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CAPA (Layout): Ary Almeida Normanha

REVISÃO: Maria Tereza Pardo


FICHA CATALOGRÁFICA
[Preparada pelo Centro de Catalogação~-fonte,
Câmara Brasileira do Livro, SP]

Lins, Osman, 1924-


L732L Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo,
Ática, 1976.
p. (Ensaios, 20)
Bibliografia.
1. Barreto, Lima, 1881-1922 - Crítica e inter-
pretação 2. Espaço e tempo na literatura I. Título.

17. e 18. CDD-869 .9309


17. -809.933
76-0246 18. -809.9338

índices para catálogo sistemático:


1. Espaço no romance: História e crítica 809.933 (17.)
809.9338 (18.)
2. Romances: Literatura brasileira: História e crítica
809.9309 (17. e 18.)

1976

Todos os direitos reservados pela Editora Ática SA.


R. Barão de Iguape, 110 - Tel.: PBX 278-9322 (50 Ramais)
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CONSELHO EDITORIAL

ALFREDO BOSI, da Universidade de São Paulo.


AZIS SIMÃO, ·da Universidade de São Paulo.
DUGLAS TEIXEIRA MONTEIRO, da Universidade de São Paulo.
FLÁVIO VESPASIANO DI GIORGI, da Pontifícia Universidade Católica.
HAQUIRA OSAKABE, da Universidade de Campinas.
RODOLFO ILARI, da Universidade de Campinas. A
Ruy GALVÃO DE ANDRADA COELHO, da Universidade de São Paulo.
Al/redo Bosi
Coordenador: José Adolfo de Granville Ponce
e Antonio Candido
"C'est bien déjà un écrivain de notre
monde, mais qui ne le savait pas encore.
Et qui peut-être n'aimait pas ça du tout.:'

Pierre Daix, falando de Antoine de La Sale.


(Sept Siecles de Roman.)
OBRAS DO AUTOR: íNDICE

O Visitante, romance. Rio, 1955.


Prêmio Fábio Prado; Escrito depois, para ser lido antes . 11
Prêmio Coelho Neto (Academia Brasileira de Letras);
Prêmio Especial da A. P. L. Capo I - Lima Barreto: o escritor. Linguagem; temá-
tica; o problema das repercussões biográficas
Os Gestos, contos. Rio, 1957. na obra . 15
Prêmio Monteiro Lobato;
Prêmio da Prefeitura de São Paulo. Capo 11 - Lima Barreto: o romancista. Insulamento e
ação nos seus romances . 31
O Fiel e a Pedra, romance.' Rio, 1961.
Prêmio Mario Sete. Capo 111 - Lima Barreto: os romances. Projeções do
tema do insulamento; deslocamento do eixo
Marinheiro de Primeira Viagem. Rio, 1963. dos conflitos; tensão entre personagens e es-
Lisbela e o Prisioneiro, teatro. Rio, 1964. paço . 49

Prêmio Nacional de Comédia da Cia. Tônia-Celi-Autran. 62


Capo IV - Espaço romanesco: conceito e possibilidades
Nove, Novena, narrativas. São Paulo, 1966.
Capo V - Espaço romanesco e ambientação. Ambienta-
Um Mundo Estagnado, ensaio. Recife, 1966. ção franca; ambientação reflexa; ambientação
oblíqua; ordem e minúcia; a perspectiva .... 77
"Capa-Verde" e o Natal, teatro infantil. São Paulo, 1967.
Guerra do "Cansa-Cavalo", teatro. Petrópolis, 1967. Capo VI - Espaço romanesco e suas funções. Relações
Prêmio José de Anchieta. personagem/espaço; o espaço-moldura; o es-
paço inútil . 95
Guerra sem Testemunhas - o Escritor, sua Condição e a Realidade
Social, ensaio. São Paulo, 1969 (incluído nesta coleção). Capo VII - Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá: temá-
tica; espaço, ambientação e funções do espaço
Avalovara, romance. 1973. nesse romance; conclusão.. 111
Santa, Automóvel e Soldado, teatro. São Paulo, 1975. BIBLIOGRAFIA 149

TRADUÇÃO

O Urso Polar e outras novelas, de Henrik Pontoppidan. Rio, 1963.


ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES

Não poderia dizer, com exatidão, quando li pela primeira


vez Afonso Henriques de Lima Barreto. Mas lembro-me de ter
sido numa fase em que também lia, intensamente, Machado de
Assis. Assim, minha admiração inicial sofreu mais ou menos
as mesmas restrições que obscureciam o julgamento dos seus con-
temporâneos. Para estes, como para mim àquela altura, o padrão
estilístico representado pelo prosador de Dom Casmurro, invali·
dava até certo ponto as realizações menos requintadas, ainda que
esta ausência de requinte - como no caso de Lima Barreto, se-
gundo tudo faz crer - fosse deliberada.
Passaram-se alguns anos até que esse outro grande criador
da nossa Literatur'a assumisse em meu espírito o seu legítimo lugar.
Isto é: para que eu não mais o visse como um escritor menor
do que Machado de Assis e sim diferente dele, com personalidade
e objetivos próprios. Eu viria inclusive a perceber que, sob alguns
aspectos, Lima Barreto, como homem e como ficcionista - se
quisermos insistir na atitude um tanto inócua de os comparar
entre si -, deixa um pouco na sombra o seu genial predecessor.
Admirável, por exemplo, a coragem com que assume a condição
de negro, num país onde atuam, apesar dos disfarces, fortes pre-
conceitos raciais; com que reconhece o desajuste radical entre o
escritor e a sociedade, evidência que Machado de Assis procurou
eludir e amenizar por todos os modos, fundando inclusive a Aca-
demia Brasileira de Letras; com que toma o partido dos mais
fracos, acusa os plutocratas e denuncia o imperialismo ianque,
a ponto de criar-se, muitos anos após a sua morte, "pelo tom
anti-americano de certas passagens", "uma barreira de incom-
preensão" na firma W. M. Jackson Inc., a qual, em conse-
qüência, desistiria de publicar as suas obras, segundo informa
Francisco de Assis Barbosa no "Prefácio" às Recordações do Es-
crivão lsaías Caminha.
Alguns desses traços humanos projetam-se nos livros que es-
creveu, expressão do homem em face do mundo (como se vê
em Machado de Assis) e também do homem brasileiro em face
12 ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES 13

do seu meio e do seu tempo (O que, a rigor, já não é tão rele- Butor numa entrevista a Tel Quel) e quantos, dentre eles, são
vante em Machado de Assis). Percebe-se, além disso, nos textos prorrogados, afastados por outros! Aqui importa sublinhar que, no
de Lima Barreto, respostas ante o mundo concreto, mais in- presente caso, o ritual universitário constituiu apenas um pretexto:
tensas e diversificadas quc no criador de Quincas Borba, disto fez-me optar, dentre várias alternativas, por este ensaio que há
resultandÇ) - fator ponderável no estudo que se segue - uma tempos amadurecia e na raiz do qual existe uma admiração literá-
inclinação maior pela paisagem; sua concepção da língua, sem ria juvenil que os anos ampliaram, tornando-a mais racional.
renegar a tradição, é aberta à enérgica contribuição popular, em O leitor porventura informado sobre as atividades literárias
harmonia com o interesse que demonstra pela gente obscura; nos do ensaísta e que desconheça os seus escritos, desejará talvez saber
seus romances mais bem realizados, nenhum dos quais, decerto, se o une a Lima Barreto alguma identidade de processos. Res-
alcança o equilíbrio e o apuro formal dos de Machado de Assis, ponderia que não e que, justamente, as diferenças concorreram
'insinua-se, reconhecível, o homem solitário dos nossos dias, sinal para o meu interesse. Acrescentaria, ao mesmo tempo, que o meu
de ·uma .Jsensibilidade privilegiada e antecipadora. O que importa, ilustre antecessor e seu estudioso, apesar das dif~renças, coincidem
entretanto, é que Lima Barreto e Machado de Assis, cada um em pontos importantes: na paixão e no respeito pela Literatura, a
a seu modo e, às vezes, seguindo caminhos opostos, contribuem que ambos se consagram incondicionalmente; no desejo, que ele
de maneira significativa para a formação do nosso patrimônio cumpriu de maneira tão dramática, de exercer com dignidade o
literário. ofício de escrever; na consciência de uma oposição irredutível en-
Este conceito firmar-se-ia em meu espírito à medida que eu.' tre o escritor e o poder; na tentativa de construir obra pessoal e
me debruçava, com atenção e assiduidade cada vez maiores, sobre identificada com o seu tempo.
os livros do grande louco e boêmio. Avivou meu interesse, é opor- A verdadeira razão da minha escolha, entretanto, seja acen~
tuno lembrar, a leitura de Aldebarã - A Vida de Lima Barreto, tuado, deve bem pouco a dessemelhanças ou coincidências. Mo-
de Francisco de Assis Barbosa. Julguei perceber, lendo a biogra- vem-me, acima de tudo, o apreço pelo romancista,e o desejo de
fia, que as razões de um certo ostracismo do escritor, cuja noto- contribuir, dentro de minhas possibilidades, para a interpretação, a
riedade permanece, ainda hoje, aquém da que merece, prendiam-se compreensão e a valorização da sua obra romanesca. (Apresentei,
a razões extraliterárias. As classes dominantes (e, com elas, am- bem entendido, no momento oportuno, outras alternativas ao Pro-
plos setores das classes dominadas, que refletem em grande parte fessor Alfredo Bosi, de cuja reação dependeria a opção final.
a visão conservadora) são particularmente sensíveis no Brasil aos Grande a minha alegria quando esse erudito e mestre, a quem agra-
que as renegam de maneira ostensiva. Pareceu-me sofrer Lima deço as sugestões e a atenção concedida ao presente ensaio, incli-
Barreto, e creio não enganar-me, o efeito de uma ação difusa, um nou-se a favor de Lima Barreto, a quem tanto admira.)
processo disfarçado, surdo, de sonegação (muito semelhante, por Iniciado o trabalho, ocorreu-me indagar muitas vezes se não
sinal, ao que entre nós marginaliza o negro). Acresce que os po- seria um contra-senso preparar tese universitária (precisamente
vos mostram-se sensíveis às idealizações. E Lima Barreto é talvez uma tese de doutorado!) sobre o escritor que mais detestou em
o autor brasileiro que nos viu até hoje com maior verdade e luci- vida os doutores e os títulos. Não encontrei resposta. Só me resta
dez. esperar que o presente texto não tenha saído doutoral, o que
Por tudo isso e, mais ainda, pela importância que as minhas Lima Barreto não merece e não perdoaria. Saberia compreender,
leituras revelaram ter na sua obra romanesca o espaço, atraía-me suponho, é provável mesmo que o comovesse (ele, tão sensível,
a idéia de escrever um ensaio a seu respeito, quando livre de certo como o demonstram suas cartas, até a comentadofes obtusos) a
trabalho premente e mais ou menos extenso. tentativa deste póstero e companheiro, a quem move um interesse
Seria executado o projeto, ou, ao menos, seria executado ago- tão grande pela sua obra e pela sua figura, ambas incomuns.
ra, inexistisse a regra que me persuade a apresentar, como profes- Praticante, como ele, do ofício de narrar, é possível que o
sor de Literatura Brasileira - ou, mais propriamente, como seu ?1c:-r texto não seja sempre tão ortodoxamente abstrato como dese-

divulgador -, tese universitária? Não sei. Muitos planos rondam JarIa um verdadeiro crítico ou um teórico puro. Poderão, ainda,
o escritor ("J'ai du pain sur Ia planche pour cent ans", diz Michel esse teórico ou esse crítico, achar que o livro hesita, antes de en-
14 ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES

contrar e enfrentar o seu assunto. Esclareço que o plano do en-


saio busca reconstituir a história das minhas próprias relações com
a obra de Lima Barreto, interessando-me antes pelo autor e seus
livros, centralizando mais tarde o interesse em determinados títu-
los e por fim descobrindo, à força de convívio, traços peculiares e CAPÍTULO I
significativos, como a importância do espaço na sua ficção; e, ain-
da, dentre os escritos mais intensamente analisados, aquele que - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
sem ser, admito, o mais importante - concentra em maior grau
traços inconfundíveis do ficcionista e ostenta, no que se refere ao
espaço, aspectos de maior interesse. A aparente hesitação do iní- Linguagem. - Temática. - O problema das repercussões
cio, portanto, beneficia-se em certa medida de métodos da ficção. biográficas na obra.
Nota-se ali um desconhecimento, uma busca, mais tarde uma des-
coberta - desconhecimento, busca e descoberta que na verdade Na triste manhã de Verão, um homem já alquebrado - os
são coisas do passado - e que o texto, com maior ou menor for-
olhos. pouco brilhantes e, mesmo assim, atentos - observa, através
tuna, imita, renova, transmuda, no esforço deliberado de atualizar,
de uma janela do Hospício Nacional de Alienados, a Enseada de
de fazer presente, viva, a pequena aventura particular do amor por
Botafogo brilhando sob o céu fuliginoso e baixo. Estamos em
uma obra e do seu estudo. São assim introduzidos, no capítulo de
abertura - onde um personagem que ainda não conhecemos olha 1920 e o contemplador diante da janela, nascido e vivendo há qua-
se 39 anos no Rio de Janeiro, sabe ser dia de São Sebastião. Os
embevecido e solitário o espaço -, temas que as páginas seguintes
desenvolvem. Poderia alguém, acaso, censurar essa pequena intro- músculos do rosto pardo por vezes se contraem; tremem um pouco
missão do romance no âmbito do ensaio, quando tantas vezes são as extremidades dos dedos bem modelados. Acha-se no Hospício
os romances invadidos pela monografia e' pelo pens.amento desde 25 de dezembro, interno como indigente, depois de vagar
abstrato? toda a noite da véspera nas ruas dos subúrbios, sem dinheiro, pro-
curando uma delegacia: perseguiam-no visões fantásticas e queria
apresentar queixa à polícia. Não é a primeira vez que sofre a ex-
periência do internamento por loucura e ele promete a si mesmo,
com ênfase, que esta será a última. O Hospício, bem entendido,
não lhe parece intolerável; e a falta que lhe faz a sua própria casa
é relativa. Anos antes, chegou mesmo a escrever no Diário que,
sem constância, mantém desde a juventude: "A minha casa me
aborrece". 1 Também as relações com a família não se pode dizer
que sejam das mais estimulantes. Quando, em 1909, envia
um exemplar do seu primeiro livro publicado à irmã, recebe um
bilhete curto e neutro, sem uma expressão, por mais discreta, de
alegria ou de encorajamento: comentário algum sobre a leitura.
Assim, se ele promete a si mesmo não voltar ao Hospício é antes
de tudo por delicadeza: "Estou incomodando muito os outros,

1. In: Diário Intimo. p. 171. Obs.: As edições dos livros de Lima 13arreto
clt~das no ensaio são as da Bibliografia, relacionadas no fim do volume.
Deixaremos de localizar as citações, quando for pequena a sua importância
e quando acompanhadas, no texto, de indicações suficientes.
16 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR LINGUAGEM. - TEMÁTICA. •• 17

inclusive os meus parentes." Caso volte, mata-se, eis o que de-


walmente: "Não insistamos nas fraquezas da Vida e Morte de M.
cide.2
Sua loucura é em geral atribuída à dipsomania. Tal conclusão
J. Gonzaga de Sá, romance cheio de homens-abstrações e de pai-
será inteiramente verdadeira? Bebe muito e mais de uma vez o la- sagens metafísicas." 5
Há uma tendência, entre os que se ocupam de determinado
menta no Diário. Pode-se, entretanto, supor que as suas crises
autor, a estabelecer hierarquias e, por vezes, mediante uma sepa-
tenham origem num conflito violento e sem esperança com o mun-
ração radical, subjetiva e simplificadora: o "bom" e o "mau". Não
do, ou, precisamente, com o país onde nasceu, onde vive e onde é isto compreender indevidamente o longo e tortuoso combate de
vai morrer mais ou menos obscuro. Comprova essa obscuridade
a anotação feita por um médico no Livro de Observações do Hos- quem lida com as palavras? Seria descabido pretender que inexis-
tem, na obra de um escritor, páginas imaturas e mesmo (por vezes,
pício: "Indivíduo de cultura intelectual, diz-se escritor, tendo já só na aparência) desastradas, ao lado de textos impecáveis - e
quatro romances editados." 3 Os quatro romances a que tão va-
nem sequer contestaríamos que existe, não raro, em determinada
gamente se refere o médico, classe cuja fatuidade esse louco e dip-
sômano vergasta com freqüência em suas crônicas, são as Recor- bibliografia, o livro que obscurece os demais e para o qual parece
dações do Escrivão [saías Caminha, Triste Fim de Policarpo Qua- ter convergido. todo o gênio do autor. Mas como desconhecer que
resma, Numa e a Ninfa e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. não veríamos com a mesma clareza esse livro sem os outros? Como
Não estaria nisto, no amor desse homem à arte de escrever - e na ignorar que esses outros nos ajudam a melhor compreendê-Io e
injusta ausência de reconhecimento público - a causa dos seus foram, além do mais, etapas necessárias à sua realização - ou, se
distúrbios mentais? Ele próprio, comentando esse infortúnio, tem ulteriores, adendos, pós-escritos, ampliações, ressonâncias? No caso
para o fato uma explicação pouco comum. Lembra-se de haver li- especial de Lima Barreto, as consideradas desigualdades de nível
do O Crime e a Loucura, de Maudsley; e, de Dostoievski, Recor- são unificadas, por assim dizer, mediante certas características de
dações da Casa dos Mortos. "Pensei amargamente (não sei se foi ordem literária e humana que atravessam todos os seus livros -
só isso) que, se tivesse seguido os conselhos do primeiro e não ti- ou, até, todas as suas páginas -, dando-Ihes grande homogeneida-
vesse lido o segundo, talvez não chegasse até ali; e, por aquela de. Sua obra tão variada é um bloco coerente e em toda ela reco-
hora, estaria a indagar, na Rua do Ouvidor, quem seria o novo nhecemos, inconfundível, nítida, a personalidade do autor.
ministro da Guerra, a fim de ser promovido na primeira vaga." 4
Atribui - não por ironia - sua insanidade e desamparo à Arte
Literária, de que são símbolo as memórias de prisão do grande
Seu instrumento de expressão, por exemplo, obedecendo ri-
russo. Mas é evidente que, à sanidade sem relevo espiritual, pre-
fere estar desamparado e/louco. Preço algum será demasiadamen- gorosamente a certas coordenadas, surge amadurecido e com todas
te alto para a decisão que assumiu de consagrar às letras toda a as virtudes e sestros pessoais - sestros que uma apreciação pouco
sua vida. analítica recusa simplesmente como erro ou incompetência - des-
Saindo do Hospício, prepara o escritor, nos três anos seguin- de as Recordações do Escrivão [saías Caminha. Inútil buscar, em
tes, cinco volumes" reunindo, inclusive, artigos publicados em jor- Lima Barreto, as frases irisadas de subentendidos e de alusões di-
nais. De todos, apenas um - Histórias e Sonhos - vê publicado. fusas, tão comuns em Machado de Assis. Por outro lado, jamais
Morrerá a 01/11/1922, aos 41 anos, deixando uma obra bastante incide no oco ornamentalismo de seu contemporâneo Coelho Neto,
volumosa e que muitos críticos julgam desigual. Agripino Grieco, contra quem seguidamente arremete: "O Senhor Coelho Neto é o
por exemplo, que considera as Recordações do Escrivão [saías Ca- sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelec-
minha "autêntica obra-prima" e Afonso Henriques de Lima Barre- tual." 6 "Não posso compreender que a literatura consista no culto
to, como romancista, "nosso primeiro criador de almas", diz tex-
5. In: V~I'Os e Mortos. p. 86. Na sua Evolução da Prosa Brasileira, Agri-
PIno Gneco é bem menos rigoroso: "Gollzaga de Sá constitui-se de diá-
2 In: O Cemitério dos Vivos (Diário do Hospício). p. 34. logos e de lances de conto filosófico, explicáveis num leitor de VoItaire
3 BARRETO, L. Op. cit., p. 265.
~ue, entanto, permaneceu do seu Brasil e do seu tempo," (p. 132-33).
4 BARRETO, L. Bagatelas. p. 99. BARRETO, L. "Histrião ou Literato?" In: Impressões de Leitura. p. 189.
18 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR LINGUAGEM. - TEMÁTICA... 19
ao dicionário." 7 Na sua conferência O Destino da Literatura, de-
t sto contra a ênfase e o formalismo vazio que predominavam
clara, apoiando-se em Taine, que a Beleza "já não está na forma, no pro, estilo' do tempo." 12 A afirmação, parcialmente válida, não se
encanto plástico, na proporção e harmonia das partes, como que- nol"ca
e a Machado de ASSIS,cUJo
... espectro am da h'oJe pesa sobre
rem os helenizantes de última hora e dentro de cuja concepção ap I ue escrevem no Brasil. Na carta que em janeiro de 1921 - já
muitas vezes não cabem as grandes obras modernas, e, mesmo,
os fim portanto, de sua vida - envia Lima Barreto a Austregésilo
algumas antigas. Não é um caráter extrínseco da obra, mas intrín- no ,
de Ataíde, . ,
faz, nessa carta mumeras . da, reparos f ortes
vezes CIta
seco, perante o qual aquele pouco vale. É a substância da obra, a Machado, que escreveria "com medo do Castilho". "Jamais o
não são as suas aparências." 8 A palavra como problema, fenô- imitei e jamais me inspirou." 13 O apuro formal de Machado de
meno manifesto já em fins do século anterior no célebre poema de Assis - a ele que, de origem negra, sentia de maneira aguda esse
Mallarmé e cujo monumento, o Ulysses, apareceria no início de
1922, poucos meses antes da morte de Lima Barreto, não domina- problema -, a frase afiada e sutil, isto e o esforço, tão bem estu-
dado por Lúcia Miguel Pereira, com que o romancista do M emo-
va o seu espírito. "Literatura não era para ele apenas 'expressão',
mas sobretudo 'comunicação', e comunicação militante - 'mili- rial de Aires vai apagando os seus estigmas (a cor, a pobreza, a
tante' é a palavra que ele mesmo emprega - em que o autor se obscuridade), nada disto lhe parecia muito inspirador. Assim, a
engaja, tão ostensivamente quanto possível, com suas palavras e o sua prosa - e seguidamente afirma, a jovens p0lttas que lhe en-
que elas transportam, a mover, demover, comover, remover e pro- viam livros, ser pouco versado em poesia - é elaborada nitida-
mover." 9 A escrita é para ele, antes de tudo, um instrumento. mente como reação àquelas duas figuras tão ~ivei'sas entre si. Ele
Tem, portanto, uma função mais utilitária que lúdica, sem que isto que sempre tem uma palavra de compreensão para outros ficcio-
signifique - prova-o largamente Antônio Houaiss - desinteresse nistas de menor evidência, mostra-se sempre exigente em relação
pelos problemas expressivos. Apenas, o encargo que ele assume a Machado de Assis e Coelho Neto. Seus julgamentos fazem-se
não será o de renovar a língua e sim o de retemperá-Ia. mais rigorosos na razão direta do prestígio do escritor. 14
Os seus pontos de referência, segundo indicam as alusões fei- Dado, entretanto, que toda obra literária, quando o seu autor
tas em várias oportunidades e a sua prosa mesma, são Machado assume uma posição realmente criadora, é em certo sentido meta-
de Assis e Coelho Neto. Neste último, o "culto ao dicionário" tem lingüística, ao menos na medida em que se opõe ou faz alusão a
o ar de uma evasão, um modo hábil de conquistar o aplaUso bené- outras obras, pode-se dizer que o mais claro e o mais importante
volo "dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro". "As cogi- discurso de Afonso Henriques de Lima Barreto a respeito dos seus
tações políticas, religiosas, sociais, morais, do seu século, ficaram- dois notáveis confrades não pode ser citado: são os seus escri-
-lhe inteiramente estranhas." 10 Para Lima Barreto, a frase art tos considerados em bloco. Estes - os romances, as crônicas, os
nouveau de Coelho Neto seria a expressão do seu oportunismo, contos -, vasados numa linguagem indiferente à aprovação de
que tanto o fazia orgulhar-se da condenação dum arcebispo do Castilho, mas não plebéia, pois o escritor respeita a língua que her-
Chile, como exultar ao v~r que "outra sua obra recebe gabos da dou e quer mantê-Ia digna, repudiam igualmente a secura e a retó-
mais alta autoridade eclesiástica do Rio de Janeiro." 11 Uma prosa rica (que é quase sempre a secura enfeitada e prostituída). Opina,
em torno da qual vagam tais suspeitas não servirá de modelo a c?mpreensivo, Oliveira Lima: "A única pecha de que o tenho ou-
Lima Barreto, escritor, conquanto atento ao mistério, em luta per- VIdo culpar, não me parece absolutamente justa. Refere-se à lin-
manente e exacerbada com a realidade circundante. Astrojildo guagem, ou melhor ao estilo, julgado menos cuidado e por vezes
Pereira, no "Prefácio" à reedição de Bagatelas, diz que a frase de
Lima Barreto "era nele também uma forma de inconformismo e ~: iERElRA, Astrojildo. "Prefácio." In: BARRETO,L. Bagatelas. p. 12.
14 n:. Correspondência. Tomo 2.°, p. 256-57.
, Incldentalmente, Lima Barreto menciona a literatura "palerma" dos
7 Id., ibid., p. 261.
s Id., ibid., p. 58. :cades, _e. dá de passagem a sua versão de Euclides da Cunha, de "alma
9 HOUAISS, Antônio. "Prefácio." In: BARRETO,L. Vida Urbana. p. 9. a ~a e anda.. e todo ele cheio de um orgulho intelectual desmedido, que
má o.rna~a amda mais seca e mais árida", e cujo estilo seria a "expiessão
10 BARRETO,L. Impressões de Leitura. p. 75.
11 V. nota anterior. Reixlmad de certas qualidades e atributos da Escola Militar. (Coisas do
no o Jambon. p. 274.)
20 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
LINGUAGEM. - TEMÁTICA.. . 21

incorreto, por ser a linguagem simples e propositalmente desata- Visão menos sintética pode interpretar como dispersão, a uni-
uma I d .
viada." 15 d d temática que percorre essas au as escntas quase sempre em
ae
. unstâncias adversas, ao ongo e aproxIma d amente vmte
I d . . anos
A lei que _ antes de tudo orienta esses escritos é a orali-
dade, não, bem entendido, a do tartamudo ou a do inculto, mas a c~r~cia já em 1900, um relato não concluído, começam em 1903
do homem educado, sensível e nada pedante. Entre a elipse que (Inanotações íntimas, e o "Prefácio" às Recordações do Escrivão
embeleze a frase e a repetição que infunda ao escrito um ar menos ::aias Caminha, divulgadas em 1907 na revista Floreal, trazem a
composto, prefere em geral esta segunda solução, que preservará a data de 12/07/1905) e só interrompidas com a morte repentina,
clareza e o natural. As exumações léxicas e mesmo os neologis- aos 41 anos, na modesta casa de Todos os Santos.
mos, subentende-se, encontram pouco lugar em Lima Barreto. Seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, declara, com auto-
Nunca, nas muitas páginas que escreve, alusões veladas e sutis: o ridade de historiador, que "não será possível proceder-se à revisão
alvo é sempre claro e o tiro forte. O autor não quer esconder-se da nossa história republicana, do 15 de novembro ao primeiro 5
e não se resguarda atrás de biombos. Um estilo pouco conotativo e de julho", prescindindo da obra de Lima Barreto, que anotou, re-
portanto algo espesso, o que redunda, em tese, num certo empobre- gistrou, fixou, comentou ou criticou "todos os grandes aconteci-
cimento. Tal empobrecimento, aqui, é ilusório - e "a prosa de mentos da vida republicana." 19 Ora, a preocupação - ou a
ficção em língua portuguesa, em maré de conformismo e academis- obsessão - com a nossa realidade não deixa de ser surpreendente
mo, só veio a lucrar com essa descida de tom, que permitiu à rea- e mesmo paradoxal num escritor que, em várias oportunidades,
lidade entrar sem máscaras no texto literário." 16 Lima Barreto, proclama-se estranho à idéia de pátria, para ele nada mais que "um
homem do povo, carreia para a nossa prosa - inflada pela imo- sindicato". 20 Nem sempre, entretanto, as oposições se excluem.
deração de Coelho Neto e sujeita, por outro lado, à apurada, à Este homem infenso a fronteiras, sente-se ligado ao povo, é ligado
exigente disciplina de Machado de Assis - um à vontade vigilante, ao seu povo como talvez não tenha sido nenhum outro escritor do
um sopro de energia, uma vibração humana e uma solidez que só o Brasil - e isto relaciona-se, nele, com um forte amor à Justiça.
encontro, sempre raro, da inteligência e de certas forças primitivas, Sua visão um tanto maniqueísta do mundo - e quem não partilha,
em certa medida, esse modo de ver? - divide os homens em acei-
elementares, pode engendrar. Um estilo, em suma, que causaria
decerto grande alegria a Pascal e que ilustra com justeza o que um tos e recusados. Aqueles, bem entendido, são sempre os nascidos
dia escreve, farto de artifícios, o grande pensador e matemático: com privilégios ou os que, cônscios do poder dos senhores, entram
"Quand on voit le style naturel, on est tout étonné et ravi; car on ao seu serviço ou com eles estabelecem alianças indignas. O qua-
s'attendait de voir un auteur, et on trouve un homme." 17 dro que conhece e fere-o é o nosso. Por vezes, notadamente du-
rante a Primeira Grande Guerra,. que não se cansa de proclamar
uma maquinação do capitalismo internacional, a objetiva se amplia.
Mesmo então, ao debater em seus artigos a natureza do conflito,
Se encontramos, na obra de Lima Barreto, uma grande unida-
preocupa-o um problema correlato, a participação do Brasil. Este,
de estilística, um esforço continuado e coerente no sentido de dizer
portanto, o seu campo de observação e de ação, ele não sonha alte-
certas coisas "de uma certa maneira", 18 se entrevemos em cada
rar os destinos do mundo, mas espera ao menos inquietar, no seu
página sua o propósito de trazer para a prosa literária brasileira
uma contribuição atenta a tendências que o seu diagnóstico acusa-
va como desvios (ou, em Machado de Assis, ao menos como peri- ~ire certa ines choses mais pour avoir choisi de les dire d'une certaine
açon." Também: "l'écrivain a choisi de dévoiler le monde et siriguliere-
gosas), também merece relevo, sob a variedade aparente e que ~e~te l'homme aux autres hommes pour que ceux-ci prennent en face de
l~bJet mis à nu leur entiere responsabilité." (Situations ll. p. 75 e 74.)
15 LIMA, Oliveira. "Prefácio." In: BARRETO,L. Policarpo Quaresma. p. 10. . BARBOSA,Francisco de Assis. "Prefácio." In: BARRETO, L. [saías Ca-
(O artigo foi publicado pela primeira vez em O Estado de S. Paulo, ~l~?a. p. 12-13.
edição de 13/11/1919, sob o título de "Policarpo Quaresma".) • .(\ pátria me repugna, A velino, porque a pátria é um sindicato dos
16 BOSI, Alfredo. O Pré-Modernismo. p. 95. ~Oht1cos e dos sindicatos universais, com os seus esculcas em todo o mundo,
17 PASCAL, Blaise. Pensées. Paris, Nelson &1. 1955. p. 56. n~ra saquear, oprimir, tirar couro e cabelo, dos que acreditam nos homens,
18 Falando de Lima Barreto, lembramo-nos inevitavelmente de certas po' In' t~abalho, na religião e na honestidade." ("Carta a Georgino Avelino."
sições de Jean-Paul Sartre: "00 n'est pas écrivain pour avoir choisi de . ARRETO,L. Correspondência. Tomo 1.0, p. 281.)
22 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR LINGUAGEM. - TEMÁTICA. .. 23

país, os donos do poder e os usuários das posições - e contribuir amenas pais'agens européias; 23 / e do outro lado, fora dos
para despertar, entre os oprimidos e explorados, entre os recusa- ~ar~ s imprecisos de Botafogo, as poeirentas ladeiras dos subúr-
dos, uma consciência crítica. h~l ee suas estações ferroviárias, seus trens, os botequins, os ma-
Assim, fato, ao mesmo tempo, contraditório e lógico, Lima bl~S as feiras livres, os jogos de solo nos quintais com árvores, os
Barreto, que considera nociva a idéia de pátria, vem a definir-se fuas, ntuários de vencimentos ínfimos e os pobres diabos sem em-
como um dos mais interessados analistas da nossa realidade geo- serveo certo, suas mu lh"eres as quals a fI'
a ta contmua de meIOs
. vai.
gráfica, política e psicológica. Aplica, com intensidade, todos os pre~nando a prudência, os artistas da modinha e do verso, enfim a
seus instrumentos de apreensão e julgamento no estudo do país ensl
rte sem rega l'Ias deste pais
' - en t-ao como h oJe. - d e estratos
que o ignora. Sua obra (onde também entrevemos, é bem verdade, paciais nitidamente opostos. Ilustra com clareza tal fenômeno a
em certas personagens e situações, o seu perfil) é uma série de fla- ~~na em que Isaías. Caminha, ~al chega?~ ~o Ri.o, assi~te a u~
grantes exatos, variados, por vezes comovidos, muitas vezes sar- desfile: "Veio por fIm o batalhao. Os oficIais mUlto cheIOSde SI,
cásticos, freqüentemente irados e nos quais reconhecemos o Brasil, arrogantes, apurando a sua elegância militar; e as praças bambas,
mesmo nos textos deformantes, nas invenções de um grotesco e moles e trôpegas arrastando o passo sem amor, sem convicção, in- .
truculência que lembram o Voltaire de Candide, como a República diferentemente, passivamente, tendo as carabinas mortíferas com
de Bruzundanga, ou o Reino do Jambon, ou os usurpadores dos as baionetas caladas, sobre os ombros, como um instrumento de
"Contos Argelinos". Sucedem-se, nessas enérgicas páginas atentas castigo. Os oficiais pareceram-me de um país e as praças de
ao exterior, lances da Natureza e flagrantes urbanos, políticos outro." 24
ocupados unicamente com o poder e a evidência, inteiramente Esta visão dicotômica e um tanto simplista - mas não 'de todo
alheios ao país e para quem, governar, ao contrário do que precei- injusta - da realidade brasileira, faria de Lima Barreto apenas um
tuaria Bossuet, é "fazer a vida incômoda e os povos infelizes", 21 panfletário se, coexistindo com o rebelde, com o contestador a
ignaros sábios das profissões liberais favorecidos pela lei e inchados quem muito impressiona a Revolução de Outubro, não houvesse
de retórica, militares ungidos de infalibilidade ou nostálgicos de também um criador cheio de discernimento. 25 Este, atento às
uma pacata existência civil, todos pouco versados em coisas de injustiças e ao abismo que separa, no país, botafoganos e suburba-
guerra, os proprietários de jornais, dispostos a vender-se seja a
nos, não incide no erro, tão pouco fecundo, de ver apenas virtudes
quem for, desfiles e festas oficiais, a vocação principesca da nossa
representação diplomática, voltada para futilidades e empenhada, nos pobres; sabendo ser o subúrbio "o refúgio dos infelizes", cons-
com Rio Branco, em projetar no exterior uma imagem retocada do tata que a "gente pobre é difícil de se suportar mutuamente". 26
país ("nossa mania de fachadas", diz, em carta de 1916, a F. L. Ademais, a sua ficção, povoada de figuras advindas do subúrbio
de Assis Viana), a mentalidade botafogana que tão bem define em e de Botafogo, pólos opostos da sociedade que agudamente ana-
carta a Oscar Lopes, 22 os magnatas do café e os banqueiros, o lisa, não vai configurar-se como uma ficção de luta de classes. Há
consciência da miséria, mas não consciência de classe nos seus
pouco numeroso e tão desdenhoso mundo dos eleitos, fruindo os
seus privilégios, não só distanciados espiritualmente do Brasil, mas 23 V. REIS FILHO, Nestor Goulart. "O Neoclássico nas Províncias." In:
aos quais repugna a condição de brasileiros e mesmo de habitantes Qua~ro da Arquitetura no Brasil. Poucas vezes um estudo especializado se
do Trópico, a ponto de ordenarem a pintura, em suas residências, amplia numa compreensão tão justa do contexto em que se opera o fenôme-
no
24 abordado •
de motivos arquitetônicos greco-romanos e janelas irreais abrindo 25 BARRETO,L. Isaías Caminha. p. 54.
E,m.bora "sem urna compreensão precisa do papel hist6rico da classe
21 BARRETO,L. Bagatelas. p. 65. . ~perana como tal", acentua Astrojildo Pereira no citado "Prefácio" a
22 "Botafogano, meu caro Oscar, é o brasileiro que não quer ver o BrasIl ctga[,elas, tinha Lima Barreto "um seguro instinto, senão uma consciência
tal e qual ele é, que foge à verdade do meio e faz figurino de um outro O~ra da luta que então se definia, a do trabalho contra o capital.
cortado em outras terras. De modo que tu, mesmo indo para o SacO do B serva Osmar Pimentel: "Pode mesmo dizer-se que, no caso de Lima
Alferes, tu que queres fugir à nossa grosseria, à nossa realidade, à nossa . n:rr;.to, foi o romancista que o defendeu do ide6Iogo." (Artigo publicado
pobreza agrícola, comercial e industrial, és um botafogano." (BARRBTO:.L. "Pretl~a da Manhã, São Paulo, edição de 12/11/1949. Aparece corno
Correspondência. Torno 1.0, p. 233-34.) Botafogana, portanto, era a pohtlca 26 B aclO" na edição de Os Bruzundangas.)
de Rio Branco. AR.R.ETO, L. Clara dos Anjos. p. 94.
24 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR LINGUAGEM. - TEMÁTICA. •. 25

pobres, e, além Qisso, algumas de suas personagens aparecem como . mais apagada, mais adversa" que a sua. 29 Seríamos, po-
figuras intermediárias, como é o caso de Lucrécio Barba-de-Bode, mtlde,. 'ustos em ver na incompatibilidade de Lima Barreto com
de Numa e a Ninfa, que "não era propriamente político, mas fazia rém, t!2ade brasileira apenas uma conseqüência da oblíqua cruel-
parte da política e tinha o papel de ligá-Ia às classes popula- a ~a 10m que é massacrado, o reflexo do seu ressentimento, a rea-
res"; 27 ou Policarpo Quaresma, amigo de Floriano Peixoto e de d~ edc um indivíduo fraudado em suas ambições e por isto odian-
Ricardo Coração dos Outros, este um desocupado e autor de mo- çao '~gativo, mundo e homens. O que se observa, ao contrário, na
dinhas. O próprio Gonzaga de Sá, de origem fidalga e simples âO, v~entação existente, é uma grande cordura em relação aos seus
amanuense da Secretaria dos Cultos, enquadra-se um pouco em dOCUstrespessoais. No Diário do Hospício, ocupa-se mais dos ou-
tal categoria. Esbatem-se, com tais figuras, beneficiando o romance esa que de si. N-ao se ob serva, nas cartas que entao
- expe de, am-.
tros . d P d' . F .
madversão por estar I~tern~ . ~. e e Jorn~ls. a ranclsco. Sch ettmo
.
(sem que essas atenuações signifiquem uma atenuação das incom-
patibilidades entre os aceitos e os recusados), as fronteiras que, . diz-lhe não ser precIso vlslta-lo no HOSpICIO.Na entrevista con-
nas crônicas e breves ensaios de jornal, vemos tão delineadas. eedida a um repórter de A Folha, em janeiro de 1920, declara que
~ permanência no Hospício lhe "tem sido útil" e confessa ter-se
indignado com o irmão que o internou, mas não tem uma palavra
má ou colérica. 30 Nos artigos que assina em novembro e de-
Lima Barreto alimenta esse painel movimentado, uno e vivo zembro de 1918 ("Da Minha Cela" e "Carta Aberta"), ambos in-
do Brasil, com atributos dos quais nem sempre poderemos dizer cluídos em Bagatelas, ocupa-se em descrever o Hospital Central
que sejam literários. Daríamos, mesmo, desse escritor, uma idéia do Exército, onde se acha internado, comentando a seguir aconte-
incompleta - e, quem sabe, imprecisa - se omitíssemos, traçan- cimentos do país, dentre os quais a greve de 18 de novembro. No
do o seu perfil, certos traços não indispensáveis ao ofício de escre- primeiro dos mencionados artigos, importante sob vários aspectos,
ver e que, entretanto, compõem o seu modo de ser, r~percutindo estuda os internados com objetividade e quando anota serem eles
em tudo que escreveu. átonos e completamente destituídos de interesse, não é para maldi-
Concede-lhe, o seu país, bem menos do que ele desejava e zer-se de tal companhia e sim para sublinhar que "bem podiam,
esperava quando jovem - bem menos do que merecia. Não dire- pela sua falta de relevo próprio, voltar à sociedade, ir formar mi-
mos, tornando vaga e abs'trata a razão do seu fracasso relativo, um nistérios, câmaras, senados e mesmo um deles ocupar a suprema
fracasso que muito nos elucida sobre o quanto existe de surdamente magistratura." 31 Encontraremos, em suas páginas íntimas, ex-
cruel e de entranhadamente conservador em nossa estrutura sócio- pressões de desalento, mas não de autocomiseração. Mesmo as
-cultural, que o combate de Afonso Henriques de Lima Barreto alusões constantes ao problema da cor ou à adoração nacional pe-
tenha sido contra a vida: ele bateu-se contra homens e entidades los doutores, embora ligadas a experiências pessoais, voltam-se para
precisas, jamais conseguindo fazer-se ouvir por aqueles em favor fora, para a sociedade que conhece e sobre a qual testemunha.
de quem lutava. A afirmação de que o povo do Brasil raramente Lima Barreto não combate em seu próprio benefício; os precon-
"se deixa infiltrar por idéias úteis e que lhe são favoráveis" 28 ceitos e as injustiças despertam a sua ira pelo que são, e não pelo
não é feita por acaso. Todos os seus livros vendem-se com grande fato de atingirem a ele. Longe de ser - e só isto - um ressenti-
lentidão, vive e morre pobre, não ascende socialmente, nem se- do, é ele um lutador, um escritor consciente das desigualdades, das
quer realiza a viagem que tanto desejou. "Despeço-me de um por degradações de natureza ética ou estética, um ser humano cheio de
um dos meus sonhos", já registrava em seu Diário, no dia 20 de fervor, sonhando um mundo menos estúpido e clamando até à
abril de 1914, poucas semanas antes de completar 33 anos e de morte - sem meios termos, sem frieza, assumindo posições claras,
ter o primeiro acesso de loucura. Por isto escreve Alceu AmorosO COmtruculência, com cólera - a sua verdade. Não é outra, aliás,
Lima "não ser possível imaginar vida literária e social mais hu- 29 L
. p. lIMA, Alceu Amoroso. "Prefácio." In: BARRliTO, L. Gonzaga de Sã.
27 In: Numa e a Ninfa. p. 58-59. :~ ~n~O Cemitério dos Vivos. p. 257-60.
28 In: Bagatelas. p. 42. n: Bagatelas. p. 99-100.
26 CAP. I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR LINGUAGEM. - TEMÁTICA. . . 27

a interpretação de Antônio Houaiss para quem os elementos da ive em mim!" 33 Nomeia Olívio Montenegro esse "com-
vida de Lima Barreto, "quando não são notações ou conotações e ela .vo inseparável de todos os outros, que é a cidade do Rio de
realistas para pequenas particularidades ocasionais da vida de SUas Panhe1r
. o Mas, am. d'a aqUi - acrescenta - nao - se ab nn
. do a sua
personagens, nunca foram tomados como peso ponderal da moti- ]ane1ra' senão para os bairros mais pobres." 34 Investigando na
)lação da obra por força do seu egoísmo ou sequer do seu egocen_ ternura direção, Lúcia Miguel Pereira parece ver mais longe quan-
trismo." 32
rnes~neraliza e assinala em Lima Barreto "a sua permeabilidade
Trata-se portanto de um homem insatisfeito com o caráter da ?o golicitações da natureza." 35 Hostil, intelectualmente, à no-
sociedade a que pertence e que, com um senso muito agudo da a~ sde pátria no sentido político, tocava-o a idéia de uma relação
honra, faz questão de evidenciar as suas incompatibilidades, mes- çao scendental com os cenanos
,. da sua aventura no mun do.
mo porque não está disposto a transigir. O Pimpinela Escarlate tran Homem de indignações fortes e admirações definitivas, sus-
que convive com os nobres e os combate ocultamente, não consti~ tível a depressões' e também à alegria de viver, vulnerável a
tuiria para ele um modelo de ação. O seu modelo seria o Don citxões a idiossincrasias, a idéias fixas, Lima Barreto espanta-nos
Quixote, defensór doS. pobres e ofendidos, leitor exaltado, sonha- ~ela va;iedade de interesses e pela argúcia com que nos soube ana-
úJr de perfeições, franco no falar e no agir, ingênuo, vilipendiado lisar. (Machado de Assis parece-nos dotado de uma visão privile-
- e nem sequer lhe faltaram, aproximando-o ainda mais do mo- giada para os segredos da arte literária e das almas sem grande-
delo, o celibato e a loucura. Anda, incansável, pelas ruas do Rio za.) 36 Lima Barreto, intérprete sagaz do seu país e do seu
de Janeiro, convicto de que existe alguma força na sua fragilidade povo, viu como ninguém as nossas falhas - e raramente nos ocor-
e arremete sem desânimo contra a estultícia, a arrogância, a insen- re malgrado as delimitações precisas do período histórico abrangi-
sibilidade, a grosseria, a violência, a opressão. Não: contra os es- d~ pelos seus escritos, que cinqüenta anos o separam de nós, tI!! a
tultos, os arrogantes, os insensíveis, os grosseiros, os opressores, constância de muitos dos aspectos que surpreende. Mas, insisti-
os violentos. mos, suas preocupações, que a época em que viveu não explica,
Por tudo isto, a arma de Lima Barreto não é jamais a ironia abrangia outros aspectos ainda não familiares aos nossos homens
ou a parábola sutil. A parábola, quando existe, é grotesca e as suas de letras, como a rapacidade do capitalismo, a infiltração norte-
alusões, facilmente reconhecíveis, tornam o modelo ainda mais las- -americana na América Latina ou, também, os problemas políticos
timável. Como não identificar, nos literatos Samoiedas, "de bons e sociais que deveriam suceder à Primeira Grande Guerra.
vestuários e ademanes de encomenda", escritores do seu tempo Aliás, uma curiosidade incansável instigava a sua grande ca-
que desconheciam nossa realidade e contra os quais clama seguida- pacidade de ver e de interpretar, não exagerando quando escreve:
mente? Quando fala do ensino na Bruzundanga, das riquezas da "sou curioso de todas as cousas". 37 Essa curiosidade, bem enten-
Bruzundanga, da sua política e dos seus políticos, das eleições, da dido, abrange o mundo e a arte. Os amigos que viajam para o
sociedade, da força armada, da organização do entusiasmo nesse
país imaginário e impossível, vemos claramente o Brasil e suas ins- 33 In: Gonzaga de Sá. p. 40.
tituições. :: In: 0. Romance Brasileiro. p. 158.
In: História da Literatura Brasileira - Prosa de Ficção (1870 a 1920).
A contrapartida desse sarcasmo (voltado sempre para Bota- p. 296.
fogo e jamais para os subúrbios) é uma grande ternura pelos po- 36 Te~-se assinalado, em Lima Barreto, certas tendências retrógradas ou
bres e - fato significativo - pela paisagem, notadamente pelas saudOSistas. Ridiculariza em vários artigos os movimentos feministas e vê
paisagens do Rio de Janeiro. "Saturei-me daquela melancolia tan- ~a ~~pública brasileira um retrocesso. Mas é significativo que o seu anti-
gível, que é o sentimento primordial da minha cidade. Vivo nela tmlnlsmo episódico nunca apareça nos romances. Nestes, ao contrário
duma exceção é a conversa entre Augusto Machado e seu amigo - Gonzaga
:: Sã. p. 84-85), a estreiteza da educação feminina, orientada exclusiva-
32 HOUAISS, Antônio. "Prefácio." In: BARRETO,L. Vida Urbana. p. 10. ."ente
V . para o ma t'nmomo, surge vanas vezes como um fenomeno nocIvo.
A • , • A •

