementos da experiência sensível transitam para a escritura poética.
Em outros termos, segundo Collot (2013, p. 46), não se pode ignorar que a
expressão poética assemelha-se à experiência sensível da qual procede.
Nesse sentido, a percepção, como a escritura poética,
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