Opõem-se, a minha visão e a de Antônio Houaiss, nesse aspecto, à. de .p~Ja.se .a personagem Ismênia, em Policarpo Quaresma. Também não se
Eugênio Gomes, que fala nos "extravasamentos de ressentido" de LlI~; a e~f aflEmar que abrigue, realmente, tendências monárquicas quem pede
Barreto. ("Lima Barreto e Coelho Neto." In: A Literatura no Bras~. elam l'dao do direito de testar e advoga a redistribuição das terras, pro-
p. 123.) O estudo de Eugênio Gomes, entusiástico em relação a CoeI o 87 B~~ o que a propriedade é social.
Neto, é de uma incompreensão muito grande em relação a Lima Barreto. !!To, L. Vida Urbana. p. 229.
28 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR LINGUAGEM. - TEMÁTICA... 29

estrangeiro tornam-se como extensões da sua fome de mundo e ele . dispensável, pe~e para ~ texto uma a:en~ã? pouco freqüent~, ~i-
não se contenta com as notícias recebidas: quer ser informado 1~ '1 e intensa, pOISse destma o texto a lOdlVlduos que, na malOna,
sobre os espetáculos, sobre os museus, se viram o Escriba Sentado fl~l onhecem uma linguagem limitada, com embriões de força, mas
pede que lhe mandem jornais lidos; vê-se, nas Impressões de Lei~ So~co eficaz. Complementa este quadro uma percepção ineficiente
tura, ser incapaz de ignorar um só livro que lhe venha às mãos ~o coisas. Talo drama do escritor, mas poucos dentre eles pode-
mesmo um estudo orográfico; interessa-se pela agricultura; pela~ .a~ como Lima Barreto, repetir, com João Batista, ser "a voz do
narrativas populares; pelas cantigas de roda; pela Filosofia; pelos n~e ~lama no deserto". Ele é um homem duplamente ferido: pelo
movimentos operários; pelos loucos; pelo jogo do bicho e pelas destino e pela História. A morte prematura da mãe e a loucura do
. relações do nosso povo com os animais; ocupa-se seguidamente de ai enegrecem o pequeno círculo familiar; ocorre, numa esfera
problemas urbanísticos e arquitetônicos, inclusive de edifícios em ~ais ampla, o insucesso nos estudos; a necessidade de suprir o or-
ruínas e, ante as paisagens, não lhe escapam sequer os matizes do çamento doméstico lança-o na burocracia, que despreza; publica
verde; tanto observa os enterros como as mutações da moda. A com dificuldade, às vezes mediante empréstimos a juros, obras que
lista, muito limitada, apenas ilustra a variedade das suas preocupa- não chegam a ser ignoradas mas também não alcançam sequer o
ções e nela pode-se observar uma constante já insinuada nos pa- que poderíamos considerar uma popularidade mediana. O artigo
rágrafos anteriores: Lima Barreto, apesar de invadir, com a pró- de Jackson de Figueiredo, publicado em 1916, é escrito, em parte,
pria presença, muitas de suas páginas, é um homem voltado para como protesto ante o "quase absoluto silêncio" que cerca o Triste
fora. Discutível que, na sua obra, "o traço pessoal e íntimo é o Fim de Policarpo Quaresma e o seu autor. 40 Pouco afortunado
que toma mais vulto", segundo registra Olívio Montenegro no es"' na vida familiar, nada conhece Lima Barreto das honrarias não re-
tudo que dedica, em O Romance Brasileiro, ao escritor carioca, gateadas a outros e com quatro romances publicados é internado
reiterando páginas adiante o seu ponto de vista: "Assim, falando- como indigente no Hospício, sem que se registre em seu favor um
-se da obra de Lima Barreto, o que com mais evidência se impõe movimento coletivo de solidariedade, sendo também rara a presen-
ao crítico é o relevo que nela tem o personagem que nem sempre ça de amigos. "Quanto aos meus amigos, nenhum apareceu, senão
aparece com o verdadeiro nome, e se chama Lima Barreto." 38 o Senhor Carlos Ventura e o sobrinho." 41 Natural que algo de
Compreendo a observação do saudoso crítico pernambucano, aliás uma vida tão cercada de pressões se refletisse na obra e isto ocorre
partilhada por outros estudiosos, aos quais fere a constância com em verdade. Mas o grau de egotismo que nos seus escritos obser-
que surgem, nos romances de Lima Barreto, problemas relaciona- vamos está longe do que se projeta, por exemplo, no Diário Inti-
dos com a intolerância racial entre nós e temas onde se reflete a mo, de Amiel. Seu egotismo, em outro grau, recorda o que diz
sua experiência, isto sem mencionar o fato de que idéias suas se- Montaigne abrindo a primeira edição dos seus Ensaios: "Quero,
jam tantas vezes expressas nos diálogos. O escritor é quase sempre porém, que aqui me vejam à minha moda simples, natural e or-
um homem que, ligado aos semelhantes, vê-se condenado, pelo seu dinária, sem estudo nem artifício; pois sou eu quem eu retrato."
modo pessoal de ver e pela intensidade de suas perquirições, a uma Na realidade, o auto-retrato que promete Montaigne, "sem estudo
solidão que não é física e nem mesmo, a rigor, espiritual no senti- nem artifício", constitui uni belo exemplo de tópica exordial, aí
do ordinário do termo. A sua é a solidão da percepção intensa e também incluso entre os topoi da modéstia afetada, do que nos dá
do ato de exprimir. Ele fala aos outros homens. Devido, porém, tantos exemplos E. R. Curtius no seu conhecido manual sobre a
à própria decisão com que mergulha no âmago das coisas, instau- Idade Média Latina. Como os ensaios de Montaigne, ilusoriamen-
ra-se entre ele e os demais uma espécie de nuvem que desfigura a te, centrados no autor e, na realidade, voltados para as coisas e fe-
mensagem. Conhece-se o princípio formulado por Ezra Pound no nomenos circundantes, também a obra do escritor brasileiro (aten-
capítulo lU do seu ABC da Literatura: "Os bons escritores são to, embora, ao misterioso e ao transcendente) é toda ela voltada
aqueles que mantêm a linguagem eficiente." 89 Tal eficiência, para fora, para o mundo imediato e concreto.
88 In: O Romance Brasileiro. p. 143 e 149-50.
40 A r
Ap r 19o publicado em A Lusitana, Rio de Janeiro, edição de 10/06/1916.
80 In: ABC da Literatura. Trad. de Augusto de Campos e José Paulo 41 ~r~ce como "Prefácio" na edição de Feiras e Mafuás.
Paes. São Paulo, Ed. Cultrix, 1970. p. 36. n. O Cemitério dos Vivos (Diário do Hospício). p. 34.
30 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR

Assim, Afonso Henriques de Lima Barreto, segregado e en-


volvendo, no ~f'\11 I')lh~~desperto, avaliador e sensível às mudanças
antf'\ ~ j ..•úela aberta do Hospício Nacional de Alienados, as monta:
nhas, o mar e o casario sob a manhã nevoenta de janeiro, enquanto CAPÍTULO II
medita outro romance que não chegará a concluir (vive, nesses
dias, tão preso ao personagem-narrador, que se confunde com ele LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
em seus apontamentos sobre o Hospício de Alienados), é um pou-
co a imagem do seu próprio destino e da sua atitude em face do
mundo. A rigor, ele sempre esteve circunscrito a um determinado Insulamento e ação nos seus romances.
círculo de que o Hospício é a expressão simbólica e extremada: e,
conquanto isolado, nunca arrefeceu o olhar com que examina e POUCO propenso a afirmar que Afonso Henriques de Lima
pesa, por intermédio da escrita, a realidade que o rodeia. Sua con- Barreto seja "o nosso primeiro criador de almas" e mesmo duvi-
templação, nessa manhã, nada tem de indiferente e está bem longe dando que isso constitua o traço capital de um romancista, diria
da simples fruição. Mesclam-se, no seu espírito, exaltação, tristeza ser o romance o setor mais rico e sugestivo na obra desse escritor.
e senso crítico. Mais: fanático da escrita, homem para quem "es- Será talvez verdade que não se possa "aprofundar o conhecimento
crever era a maneira de ser", na expressão de Antônio Houaiss, e a compreensão da sua obra de ficção sem se conhecer e com-
este momento e as reflexões que provoca em seu espírito logo serão preender as reflexões e memórias que nos deixou sob a forma de
registrados. artigos e crônicas de jornal." 1 Esses artigos e crônicas, alguns
violentos, outros cheios de delicadeza- e quase todos repassados de
humor - revelando Lima Barreto, com lentes de aumento defor-
mantes, absurdos que um tratamento mais comedido deixaria in-
denes -, formam decerto um acervo de grande interasse documen-
tal e literário. Abrigam flagrantes numerosos; variados e vivos da
nossa vida política e mundana no primeiro quartel do século, do
nosso movimento literário - inclusive das províncias - e das
transformações ocorridas na aparência do Rio; como atrativo su-
plementar, revelam o escritor no ato mesmo de reagir e opinar, sem
que a espontaneidade torne a sua expressão tíbia ou insulsa; mos-
tram, nele, um aspecto moral que o gênero romanesco oculta em
~arte: independência de vistas; e, ainda mais importante, possibi-
litam-nos medir com apreciável justeza - e não sem apreensões
-. a debilitação sofrida no país pelo direito e pela capacidade de
opm~r, debilitação que adquire um ar de boas maneiras e de cuja
amphtude quase não nos apercebeIrlos. Eis algumas das razões
pe~asquais se justifica, para o interessado no autor, para o pesqui-
sa Or social, para quem trabalha com a palavra escrita ou simples-
~ente para quem. considera saudável a prática de emitir .juízos fran-
sos, o conhecimento dos textos não-ficcionais do ficcionista. Mas,
irim .dúvida, é no romance que se expande e se revela esse espírito
qUieto, "curioso de todas as cousas."
t p
EREIRA, Astrojildo. "Prefácio." In: B"RRETO, L. Bagatelas. p. 13.
32 CAPo II - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 33
"Lima Barreto, como Machado de Assis - lemos em Lúcia
Miguel Pereira, quando o confronta com Raul Pompéia e Graça . has
11n meio'",_
ocultas, que conferem ambigüidade ao perfil do escritor
os conVIdam a lllvestlgaçao.
Aranha -, fala exclusivamente em termos de ficção, é através das
suas criaturas que interroga a existência." 2 A proposição lem- e n Bem cedo escolhe Afonso Henriques de Lima Barreto o
bra em outro registro a sectária assertiva de Agripino Grieco: mance como a expressão adequada ao seu potencial criador e
prende-se, de um modo menos rígido, às relações do escritor com ~o ariedade de aspectos que tenciona abranger. A edição do Diário
as personagens criadas e firma-se no conceito subjacente, conside_ ; ;imo abre-se com a introdução do romance iniciado antes dos
rado óbvio, de que se reconhece o ficcionista pela capacidade de ~ anos e logo abandonado. Aos 24 anos, em 9 de julho de
criar almas. Não falta esse poder a Lima Barreto, embora a au- 1905 refere: "Depois de três meses de interrupção, deu-me von-
sência de vida nas suas personagens - pouco vulneráveis às pai- tade de escrever, ou continuar a escrever meu livro. Publicá-Io-ei?
xões - tenha induzido Agripino Grieco a condenar in limine, na Terá mérito? En avant." Tudo faz Supor que se trata do romance
sua crítica, o Gonzaga de Sá. Mas se aparece o romance, no con- de estréia, editado em 1909, de que a revista Floreal, por ele
junto dessa obra, como o segmento de maior importância, deve-se criada, divulga em 1907 o início e onde - fato pouco previsível
a motivos de outra ordem, um dos quais - que a seguir tentare- em obras novelísticas de jovens - inexistem amor e aventura.
mos precisar e identificar - tem escapado aos seus estudiosos. "Eu tinha um grande pudor de tratar de amor" _ diria o inter-
A elasticidade do gênero romance permite a concentração das nado de O Cemitério dos Vivos. 4 Aliás, em todos os livros de
variadas tendências e aptidões que formam a personalidade literá- Lima Barreto, será o amor, quando surge, um tema secundário
ria de Lima Barreto. Encontramos nos seus livros, entremeados à ou desfigurado; a aventura, nunca vivida por caracteres infla-
narrativa ou à maneira de engaste, a crônica, o ensaio, expansões mados, assumirá outros nomes e terá um aspecto sombrio.
líricas e até o documento. Este, um dos motivos pelos quais tal Recordações do Escrivão [saías Caminha é o único livro
fração da sua obra sobreexcede as demais em interesse quando de Lima Barreto em que a personagem principal narra a história. 1)

a examinamos. Mas o romance não é apenas um gênero maleável, Isaías, escrivão de coletoria no interior do Espírito Santo, para
proteico, aberto, capaz de abrigar e de conciliar outros gêneros onde se retirou a fim de preservar, no anonimato de uma vida
mais simples. Vê-Io assim seria desconhecer a sua faculdade de sem brilho, sua dignidade, desgastada nos anos em que o Rio
iluminar zonas dissimuladas. Tarefa absorvente, na qual se em- de Janeiro massacra o então jovem provinciano e aos poucos
penha o ser total do escritor, vai o romance desmontando as recompensa-o em troca de miúdas concessões (ou então ao azar
armaduras que o autor constrói para si mesmo e refletindo, cifrado, das circunstâncias, nunca pelos seus merecimentos), decide regis-
o seu rosto autêntico, por mais oculto que esteja. Robbe-Grillet trar suas lembranças. Desenvolve-se a narrativa alternando o tem-
não formula um paradoxo ao afirmar que quando se interroga po passado e a vida atual do narrador, num processo que São
o romancista a respeito do motivo pelo qual teria escrito, a única Bernardo parece seguir de perto, inclusive quando os supostos
resposta é: "Para tentar saber por que eu desejava escrever." 3 memorialistas, dizendo-se inábeis, falam do seu trabalho de com-
Entretanto, não revelará o romance ainda mais do que isto? Por por e manifestam dúvidas sobre os respectivos textos. "Mas; não
mais lúcido e intencional que seja, assume aspectos imprevisíveis, é. a ambição literária que me move a procurar esse dom miste-
possibilitando revelações insólitas. Ante a obra acabada, pode o "A
TlOsopara animar e fazer viver estas pálidas Recordações." (L. B.)
autor saber por que desejava escrevê-Ia. Impossível ler, porém, . s peSSoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir
tudo o que nos transmite, até que ponto o desnuda e em qu~ Isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco
medida age sobre ela a atmosfera do seu tempo. O romance .e se perde. Não pretendo bancar escritor." (G. R.) 'lÁ noite, quan",
um desvelador de segredos, uma armadilha de espectros. InsI~ do todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me
nuando-se por entre personagens, observações e fábulas cujo sen- da mesa e escrevo furiosamente." (L. B.) "Quando os grilos can-
tido é evidente, entrevemos, na obra romanesca de Lima Barreto,
: ~AlUl.ETO, L. O Cemitério dos Vivos. p. 169. .
2 1n: História da Literatura Brasileira. p. 288. o lÍl Rrocesso seria retomado em O Cemitério dos Vivos, iniciado durante
3 1n: Pour un Nouveau Roman. p. 15. con ItI'?o internamento do escritor no Hospício e que ele não chega a
c Ulr. Consideraremos adiante esse texto inacabado.
34 CAPo fi - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA

INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 3S


tam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo
o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito nume- . dica o tema da incomunicabilidade, tão caro à arte contem-
rosas - e a folha permanece meio escrita, como estava na vés- p
1Dorân~a,surgindo . um
- antecipador,
pera." (G. R.) 6 Divergem, nos dois romances, as motivações de tempo e das nossascomo
cnaçoes. 7 um anunciador do nosso
Paulo Honório e Isaías Caminha. O fazendeiro de GraciUano Vendo-os a essa luz, captamos melhor o alcance de certos
Ramos escreve na esperança de aquietar o espírito e ver um pouco pisódios do romance, dentre eles a loucura de Lobo, o revisor
mais claro. O mulato Isaías Caminha, para de algum modo mos- ~e O Globo, em quem o fenômeno do ilhamento faz-se progres-
trar que as causas de desastres pessoais como o seu não estão sivamente, através da linguagem. Submisso à Gramática, regride
na carne e no sangue da vítima, mas no exterior: seriam causas historicamente no convívio com a Língua Portuguesa, entendendo-
de natureza social, e não psicológica, atávica ou antropológica. -se cada vez menos com as pessoas, até ser internado no hospício,
Foge aos nossos propósitos discutir se se trata de um ro- onde vive a ler uma obra doutrinária do século XV e sem a
mance de tese e a validade de tal gênero. Seja co~o for, a his- menor relação com o seu estilo de vida, a Ensynança de Bem Ca-
tória de Isaías apresenta-se como uma aprendizagem em terra es- valgar, de EI-Rei Dom Duarte. "A sua mania era não falar nem
tranha. Curiosamente, e aqui iniciamos o acesso à camada mais ouvir. Tapava os ouvidos e mantinha-se calado semana inteira,
enigmática da obra, Isaías, embora assumindo a narrativa, tem pedindo tudo por acenos." 8 O suicídio de Floc relaciona-se igual-
algo de um narrador invisível: mais contemplado r que atuante, mente com a linguagem e o ilhamento, fatores ressaltados pela
relaciona-se pouco e esporadicamente com as demais personagens, circunstância de ser ele um cronista mundano. Mata-se com um
nunca chegando essas relações a perturbar ou a modificar os tiro no ouvido, depois de tentar, inutilmente, redigir mais um
destinos alheios. As figuras do romance surgem e desaparecem, artigo. Não consegue expressar o que deseja (ou não mais iden-
morre a mãe de Isaías Caminha, morre o cronista Floc, enlou- tifica uma
os destinatários do artigo?) e a sua morte é muda: não
quece Lobo por causa da Gramática, fatos políticos ou individuais deixa palavra a ninguém.
abalam a cidade, mas o narrador em nada interfere. Lúcia Miguel Pereira, estudando com grande simpatia e ho-
Dissemos não existir nesse romance amor nem aventura. nestidade esse romance, condena o que lhe parece "a artificiali-
Aprofundemos a observação: amor e aventura implicam em en- dade da evolução de Isaías, como também o descuido do autor,
volvimento com outros seres - atos predatórios ou salvadores crescente à medida que se acentua o tom caricatural", na frieza
-=, mas há entre Isaías e os que o cercam, um corte. Quando com que ele se refere à morte da mãe: "O rapaz, cujas reações
ele conversa, é quase sempre sobre temas gerais, também as outras rente".
só se explicam
9 por uma grande sensibilidade, mostra-se indife-
personagens discutem, mas os diálogos' não têm função dramá-
tica, não impulsionam os acontecimentos e aqui toda comunicação Sim, há caricatura nesse livro, mas é incorreto dizer que
é falaz, o que se torna ainda mais estranho quando nos ocorre o tom caricatural se acentua. A página mesma em que Isaías
que toda a segunda parte da obra decorre num jornal. Nas Re- se refere à sua mãe, pobre e apagada figura, é rica em notações
cordações do Escrivão [saías Caminha, pormenor que o tom fre- líricas sobre o mês de maio e de impiedosas auto-análises: "A
qüentemente panfletário e caricatural do livro encobre, as per- Terra era todo um estojo macio e tépido, feita especialmente
sonagens nunca se entrelaçam. Contíguos e sós, integram esta
composição anômala e um tanto monstruosa, onde as várias uni- 7 :'A história social do homem iniciou-se ao emergir este de um estado de
dades, isoladas - ignorantes ainda da própria solidão -, apenas UnIdade indiferenciada do mundo natural, para adquirir consciência de si
se deslocam, modificando o conjunto, sem que haja acréscimoS ~esrno como de uma entidade separada e distinta da natureza e dos
e~rnens qUe .0 rodeavam." A violência com que Lima Barreto ataca a
ou perdas espirituais nos seus deslocamentos. Lima Barreto inau- o ~Utur~ capitalista faz-nos perguntar se acaso não sentia, obscuramente,
gura na ficção brasileira, sem dar-se conta disto, segundo tudo ind'U~ dIZ. o autor da citação acima ao lembrar que o princípio da atividade
trib~!duahsta, Uma das características gerais da economia capitalista, "con-
6 Respectivamente: BARRETO, L. [saías Caminha. p. 78; RAMOS, Orac!- ilIOdlU para Cortar todos os vínculos existentes entre os indivíduos e deste
liano. São Bemardo. p. 13; BARRETO,L. Op. cit., p. 79; RAMOS, OraC1- 81'he separou
BA~ ear e isolou cada
01 Freedom. p. 49homem
e 133.)de todos os demais." (FROMM, Erich.
liano. Op. cit., p. 113. 9 In.RaE:o, ~. [saías Caminha. p. 187.
. }/'st6na da Literatura Brasileira. p. 305.
36 CAPo JI - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 37
para viver do nOsso corpo. ( ... ) Aquele começo de mês foi
para mim de grande sossego e de muito egoísmo. ( ... ) Vinham recem no romance as figuras do passado, embora cheguemos a
(as observações e as emoções) uma a uma, invadindo-me a per- ouvir essa mulher chamando-o, invisível; e o casamento de ambos
sonalidade insidiosamente para saturar-me mais tarde até ao abor- celebra-se numa espécie de vazio, entre os dois planos temporais
recimento e ao desgosto de viver." 10 No último passeio com constantes da narrativa. Policarpo Quaresma, celibatário e sem
Loberant e uma italiana à Ilha do Governador, ao fim do livro, 'preocupações matrimoniais, vive em companhia da irmã. En-
as impressões de Jsaías estão longe da caricatura: "Fomos ser- quanto o problema de Isaías Caminha, equacionado em termos
vidos em velhos pratos azuis com uns desenhos chineses e as de um confronto com a sociedade, era ainda de ordem pessoal,
facas tinham ainda aquele cabo de chifre de outros tempos. A policarpo Quaresma é um funcionário correto, metódico, reme-
vista deles, dos pratos velhos e daquelas facas, lembrei-me muito diado, sem ambições, sem conflitos, sem dilemas existenciais e,
da minha casa, e da minha infância. Que tinha eu feito?" 11 Não, portanto, nada preocupado com a sua pessoa ou o seu destino:
não há incoerência em Isaías.' Mas uma obra de arte é sempre todo ele está voltado (e só isto o converte em personagem de
vista aos poucos, desvendada aos poucos - e assim nem a sutil romance) para uma certa idéia de Brasil. Se o amor à Língua
acuidade de Lúcia Miguel Pereira chegou a perceber, há vinte Portuguesa manifesta o isolamento cada vez mais drástico de
anos, que, em harmonia com uma lei geral do livro, onde prota- Lobo, levando-o afinal à loucura, isola Policarpo Quaresma, tra-
gonista e figurantes permanecem encerrados em si mesmos, a zendo-lhe
pelo conseqüências funestas, um amor cego e desmedido
seu país.
indiscutível sensibilidade de Isaías Caminha é um CÍrculo: como
todos, ele está fechado em si mesmo num mundo onde as comu- - A princípio, exatamente como Isaías, Policarpo Quaresma
nicações foram cortadas. Isaías, atordoado certa vez com o gira no âmbito da sua paixão, fechado em si e na sua idéia fixa:
desencontro entre os seus planos e a realidade, longe de escrever "vivia imerso no seu sonho" e apenas trocava com as pessoas
para casa ou de tentar uma confidência, volta-se para o mar: "pequenas banalidades, ditos de todo o dia, cousas com que a
"Continuei a olhar o mar fixamente, de costas para os bondes sua alma e o seu coração nada tinham que ver." Com o preto
que passavam." 12 Vai Isaías transitando ante os seres sem se Anastácio, que há trinta anos trabalha para ele e com quem po-
prender a ninguém e a sua indiferença ante o falecimento da mãe deria falar de si mesmo, conversa "sobre cousas antigas". 14 A
é inevitável. Ainda não nasceu o autor de L'Etranger, mas Meur- tendência a empregar de maneira neutra o diálogo, isto é, sem
sault já tem um ancestral: os tempos, capciosamente, engendram que expresse paixões, revele claramente problemas íntimos ou atue
os seus símbolos. "As plumas dos chapéus das senhoras e as sobre o interlocutor, volta a aparecer aqui e compõe o modo de
bengalas dos homens - fala ainda Isaías - pareceram-me ser ser do personagem-título. Policarpo Quaresma, isolado, sem an-
enfeites e armas de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido atirado gústia ou desespero, no seu embevecimento, lê com zelo e cons-
por um naufrágio." 13 tância os primeiros cronistas, os viajantes como Jean de Léry e
Em janeiro de 1908, ainda inédito em livro o seu [saías Saint-Hilaire; dedica-se ao tupi-guarani, toma lições de violão.
Caminha, anota Lima Barreto, no Diário, haver escrito "quase Notam-se, no livro, variações importantes de dois temas !un-
todo" o Gonzaga de Sá no ano anterior. Triste Fim de Policarpo damentais: o do ilhamento (meio oculto sob outros, mais fami-
Quaresma é entretanto o romance que se segue, em ordem de liares e ostensivos); o da inoperância dos atos de cada perso-
nagem sobre o próximo e sobre o meio. Todos, em [saías Ca-
publicação, à. obra de estréia.
n:inha, cruzam com outros e se vão, sem que o seu destino tenha
. Isaías Caminha, na época em que escreve suas Recordações,
SIdo afetado e sem que modifique o de ninguém. Em Policarpo
informa-nos da existência da esposa, a quem sobreviverá, mas Quaresma, esses núcleos individuais e· solitários tomam-se mais
seu estado civil é irrelevante para a estrutura da obra. Só apa- c~mplexos: são substituídos. por núcleos domésticos. Existem os
nucleos Policarpo--Adelaide, General Albernaz-família, Vicente
10 BARRETO, L. Isaías Caminha. p. 164-6-5.
11 Id., ibid., p. 192. ;~lga (e mais tarde o marido de Olga) e ainda, elemento à parte,
12 Id., ibid., p. 84. UnICo~em liames familiares, Ricardo Coração dos Outros, artista
13 Id .• ibid., p. 85. 14 B
ARRETO, L. Policarpo Quaresma. p. 62-63 e 34.
38 CAPo li - LIMA BARJlETO: O ROMANCISTA
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 39

do violão e compositor de modinhas. Para unir um núcleo a periência, vai empreender uma nova forma de ação, voltada agora
outro temos o flébil recurso das visitas, motivação rara e ocasional simplesmente para a terra e não mais para a sociedade. Mas
em [saías Caminha. Mas a sociabilidade das personagens, em os desastres também não tardam nessa outra conjuntura: a terra
Policarpo Quaresma, vai cerrando os fios do relato e estabele- não produz e as saúvas aferroam o lavrador improvisado com
cendo tensões? Não. Repete-se, ao contrário, o fenômeno já uma violência que evoca a reação geral ao seu infeliz requeri-
registrado no primeiro fi)mance, onde as personagens se encon- mento. 18 Isto, porém, ainda não é tudo. A vinda de Quaresma
tram e separam-se senl que nenhuma delas aparente sofrer qual- para a região, seu retraimento desinteressado, rompendo de
quer mudança. As visita~e as reuniões sociais não constituem algum modo a neutralidade das suas normas de vida e sendo,
ponto de partida para quaIsquer eventos. Acresce que os núcleos afinal, uma ação, acaba provocando adulações, suspeitas e gestos
a que chamamos domésticos e que integram a obra são indepen- agressivos por parte dos que governam a vila cujos estatutos re-
dentes: o afastamento de Cavalcanti e depois a loucura de Ismênia gem o sítio. Todos têm o ar de intrusos, como se ao mesmo
(um dos únicos casos etll que um ato vai repercutir sobre outra tempo eles tentassem invadir a vida de Quaresma e o romance.
personagem), o casaroetntode alga, toda a vida de Ricardo, a Curiosamente, no mesmo ano em que aparece em livro o Triste
loucura de Quaresma Qperam.:.sesem conexão com os núcleos Fim de Policarpo Quaresma (a publicação em folhetins inicia-se
restantes e em nada Oi aietam. em 1911), edita-se na Inglaterra Victory, de Joseph Conrad.
Além do mais, va~.a~ão not~vel do tema que vamos pro- Antonio Candido, para quem há em Conrad "um sentimento da
curando delimitar e ide~ficar, Pohcarpo Quaresma "sentia dentro ilha que funciona com valor metafórico e alegórico", acrescenta
de si impulsos imperi1>SO$ d~ agir\ 15 num esforço que contraria que a metáfora do ilhamento, no escritor inglês, não se fecha,
o seu modo de ser elwvai expenmentar romper o isolamento sendo "um preâmbulo ao problema decisivo, o ato, cujo meca-
e atuar sobre o meiQL Dirige uma petição ao Congresso Na-
J6 nismo ela desencadeia, como se pode constatar exemplarmente
cional, pedindo que se "d~c~eteo tupi-guarani como língua oficial em Victory". a sueco Axel Heyst, concluindo "que a ação é
e nacional do povo bt<lSI1~lrO." 17 A ingênua tentativa de Poli- algo diabólico, responsável pelo mal na sociedade", retira-se para
uma ilha do Pacífico. "Mas a ilusória solidão abre caminho aos
carpo Quaresma expre§3n.~ apenas uma reação à estrutura da
obra de estréia, e, co~quentemente, uma mudança radical na embates comuns da vida, resultantes do amor, da cobiça, do
visão do romancista se não viesse a configurar-se como uma in- ódio." 19 Mecanismo idêntico, portanto, ao que se observa na
fração. A incursão do }er6ino mundo da influência, mundo onde reclusão de Quaresma, embora com outra intensidade e em outro
nível de consciência. 20
se procura atuar so~re'indivíduos ou grupos, seu inofensivo e
tímido ensaio no sentJ.d())~e
romper o alvéolo, deflagra uma pressão a mesmo motivo - ensaio de interferência redundando em
tão impiedosa e genenliZada que o leya ao hospício. desastre - logo irá repetir-se, oc~pando toda a segunda metade
Tendo aÍta, vai Pilt!carpo Quaresma para o campo, com o da narrativa. "Na manhã de 6 de setembro de 1893 toda a
objetivo de pôr em ~rl1lca,atendendo aos objetivos satíricos do armada se revoltou, acrescida com alguns navios mercantes. ( ... )
livro e que constitmro li) seu primeiro plano, o que primeiro se Floriano era teimoso e não economizava o sangue dos seus com-
oferece ao observado~, msua crença na fertilidade do solo nacional. patriotas. Convocou a guarda nacional, pôs a força de prontidão
Numa esfera mais prof1lJ}:da, Policarpo Quaresma, batido pela rea- e levou canhões para os morros. Veio o estado de sítio e organi-
ção ao seu ato impl11del1te,.
intensifica no sentido físico o próprio
isolamento. Verifica-selqUiuma conciliação de objetivos: o herói, 18 Atente-se para a circunstância de que o problema da expressão verbal,
ao mesmo tempo que aJ)andona o cenário da sua desastrada ex- relevante nos personagens Lobo e Floc - e, um tanto secundariamente,
em Isaías Caminha enquanto narrador -, é o primeiro a surgir das leituras
15 BARRETO,L·pp. cia.W 13.. .
e ruminações de Policarpo Quaresma, constituindo a raiz do seu comporta-
. mento ulterior.
16 Cf. TODOROV: "UIIJl lII'rahva Ideal começa por uma situação estável
J9 CANDIDO,Antonio. Tese e Antítese. p. 62-63.
que uma força qualqu:r I'em p:rturbar." (As .Estruturas Narrativas. p. 20 Devemos registrar que, na juventude, Quaresma auxiliou Vicente Coleoni,
138.) Possuía Lima BlPlllonoçao clara das leIS que regem tradicional- que estava à beira da ruína e que, graças à ajuda recebida, acaba enri-
mente o relato e quanll> » cbntraria não é decerto por inaptidão.
quecendo. Uma exceção, contrariando as leis que rastreamos.
17 BARRETO,L. PolicarlJOfuaresma. p. 61.
40 CAPo 11 - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 41

zaram-se batalhões patrióticos" 21 - resume Graciliano Ramos, ra, escreve o seu biógrafo, "6 descer ainda mais, mergulhar-se no
evidentemente sem ardor, na "Pequena História da República". cinismo e no deboche, acanalhar-se por completo." 25 Tenta, sem
policarpo Quaresma, informado dos acontecimentos, redige um me- qualquer êxito, o gênero fescenino e em abril de 1914 desabafa no
morial a Floriano Peixoto e, indiferente às ponderações da irmã, Diário: "Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O
que lhe mostra "os riscos da luta, da guerra, incompatíveis com maior desalento me invade." :E: um ano em que sua correspondên-
a sua idade e superiores à sua força", 22 viaja para o Distrito cia, restrita ainda e pouco diversiflcada, mais se reduz. O tema do
Federal, com o objetivo de entregar o memorial e alistar-se. Tudo isolamento parece repercutir na sua vida ou extremar-se. Ele pró-
o que provoca o seu memorial são estas palavras de Floriano: prio se apercebe da crise que se intensifica e a 13 de julho registra:
"Você, Quaresma, 6 um visionário ... "23 Alistado, 6 ferido, con- "Noto que estou mudando de gênio. Hoje tive um pavor burro.
verte-se em carcereiro e, percebendo que o governo, vitorioso, tru- Estarei indo para a loucura?" No dia 18 de agosto, conduzido
cida grande número de prisioneiros, comete a transgressão final: num carro de presos, 6 internado pela primeira vez no Hospício,
envia ao Presidente uma carta de protesto. Encarceram-no, sendo onde passa perto de dois meses. Ao sair, escreve, em apenas vinte
a morte o seu fim, não apenas triste, mas lógico e óbvio. Assim e cinco dias, por encomenda de Irineu Marinho, sem copiar nem
acaba esse livro de raras e veladas confidências, de laços familiares recopiar sequer um capítulo, 26 o romance Numa e a Ninfa. De-
frágeis, de casamentos sem flama, de interferências vãs ou desastro- senvolve, para isto, mantendo inclusive o título, conto publicado
sas _ tudo refletido nas frouxas motivações que unem formalmente três anos antes na Gazeta da Tarde e trechos inteiros das malogra-
os seus núcleos - e no qual o tema do insulamento constitui um das Aventuras do Doutor Bogóloff. As circunstâncias em que escre-
veio profundo, embora discreto. 24 Bem antes, respondendo a uma ve o livro, todas desfavoráveis, levando-o inclusive ao reaproveita-
observação de Ricardo Coração dos Outros sobre o pensamento e mento tardio de tema, personagens e situações, pode explicar cer-
as consolações do sonho, dissera Policarpo Quaresma que sonhar tos desvios flagrantes em relação à trilogia a que aludimos.
talvez console, mas distancia e "cava abismos entre os homens". Limitemo-nos, evitando explicações ou justificativas, a acentuar o
Mas o pensamento e o sonho terão na verdade esse poder desagre- amortecimento de sua percepção das coisas e a intensificação -
gador? Ou apenas levam à revelação de abismos já existentes e cuja aparente, ao menos - de laços entre as personagens, com.a perda
amplitude este livro melancólico e sarcástico acentua como por aca- de um traço pessoal, enigmático e cheio de sugestões, patente em
so? [saías Caminha, Policarpo Quaresma e Gonzaga de Sá. Contudo,
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, no julgamento do autor mesmo nesse romance composto sob estímulos artificiais e onde 6
o mais acabado dos seus livros, forma com [saías Caminha e Poli- possível - onde se procura mesmo - afetar os destinos alheios,
carpo Quaresma uma trilogia involuntária da incomunicabilidade e não no sentido espiritual e sim no que concerne à sobrevivência ou
só virá a público em 1919. Antes disto, havendo-o já escrito, entra à carreira, observa João Ribeiro que "todos os personagens desa-
Lima Barreto na fase mais sombria ou mais exasperada da sua parecem quase subitamente". 27 As separações subsistem entre eles;
vida. Percebe-se, como num sismógrafo, que começa a minar-lhe e os seus diálogos, quase sem exceção, giram em tomo de assuntos
o espírito um sentimento geral de insegurança. A venturas do Dou- 25 BARBOSA,Francisco de Assis. Aldebarã - A Vida de Lima Barreto.
tor Bogóloff, "narrativas humorísticas", aparecem em folhetins e p. 225-26. José Aderaldo Castello (Método e Interpretação. p. 75-82.)
são interrompidas no segundo fascículo. O que parece desejar ago- é um tanto rigoroso na sua crítica a essa biografia. Também não parece
muito tolerante em relação a Lima Barreto: "ele foi vítima do seu próprio
21 RAMOS, Graciliano. "Pequena História da República." In: Alexandre orgulho de desajustado, de vaidoso que esperava o reconhecimento dos
e Outros Heróis. p. 150. contemporâneos e o seu estímulo, antes de oferecer os elementos necessários
22 Id., ibid., p. 149. para merecê-Ios." (p. 80.)
23 Id., ibid., p. 176. 26 V. BARRETO,L. Diário Intimo. p. 182: "Eu tinha pressa de entregá-Io,
24 Vemos, na última página da obra, Olga seguir ao encontro de Ricardo. para ver se o Marinho (Irineu Marinho, então diretor da A Noite) me
O fato de que, na linha final desse livro, onde papel tão importante é pagava logo, mas não foi assim e recebi o dinheiro aos poucos."
concedido ao insulamento espiritual e aos perigos de rompê-Io, um perso- 27 RIBEIRO, João. Artigo publicado em O Imparcial, Rio de Janeiro, em
nagem vá ao encontro de outro, serenamente, ioa como dissonância volun- edição de 07/05/1917. Aparece como "Prefácio" em Numa e a Ninfa.
tária e estimula-nos à reflexão. p. 12.
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 4S
'\14 CAPo II - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
Responde o velho que a outra foi a sua lavadeira. 38 Gonza-
sas." 33 Interesse nostálgico, especulativo, interesse de amador um ga de Sá, nas últimas páginas do livro, faz confidências a Machado.
tanto distanciado de tudo e nem de longe -passível de converter-se Coisa notável: a confidência, ato anormal nesta ficção de seres
em atos, "à vista da obscuridade a que se havia voluntariamente ilhados em si mesmos, é interpretada como sinal de fraqueza. "Na
imposto." 34 Idênticas às de Gonzaga de Sá as predisposições de forte compreensão da dignidade de sua pessoa, e no avassalador
Machado, seu imaginário biógrafo. Só ou em companhia do amigo, orgulho pela sua inteligência, atrozes feridas deviam se ter aberto
contempla as coisas e raciocina sobre elas, num tom talvez um nele pela vida toda; e agora, com a decadência de energia que a ve-
pouco mais comovido, mas que ressoa como um eco, paráfrase ou lhice acarreta, não mais podia suportar-Ihes' as dores cruéis e ge-
reflexo do que ouve e transcreve. O que vêem e observam Gonza- mia." 39 Gonzaga de Sá, dando-se conta de haver excedido, apre-
ga e Machado lembra uma sonata para dois instrumentos afins. senta desculpas e promete que não voltará a incorrer na mesma
Esta consonância, quem - sem o saber ou em plena cons- falta. .
ciência _ não a deseja ou não a procurou? Os dois amigos, um Ressurge ~portanto neste romance a lei que estabelece entre
velho e um jovem, no romance de Lima Barreto, pareceriam a fe- as personagens um vácuo intransponível, impermeável, segregador,
liz e efêmera expressão de tal sonho. "Eu, a quem. a convivência isolando-as em si mesmas. Apresentaria tal norma, no romance
com tão precioso e excepcional superior hierárquico permitira que agora examinado, uma variação, expressa nas cambiantes corres-
se me penetrasse um pouco do seu feitio mental" - confessa Ma- pondências e fusões entre o biografado fictício e seu fictício cronis-
chado. 35 E um dia, estando com o amigo ante a noite que cai, ta: viriam ambos de um molde comum, seriam ambos o mesmo in-
expressa-se como se ambos fossem um: "Nós, então, sentimos as divíduo impreciso, dividido, extraviado num mundo indiferente e
nossas almas inteiramente mergulhadas na sombra e os nossoS cor- por ve~es reconhecendo-se, num lampejo, fora de si, no outro, sem
pos a pedir amor. Calamo-nos e olhamos um pouco as estrelas no que este reconhecimento de modo algum restaure a sua unidade -
céu escuro." 36 "Entre nós havia aquele aperfeiçoamento de comu- mesmo porque, dissimuladas, há graves separações entre eles. Fru-
nicação, que Wells tanto encomia nos marcianos: mal emitia um to de um desespero difuso, do qual a certeza de não encontrar na
pensamento, um dos nossos cérebros, ia ele logo ao outro, sem in- Terra vozes solidárias constitui o núcleo (não falará em ninguém
termediário algum, por via telepática." 37 a minha voz, não continuarei em ninguém e não serei a continua-
Enganosa e obscura, apesar de tudo, mesmo sem levarmos em ção de ninguém), eis que surge neste mundo simbólico uma perso-
conta certas oposições profundas que distinguem um do outro e nagem e, dividindo-se, sonha ou finge a comunhão, a continuidade.
de que ainda falaremos, é esta semelhança de caracteres - e tam- Mesmo aí, não é bem sucedido: nenhum dos dois se altera no
bém de idéias, pois as discussões entre eles orientam-se, em regra, curso dessas relações - no curso do romance - e, na morte de
no mesmo sentido. Nas conversas que sustêm, limitadas por uma Gonzaga de Sá, descrita no início do relato, o que infunde, à sua
tácita convenção de pudor, nenhum deles fala de si ao parceiro ou ulterior presença, certo caráter fugidio e etéreo, bem podemos ler
comete indiscrições. A única pergunta de ordem pessoal que faz que a saída procurada era vã e deserta como todas.
O velho descendente de Estácio de Sá e seu taciturno com-
o jovem a Gonzaga refere-se ao seu estado civil:
,,_ Senhor Gonzaga, não é casado? panheiro atravessam o livro lado a lado, sem jamais trocarem um
"- Não. abraço e quase nunca uma expressão reveladora, divagando sobre
"- Nem quis casar? temas que interessam a ambos - mas sempre exteriores a ambos
,,_ Duas vezes: uma, com a filha de um visconde, em baile , sem que dos seus encontros e diálogos (ou dos seus monólo-
de um marquês. gos?) surja o embrião, por débil que seja, de drama ou de conflito.
"- E a outra?" A inexistência de ação material não permite que se inscreva
o romance no gênero psicológico: de mo'do algum propensos a agir
83 BARRETO, L. Gonzaga de Sá. p. 64. (o que torna o livro mais representativo e coerente em relação a
84 Id., ibid., p. 50.
M Id., ibid., p. 71. 38 Id., ibid., p. 36·37.
36 Id., ibid., p. 54. 39 Id., ibid., p. 150.
37 Id., ibid., p. 111.
46 CAPo li - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 47
[saías Caminha e Policarpo Quaresma), Gonzaga e Augusto Ma-
simpatizava", 41 único para quem agir (ação, bem entendido, de-
chado, amadores da contemplação e da reflexão, não os subjugam gradada e predatória) é o aspecto dominante no seu modo de ser
as paixões e o encontro dos dois não provoca mudanças substan-
ciais na visão que têm das coisas. e o que o justifica como personagem. Mas resta ainda uma per-
Nestes livros povoados de figuras insulares, ocupam, portanto, gunta a faz~r. Não amar a ninguém e com ninguém simpatizar não
constituirá uma expressão - aguda, agressiva - de insulamento?
lugar de relevo, ao longo da amizade que cultivam, triste, nobre,
Ignora-se a razão pela qual não conclui Lima Barreto o Ce-
em surdina, tocada de magia e, apesar de tudo, estéril, os dois sen-
síveis burocratas de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. mitério dos Vivos, ambientado no Hospício Nacional de Alienados,
Sete anos decorrem entre a redação de Numa e a Ninfa e a de onde começa a escrevê-1o. (A 10 de fevereiro de 1920, em carta
Clara dos Anjos, concluída no ano da sua morte. Já em 1904 apa- a Francisco Schettino, chega a prometer o livro para o fim do mês.)
recem no Diário anotações destinadas ao romance, consta de "His- Constituiria esse romance, segundo nos sugerem as páginas iniciais,
compassivas e cheias de reflexões, um aprofundamento da corren-
tórias e Sonhos", um conto bastante esquemático que podemos
te esquiva que vimos rastreando? Ou uma ponte entre as obras
bem considerar uma sinopse do futuro livro (o título é o mesmo) e
o próprio Lima Barreto irrompe sem disfarces, por um instante, nas mais antigas e Clara dos Anjos? Inclinamo-nos pela primeira hi-
pótese. A reclusão no Hospício evoca no espírito do romancista
últimas páginas de [saías Caminha, para anunciar: "Cinco capítulos
da minha Clara estão na gaveta; o livro há de sair ... " Não cin- um tema familiar e que o persegue, solerte: o do náufrago atirado
co, mas quatro capítulos correspondentes à primeira redação da em terra inóspita. Vai então engendrando, à medida que observa o
ambiente e os companheiros de internamento, a história de um ho-
obra completam a edição hoje corrente do seu Diário Intimo.
Ao contrário de todos os outros romances, Clara dos Anjos mem ali recluso e que, não sendo realmente louco, transita entre
não é dominado pelo tema do insulamento. Nele, as personagens loucos. Sendo impossível entender-se com eles, dedica-se, neste
agem, fazem agir as demais e modificam-se entre si. A ação cal- isolamento onde repercute, extremado, o de tantas personagens da
culada e malévola é mesmo o traço dominante de Cassi Jones, in- sua ficção, a relatar, num tom meditativo e em que se sente o esfor-
culto Don Juan dos subúrbios, destinado a infelicitar Clara dos ço para decifrar o mistério das coisas, a "história de uma vida sa-
cudida por angústias íntimas e dores silenciosas", 42 assim como as
Anjos. A constante que aqui vimos examinando, a ausência de
correntes vitais entre as personagens, fechadas em si mesmas e des- circunstâncias que o cercam enquanto escreve. Sofre, a persona-
confiadas da ação, subsistiria apenas na tendência (agora psicoló- gem que lentamente se forma, leves influências das pessoas com
gica e não mais existencial) de Clara dos Anjos a preservar o seu quem convive, mas não chega a entender a mulher e nunca lhe faz
segredo, voltando-se, numa hora de desespero, para os astros, como confidências: "Dos meus planos de vida, dos meus projetos inte-
Isaías Caminha se voltava para o mar: "ela apurava o ouvido e lectuais, não lhe confidenciava palavra nem dos meus desânimos,
reforçava o seu poder de visão para ver se daquele mistério todo nem dos meus desalentos." 43 Personagem ilhado e, portanto, ca-
saía qualquer resposta sobre o seu destino"; 40 e no fato de Marra- racterístico da ficção de Lima Barreto ("Encerrava-me em mim
maque, que procura interferir (tardiamente, aliás) no sentido de mesmo e sofria"), 44 exprime claramente, a certa altura, o conflito
afastar de Clara o abominável Cassi Jones, ser assassinado por este. do seu criador (em nenhum outro momento, note-se, tão próximo
O castigo pela culpa de agir, reiterativo e nunca pessoal no Triste da figura criada) entre a suspeita diante da ação - suspeita ori-
Fim de Policarpo Quaresma, teria aqui um instrumento individua- ginada no esboroamento de um mundo não mais solidário _ e a
lizado. Refletir-se-ia ainda a inutilidade da ação na visita vã de decisão de agir, ação a que urge atribuir um valor. A ação, julga,
Clara dos Anjos à família do amante. O seccionamento entre o in- desde que orientada para o Bem, "seria favorável à nossa reincor-
divíduo e a sociedade ressurge no poeta e louco Leonardo Flores. poração no indistinto, no imperecível"; ao mesmo tempo, acredita
Também merece atenção um pormenor: na galeria de personagens que a imobilidade e a contemplação condicionariam o acesso a nos-
que animam os romances de Lima Barreto, é Cassi Jones, tipo
41 ·BARRETO, L. Op. cit., p. 44.
grosseiro e embotado, que "não amava a ninguém e com ninguém
42 BARRETO, L. O Cemitério dos Vivos. p. 140.
43 Id., ibid., p. 164.
40 BARRETO, L. Clara dos Anjos. p. 150. 44 Id., ibid., p. 165.
48 CAPo 11 - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA

sa "desincorporação", alcançando assim um estado que receia no-


mear sob pena de "limitar o ilimitado". "O sábio é não agir." 45 A
conclusão, conquanto repugne o personagem-narrador (e também,
decerto, seu modelo próximo, o autor), não é a primeira vez que CAPÍTULO III
surge, explícita, nesta obra romanesca. Nove anos antes, vinha à
tona, na carta de Policarpo Quaresma à sua irmã, o mesmo grito
LIMA BARRETO: OS ROMANCES
submerso que o escritor, através de uma vida atuante, expressa na
sua própria obra, inclusive nos romances, parece ter procurado
abafar e exorcizar: "O melhor é não agir, Adelaide; e desde que
o meu dever me livre destes encargos, irei viver na quietude, na Projeções do tema do insulamento. - Deslocamento do
quietude mais absoluta possível, para que do fundo de mim mesmo eixo dos conflitos. - Tensão entre personagens e espaço.
ou do mistério das cousas não provoque a minha ação o apareci-
mento de energias estranhas à minha vontade, que mais me façam O leitor familiarizado com a imagem de um Lima Barreto es-
sofrer e tirem o doce sabor de viver ... " 46 critor político, afeito às assertivas corajosas, ligado aos homens,
interessado em depor sobre o seu tempo e assumindo, em face da
sociedade, uma posição atuante, inclinar-se-á, talvez, a recusar o
vulto desvendado em parte pela nossa análise: mais que político,
metafísico; trespassado de dúvidas; transitando no mundo como
um estranho; e, principalmente, desconfiado da ação.
Delineada, entretanto, essa outra face do escritor - estranha,
talvez, aos seus próprios sistemas de pensamento 1 ou por estes re-
primida -, eis que a sua obra, longe de empalidecer, adquire maior
profundidade. Uma pintura onde a restauração, por trás dos ho-
mens e mulheres até então isolados no primeiro plano, mostrasse-
-nos a paisagem distante, com um lago ou um rio.
Decorrência inevitável da desconfiança que cerca a ação nes-
ses romances, singularizando-os (notadamente em [saías Caminha,
Policarpo Quaresma e Gonzaga de Sá), e da mútua dissociação en-
tre suas personagens, é a ausência de conflito dramático. Mesmo
em Numa e a Ninja, onde se percebe com clareza a intenção de
elaborar uma fábula mais enredada, dificilmente pode-se falar em
conflito. 2 Não que faltem razões para isto: a ambição de Numa

1 O romance, "como toda arte, pretende ultrapassar os sistemas de pensa-


mento e não segui-Ios". ROBBE-GRILLET,Alain. Pour un Nouveau Roman.
p. 181.
2 A análise de um romance do século passado (de George Eliot, por
exemplo, várias vezes citada com admiração pelo próprio Lima Barreto),
atenta às mútuas pressões operadas pelas várias personagens, ressaltaria
ainda mais o caráter singular da obra do escritor brasileiro. Em The Mill
on the Floss (existe tradução portuguesa de Cabral do Nascimento - O
Moinho à Beira do Rio) o velho Tulliver, pai das crianças Tom e Maggie,
tem a mania das pendências. Disputando com o advogado Wakem, perde
todos os bens. Reúne-se à família da Sra. Tulliver, os Dodson, para
45 Id., ibid., p. 162. decidir minuciosamente a atitude a tomar, isto é, para decidir em que
46 BARRETO,L. Policarpo Quaresma. p. 197.
50 CAPo III - LIMA BARRETO: OS ROMANCES PROJEÇÕES DO TEMA DO INSULAMENTO... 51

Pompílio de Castro poderia ser a origem da sua catástrofe, a fonte tendência nodal no enredo e ligadas àquela espécie de vácuo que se
do seu drama pessoal, como em Stendhal (O Vermelho e o Negro) observa entre as criaturas de Lima Barreto, ainda é Clara dos An-
ou em Theodore Dreiser (Uma Tragédia Americana). A ambição jos o romance onde mais se manifestam oposições entre indivíduo
de Numa, restrita, pouco propensa à luta e com frágeis apoios na e indivíduo.
sua prudente alma de arrivista, não constitui, entretanto, material Nos três romances restantes e nos capítulos existentes do Ce-
propício ao drama. O adultério de Edgarda, que, pela ausência de mitério dos Vivos, então, a ausência de crise e de conflito dramáti-
êxtase, por qualquer coisa de mecânico, confortável e burocrático, co é total. Lendo-os, é certo, temos por vezes a impressão, com os
levaria João Ribeiro a considerá-Ia "talvez mais canalha que o ma- hábitos formados em outras leituras e no teatro, de que algo se
rido", 3 exclui as crises e as definições. E quando Numa afinal a prepara contra a personagem e que esta dentro em breve será arre-
surpreende na sua própria casa com o amante, volta "vagarosamen- batada numa intriga. Ameaças, no entanto, que logo se desfazem.
te, pé ante pé, para o leito, onde sempre dormiu tranqüilamente". 4 Assim, o personagem Laje da Silva, de mão áspera e bigode farto,
Há, em Clara dos Anjos, animosidade declarada entre Cassi Jones o olhar "inquieto e fugidio", mns "de velhaco mercadejante" quan-
e o pai, mas não se processa, no romance, o desenvolvimento do do se fixava, é a primeira pessoa com quem Isaías Caminha, pro-
conflito: não há entre ambos um verdadeiro confronto e eles nunca vinciano e sem nenhuma experiência do mundo, mantém contato
se vêem. "O pai veio a saber da resolução do filho, sobre quem no Rio. A caracterização desse tipo, feita através do discurso dire-
não punha os olhos havia dois anos." fi A mesma personagem, to e de rápidos traços um pouco insistentes, nos quais vamos dis-
cumprida a sua função predatória em relação a Clara, desaparece tinguindo a atitude íntima de Isaías em relação a ele, convence-nos
de cena. Apesar dessas esquivas e de outras, todas avessas a uma de que um golpe se arma, embora não se saiba de que gênero. Laje
da Silva vai pondo em Isaías Caminha "uma singular inquietação",
medida influenciarão o destino do parente arruinado. Maggie é constan-
temente alterada pelas palavras e gestos do seu irmão Tom. Com a ruína
"as suas maneiras são ambíguas e ao mesmo tempo desembaraça-
da família, todo o objetivo de Tom, que entra na adolescência, vai ser a das, o seu olhar cauteloso, perscrutador e sagaz"; além disto, di-
recuperação econômica e, portanto, a reconquista da honra do pai, avil- zendo-se varejista em cidade pequena e sem demonstrar qualquer
tado pela miséria. O parente a quem busca, calcula com eqüidade, segundo preocupação intelectual, conhece com minúcias a vida jomalística
os méritos de Tom e as possibilidades de vantajosa retribuição, a extensão
da ajuda a conceder. Bob Jakin, esperto amigo de Tom e um tanto dado do Rio. Anda com o bolso cheio de dinheiro, alude à existência de
à vagabundagem, reaparece para sugerir um negócio que irá acelerar o notas falsas ("l? preciso muito cuidado, meu caro doutor. A Casa
projeto obstinado do amigo. A simples presença de Maggie, mais tarde, da Moeda tem muitas filiais por aí ... "), está sempre fora e con-
na casa da sua prima Lucy Deane, perturba de maneira fatal o idílio da
jovem com Stephen Guest. Assim por diante. Há uma rede cerrada de fessa, por fim, maldizendo a polícia, ter sido apanhado numa "ci-
influências, que tanto podem ser calculadas como involuntárias; as per- lada" como falsário, esbordoado e preso injustamente, pelo simples
sonagens são permeáveis umas às outras; e a ação, em si, nada tem de
maldita, não é ainda minada por uma atitude mais ou menos reprimida motivo de que no seu município estava com a oposição. Parece,
de suspeita: saudável e 'natural, chega a assumir, nesse mundo compacto ainda, medir com intenções secretas a situação precisa de IsaÍas e
e ainda solidário, com algo de tribal, a forma de um dever social codifi- as suas possibilidades: "indagava das minhas amizades, das minhas
cado. Pode-se ainda observar, nas Memórias de um Sargento de Milícias
(1852-1853), que as personagens estão constantemente alterando a vida
relações; se eu era colega de F., se me dava com beltrano, se estu-
das demais e que tais alterações são mostradas com alegria, havendo em dava isto ou aquilo." Não deixava, porém, "transpirar nada, nem
tudo um ponto notável: um castigo se sucede às transgressões de Leonardo, uma contração, nem uma ruga que fizesse descobrir como recebia
mas logo a seguir ele é exalçado. Já em Senhora (1875), um grão de
ilhamento irá manifestar-se, sub-reptício, na figura do herói. Seixas, ma- essas minhas respostas". 6 Com tão evidentes sinais de agente da
nequim romântico, é separado dos homens e a ninguém faz confidências, destruição e do infortúnio, acaba Laje da Silva por desaparecer,
conduzindo em segredo, ao longo do romance, o seu modesto dilema de sem lançar contra o inexperiente jovem o laço que todos os indí-
alcova.
3 Artigo publicado em O Imparcial, Rio de Janeiro, edição de 07/05/1917.
cios. nos fazem crer inevitável.
A parte relativa a Lima Barreto aparece como "Prefácio" à edição citada
de Numa e a Ninfa. 6 .BARRBTO,L. Isaías Caminha. p. 41, 46, 60 et passo Alfredo Bosi, exa·
4 BARRBTO,L. Numa e a Ninfa. p. 265. mlllando este capítulo, faz algumas sugestões. O caso Laje da Silva, se-
fi BARRBTO,L. Clara dos Anjos. p. 140. gundo ele, poderia indicar que as pessoas são para a nossa percepção,
PRO.TEÇÕES DO TEMA DO INSULAMENTO.. • S3
S2 CAPo III - LIMA BARRETO: OS ROMANCES
cumental, a função paralela de ilustrar um aspecto da vida política
Também os acontecimentos que se' sucedem à mudança de e administrativa do país. 8
policarpo Quaresma para o sítio organizam-se de modo a autori- Encontramos um exemplo ainda mais notável - e mais con-
zar nossa expectativa de crise. Visita-o, primeiro, o Tenente Anto- ciso - da característica que vimos demarcando, no capítulo da II
nino, com o objetivo de levar o major a uma definição política. terceira parte. Policarpo Quaresma, alistado no posto de major,
Não a obtendo, vê esperteza na neutralidade do outro: aquele fo- tem sob suas ordens Ricardo Coração dos Outros e autoriza-o a
rasteiro, sem dúvida, quer ficar bem com os dois partidos. Ricardo cantar e tocar violão quando quiser. Um jovem subalterno do ma-
Coração dos Outros, em visita ao sítio, deixa-se enlear na rede dos jor, o Tenente Fontes, dá contra-ordem e ainda censura verbal-
interesses locais e, servindo de instrumento para o acesso do ami- mente o seu superior. O curto diálogo entre os dois exemplifica
go, favorece a visita do presidente da Câmara. Sabe-se, a essa al- nitidamente o esquema, segundo o qual são absorvidos ou amorte-
tura, que os ânimos estão acesos entre o edil e ~ Tenente Antonino. cidos, no mundo romanesco de Lima Barreto, os atritos entre as
Vem pelo correio um exemplar do jornal situacionista, com artigo personagens, como se o vácuo entre elas agisse à maneira de iso-
lante:
de fundo descompondo os intrusos e insultos em verso contra Qua-
"- Então o senhor permite que os inferiores cantem modi-
resma, já inquieto com as vozes que correm a seu respeito e segun-
nhas e toquem violão, em pleno serviço?
do as quais ele seria amigo de Floriano Peixoto. O presidente da "- Mas que mal faz? Ouvi dizer que em campanha ...
Câmara vem fazer a visita e abre o jogo: quer envolver Quaresma
"- E a disciplina? E o respeito?
nas manobras sujas da política local. Sucedem-se, à recusa do "- Bem, vou proibir, disse Quaresma.
major, represálias vindas das duas facções; e a crise, explodindo "- Não é preciso. Já proibi.
neste ponto, estaria sustentada por preparativos habilmente dis- "Quaresma não se deu por agastado, não percebeu motivo
postos - um mecanismo perfeito. A reação do major, entretanto, para agastamento e disse com doçura:
frente a antagonistas que se tomam cada vez mais indiferenciados "- Fez bem.
e difusos, fazendo-se sentir através de regulamentos e leis (com os "Em seguida perguntou ao oficial o modo de extrair a raiz
quais, por sinal, se confundem), não se manifesta dinamicamente. quadrada de uma f.ração decimal; o rapaz ensinou-lhe e eles esti-
A luta, concretizada em ataques sem contra-ataques, esvazia-se veram cordialmente conversando sobre cousas vulgares." 9
num .raciocínio de ordem pessoal: "Quaresma veio a recordar-se Surpreendente e rara, portanto, neste mundo de seres pouco
do seu tupi, do seu folklore das modinhas, das suas tentativas agrí- expostos a ações e reações; o desabafo de Olga, nas últimas páginas
colas _ tudo' isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil." Con- do livro. Veste-se Olga para sair e tentar salvar a vida de Quares-
clui, a seguir, ser "necessário refazer a administração". 7 Assim é ma, quando chega o esposo; sabedor do desígnio da mulher, tenta
que, ao ter conhecimento da Revolta da Armada, está predisposto, dissuadi-Ia; Olga, irritada, diz-lhe violentamente e com franqueza
com apoio em raciocínios discutíveis e vagos, senão ilógicos, a o que pensa a seu respeito. Não nos ocorre que exista, em toda a
obra de Lima Barreto, cena idêntica. A disputa entre Olga e o
prestar seu apoio a Floriano. Ele e os políticos interior anos não se
chocam como dois corpos impulsionados em direções opostas, e marido põe a nu a visão que ela tem a respeito desse tipo "cheio
sim como um corpo que, atingindo outro, atira-o não importa em de satisfação de si mesmo", desse senorito satisfecho como o cha-
que sentido. Esse conflito sem crise é na verdade um minucioso maria Ortega y Gasset, moldado no mesmo barro ordinário de Nu-
pretexto para a infausta resolução do herói, tendo, no nível do- ma Pompílio de Castro. Mesmo então, é Olga que o ofende com
palavras, ele permanece em segundo plano - maneira de desviar
embora não o sejam para a ação. Insinuar-se-ia, no modo como é apre- parcialmente o choque - e a justificativa dada pelo narrador à sua
sentado o personagem, um começo de desagregação do realismo psicoló- perplexidade remete-nos mais uma vez ao tema do ilhamento: "Ele
gico. Visto de outra perspectiva, talvez se processe, em torno de Laje
da Silva, uma falsa caracterização, sendo Isaías, pelo modo como o vê 8 Como já foi dito, uma espécie de represália àquela ação de tipo muito
e julga, o verdadeiro caracterizado. Infelizmente, aprofundar essas hipó- especial que é o isolamento de Policarpo Quaresma.
teses desviaria um pouco do seu curso o presente ensaio. 9 In: Policarpo Quaresma. p. 168-69.
7 BARRETO, L. Policarpo Quaresma. p. 134-35.
54 CAPo III - LIMA BARRETO: OS ROMANCES PROJEÇÕES DO TEMA DO INSULAMENTO. •• 55

vivera sempre tão longe dela que não a julgara nunca capaz de tais desenha o esboço de um rosto. Nenhum desentendimento é insi-
assomos." 10 nuado entre Gonzaga de Sá e a parenta com quem vive, entre ele
Embora não haja, em nenhum desses livros, oposições de in- e seu biógrafo- inexistem antagonismos fortes e não há no romance
teresses, estes, quando existem, dilatam-se, por assim dizer, em to- outras personagens definidas. Prevalece um tom sem brilho, um
dos os sentidos, não encontrando uma resistência de natureza indi- andamento pausado, nessa composição horizontal e onde as linhas
vidual a superar; são freqüentes e indisfarçáveis, neles, os dramas mestras não se tocam, não se reforçam entre si, não apontam para
pessoais: Isaías Caminha é filho de padre e as relações entre seu nada, não formam um nó, laço algum. 11 A certa altura, em Gon-
pai e sua mãe - cautelosas, sem alegria - deixam transparecer o zaga de Sá, livro onde a aridez das vidas que o habitam apenas é
drama que ambos vivem, cada um a seu modo e segurido o seu ní- compensada pelo lirismo que, ocasionalmente, banha o texto e pelo
vel; não seria imotivado o suicídio de Floc; Efigênia, abandonada sentimento qii"e,da paisagem - natural ou construída - têm os
pelo noivo, definha e enlouquece; há o drama dos pobres, como dois amigos, 12 surge uma clareira, uma promessa de união real e
José Castanho de Meneses, de vida errante, instalando-se afinal de aventura. "Os poetas dizem que o Amor é irmão da Morte",
numa casa de subúrbio, sonhando em ser engenheiro e não se des- comenta o escritor, ironizando depois a afirmação, num artigo li-
fazendo dos seus poucos livros (Maravilhas da Ciência, As Gran- geiro sobre os sonhos. 13 Na única página de Vida e Morte de M.
des Invenções). Nunca, porém, cerra-se o texto em torno desses J. Gonzaga de Sá em que surge a possibilidade de romper um per-
nódulos; há sempre qualquer coisa de solitário nos dramas; jamais sonagem o isolamento em que vivem todos eles, de franquear o ser
se adensam e explodem; casam-se as pessoas, mas o instante em a uma presença estranha que o anime e de modificar, por sua vez,
que mulher e homem se conhecem, em que um é atingido pelo ou- outro ser, amor e morte se fundem: Machado e Alcmena encon-
tro, não surge nos romances, salvo em Clara dos Anjos, que histo- tram-se e conversam num velório. Não existem, na Literatura Bra-
ria uma sedução (não um amor); a vida matrimonial é morna, os sileira, muitas cenas que sejam, como esta, tão delicadas e tocantes.
casamentos - apresentados, ironicamente, como a única finalidade
A conversa, trivial a princípio, tinge-se pouco a pouco de reflexões,
da mulher - poucos e não essenciais para o romance; embebe es-
anseios da jovem transparecem. Alcmena, que morou na cidade,
sas narrativas, em maior ou menor grau, um ácido desagregador;
vive agora no subúrbio (houve, portanto, uma redução na sua
lembram, elas, um conjunto de peças fingindo um mecanismo, algu-
vida) e sonha com o status burguês: casa em Botafogo, um carro.
mas peças engrenam-se, mas não constituem uma organização no
As visões de reforma social, que o narrador opõe às da insatisfeita
verdadeiro sentido do termo e, quando se esboça uma articulação,
suburbana, assustam-na: a esperança, mesmo infundada, de me-
eis que um mecânico invisível intromete-se e desfaz o atrito, isola
lhores dias alimenta a sua vida pálida. Machado, enquanto conver-
as peças, reinstaura o princípio do isolamento.
sa, registra a sua "tez macia, os cabelos castanhos, as mãos longas
Se, em Isaías Caminha e Policarpo Quaresma, romances sem
e bonitas, um pouco estragadas pelo trabalho doméstico ... " Vê-
conflitos no sentido tradicional, isto é, onde uma vontade não é
contrariada por outra, onde um interesse não vai ameaçar um in- 11 Cf. SOURIAU, Etienné. Les Deux' Cent Mil/e Situations Dramatiques.
teresse oposto, configuram-se apesar de tudo formações fraudadas Diz Etienne Souriau, precisamente, que o drama "é a experiência de uma
de conflito e crise, nada de semelhante encontraremos em Vida e cessação de isolamento. E o fato coletivo de um pequeno grupo humano
no interior do qual se chocam forças arquitetonicamente estruturadas."
Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Fala Augusto Machado, na pri- (p. 56.) Utiliza com propriedade uma comparação musical: "o arabesco
meira página do capítulo XI, de uma "noite má, povoada de recor- de cada destino individual constitui uma melodia; mas a correlação dessas
diversas vozes .concertantes se estrutura em cada momento sobre acordes
dações amargas" e que o pusera "de mau humor, irritado, covarde- ( ... ) Tais acordes, que constituem o 'fato harmônico' na música teatral,
mente desejoso de fugir para lugares longínquos"; diz fugir de si são as situaçõés." (p. 49.)
mesmo, dos seus pensamentos e angústias. Apesar da alusão, todos 12 Escrevendo no n.O 3 da revista Floreal, edição de 12/11/1907, sobre
os motivos desse estado de espírito continuam na sombra. Na som- um livro hoje esquecido de Domingos Ribeiro Filho, deixa transparecer
o .seu apreço por "essa transcendental comunicação do homem com as
bra permanece a razão por que seu velho amigo,. obsessivamente, cousas." 1907 é justamente o ano em que escreve quase todo o Gonzaga
de Sã. (V. BARRETO, L. Impressões de Leitura. p. 188.)
10 Id., ibid., p. 214. 13 ln: Coisas do Reino do Jambon. p. 250.
56 CAPo III - LIMA BARRETO: OS ROMANCES PROJEÇÕES DO TEMA DO INSULAMENTO. •• 57

-se, pelo modo como sustenta o diálogo com o estranho, homem as que lhes sucedem. AÍ reina, solerte, o demônio da separação.
lido e inclinado a refletir, que as suas leituras são bem poucas, mas Sempre no mesmo grau? Não. Há uma certa relação de causa e
sonhar com Botafogo não lhe embotou o espírito. É atenta à vida efeito (embora limitada) em Clara dos Anjos; o mesmo em Poli-
interior e sua voz nos soa natural ao confessar: "Quando a gente carpo Quaresma, onde assinalamos o amortecimento de incidentes
está alegre dá vontade de dançar, de cantar - não é? Parece que carregados de tensão; seria Numa e a Ninja, quando muito, uma
dentro de nós há muita coisa de mais, molas, um mecanismo que derrisória imitação da causalidade; nas Recordações do Escrivão
nos empurra ... " Não se sabe a importância que têm para Ma- [saías Caminha, apenas traz conseqüências (mas não conse-
chado estas reflexões ingênuas, talvez porque esteja atento à figura qüências dramáticas) a ida do pseudo-memorialista ao bordeI, on-
da jovem, sentada junto à janela: "levantou devagar um braço e de encontra Ricardo Loberant, diretor de O Globo; em Gonzaga
apanhou, com os seus longos dedos abertos em leque, alguns cabe- de Sá, esvaem-se por completo as conexões exteriores entre as vá-
los que lhe caíam pela testa". O flagrante e a conversa, cheios de rias unidades temáticas, que giram em torno de dois fulcros impre-
frescor, fazem-nos esquecer o morto e embora só haja, na seqüên- cisos e móveis, o cronista e seu amigo morto.
cia, uma única alusão à noite vista além da janela, penetra-nos a Não afirmemos, porém, serem pobres de conflito todos esses
presença do mundo exterior, em parte porque Augusto Machado, livros. Manifesta-se o conflito, por vezes, não intrinsecamente, não
antes de apresentar-nôs sua interlocutora, descreve o anoitecer e em no próprio romance e sim na escolha do tema, bem como na manei-
parte porque a estrela vista parece ocupar toda a janela e liga-se ra de tratar Lima Barreto o tema. É o que se nota, fora do roman-
aos olhos de Alcmena: "Pousei o meu olhar nos seus olhos revira- ce, na sua produção jornalística, reveladora de uma incompatibili-
dos, e segui deles até uma estrela que brilhava muito próxima das dade radical entre o autor e a estrutura social que o cerca: o assunto
noSSas cabeças." Afinal, "levantou-se e me apertou a mão demo- é sempre o meio - a política, as desigualdades sociais, a alienação
radamente, para sair." Desaparece da sala e do romance. Seu apa- sob todos os aspectos - e a expressão atinge não raramente um
.recimento, tão cheio de promessas, não evolui. 14 tom de franca rebeldia. Espraia-se a combatividade do escritor em
A conversação entre Augusto e Alcmena, evidentemente, não textos que designamos um tanto vagamente como sátiras, mas que
é o único episódio a não evoluir neste romance e nos outros do confinam o âmbito da ficção, sem nele ingressarem decisivamente.
autor .. Se nele nos detivemos, é que - à parte o seu poder sugesti- Sabem os leitores de Lima Barreto que nos reportamos aqui a Os
vo - nenhum outro, considerado mediante a visão ordinária que Bruzundangas. Esta inclinação, que seria expressa ficcionalmente,
se tem do romance, insere-se tão perfeitamente naquela classe de de maneira um tanto apologal, nos "Contos Argelinos", incluídos
motivos que conduzem a uma peripécia, a uma alteração essencial em Histórias e Sonhos, conduz principalmente a Numa e a Ninja,
na problemática existência dos heróis novelescos. Observa-se en- não sendo um simples acaso se reencontramos, neste romance de
tão que, assim como as personagens de Lima Barreto não atuam 1915, o Doutor Bogóloff de 1912, protagonista de aventuras extra-
jamais umas sobre as outras, mantendo-se isoladas num grau que o vagantes em um país grotesco, molde da grotesca República (tão
romance ordinariamente não comporta, sucedem-se nestes livros as pouco platônica, aliás) de 1917. Em Numa e a Ninja, transparece
unidades narrativas, também elas autônomas e justificadas tão-só a oposição autor/sociedade, mas esse conflito não imanta o roman-
pelo vago passar dos dias. Não são os eventos, em Lima Barreto, ce, que, se bem indispensável a uma compreensão ampla do escri-
geradores de eventos, não formam - não pretendem formar - tor, aparenta-se demais a uma crônica, a uma lamentação ilustrada
aquela cadeia, firme, coerente, inexorável, concebida como símbolo dos costumes, a um espelho de deformação e escarmento, faltando-
do inexorável, que comanda o ritmo de tantas obras dramáticas e -lhe autonomia novelesca. Parcialmente, repete-se o fenômeno em
de que Édipo Rei é o ex~mplo máximo. Clara dos Anjos, onde, embora Cassi Jones, contrariando, segundo
b princípio subjacente de que, na medida do possível, nada, vimos, uma tônica das personagens de Lima Barreto, seja justifica-
nesse universo sutilmente premonitório, deve unir-se, harmoniza em
Llma-Bãrreto as unidades mínimas do relato - que não decorrem do pela ação (nociva e estreita). Há, entre Cassi e a despreparada
das que as antecedem e não provocam (ou provocam frouxamente) vítima, um processo qe envolvimento e queda, mas a noção de con-
flito exige irradiações mais complexas. O tema central, como em
14 A cena ocupa pouco mais de três páginas: 117 a 119. Numa e a Ninja, apenas ilustra algo que lhe é exterior, que não
58 CAPo III - LIMA BARRETO: OS ROMANCES PROJEÇÕES DO TEMA DO INSULAMENTO. •• 59

se integra ~o seu tecido e que corresponde a convicções do autor, dade, até a inépcia com que investe contra homens e fatos o me-
ligadas ao problema racial, convicções notórias e tão persistentes morialista, sublinha a intensidade da sua inadequação, a incon-
que, já em 1904, nas notas para esse relato, que só viria a concluir trolável exasperação nele causada pelo embate com o meio,
dezoito anos depois, precisava intencionalmente no Diário: "A se- embate de que sai mais ou menos destroçado, pelo menos em face
dução de Clara passara-se no dia 13 de maio". Vai afastar Clara das suas expectativas juvenis e que, mesmo na época em que "re-
dos Anjos de Numa e a Ninfa, enquanto expressões de um conflito corda", não consegue ver com isenção. 19 Nosso modo de ver, bem
exterior perceptível na obra, mas não integrado na constituição das entendido, não implica num"a crítica aos princípios estéticos de Olí-
personagens, a existência de uma figura de segundo plano, ligada .~ vio Montenegro. Apenas, em Literatura, as normas estão sempre
ao tema central por uma motivação das mais frágeis, o poeta Leo- expostas a imprevistos, a serem afetadas, em sua pertinência, por
nardo Flores. "Louco?! Haverá cabeça - exclama Leonardo _ novos fatores. No caso de [saías Caminha, romance escrito na pri-
cujo .maquinismo impunemente possa resistir a tão inesperados em- meira pessoa, a natureza especial do conflito sustentado pela per-
bates, a tão fortes conflitos, a colisões com o meio, tão bruscas e sonagem que "ficticiamente escreve, conflito no qual se reconhecem
imprevistas? Haverá?" 15 problemas pessoais do verdadeiro autor, o que tem levado a várias
distorções na visão corrente da sua obra, esse conflito, dizíamos,
pouco comulI). no repertório novelesco nos termos em que aqui se
y.. Ora, na galeria barretiana, não é Leonardo Flores, persona- apresenta (ou seja, sem irradiações interpessoais), justifica, ou, ao
gem secundário, o único a manifestar sua inadequação ao meio. menos, atenua certas dissonâncias, inaceitáveis se julgadas de um
Exatamente aí - nas relações entre o personagem e o meio - é ponto de vista ortodoxo. Por último, o enunciado, no romance em
que vamos localizar, em Lima Barreto, o conflito tradicionalmente primeira pessoa, contribui para caracterizar o personagem-narta-
estabelecido entre personagem e personagem. "A atitude de Isaías dor; e Isaías Caminha, como personagem, está bem longe do Con-
Caminha é frontalmente oposta à sociedade que retrata; e o mun- selheiro Aires.
do do jornal, reproduzido com tintas fortes e mão sem complacên- 'j~ Seria necessário determo-nos em Policarpo Quaresma e distin-
cia, vem a ser um microcosmo onde se concentram ou ecoam os guir as maneiras como se apresenta o conflito do seu protagonista
Xaspectos mais negativos dessa sociedade. O tom muitas vezes irre- com o meio? Precisaríamos insistir no desajuste entre a imagem que
verente do livro (panfletário a ponto de ser recebido com grande
discrição pela imprensa), 16 desagradaria na época ao crítico Me- ) cultiva do Brasil
tante? Todos e o delírios
os seus Brasil real,
- umabemlíngua
menosexclusivamente
confortador enossa,
exal-
deiros e Albuquerque; 17 e Olívio Montenegro, fiel à sua concepção
purista da arte romanesca, escreveria mais tarde que o grande contra o mundo, repudiam-no a opinião pública e o mundo natural,
pecado da obra de Lima Barreto era "querer transformar o ro- neutraliza-o a indiferença oficial e a mais descabida das suas ilu-
mance, o que deve ser obra de imaginação, e com todas as qua-
lidades emocionais e poeticamente sensíveis da ficção, em ins-
trumento de ação." 18 Mas, justamente, estabelecendo-se o
conflito, em [saías Caminha, entre o pseudo-narrador e asocie-
Iasões, a de falar "claro, franca e nitidamente" em nome da Justiça,
atividade
redunda emagrícola,
prisão e aem
reflexão
morte. político-administrativa - rebentam

19 Impressionou-se Lúcia Miguel Pereira com o fato de Lima Barreto, um


decênio após" a edição príncipe das Recordações do Escrivão /saías Caminha,
H In: Clara dos Anjos. p. 111. acrescentar à Breve Notícia de 1905, apresentando o livro, umas vinte
16 "O Correio da Manhã era atingido duramente pela pena dQ romancista", linhas onde contraria tudo que foi dito no romance. Isaías, que preferira
escreve Francisco de Assis Barbosa, acrescentando ser natural "que o uma existência obscura e retirada a fim de preservar a sua integridade,
grande jornal se fechasse em copas, olimpicamente, sem tomar conheci- vai a meio caminho de uma carreira política, "tem passeado pelo Rio com
mento sequer da existência do /saías Caminha e do seu criador." O espírito belas fatiotas, já foi ao Municipal, freqüenta as casas de chá". Admite
de coterie fez o resto. Os demais jornais também receberam de pé atrás o autor, divertindo-se com isto, que o seu personagem continua uma exis-
o livro inconveniente e atrevido." (Aldebarã - A Vida de Lima Barreto. tência autônoma fora do romance, contrariando inclusive - e foi isto que
p. 187-88.) - Lúcia Miguel Pereira, com alguma razão, censurou - certos pressupostos
17 Cf. a carta que, justificando-se, lhe escreve Lima Barreto. (Correspon- em que se baseava a fábula e nos quais se baseava o personagem. (V.
dência. Tomo 1.0, p. 198-99.) Hist6ria da Literatura Brasileira - Prosa de Ficção (De /870 a 1920). p.
18 In: O Romance Brasileiro. p. 153. 302-03.)
60 CAPo JlI - LIMA BARRETO: OS ROMANCES PROJEÇÕES DO TEMA DO INSULAMENTO.. . 61

~ Ignorado de todos, em surdina, mas fundo, raivoso, subsiste contemporâneo, buscam segurança "en projetant sa pensée sur les
o conflito de Gonzaga de Sá e também do seu amigo com o mun- choses, en construisant des plans et des figures qui empruntent à
do - ou com o Brasil. A juventude da personagem-título des- l'espace des géomêtres un peu de son assise et de sa stabilité"? 22
creve uma parábola perfeita de capitulação. Podendo ser "muita Em sua vigilância perante o mundo exterior, na espécie de inquie-
coisa", não quis: os meios para chegar a tanto não se conciliavam tude com que, em todos os sentidos, investigam o mundo que os
com o seu modo de ser, faz-se funcionário e vai indo, tão distan- circunda, parece comandá-Ios, sob formas novas e variáveis, o sen-
ciado da sociedade onde vive que, quando lhe comunicam a pro- timento de serem, na Terra, sobreviventes de um naufrágio onde
clamação da República, pergunta: "Mas qual?" Sua atitude perante bens essenciais e dos quais talvez nem possam recordar-se, desa-
a nossa realidade manifesta-se em tudo, sendo porém no diálogo do pareceram. Sufocam, esses pobres seres - conquanto não lhes
capítulo X que se vê até que ponto odeia a organização social que faltem relações de convivência e nenhum deles aborreça os conta-
conhece: "Eu julgo, disse ele, depois de estar algum tempo naquela tos humanos, antes anseiem por vivê-Ios em plenitude -, na crosta
postura, que os desgraçados se deviam matar em massa a um só ainda sem nome que os envolve: "ali, separados dela (da multi-
tempo." "Repara - há de dizer mais tarde, acentuando a dife- dão), silenciosos e inertes às forças que a moviam, nós estávamos
rença entre a sua visão da sociedade (que é também a visão de como fora da humanidade, como entes de outra estrutura, sem
Augusto Machado) e a inconsciência feliz das pessoas que os ro- nada de comum com eles." 23 Mesmo da amizade entre Gonzaga
deiam - como esta gente se move satisfeita. Para que iremos per- de Sá e o pequeno funcionário Romualdo, que "era forte e profun-
turbá-Ia com as nossas angústias e nossos desesperos? Não seria da", refere o biógrafo nunca haverem chegado à completa intimi-
'f mal?" 20 dade e que ambos "se amavam de um modo especial, distante". 24
Não é outra a atitude do biógrafo imaginário, que, assistindo A debilitação dos laços entre um ser e outro, seu isolamento
a um desfile militar, conclui: "Oh! A sociedade repousa sobre a difuso e invencível, a decórrente natureza destas fábulas, nas quais,
resignação dos humildes! Grande verdade, pensei de mim para sem que se dissolvam os dramas pessoais, é flagrante a ausência de
mim, recordando Lamennais". 21 Essa identidade une os dois so- conflito (que se desloca do plano interpessoal, configurando uma
litários, saídos do mesmo molde e talvez desdobramento de um só antinomia mais ou menos violenta entre o homem e o seu meio),
personagem, como já indicamos, e entre os quais não se instala um tudo se concilia, significativamente, com o interesse das persona-
conflito claro - deslocado, como nos outros livros referidos, para gens de Lima Barreto pelas coisas, interesse que manifestam através
o comércio entre eles e o exterior. de atitudes aparentemente opostas - a contemplação e a compul-
são deambulatória -, transformando os seus romances, invadidos
por aspectos do espaço - espaço natural, citadino, social - em
;X. O exterior, ou seja: o que os circunda, tanto social como matéria privilegiada para o estudo desse elemento constitutivo
fisicamente, a plataforma dos seus passos, o fundo contra o qual tão ligado ao tempo, entretanto menos analisado e em direção ao
se delineiam seus perfis equívocos, o cenário onde vivem e interro- X qual, desde o início, nos conduz a presente investigação. 25
gam, o espaço. Na verdade, como vem sendO' sugerido, constitui
o espaço um elemento da máxima importância e também dos mais
interessantes no universo ficcional de Lima Barreto. Isaías Cami-
nha, o poeta Leonardo, Ricardo Coração dos Outros, Policarpo 22 GENEITE, Gérard. Figures. p. 101. - comen'tando o livro de MATORÉ,
Quaresma, Augusto Machado, M. J. Gonzaga de Sá, acaso aproxi- Georges. L'Espace Humain.
23 In: Gonzaga de Sá. p. 132.
ma-os do mar, da vegetação, das luzes do entardecer, dos astros, 24 BARRETo, L. Op. cit., p. 116.
dos logradouros meio arruinados, a noção de não terem ligações 25 Parece-me desnecessário acrescentar que, numa zona mais profunda,
X fecundas e em profundidade com os demais? Conforme escreveria isto vai coincidir com a posição crítica assumida pelo escritor, consciente-
mente, em face da sociedade. Propenso, por outro lado, a auscultar, como
depois um ensaísta no outro lado da Terra, falando do homem tantos personagens seus, as coisas inanimadas, delas se aproxima com
interesse constante: a arquitetura e a paisagem surgem entre os seus mo-
20 In: Gonzaga de Sã. p. 132-33 e 137. tivos preferidos. Buscava também ele, no espaço dos geômetras, "un peu
21 BARRETO,L. Op. cit., p. 140. de son assise et de sa stabilité"?

(V,t.,_"~
CONCEITO E POSSIBILIDADES 63

Move-se o homem e recorda o passado. Nada disto o paci-


fica 2!"te o espaço e o tempo, entidades unas e misteriosas, desafios
constantes à sua faculdade de pensar. Acessíveis à experiência
imediata e esquivos às interrogações do espírito, sugerem - es-
CAPÍTULO IV paço e tempo - múltiplas versões, como se monstros fabulosos.
Vemos Santo Agostinho, meditando sobre o tempo, expressar o
ESPAÇO ROMANESCO célebre confronto entre a apreensão intuitiva e o pensamento dis-
cursivo: "O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo
perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer esta per-
Conceito e possibilidades. gunta, já não sei." 2 Muito antes, um discípulo de Parmênides,
Zenão de Eléia, concebe o paradoxo da flecha. A cada momento
Antes de examinarmos, como é nosso objetivo, o problema do tempo, lembra Zenão, ocupa a flecha disparada um determi-
do espaço nos romances de Lima Barreto - sua importância e nado espaço; ocupar um determinado espaço quer dizer: estar
decorrências -, especialmente em Vida e Morte de M. J. Gon- em repouso. Seria possível, somando vários repousos,~ obter o
zaga de Sã, tentaremos uma breve introdução teórica. Não cons- movimento, esse trânsito no espaço e no tempo? Conclui estar
tituirão as páginas seguintes, esperamos, uma monografia dentro imóvel a flecha que voa - e talvez tenha razão. Mergulhados,
da monografia, ou, alternativa ainda mais ambiciosa e que abso- pois, no espaço e no tempo, movendo-nos despreocupados no es-
lutamente não me atrai, um roteiro ond~ fossem enumerados e paço e no tempo, sendo nós próprios espaço e tempo, experimen-
classificados todos os casos possíveis de aparecimento e introdução t?mos a sensação de invadirmos uma região minada por inume-
do espaço no romance. Ronda em nossos dias a criação literária, ráveis armadilhas, ilusões e equívocos quando os nomeamos. E
implícito na convicção de que tudo nos contos pode e deve ser se ouvimos os que sobre o assunto meditam, eis-nos enredados
catalogado, previsto, encerrado num diagrama, algo de acadêmico entre as teorias relacionais (segundo as quais espaço e tempo são
e esterilizante, senão de estéril. Quando a arte de escrever, re- redutíveis a coisas e eventos) e as absolutas (que proclamam,
pousando no desafio às soluções canônicas, na insatisfação e no considerando o tempo e o espaço, sua irredutibilidade), ou entre
risco, tem pouco a ver com os Lineus: ela, como diz Gilles La- as teorias objetivas (para estas, os predicados temporais básicos
pouge, referindo-se à besta, em uma bela página onde precisa- apontam relações físicas entre instantes e acontecimentos também
mente fala do naturalista, "é imprevisível, e tenebroso o seu co- físicos) e as subjetivas, mais sutis (onde aprendemos que as enti-
ração". 1 dades temporais básicas são apenas instantes ou eventos ocorridos
Assim, em harmonia com a minha compreensão da Litera- na mente). Como, então, discorrer sobre o espaço, clandestina-
tura - terreno, para mim, jubiloso e móvel -, apenas buscarei mente, sem legitimar o conceito nas controvertidas fronteiras da
assentar certos pressupostos indispensáveis à conclusão do estudo. Filosofia? Ou, irresponsabilidade mais grave e talvez imperdoável,
Ver-se-á mais tarde, que nem sempre os mencionados pressu- como ocupar-se alguém do espaço dissociando-o do tempo?
postos encontrarão correspondência e exemplo nos livros de Lima Não só espaço e tempo, quando nos debruçamos sobre a
Barreto. Pode suceder, inclusive, que certas manifestações do narrativa, são indissociáveis. A narrativa é um objeto compacto
espaço lembradas a seguir erijam-se em simples ponto de refe- e inextrincável, todos os seus fios se enlaçam entre si e cada
rência: que não sejam exemplificadas nos textos do escritor, mas um reflete inúmeros outros. 3 Pode-se, apesar de tudo, isolar arti-
contrastadas, rompidas, negadas, submetidas ali a uma espécie de ficialmente um dos seus aspectos e estudá-Io - não, compreende-
desvio. Objetivando oferecú um exemplário tão variado quanto
2 AGOSTINHO. Confissões. p. 321.
possível da presença do espaço na ficção, chegaremos mesmo a 3 Referindo-se às ligações entre os personagens de um romance, escreve
esquecer um pouco o autor de Policarpo Quaresma. Criadores Guy"Michaud: "E não é senão por um esforço de abstração e de síntese
diversos invadirão as páginas que se seguem. que reconstituÍmos a linha aparente de uma ação, do mesmo modo que
nos apercebemos, a um só olhar, das linhas e das figuras que se isolam do
1 1n: Utopie et Civilisations. p. 180. pontilhismo da tapeçaria." (L'Oeuvre et ses Techniques. p. 128.)
64 CAPo IV - ESPAÇO ROMANESCO CONCEITO E POSSIBILIDADES 65

-se, como se os demais aspectos inexistissem, mas projetando-o Todos esses recursos da arte de contar exigem do escritor discer-
sobre eles: neste sentido, é viável aprofundar, numa obra literária, nimento e domínio dos meios expressivos. 7 Mas também o espaço
a compreensão do seu espaço ou do seu tempo, ou, de um modo proporciona grandes possibilidades de estudo, variadas e atraentes.
mais exato, do tratamento concedido, aí, ao espaço ou ao tempo: Observa-se que em algumas narrativas o espaço é rarefeito
que função desempenham, qual a sua importância e como os in- e impreciso. Mesmo então - excetuada, evidentemente, a even-
troduz o narrador. Note-se ainda que o estudo do tempo ou do tualidade de inépcia -, há desígnios precisos ligados ao problema
espaço num romance, antes de mais nada, atém-se a esse universo espacial: intenta-se, por um lado, concentrar o interesse nas per-
romanesco e não ao mundo. Vemo-nos ante um espaço ou um sonagens ou nas motivações psicológicas que as enredam; pode
tempo inventados, ficcionais, reflexos criados do mundo e que ser também que se procure insinuar - mediante a rarefação e
não raro subvertem - ou enriquecem, ou fazem explodir - ~ ~!nprecisão do espaço - que essas mesmas personagens e as
nossa visão das coisas. 4 Afirma, por isto, A. A. Mendilow, na relações entre elas são mais ou menos gerais, eternas por assim
"Conclusão", justamente, de um ensaio sobre O Tempo e o Ro- dizer, carentes, portanto, de significado histórico ou sociológico:
mance, que, realizando um estudo literário "ou, mais verdadei- de significado circunstancial. Entretanto, inclusive neste caso,
ramente, de certos aspectos de uma forma particular de literatura", alcançam em geral vibração mais intensa aquelas obras onde o
seriam irrelevantes "teorias teológicas, metafísicas, matemáticas e espaço atua com o seu peso. A impossibilidade de ingresso num
psicológicas." 5 Mais ou menos o mesmo adverte Robert Lidell determinado espaço, espaço que ocupa o centro do romance exa-
em Some Principles o/ Fiction: "e não são necessárias aqui espe- tamente por ser inacessível - e sem o qual não existiria a obra
culações metafísicas sobre a natureza do Tempo". 6 Seja-nos en- - é o tema central de O Castelo, de Franz Kafka. A presença
tão permitido não apenas isolar, de modo um tanto arbitrário, inelutável desse espaço, o castelo, em nada restringe a impor-
espaço e tempo, como manipular, com ligeireza, palavras digni- tância simbólica do relato, seu caráter a-histórico, não-circunstan-
ficadas - sacralizadas, diríamos - por um solene passado me- cial. "Não se trata de um castelo ou de um verdadeiro domínio feu-
tafÍsico. dal, mas sim de uma grande simbologia. Imediatamente o próprio
Havendo, desde sempre, desafiado os filósofos, adquire o K. tomará conhecimento disso, integrando-se assim mesmo nessa
problema do tempo, neste século, uma importância dramática, afe- totalidade mÍtica, pois é assim que o homem pode situar-se face
tando visivelmente outros domínios do espírito. Experiências poé- à realidade globaL" S Também Herman Melville confia à vastidão
ticas recentes opõem-se à apreensão linear e esculturas movem-se, marinha, ao espaço concebido numa de suas expressões mais
saltando decididas para uma inserção mais funda no tempo. A grandiosas, a função de sugerir a extensão da luta entre o homem
ficção tem sido particularmente sensível ao seu fascínio - e, não e o seu destino. Que pode haver de mais empolgante, esse an-
menos, os estudos literários. gustiado Capitão Ahab cruzando o oceano à procura de Moby
Decerto, há correlações muito claras entre o tempo e a Lite- Dick, fazendo do encontro com a baleia branca a única razão
ratura, arte temporal, especialmente no recinto da arte narrativa, de viver - e que outro cenário poderia conferir mais densidade
onde tanta importância assumem os conceitos de crescendo, adia- e altura ao seu drama? Toda uma linhagem de romance de
mento, salto, ritmo, anticlímax, clímax, troca de tempo, retros- aventuras vai buscar no mar força e mistério - e são ainda
pecto e vidência, todos ligados estreitamente à ação, não se de- o mar e. os navios mercantes o grande tema de Conrad. O

, vendo esquecer a importância do chamado tempo psicológico.

4 Não esqueçamos, por exemplo, as obr.ls construídas como que fora do


esforço de Lord Jim no sentido de reconstruir "penosamente
o respeito de si mesmo numa longa vida de perigo, luta, dedica-

tempo e as iluminadas por outra espéci" de tempo, mítico ou religioso, 7 O autor, numa experiência realizada em 1972 na Faculdade de Filosofia,
como a tetralogia de José, de Thomas Mann. Vê José, enquanto ouve Ciências e Letras de Marília (SP), orientou alguns grupos de alunos, que
as lições de Eliezer, a infinda I'erspecti Ia da; figuras do mestre, "que escreveram, conjuntamente, várias narrativas. Foi, em todos os casos, o
diziam todas 'eu' pela boca da presente manLestação." (O Jovem José. tempo, o problema que os inexperientes (não, porém, malogrados) contistas
p. 35-36.) tiveram mais dificuldade em solucionar. Seus relatos, nas primeiras reda-
5 In: O Tempo e o Romance. p 262. ções, imobilizavam-se ou voavam, faltando-lhes fluência e harmonia.
6 In: Some Principies of Fiction. p. 59. S KOKOS, Sérgio. Franz Kafka e a Expressão da Realidade. p. 107.
66 CAPo IV - ESPAÇO ROMANESCO CONCEITO E POSSIBILIDADES 67

ção",9 prende-se ao naufrágio do Patna, onde soçobram igual- ordinário (fábrica, máquina, comunidade alienígena mantida à dis-
mente seus sonhos de heroísmo. Jean Paris, que viria a estu- tância) e que algum fator faz parecer fantástico, impregna e do-
dar, em ensaio brilhante e rico de poesia, o espaço e o olhar mina a narrativa: A Hora dos Ruminantes; o conto-título de
nas artes plásticas, 10 salienta a importância do labirinto na obra A Máquina Extraviada; Sombras de Reis Barbudos. Se obras
de James Joyce. O mesmo tema, segundo Jean Paris, impregnaria fantásticas ou míticas beneficiam-se do espaço, utilizando-o como
outras obras mestras: "Como a viagem, a grande obra, a busca elemento dominante, pode-se prever sua importância em narra-
do Graal, o Labirinto propõe uma alegoria do destino humano. tivas de cunho declaradamente realista. Vidas Secas, de Graci-
A esse título, figura, senão diretamente, ao menos sob forma de liano Ramos, sendo romance social, é também um romance do
plano, de encadeamento das peripécias, em todos os romances espaço; seu tema dominante é um certo espaço antes habitável
que, de Simplicissimus à Montanha Mágica, de Wilhelm Meister e cuja transformação expulsa as personagens, triturando-as. Não
ao Retrato do Artista Quando Jovem, descrevem a infância, a só o sertão e a seca expulsam o homem, também uma cidade
educação de um herói." 11 Conhece-se, por outro lado, a impor- magnificente pode tornar-se ameaçadora, como em A Morte em
tância do labirinto, dos espelhos e outros elementos espaciais Veneza, de Thomas Mann. John dos Passos escreve a trilogia
na obra de Jorge Luís Borges, temática que muitos títulos seus V.S.A. (Paralelo 42, 1919 e Dinheiro Graúdo), afresco ambicioso,
evidenciam: As Ruínas Circulares, A Biblioteca de Babei, O Jar- onde as personagens - construídas, aliás, com solidez -, inca-
dim das Veredas Bifurcadas; Abenhacam el Bokhari, Morto no pazes de permanecer num só lugar, planejadas para não perma-
seu Labirinto; Os Dois Reis e os Dois Labirintos. Swift constrói necer num só lugar - deslocam-se continuamente de um lado
As Viagens de Gulliver a partir de um vínculo constante entre a outro dos EE.UU., alcançando inclusive regiões onde a nação
Gulliver e o espaço, obtendo variados efeitos de singularização. americana exerce influência - e o projeto visa a apreender não
Inventa países fantásticos, orientando a fantasia no sentido de só as cidades e as estradas americanas, mas o seu clima político
questionar idéias e problemas da sua época. Liliput, Brobdingnag, e econômico.
Laputa, Baluibarbi, Glubbdubrid, o País dos Houyhnhms, eis uma De modo algum procuramos, com os exemplos dados, esta-
toponímia tão extravagante e inesperada como os lugares nomea- belecer mesmo de longe uma tipologia do espaço; eles constituem
dos. Espaço imaginário, igualmente importante e insólito, mas uma ilustração das suas possibilidades; reforçam, simultaneamente,
de natureza bem diversa o de Lewis Carroll. As aventuras de a importância que pode ter na ficção esse elemento estrutural
Alice efetuam-se em países, do Espelho ou das Maravilhas: aí, e indicam as proporções que eventualmente alcança o fator es-
há animais que falam, cartas de baralho adquirem existência pacial numa determinada narrativa, chegando a ser, em alguns
humana, reinam aparecimentos e desaparecimentos, instauram-se casos, o móvel, o fulcro, a fonte da ação. Lembraremos ainda
transformações (súbitas metamorfoses) como lei constante do a transcendência do espaço na Odisséia, anunciada a partir da
mundo e que, inclusive, não poupa a personagem, como se a conta- invocação. A circunstância de ocupar-se o Aedo, na llíada, da
minasse o espaço: "Ela continuava a crescer, a crescer, e logo teve Guerra de Tróia, já indica a presença que teria no poema o
de ajoelhar-se no assoalho: um minuto depois, já não dispunha espaço: luta-se pela defesa ou conquista de um espaço definido.
de lugar para manter-se de joelhos e tentava deitar-se, com um Enéias, vencido, partiria em busca de um lugar onde reedificaria
joelho' contra a porta e o outro braço dobrado por cima da ca- a Cidade e o Reino. Toda uma temática do espaço, sustentando
beça. Mesmo assim, crescia ainda e, como último recurso, pôs o poema virgiliano. O mesmo Virgílio, antes de ceder o lugar
a Beatriz, guiaria Dante Alighieri na sua peregrinação. A mais
um braço para fora da janela e um dos pés na chaminé, e disse
ambiciosa concepção literária do espaço, o espaço sobrenatural,
a si mesma: Mais do que isto, não posso fazer, aconteça o que
abrangendo o Inferno, o Purgatório e, afinal, o Paraíso, surge
acontecer." 12 Em José J. Veiga, um elemento aparentemente ao romper o século XIV. Os "mares nunca dantes navegados"
9 CANDIDO, Antonio. Tese e Antítese. p. 67. são o espaço privilegiado na épica de Camões. "O meio - como
10 ln: L'Espace et le Regard. diria o húngaro Jean Hankiss13 -, onde se move o herói de
11 ln: James Joyce par lui-même. p. 106.
12 ln: Alice's Adventures in Wonderland. p. 126. 13 "La Littérature et Ia Vie." In: Boletim de Letras. 1961, n.O 8. no
66 CAPo IV - ESPAÇO ROMANESCO CONCEITO E POSSIBILIDADES 67

ção",9 prende-se ao naufrágio do Patna, onde soçobram igual- ordinário (fábrica, máquina, comunidade alienÍgena mantida à dis-
mente seus sonhos de heroísmo. Jean Paris, que viria a estu- tância) e que algum fator faz parecer fantástico, impregna e do-
dar, em ensaio brilhante e rico de poesia, o espaço e o olhar mina a narrativa: A Hora dos Ruminantes; o conto-título de
nas artes plásticas, 10 salienta a importância do labirinto na obra A Máquina Extraviada; Sombras de Reis Barbudos. Se obras
de James Joyce. O mesmo tema, segundo Jean Paris, impregnaria fantásticas ou mÍticas beneficiam-se do espaço, utilizando-o como
outras obras mestras: "Como a viagem, a grande obra, a busca elemento dominante, pode-se prever sua importância em narra-
do Graal, o Labirinto propõe uma alegoria do destino humano. tivas de cunho declaradamente realista. Vidas Secas, de Graci-
A esse título, figura, senão diretamente, ao menos sob forma de liano Ramos, sendo romance social, é também um romance do
plano, de encadeamento das peripécias, em todos os romances espaço; seu tema dominante é um certo espaço antes habitável
que, de Simplicissimus à Montanha Mágica, de Wilhelm Meister e cuja transformação expulsa as personagens, triturando-as. Não
ao Retrato do Artista Quando Jovem, descrevem a infância, a só o sertão e a seca expulsam o homem, também uma cidade
educação de um herói." 11 Conhece-se, por outro lado, a impor- magnificente pode tornar-se ameaçadora, como em A Morte em
tância do labirinto, dos espelhos e outros elementos espaciais Veneza, de Thomas Mann. John dos Passos escreve a trilogia
na obra de Jorge Luís Borges, temática que muitos títulos seus V.S.A. (Paralelo 42, 1919 e Dinheiro Graúdo), afresco ambicioso,
evidenciam: As Ruínas Circulares, A Biblioteca de Babei, O Jar- onde as personagens - construÍdas, aliás, com solidez -, inca-
dim das Veredas Bifurcadas; Abenhacam el Bokhari, Morto no pazes de permanecer num só lugar, planejadas para não perma-
seu Labirinto; Os Dois Reis e os Dois Labirintos. Swift constrói necer num só lugar - deslocam-se continuamente de um lado
As Viagens de Gulliver a partir de um vínculo constante entre a outro dos EE.UU., alcançando inclusive regiões onde a nação
Gulliver e o espaço, obtendo variados efeitos de singularização. americana exerce influência - e o projeto visa a apreender não
Inventa países fantásticos, orientando a fantasia no sentido de só as cidades e as estradas americanas, mas o seu clima político
questionar idéias e problemas da sua época. Liliput, Brobdingnag, e econômico.
Laputa, Baluibarbi, Glubbdubrid, o País dos Houyhnhms, eis uma De modo algum procuramos, com os exemplos dados, esta-
toponÍmia tão extravagante e inesperada como os lugares nomea- belecer mesmo de longe uma tipologia do espaço; eles constituem
dos. Espaço imaginário, igualmente importante e insólito, mas uma ilustração das suas possibilidades; reforçam, simultaneamente,
de natureza bem diversa o de Lewis Carroll. As aventuras de a importância que pode ter na ficção esse elemento estrutural
Alice efetuam-se em países, do Espelho ou das Maravilhas: aí, e indicam as proporções que eventualmente alcança o fator es-
há animais que falam, cartas de baralho adquirem existência pacial numa determinada narrativa, chegando a ser, em alguns
humana, reinam aparecimentos e desaparecimentos, instauram-se casos, o móvel, o fulcro, a fonte da ação. Lembraremos ainda
transformações (súbitas metamorfoses) como lei constante do a transcendência do espaço na Odisséia, anunciada a partir da
mundo e que, inclusive, não poupa a personagem, como se a conta- invocação. A circunstância de ocupar-se o Aedo, na llíada, da
minasse o espaço: "Ela continuava a crescer, a crescer, e logo teve Guerra de Tróia, já indica a presença que teria no poema o
de ajoelhar-se no assoalho: um minuto depois, já não dispunha espaço: luta-se pela defesa ou conquista de um espaço definido.
de lugar para manter-se de joelhos e tentava deitar-se, com um Enéias, vencido, partiria em busca de um lugar onde reedificaria
joelho' contra a porta e o outro braço dobrado por cima da ca- a Cidade e o Reino. Toda uma temática do espaço, sustentando
beça. Mesmo assim, crescia ainda e, como último recurso, pôs o poema virgiliano. O mesmo Virgílio, antes de ceder o lugar
a Beatriz, guiaria Dante Alighieri na sua peregrinação. A mais
um braço para fora da janela e um dos pés na chaminé, e disse
ambiciosa concepção literária do espaço, o espaço sobrenatural,
a si mesma: Mais do que isto, não posso fazer, aconteça o que
abrangendo o Inferno, o Purgatório e, afinal, o Paraíso, surge
acontecer." 12 Em José J. Veiga, um elemento aparentemente ao romper o século XIV. Os "mares nunca dantes navegados"
9 CANDIDO, Antonio. Tese e Antítese. p. 67. são o espaço privilegiado na épica de Camões. "O meio - como
10 ln: L'Espace et le Regard. diria o húngaro Jean Hankiss13 -, onde se move o herói de
11 ln: James Joyce par lui-même. p. 106.
12 ln: Alice's Adventures in Wonderland. p. 126. 13 "La Littérature et Ia Vie." ln: Boletim de Letras. 1961, D.o 8. f"ío
CONCEITO E POSSIBILIDADES 69
68 CAPo IV - ESPAÇO ROMANESCO
Ora, como deveremos entender, numa narrativa, o espaço?
um romance ou de um drama, não se limita a contribuir para Onde, por exemplo, acaba a personagem e começa o seu espaço?
explicar o herói, suas origens espirituais, suas ações e suas reações. A separação começa a apresentar dificuldades quando nos ocorre
Ele emancipa-se, ( ... ) para ocupar, na hierarquia dos fatores, que mesmo a personagem é espaço; e que também suas recor-
um posto mais elevado do que lhe seria assegurado pelo seu ca- dações e até as visões de um futuro feliz, a vitória, a fortuna,
ráter de suporte, de atmosfera, de verdadeiro pano de fundo."
flutuam em algo que, simetricamente ao tempo psicológico, desig-
Este o pensamento de Leon Surmelian, cuja visão é também a
de um ficcionista: "O cenário (setting) pode ser o mais impor- naríamos como espaço psicológico, não fosse a advertência de Hugh
tante elemento numa história, como em Madame Bovary, e existe M. Lacey de que aos "denominados eventos mentais (percepções,
boa prosa narrativa que é antes de tudo descrição cuidadosa." 14 lembranças, desejos, sensações, experiências) não podemos, em
Já Robert Lidell toma posição diferente: "É tempo de inves- nenhum sentido habitual, atribuir localização espacial." 20 Exce-
tirmos contra o elemento descritivo na literatura." 15 Ainda: "Na tuando-se os casos, hoje pouco habituais, de intromissão do nar-
ficção, que mostra personagens em ação, o cenário terá provavel- ;ador impessoal mediante o discurso abstrato, tudo na ficção su-
mente um caráter mais negativo que positivo." 16 Concede, em gere a existência do espaço - e mesmo a reflexão, oriunda de
Some PrincipIes of Fiction, apenas uma página ao background, uma presença sem nome, evoca o espaço onde a proferem e exige
quase toda de transcrições: a primeira, de Remy. de Gourmont, um mundo no qual cobra sentido. Temos, pois, para entender
diz que "o cenário de um romance é coisa de bem pouca im- o espaço na obra de ficção, que desfigurá-Io um pouco, isolando-o
portância". 17 dentro de limites arbitrários.
Ora, é esse controverso e (pode Robert Lidell contestar?) "Descansou os embrulhos em cima da mesa nua - lê-se
amplo aspecto da arte romanesca que, variam ente visto, inven- num conto de Marques Rebelo -, ocasionando um vôo preci-
tado e tratado pelos criadores, permanece ainda - ao contrário pitado de moscas, dobrou o jornal com cuidado, obedecendo às
do que se observa em relação ao tempo -, insuficientemente suas dobras naturais, e escovava o chapéu, preto e surrado, quan-
iluminado por um esforço analítico. A carência, entretanto, tende do Dona Veva, pressentindo-o, perguntou da cozinha:
a ser suprida e Gérard Genette encoraja-se mesmo a indicar que, "- Você recebeu, Jerome?
no plano da ideologia geral, um fato parece certo: "é que o des-
crédito do espaço que tão bem exprimia a filosofia bergsoniana forma espacial". Corresponderia, a forma espacial, a uma ótica extra-
cedeu hoje lugar a uma valorização inversa, a qual diz à sua temporal e seria o resultado de uma ausência de harmonia entre o criador
e o mundo. Estuda, sob esse ponto de vista, Ezra Pound, T. S. Elliot,
maneira que o homem prefere o espaço ao tempo." 18 Mesmo no Proust, J oyce e um romance praticamente desconhecido no Brasil, Night-
romance de Proust, afetado a partir do' título geral pela realidade wood, de Djuna Barnes. Merecem toda a atenção os ensinamentos de
bergsoniana do tempo, uma realidade intuitivamente apreendida Antonio Candido, no seu ensaio "Da Vingança" (Tese e Antítese. p. 1-28),
onde, analisando O Conde de Monte Cristo, mostra a importância da
pela sensibilidade (oposição ao tempo da inteligência conceptual, altura e das profundezas no Romantismo. Lembra, nesse mesmo ensaio,
abstrato), começa-se a descobrir a importância do espaço. 19 que Proust desejava escrever um ensaio sobre os lugares elevados nos
romances de Stendhal, o que denuncia claramente o seu interesse pelo
Paulo, F,F.C.L. da U.S.P. p. 155, citado por COELHO, Nel1y Novaes. problema espacial no romance. Diz o narrador a Albertine, em A Prisio-
O Ensino da Literatura. p. 169. neira: "você veria em Stendhal um certo sentimento de altitude ligando-se
14 In: Techniques of Fiction Writing: Measure and Madness. p. 37. à vida espiritual: o lugar elevado onde Julien Sorel fica prisioneiro, a
111 In: A Treatise on the Novel. p. 110. torre no alto da qual está encarcerado Fabrício, o campanário onde o
16 LIDELL, R. Op. cit., p. 111-12. Padre Barnes se ocupa de astrologia e de onde Fabrício lança uma vista de
17 In: Some Principies of Fiction. p. 107. olhos tão bonita." (p. 323.) O leitor interessado nas possibilidades que ofe-
18 Op. cit., p. 107. rece o estudo do espaço na ficção, encontrará um exemplo admirável no
19 Sobre a paisagem ideal, ver CURTlUS, E. R. Literatura Européia e Idade estudo de Antonio Candido, a quem o assunto parece fascinar - "Degrada-
Média Latina. p. 190 et seqs. A revista Poétique. 1972, n.O 10, publica ção do Espaço". In: Revista de Letras. Assis, F. F. C. L. de Assis, v. 14.
um interessante extrato do livro de Joseph Frank. "La Forme Spaciale dans Analisa Antonio Candido a correlação funcional dos ambientes, das coisas
Ia Littérature Moderne." In: The Widening Gyre, Crisis and Mastery in e do comportamento em L'Assomoir.
Modern Literature. p. 244 et seqs. A tese de Joseph Frank, das mais 20 In: A Linguagem do Espaço e do Tempo. p. 20.
estimulantes, diz que "a literatura contemporânea evolui no sentido da
70 CAPo IV - ESPAÇO ROMANESCO CONCEITO E POSSIBILIDADES 71

"- Recebi, filha, respondeu pendurando o feltro no cabide "O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfian-
de bambu japonês, que atulhava o canto da sala, por baixo duma tri- ça? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o
cromia, toscamente emoldurada, representando o interior dum sub- cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles." 22
marino inglês em atividade na Grande Guerra." 21 Quando toma o bonde, Ana parece estar executando um ato
Eis um setor do espaço com personagens e situação. O inconseqüente: uma cena habitual na classe média, uma mulher
trazendo as suas compras. O leitor atento irá talvez considerar a
ambiente pequeno-burguês, pobre de adornos, com sua tri-
cromia ordinária e a sala tão exígua que um cabide de seguir um erro imperdoável da contista, a ausência de qualquer alu-
são aos outros. passageiros do bonde. Ana é como se seguisse num
bambu parece demais, tudo aí está. O delineamento do espaço,
bonde fantasmagórico. Quando ela vê o cego é que percebemos
processado com cálculo, cumpre a finalidade de apoiar as por que tomou o bonde; e por que o trajeto, até agora, realiza-se
figuras e mesmo de as definir socialmente de maneira indireta, num mundo desabitado. Viesse a pé ou de automóvel, poderia
como adiante veremos. Surge a sala, pressente-se a cozinha, deter-se à vista do cego que masca chicles, quando a breve cena,
divisa-se o homem e calcula-se aproximadamente um intervalo, breve e importante, tem de ser rápida, para que essa fugacidade
um espaço, entre ele e a mulher que o interroga. Essas comunique certa impressão de magia e de incerteza: uma aparição.
duas figuras (personagens) e a casa modesta onde se encontram O cego visto na rua logo fica "atrás para sempre" e, simples coisa
(espaço), ao mesmo tempo em que se opõem, completam-se. A vista, associa-se ao bonde, às ruas largas e ao vento úmido que
divisão, porém, entre espaço e personagem é realmente nítida ou anuncia "o fim da hora instável". Pela sua impessoalidade, pelo
deixa margem a dúvidas? Traz o homem alguns embrulhos, jornal seu caráter de coisa, inscreve-se no puro espaço, um elemento a
e usa chapéu. Podemos dizer, ao vê-Io, que o jornal, os embrulhos mais no espaço hostil em que, por algum tempo, Ana se move, an-
e o chapéu fazem parte do espaço? Compõem, nesse instante, o tes de apagar "a chama do seu dia." E se não vemos seres vivos
personagem, completando - material, social e psicologicamente no bonde e no trajeto, é para ressaltar a figura do cego, que assim
- a sua figura. Jornal e embrulhos ,ainda podem ser ocasionais; o nos surge solitária e como ampliada, coisa ocupando o vazio, numa
chapéu pertence ao personagem e concorre para a sua caracteriza- paisagem sem habitantes visíveis.
ção. (Não conhecia D. Casmurro "de nome e de chapéu" seu com- Inversamente, a tentativa de humanizar seres inanimados não
panheiro de trem?) Aquele mesmo chapéu, uma vez pendurado no os subtrai à condição de elementos espaciais, como no conto de
cabide de bambu japonês, pertencendo ainda ao personagem, as- Gustav Meyrink, citado por Wolfgang Kayser, "As Plantas do Dou-
socia-se ao móvel e passa a integrar o espaço. Há, portanto, entre tor Cinderela", em que o narrador, indo por um subterrâneo, vê
personagem e espaço, um limite vacilante a exigir nosso discerni- trepadeiras "com veios cor de sangue" e das quais surgem centenas
mento. Os liames ou a ausência de liames entre o mesmo objeto de olhos: "Eram olhos de todos os tamanhos e cores imagináveis
e a personagem constituem elemento valioso para uma aferição ( ... ) E parecia que todos eram partes arrancadas de corpos vivos,
justa. engastadas com uma arte inconcebível, privadas de sua alma huma-
Já em Clarice Lispector encontramos ("Amor", conto incluí- na e rebaixadas a um crescimento vegetativo. Quando, aproximan-
do em Laços de Família) um dos mais fascinantes exemplos de ser do-me, iluminei esses olhos, vi claramente que viviam, pois as pupi-
humano com função espacial: las logo se contraíram." 23 Trata-se de um conto inscrito claramente
"O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá ti- na tradição negra, mas o processo - com funções bem diversas e
num grau atenuado - é freqüente, como em Lima Barreto: "Con-
nha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem para-
siderei também a calma face da Guanabara, ligeiramente crispada,
do no ponto.
mantendo certo sorriso simpático na conversa que entabulara com
"A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente a grave austeridade das serras graníticas, naquela hora de efusão
parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
22 In: Laços de Família. p. 25.
21 In: Oscarina. p. 47. 23 In: Lo Grotesco. p. 174.
72 CAPo IV - ESPAÇO ROMANESCO CONCEITO E POSSIBILIDADES 73

e confidência." 24 Ou como no capítulo XII de Dom Casmurro: a entrevê? Elastecem ainda os seus limites outros indícios apa-
"Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmu- rentemente ociosos. O vôo precipitado das moscas, o estado do
rou de cima de si que não era feio que os meninos de quinze anos chapéu escovado pelo homem, a tricromia e a sua moldura abrem
andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrário, os o cenário e revelam-nos bastante sobre os arredores da casa, situa-
adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem os cantos da em bairro pobre, de condições sanitárias não ideais. O desen-
outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros rolar do conto vai confirmar tudo isto (e há ainda, antes do trecho
velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, transcrito, um carcomido relógio de parede, cujas pancadas soam
uma cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da
mesma opinião."
j como um ranger de ferros velhos), mas o que transcrevemos é su-
ficiente. Os limites, fornecidos pelo texto, do espaço físico, nãO""
Podemos, apoiados nessas preliminares, dizer que o espaço, ultrapassam a rigor o que acima registramos; para além do bairro,
no romance, tem sido - ou assim pode entender-se - tudo que, nada mais vemos. Dispensável acrescentar que os poucos móveis
intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que, inventa- . nomeados - mesa nua e cabide de bambu japonês -, proliferado-
riado, tanto pode ser absorvido como acrescentado pela persona-
res de espaços ainda mais potentes que a sala e a cozinha, aludem
gem, sucedendo, inclusive, ser constituído por figuras humanas, en-
tão coisificadas ou com a sua individualidade tendendo para ao restante da mobília ou a nomeiam em silêncio, quase como se
zero. 25 Difere, portanto, nossa compreensão do espaço, da de pudéssemos vê-Ia. "Necessitamos pormenores, que nos seja apre-
Massaud Moisés, para quem no "romance linear (o romântico, o sentada uma amostra do cenário, objeto, móvel, destinados a exer-
realista ou o moderno), o cenário tende a funcionar como pano cer uma função de insígnia." 27
de fundo, ou seja, estático, fora das personagens, descrito como um Outras coisas ainda são insinuadas nesse breve trecho (por si-
universo de seres inanimados e opacos." 26 nal, um caso dos mais simples) e não se deve concluir que só a
Deve-s~ ter presente, no estudo do espaço, que o seu horizon- análise as revele. A análise, aqui, limita-se a ordenar e a especifi-
te, no texto, quase nunca se reduz ao denotado. Por vezes, claro, car o que o leitor apreende com a percepção desarmada. Situam-
tende a fechar-se, como nas histórias policiais e de horror, onde -se as personagens do conto na periferia de alguma cidade e por-
proliferam as ilhas, as mansões solitárias, os poços, os calabouços, tanto da sociedade; pessoas de reduzidas posses, desconhecem ou
os subterrâneos, os quartos fechados, tudo indicando a existência não têm acesso ao estético, embora flutue em suas almas um anseio
de um seccionamento radical entre o mundo da narrativa e o mun- restrito de beleza; isto diz a tricromia do submarino, que nos situa
do da nossa experiência. O horizonte do subterrâneo de Gustav
Meyrink, por exemplo, com as suas pupilas florais, não o ultrapas-
I
no tempo (não muito depois da Grande Guerra, definida aí pela
ausência mesma do ordinal, obrigatório depois de 1945) e que su-
sa: este subterrâneo é um espaço fechado, monstruoso, único, her-
mético em todos os sentidos. A sala de Marques Rebelo, ao con- gere talvez algum desejo vago de evasão ou de um destino menos
trário, inserindo-se no mundo conhecido e na memória que possuí- insignificante; falta nesse espaço qualquer nota de alegria, para o
mos do mundo, transcende o que registra o texto. Eis o que lemos que concorrem os gestos do homem, dobrando cuidadosamente o
e vemos: uma sala e, fora de foco, suscitada por uma alusão tão jornal (expressão do seu respeito ante esse liame entre a sua exis-
branda que nos infunde a idéia de distância, a cozinha. Não se tência suburbana e o mundo) e escovando o chapéu "preto e surra-
pode dizer que a imagem casa esteja fora do texto: implícita, zona do", alusões à austeridade da sua vida, a hábitos de vestuário (in-
pouco iluminada, apenas pressentida, orla do nomeado, quem não dício temporal atenuado) e à necessidade de conservar os objetos
de uso pessoal, evidentemente pouco numerosos.
24 ln: Gonzaga de Sá. p. 39.
25 Dizemos que tem sido e não que é. Move constantemente o escritor a Observe-se que tudo aí converge, harmonicamente (persona-
necessidade de romper as normas, de contestar o que parece assentado. gens, ação, espaço e mesmo tempo, um tempo vagaroso, sugerido
Não seria, por exemplo, destituída de interesse uma narrativa na qual o pelo verbo "descansou", ao invés, por exemplo, de "jogou", e pela
espaço se construísse a partir da personagem. Tal narrativa, aliás, já tem
o seu modelo no Gênesis e em outros mitos cosmogônicos.
26 ln: Guia Prático de Análise Literária. p. 109. 27 BUTOR, M. Repertoire lI. p. 45.
74 CAPo IV - ESPAÇO ROMANESCO CONCEITO E POSSIBILIDADES 75

locução "com cuidado"), 28 para estabelecer, desde o início, a idéia te sentido, aproximamo-nos do conceito de Nelly Novaes Coelho.
geral do conto. Objetiva o escritor apresentar dois quadros con- Diríamos, ainda como exemplo, que o cortiço, em Aluísio Azevedo,
tíguos de pobreza: os hábitos domésticos de um pequeno funcio- é espaço, simplesmente; mas o veremos parcialmente se não o en-
nário e a desolação da mulher após a sua morte, ilustrando assim tendermos, pelo estilo de vida em que implica, com todo um qua-
o desamparo e, em conseqüência, o caráter sombrio de um deter- dro de hábitos, de relacionamento humano, de perspectivas etc.,
minado setor da sociedade. também como espaço social. Tanto pode o espaço social ser uma
Será correto dizer que as indicações cênicas de Marques Re- época de opressão como o grau de civilização de uma determinada
belo nos conduzem a um espaço social? Menciona Nelly Novaes área geográfica. Outras tantas manifestações de tal conceito podem
Coelho o ambiente natural como equivalente à paisagem, natureza ser indentificadas na classe a que pertence a personagem e na qual
livre; o ambiente social seria a natureza modificada pelo homem: ela age: a festa, a peste ou a subversão da ordem (manifestações
casa, castelo, tenda etc. 29 Parece-nos, contudo, que se pode fazer de rua, revolta armada).
da expressão um uso mais amplo, se bem menos nítido. Como no- O espaço social, entretanto, não se confunde com a atmosfe-
mearíamos, senão assim, certo conjunto de fatores sociais, econô- ra. Estando a noção de atmosfera associada ao espaço e denotan-
micos e até mesmo históricos que em muitas narrativas assumem do, inclusive, o ar que respiramos, tende-se a concebê-Ia, no estudo
extrema importância e que cercam as personagens, as quais, por da ficção, como uma manifestação do espaço, ou, no mínimo, como
vezes, só em face desses mesmos fatores adquirem plena significa- sua decorrência. Compraz-se Lima Barreto em descrever aspectos
ção? A que se refere, por exemplo, Francisco de Assis Barbosa, do espaço social durante a Revolta da Armada; mas é uma atmos-
quando diz não ser possível "proceder-se à revisão da nossa histó- fera de magia, de irrealidade, que defrontamos na noite enluarada,
ria republicana, do 15 de novembro ao primeiro 5 de julho", pres- quando Floriano Peixoto, em plena Revolta, encontra Policarpo
cindindo da obra de Lima Barreto? Ao tempo ou ao que propomos Quaresma no quartel. Já em "Penélope", de Dalton Trevisan, dra-
denominar espaço social? A noção de um espaço assim compreen- ma de suspeita e ciúme anacrônicos, vivido por Um casal de velhos,
dido parece-me aliás bem útil quando apreciamos romances co- o espaço é bem pouco significativo, surgindo apenas como pretexto,
mo [saías Caminha, Policarpo Quaresma ou Numa e a Ninfa. Con- algumas vezes, para manifestações do estado de espírito do velho:
fronta-se o futuro escrivão com um espaço social caracterizado "Afastou a cortina, descobriu na sombra do muro o vulto daquele
com muita precisão (ao mesmo tempo que o espaço físico) e não homem. Ficou ali, a mão trêmula na cortina, até o outro ir-se
estaremos longe da verdade se dissermos que, não obstante a im- embora." "Reconstitui os passos da mulher pela casa: se os móveis
portância da paisagem, maior é a importância - e também o efei- têm pó ou não, se a terra nos vasos de flores está molhada ou
to sobre Isaías - do espaço social. A luta de Quaresma, travada seca ... "30 Concentra-se no texto, calculada com sabedoria, uma
contra a terra, é ordinariamente empreendida contra entidades atmosfera crescente de angústia, nascida exclusivamente de alusões
menos concretas: circunstâncias sociais, econômicas e históricas aos pequenos gestos do velho - as suas palavras, poucas, nada
nas quais está mergulhado. A Revolta da Armada, tão importante dizem - e para a qual, ao contrário do que observamos em outro
para o seu destino e essencial no plano' do romance, cria um cená- conto do autor, "Na Praça", não concorre o espaço.
rio específico, inconfundível, não construído com volumes, linhas, No exemplo de Clarice Lispector ("Amor"), a atmosfera do
cores, mais respirável e que nos parece necessário precisar. Certo conto, igualmente opressiva, é obtida por intermédio da persona-
gem, mediante uma subjetivação do cenário. Baseia-se o conto
espaço social, não a totalidade de um povo, mas o mundo da po-
nas relações de Ana com o exterior. Isto num grau tão elevado que
lítica como expressão desse povo, cerca os títeres de Numa e a o horizonte do espaço, pode-se dizer, coincide com o mundo. Re-
Ninfa. A categoria das edificações existentes no local onde vive conhecemos a cidade e o mundo natural, para nós familiares, e
ou se move a personagem pode indicar o seu espaço social; e, nes- nada ignoramos, conquanto pouco se diga, sobre o nível social de
Ana e os problemáticos valores da classe a que pertence, mas essas
28 Lembra Gérard Genette que a designação mais s6bria de uma ação
pode ter algum caráter descritivo e que "nenhum verbo é inteiramente mesmas coisas, mediante recursos verbais sabiamente agenciados,
isento de ressonância descritiva." (Figures lI. p. 57.)
29 10: O Ensino da Literatura. p. 51. 80 10: Novelas Nada Exemplares.
76 CAPo IV- - ESPAÇO ROMANESCO

revestem-se de estranheza, com o que o espaço é invadido pelo


símbolo, pela magia, pelo pesadelo, a tal ponto que o Jardim Bo- '
tânico, "onde vitórias-régias boiavam monstruosas" e a "decompo-
sição era profunda" não está muito longe do subterrâneo de Mey-
rink, com às suas pupilas vegetais. As coisas que cercam Ana CAPÍTULO' V
- frutas, dálias, tulipas, vitórias-régias, pequenas flores espalhadas
na relva - são quase todas prestigiosas, ligadas, inclusive, aos
topoi do bosque e do lugar ameno. 31 A personagem, atingida e de- ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇAO
sorganizada pelo encontro com o cego, transmuda-as, segregando
em tomo de si, a partir de elementos naturalmente aprazíveis, uma
atmosfera de horror: "O Jardim era tão bonito que ela teve medo Ambientação franca. Ambientação reflexa. Ambientação
do Inferno." 32 Já em Fronteira, de Comélio Penna, a atmosfera oblíqua. - Ordem e minúcia. - A perspectiva.
de mistério e alucinação emana igualmente do espaço (espaço na-
tural e espaço doméstico, a paisagem acidentada de Minas e os Tentamos,
pesados móveis coloniais), da fábula e da mórbida constituição psi- ranhado da obranoliterária
capítuloe, anterior,
dentro doidentificar
possível,o tom'á-Io
esnaço no ema-
familiar
cológica da personagem que narra os acontecimentos - ou o modo ao leitor. 1 Acentuavam, os exemplos apresentados, sob que varia-
como reage ante eles. das formas pode o espaço surgir nos relatos e os graus de impor-
Antonio Soares Amora, em estudo sobre Iracema, escreve tância que assume. Outra é a perspectiva em que agora nos si-
tuamos.
que, além da "pintura de seus elementos naturísticos (a paisagem,
os fenômenos meteóricos, os animais)", "o desenvolvimento da O estudo de uma determinada personagem será sempre incom-
ação do romance" e "a concepção de seus caracteres" realizam-se pleto se também não for investigada a sua caracterização. Isto é:
os meios, os processos, a técnica empregada pelo ficcionista no
"em função unicamente da obtenção de uma atmosfera poética". 33
sentido de dar existência à personagem. Pode-se dizer, a grosso
Chega a sugerir que a contribuição do espaço para o estabelecimen-
modo, que a personagem existe no plano da história e a caracteri-
to dessa atmosfera é secundária, quando diz que "a natureza é sem-
pre elemento tão importante na formação da atmosfera lírica do zação no plano do discurso. A personagem diz respeito ao objeto
romance, quanto a ação e os caracteres que ela envolve e em si; a caracterização, à sua execução. Esta a distância que sub-
siste entre espaço e ambientação. Por ambientação, entenderíamos
plasma." 34
Diremos, .finalizando, que a atmosfera, designação ligada à o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a pro-
vocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a
idéia de espaço, sendo invariavelmente de caráter abstrato - de
angústia, de alegria, de exaltação, de violência etc. -, consiste em aferição do espaço, levamos a nossa experiência do inundo; para
algo que envolve ou penetra de maneira sutil as personagens, mas ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos ex-
não decorre necessariamente do espaço, embora surja com freqüên- pressivos do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte nar-
rativa.
cia como emanação deste elemento, havendo mesmo casos em que
o espaço justifica-se exatamente pela atmosfera que provoca. Conquanto a apreensão simultânea da imagem seja em grande
parte ilusória, exigindo o que poderíamos chamar uma leitura
.(não linear, mas fragmentária ou sinuosa), o certo é que o quadro,
a sala, a paisagem, apresentam-se aos nossos sentidos como uma
totalidade. Atenda-se ainda à circunstância de que toda contempla-
31 Cf. CURTIUS, E. R. Literatura Européia e Idade Média Latina. p. 202 ção é um fenômeno nada simples e infinitamente matizado: diante
et seqs.
32 LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. p. 29.
33 "Iracema - um Romance de Atmosfera." ln: Classicismo e Romall- 1 'Problema delicado, em trabalho que exija certas premissas teóricas, o do
destinatário. Corre-se o risco de parecer demasiado explícito ao leitor
tismo no Brasil. p. 127.
informado; ou obscuro ao leitor pouco afeito à matéria tratada. Nossa
84 AMORA, Antonio Soares. Op. cit., p. 128. tendência, aqui, é pela primeira alternativa.
76 CAPo IV- - ESPAÇO ROMANESCO

revestem-se de estranheza, com o que o espaço é invadido pelo


símbolo, pela magia, pelo pesadelo, a tal ponto que o Jardim Bo- -
tânico, "onde vitórias-régias boiavam monstruosas" e a "decompo-
sição era profunda" não está muito longe do subterrâneo de Mey-
rink, com às suas pupilas vegetais. As coisas que cercam Ana CAPÍTULO- V
- frutas, dálias, tulipas, vitórias-régias, pequenas flores espalhadas
na relva - são quase todas prestigiosas, ligadas, inclusive, aos
topoi do bosque e do lugar ameno. 31 A personagem, atingida e de- ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO
sorganizada pelo encontro com o cego, transmuda-as, segregando
em torno de si, a partir de elementos naturalmente aprazíveis, uma
Ambientação franca. Ambientação reflexa. Ambientação
atmosfera de horror: "O Jardim era tão bonito que ela teve medo
do Inferno." 32 Já em Fronteira, de Cornélio Penna, a atmosfera oblíqua. - Ordem e minúcia. - A perspectiva.
de mistério e alucinação emana igualmente do espaço (espaço na-
tural e espaço doméstico, a paisagem acidentada de Minas e os Tentamos,
ranhado da obranoliterária
capítuloe,anterior,
dentro doidentificar
possível,o torn'á-Io
esnaço no ema-
familiar
pesados móveis coloniais), da fábula e da mórbida constituição psi-
cológica da personagem que narra os acontecimentos - ou o modo ao leitor. 1 Acentuavam, os exemplos apresentados, sob que varia-
como reage ante eles. das formas pode o espaço surgir nos relatos e os graus de impor-
Antonio Soares Amora, em estudo sobre Iracema, escreve tância que assume. Outra é a perspectiva em que agora nos si-
tuamos.
que, além da "pintura de seus elementos naturísticos (a paisagem,
os fenômenos meteóricos, os animais)", "o desenvolvimento da O estudo de uma determinada personagem será sempre incom-
ação do romance" e "a concepção de seus caracteres" realizam-se pleto se também não for investigada a sua caracterização. Isto é:
os meios, os processos, a técnica empregada pelo ficcionista no
"em função unicamente da obtenção de uma atmosfera poética". 33
sentido de dar existência à personagem. Pode-se dizer, a grosso
Chega a sugerir que a contribuição do espaço para o estabelecimen-
to dessa atmosfera é secundária, quando diz que "a natureza é sem- modo, que a personagem existe no plano da história e a caracteri-
pre elemento tão importante na formação da atmosfera lírica do zação no plano do discurso. A personagem diz respeito ao objeto
romance, quanto a ação e os caracteres que ela envolve e em si; a caracterização, à sua execução. Esta a distância que sub-
siste entre espaço e ambientação. Por ambientação, entenderíamos
plasma." 34
Diremos, .finalizando, que a atmosfera, designação ligada à o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a pro-
idéia de espaço, sendo invariavelmente de caráter abstrato - de vocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a
angústia, de alegria, de exaltação, de violência etc. -' consiste em aferição do espaço, levamos a nossa experiência do mundo; para
algo que envolve ou penetra de maneira sutil as personagens, mas ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos ex-
não decorre necessariamente do espaço, embora surja com freqüên- pressivos do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte nar-
rativa.
cia como emanação deste elemento, havendo mesmo casos em que
o espaço justifica-se exatamente pela atmosfera que provoca. Conquanto a apreensão simultânea da imagem seja em grande
parte ilusória, exigindo o que poderíamos chamar uma leitura
.(não linear, mas fragmentária ou sinuosa), o certo é que o quadro,
a sala, a paisagem, apresentam-se aos nossos sentidos como uma
totalidade. Atenda-se ainda à circunstância de que toda contempla-
31 Cf. CURTIUS, E. R. Literatura Européia e Idade Média Latina. p. 202 ção é um fenômeno nada simples e infinitamente matizado: diante
et seqs.
32 LISPECTOR,Clarice. Laços de Família. p. 29.
33 "Iracema - um Romance de Atmosfera." In: Classicismo e Roman- 1 'Problema delicado, em trabalho que exija certas premissas teóricas, o do
tismo no Brasil. p. 127. destinatário. Corre-se o risco de parecer demasiado explícito ao leitor
34 AMORA, Antonio. Soares. Op. cit., p. 128. informado; ou obscuro ao leitor pouco afeito à matéria tratada. Nossa
tendência, aqui, é pela primeira alternativa.
78 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO
AMBIENTAÇÃO FRANCA... 79

do quadro, só a visão é invocada, mas a intensidade da sua leitura veis à linearidade da linguagem. Entretanto, lê-se em Leon Sur-
vai depender do estado de espírito e, principalmente, do nível cul- melian, não pode existir "pure action in a vacuum": "a moderna
tural do contemplador; a temperatura, o silêncio reinante ou os história realista é ação e cenários." 5 Ou seja: alternam-se ou mes-
ruídos, eis também alguns pormenores que poderão pesar quando clam-se, nos relatos, ação e descrição, aplicada esta última ao gê-
observamos uma sala; a leitura da paisagem é incompleta se não se nero de objetos que, "eles ou suas partes, existem simultaneamen-
nota a ausência ou a intensidade do vento, o odor de resina ou de te". Vai, tal alternância ou mescla, para dissimular o contraste que
fumaça, o zumbir dos insetos etc. Apesar de tudo, verifica-se, ante a narrativa oferece entre motivos dinâmicos e motivos estáticos
a doação da imagem, uma aquisição imediata e que, mesmo quando (nem todas as soluções, felizmente, estão em Homero), exigir uma
imperfeita e parcial, é satisfatória. série de recursos, mediante os quais seja possível, sem comprome-
O texto, ao contrário, em virtude da sua linearidade, de- ter o fluxo dos eventos, introduzir o cenário, o campo onde
fronta, se aspira a certo grau de eficiência.:, este problema básico: atuam as personagens. Daí o interesse do que denominamos am-
as coisas são, ao passo que a linguagem flui, havendo, portanto, bientação - o interesse dos recursos literários para estabelecer,
entre elas, certa incompatibilidade. Laocoonte, o clássico estudo nas histórias, o espaço.
de Lessing, desenvolve precisamente essa idéia, muitas de suas
proposições sobre poesia e movimento continuando válidas.
(Devido à natureza das transformações ocorridas desde o século A ambientação, no que concerne às suas relações com o
XVIII no campo das artes plásticas, algo do que diz sobre desenrolar da narrativa, interessando, portanto, narrador e perso-
escultura e pintura envelheceu.) "Os objetos que, eles ou suas nagens, repousa normalmente sobre três princípios básicos, empre-
partes - escreve o fino erudito alemão -, existem simultanea- gados isoladamente ou conjugados. Assim tem início a segunda
mente, chamam-se corpos. Por conseguinte, os corpos, com parte do Triste Fim de Policarpo Quaresma, que transcrevemos
suas propriedades visíveis, são os objetos próprios da pintura." in extenso:
"Os objetos que, eles ou suas partes, sucedem-se, em geral são cha- "Não era feio o lugar, mas não era belo. Tinha entretanto, o
mados ações. Por conseguinte, também as ações são o objeto pró- aspecto tranqüilo e satisfeito de quem se julga bem com a sua sorte.
prio da poesia." 2 Demonstra Lessing, leitor admirável e contem- "A casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau,
plador iluminado de obras de arte, manipulando, com penetração formando a subida para a maior altura de uma pequena colina que
e ciência, exemplos variados, este pensamento. Aristóteles, na Arte lhe corria nos fundos. Em frente, por entre os bambus da cerca,
Retórica, ensinando os meios de tornar o estilo pitoresco, reporta- olhava uma planície a morrer nas montanhas que se viam ao longe;
-se ao "processo usado freqüentem ente por Homero e que consiste um regato de águas paradas e sujas cortava-a paralelamente à tes-
em animar o inanimado, pela metáfora." 3 Lessing, vendo de outro tada da casa; mais adiante, o trem passava vincando a planície com
ângulo os métodos do grande rapsodo, sublinha a sua inclinação a fita clara de sua linha capinada; um carreiro, com casas, de um
pela história dos objetos, mais que pela sua aparência. Apresenta- e de outro lado, saía da esquerda e ia ter à estação, atravessando o
-nos Homero muitos dos seus "corpos - refere Lessing - em uma regato e serpeando pelo plaino. A habitação de Quaresma tinha
sucessão de instantes". 4 Assim, ao invés de simplesmente descre- assim um amplo horizonte, olhando para o levante, a 'noruega', e
ver um cetro, mostra-o primeiro como um verde ramo crescendo na era também risonha e graciosa nos seus muros caiados. Edificada
montanha. Tal solução revela a consciência, nada surpreendente com a desoladora indigência arquitetõnica das nossas casas de cam-
nele, do conflito entre linguagem e descrição, sensível - mais do po, possuía, porém, vastas salas, amplos quartos, todos com jane-
que em qualquer outro campo - no poema épico e, mais tarde, no las, e uma varanda com uma colunata heterodoxa."
romance, gêneros que representam indivíduos em ação (objetos que X Tem-se aí um tipo de ambientação que denominaremos franca
se sucedem), por isso distinguindo-se como especialmente favorá- e que se distingue pela introdução pura e simples do narrador. Não
2 In Laocoonte 6 de los Limites de Ia Pintura y de Ia Poesia. p. 125.
falta sequer, para melhor caracterizá-Ia, o discurso avaliatório, evi-
3 In Arte Ret6rica. p. 220.
4 In Laocoonte 6 de los Limites de Ia Pintura y de Ia Poesia. p. 128. 5 In: Techniques of Fiction Writing: Measure and Madness. p. 36.
80 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO
AMBIENTAÇÃO FRANCA. •• 81

dente desde a abertura do capítulo (O qual se apresenta, nessa uni- segue, estabelecendo uma tensão entre o narrador e a paisagem,
dade razoavelmente longa, como o desenvolvimento da primeira esbate a cesura que o descritivo impõe ao narrativo, levando certo
frase). Reforça a franqueza do processo o perfil cultural do es- dinamismo a um motivo estático: "Evolava-se do ambiente um per-
critor, quando fala na "desoladora indigência arquitetônica das fume, uma poesia, alguma cousa de unificador, a abraçar o mar,
nossas casas de campo" e na "colunata heterodoxa". as casas, montanhas e o céu; pareciam erguidos por um só pensa-
Por vezes, a ambientação franca é levemente mediada pela mento, afastados e aproximados por uma inteligência coordenado-
presença de uma ou mais personagens: "Quaresma despiu-se, la- ra que calculasse a divisão dos planos, abrisse vales, recortasse cur-
vou-se, enfiou a roupa de casa, veio para a biblioteca, sentou-se a vas, a fim de agitar viva e harmoniosamente aquele amontoado de
uma cadeira de balanço, descansando. / Estava num aposento vasto, cousas diferentes. .. O aconchego, a tepidez da hora, a solenidade
com janelas para uma rua lateral, e todo ele forrado de estantes de do lugar, o crenulado das montanhas engastadas no céu côncavo,
ferro./Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequ~nas deram-me impressões várias, fantásticas, discordantes e fugidias./
com os livros de maior tomo." 6 Segue-se a enumeração de obras Havia um brando ar de sonho, e eu fiquei todo penetrado dele." 9
existentes. Também o jardim do major é descrito com a ajuda des- Descreve IsaÍas sua chegada ao Rio e a ambientação franca,
sa mediação atenuada: "Acabado o jantar foram ver o jardim. Era à quando assim conduzida, aproxima-se da ambientação reflexa. No
uma maravilha; não tinha nem uma flor. Certamente não se podia ensaio entremeado de notas que publica na revista Poétique, um
tomar por tal mÍseros beijos-de-frade, palmas-de-santa-rita" etc. 7 leitor minucioso de Zola, Philippe Hamon, procura sistematizar os
Utiliza-se a entrada, ou simplesmente a passagem da personagem no processos descritivos no Naturalismo e, em particular, no romancis-
ambiente descrito, mas tal interferência é ilusória: o observador de- . ta de Germinal. Distingue uma série de motivos - janelas abertas,
clarado continua a ser o narrador. Matiza-se, evidentemente, a am- passeios, chegadas a um lugar desconhecido, olhar maquinal, curio-
bientação franca, quando o narrador é também personagem. O sidade etc. - "cuja função é antes de tudo evitar um certo hiato
personagem-narrado r, como escreve Tzvetan Todorov, pensando, entre descrição e narração, de preencher os interstícios da narrati-
naturalmente, no emprego tradicional do eu, "só existe em sua fala; va, tornando verossímeis as interrupções." 10 "Todo o problema do
se as outras personagens são, antes de tudo, imagens refletidas numa autor realista será então transformar essa temática vazia em uma
consciência; ele é essa mesma consciência." 8 Assim, caracteriza-se temática plena." 11 Quer dizer: em compensar, dentro do possível,
e revela-se ao longo do discurso, mesmo quando descreve objetiva- ao inserir no texto ficcional uma unidade descritiva (vazia), a re-
mente uma paisagem. O esquema, entretanto, permanece o duzida eficácia da linguagem para a reprodução do estático, mes-
mesmo: o narrador (nomeado ou não) observa o exterior e verba- clando à descrição elementos dinâmicos (plenos). O romance de
liza-o, introduzindo na ação um hiato evidente. Zola, onde se processa, programaticamente, uma hipertrofia do
Sendo a narrativa na terceira pessoa, acentua-se a ambienta- descritivo, presta-se a estudos desse gênero, mas ver o assunto ape-
ção franca, quando o observador, violando a objetividade, reage de nas sob o ponto de vista do pretexto, é simplificá-Io em demasia,
algum modo ante a coisa descrita, como aú apresentar a casa cam- desfigurando-o. Examinemos um breve trecho de Flaubert. Emma
pestre de Policarpo Quaresma, segundo vimos há pouco. Inversa- Bovary acaba de receber, de Rodolfo, uma carta de rompimento
mente, a ambientação franca, quando enunciada na primeira pes- (com o que ela retoma, desesperada, à aridez da sua vida) e refu-
soa, é tanto mais característica quanto menos se perceba, ante o gia-se no sótão para lê-Ia:
que se descreve, a presença do narrador. Isto porque a importuna "As ardósias deixavam cair a prumo um calor pesado, que
presença da subjetividade do narrador na terceira pessoa e, parale- lhe apertava as fontes e a sufocava. Arrastou-se até a água-furtada,
lamente, a objetividade do narrador na primeira pessoa, represen- fechada, tirou-lhe o ferrolho e a luz deslumbrante entrou num jorro.
tam, no caso, interrupções mais fundas do fluxo narrativo. A "À frente, para lá dos' telhados, a campina estendia-se a per-
intensa participação de IsaÍas Caminha no trecho deSCi,tivo que se der de vista. Embaixo, a praça da aldeia estava deserta; as pedras

6 ln: Policarpo Quaresma. p. 23-24. 9 ln: Isaías Caminha. p. 39.


7 !3ARRETO, L. Op. cit., p. 30. 10 "Qu'est-ce qu'une description?" ln: Poétique. 1972. n.o 12, p. 473-74.
8 ln: Estruturalismo e Poética. p. 46. 11 HAMON, Philippe. Op. cit., p. 485.
82 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO AMBIENTAÇÃO FRANCA... 83

das calçadas cintilavam, as ventoinhas das casas estavam imóveis; das cimalhas, 'as grades das sacadas; adiante, demorava-se mais a
da esquina da rua vinha dum andar térreo uma espécie de ronco ver um bando de moças em traje de passeio, postadas à porta de
de modulações estridentes. Era Binet que trabalhava no uma casa burguesa. Afastando-se dali o carro, o seu olhar lento
torno." 12 O objetivo do realista Flaubert, aí, não é tornar verossí- e macio foi parar sobre os bondes que passavam, e os transeuntes
mil a interrupção e "transformar essa temática vazia em uma temá- na rua; deles resvalou, pela calçada, no ponto em que uma mulher
tica plena." Emma conhece bem a cidade; e o verbo no condicional andrajosa dormia ao relento, imóvel, enrodilhada. como uma trou-
substituiria o seu olhar, inútil além do mais para as "modulações xa esquecida e por fim, durante segundos, fixamente, insistente-
estridentes" do torno. Acresce que o romancista não utiliza Emma mente, pousou a vista no coche fúnebre que rodava na nossa
como um álibi para mostrar a aldeia na hora ensolarada. Conjugam- frente." 14
-se, nesse passo, fatores de ordem física que acentuam o desespero A esta altura, uma pergunta se impõe: os casos em que o es-
de Emma. Ela refugia-se no sótão, lugar de isolamento e sobre o
paço nasce através do discurso direto; emitido por uma das perso-
qual, então, cai "a prumo um calor pesado" e sufocante, apertando nagens (não o personagem-narrador) representam uma modalidade
as suas fontes; fere-a, quando abre a janela, a "luz deslumbrante"; de ambientação reflexa? Parece lógica, ao primeiro exame, a res-
as imagens denotam o horror da sua vida nessa aldeia morta e
onde, na hora canicular, nem sequer se movem as ventoinhas (o posta afirmativa. Observemos, entretanto, que, nesse caso, deslo-
ca-se o eixo da enunciação. Assumindo a palavra, pode a persona-
que seria, apesar de tudo, uma .nota de alegria); o rumor do torno
dirige-se às suas fontes, afligindo-a, como antes o calor que desce gem, por sua vez, empregar - em segundo grau, diríamos - os
mesmos recursos do narrador. A situação não se modifica substan-
das ardósias e acentua, tornando-o mais agudo, um silêncio de que
o texto não fala; a ausência de figuras humanas e a campina esten- cialmente, sofrendo apenas uma gradação, se o discurso direto é
dendo-se "a perder de vista" ampliam a solidão da água-furtada, substituído pelo discurso indireto.ou indireto livre.
X. a qual, por sua vez, evoca a solidão e o vazio de Emma. Há ainqa Conduzidas através de um narrador oculto ou de um perso-
a observar que essa ambientação, classificável em princípio como nagem-narrador, tanto a ambientação franca como a ambientação
franca, na verdade é reflexa: as coisas, sem engano possível, são reflexa são reconhecíveis pelo seu caráter compacto ou contínuo,
percebidas ~tJavés da personagem. Atento à eficácia. da linguagem, formando verdadeiros blocos e ocupando, por vezes, vários pará-
reconheceria Flaubert a inutilidade de reiterar, mediante o pronome grafos. Constituem unidades temáticas perfeitamente identificáveis:
pessoal e os 'verbos correspondentes, informações já implícitas no o ocaso, o desfile, a sala, a casa, a estação, a tarde, a cidade. Com
texto. a ambientaçãodissimulada (ou oblíqua) 15, sucede o contrário. A
A ambientação reflexa é característica das narrativas na ter- ambientação reflexa como que incide sobre a personagem, não
ceira pessoa, atendendo em parte à exigência, proclamada pelo es- implicando numa ação. A personagem, na ambientação reflexa,
tudioso de Zola, de manter em foco a personagem, evitando uma tende a assumir uma atitude passiva e a sua reação, quando regis-
temática vazia. Sucede, porém, embora mais raramente, que mes- trada, é sempre interior. A ambientação dissimulada exige a perso-
mo o personagem-narrador transfira a outrem a percepção do am- nagem ativa: o que a identifica é um enlace entre o espaço e a ação.
biente, como podemos ver em Gonzaga de Sá: Leon Surmelian designa-a como "o método dramático": "descrip-
"- Ora!. .. fez ela alongando o busto por sobre o espaldar tion blending with the flow of action". 16 É também à ambientação
da cadeira até poder ver o céu pela janela que lhe ficava à vista." 13
dissimulada que se refere Georg Lukács quando adverte, no seu
Ou, de modo ainda mais ostensivo, na cena em que o narra-
ensaio "Narrar e Descrever", não se deter a reconstituição do am-
dor, acompanhando Gonzaga de Sá, descreve parte do trajeto como
biente, em Balzac, na pura descrição, vindo "quase sempre traduzi-
se visse com os olhos do amigo:
da em ações (basta evocarmos o velho Grandet, consertando a es-
"Suspendeu a palavra; e, de acordo com a marcha da caleça,
X pôs-se a vagar o olhar pelos lados. Com ele, seguia os ornatos 14 BARRETO, L. Op. cit., p. 127-28.
~5 A denominação, evidentemente, inspira-se em Machado de Assis: "Você
12 1n: Madame Bovary. p. 214. Já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada."
13 1n: Gonzaga de Sá. p. 118. 161n: Techniques of Fiction Writing: Measure and Madness. p. 33-34.
84 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO
AMBIENTAÇÃO FRANCA. •• 85

cada apodrecida)". 17 Assim é: atos da personagem, nesse tipo de o alpendre, na casa de Bentinho: "Tijolos que pisei e repisei naque-
ambientação, vão fazendo surgir o que a cerca, como se o espaço la tarde, colunas amareladas que me passastes à direita ou à es-
nascesse dos seus próprios gestos. querda, segundo e~ ia ou vinha, em vós me ficou a m~lhor pa~te
Exemplo sob todos os pontos admirável de ambientação dis- da crise, a sensaçao de um gozo novo, que me envolVIa em mIm
simulada vamos encontrar no primeiro capítulo de São Bernardo, mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava
de Graciliano Ramos 18 Azevedo Gondim "tomava a bicicleta e, pe- não sei que bálsamo interior" (Dom Casmurro, capítulo XII). J a-
dalando meia hora pela estrada de rodagem que ultimamente Casi- mais esqueceremos esse alpendre, ligado a um momento vital na
miro Lopes andava a consertar com dois ou três homens, alcançava existência do herói. A carga concedida no texto às emoções de
'" S. Bernardo. ( ... ) lamos para o alpendre, mergulhávamos em ca- Bentinho, motivo dominante do parágrafo, faz parecer casual a alu-
deiras de vime e ajeitávamos o enredo, fumando, olhando as novi- são ao alpendre. Entretanto, é o modo como o narrador nos descre-
lhas caracus que pastavam no prado, embaixo, e mais longe, à en- ve aquela parte da casa, do ponto de vista da arte literária, o que
trada da mata, o telhado vermelho da serraria. ( ... ) Levantei-me há de mais fino e notável nesse passo. Deve-se também levar em
. e encostei-me à balaustrada para ver de perto o touro limosino que conta que o romance tende a mesclar vários processos, inclusive
Marciano conduzia ao estábulo. Uma cigarra começou a chiar. A numa única unidade temática. Precede muitas vezes a ambientação
velha Margarida veio vindo pelo paredão do açude, curvada em reflexa um motivo introdutório com caráter de ambientação dissi-
duas. Na torre da igreja, uma coruja piou. Estremeci, pensei em mulada. Assim quando vemos Emma Bovary subir à água-furtada
Madalena." Aí, mesmo os verbos ver e olhar, tão comuns na am- e abri-Ia. A separação, sutil, pode ser notada inclusive pela mudan-
bientação reflexa, são impregnados de energia, não sendo certa- ça de tempo verbal: o pretérito imperfeito assinala a hegemonia da
mente por acaso que aparecem ligados a coisas vivas e em movi-
ambientação reflexa, predominante na cena. Já em São Bernardo,
mento - "novilhas caracus que pastavam no prado" e "o touro
o chiar da cigarra e o pio da coruja representam a mescla, na am-
limo sino que Marciano conduzia ao estábulo" -, de modo que
a imobilidade dos que observam é então compensada pela mobili- bientação oblíqua, da ambientação franca, na qual o narrador alu-
dade das coisas observadas (novilhas, touro), e o movimento des- de sem intermediário a elementos do espaço.
tas comunica certa animação aos elementos inanimados que se se- Cada um desses processos tem o seu lugar na obra e só a sa-
guem: prado, estábulo, mata, telhado, serraria. A introdução, tam- bedoria do escritor irá responder pela sua eficácia. Contudo, pelo
bém em movimento, de uma personagem secundária, a velha Mar- menos no nível da micro-estrutura, a ambientação revela comple-
garida, revela o açude. xidade e engenho na medida em que o narrador, recusando a des-
Esta tentativa, evidentemente sintética, de classificação dos crição pura e simples, tece ordenadamente espaço, personagem e
processos de indicação do espaço na obra narrativa e onde se pro- ação. Tornamos a lembrar que, ao caráter fluvial - e não lacus-
põe, inclusive, uma nomenclatura, não pretende abranger todos os tre - da linguagem, corresponde melhor um mundo móvel, ou, se
métodos possíveis, mas alcança um espectro bastante amplo. Gran- imóvel, animado por uma força interior.
de parte da capacidade imaginativa dos escritores realmente preo-
cupados com os problemas do ofício trabalha no sentido de encon-
trar soluções expressivas novas e satisfatórias - o que reduz muito
o valor das esquematizações teóricas; nem sempre é a invenção A classificação aqui sugerida atende às relações do espaço
no plano do enredo, de qualquer modo nunca é apenas a invenção com o fluxo da narrativa, envolvendo, segundo foi dito, narrador e
X no plano do enredo que revela o verdadeiro ficcionista. Eis como personagens. Consideraremos a seguir dois aspectos de alguma im-
nos fala Machado de Assis, numa ambientação oblíqua, das colu- portância na ambientação e que, de certo modo, relacionam-se en-
nas amarelas (existentes de um só lado) e dos tijolos que revestem tre si: a ordenação e a precisão dos elementos espaciais. "Até ago-
ra, este quarto que se define sob o nosso olhar é um continente
17 In: ensaios sobre Literatura. p. 51. amorfo, uma espécie de saco, onde os objetos estão postos sem or-
18 V. nosso artigo "Um Aniversário Sóbrio como sua Prosa." Jornal x dem, e onde o narrador os extrai um a um, ao acaso. Logo, desejare-
do Brasil. Rio dé Janeiro, edição de 21/10/1972, caderno B, p. 5.
86 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO AMBIENTAÇÃO FRANCA. •• 87

r:10S suas situações: móveis muito juntos, móveis afastados ... " 19 prio personagem-?~rrador se pr,oj~ta sobre a sua imagem antiga. A
Na ambientação desordenada, o narrador, sucumbindo ao desajus- significação simbohca da casa e amda reforçada pelo estado de es-
te entre a linguagem e a descrição, restringe-se a catalogar. Joa- pírito com que seu habitante, sem muita orde~, a descreve: "O
qUIm Manuel de Macedo, cujo instrumento é pobre e sem ambições, meu fim evidente era atar as duas pontas da vIda, e restaurar na
assim esboça o quarto do seu herói: "E; inútil descrever o quarto velhice a adolescência." 23 Todo um mundo int~rior, caprichoso e
de um estudante. Aí nada se encontra de novo. Ao muito acha- nostálgico, na confissão que explica a reprodução do ambiente.
rão uma estante, onde ele guarda os seus livros, um cabide, onde Reprodução, note-se, em dois níveis: o da história e o do discurso.
pendura a casaca, o moringue, o castiçal, a cama, uma, até duas No que diz respeito à visualidade, a sala principal, com as figuras
canastras de roupa, o chapéu, a bengala e a bacia; a mesa onde es- das estações nos quatro cantos do teto (alusão, decerto, à passagem
creve e que só apresenta recomendável a gaveta, cheia de papéis, do tempo) e os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa
de cartas de família e fitinhas misteriosas; é pouco mais ou menos no centro das paredes, comunica-nos o caráter de toda a constru-
assim o quarto de Augusto." 20 Confunde Joaquim Manuel de Ma- ção, seu peso e colorido, dispensando ordem e minúcia. Machado
cedo o típico com a sensaboria. Note-se a insistência em tauto- de Assis, não obstante certa fragmentação imposta aí ao espaço,
logias como as de que na estante "ele guarda os seus livros" e transforma o motivo da residência do protagonista num caso pre-
de que, na mesa, "escreve". Adiante, ao descrever a casa da avó cioso e único de ambientação dissimulada.
de Filipe, onde irá ocorrer grande parte do romance, pede que No capítulo I de Os Buddenbrook, Thomas Mann, que se
imaginemos, "fazendo frente para o mar e em toda a extensão compraz como poucos - e com alto senso de medida - no des-
da sala e dos gabinetes, uma varanda terminada em arcos; no critivo, oferece-nos um exemplo modelar de ambientação franca e
interior meia dúzia de quartos, depois uma alegre e longa sala ordenada: "Além das poltronas sóbrias, distribuídas ao longo das
de jantar, com janelas e portas para o pomar e jardim". Assim, paredes, a espaços regulares, via-se apenas, perto da janela, a
conclui, "ter-se-á feito da casa a idéia que precisamos dar." mesa de costura e, em frente do sofá, uma frágil escrivaninha
X. Não inferir, das citações acima, que a embientação de- de luxo, coberta de bibelots. / Através de uma porta envidraçada,
sordenada signifique incompetência. A casa de Dom Casmurro,
fronteira às janelas, enxergava-se vagamente um átrio, ao passo
tão importante para a personagem, é apresentada sem preocupações
de ordem: "é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, que, à esquerda da entrada, havia uma porta de dois batentes,
varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. ( ... ) Tenho cha- alta e branca, que dava para a sala de jantar. Noutra parede,
carinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro." 22 As num nicho semicircular e atrás de uma porta de ferro batido,
janelas e portas de Macedo, dando para o pomar e jardim, chegam artisticamente trabalhada, crepitava o fogo." 24 Crônica minuciosa
a ser mais precisas que as três janelas de Machado, que não enu- de uma família e de sua decadência (transcrevemos só um frag-
mera as alcovas e salas. Apesar disso, muito aprenderemos sobre a mento da descrição, que é muito mais extensa) , pede Os
arte da ficção (e ressalta, da experiência, como numa prova efetua- Buddenbrook soluções diferentes das que observamos no romance
da em laboratório, a superior maestria do "bruxo de Cosme Ve- de Machado. Ambos, cada um a seu modo, nos impõem com idên-
lho"), se confrontarmos esses casos extremos: as soluções de Ma- tico vigor os respectivos espaços. 25
cedo e de Machado de Assis nos motivos a que nos reportamos. 23 ASSIS,Machado de. Op. cit., p. 25.
Dom Casmurro, homem maduro, faz reconstruir a casa em que 24 Observar aí a "instância impessoal" (enxergava-se, via-se) a que se
viveu na infância, sendo através desse meio, tão engenhoso, ágil e refere Philippe Hamon: "Algumas vezes, o personagem chega a desapa-
recer em proveito de uma instância impessoal" (Poétique. 1972. n.o 12,
significativo, que vamos conhecer as duas casas: a que já desapa- p. 467). Também o narrador se disfarça mediante tal recurso lingüístico.
receu e a sua cópia, uma projetando-se sobre a outra, como o pró- 2~ O atual romance francês, como se sabe, transformou em norma a am-
blentação franca e ordenada. O pormenor e a precisão, em Robbe-Grillet
19 BUTOR, M. Repertoire lI. p. 45. e .outros, chegam a minúcias de míope, como se vê desde a primeira página
20 In: A Moreninha. p. 17. de La laLousie. Discutiremos ainda, quando tratarmos das funções do
21 MACEDo,Joaquim Manuel de. Op. cit., p. 25. espaço, essa intensificação e os preceitos estéticos rigorosamente formu-
22 ASSIS,Machado de. Dom Casmurro. p. 24-25. lados a que obedece.
88 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO AMBIENTAÇÃO FRANCA.. . 89

Pode-se observar, nos exemplos dados, certa relação entre or- Reporta-se Michel Butor a essa imprecisão quando escreve:
dem e minúcia na ambientação. O esforço ordenador, no descriti- "Inicialmente, como no teatro antigo, será suficiente um dístico:
vo, tende a conferir uma organicidade ao pormenor, muitos sendo 'lugar magnífico', 'bosque agradável', 'floresta horrenda', 'um canto
os graus através dos quais o escritor define o espaço: sua liberdade de rua', 'um quarto'. Especificação que se tornará mais precisa; de-
de escolha (liberdade relativa, pois nunca é indiferente à estrutura sejaremos saber que espécie de quarto. Lugar magnífico, nos di-
global do texto) oscila entre a pintura minuciosa de uma sala, como zem, mas que estilo de magnificência?" 28 "O romance do século
em Thomas Mann, à simples nomeação de uma rua, um hotel, uma XVIII (Lessage, Voltaire etc.) mal conhecia a descrição, que nele
cidade etc., havendo ainda os casos em que nem sequer se chega exercia uma função mínima, mais do que secundária - acentua Lu-
ao nome, observando-se, em relação ao espaço, uma imprecisão kács. A situação muda somente com o Romantismo." 29 A asser-
que, de certo modo, nega-o.
tiva pode ser ilustrada mediante uma comparação entre as cenas
A precisão ou a imprecisão, certamente, refletem determinada do torneio em La Princesse de Cleves e em lvanhoe. Limita-se Ma-
época ou tradição literária: "os procedimentos concretos e parti- dame de Lafayette a um curto parágrafo meramente indicativo:
culares, suas combinações, sua utilização e em parte suas funções
mudam enormemente no curso da história da literatura". Assim re- "Fez-se uma grande liça, próxima à Bastilha; vinha do castelo de
sumia Tomachevski o fato, acrescentando que "os processos nas- Tournelles, atravessava a rua Saint-Antoine e ia ter às cavalariças
cem, vivem, envelhecem e morrem." 26 Vê-se isto com muita niti- reais. Havia, dos dois lados, estrados e anfiteatros, com abrigos co-
dez no tratamento do espaço; comprova-o a leitura de relatos inse- bertos, formando espécies de galerias, as quais produziam um belo
ridos numa tradição remota, tanto do Ocidente como do Oriente. efeito e podiam conter um número infinito de pessoas." 30 Walter
Na lndia: "Em certo lugar viviam quatro irmãos brâmanes". "Em Scott, ao contrário, elabora um quadro amplo e colorido, ao qual
certo lugar do bosque vivia um leão" (Pantchatantra). "Vivia não faltam números exatos: "Sobre uma plataforma construída
nas ilhas de Khalidán, próximo ao reino da Pérsia"... "A por trás do Portão Sul, havia cinco magníficos pavilhões, ornados
cidade engalanou-se durante sete dias e rufaram os tambores." de escudos de armas castanhos e negros, cores escolhidas pelos
(As Mil e uma Noites). Nos contos edificantes de São cinco cavaleiros campeões do torneio." "Uma passagem de trinta
Francisco: "Estando uma vez Santo Antônio em Rímini" ... pés de largura conduzia, por um declive brando, da porta da arena
"Movido São Francisco do zelo da fé de Cristo e do desejo do mar- à plataforma sobre a qual estavam erguidas as tendas." A topogra-
tírio, passou uma vez para o outro lado do mar com doze compa- fia do terreno, os costumes dos escudeiros, a disposição das tendas,
nheiros seus mui santos, para dirigir-se ao Sultão de Babilônia" ... os tapetes e até os espectadores aglomerados num campanário à
Em Bocaccio, adquirirão importância os tonéis, as clausuras, os es- distância, vendo-se inclusive quando as galerias, "pouco a pouco
conderijos, instrumentos necessários à evolução dos contos, mas
descritos com parcimônia, sendo os lugares apenas nomeados: "Fir- de prata era igualmente a torça, mas o anel de oiro. De cada lado havia
mada a obrigação, ficou Barnabé em Paris; e Ambrosinho, logo uns cães de oiro e prata, imortais e isentos perpetuamente da velhice, que
Hefestos tinha executado com arte, para guardarem o palácio do magnâ-
que pôde, viajou para Gênova." No século XIV, não é Chaucer nimo Alcínoo." Não omite os cadeirões, os tapetes, o horto do qual
mais explícito nos Contos de Canterbury: "Havia uma vez em nomeia as árvores, as fontes. Observe-se como Homero, também aí, anima
o inanimado: as paredes corriam, portas impediam a entrada no palácio,
Flandres um grupo de jovens entregues a loucuras tais como ombreiras de prata se apoiavam. Temos também a história dos cães de
orgias, jogos de azar, bordéis e tabernas." 27 oiro e prata, "que Hefestos tinha executado" etc. Mesmo Longus mostra-se
atento à sucessão das estações e o frescor de muitas cenas não esmaece,
26 TOMACHEVSKI."Théorie de Ia Littérature." In: Textes des Formalistes decerto, na tradução de Amyot, em Daphnis et Chloé: "Or était-il lors
Russes. p. 298 e 301. environ le commencement du printemps, que toutes fleurs sont en vigueur,
27 Tal insuficiência não se verifica na epopéia. Homero ambienta muito ce~les des bois, celles des pres, et celles des montagnes. Aussi jà commen-
bem a sua ação, como na rapsódia VI da Odisséia, quando pinta o palácio çalt à s'ouir par les champs bourdonnement d'abeilles, gazouillement
de Alcínoo: "Paredes de bronze elevavam-se dum lado e doutro, corriam d'oiseaux, bêlement d'agneaux nouveau-nés."
da fachada até ao fundo e rematava-as em volta uma cornija de cor azul. 28 In: Repertoire lI. p. 45.
Impediam a entrada no palácio, solidamente edificado, portas também 29 In: Ensaios sobre Literatllra. p. 50-51.
de bronze, cujas ombreiras de prata se apoiavam sobre o éneo limiar; 30 In: La Princesse de Cleve.f. p. 94-95.
90 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO AMBIENTAÇÃO FRANCA. •• 91

foram sendo ocupadas por nobres e cavaleiros", 31 tudo é cuidado- tou-se e foi aos fundos da casa." A mesma imprecisão na visita
samente arrolado. Havia uma diferença essencial entre os leitores que faz ao Coronel Belmiro: "O coronel não se deteve, fez-nos
de Madame de Lafayette e os de Walter Scott: defrontavam estes sentar, mandou vir café e foi a um compartimento junto escrever
uma realidade muito distanciada no tempo, necessitando de solu- a missiva." Antes de partir, IsaÍas vai "até à cidade próxima" para
ções aproximadoras. Mas a responsabilidade maior nas diferenças fazer as suas despedidas e alude, ainda imprecisamente, a "uma
entre a ambientação apenas alusiva da narradora francesa e a am- cidade de terceira ordem", nas proximidades da qual ficaria a sua
bientação exaustiva do escocês deve ser atribuída a tendências ca- mãe. Essa imprecisão contrasta com o cuidado atribuído ao espa-
racterísticas das épocas em que escreveram. Observa-se, mesmo, ço exterior. Uma chuva constante acompanha os movimentos de
certo paralelismo entre a atenção concedida ao espaço no romance e IsaÍas relacionados com o projeto de deixar "a cidade" (como para
a presença da paisagem na pintura. Testemunha Fr. Paulhan, no seu acentuar a tristeza do mundo que abandona) e, curiosamente, li-
L'Esthétique du Paysage: "Aparecendo ocasionalmente em diver- gam-se à chuva as poucas informações que afinal teremos sobre a
sos lugares e em diversas épocas, parece ter-se desenvolvido e cons- casa e seu mobiliário, atenuando a imprecisão dominante: "Eu es-
tituído em Flandres e nos Países Baixos. Mas é no século XIX que tava deitado. num velho sofá amplo. Lá fora, a chuva caía com re-
alcança pleno florescimento; e sua evolução, decerto, ainda não ter- dobrado rigor e ventava fortemente. A nossa casa frágil parecia
minou." 32 que, de um momento para outro, ia ser arrastada. Minha mãe ia e
x Coexistem, entretanto, em obras modernas, síntese e minúcia vinha de um quarto próximo; removia baús, arcas."
na ambientação, observando-se comumente, na mesma narrativa, A imprecisão quanto à cidade e à casa onde vive IsaÍas até a
gradações variadas, decorrentes de motivos que nem sempre o crí- adolescência, contrasta, a partir do capítulo lI, com a minúcia des-
.x. tico ou o estudioso podem identificar com segurança. As Re- critiva que acompanha a chegada e a permanência do personagem-
cordações do Escrivão [saías Caminha ilustram bem essa varie- -narrador no Rio, podendo-se observar (isto, em grau bem maior
dade. Nas primeiras páginas, enquanto tomamos contato com e mais justificadamente, ocorrerá em Vida e Morte de M. J. Gon-
a insatisfação do adolescente, o espaço mal se delineia, sendo zaga de Sá) uma tendência a negligenciar os interiores, enquanto
apenas insinuado através das reações do personagem: "A tristeza, os exteriores são descritos minuciosamente. O grau de precisão,
a -€ompressão e a desigualdade de nível mental do meu meio fami- por exemplo, concedido ao hotel onde se hospeda IsaÍas não é
liar, agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de in- muito superior ao que se nota quando menciona a casa familiar:
teligência." Tem-se uma idéia dos professores, sobre os quais, des- "recomendaram-me o Hotel Jenikalé, na Praça da República, de
mesurados, brilham os olhos azuis de Dona Ester - e só. Omite- módica diária". Temos o nome do hotel e, de passagem, sua loca-
-se, inclusive, o nome da cidade onde vive o adolescente IsaÍas: lização; nada é acrescentado quanto ao seu aspecto. Na mesa re-
"Demorei-me na minha cidade natal ainda dois anos". A omissão, donda, "onde havia já muita gente a falar de tudo e de todas as
que poderia aí parecer involuntária, manifesta-se pelo uso de aste- cousas", servem-se as refeições; não sabemos de que gênero e nível
riscos quando se refere à freguesia em que o pai, um padre, exer- são os quadros que guarnecem a sala, sendo portanto exíguo ou
ce o sacerdócio: "quando veio a morrer meu pai, vigário da fregue- mesmo nulo o seu teor informativo. Não sucede assim com as li-
sia de***." Essa imprecisão domina a parte inicial do livro, reve- geiras indicações sobre a casa onde vive a amante do deputado
lando o total desinteresse do escritor em precisar, fisicamente, o Castro, indicações que - para lembrar mais uma vez o ensaÍsta de
cenário familiar do jovem: "Calamo-nos e minha tia saiu da sala, Repertoire - desempenham uma função de signo: "Quando perdi
levando [perguntaríamos para onde] o capote molhado, e logo de vista a moça pus-me a reparar na sala, com umas oleogravuras
depois voltou, trazendo o café". "Descansou [onde?] alguns pa- sentimentais e uns bibelots de pacotilha." 33 Introduz-se aqui, in-
cotes de jornais manchados de selos e carimbos; tirou o boné com clusive, uma avaliação a respeito dos breves dados cênicos. Embo-
o emblema do Correio [tê-lo-ia posto sobre algum móvel?] e pediu ra as diferenças de grau observadas nas menções a espaços diferen-
café." "Num dado momento, pretextando qualquer cousa, levan- X tes; numa mesma obra, não decorram forçosamente de cálculo, a
31 ln: Ivanhoe. 33 BUTOR, M. Repel'toire Il. p. 65. As outras citações do romance estão
32 ln: L'Esthétique du Paysage. p. 247. suficientemente indicadas no texto.
92 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO
AMBIENTAÇÃO FRANCA. • • 93

y.. pobreza de indicações sobre a casa familiar de Isaías Caminha e a linhas. Já no seu estudo sobre a descrição em Zola, escreve
imprecisão a respeito da cidade onde passa os primeiros anos de em nota de pé de página Philippe Hamon, quando enumera as
vida, ao contrário do que sucede com a paisagem do Rio, exaustiva- possibilidades de acesso à manifestação do espaço no romance:
mente evocada, podem bem decorrer de um pressuposto técnico: "Estamos aí muito próximos daquela perspectiva inventada pelo
deixar na sombra o que é passageiro e secundário no relato, ilumi- mundo ocidental no Renascimento e que subordina a organização
nando a zona que domina o romance e na qual a personagem vai de um quadro a um sujeito-espectador fixo, central, ciclópico,
viver a parte mais significativa da sua experiência; também podem único." 35 Quer dizer: temos falado, quando mencionamos, na am-
expressar (por parte do escritor e da sua personagem) a ânsia de bientação, o personagem, o personagem-narrador ou o narrador
fugir às limitações em que vivem e ingressar numa realidade mais anônimo como contempladores ou reveladores do espaço, de uma
ampla. Qualquer dessas hipóteses é viável, a segunda mais que a entidade central, humanamente situada e a partir da qual o espaço
primeira: o romance pouca atenção concede aos interiores, e só a se organiza. Daí a necessidade de janelas, torres e outros pontos
redação de O Globo - além do comissariado de polícia - mere- privilegiados, dos quais o olhar humano possa abranger um certo
cerá cuidados. Mas o jornal, em [saias Caminha, é o espelho ou a segmento do espaço. O fato de a perspectiva surgir no Renasci-
caixa de ressonância do mundo exterior. mento, quando a visão religiosa do mundo amortece, não parece
Não deve o estudioso do espaço, na obra de ficção, ater-se destituído de significação. O exame comparativo de um afresco
apenas à sua visualidade, mas observar em que proporção os de- românico e de uma pintura de Rafael é ilustrativo. No Românico,
mais sentidos interferem. Quaisquer que sejam os seus limites, inexiste o olho carnal, humano, que contempla rigorosamente o
um lugar tende a adquirir em nosso espírito mais corpo na medida quadro, como no Renascimento. Lugares diferentes e tempos afas-
em que evoca sensações. Jean-Pierre Richard, estudando a pre- tados unificam-se numa visão transcendental: contempla-se com
sença do mundo exterior na obra de Chateaubriand, registra a a liberdade do espírito e não com a servidão da carne.
freqüência dos latidos de cão no silêncio noturno, os gritos de Curiosamente, em nossa época, o ponto de vista perspec-
pássaros, os murmúrios, observando ainda como o som do canhão tívico, imposto pelo Renascimento (como um sinal da glória e
de um navio que ergue as velas vem "redobrar intelectualmente do orgulho humanos) entra em declínio, atingindo inclusive a
o imediato poder sugestivo, e expansivo,' do impacto." 34 José ficção. Hoje, escreve Anatol Rosenfeld, "o indivíduo já não tem
Lins do Rego anima com o canto dos passarinhos a casa do a fé renascentista na posição privilegiada da consciência humana
mestre José Amaro, na qual flutuam, desde o primeiro capítulo, em face do mundo e não acredita mais na possibilidade de a
além dos bogaris e da arruda, cheiros de comida e de couro: partir dela poder constituir uma realidade que não seja falsa e
"Dentro de casa o cheiro de sola fresca recendia mais forte que ilusionista". 36 Assim, vem a visão perspectívica do espaço sendo
o da comida no fogo." Não é menos importante, no espaço que negada nas artes plásticas. No romance, arte da linguagem e,
rodeia o seleiro, o rumor do seu martelo e são as campainhas do portanto, temporal, a analogia com outras artes manifestar-se-ia
cabriolé de Seu Lula, ecoando tristemente pelas estradas do Santa no tempo: "À eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço,
Fé, que tornam inconfundível, único, o espaço de Fogo Morto. parece corresponder no romance a da sucessão temporaL" 37 Mas
o próprio Anatol Rosenfeld, aprofundando o exame, nomeia obras
"cujo tema é a simultaneidade da vida coletiva de uma casa ou
cidade ou de um amplo espaço geográfico num segmento do tem-
Tudo o que acabamos de expor relaciona-se com um fenô-
meno da maior importância no contexto da arte contemporânea po", acrescentando que a técnica simultânea, jogando "com grandes
\~
e do qual, apesar disto, apenas o ensaísta Anatol Rosenfeld se espaços e coletivos", tende a eliminar "o centro pessoal ou a enfo-
ocupou até agora no Brasil: o da perspectiva. Liga-se este cação coerente e sucessiva de uma personagem centraL" 38 Aproxi-
problema, principalmente ao foco narrativo, mas as suas im- 35 In: Poétique. 1972. n.o 12, p. 473.
x plicações com o espaço e a ambientação solicitam algumas 36 In: Texto/Contexto. p. 86.
37 Id., ibid., p. 78.
34 In: Paysage de Chateaubriand. p. 50 et passo 38 Id., ibid., p. 93.
92 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO AMtllENTAÇÃO FRANCA. • • 93

pobreza de indicações sobre a casa familiar de Isaías Caminha e a linhas. Já no seu estudo sobre a descrição em Zola, escreve
imprecisão a respeito da cidade onde passa os primeiros anos de em nota de pé de página Philippe Hamon, quando enumera as
vida, ao contrário do que sucede com a paisagem do Rio, exaustiva- possibilidades de acesso à manifestação do espaço no romance:
mente evoca da, podem bem decorrer de um pressuposto técnico: "Estamos aí muito próximos daquela perspectiva inventada pelo
deixar na sombra o que é passageiro e secundário no relato, ilumi- mundo ocidental no Renascimento e que subordina a organização
nando a zona que domina o romance e na qual a personagem vai de um quadro a um sujeito-espectador fixo, central, ciclópico,
viver a parte mais significativa da sua experiência; também podem único." 35 Quer dizer: temos falado, quando mencionamos, na am-
expressar (por parte do escritor e da sua personagem) a ânsia de bientação, o personagem, o personagem-narrador ou o narrador
fugir às limitações em que vivem e ingressar numa realidade mais anônimo como contempladores ou reveladores do espaço, de uma
ampla. Qualquer dessas hipóteses é viável, a segunda mais que a entidade central, humanamente situada e a partir da qual o espaço
primeira: o romance pouca atenção concede aos interiores, e só a se organiza. Daí a necessidade de janelas, torres e outros pontos
redação de O Globo - além do comissariado de polícia - mere- privilegiados, dos quais o olhar humano possa abranger um certo
cerá cuidados. Mas o jornal, em [saías Caminha, é o espelho ou a segmento do espaço. O fato de a perspectiva surgir no Renasci-
caixa de ressonância do mundo exterior. mento, quando a visão religiosa do mundo amortece, não parece
Não deve o estudioso do espaço, na obra de ficção, ater-se destituído de significação. O exame comparativo de um afresco
apenas à sua visualidade, mas observar em que proporção os de- românico e de uma pintura de Rafael é ilustrativo. No Românico,
mais sentidos interferem. Quaisquer que sejam os seus limites, inexiste o olho carnal, humano, que contempla rigorosamente o
um lugar tende a adquirir em nosso espírito mais corpo na medida quadro, como no Renascimento. Lugares diferentes e tempos afas-
em que evoca sensações. Jean-Pierre Richard, estudando a pre- tados unificam-se numa visão transcendental: contempla-se com
sença do mundo exterior na obra de Chateaubriand, registra a a liberdade do espírito e não com a servidão da carne.
freqüência dos latidos de cão no silêncio noturno, os gritos de Curiosamente, em nossa época, o ponto de vista perspec-
pássaros, os murmúrios, observando ainda como o som do canhão tívico, imposto pelo Renascimento (como um sinal da glória e
de um navio que ergue as velas vem "redobrar intelectualmente do orgulho humanos) entra em declínio, atingindo inclusive a
o imediato poder sugestivo, e expansivo,' do impacto." 34 José ficção. Hoje, escreve Anatol Rosenfeld, "o indivíduo já não tem
Lins do Rego anima com o canto dos passarinhos a casa do a fé renascentista na posição privilegiada da consciência humana
mestre José Amaro, na qual flutuam, desde o primeiro capítulo, em face do mundo e não acredita mais na possibilidade de a
além dos bogaris e da arrilda, cheiros de comida e de couro: partir dela poder constituir uma realidade que não seja falsa e
"Dentro de casa o cheiro de sola fresca recendia mais forte que ilusionista". 36 Assim, vem a visão perspectívica do espaço sendo
o da comida no fogo." Não é menos importante, no espaço que negada nas artes plásticas. No romance, arte da linguagem e,
rodeia o seleiro, o rumor do seu martelo e são as campainhas do portanto, temporal, a analogia com outras artes manifestar-se-ia
cabriolé de Seu Lula, ecoando tristemente pelas estradas do Santa no tempo: "À eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço,
Fé, que tornam inconfundível, único, o espaço de Fogo Morto. parece corresponder no romance a da sucessão temporal." 37 Mas
o próprio Anatol Rosenfeld, aprofundando o exame, nomeia obras
"cujo tema é a simultaneidade da vida coletiva de uma casa ou
cidade ou de um amplo espaço geográfico num segmento do tem-
Tudo o que acabamos de expor relaciona-se com um fenô-
meno da maior importância no contexto da arte contemporânea po", acrescentando que a técnica simultânea, jogando "com grandes
e do qual, apesar disto, apenas o ensaísta Anatol Rosenfeld se espaços e coletivos", tende a eliminar "o centro pessoal ou a enfo-
ocupou até agora no Brasil: o da perspectiva. Liga-se este cação coerente e sucessiva de uma personagem central." 38 Aproxi-
problema, principalmente ao foco narrativo, mas as suas im-
35 ln: Poétique. 1972. n.o 12, p. 473.
X plicações com o espaço e a ambientação solicitam algumas 36 ln: Texto/Contexto. p. 86.
37 Id., ibid., p. 78.
34 ln: Paysage de Chateaubriand. p. 50 et passo 38 Id., ibid., p. 93.
94 CAPo V - ESPAÇO ROMANESCO E AMBIENTAÇÃO

ma-se, portanto, vendo o problema através de algumas manifesta-


ções temáticas, de um núcleo importante e associado à ambientação:
a visão ou foco narrativo. A visão não perspectívica, expansão
e transfiguração do narrador onisciente, agora livre das limitações
humanas e evocando uma espiritualização não muito diferente da CAPÍTULO VI
que conhecia o artista medieval, insinua-se na ficção contemporâ-
nea. Anunciando um espaço como que sacralizad'o, oposto ao ESPAÇO ROMANESCO E SUAS FUNÇÕES
espaço profano do Renascimento, uma percepção mais profunda
do mundo logo irá provocar recursos mais sutis de inserção do
espaço, com o que não mais serão indispensáveis os recursos Relações personagem! espaço. - O espaço-moldura.
plausíveis - janela aberta, visita etc. - que Philippe Hamon - O espaço inútil.
enumera. Não apenas no tempo, mas no espaço mesmo, expres-
sará o romance contemporâneo sua desconfiança "na posição o conceito de ambientação, ligado à arte romanesca, esvazia-
privilegiada .da consciência humana em face do mundo" e que -se quando uma unidade relacionada com o espaço surge à ma-
os criadores do Renascimento erigem em dogma. neira de apêndice, isto é, sem função definida. Entretanto, a
funcionalidade de um fator incorporado à narrativa, só chega a
ser devidamente captada e avaliada em termos de macro-estru-
tura. Não se pode, a rigor, estudar isoladamente a funcionalidade
de um elemento espacial (como também de uma personagem,
de uma estrutura temporal etc.). Deve-se mesmo admitir a hipó-
tese, digamos, de o espaço ser perfeitamente funcional em deter-
minada seqüência e esta seqüência mesma constituir um corpo
estranho no conjunto da obra. Este o motivo pelo qual só agora
abordamos, dentro do assunto estudado, o problema das funções. 1
Mais de uma vez, no presente ensaio, referimo-nos à narra-
tiva como um sistema altamente complexo de uilidades que se
refletem entre si e repercutem umas sobre as outras. Podemos,
com certeza, ir ainda mais longe e afirmar que uma. determinada
obra enreda-se, não raro, nas demais obras do mesmo escritor.
As análises intertextuais procuram deslindar os fios que unem
um texto a textos alheios, por vezes remotos no espaço e no
tempo. Esses liames, essas repercussões, em grande parte secretos,
diluem-se ao longo da execução e o próprio escritor esquece muitas
de suas intenções. Também ocorre que certos pormenores de
modo algum sejam intencionais e, enraizados em sombras, im-
1 Evitamos, quando em capítulos anteriore!f nos ocupamos do espaço ou
da ambientação. abordar o problema das fzmções. Visto que a obra lite-
rária é um tecido, permitimo-nos, ao tratarmos de um ou de outro aspecto
do tema, referências à funcionalidade do espaço no romancé (como em
Moby Dick e em Vidas Secas), mas unicamente na medida em que uma
alusão a isto parecia indispensável. Dentro do possível, objetivávamos
isolar, do corpo da obra, o espaço e a ambientação, neles concentrando
a análise.
RELAÇÕES PERSONAGEM/ESPAÇO 97
96 CAPo VI - ESPAÇO ROMANESCO E SUAS FUNÇÕES

Eis por que, quando, tratando do espaço e da ambientação,


ponham-se dissimuladamente ao criador, a ponto de um escritor falamos de funções, insistimos em que não se creia, ante uma fun-
racional como Alain Robbe-Grillet afirmar que "as obras novas
não têm razão de ser senão quando trazem ao mundo, por sua ção clara, haver desvendado totalmente a razão de ser de um deter-
vez, novas significações, ainda desconhecidas dos próprios autores, minado cenário e dos recursos mediante os quais ele se ergue do
texto.
significações que só existirão mais tarde, graças a essas obras". 2
Assim, qualquer estudo literário, por mais profundo que seja - Tem-se acentuado, no espaço romanesco, como das mais im-
e não importa quão sutil e preciso o instrumental utilizado -, portantes, sua função caracterizadora. O cenário, escreve Philippe
alcançará apenas a superfície da obra. Esta é insondável e as Hamon, no estudo sobre :Émile Zola, "confirma, precisa ou revela
tentativas de a revelar, ampliando-a, multiplicam igualmente o o personagem". 3 Mais ou menos o mesmo, lemos num estudo de
seu mistério. Compreender melhor uma obra não significa decifrá- , Jean-Pierre Richard sobre os objetos em Balzac: ":É verdade que o
-Ia: os seus corredores são infindos. Fosse construída -como um objeto, mais freqüentemente, tem aqui valor de índice psicológico
galpão ou um armário, com finalidades precisas e sujeita a um ou social." 4 Michel Butor, por sua vez, ocupando-se especifica-
inflexível projeto - projeto não passível de enriquecimento e ao mente dos móveis, sublinha que estes, no romance, não desempe-
abrigo de surpresas -, poderia o escritor dominá-Ia inteiramente nham apenas um papel "poético" de proposição, mas de revelado-
X e responder por todos os pregos e portas. Decerto, embora muito res, "pois tais objetos são bem mais ligados à nossa existência do
que comumente o admitimos." Continua: "descrever móveis, obje-
do que faz lhe seja estranho (e não menos estranho o modo
como o faz), grande é a margem das opções conscientes. Entre- tos, é um modo de descrever os personagens, indispensável". 5
tanto, mesmo então, o simples emprego de um tempo verbal em Apenas repetimos, portanto, esses estudiosos da arte romanesca,
vez de outro, a eliminação de um ponto ou de uma vírgula, uma quando indicamos, no espaço - notadamente no espaço doméstico
casuarina e não uma acácia no quintal, por que em tal instante -, a função de, situando a personagem, informar-nos, mesmo an-
três pássaros voando e não cinco, cada escolha se opera sobre tes que a vejamos em ação, sobre o seu modo de ser. Veja-se a
alternativas inúmeras (a obra literária é uma aposta vencida contra casa de Maria Rita, tida por depositária de antigas tradições popu-
o infinito e o caos), de modo que as explicações, as justificativas, lares e a quem vão procurar Policarpo Quaresma e Albernaz: "A
não têm fim por assim dizer, talo emaranhado de motivos em sala era pequena e de telha-vã. Pelas paredes, velhos cromos de
que se apóiam - ou mergulham. Pode-se imaginar, então, o folhinhas, registros de santos, recortes de ilustrações de jornais ba-
caráter misterioso das coisas que, atuando no espírito do criador ralhavam-se e subiam por elas acima até dois terços da altura. Ao
(tão vagas e informes que parecem situar-se para além do in- lado de uma Nossa Senhora da Penha, havia um retrato de Vítor
consciente), vão influenciar a obra, talvez determiná-Ia, não sendo Emanuel com enormes bigodes em desordem; um cromo sentimen-
menos misteriosas as exigências que a própria obra vai gerando tal de folhinha - uma cabeça de mulher em posição de sonho -
ao longo da sua execução. O ato de escrever é interrogativo, cada parecia olhar um São João Batista ao lado. No alto da porta que
palavra interroga uma sombra intolerante, exigente, rigorosa - levava ao interior da casa uma lamparina, numa cantoneira, enchia
uma sombra que sabe - e por vezes sucede ao narrador, assim
como substitui na frase, seguidamente, um termo dado por todos de fuligem a Conceição de louça." a Não nos surpreende, depois
os sinônimos e afins, repassar mentalmente restaurantes e quartos, disto, vermos entrar a sua moradora, preta e velha, "em camisa de
recusando-os, chegando, após muitas recusas, a uma solução que bicos de rendas, mostrando o peito descarnado, enfeitado com um
colar de miçangas de duas voltas." 7 Sua posição social e, mais do
lhe parece satisfatória (ele não sabe que correspondências existem
entre o evento e o lugar, apenas adivinha-as, ouve-as) e das quais que isto, a confusão da sua mente, flutuando entre o sagrado e o
profano, perplexa ante um mundo que não pode recusar e no qual
ignora as razões ou cujas razões só virá a descobrir muito depois.
Leon Surmelian, quando intitula de Measure and Madness o seu 3 In: Poétique. 1972. n.O 12, p. 483.
ensaio sobre técnicas da ficção, procura evocar esse conluio de 4 In: E:tudes sur le Romantisme. p. 113.
lucidez e cegueira. 5 In: Repertoir~ Il. p. 53-54 et passo
a BARRETO, L. Policarpo Quaresma. p. 38.
2 In: POLIr IIn Nouveau Roman. p. 156. 7 Id., ibid., p. cito
98 CAPo VI - ESPAço ROMANESCO E SUAS FUNÇÕES
RELAÇÕES PERSONAGEM/ESPAÇO 99
não consegue estabelecer uma ordem, uma hierarquia, por mais ele-
mentar que seja, tudo está sugerido no cenário. Bem diferente é o também configurar-se de modo subjetivo, mediante um processo de
amortecimento ou de exaltação dos sentidos. O espaço, nessas cir-
quarto de Ricardo Coração dos Outros: "Havia uma rede com
franjas de rendas, uma mesa de pinho, sobre ela objetos de escre- cunstâncias, reflete menos uma personalidade que um estado de
ver; uma cadeira, uma estante com livros e, pendurado a uma pare- espírito mais ou menos passageiro. Rui Mourão, em Estruturas,
de, o violão na sua armadura de camurça. Havia também uma má- comenta uma passagem desse gênero em Graciliano Ramos: "No
quina para fazer café." 8 Evidencia-se a modéstia da sua condição, capítulo XVII, por exemplo, transmite-nos a idéia de regozijo,
mas não uma desordem do espírito. Este interior, ao qual, apesar da alegria vitoriosa que o assaltou logo após o casamento, de
do violão, não falta certa austeridade - um interior quase monás- maneira rigorosamente indireta, através de uma descrição da
tico -, demonstra inclusive aspiração intelectual e expressa certa paisagem de São Bemardo. ( ... ) Paulo Honório, o homem
pureza. objetivo, a voracidade que só tem olhos para localizar no aspecto
físico de sua propriedade as culturas mais vantajosas e as terras
'#- O espaço caracterizador é em geral restrito - um quarto,
uma casa -, refletindo, na escolha dos objetos, na maneira de os mais cultiváveis, de repente se acha entregue à contemplação mais
dispor e conservar, o modo de ser da personagem. A.inserção so- desinteressada, derrotado por uma emoção lúdica." 9 A emoção,
cial desta, entretanto, pode ser sugerida em grande parte por ele- em certos casos, conduz mesmo ao esvaecimento ou à obliteração
do espaço. Assim Isaías Caminha, quando morre a sua mãe:
mentos exteriores, como o bairro ou a situação geográfica (clara-
mente indicados, ou, como no conto de Marques Rebelo, apenas "Não continuei a leitura; deixei cair a mão ao longo do corpo
e estive a olhar a rua, sem ver Cousa alguma." 10 No também
insinuados) . Constituem casos raros aqueles em que a psicologia
da personagem, ou, ao menos, um traço importante da sua psico- jovem Werther, durante o primeiro contato com Car1ota, o sen-
logia projeta-se extramuros, como em As Afinidades Eletivas, onde tido que amortece é o da audição: "e tão perdido estava no
a modificação da paisagem que rodeia a residência campestre de turbilhão dos meus pensamentos e no crepúsculo que nos cercava
que mal ouvia os sons de música que vinham até nós da sala
Car10ta e Eduardo constitui um dos temas do romance, ocupando
iluminada." 11 Aliás, em Werther, vemos a paixão amorosa con-
as atenções das personagens, empenhadas em impor à Natureza,
retificando-a, uma concepção ordenadora, artificial, civilizada, re- duzir o herói a anular o espaço: "Tomei a vê-Ia!. .. Podem o
flexo de suas personalidades e de um certo estilo de vida. sol, a lua e as estrelas fazer as suas revoluções como entenderem;
Quando contribui para delinear uma personagem, o espaço já
para nãomim!"
me importa
12
que seja dia ou noite, o mundo não existe já
em geral revela-se pouco útil para o evolver da ação. A casa
do Major Quaresma, com o sofá, a cadeira de balanço e as Se há o espaço que nos fala sobre a personagem, há também
estantes de ferro cheias de livros de cronistas como Gândavo o que lhe fala, o que a influencia. Sua função caracterizadora é
e de exploradores como Saint-Hilaire, ajuda-nos a compreender quase sempre limitada e a influência que exerce restringe-se por
o habitante e harmoniza-se com o plano geral da narrativa, mas vezes ao psicológico, como na cena, a que já nos referimos, da che-
não deflagra nenhum acontecimento. A casa da velha Maria Rita gada de Isaías Caminha ao Rio: "Havia um brando ar de sonho, e
define-a; nas paredes da sala, projeta-se o seu espírito perplexo eu fiquei todo penetrado dele." 13 Mesmo o Hospício, no romance
e, por extensão, a perplexidade de toda uma camada da população inacabado de Lima Barreto, O Cemitério dos Vivos, afeta psicolo-
brasileira, inculta, desorientada, com os seus instrumentos de assi- gicamente o personagem-narrador, não o induzindo entretanto a
milação pouco aptos a articular as impressões colhidas numa so- qualquer espécie de ação (a não ser que a ação, neste caso, seja
ciedade cuja estrutura lhe foi imposta; embora refletindo isto, a própria decisão de escrever sobre o intemamento). Não surpre-
a aparência da sua moradia não influi em nada na cena de que ende, aliás, que em Lima Barreto o espaço nunca induza a persona-
participa.
A projeção da personagem sobre o ambiente nem sempre ma- 9 In: Estruturas. p. 76-77.
nifesta-se concretamente (dispondo-o de uma certa maneira); pode 10 BARRETO, L. Isaías Caminha. p. 98.
11 GOETHE. Werther. p. 29.
12 GOETHE. Op. cit., p. 35.
8Id., ibid., p. 100. 13 BARRETO, L. Isaías Caminha. p. 39.
100 CAPo VI - ESPAÇO ROMANESCO E SUAS FUNÇÕES
RELAÇÕES PERSONAGEM/ESPAÇO 101
gem a agir e que, quando o faz, seja remotamente, de um modo r..

difuso. As limitações da pequena cidade onde Isaías vive com a insuportável do dia ("Foi então que tudo vacilou"), aperta o gati-
lho do revólver e comete, sem qualquer premeditação, o homicídio
mãe, por exemplo, justificam e nutrem o seu desejo de tentar a vida que o leva à pena capital.
no Rio. O que, no entanto, o faz decidir-se, além de uma notícia O fato de o espaço, em certos casos, provocar uma ação _
lida no jornal, é um motivo que, operando como manifestação sig- desatando, portanto, forças ignoradas ou meio ignoradas _, rela-
nificativa do espaço, alça-se à categoria de episódio: "um bando de ciona-o com o imprevisto ou surpresa; enquanto isso, os casos em
patos negros passou por sobre a minha cabeça, bifurcado em dois
que o espaço propicia, permite, favorece a ação, ligam-se quase
ramos, divergentes de um pato que voava na frente, a formar um
V. Era a inicial de 'Vai'. Tomei isso como sinal animador, como sempre ao adiamento: algo já esperado adensa-se na narrativa, à
espera de que certos fatores, dentre os quais o cenário, tornem afi-
bom augúrio do meu propósito audacioso". 14 Nesses livros, onde nal possível o que se anuncia.
mesmo os eventos nunca determinam outros, seria de surpreender
que o espaço fizesse progredir a ação.
'f.. Isso, entretanto, é o que tende em geral a ocorrer; que a per- Mas as funções habituais do espaço não se reduzem a influen-
sonagem transforme em atos a pressão sobre ela exercida pelo es- ciar a personagem ou a contribuir para a sua caracterização: des-
paço. Aqui, é oportuno fazer uma distinção não carente de inte- tina-se, muitas vezes, exclusivamente a situá-Ia. Não se percebe,
resse entre os casos em que o espaço propicia a ação e os casos nestes casos, um nexo entre a personagem, a ação cumprida e o ce-
em que, mais decisivamente, provoca-a. Aparece o espaço como nário em que a cumpre. Floc, em [saías Caminha, suicida-se na
provocador da ação nos relatos onde a personagem, não empenha- redação do jornal. O ambiente, impessoal, nada nos diz sobre a
da em conduzir a própria vida - ou uma parte da sua vida -,
vê-se à mercê de fatores que lhe são estranhos. O espaço, em tal psicologia do elegante cronista; inexiste, por outro lado, qualquer
insinuação quanto a uma possível influência do cenário no sentido
caso, interfere como um liberador de energias secretas e que sur-
de favorecer ou provocar a sua decisão de matar-se. Equivocamo-
preendem, inclusive, a própria personagem. Exemplo perfeito do
-nos, porém, se acreditamos que a função de situar a personagem
espaço como provocador de ação é o conto "Missa do Galo", de
carece de interesse. Realmente, o interesse de indicações como
Machado de Assis. Estão na mesma casa, à noite, o adolescente
"Voltou frei Rufino à sua cela, que ficava no bosque" ou "Em certo
e a "boa Conceição"; Meneses, o marido, foi à casa da amante; as
lugar viviam quatro irmãos brâmanes" é limitado e a própria im-
personagens não armaram a cena e esse espaço - a casa solitária,
silenciosa, com a alcova conjugal no andar superior - converte-se precisão do espaço, nesses casos, serve a um objetivo: o de sugerir
numa espécie de armadilha. Nada, até então, houve entre eles e que não se trata de um fato real e sim de um "conto", algo ocorri-
nada sucederá depois: ambos, o jovem e a mulher, não são mais do "no bosque", "num certo lugar", sítios convencionais _ na
donos de si e, como que enfeitiçados pelo espaço, executam nessa verdade, lugar algum - onde o imaginário se realizaria. 15 Entre-
véspera de Natal uma dança onde se mesclam perplexidade e desejo, tanto, nas histórias onde o processo narrativo cresce em complexi-
dança a que só falta o gesto decisivo e que um chamado exte- dade, o ambiente, mesmo quando não ligado à persoeagem por
rior, invadindo o espaço fechado, vem interromper para sempre. uma relação de causa e efeito, pode contribuir de vários modos
Exemplo ainda mais claro e extremado oferece O Estrangeiro, de
Camus, onde Meursault, conduzido pouco a pouco rumo ao infor- 15 Umberto Eco, estudando as proposições com função. sugestiva, detém-se
na oração "Aquele homem vem de Bassorá". No espírito de determinadas
túnio por uma série de pequenos fatores, vê-se ante a sua vítima, p:ssoas, diz ele, "Bassorá poderia despertar imediatamente a lembrança,
na praia, sob o sol escaldante, e, de súbito, à luz que se reflete na nao de um local geográfico determinado, mas de um 'lugar' de fantasia,
'I.... lâmina brilhante de um punhal, como que resumindo a claridade conhecido através da leitura das Mil e uma Noites. Neste último caso,
~ass<;>ránão constituirá um estímulo capaz de estabelecer uma referência
14 BARRETO, L. Op. cit., p. 31. Quase quarenta anos depois, a motivação
ImedIata, com um significado preciso, mas provocará um 'campo' de lem-
reapareceria em "A Hora e Vez de Augusto Matraga": é o vôo das mara- branças e de sentimentos, a sensação de uma proveniência exótica, uma
canãs, dos periquitos, dos tuins e, principalmente, das maitacas, fugindo emoção complexa e esfumada em que conceitos lndeterminados se misturam
para o sul, o que vai provocar a última viagem de Nhô Augusto para a a sensações de mistério, indolência, magia, exotismo." (Obra Aberta. p.
sua "hora e vez". 76-77.) A simples menção a um lugar - e não a outro _, não comple-
tada por qualquer esforço descritivo, pode pesar sensivelmente no relato.
RELAÇÕES PERSONAGEM/ESPAÇO 103
102 CAPo VI -:.. ESPAÇO ROMANESCO E SUAS FUNÇÕES
espaciais manejados então por Graciliano Ramos, só o vento influi
para O relevo dos eventos narrados, isto é: situa e também enrique- na ação: uma das folhas da carta escrita por Madalena vai voar pe-
ce. O suicídio de Floc na redação do jornal, veículo de comunica- la janela e, encontrada por Paulo Honório, provocar o último diálo-
ção, Ol.!ança-ouma certa ironia (envolve sutilmente o problema do go (?) do casal, diálogo no qual o homem se ocupa de coisas terre-
ilham(,~lto); permite ainda a Isaías observar e registrar os instantes nas e a mulher, cuja decisão de morrer já está tomada, age e fala
anteriores ao seu último gesto, que assim nos aparece mais absurdo em outra margem, desprendida do mundo. A discussão, sem nexo
e como que desnudo: a passagem de Floc "para um compartimento aparente, perturbadora para o leitor, poderia ocorrer num quarto
próximo" é a única concessão feita ao recato que sempre rege o sui- ou numa sala, a qualquer hora do dia, mas é na sacristia e à noite
cídio, o mais solitário dentre todos os atos. No romance Clqra dos que se trava - e aí se manifesta, em sua plenitude, o emprego do
Anjos, assistimos o pobre dentista Meneses deitar-se à margem G<i espaço realçando a cena, arte que o autor de Dom Casmurro não
estrada, no chão, ao lado do amigo Leonardo Flores; bebeu muito, valorizava. Paulo Honório e Madalena defrontam-se à luz de uma
está cansado ("arrastava o passo a muito custo"), não morre por vela, entre imagens de santos; as suas vozes devem ecoar no recin-
ter dormido ao relento, não o liga à relva e às estrelas qualquer vín- to, enquanto o frio vento da serra entra pela janela e faz gemer a
culo psicológico; mas a sua morte, nessas circunstâncias, parece porta, jogando-a contra o batente. Introduz-se ainda um tocante
ao mesmo tempo mais desolada e, na sua miséria, tocada de certa elemento do espaço (e que evoca, indiretamente, a época em que
grandeza. 16 Curiosamente, em Judas, o Obscuro, vai Thomas Bar- se casaram) na fala de Madalena:
dy sugerir miséria, desolação e alguma grandeza à morte do herói, "Madalena, olhando a luz, que tremia, agitando sombras nas
iazendo-o expirar sozinho no seu quarto, enquanto chegam até ele o paredes, saiu-se com esta:
som distante de um órgão e os brados da cidade em festa. O encon- "- Hoje pela manhã já havia na mata alguns paus d'arco
tro casual de Cassi Jones com uma antiga vítima ocorre num daque- com flores. Contei uns quatro. Daqui a uma semana estão lindos.
les "velhos becos imundos que se originam da Rua da Misericórdia É pena que as flores caiam tão depressa."
e vão morrer na Rua Dom Manuel e Largo do Moura", zona que Quando, afinal, ela se vai, após uma discussão que dura mais
Lima Barreto procura descrever, disseminando no texto notações de três horas (e é o som de um relógio, elemento do cenário, que
ligadas às idéias de abjeção e sujeira: "lôbregas hospedarias", "be- nos informa a respeito ), passa de meia-noite. Paulo Honório, fati-
cos escuros", "fundos caliginosos", "mal varridos", "alcovas sem gado, adormece ("sono embrulhado e penoso"), vindo o espaço
luz" etc. Tudo isto sobrecarrega o incidente, testemunhado pelos dar um peso sombrio aos seus sonhos: "Creio que sonhei com rios
"freqüentadores habituais do lugar", tomando-o mais vexatório. cheios e atoleiros."
Poucas vezes, porém, na Literatura Brasileira, o espaço, ape- O parágrafo seguinte, motivo eminentemente estático, mos-
nas situando uma seqüência romanesca - nada explica sobre as tra-nos Paulo Honório sozinho, sem que nada seja esclarecido sobre
personagens e em nada as influencia, principalmente no que con- o que sente ou pensa. O espaço, mais uma vez - espaço que o
cerne à ação _, revela-se tão sugestivo como no capítulo XXXI luar como que fluidifica -, apenas situa esse personagem, enquan-
de São Bernardo. Paulo Honório, na torre da igreja que mandara to Madalena, havendo-o talvez esperado ainda, decerto já está
erguer na fazenda, vê Madalena escrevendo e descortina os seus morta:
domínios, enquanto ouve um empregado matando as corujas que "Quando dei acordo de mim, a vela estava apagada e o luar,
se haviam alojado no forro. (A cena é anunciada no final do capí-
tulo I: "Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em que eu não tinha visto nascer, entrava pela janela. A porta conti-
Madalena.") A mulher decidira suicidar-se e está precisamente nuava a ranger, o nordeste atirava para dentro da sacristia folhas
escrevendo a carta de despedida a Paulo Honório. A convivência secas, que farfalhavam no chão de ladrilhos brancos e pretos. O
com ela afetou no marido as noções de propriedade e de poder, relógio tinha parado, mas julgo que dormi horas. Galos cantaram,
que pareciam inabaláveis antes do casamento. Do alto, portanto, a lua deitou-se, o vento se cansou de gritar à toa e a luz da madru-
Paulo Honório abrange com o olhar esses dois pólos de um confli- gada veio brincar com as imagens do oratório."
to irremediável, cuja crise já se processa. De todos os elementos , Impossível saber se haveria, nesses ladrilhos brancos e pretos,
uma alusão qualquer aos contrastes que marcaram o conflito entre
16 BARRETO, L. Clara dos Anjos. p. 155-56 e 143-45.
RELAÇÕES PERSONAGEM/ESPAÇO 105
104 CAPo VI _ ESPAÇO ROMANESCO E SUAS FUNÇÕES

a prata que polvilha .as anosas manguei~~s~a claridade nívea sobre


Paulo Honório e a suicida. Mas é fora de dúvida que o reflexo da os edifícios da serrana, os carros ferrovIaflos banhados pelo luar e
Lua, neles, torna-se mais nítido e próximo. Faz ainda esse luar, o próprio rosto do marechal "inundado pela luz da lua" conferem
em algum ponto da nossa consciência, mover-se, sutilmente, um a esse chefe de Estado que, em plena revolta, anda de bonde, à
vulto delicado e claro: é como se a alma de Madalena visitasse o noite, sozinho, de posto em posto, algo de espectral. Ploriano, con-
X. homem pela última vez, silenciosa e lunar. Na Lua, astro móvel e versando com Policarpo Quaresma na noite enluarada, parece-nos
morto, sem luz própria, há certa idéia de aridez, certa ausência de diáfano, mas isto - como a luz da Lua - é ilusório: esse vago
força, o que faz Jean-Pierre Richard, na análise sobre Chateau- espectro solitário é o fantasma da Morte e revelará em breve todo o
briand, escrever que "a despeito do seu dom de expansão, a clari- seu poder. Quaresma, iludido pela brandura do luar, segue através
dade lunar não preenche o vazio - vazio das coisas ou do cora- da noite ao lado do seu algoz.
ção _ como o faria o brilho solar. Ela reduz-se a atravessá-Io fa- Muitas cenas romanescas colidem com o espaço, visando a
"/- miliarmente com a sua luz toda negativa." 17 um efeito de contraste, ligado em geral à idéia da Natureza indife-
Essa luz toda negativa aparece como elemento ambiental rente. "Palavra que, quando cheguei à porta, vi o sol claro, tudo
acessório em policarpo Quaresma, na noite em que Floriano Pei- gente e carros, as cabeças descobertas, tive um daqueles meus im-
xoto faz uma visita inesper·ada ao quartel. B verdade que o roman- pulsos que nunca chegavam à execução: foi atirar à rua caixão,
cista se refere, nesse passo, a uma influência do ambiente sobre a defunto e tudo." 21 O dia luminoso ignora o desespero do prota-
personagem. Quaresma, sem atinar ou procurar atinar com as ra- gonista, abalado pela morte de Escobar e pela convicção de que
zões do seu estado de espírito, deita-se vestido e como inebriado: sua mulher sempre o enganara. Mais explícito é o contraste
"O major não colhia bem a sensação transcendente, mas sofria sem entre a morte e a alegria do mundo no enterro de Ismênia, em
perceber o efeito da luz pálida e fria do luar." 18 Mas essa embria- Policarpo Quaresma: "O major ficou na janela que dava para o
guez, esbatidas como são nas estruturas de Lima Barreto as rela- quintal. O tecido do céu se tinha adelgaçado: o azul estava sedoso
ções de causa e efeito, não irá afetar o diálogo entre Poli carpa e e fino; e tudo tranqüilo, sereno e calmo. ( ... ) O major voltou de
Floriano. Seguem os dois até o bonde e o resultado do encontro,
novo a contemplar o céu que cobria o quintal. Tinha uma tran-
pontilhado de indicações sobre o luar, é o que se espera: decepcio- qüilidade quase indiferente." 22
nante para o velho sonhador. Pode-se, com facilidade, descobrir Robert Lidell, apreciando a funcionalidade dos cenários de
valores simbólicos nesse clarão noturno e, principalmente, em ele-
J ane Austen, louva a precisão com que a romancista de Orgulho e
mentos cênicos com os quais estabelece contraste ou que transfigu-
Preconceito os dispõe. Cita, para justificar o seu entusiasmo, o lu-
ra, como a locomotiva resfolegante 19 e o edifício em construção: gar onde, num dos livros de Austen, duas jovens - Miss Smith e
este "parecia terminado, com vidraças e portas feitas com a luz da Miss Bickerton - encontram, acampado, um grupo de ciganos e
lua. Era um palácio de sonho." 20 Preferimos renunciar a interpre-
fogem. "Não poderia haver descrição mais simples de um cenário
tações e chamar a atenção para o modo como o espaço '(que pode natural - escreve Robert Lidell. Somos informados, entretanto,
muito bem cor responder, nessas páginas, a uma daquelas escolhas
do que é exatamente necessário ao drama da fuga das duas jo-
obscuramente orientadas, nascidas de exigências que o.próprio ro-
vens". 23 Seria impossível contestar o ensaísta inglês. Contudo, ele
mancista ignora), sem qualquer valor de índice psicológico ou so-
próprio, na página anterior, confessa que hesitaria "em recomendar
cial (J.-P. Richard), de modo algum é destituído de importância: a um romancista a clássica regra do Théâtre Français, segundo a
17 In: Paysage de Chateaubriand. p. 76 et passo
18 In: Policarpo Quaresma. p. 174. ~~ ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. p. 207.
19 Afiguravam-se as locomotivas, a Lima Barreto, expressões de brutali-

I
dade e mesmo de mediocridade: "monstro sem parentes na natureza", reno, c~~mo), predicativo de três elementos, que Cavalcanti Proença nota
"parto teratológico da inteligência humana", "monstro nascido sem mo- ser fre.quente em Lima Barreto. ("Prefácio." In: BARRETO,L. Impressões
delo, da nossa mentalidade", eis como as define. "Procuro os padrões de -- ]n:
de Policarpo
Ldeuura. Quaresma.
p. 22.) p. 189. reiterativo,
Aí, o tricólon, Observe-se acentua
o tricólona indiferença
(tranqüilo, se-
do
beleza que tenho na cabeça: comparo-os com a locomotiva. Não obtenho ;nun o ante a morte de Ismênia.
nenhuma relação." (Feiras e Mafuás. p. 155.) 3 In: A Treatise on the Novel. p. 114.
20 In: Policarpo Quaresma. p. 175-76.
106 CAPo VI - ESPAÇO ROMANESCO E SUAS FUNÇÕES
RELAÇÕES PERSONAGEM/ESPAÇO 107

Verdadeiro amador de "ambientes", a ponto de descrever num


qual só deve aparecer em cena uma cadeira em que alguém tenha
de sentar-se." 24 Justamente a clássica regra do Théâtre Français artigo a casa (imaginária, bem entendido) que mandara construir,
parece reger o cenário de Jane Austen, dado nesse passo como mo- "com largos beirais, pesadas telhas de calha, largas janelas e alguns
delar: nele, todos os elementos cênicos têm uma finalidade clara, arrebiques modernos" e onde "a decoração da biblioteca lembra a
inequivocamente utilitária, de maneira figurada senta-se alguém tentação de Santo Antão", 26 repara Lima Barreto que Gastão
em cada uma das cadeiras. Além disso, observação que para os Cruls "não ama a natureza" 27 e, comentando a História de João
estudiosos da arte literária tem a sua importância, pudemos ver, Crispim, exalta em Enéias Ferraz "o sentimento da cidade, de suas
nos parágrafos imediatamente anteriores, que o estudo do espaço várias partes e de seus vários aspectos, em diversas horas do dia e
pode revelar-se fascinante e cheio de surpresas exatamente nos ca- da noite." 28 Acrescenta, na mesma página, que quase sempre "nós
sos em que a sua funcionalidade nos parece menos ostensiva. Evi- nos esquecemos muito dos aspectos urbanos, do 'ar' das praças,
temos supor, diante disto, que o interesse em relação ao espaço das ruas, lojas etc., das horas em que elas nos interessam em nos-
venha a culminar precisamente nos casos em que sua função numa sos escritos. A Balzac e a Dickens, os mestres do romance moder-
determinada narrativa seja nula. A narrativa repudia sempre os no, não escapa isso." Poderíamos imaginar que apenas visse no
elementos mortos (as motivações vazias) e dessa lei não pode o espaço, enquanto romancista, um elemento isolado de interesse e
ficcionista fugir. Mesmo admitindo-se a hipótese de desdenhar o não tivesse plena consciência do nexo entre espaço e personagem.
narrador as necessidades internas do seu conto ou romance, intro- Mas, em artigo publicado em agosto de 1919 no A. B. C. e incluído
duzindo, por exemplo, certo espaço para não ter função alguma ou em Feiras e Mafuás, escreve: "A Arte, por ser particular e desti-
de modo absolutamente aleatório, corresponderá tal recurso a uma nar-se a pintar as ações de fora sobre a alma e vice-versa, não pode
finalidade metalingüística. Contesta-se, neste caso, uma função desprezar o meio, nas suas mínimas particularidades, quando de-
tradicional, substituindo-a por outra. las precisar." Assim, prossegue, tendo que pintar o desgosto de um
Assim procede uma corrente das mais prestigiosas do romance leproso, deve-se "primeiramente dizer que ele é leproso, que é rico,
contemporâneo, o que leva um de seus teóricos, Robbe-Grillet, a que é burro ou inteligente; e, depois, descrever a sua ambiência,
tanto de homens, de coisas, mortas e vivds, para narrar, romancear
proclamar que o lugar e o papel da descrição mudaram inteiramen-
te: "Enquanto as preocupações de ordem descritiva iam invadindo o desgosto do mesmo leproso." 29
o romance todo, perdiam simultaneamente seu sentido tradicional. Espanta-nos, portanto, que, percebendo tão claramente o pro-
Já não lhes cabe estabelecer certas preliminares. A descrição cabia blema, tenha incorrido mais de uma vez na utilização não funcio-
situar as grandes linhas de um cenário, depois esclarecer alguns nal do espaço, como em "Miss Edith e seu Tio", conto de onze ou
elementos particularmente reveladores; agora, ocupa-se exclusiva- doze páginas, duas das quais, as primeiras, são dedicadas a descre-
mente de objetos insignificantes ou cujas significações a descrição ver a pensão familiar onde ocorrerá a história, por sinal insulsa:
anula. A descrição pretendia reproduzir uma realidade preexisten- um casal de ingleses hospeda-se e desaparece sem saldar as contas,
te; hoje, reafirma sua função criadora. Enfim, ela fazia ver as coi- o que surpreende a preta Angélica, que acreditava serem os estran-
sas e eis que agora parece destruí-Ias, como se o seu empenho em geiros incapazes de agir assim. Inútil, para a compreensão das per-
pormenorizá-Ias tivesse como único objetivo confundir as suas sonagens ou o relevo da ação, sabermos que a construção era
linhas, dificultar a sua compreensão e fazer com que desapareçam "muito feia de fachada", que "certamente possuiria, como com-
por completo." 25 A ausência de funções, na narrativa, provoca plemento, uma chácara que se estendia para o lado direito e para
sempre uma suspeita de imperícia. E poderíamos indagar se o lei- os fundos", que "sofrera acréscimos e mutilações" ou que havia
tor de romances que "salta uma paisagem" não está, muitas vezes, nos seus corredores e aposentos "uma luz especial, uma quase pe-
'Â retificando inconscientemente o escritor.
;: rU~licado em a Careta, Rio de Janeiro, edição de 17/09/1921. Faz
2/N o volume Coisas do Reino do lambon. p. 175-77.
inclu~tas sobre COivara, A.B.C., Rio de Janeiro, edição de 23/07/1921,
28 I~. as em In:.pressões de Leitura. p. 86 et seqs.
24 Id., ibid. p. 113. 29 I : Iml!ressoes de Leitura. p. 95.
25 In: Pour un Nouveau Roman. 'p. 159-60. n. Feiras e Mafuás. p. 39.
108 CAPo VI - ESPAÇO ROMANESCO E SUAS FUNÇÕES RELAÇÕES PERSONAGEM/ESPAÇO 109

numbra, esse toque de sombra do interior das velhas casas, no seio A funcionalidade do espaço, já o dissemos, se bem possa ser
1-.. da qual flutuam sugestões e lembranças." 30 O casarão, sem dúvi- entrevista no plano da micro-estrutura, só em face da estrutura glo-
da, é descrito com segurança e as suas singularidades não escapam bal será aferida com precisão. Pode então suceder que uma uni-
ao romancista. Mesmo assim, o ambiente e a história que aí decor- dade inserida no texto e que, a um exame mais restrito nos pareça
re apresentam-se como unidades soltas, observando-se uma incô- mono gráfica, dado que não se relaciona com as personagens e seus
'}..moda hipertrofia do primeiro. 31 %' atos, revele, dentro do conjunto, a função que antes nos escapava.
Caso ainda mais discutível encontramos em Histórias e So- Em Policarpo Quaresma, há, no capítulo 11 da terceira parte, uma
nhos, no conto "Mágoa que Rala". Uma criada alemã aparece pequena seqüência onde se descrevem certos aspectos do Rio de
morta no Jardim Botânico; durante a investigação, um jovem apre- Janeiro durante a Revolta da Armada e que transcrevemos, cha-
senta-se como o assassino; as testemunhas contradizem o seu de- mando a atenção para o seu tom de crônica, nada romanesco:
poimento e ele acaba sendo absolvido. As oito primeiras páginas "Às vezes eles [os meninos] chegavam bem perto à tropa, às
do conto são consagradas ao Jardim Botânico, mas não se restringe trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qual-
aí Lima Barreto a descrevê-lo: desenvolve uma série de considera- quer, chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá
ções sobre D. João VI, o "simplório rei erisipeloso e gordo", capaz licença que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam
de "compreender de modo mais amplo a natureza", 32 sublinha a a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.
importância social do Jardim Botânico na vida do Rio de Janeiro "Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um diverti-
e lembra que Darwin se refere a esse logradouro. A relação entre mento da cidade. .. Quando se anunciava um bombardeio, num
tudo isto e o conto propriamente dito é ainda mais remota que no segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como se fos-
caso de "Miss Edith e seu Tio". Nessas circunstâncias, por mais se uma noite de luar, no tempo em que era do tom apreciá-Ias no
compreensivos que sejamos, não poderemos falar de ambientação, velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário
ao menos nos termos em que procuramos estabelecer o conceito. pratear a água e encher o céu.
Inexistindo os laços entre a descrição do espaço e as personagens, "Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os
isto é, não as refletindo o espaço e em nada influindo sobre elas, rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma repre-
nenhum relevo conferindo o espaço aos eventos narrados, podemos sentação de teatro: "Queimou Santa Cruz! Agora é o 'Aquidabã'!
dizer que nos distanciamos da ficção e inclinamo-nos para a mo- Lá vai. E dessa maneira a revolta ia familiarmente entrando nos
nografia. Note-se que, ao ocupar-se do Jardim Botânico, passa Li- hábitos e nos costumes da cidade.
ma Barreto da descrição à dissertação ostensiva. Entendemos a "Nos cais Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jor-
ambientação como um processo inerente à arte narrativa, visando nais, engraxates, quitandeiros ficavam atrás, das portadas, dos uri-
,x a resultados de natureza ficcional. nários, das árvores, a ver, a esperar a queda..•.•..
das balas; e quando
acontecia cair uma, corriam todos em bolo, a apanhá-Ia como se
30 In: Clara dos Anjos. p. 219. fosse uma moeda ou guloseima.
31 Nossa contemplação de Lima Barreto é atual. Ele nos interessa, prin- "As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, ber-
cipalmente, corno um escritor voltado para o nosso tempo. Como um ante-
cipador. Uma leitura que o considere historicamente, talvez seja mais loques de relógio, lapiseiras, feitas com as pequenas balas de fuzis:
compreensiva a respeito das soluções que aqui comentamos com algum faziam-se também coleções das médias e com os seus estojos de
rigor. Poderá ver, por exemplo, em descritivos cuja ausência de função metal, areados, polidos, lixados, ornavam os consolos, os dunker-
nos fere, sobrevivências do romance oitocentista. Lima Barreto, embora
pouco propenso a imitá-Ios, lia e âdmirava, como se sabe, os ficcionistas ques das casas médias; as grandes, os 'melões' e as 'abóboras', co-
dessa época. mo chamavam, guarneciam os jardins, como vasos de faiança ou
32 O Jardim Botânico testemunha aquela inclinação do Príncipe Regente: estátuas." 33
"de quantas rnudas ou sementes lhe chegassem deste ou daquele ponto,
Policarpo Quaresma, embora alistado, não participa dos atos
fossem da Ilha de França ou de Caiena, tratava logo de remetê-Ias para
o aludido par~ue. ( ... ) Das Antilhas, em 1809, veio-lhe a planta mater inconseqüentes ou ridículos a que se refere o narrador; a luta, para
da Oreodoxa oleracea, a imponente palmeira real, hoje tão disseminada ele, não tem nada do aspecto festivo, carnavalesco, que aos poucos
por todo '0 país, e que D. João ali foi plantar de suas próprias mãos."
(CRULS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro. p. 257.) 33 In: Policarpo Quaresma. p. 169.70.
110 CAPo VI - ESPAÇO ROMANESCO E SUAS FUNÇÕES

lhe atribui a população da cidade. Aparece-nos, vivo, o espaço do


Rio de Janeiro nesses dias (e poderíamos falar, aí, de espaço so-
cial), "familiarmente entrando nos hábitos e nos costumes da cida-
de." Documento histórico e político? Análise sociológica? Sim.
Mas Policarpo Quaresma é um romance sobre o desajuste entre o CAPÍTULO VII
imaginário e o real, entre a idealização e a verdade, entre a idéia
que o personagem-título faz do seu país e o que o seu país é real- VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ
mente. O livro todo apresenta-se como uma série de variações em
torno desse tema. Compreendendo-o assim, alcançamos claramen-
te a funcionalidade dessas páginas, não mais uma monografia breve
introduzida no relato e sim um exemplo menos corrente de ambi- Temática. - Espaço, ambientação e funções do espaço
nesse romance. - Conclusão.
entação. As balas que ficam na moda, os velhos e moços que alu-
gam binóculos e acompanham o bombardeio como um espetáculo "Errants, ô Terre, nous rêvions ... "
de feira, os sujeitos que pedem para fazer um disparo de canhão, Saint-John Perse (Chronique)
tudo reitera o contraste entre a austeridade de Quaresma e a futili-
dade dos seus concidadãos, reforçando o tema nuclear do romance Escritor arrebatado e pouco paciente, tende Lima Barreto a
e de quase toda a obra de Lima Barreto, fundada no conflito entre enfrentar de rijo os seus projetos literários, num esforço concentra-
. o homem e o seu meio. 34 do e aflito, realizando-os em poucas semanas, como se receasse
Só a visão integral da obra nos permite igualmente captar a perder o fôlego ou o ânimo, ou ser absorvido pelos aspectos adver-
funcionalidade de certos descritivos nas Memórias de um Sargento sos da sua vida. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, ao contrá-
de Milícias, que procura reconstituir certa época do Rio, o "tempo rio, acompanha-o durante anos. Suas notas de 1906, data em que
do Rei", 35 reconstituição muitas vezes afim à de um pintor primi- o inicia, são quase todas dedica das ao livro. Quando, em 1909,
tivo, mas vivaz e cheia de alegria - e onde as vinhetas ligadas aos escreve a Gonzaga Duque, para agradecer uma referência na im-
costumes do tempo então restaurado, inoportunas em outro tipo de prensa, diz estar tentando publicar as Recordações do Escrivão
romance, constituem aí uma de suas normas e talvez, no fundo, sua [saías Caminha, com o qual espera "escandalizar e desagradar".
razão de ser. Não se encoraja a estrear com o Gonzaga de Sá. Nove anos mais
tarde, encontramos a seguinte informação na sua correspondência:
"Não estou doente, mas sem roupa de lã para sair, pois a que tinha
34 Apesar de ser Clara dos Anjos um romance dos subúrbios ("o mais parte aproveitável meu irmão mandou-a lavar e também fazer umas
suburbano, o único rigorosamente suburbano dos romances desse grande calças. Aproveitei a ocasião para rever o meu Gonzaga de Sá,
escritor", diz Lúcia Miguel Pereira. História da Literatura Brasileira - que me foi encomendado pela gente do Marinho." (Carta de
Prosa de Ficção (De 1870 a 1920). p. 313), não se pode, com pro-
priedade, afirmar que as cinco primeiras páginas do capítulo VII do 16/04/1918 a Antônio Noronha Santos.) O pequeno romance
livro tenham algo a ver com o que entendemos por ambientação. O que continuava a exigir as atenções do autor, que não se animava a
se lê é uma dissertação sobre o subúrbio, encravada em plena narrativa. quebrar lanças e publicá-Io de qualquer maneira, como fizera com
outros.
35 Deve-se observar, aliás, que uma alusão ao tempo pode ter na verdade
função espacial. Lê-se no capítulo II de Senhora: "Seriam nove horas do
dia. / Um sol ardente de março esbate-se nas venezianas que vestem as Teme que o livro vá longe demais no seu desdém pelas nor-
sacadas de uma sala, nas Laranjeiras. / A luz coada pelas verdes empa- mas tradicionais? Pensa haver na obra certos problemas que o tem-
nadas debuxa com a suavidade do nimbo o gracioso busto de Aurélia sobre po lhe permitirá resolver? Hesita em desvendar o seu lado reticente,
o aveludado escarlate do papel que forra o gabinete." O mês e a hora,
.aí, carecem de importância. O que interessa é o efeito da luz, às nove horas que tanto oculta sob os disfarces de uma ação sempre generosa e
de um mês de março tropical, sobre a figura de Aurélia. Atestam-no as que o breve romance revela com clareza? "Era um tanto cerebrino,
"verdes empanadas", a "luz coada", a "suavidade do nimbo", o "avelu- o Gonzaga de Sá, muito calmo e solene, pouco acessível, portanto"
dado escarlate do papel". O romancista busca retratar a heroína sob ilu- -=- explica ainda a Gonzaga Duque. O julgamento é correto, mas
minação favorável, situando-a num espaço encantado. nao resume todas as características da obra.
112 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ TEMÁTICA, ESPAÇO, AMBIENTAÇÁO, FUNÇÕES... 113
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá oferece aspectos os ,,_ Mora também um conde, e creio que princesas.
mais atraentes ao amador de ficção, capaz de perceber certas solu- "- Mortos?
ções e singularidades. :E: preciso, realmente, haver lido outros ro- ,,_ Sim, mortos! Vês lá o sinal da morte?
mances, para julgar com exatidão muitas das rebeldias presentes ,,_ Não; está sorridente e alegre.
no livro. Necessário ter seguido as peripécias de muitos heróis ro- "- E este casarão ali?
manescos, suas lutas em direção a um determinado objetivo, para ,,_ Está aqui, está desabando.
avaliar a importância dessas personagens menos propensas a agir "- Morto, não é? Sabes por quê? Porque não guarda ne-
que a refletir; que se haja acompanhado a evolução de numerosos nhum morto." 1
conflitos, para aferir a ousadia dessa concepção destituída de pon- Seu livro não será um casarão brutal e sem vida: a morte ha-
tos de resistência; o conhecimento de muitos enredos firmemente bita-o.
estruturados é indispensável à avaliação desse romance desarticula- Enquanto acompanha Romualdo ao cemitério, observa Gon-
do e cuja desagregação reflete tão bem o hom~m de que se ocupa,
zaga de Sá que "a morte tem sido útil, e será sempre. Não é só
ilhado, não relacionado com os demais e a ponto de fragmentar-se
interiormente; só quem afinou devidamente a sensibilidade para as a sabedoria que é uma meditação sobre ela - toda a civilização
resultou da morte." 2
sutilezas do ritmo e do clímax será envolvido por esta peça onde o
ritmo narrativo é deslocado para regiões muito profundas - trans- Começamos então a ver por que tantas páginas são dedicadas
figurado talvez em uma secreta e quase inacessível melodia - e às exéquias do contínuo (parte do capítulo IX e todo o capítulo
onde se recusa toda exigência relacionada com a idéia de crise, sen- X), quando nada se diz sobre as de Gonzaga de Sá. Centra-se no
do as ondulações da obra, as eventuais expansões do seu protago- episódio um tema essencial da obra e as variações sobre ele hão de
nista absolutamente desligadas de um fio narrativo preciso; essas ser distribuídas entre os dois personagens centrais: concentrá-Ias
condições prévias e mais uma atitude de disponibilidade estética, no jovem sobrevivente seria enfraquecê-Ias. 3 No Policarpo Qua-
não enrijecida por expectativas modeladas nas leituras feitas, eis o resma, a morte de Ismênia não exalta a sensibilidade do major, e
que não pode faltar a quem se aproxima do Gonzaga de Sá. Aque- isto pode ser notado na frieza com que se registra o aspecto do dia
la disponibilidade faltou a Agripino Grieco, que o via com olhos - o espaço, então, acentua a indiferença universal ante o destino
absolutamente inadequados, como alguém que procurasse ocasos individual. Inverte-se o mecanismo em Gonzaga de Sá: a morte
ou figuras num quadro de Mondrian. de um indivíduo afeta a percepção dos dois amigos; e eles, oscilan-
Várias vezes, no presente ensaio, esboçamos as coordenadas do entre o torpor e a exaltação, interrogam mais decididamente o
desse livro singular. Seja-nos agora pe/mitido acentuar o seu per- mundo. Imagens de vida e de morte se sucedem: "Eu, já via o
fil, principalmente no que concerne à temática. Apenas tem-se vis- cadáver, na nudez estúpida de coisa e, apesar dela, com uma in-
to no título Vida e Morte (de M. J. Gonzaga de Sá) uma referência terrogação a que ninguém até hoje respondeu com segurança - o
expressa ao seu protagonista. Será correta a interpretação? Por um que vamos ser depois disto?" 4 "As crianças brincavam na rua ino-
simples capricho ocorre nas primeiras páginas, como por acaso,· a centemente." 5 "Evaporou-se tudo e eu só sabia dizer: a Morte! a
morte desse burocrata? O resultado disto, note-se, é que o perso- Morte!" 6 "Nessa rápida postura, a moça atraía fortemente." 7 "O
nagem, em parte, nos fala como que intensificado (vivificado, carro fúnebre era o primeiro e, quando havia uma wrva, eu podia
diríamos) pela morte. Parece desejar Lima Barreto que a presença lobrigar pelas janelas abertas, nos carros de primeira classe, algu-
da morte, solene, habite o seu romance; e deixa-o claro no breve diá-
logo que antecede o fim de Gonzaga, fragmento enigmático e gratui- ~ In: Gonzaga de Sá. p. 42-43.
to se não o consideramos dessa perspectiva. Passam os dois amigos ~ Id.,. ibid., p. 127.
v. Sal.lentarem?s, adiante, a "iluminação", enraizada na idéia da morte e que
"diante de um casarão brutal" e Gonzaga de Sá, apontando o con- 4 alonza, no lIvro, certas introduções do espaço.
vento de Santa Teresa, pergunta: _ 1n: Gonzaga de Sá. p. 108 .
.: id., ibid., p. 115.
"- Sabes quem mora ali? ~ id., ibid., p. 116.
"- Freiras. , Id., ibid., p. 118.
114 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ TEMÁTICA, ESPAço, AMBIENTAÇÃO, FUNÇÕES... 115
mas plumas de chapéus femininos ... " 8 Parte dos diálogos entre ui O escritor, modulando o motivo, tanto através do cenário
Machado e Gonzaga gira naturalmente em torno desse tema; e a ra aq através da ação (af mudança de
corno . - carro, no trem) , e. do diálo-
conversa entre o jovem e Alcmena também o inclui. O próprio . nunciando habilmente as mtençoes que regem a sene, pergun-
interlúdio com a moça, em pleno velório, insere-se na seqüência gO'C:onzaga de Sá a seu amigo se sabe bem o que significa, nos
como uma alusão à vida, associando-se às crianças que brincam e ta "d d" 11
às plumas de chapéus femininos esvoaçando nos vagões ao vento co'd1'gos de nobreza, o termo egra
A antítese vida/morte ecoa am. daarna. obra atraves
' da h'esltaçao
-
do domingo. Também a variedade dos flagrantes testemunhados e notamos entre o ato de pensar (vida) e a ausência de pensa-
pelos dois amigos a caminho do velório e no dia do enterro - pes- :nto (morte). O dilema, presente em vários pontos, assume as-
soas no bonde, trem cheio, conversas inócuas dos passageiros, na-
morados, trabalhadores a caminho de suas casas, a vinda da noite pectos bastante curiosos. Pensar, por vezes, nada tem de jubiloso,
aparecendo como um castigo, a ponto de Machado desejar um dia
moças voltando da missa ou à porta de uma casa burguesa, árvo~ desfazer-se da educação recebida: "Ah! se eu pudesse apagá-Ia do
res, a multidão dominical e, por fim, a Avenida Central iluminada cérebro! Varreria uma por uma as noções, as teorias, as sentenças,
- reflete a variedade da existência humana, com os seus jugos e as leis que me fizeram absorver; e ficaria sem a tentação danada
prazeres. Finalmente, o episódio decorre entre um sábado e um da analogia, sem o veneno da análise." 12 No mesmo sentido segue
domingo, entre um dia de trabalho e outro de repouso. o racioCÍnio de Gonzaga, quando fala do contínuo Romualdo, afir-
A razão é que Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá - obra mando que "o seu sofrimento só poderia ser criado pelos outros.
à qual caberia com propriedade a designação de "anatomia", pro- Sou eu que o faço sofrer; ele, de fato, não sofreu. .. Hei de tra-
posta por Northrop Frye 9 - é fundamentalmente um conjunto de tar dos meios de extirpação da consciência ... " 13 Vislumbra-se
meditações sobre o destino humano. Daí a ênfase atribuída, em ainda a crença de que o pensamento é em parte responsável pelo
grande parte do livro, à oposição vida e morte, de que o título - insulamento que sofrem - Gonzaga e o jovem amigo - em rela-
que se revela, assim, cheio de intenções - é o principal indício. ção aos demais: "O grande relvado circular que dividia as duas
Vão coincidir com esta interpretação os motivos correlatos da de- alamedas, com o seu repuxo ao centro, marcava o limite entre os
cadência, da ruína, da degradação, disseminados ao longo do dois meios fluidos, próprios à vida deles e à nossa." 14 Conceber
texto. 10 A excursão ao Engenho da Penha, cuja descrição culmina o pensamento como um infortúnio, entretanto, não impede que
com a passagem imaginária de Estácio de Sá, no vigor da idade, em Machado exalte "a sagrada sabedoria de me conhecer a mim mes-
busca da morte, encerra um número significativo de alusões nesse mo, de poder assistir ao raro espetáculo das minhas emoções e dos
sentido. Augusto Machado e Gonzaga compram bilhetes de pri- meus pensamentos." 15 O interesse de Gonzaga pelo estudo é tam-
meira classe para Bom Sucesso e logo se transferem para um carro bém introduzido como um traço favorável da sua personalidade,
de segunda; a enfermaria de loucos, no Galeão, serviu de residência ao passo que ele próprio lamenta o fato de haver ficado a meio
a D. João VI: também as mangueiras aí existentes "viram" o rei; c~minho: "As palavras me faltam; as idéias não encontram expres-
lembra Gonzaga de Sá que, "antes das estradas de ferro, as comu- soes adequadas, para se manifestarem "16 "Tenho desgosto de
nicações com o interior se faziam pelo fundo da baía, por Inhomi- não ter procurado a luz, as alturas" 17 Contradições semelhan-

rim, porto da Estrela, hoje tapera"; da antiga venda existente em tes, estas, à que verificamos no amor de Machado pela vida (pa-
um ilhote situado no meio do canal, restam algumas paredes. Ope- tente quando se dirige para o velório e vê mais doçura na luz, mais
~elez~ nas casas) e no ocasional impulso de "acabar com tudo":
8 ld., ibid., p. 126. quena a terra sem o homem, sem a humanidade, já que eu não era
9 In: Anatomia da Crítica. Ver, principalmente, "Formas Contínuas Espe-
cíficas" (Ficção em Prosa) - p. 297 et seqs. "Em sua maior concentração, 111 n: Gonzaga
12
.
de Sá. Capítulo IV
diz Northrop Frye, a sátira menipéia . (expressão que ele substitui por ana- 13 Id., ibid., p. 110. .
tomia) oferece-nos uma visão do mundo nos termos de uma simples confi- 14 Id., ibid "'. P 130
guração intelectual." (p. 304.) 15 Id., ibid "'. P 132
10 A presença desses motivos, provavelmente, é intencional. Aí, entretanto, 16 Id., ibid ., P . 41 .
a importância da intencionalidade é relativa. Recordemos aquela sombra 17 Id., ibid "'. P 147
que sabe, tão importante na criação artística. Id., ibid., p. 149.
116 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ
TEMÁTICA, ESPAço, AMBIENTAÇÁO, FUNÇÕES... 117

feliz e sentia que ninguém o era ... "18 Falar, em qualquer dos Vez ocupando na sociedade o lugar mais silencioso, exíguo e
uma , . . d' . d
casos, de incoerência, seria descabido. Gonzaga de Sá, livro acen- insignificante; ou tentar abnr @smuros, mva Ir o melO on e o re-
tuadamente intelectual, nada tem entretanto de um romance de tese m e clamar - dentro ou fora dos muros - contra o absurdo
cusa . 1 d L .
nada quer provar, não se resolve ao longo de suas páginas equaçã~ d róprio isolamento e do ISOamento e outros. uta ou capltu-
nenhuma. Inquietude e perplexidade o atravessam. Lima Barreto 1o aça1'0 . Gonzaga de Sá, figura associada velhice,
. 1a dà es . à decadência, ao
não falava por falar, quando, em 1919, ano da publicação do samento estéril e a, morte, capItu d e a Juventu de: "f ez-se

Gonzaga de Sá, escrevia em carta a Alberto Deodato: "O que falta penticante e foi indo." 20 Quanto à "sua ânsia e a sua febre de
no teu temperamento, ou está ainda faltando, é angústia, é dúvida, pr~hecimentos", logo conclui Machado serem apenas curiosidade
é o sentimento do infinito e da nossa humana pequenez; é também ~Otelectual "mesmo porque não se podia encontrar outra espécie
In, b 'd d h'
de explicação, à vista da o scun a e a que se aVIavo untanamen-
1 .
a interrogação dolorosa diante do teu destino e do dos outros, sobre
o valor da vida." te imposto", 21 atitude que agora iluminamos de outro ângulo. Au-
A projeção degradada, se assim podemos dizer, do contraste gusto Machado, ao contrário, em quem se concentram mocidade e
fé (embora exasperada) nas suas próprias forças, não aceita a anu-
vida/morte, a mais próxima da nossa experiência ordinária, vai por
fim manifestar-se no tema dual, também contrastante, da luta e da lação, situa-se na corren:e da vida - e ist~ ~pesar dos acessos de
desânimo, quando, desejando a morte, assImIla um dos temas do
capitulação. Com isto, a concepção da obra assume um caráter
'livro. Ele opta pelo combate e a sua decisão está expressa na após-
decididamente humano, abrangendo o intemporal e o histórico, o trofe íntima dirigida aos dominadores representados no Teatro Lí-
espiritual e o material. Não se contenta em questionar os proble- rico: "Eu era um covarde, um escravo; eles, príncipes e reis. Não
mas-limite do ser humano no mundo; cerra a objetiva e enfoca a serei mais assim! ... Era preciso brigar - briguemos! Escolheram
inserção do indivíduo na sociedade. De maneira ainda mais preci-
a guerra - tê-la-ão!" 22 Mas estas exclamações apenas sintetizam
sa: a situação do homem de espírito nu~ quadro social leviano, uma atitude cuja verdadeira expressão é o próprio livro. Assim,
indiferente e talvez mesmo adverso. A luta, neste romance, não se
adquire grande interesse a escolha do foco narrativo. Fosse o livro
apresenta em termos de carreira, de ascensão profissional, como é escrito na terceira pessoa, não encontraria expressão satisfatória a
o caso de Numá Pompílio de Castro (Numa e a Ninfa) e, menos escolha de Machado, sua Atitude de luta. Mas se é ele que escreve,
declaradamente, o de Isaías Caminha. A espécie de luta que Gon- se através do seu relato temos acesso à convivência fruída com o
zaga e Machado têm em mente é mais profunda. Machado, aos amigo morto, se registra as visões e interrogações que marcaram
vinte anos, tinha "um louco sonho de ser diretor", 19 mas logo se aquela convivência, se não se resigna ao isolamento e ao silêncio,
sente que tal sonho perde a importância. (A palmeira vista através se procura com os meios que possui alcançar outros homens, então
da janela, na casa avoenga de Gonzaga de Sá, certamente não é que (ao contrário do amigo) ele não quer 'aceitar o banimento e
aponta para um simples cargo diretivo na burocracia.) Com isto, procura fazer com que os aceitemos - a eles, os segregados.
a idéia de luta ou capitulação revela a filiação temática à oposição Essa projeção, no tempo histórico, do tema já indicado no tí-
metafísica vida/morte, de que é a expressão pragmática. Ilustram- tulo da obra (onde, é bom advertir, o tema essencial e os que dele
-na muito bem o episódio do balão, anunciado na frase que abre o decorrem muitas vezes se entrelaçam), robustece-a com um senti-
livro ("Nunca me passou pela mente que o meu amigo Gonzaga
d? d~ proximidade que o confronto vida/morte, pela sua transcen-
de Sá se dedicasse a cousas de balões. ( ... ) Tive sempre respeito dencIa, não permitiria. A alternativa entre luta e rendição compre-
por aquele que quer voar ... ") e a história do indivíduo que, apai-
xonado pela crítica religiosa e havendo estudado certas línguas sa- ende certas condições sociais, uma realidade política e econômica
gradas, é lamentado, ao morrer, pela caligrafia, por mais nada. A sobn fi. qual se projeta. Ora, tanto a luta como a rendição levam a
1'...." e~clmedesse campo, dessa realidade. O exame operado em tais
estrutura social que o escritor conhece (e a de hoje nos parece ain-
da mais drástica nesse sentido) recusa um lugar para os delicados condIções nunca será frio, mas implacável e por vezes deformador
de alma. Apresenta-se então a seguinte alternativa: isolar-se de 20 ld., ibid. P 47
21 ld '. ' . .
22 ., lbld., p. 50.
18 Id., ibid., p. 142. ld., ibid., p. 158.
19 ld., ibid., p. 42.
118 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ TEMÁTICA, ESPAço, AMBIENTAÇÁO, FUNÇÕES... 119

_ e isto não surpreende. Renda-se a personagem ao próprio isola-


I 'as como adventício, descobre a cidade com olhos curiosos e
mento como Gonzaga de Sá ou tente rompê-Io à maneira de Ma- s~:-c~s ao passo que o velho descendente de Estácio de Sá e buro-
chado, a consciência desse fato é aguda e determinante, tomando-os
~~~:a d~ Secretaria dos Cultos anda pelo Rio cheio de lembranças
amargos, irados, irônicos. e contempla-o com amor. Acompanha as andanças de Gonzaga o
Concluída esta exposição, que os espíritos demasiado práticos seu amigo e biógrafo.
talvez considerem um pequeno desvio e que, ao contrário, julgo in- Inevitável, falando do espaço em Gonzaga de Sá, voltarmo-
dispensável (desvela, com a possível exatidão, o caráter do objeto
-nos para essas duas personagens. Há, entre ambas e o que as cer-
a ser estudado, e cremos ser legítimo falar, aqui, em desvelamento, ca um nexo intenso e constante; o espaço, em larga medida, parece
considerando-se que a temática profunda do Gonzaga de Sá esqui-
va-se à primeira leitura), podemos agora concentrar nossa investi- ' se; inventado por elas. Se não o inventam, muitas vezes o esco-
gação no espaço desse romance. Veremos, aliás, que o tema vida! lhem e quase sempre o apreendem de modo pessoal. Pode-se, em
!morte - e, com ele, as respectivas projeções - não é estranho muitas obras, estudar o espaço abstraindo as personagens e só de-
aos cenários do romance, ao modo como surgem e às funções que pois apreciar as relações entre os cenários e as figuras. No Gon-
lhes .cabem. zaga de Sá, esse método simples toma-se impraticável, a não ser
que renunciemos a definir o caráter do seu espaço, então falseado,
desfigurado na sua especificidade. .
Espaço Existem, aliás, nos dois amanuenses, alguns pontos de contato
também no modo como reagem ante o espaço. Ambos revelam-se
Todo o Gonzaga de Sá decorre na cidade do Rio de Janeiro, sensíveis às paisagens naturais. O primeiro encontro a que alude
onde nasceram e residem as personagens centrais. "Vivo nela e ela no texto o biógrafo fictício - e que será o último, pois Gonzaga
vive em mim!" 23 - exclama Augusto Machado. Diz o velho Gon- morrerá nessa tarde - tem por objeto a contemplação do ocaso:
zaga: "Eu sou Sá, sou o Rio de Janeiro, com seus tamoios, seus ne- "Nós tínhamos tratado de encontrarmo-nos no terraço do Passeio
gros, seus mulatos, seus cafusos e seus galegos também ... " 24 O Público, para ver certo matiz verde que o céu toma, às vezes, ao
jovem tem parentes em Minas e o seu amigo na Bahia, mas essas entardecer." 26 Os cenários não criados pelo homem surgem geral-
divisões políticas são apenas nomeadas: o espaço do romance é mente sob uma luz benévola: "O domingo estava maravilhoso, glo-
dominado pela presença do Rio. rioso de luz, e os ares eram diáfanos". 27 "Lá fora, começava a
Vemos, sob vários prismas - e sempre modulados pela visão correr uma branda viração, a cujo impulso a palmeira inclinou-se
das personagens -, montanhas, mar, casas, logradouros públicos, .para 9 nosso lado." 28 O modo como a cidade foi edificada, ao
ruas centrais e, naturalmente, o subúrbio, sempre tão presente na contrário, não os entusiasma. Gonzaga de Sá, num trecho que
obra de Lima Barreto. Note-se, entretanto, que a presença de to-
aproveita quase na íntegra a primeira versão do início de Clara dos
dos esses lugares é menos pronunciada que em [saías Caminha, on- Anjos, historia e critica a formação dos bairros cariocas, a fisiono-
de o herói empreende uma exploração sistemática da cidade, explo- mia das casas: "O tráfico de escravos imprimiu ao Valongo e aos
ração que nem sempre se limita a registrar a existência de certa rua
morros da Saúde alguma cousa de aringa africana". 29 "Hoje (po-
ou jardim, insistindo, ao contrário, em revelar os seus vários aspt>~-
nho de parte os melhoramentos), o geólogo de cidades atormenta-
tos segundo as horas do dia, como sucede à Rua do Ouvidor, então
ponto de encontro obrigatório de ambições e sonhos. 25 O jovem romances de Lima Barreto, vê na Rua do Ouvidor o intermediário entre
o su~~rbio e Botafogo. Para ela, há no romancista carioca três espaços
23 Id., ibid., p. 40. Ml?eclfl~oS: o urbano, o setor político-administrativo e o literário. ("A
24 Id., ibid., p. 59. 331tologla Urbana de Lima Barreto". In: Tempo Brasileiro. 1973. N.o
25 Com motivo, aliás, dada a sua importância. "Na verdàde, vem de longe /34.)
o prestígio que essa rua assumiu na vida da cidade e não ioi sem razão que :~ In: Gonzaga de Sá. p. 38.
ocorreu a Koseritz dizer que o Rio de Janeiro era o Brasil e a Rua do Ou- 28 Id., ibid "'. P 125
vidor o Rio de Janeiro." (CRULS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro. p. Id.,
29 I
ibid .,.pISO .
420.) 'Sofia Brayner, em ensaio conciso e altamente sugestivo sobre os d., ibid., p. 67.
120 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GQNZAGA DE SÁ TEMÁTICA, ESPAÇO, AMBIENTAÇÁO, FUNÇÕES... 121

-se com o aspecto transtornado dos bairros." 30 Reportando-se a af acaso, ou por obediência, as aglomerações representam modali-
um casarão dos primeiros anos da Independência: "Vede-lhe a se- ~ades do encontro. Formam então um contraste c?~ os do~s.ami-
gurança ostensiva, como que quer parecer mais seguro que uma gos solitários. De um modo ou de outro, esses CIVISou mIlItares
catedral gótica; a força demasiada. das paredes, a espessura das concentram-se e sugerem alguma coisa que falta ao par de burocra-
portas ... "31 Tudo isso encontra uma compensação na Natureza: tas: o calor do grupo, a comunhão - mesmo flébil ou compulsória
_ com os seus semelhantes. Machado, mais que Gonzaga de Sá,
"Mas, se amol~
dade essa su~ to~rafia criou
de poesia essas dificuldades,
de sonho deu 32à nossa
e de grandeza." ci-
Augusto mostra-se sensível a esse confronto. :f: ele, quem, depois de "uma
Machado é ainda mais severo: "O arruamento do subúrbio é deli- noite má, povoada de recordações amargas", procura dissolver-se
rante. ( ... ) As épocas se misturam; os anos não são marcados na multidão e quem viaja "comprimido com volúpia, sofrendo
pelas coisas mais duradouras e perceptíveis." 33 A civilização, lon- aquele contato humano", dando-se bem "ao absorver a maior por-
ge de ser vista pelos dois burocratas como a organização do mundo ção de calor vital do meu semelhante próximo", quando segue de
virgem, surge aproximadamente como a absurda implantação da bonde para o velório. Contudo, manifestam-se em ambos, diante
desordem num espaço edênico. das aglomerações, a consciência do abismo entre eles e os outros,
Identificam-se ainda, Machado e o velho, no misto de inte- o dilema da inquietude intelectual oposta à ausência de preocupa-
resse e distanciamento com que integram, no espaço, seres huma- ções existenciais e a não aceitação das forças que esmagam o ho-
nos, então com a individualidade tendendo para zero. Essa integra- mem, tornando impossível a evolução do espírito.
ção, em Gonzaga de Sã, jamais se manifesta, como no conto Expressão freqüente, no livro, das relações de Gonzaga de Sá
"Amor", de Clarice Lispector, através de uma figura isolada que, com o passado, suas visitas a construções antigas (quando, fatal-
devido à sua neutralidade, perde a condição de personagem; e sim mente, o motivo da decadência reponta). O velho - e nisto dife-
por intermédio de algo ainda mais impessoal, a aglomeração. As- re do amigo - tem o hábito de procurá-Ias "para de novo contem-
sume vários aspectos na obra e múltiplas são as considerações que plar um velho telhado, uma sacada e rever neles fisionomias que
provoca. Há as aglomerações populares e festivas, como as que já mais não são objeto ... " 37 Ia "em procura de sobrados, das
se concentram no Passeio Público e na Avenida Central; a que sacadas, dos telhados, para que à vista deles não se lhe morressem
reúne classes mais afortunadas, como no Teatro Lírico; as que o de todo na inteligência as várias impressões, noções e conceitos
acasO' faz convergirem para os transportes coletivos; os "graves que essas cousas mortas sugeriram durante aquelas épocas de sua
homens de fisionomia triste, curvados ao peso da vida, sobraçando vida." 38 Nestes casos, as obra~ dos homens deixam de ser vistas
alongados embrulhos de pão", 34 no subúrbio; as que se opõem na com espírito crítico, transfiguradas pela emotividade de Gonzaga,
cena do desfile militar, de um lado os "homens maltratados pela que procura iludir, ao contato desses wstígios do passado, a sua
vida" que assistem ao desfile e de outro os soldados, também estes solidão. 39
divididos entre "os generais pimpões que galopavam ao lado dos Há, mesmo, no livro, um espaço pretérito - de que Gonzaga
dourados almirantes" 35 e os que "se moviam a uma única ordem, de Sá é o principal mediador - a insinuar-se sobre as coisas pre-
a uma única voz." 36 Reconhecemos facilmente, nos exemplos da-
dos, a reverberação de temas antes referidos, comO' a dificuldade 37 Id., ibid., p. 63.
ou mesmo a inviabIlidade da luta, em face das desigualdades sociais 38 Id., ibid., p. cito Sérgio Buarque
de Hollanda, em apreciações publica-
das no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, edições de 23 e 30/01/1949, e
(com o que se anuncia e justifica o motivo correlato da capitula- constantes da edição citada de Clara dos Anjos, salienta a atração de Lima
ção). Não só isto: provocadas por prazer, ou por necessidade, ou Barreto pela decadência. (V. p. 14-15 do referido volume.)
3~ Gonzaga de Sá. e Augusto Machado deslocam-se muito. (Um dos ca-
30 Id., ibid., p. cito Pitulas intitula-se "O Passeador".) Como os antigos heróis da novela pica-
81 Id., ibid., p. cito res:a, sempre impulsionados em busca de novas aventuras, eles raramente
82 Id., ibid., p. 68. e~tao em :asa. Diferem dos seus irmãos aventureiros pela razão muito sim-
83 Id., ibid., p. 114. p es de nao procurarem e, menos ainda, encontrarem ocasiões. para aventu-
34 Id., ibid., p. 112. ra~; e. de não se afastarem do seu meio, limitando-se à cidade onde moram,
35 Id., ibid., p. 140. :\ UZll~d? a linha mais ou menos incerta das viagens a uma espécie de giro
86 Id., ibid., p. 142. m ermmavel: o círculo propício às experiências interiores.
122 CAPo VII - VIDA E MORTE OE M. J. GONZAOA DE SÁ TEMÁTICA, ESPAÇO, AMBIENTAÇÁO, FUNÇÕES... 123

sentes; não é sempre uma época precisa, o que ocorre nos roman- truída - preponderam no Gonzaga de. Sá sobre o~ interiores. O
ces com dois planos temporais, mas como que acordes do passado. que vemos são o mar e os morros do Rio, sua arqUItetura, os pon-
Reencontramos aqui os disfarces do espaço, aqueles momentos em tos de reunião, nunca as salas e quartos, encontráveis em outros
que espaço e tempo tendem a perturbar o exame espectral do texto, livroS do autor. Ignora~os tudo sob~e a ~ecretaria dos Culto.s, onde
pois o passado, nestes casos, é em Gonzaga de Sá o ressurgimento trabalha Gonzaga, a nao ser que Ia eXIste um museu, registros e
de espaços, superpostos ao espaço imediato. Veremos adiante as uma vaga secção de "alfaias, paramentos e imagens"; e nem mesmo
infiltrações desse fenômeno na obra. esse gênero de informações possuímos sobre a repartição onde tra-
Todos os livros de Lima Barreto, e Vida e Morte de M. J. balha o jovem Augusto Machado. Saberemos muito mais do bairro
Gonzaga de Sá não seria a única exceção, relevam o espaço social, que da casa do pobre Romualdo. O único interior no qual o narra-
entendendo-se como talos costumes e sua evolução, os valores em dor se detém, situando-o, rasgando janelas, nele distribuindo mó-
curso, a situação dos indivíduos e das classes, a atitude mental das veis e objetos de adorno, é o solar de Gonzaga de Sá. Essa hege-
coletividades. Já a situação de Gonzaga de Sá e de Augusto Macha- monia das paisagens sobre os interiores oficiais ou domésticos, não
do, marginalizados e assumindo atitudes antagônicas, remete-I;los a sistemática na ficção de Lima Barreto (em [saías Caminha, não
isso. Manifesta-se o espaço social, em Gonzaga de Sá, nas consi- obstante a declarada preferência pelo mundo exterior, vemos a sala
derações sobre a arquitetura dos subúrbios (veja-se o chalé com da delegacia de polícia, a casa onde reside em Rio Comprido o fu-
aspecto de residência burguesa e que, na realidade, é formado por turo memorialista, com nereidas e tritões pintados no teto, rodean-
duas casas gêmeas, signo das conflituosas aspirações dos pobres, le- do o deus Netuno, a casa de tolerância onde Isaías comunica a Lo-
vados a aparentar um nível material mais elevado); nas evocações berant o suicídio de Floc), aquela· hegemonia, elevada ao extremo,
do velho amanuense e da parenta com quem vive, que nos permi- é em Gonzaga de Sá compreensível e mesmo significativa. Pode-
tem entrever (e o mesmo sucede a Machado) um sistema de vida riam Gonzaga e seu amigo deter-se no exame de móveis e recintos
já desaparecido; na sôfrega concentração popular dos domingos na fechados? Inquietos que são, atormentados pelo mistério da existên-
Avenida Central, pálidas moças suburbanas, operários, caixeiros, cia humana, assim como pelo absurdo de uma estrutura que os re-
armênias, boêmios, reunidos nessa espécie de festa pouco dispen- cusa e esmaga todo desejo nobre, voltam-se ansiosos para a N atu-
diosa e carente de atrações; e, ainda, nas observações que faz Au-
reza e a sociedade - que interpretam, ampliam e transformam,
gusto Machado vendo cruzarem a Rua Gonçalves Dias aquelas
num diálogo entre personagem e espaço que é talvez o mais intenso
"grandes mulheres estrangeiras, cheias de jóias, com espaventosos e envolvente da nossa Literatura.
chapéus de altas plumas, ao jeito de velas. enfunadas ao vento, im-
pelindo grandes cascos", 40 arrebatando almas e corpos, provocan-
do peculatos, concussões, ateando o comércio, ditando a moda, re-
Ambientação
volvendo enfim com o seu mistério, sua beleza e sua cupidez os
fundamentos da sociedade ainda mal definida onde surgem. Essa
página, das mais felizes de Lima Barreto, confunde-nos pelo con- O compromisso entre personagem e espaço, a que nos reporta-
luio entre a ironia e o ritmo embalador da frase: "E a civilização mos, pode induzir à suposição de que Vida e Morte de M. J. Gon-
se faz por tantos modos diferentes, vários e obscuros, que me pa- zaga de Sá seja um romance onde predomine a ambientação dissi-
rece ver naquelas francesas, húngaras, espanholas, italianas, pola- mulada ou oblíqua. Não diríamos ser impossível arrolar exemplos
cas bojudas, muito grandes, com espaventosos chapéus, ao jeito de deste método. Alguns: "Eu me tinha sentado no divã, junto à porta
velas enfunadas ao vento, continuadoras de algum modo da missão de entrada e mestre Gonzaga de Sá na cadeira de balanço." 42 Sa-
dos conquistadõres.":U bíamos da existência da cadeira, destinada "às longas meditações
Do que acabamos de expor pode-se deduzir, mesmo sem co- vadias", 43 mas o divã é criado pelo gesto do personagem. "To-
nhecer o romance, que os exteriores - paisagem natural ou cons- mamos uma rua transversal e fomos indo quase sós, por ela afo-

40 In: Gonzaga de Sá. p. 102. :~ Id., ibid., p. 85.


41 Id., ibid., p. 105-06. Id., ibid., p. 83.
124 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ TEMÁTlCA, ESPAÇO, AMBIENTAÇÁO, FUNÇÕES... 125

ra." 44 "Descemos devagar a praia, seguindo o cemitério." 45 Esses


uase omite Loberant: só vê a italiana e as coisas que ela vê. Ain-
casos, porém, quase sempre limitados e pouco interessantes, escas-
seiam no livro. Sendo Lima Barreto, em geral, pouco ortodoxo no da assim, não nos apresenta o mundo a~ravés dos olhos negros da
'taliana: "Não cessava de olhar, de aspIrar com força toda a exa-
que concerne à ausência do narrador - a ponto de deixar-nos
entrever, uma ou outra vez, seu rosto verdadeiro -, não constitui ~ação de poesia e de grandeza da b~Ía incomparável. .0" sol, para
a ambientação dissimulada processo habitqal em nenhum dos seus o poente, ainda domava tudo e as. a~as estavam a~Uls. 47 ,~eda
olha e aspira, mas o que olha e, maIS amda, o que aspua, essa exa-
romances. No Gonzaga de Sá, torna-se ainda mais rara. Por quê? lação de poesia .e .d~ grandeza':, vem da ~lma ?e IS~Ías. Passeando
Antes de tudo, lembramos a predominância absoluta de exte- com Leiva, seu 100cIadorno RiO de JaneIro, ha um mstante em que
riores, menos propícios a esse tipo de ambientação. A causa mais IsaÍas Caminha se abandona: "Olhei um instante a seda azul do
importante, todavia, prende-se à natureza mesma do romance, mar levemente enrugada e sorvi um pouco da viração que soprava
circunscrito à descrição dos encontros e deambulações de Gonzaga da barra; depois perdemo-Ia de vista e a viração deixou de açoitar-
e Machado através do Rio de Janeiro, à transcrição do que pen- -nos com força". 48 Descem, a seguir, a Rua da Lapa, olhando
sam sobre a vida e a morte (e sobre os temas que daí decorrem), as mulheres públicas "com um pouco da nossa mocidade e com um
ao registro do que sentem e dos seus comentários. Vêm e vão os
pouco das preocupações que trazíamos". 49 Incorpora o narrador,
dois burocratas, figuras paralelas, sendo uma a continuação ou va- aos seus olhos, os olhos da personagem com quem segue, permite-
riação da outra - apesar de oposições flagrantes como juventude -se uma fusão passageira, sem chegar a transferir-lhe, como sucede
e velhice, nascimento humilde e alta ascendência, luta e capitula- abertamente em Gonzaga de Sá, a percepção do espaço. No veló-
ção -, de modo que em nenhum ponto do livro vemos esboçar-se, rio, diante de AIcmena, cuja presença invade a sua solidão ("Por
autônomo, um drama: nem sequer encontramos as articulações momentos, fiquei só, mas cheio dela"), vê Augusto Machado com
abortadas, as falsas motivações dramáticas, tão curiosas, existentes os olhos da moça o céu e uma estrela. Na caleça de aluguel, ao
em [saías Caminha e Policarpo Quaresma. Eckermann modesto lado de Gonzaga de Sá, rumo ao cemitério, o espaço que verbaliza
de um Goethe perplexo e sem obra, propõe-se Augusto Machado é o contemplado pelo velho burocrata.
- que por vezes se adianta e instala-se em primeiro plano - a Sendo pouco numerosas, em Vida e Morte de M. J. Gonzaga
consignar "certos trechos e particulares" da "bela obscuridade" do de Sá, as incidências de ambientação oblíqua e reflexa, deveríamos
mestre.46 Inexistindo, a rigor, um enredo, uma cadeia de eventos inferir que predomina, no livro, a ambientação franca? Será exato
orientada em direção a um ponto crítico, o que naturalmente im- o raciocínio, ou, ao menos, pode ser endossado sem reservas, na sua
plicaria na procura de um certo ritmo,' tanto quanto possível não simplicidade?
interrompido, onde a necessidade de incorporar o espaço às suas Sabemos que um hiato na ação, reforçado pela circunstância
personagens, aos seus gestos? de o narrador - personagem ou voz anônima - acumular de mo-
Ocorrem, também, exemplos de ambientação reflexa, breve- do declarado as atribuições de perceber e descrever o espaço, iden-
mente comentados no capítulo V deste ensaio. Fizemqs ver, ali, tifica a ambientação franca. Mas também mencionamos, neste
sem desenvolver a observação, que a incidência de semelhante pro- mesmo ensaio, um fator para nós de importância no estudo das
cesso em narrativas na primeira pessoa configura artifício pouco obras literárias, notadamente quando se trflta de obras muito pes-
habitual, ligado a um desvio do foco narrativo. No próprio Lima soais: a complexidade, a sutileza e o inesperado das suas soluções,
Barreto, tende o personagem-narrador, como em [saías Caminha, o que nos deve pôr de sobreaviso ante as classificações, forçosa-
a monopolizar o registro do espaço. No passeio de IsaÍas com mente esquemáticas. Elas nos são úteis, as classificações, como
Loberant e Leda, tão grande é o embevecimento do jovem que ele iu.strumento auxiliar e pode-se dizer que cobrem os limites do pro-
vavel; mas não abrangem o extenso horizonte do possível. Deve-
44 Id., ibid., p. 114. mos precaver-nos contra o perigo de inverter os valores e transfor-
45 Id., ibid., p. 130.
46 o adjetivo parece indicar a adesão do biógrafo a essa obscuridade. Mais 47 In: Isaías Caminha. p. 190.
um sinal de suas flutuações. O livro não refaz numa síntese as reações e 48 Id., ibid., p. 95.
idéias por vezes contrastantes de Machado: registra-as. 49 Id., ibid., p. cito
126 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ TEMÁTICA, ESPAço, AMBIENTAÇÃO, FUNÇÕES •• ~ 127

mar O texto em justificativa do instrumento, rigidez que condu,z a N a ausência de um enredo, dissemos, faz-se desnecessário in-
uma limitação do ato de ler e que pode mesmo contribuir, por uma corporar o espaço aos gestos das personagens, para evitar o hiato.
reação em cadeia, para o estiolamento da Literatura. A eficácia do Explicávamos assim a inexistência - ou quase -, em Gonza$a
texto não depende só do criador, mas também de um certo padrão de Sá, da ambientação oblíqua. Mas, por outro lado, se o que
de leitura, padrão acessível a alguns leitores adestrados, mas não podemos aí denominar ação é tão esbatido e descontínuo, cabe
apenas adestrados: também sensíveis, lúcidos e de modo algum também falar em hiato quando se detém Augusto Machado em
'Á privados de imaginação. Parece-nos útil esta advertência, quando delinear os cenários? Vimos, ainda, que o personagem-narrador,
empreendemos o exame, em Gonzaga de Sá, do que poderia ser quando afeta objetividade nas suas descrições, reforça o hiato,
classificado como ambientação franca se acreditássemos que a fe- característica da ambientação franca; e que a ambientação franca
cundidade e a sedução das interpretações simplificadoras se equi- aproxima-se da ambien~a~ã? reflexa se entrevemos, matizando-a
valem. (ou animando-a) a subJet1V1dadedo contemplador. (Temos sem-
Tem-se por vezes a impressão de vogar, liberto de um itinerá- pre 'em mente, neste contexto, os casos em que uma das perso-
rio previsto, sobre quase todas as obsessões de Lim'a Barreto, nesse nagens assume a narrativa.) Ora, no Gonzaga de Sá, é quase
romance que, baseado no modo de sentir do autor e não na con- impossível encontrarmos alusões ao espaço não entrelaçadas com
venção, como queria Virginia Woolf, parece concretizar o desejo a vida interior dos que nele se movem. Insistentes, quando se re-
expresso há mais de século e meio por Mary Russell Mitford: "Com porta o narrador ao cenário, indicações sobre o modo como o
relação ao romance, gostaria de ver algum empreendido sem cenário repercute nele: "Diante da serra dos Órgãos, cujo gran-
qualquer forma de enredo. .. sem qualquer projeto preconcebido dioso anseio de viver em Deus fui sentindo desde menino" ... 51
a não ser um ou dois incidentes e diálogos, os quais, naturalmente, "O silêncio da sala, aquelas velas mortiças, os semblantes con-
sugeriam nova matéria e então prosseguiria dessa maneira, introdu- trafeitos e estremunhados das pessoas presentes, diante da so-
zindo incidente e personagens profusamente, mas evitando todos berba luz do sol, da cantante alegria da manhã, pareceram-me
os truques do palco e situações fortes ... " 50 A única história, no sem lógica." 52 O mesmo ocorre, por vezes, com Gonzaga de
Sá, através do discurso direto: "- Como está lindo o dia! Até
sentido tradicional, que encontramos em Gonzaga de Sá, é a do
alegre, não achas?" 53 "- Este chafariz é feio, é massudo; mas
construtor de um balão, esquecida entre os papéis do velho
a esfera armilar que o encima, dá-lhe certa grandeza, certa ma-
burocrata. O resto, insistimos, são incidentes breves ou extensos,
jestade ... "54 "- A tarde assim mesmo não está de afugen-
que não decorrem de outros e a nada conduzem, nem sequer tar ... "55 Além disto, Gonzaga e seu amigo, principalmente
podendo-se dizer que a estrutura do livro, a rigor, seja temporal. na primeira metade do livro, buscam, sob diversos pretextos, o
O desapreço pela cronologia, nele, manifesta-se inclusive nas es- espaço, como no encontro do Passeio Público, de onde planejam
tranhas correspondências entre o locus de tempo dos eventos e ver o "matiz verde que o céu toma, às vezes, ao entardecer".
o locus de tempo do pseudo-autor. A folha de almaço onde Au- A excursão ao Engenho da Penha, quando Machado imagina ver
gusto Machado lê a história do balão, por exemplo, foi encontrada passar numa canoa o vulto de Estácio de Sá, é feita a convite
por ele "no ano passado", entre os papéis que lhe deixa Gonzaga de Gonzaga. Confessa ainda o narrador que o maravilhava, no
de Sá. Enquanto isto, vemos, na .página 167, que o velho não velho, "o abuso que fazia da faculdade de locomoção": 56 en-
pôde levar até o fim a educação do afilhado; este, quando o pa- contrava-o em toda parte, por assim dizer. Gonzaga de Sá, preso
drinho morre, apenas encetara o pequeno curso de preparatórios. ao espaço do seu passado, chega a faltar certa vez ao trabalho,
Consta, todavia, da mesma página, que a tia "levou o menino para contemplar, "ao sol do meio-dia, um casebre do Castelo,
até ao fim, com todo o carinho e abnegação." O, deslocamento
51 lu: Gonzaga de Sd. p. 40.
da perspectiva temporal do pseudo-autor em relação aos fatos que 52 Id., ibid., p. 125.
rememora é evidente. 53 Id., ibid., p. 126.
54 Id., ibid., p. 54.
50 Letters o/ Mary Russell Mit/ord, carta de 15/05/1815 a Sir William El- 55 Id., ibid., p. 42.
ford, citada por MENDILOW, A. A. O Tempo e o Romance. p. 191. 56 Id., ibid., p. 63.
128 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ TEMÁTICA, ESPAÇO, AMBIENTAÇÃO, FUNÇÕES... 129

visto cinqüenta e tantos anos atrás, em hora igual, por ocasião figuram o espaço, com~ntam o espaço e ~ele v_êem símbolos -,
de uma 'gazeta' da aula primária." 57 As personagens, ao invés faltam razão e oportumdade para a amblentaçao reflexa; e que,
de imobilizarem-se e emudecerem para que os cenários, suspensa mesmo assim, visto como um todo, surge esse "doloroso monó-
a narração, sejam delineados no hiato da descrição (temática logo a duas vozes", na bela e exata definição de Paulo Rónai, 59
vazia), vão à procura do espaço, jazem-no matéria da ação. como um extenso e variado caso de ambientação oblíqua: cru-
Outras personagens, em outras obras, locomovem-se para zam Machado e Gonzaga de Sá o romance, e o espaço parece
conhecer ou descobrir ou rever algo que é espaço e inúmeros continuamente nascer dos seus olhares atentos.
romances contam uma viagem. Esses deslocamentos, entretanto, Dos seus olhares, dissemos. Este o sentido predominante
são em geral incidentais ou possibilitam a proliferação de peri- e quase exclusivo, em Gonzaga de Sá, na percepção do espaço,
pécias: o lama de Rudyard Kipling, em Kim, busca através do sendo rarÍssimas as ocasiões em que outros sentidos interferem,
livro o Rio que lava de todas as manchas. Em Gonzaga de Sã, como neste caso: "Ele amava o velho jardim, onde nos sentamos
ausente (J que o leitor de romances entende por aventuras, a pouco depois em um banco de pedra, num lugar retirado, ouvin-
busca de espaços, sua contemplação ou travessia, as sugestões do ao longe o estrondo da banda de música domingueira." 60
ambientais, o que o exterior representa como projeção da per- Raro, inclusive, aludir ao silêncio: "Havia um silêncio completo,
sonagem, o modo criador como é observado, as reflexões que de quando em quando um soluço da pobre mulher quebrava-o
com ele se relacionam, tudo isso promove, em maior ou menor grau, lugubremente." 61 Quando visita Gonzaga de Sá, percebe o jovem
a conversão do espaço em temática plena. A esse respeito, é Machado o odor das flores: "Pelas janelas abertas entrava a
significativo o episódio do velório e do enterro do contínuo Ro- branda viração da tarde, e as emanações do jardim eram trazidas
mualdo, que só depois de morto aparece no relato. Ligado ao por ela e se dissolviam pelo' ambiente todo." 62 Nessa tarde,
tema básico da vida e da morte, o episódio permite uma inten- aliás, os seus sentidos, quase nunca atentos, parecem invulgar-
sificação, ainda maior, numa clave sucessiva ou simultaneamente mente exaltados: "Uma cigarra estridulou no jardim e mais de-
encantada, exaltada, rebelada, das relações dos dois amigos com pressa nos vieram as cismas." 63 Há, ainda, uma menção acústica
o espaço físico e também com o espaço social. quando a velha Escolástica acende os bicos de gás, mas tão mis-
Isto é: o espaço, na obra que estudamos, não constitui sim- teriosa que não parece depender dos sentidos e sim do coração
plesmente uma moldura para as personagens e os acontecimentos. vibrátil de .Machado: "Mal as luzes brilharam, a paz externa
Enreda-se em Machado, em Gonzaga de Sá, parecendo-nos, por quebrou-se. Houve um pequeno sussurro e a vida das coisas
vezes, não, é certo, a sua razão de viver, mas a razão de exis- continuou." 64 Ordinariamente, o mundo é apenas percebido atra-
tirem enquanto personagens romanescos. vés da visão e esta insistência não deve surpreender-nos: o olhar,
Diríamos então que nesse livro tão estranho aos padrões ao contrário do tato, é o sentido por excelência da separação.
consagrados e onde o gênio do escritor, à força de recusar o Curiosamente, a única expressão tátil encontrada no livro - na
que, mesmo nos mestres que amava - um Dostoievski, uma viagem de bonde para o velório do contínuo - evidencia de
George Eliott, um Tolstoi -, parecia-lhe já ameaçado de escle- modo muito claro o problema do ilhamento. Essa hipertrofia
rose (e não escreve Pierre Daix que ser balzaquiano hoje é do olhar, restringindo os liames físicos das ·personagens com o
negar Balzac?), 58 repudia as heranças recebidas; a ambientação, mundo, se acaso empobrece sensivelmente o espaço, acentua a
apresentando-se na maior parte das vezes como franca, tende pungência do livro e a sua espiritualidade. E como não associar
sempre - tingida que é pelo personagem-narrador - a refletir a vi~ão - com mais propriedade, em todo caso, que os outros
o modo como o observador contempla e sente o espaço; que, sentIdos, nos quais se manifesta menos sutilmente a· fruição das
devido à própria concepção da obra, sem um enredo cuja inter-
rupção fosse desejável evitar e onde as personagens, ilhadas, :: ~6NAI, Paulo. "Prefácio." In: BARRETO, L. Gonzaga de Sá.
ocupam-se precisamente do espaço - buscam o espaço, trans- 61 I~: C!?nzaga de Sá. p. 131.
62 ., lbld., p. 122.
63 Id., ibid., p. 85.
57 Id., ibid., p. 64. 64 Id., ibid., p. 98.
58 In: Sept Siecles de Roman. p. 354. Id., ibid., p. 99.
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coisas - à contemplação, esta uma atitude constante dos dois novas edificações burguesas, com ~rnatos de gesso, cimalha e
personagens centrais? , compoteira, varanda ao lado e gradIl de ferro em roda." 69 Mes-
Stendhal, lembra Jean-Pierre Richard, no estudo sobre o mO neste exemplo, insinua-se no fim do período a necessidade
autor de O Vermelho e o Negro, louva 'em certa página de Mé- de ordenar.
rimée "os contornos extremamente nítidos e mesmo secos" e tam- Ao esforço ordenador, expressão de um espírito propenso
bém "a admirável atenção às pequenas coisas, traço do bom a apossar-se intelectualmente do mundo e não apenas a recebê-Io
romancista", 65 bem como a ousadia de nelas apoiar-se. Atua através das sensações - como é o caso de Augusto Machado
o escritor, segundo julga Stendhal, entre a limitação e a prodi- _, opõe-se em Lima Barreto, já o vimos, a aversão à minúcia.
galidade, podendo sempre perder-se numa dessas margens! Evite Não encontraremos, então, tanto em Gonzaga de Sá como nos
o escritor ser vago, fixe o pormenor, sem entretanto pretender demais .romances, aqueles inventários metódicos, caprichosos,
exaurir o que narra ou descreve. Gonzaga de Sá, se considerar- exaustivos, em que é mestre um Thomas Mann e onde a situação
mos com atenção seu descritivo (o descritivo, nele, ocupa-se pre- de cada objeto em relação aos demais é indicada.
dominantemente do espaço), ilustra a norma estilística preco-
'/.nizada por Beyle. Convencido Lima Barreto, segundo podemos
deduzir, -de que a descrição literária não deve aspirar à pintura Funções
e que o seu caráter é antes sugestivo, opta pela seleção e pelos
grandes traços: Nesses quadros, opõe com freqüência ao con- Que observamos, em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá,
junto, equilibrando-o, um particular nunca destoante: "No alto quando a análise busca aprofundar as funções dos seus cenários?
de um morro, lavravam e quem guiava os bois era uma rapariga Reflete o espaço, no livro, as personagens? A tendência, ao con-
portuguesa, que tinha um grande chapéu de palha de coco e trário, é para influir sobre elas, levando-as a agir? Ou apenas
um Jenço vermelho de Alcobaça ao pescoço." 66 Na ampla des- realça - como no último encontro de Paulo Honório com Mada-
crição do entardecer, no capítulo I, vemos, de súbito, "engas- lena em São Bernardo, e na visita noturna de Floriano Peixoto
tado na barra de anil, um farrapo de púrpura." 67 A morte ao quartel, em Policarpo Quaresma - certas situações?
de Gonzaga de Sá, cena aparentemente simples e, na verdade, No Gonzaga de Sá, o espaço, quase nunca afetando as per-
plena de delicadeza e de profundidade, consuma-se por assim di- sonagens (impensável esperar, aí, do espaço, a provocação de
zer num ponto de confluência entre o geral (referido sem minú- verdadeiros atos, como sucede em O Estrangeiro), jamais apa-
cias) e o particular: "Ao chegar ao jardim de sua casa, que rece como simples projeção delas. A tendência é antes para
olhava para a Lapa, para a Glória, para a Armação, para Ni- acumular as funções de alterar a personagem e, modificado sub-
terói, contemplou o mar insondável,. abaixou-se para colher uma jetivamente por ela, refletir anseios, revelar necessidades e defla-
flor que me oferecera, mas caiu, e morreu. Foi assim." 68 O grar questões - anseios, questões e necessidades que, lembremos
isolamento do homem em face do mundo; o isolamento ainda de passagem, desenvolvem e aprofundam os temas constitutivos
maior do ato poético. da obra.
Devemos acrescentar que o descritivo, em Lima Bar!~~0, as- Procedamos, .nó sentido de ilustrar o que dizemos, a análise
pira sempre à ordem, num esforço visível de composição, com de um motivo clássico: a personagem vista pela primeira vez
o que resta pouco lugar para enumerações como esta: "Há o na sua casa, circunstância que, em geral, propicia referências in-
capinzal, o arremedo de pomar, alguns canteiros de horta; há tencionais sobre o mobiliário, o arranjo dos objetos, sua natureza
a casinha acaçapada, saudosa da toca troglodita; há a velha casa etc., signos reveladores da psicologia e do nível social do morador.
senhorial de fazenda com as suas colunas heterodoxas; há as "Examinée dans les horizons théoriques les plus divers", escreve,
com uma propriedade que a tradução talvez ferisse, G. Bachelard,
65 In: Littérature et Sensation. p. 29. um fascinado pelo espaço poético, "il semble que l'image de Ia
66 In: Gonzaga de Sá. p. 61.
67 Id., ibid., p. 89.
68 Id., ibid., p. 43 69 Id., ibid., p. 114.
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maison devienne Ia topographie de notre être intime." 70 O próprio t' mental do velho burocrata; e os minerais comprovam ainda a
Lima Barreto fornece-nos exemplos oportunos disto. Vê-se bem tOa curiosidade não especializada. Os versos de Dante sobre o
claramente o que pretende quando nos descreve a residência de Po- s~or encimados pelo retrato do poeta, recordam a enevoada exis-
licarpo Quaresma, com o seu jardim e os seus livros; ou quando :ênci~ de uma paixão infeliz na mocidade de Gonzaga. A reprodu-
nos mostra o casebre de Maria Rita. Trata-se, em ambos os casos ão da "Primavera", do "melancólico Sandro", sugere ao mesmo
de personagens que ainda não conhecemos - e os lugares ond~ ~empo o encanto convencional da juventude, a doçura da carne
habitam dizem bastante sobre o que eles são. (No caso de Maria feminina, a transparência dos véus e a nostalgia: esses rostos de Bot-
Rita, tudo o que precisamos saber.) O exemplo extraído do Gon- ticeJli parecem lamentar o fim inevitável e próximo da Primavera
zaga de Sá apresenta outros característicos: descreve a primeira vi- que os cerca. Registra ainda, o visitante, na sala de estudos do anfi-
sita de Augusto Machado ao seu amigo. trião, um busto de Júlio César e um Rouget de Lisle cantando pela
A cena ocupa a segunda metade do sétimo capítulo e estende-
primeira vez a Marselhesa. Gonzaga de Sá, pacato descendente de
-se ao longo do seguinte. Pouco se sabe da casa de Machado, situa- conquistadores, tendo renunciado a qualquer espécie de luta - re-
da numa elevação. "Desci de minha casa aborrecido" - diz a certa
altura. 71 Páginas adiante, avalia depreciativamente as cadeiras dos signa-se, inclusive, com a exclusão, o isolamento -, é um nostálgi-
co da ação em grandes proporções. Júlio César, líder e homem de
camarotes, no Lírico, "que me pareceram bem inferiores às da sala
de jantar da minha modesta casa." 72 A residência do velho buro- guerra, acrescenta a esses dons uma admirável energia intelectual.
crata, ao contrário, será razoavelmente descrita, inclusive nos seus Realiza-se, portanto" plenamente, nas direções opostas às que o
velho encarna como personagem: na ação e no pensamen~ criador.
objetos de adorno. Dirá esse interior burguês, sobre o proprietário,
Quanto à idealizante pintura de Isidore Pils, está - como a própria
muito mais do que sabíamos? Acrescenta realmente o que sobre ele
é indispensável que se saiba? Marselhesa - impregnada de conotações heróicas: contrárias à re-
Tem o leitor, quandOj pela voz do narrador, ingressa no solar signação e ao imobilismo. Tudo isto, entretanto, acrescenta bem
de Gonzaga, uma idéia ,fncompleta mas suficiente a seu respeito. pouco - se acrescenta - ao que sabíamos do anfitrião. 74
Vê-Io em casa, não -irá consumar o seu perfil. O perfil de Gonzaga, Conhecemos, nessa tarde, três peças da casa de Gonzaga de
permaneçeIá-deliberadamente equívoco e o próprio narrador con- Sá: a sala de estudos, a de_visitas, a de jantar. Surgem na ordem
fessa não }:laver jamais decifrado o seu amigo: "Fiz, como verão, em que as nomeamos e decresce a minúcia com que descritas: ao
todas as hipóteses, mas nunca nenhuma me satisfez; entretanto, passo que são énumerados, com vagar, móveis e objetos da sala
para não cansar o leitor, eu lembrarei como Poe (creio eu) que a principal, refere o narrador, exclusivamente, os retratos de família
verdade está sempre na hipótese mais simples, ao que Comte ajunta: da sala de visitas (mais tarde, os bicos de gás e o piano f:rard), ne-
a mais simpática. Cada um que' faça a sua de acordo com esses gligenciando á sala de jantar. A alusão aos "velhos móveis de jaca-
conselhos." 73 Define-se o' anfitrião como um estudioso e homem randá, tão amplos e fortes que se diria feitos para outra raça de
que, simples funcionário público, descende de Estácio de Sá e po- homens que não a nossa", apesar de enérgica e de retomar o tema
deria ter sido "muita coisa": o pai fora um general titular do Impé- da decadência, é imprecisa. A gradação explica-se: o tom geral da
rio. Sua casa, vista pelo convidado, fala exatamente disto, com os casa já foi dado com a sala de estudos e o que há de importante a
seus livros, seu piano, os móveis de jacarandá, os antigos retratos ser acrescentado são os retratos de família e o piano. 75
de família, as estantes com obras várias, a mesa cheia de papéis. A
finalidade de alguns elementos JIlais inesperados do cenário, um 74 Id., ibid., p. 86 e 91. Surge então uma personagem secundária, Escolásti-
ca, mas a casa diz pouco a seu respeito; ela será caracterizada, antes, atra-
mocho de bronze sobre a 'porta de entrada e a cegonha à direita da vés das suas próprias palavras por alguns traços físicos; e por uIl)a espécie de
mesa, representando decerto a meditação e a dúvida, aludem ao fei- fulgor: "muito clara", "a alvura de seu casaco", "seus cabelos brancos",
"iluminada, com uma luz de retábulo".
70 In: La Poétique de l'Espace. p. 18. 75 Também Machado de Assis em Dom Casmurro, limita-se a descrever a
71 In: Gonzaga de Sá. p. 138. sa!a ~rincipal da casa do protagonista, com as suas pinturas: a sala nos per-
72 Id., ibid., p. 153. mite Imaginar os outros cômodos. S6 o quintal, cuja organização decorre
73 Id., ibid., p. 82. de outros princípios, irá, além da sala, merecer descrição minuciosa.
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Mas, esse espaço doméstico e que, à primeira vista, apenas assado, no passado vivo, na tradição." 79 • <? que então dei,,:a ex-
confirma alguns dados já conhecidos sobre Gonzaga de Sá, cumpre fravasar é relativ~mente pouco, mas o s~fIcient~ para deduzIrmos
funções menos usuais. Importante a figura de Escolástica, a paren- ue o seu lúcido Julgamento - sem que isto o impeça de ser sen- .
ta com quem mora o velho. Se a casa não faz mais que confirmar q'vel à simpatia dos seus anfitriões, simpatia que de algum modo
a psicologia de Gonzaga, vai ao mesmo tempo permitir, como se
Si
e comunica às coisas - pertur b a-o: " eu re fI'etla comigo
. mesmo
Escolástica, à maneira de um reagente químico, atuasse sobre ele, a :obre a ingenuidade daquela sociedade"; 80 "pude ver os trabalhos
eclosão de certas mágoas recônditas, disfarçadas pelo seu intelec- e as virtudes dos antepassados e, também, seus erros e seus cri-
tualismo estéril, ligado - não esqueçamos - aos temas da rendi- mes"; 81 "estava mais firme contra as pressões externas, senti que
ção e da morte. Escolástica constitui uma versão mais transparente sorvera também uma gota de veneno." 82 Então, ao invés de, como
de Gonzaga, e nela é possível distinguir alguns dos traços que ele seria de esperar, constituir a casa de Gonzaga um elemento carac-
oculta: juntos, o ancião policia-se menos. Isto é evidente no diálo- terizador do seu proprietário, vai - função singular - influenciar
go que se segue ao jantar e que a presença do piano sugere. A uma o visitante, lançando, além do mais, sobre as relações entre os ami-
pergunta de Machado, feita por cortesia, responde a anfitriã que há gos, algo sem nome, que não se define, que não aciona conseqüên-
trinta e tantos anos não se senta ao instrumento, desde que viu tocar cias, mas permanece suspenso, presença equívoca, discreta e irre-
o Gottschalk. 76 A seguir, fenômeno insistente neste livro onde um 'moYÍvel.
espaço passado tende sempre a insinuar-se no presente, Escolástica A influência da casa sobre Augusto Machado - acrescida,
e Gonzaga, em comovido diálogo, esboçam o espaço social do Rio, aqui, de fatores que a tornam mais complexa - é ainda mais evi-
pouco antes do término da guerra com o Paraguai, quando árias de dente na cena dos retratos. O convidado, frente à galeria de ante-
ópera cantadas por uma Stoltz faziam deIlrar o público e a Duque- passados do amigo, tem a impressão de que um deles vai erguer o
sa de Abrantes oferecia à cantora, sobre uma almofada bordada braço e ordenar que lhe metam o "bacalhau". Volta o rosto e
por suas próprias mãos, uma coroa: "A sala delirou - coroai-vos! abriga-se "na figura impalpável de uma moça com um alto pentea-
coroai-vos! Flores, gritos, flores, gritos... A Stoltz hesita, afinal do cheio de grandes pentes": 83 sua fisionomia benévola acalma-o.
põe o emblema na cabeça. Que mulher! Nem que fosse uma rai- O flagrante é quase uma miniatura da sociedade brasileira na época
nha!" 77 Enquanto eram relembrados esses fatos, "Gonzaga de (então ainda recente) da escravatura. Define Machado como ho-
Sá tinha lágrimas nos olhos e a tia olhava para o teto cheia de bea- mem de cor, em quem ainda sobrevive, oculta, a condição ances-
titude". 78 Ouvindo-os, não deixa Machado de os analisar, pois o tral. Temeroso do castigo - denominava-se "bacalhau" o chicote
seu interesse, depreende-se, não se concentra no pitoresco. O es- com que os escravos eram flagelados -, determinado pela simples
pírito da sociedade imperial, nessa época em que ainda estava lon- vontade do senhor, refugia-se confiante nos braços talvez mais do-
ge a promulgação da Lei do Ventre Livre, parece-lhe sumariado ces da senhora. Anuncia-se igualmente que, não obstante os mui-
naquelas manifestações. Ele não vê no Teatro Provisório, "gro- tos pontos que os unem - e a coincidência desses pontos nega ta-
tesco e formalista", um fenômeno isolado, mas a indicação, a sín- citamente toda doutrina favorável às diferenças entre raças -, a
tese de um certo modo de viver. O que acaba de ouvir, além do amizade entre Machado e Gonzaga repousa sobre bases suspeitas;
mais, não é uma crônica histórica, mediada pela frieza de algum e que, em zonas muito profundas, reconhece Machado subsistir algo
estudioso, mas um-relato penetrado de emoção - e mesmo Gon- dos dominadores na doce figura do amigo. Ilustra ainda esta cena,
zaga de Sá, que tenta dissertar criticamente sobre essa aristocracia, de maneira notável, a tensão permanente estabelecida entre as duas
acaba lamentando que ela não se tenha feito, e não é indiferente personagens centrais - principalmente o pseudo-narrador - e o
às lembranças de que falam. Machado crê haver "penetrado no espaço. Operam, por vezes, espaço e personagem, nesse romance,

76 Gottschalk esteve em 1869 no Rio de Janeiro, onde passou cinco meses, 79 Id., ibid., p. 102.
e foi morto por uma pleurisia, havendo dado concertos gigantescos, com 31 80 Id., ibid., p. 101.
pianos e 650 figuras na orquestra. 81 Id., ibid., p. 102.
77 In: Gonzaga de Sá. p. 100-01. 82 Id., ibid., p. cito
78 Id., ibid., p. 101. 83 Id., ibid., p. 93.
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contraste entre os antigos retratos de família e o estado atual dos do vaticínios de simpatia." 93 "A sala ainda não tinha luzes e havia
descendentes; na alusão aos antigos móveis de jacarandá e aos uma grande paz no exterior. Casas do morro começavam a ilumi-
sacrifícios com que Gonzaga manteve a posse do solar; na referên- nar-se e todas pareciam contemplar-nos com simpatia." 94
cia ao preto Inácio que "assistiu ao desmoronamento da grandeza" Autoriza-nos a análise da cena a concluirmos pela inexistên-
da casa familiar de Gonzaga. Falamos da palmeira, das monta- cia no romance estudado, do espaço como projeção da persona-
nhas e das nuvens, todas associadas ao problema da luta e da as-
ge~? A conclusão seria precipitada (não devemos ignorar que a
censão; mas o tema aparece também através de Escolástica casa avoenga de Gonzaga, por ele arranjada a seu modo, reflete a
quando recorda Gonzaga ainda menino, tentando' saltar da janel~ psicologia do proprietário e é um signo da ~ua linhage.m), ~as a
do sótão para voar. As dificuldades que opõe a estrutura social influência das personagens sobre o que as circunda Vai surgir em
aos 9ue sonham erguer-se é demonstrada ou lembrada pelos "pe- circunstâncias menos rotineiras, assumindo aspectos que não só
quemnos negrumes de gente" no fIanco da pedreira: a necessidade reafirmam a originalidade do livro como favorecem, examinados,
de um trabalho duro e anulador esmaga-os. Curiosamente, o capí- a compreensão do romancista. Essa influência, que tanto é exerci-
tulo seguinte vai aproximar-nos, por uma mudança de perspectiva, da sobre interiores como sobre exteriores, não se manifesta de ma-
desses "negrumes de gente" (não as mesmas pessoas, mas outras neira concreta e sim subjetivamente, sendo um de seus processos
que a elas se assemelham, na obscuridade, na anulação e na falta a animização.
de perspectivas) e o que era uma simples alusão, transforma-se, a Não é outra coisa o que assusta e conforta o visitante frente
pequena distância, em observação minuciosa: "Insensivelmente, aos retratos de família, na sala de visitas dos seus anfitriões; e a
alinhavam-se em ma e fui vendo, à esquerda e à direita, longas doçura da moça, com a sua fisionomia "benévola", "tema", "mei-
teorias daqueles curiosos exemplares da nossa humanidade.'~ 92 ga", é tão irreal quanto a simpatia com que contemplam o jovem
Resta assinalar, nesta cena onde o espaço (o ambiente do- as casas iluminadas do morro. Mais tarde, tomando a visitar o
méstico 'de uma personagem central), segundo as expectativas do amigo, retoma Augústo Machado, animizando-os, alguns motivos
leitor de romances, seria nada mais que uma expressão do seu modo do cenário: "Na parede, todas as figuras da alegoria da 'Prima-
de ser, um aspecto que confirma a difusa ambivalência do narrado r vera', pareciam olhar o meu inolvidável amigo; a cegonha de bron-
e do livro. O processo mental segundo o qual se configuram, en- ze como que esticou um pouco mais a cabeça e, no alto do portal,
quanto ouve os dois sobreviventes de uma raça em vias de extinção, o mocho juntou mais os olhos, como se se espantasse com aquela
sonhos de auto-afirmação, a imagem de um elemento do povo atitude de Gonzaga de Sá. Todos aqueles seus companheiros de
ascendendo por sobre a decadência de uma antiga linhagem" e por tantos anos se admiravam da brusca revolta." 95
sobre a condenação geral da sua própria classe a um regímen de Nem sempre a animização faz com que as coisas se aperce-
vida nada menos que embrutecedor, não impede que ele experi- bam das pessoas. Vemos também as coisas relacionarem-se entre
mente, nessa tarde, um bem-estar indiretamente confessado na des- si: transfigura a paisagem, no capítulo I da obra, a ilusória anima-
crição das nuvens do poente e definido em referências onde a pre- ção que lhe confere o observador solitário. É a cena em que Gon-
sença humana e a presença das coisas assumem o mesmo aspecto zaga de Sá e Augusto Machado combinam encontrar-se no Passeio
benigno: "Gonzaga pos-se a olhar interrogativamente. A sala esta- Público para contemplar o entardecer. O mais moço, tendo chega-
va quase em treva completa e, na indecisão dos traços de sua ca- do antes, põe-se a olhar a paisagem. Faz-se necessário transcrever, "
beça, eu só via o seu grande olhar que me envolvia todo, respiran- agora, o modo como a vê:
"Considerei também a calma face da Guanabara, ligeiramente
92 Id., ibid., p. 112. A objetiva "irá ainda recuar e nós reveremos ao longe, crispada, mantendo certo sorriso simpático na conversa que enta-
novamente, contrastando com motivos elevados, esses pobres homens sem
esperança: "As alturas estavam calmas; o céu muito azul e límpido; o sol bulara com a grave austeridade das serras graníticas, naquela hora
brilhava sem violência, meigamente envolvendo a palmeira quieta. O flanco de efusão e confidência.
chanfrado da pedreira, do outro lado, era visto ao longe, pela janela aberta,
bruscamente claro, surgindo por entre a vegetação escura e a rocha, como 93 Id., ibid., p. 99.
uma chaga. .. Os cavouqueiros mexiam-se. .. O fermento humano na na- 94 Id., ibid., p. 98.
tureza indiferente ... " (p. 148.) 95 Id., ibid., p. 150.
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"Villegagnon boiava na placidez das águas, com seus muros tando os elementos naturais, de modo que a água embebe as pedras
brancos e suas árvores solitárias. e estas se dissolvem na enseada. Dificilmente poderiam a noção
"Notei então o acordo entre o mar e as serras. O negro costão de insulamento e a ânsia de rompê-l o expressar-se de maneira mais
do Pão de Açúcar dissolvia-se nas mansas ondas da enseada; e da sutil.
mágoa insondável do mar, se fazia a tristeza da Boa Viagem. A interpretação poderia talvez ser contestada, mas outros
"Transmutavam-se naturalmente e tocavam-se amigavel- parágrafos do capítulo reforçam-na. Já não estamos, é certo, dian-
mente. te de um exemplo onde a personagem altera o espaço; mesmo as-
"O mar espelhejante e móvel realçava a majestade e a firmeza sim, as ligações são tão estreitas entre a descrição examinada e as
da serrania e, em fac'e da sua suntuosidade, por vezes conselheiral subseqüentes considerações de Machado a respeito de si próprio,
o sorriso complacente do golfo tinha uma segurança divina." 96 ' que acreditamos necessário comentá-Ias. Depois de unificar serra
O descritivo, examinado com rigor, apresenta as suas falhas, e mar, o singular biógrafo, pouco empenhado em manter-se na
apesar da unidade de tom e do compasso vagaroso das frases, ade- sombra, desenvolve uma série de analogias entre os seus "atos pas-
quado à hora e à calma da paisagem. Pareceria mesmo um tanto sados" e o ambiente que o cerca. Esse homem que, ao longo do
precioso, na insistência com que nele se introduz a idéia de diálo- livro, não faz qualquer alusão aos seus pais, constrói, entre a cidade
go, de "efusão e confidência". Ocorre, entretanto, que a animiza- e ele, uma espécie de "consangüinidade", de parentesco, desenvol-
ção, nesse caso, reflete um fator dominante na obra do escritor e, vendo em outra área a fome de união que o leva a fundir a água e a
mais clara e intensamente, no Gonzaga de Sá: o insulamento, aqui pedra. Fundem-se, agora, a paisagem e o contemplador, não me-
sugerido pela Ilha de Villegagnon (que os portugueses conheciam diante um estado de exaltação, mas em conseqüência de um racio-
por Ilha das Palmeiras ou das Palmas, árvore de tão precisas su- cínio nutrido de sÍmiles: "Vivo nela [na cidade] e ela vive em
gestões na obra de Lima Barreto) e pelas "árvores solitárias". mim!" Reflete-se na sua tolerância a tolerância do mar da Gua-
Dando-nos conta desse pormenor, a sorridente conversa entre mar nabara, "que recebe o bote, a canoa, a galera e o couraçado"; a
e serrania torna-se clara e nós relevamos o seu preciosismo. Vê Serra dos Órgãos ensina-lhe uma ética elevada, alheia aos valores
Augusto Machado, no alto da Glória, as palmeiras pensativas; e, nada substanciais "da gente de consideração"; 97 colhe das rochas
como sempre lhe sucede à vista dessas árvores, pensa no seu pró- antigas alguma energia. O esforço intelectual no sentido de elabo-
prio destino. Não chega a avaliar o que realizou, mas o romance rar uma série de laços que o relacionam com o espaço geográfico
nos dá a resposta: como Gonzaga de Sá, ele permanece entre os (o espaço, aí, repercutindo na personagem), espraia-se aiRda e vai
não aceitos. Rodeando-o, há um vácuo que, não obstante as fases abranger o passado, a História: "e também foi cO,morgulho que
de desânimo, tenciona vencer. Não está certo de que conseguirá verifiquei nada ter perdido das aquisições de meus avós, desde que
romper o círculo e se volta para as coisas, nelas procurando - em se desprenderam de Portugal e da África." 98 O homem ilhado no
vão, como veremos a seu tempo - uma resposta às interrogações mundo e que sempre há de ver-se distante dos demais, desejando
embora confundir-se com eles, compensa o ilhamento criando cor-
da sua alma. Mais: sonha, para as águas e as pedras, a comunhão
que lhe é interdita. respondências com a paisagem e crendo-se depositário de heranças
Não é apenas sob esse aspecto, entretanto, que o espaço, nos remotas. E os ingleses que aparecem a seguir, "com aquele olhar
parágrafos considerados e ainda nos que se lhes sucedem, modifi- que os guias uniformizaram", 99 estaríamos equivocados se os vís-
semos como um capricho do romancista, um sinal de gratuidade
cado pela personagem, ilustra o problema. Componentes sólidos
. e líquidos, na paisagem, vão interpenetrar-se, sendo tão ousada na c~nstrução. Seres vivos, reduzid06, pela sua impessoalidade, a
e pessoal visão do espaço o que mais seduz nesse trecho. Macha- simples componentes do cenário, servem de pretexto ao estabeleci-
mento de mais um laço: o que une o insulado Machado - e mes-
do, em quem a solidão não constitui pretexto para discursos (a
mo este romance de insulados - à tradição cultural européia.
solidão transparece em todos os seus passos e não menos na ami-
zade com o solitário Sá), inventa uma fusão impossível, transmu-. 97 Ido, ibido, p. 40.
98 Id., ibid., p. cit.
96 Id., ibid., p. 39. 99 Id., ibid., po 41.
142 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ TEMÁTICA, ESPAço, AMBIENTAÇÃO, FUNÇÕES... 143

"Logo me recordei, porém, dos meus autores - de Taine, de Re- -iam certamente dos lindos dias de festa, dos casamentos, dos ani-
nan, de M. Barres, de France, de Swift, e Flaubert - todos de versários, dos batizados, em que pares bem postos dançavam en-
lá, mais ou menos da terra daquela gente!" 100 Deles vem a sabe- tre elas os lanceiros e uma veloz valsa à francesa." 106 Mas é no
doria que permite ao narrador "assistir ao raro espetáculo das mi- capítulo N de Gonzaga de Sá que encontraremos - e já aludimos
nhas emoções e dos meus pensamentos." 101 A conclusão ilumina a isto - o exemplo mais feliz dessa superposição. Convidado pelo
em definitivo este passo: Machado, só, esperando no Passeio Pú- amigo, Machado vai com ele ao Engenho da Penha e vê diante de
blico o amigo que ainda não veio, afirma influir "poderosamente si a Ilha do Governador. Lembra o velho que Estácio de Sá viera
no mecanismo da vida e do mundo." 102 Cria o personagem, ima- a morrer de um ferimento por flecha, recebido em combate, ali.
ginariamente, uma estrutura de que participa - ele, o excluído. A essas palavras, o espaço se encanta:
Impossível dizer se, depois de tudo, o que o humilha é a grandeza "Olhei o canal, segui com o olhar as mangueiras centenárias
do papel que se atribui ou o súbito reconhecimento do seu engano: do Galeão, demorei-o sobre as paredes enegrecidas do ilhote; e,
"Humilhado, abaixei a cabeça ... " 103 quando pousei os olhos nas águas mansas do canal, como que vi
Um processo vizinho da animização é o da superposição, que as canoas de Estácio de Sá com os seus frecheiros e mosqueteiros
consiste em acrescentar a um espaço determinado, em geral uma deslizarem, levando o conquistador para a morte ... " 107
paisagem, cenas vivas, quase sempre - em Lima Barreto - liga- Todos os temas do romance, pode-se dizer, são evocados na
das à História. Pouco propenso a aceitar, simplesmente, a apa- cena e grande parte do seu encanto talvez esteja nisto. Vida e
rência das coisas, o romancista superpõe ao cenário figuras e inci- morte se cruzam na figura do guerreiro: morto, singra o mar na
dentes, documentados ou imaginários, ligados quase sem exceção glória da sua força. Quem cruza o mar, além do mais (e o mar,
- e não só em Gonzaga de Sá - às idéias de morte e decadência. na sua imutabilidade, surge ~omo a imagem de um tempo onde
Não situa jamais o presente como um avanço em relação ao pas- - coexistem épocas diferentes), não é um qualquer e sim um homem
sado, sinal de uma insatisfação generalizada com o seu tempo - e que conhece a luta no cúmulo da intensidade, um conquistador,
isto em muitos dos escritos que deixou. No Cemitério dos Vivos, envolvido fundamente nos destinos alheios, podendo modificá-Ios
passeando na chácara do Hospício, imagina Mascarenhas como e sofrer, no ato de agir, a modificação suprema, a morte; aparece,
devia ser, muitos anos antes, o lugar: "Aquelas árvores, aqueles ainda, o tema da decadência, na figura de Gonzaga de Sá, buro-
bambus, destinavam-se a uma remansosa estação de recreio, teriam
crata estéril e apagado, destituído de poderes, infenso à aventura,
assistido festas de junho, bulhentas de foguetes e outros fogos, contemplando da terra as águas onde lutou e morreu aquele antigo
e iluminadas por fogueiras de cultos esquecidos." 104 Quando AI- Sá intimorato.
bernaz e Quaresma seguem de bonde em direção à casa da velha
Maria Rita, comenta o narrador impessoal: "Não havia ainda cem Também reflete o espaço os movimentos íntimos do persona-
anos que as carruagens d'EI Rei Dom João VI, pesadas como naus, gem, em Gonzaga de Sá, através de um processo análogo ao que
a balouçarem-se sobre as quatro rodas muito separadas, passavam vimos em São Bernardo, quando Paulo Honório, após o casamen-
por ali para irem ter ao longínquo Santa Cruz." 105 Assim fala to, descreve em traços breves a fazenda - e neles deixa transpa-
Isaías Caminha da casa de cômodos onde vai morar, a cavaleiro recer seu júbilo. O cenário, então, é realçado e como que ilumi-
da Rua Malvino Reis: "Houve noites em que como que ouvi aque-. nado. Parte das coisas vistas pelo narrador, quando segue em
Ias paredes falarem, recordando o fausto sossegado que tinham companhia de Gonzaga de Sá para o velório, surge sob esse pris-
presenciado, os cuidados que tinham merecido e os quadros e retra- ma: "E as mulheres passavam, moças ou velhas, feias ou bonitas,
tos veneráveis que tinham suportado por tantos anos. Lembrar-se- de todas as cores, roçavam-me, e nunca em seus olhos, nunca em
suas faces eu vi tanto brilho, nunca as vi com aquele estranho ful-
100 Id., ibid., p. cito
101 Id., ibid., p. cito gor, com aquela fascinação, com aquela força de absorção. .. A
102 Id., ibid., p. 42. luz tinha mais doçura, as fachadas mais beleza, o calçamento não
108 Id., ibid., p. cito
104 lu: Cemitério dos Vivos. p. 194. 106 lu: Isaías Caminha. p. 147-48.
10r, Jo: Policarpo Quaresma.- p. 37. 107 lu: Gonzaga de Sá. p. 61.
144 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ TEMÁTlCA, ESPAÇO, AMBIENTAÇÃO, FUNÇÕES... 145

era áspero. .. E eu ia ver um morto!" 108 O estado de ânimo de visão: "E me pus a pensar que sobre a convexidade livre do pla-
Augusto Machado confere um relevo incomum à oposição vida/ neta que me fez, não tinha um lugar, um canto, uma ilha, onde pu-
/morte. desse viver plenamente, livremente. Olhei o mar de novo. Boiavam
A parte relativa ao velório e enterro do contínuo Romualdo, sargaços, balouçando-se nas ondas, indo de um para outro lado,
pela sua desmesura e variedade, mereceria estudo pormenorizado. indiferentes, à mercê dos movimentos caprichosos do abismo. Fe-
Não é, porém, nossa intenção aprofundar ponto por ponto o pro- lizes!" 110 A amplidão do mundo forma o contraste para a cons-
blema do espaço nesse romance. Pretendemos, isto sim, sem re- ciência de segregação que aflige a personagem condenada a sonhar
nunciar ao estudo de alguns aspectos particulares, merecedores de no seu exílio. A ausência de pensamento, a capitulação e a morte
atenção, chegar a uma visão de conjunto, tão sintética quanto pos- estão presentes na imagem dos sargaços que flutuam indiferentes
sível. Tudo com a finalidade de indicar, à luz de alguns princípios _ e, por isto, felizes - "à mercê dos movimentos caprichosos do
teóricos, o modo pessoal e eficaz como o romancista, sem nada abismo."
querer provar, realizando as suas explorações em obediência Tão constante é a tensão entre o par de amigos e o mundo em
a motivos profundos e coerentes, usa no seu livro o espaço. Assim, redor, que dificilmente extraímos, do texto, exemplos onde o cená-
voltamo-nos ainda, no longo e variado domingo em que Gonzaga rio apenas situe a cena. Só uma vez o espaço realça o aconteci-
e Machado, vindo do cemitério, passeiam e discutem, para uma mento: na morte de Gonzaga de Sá, que se curva para apanhar uma
breve cena que, à primeira vista, inscrever-se-ia entre as que reve- flor, depois de haver contemplado "o mar insondável". Mas não
lam, pelo modo como o personagem vê o cenário, o seu interior. poderia o cenário acentuar o pathos de determinadas cenas (mais
Realmente, é isto o que ocorre. Aqui, entretanto, o processo bene- uma vez recordamos Paulo Honório e a noite em que morre Mada-
ficia-se do contraste e é enriquecido pelo influxo de leituras. Além lena), se o romance desliza sem acidentes, ou,· para ser ainda mais
disso, fenômeno típico de Lima Barreto, nenhum fato concreto exato, se a ação, nele, é estagnada, apresentando-se como uma sé-
determina a cena; a cena, por sua vez, nada provoca. Seu nexo é rie mais ou menos descontínua de quadros, podendo algumas de
com os temas profundos da obra, nem sempre reconhecíveis a uma suas cenas ser deslocadas sem prejuízo.
leitura menos cuidadosa. Machado, contemplando o oceano, am- Uma constante salta à vista: a relação entre espaço e perso-
plia-o no espaço e no tempo: "Alonguei a vista por ele afora, des- nagem é toda interior nesse romance. Nota-se mesmo certa dis-
lizando pela superfície imensamente lisa. Surpreendi-o quando tância entre o homem e o que o cerca. Nada que faça lembrar
beijava os gelos do pólo, quando afagava as praias da Europa, aquela manipulação objetiva do espaço, de modo tão enérgico ex-
quando recordava as costas da África e recebia os grandes rios da pressa em São Bernardo: "Depois da morte do Mendonça, derru-
África. Vi a índia religiosa, vi o Egito enigmático, vi a China hie- bei a cerca, naturalmente, e levei-a para além do ponto em que
rática, as 'novas terras da Oceania e toda a Europa abracei num estava no tempo de Salustiano Padilha." 111 "E eu, o caminho
pensamento, com a sua civilização grandiosa e desgraçada, fasci- aplainado, invadi a terra do Fidélis, paralítico de um braço, e a
nadora, apesar de julgá-Ia hostil." 109 Retomam, nestas últimas dos Gama, que pandegavam no Recife, estudando direito." 112
linhas, revivendo a passagem relativa aos turistas ingleses e repe- Confrontando dois homens que são em parte o mesmo e em parte
tindo em outra situação a ambivalência das relações entre Augusto se opõem, de tal modo que os aspectos em que divergem vêm a ser
Machado e o descendente dos Sá, os sentimentos contraditórios do absorvidos pelas semelhanças, o romancista abafou todo embrião
mestiço, filho de uma civilização ainda informe, diante da cultura de conflito; isolou, além do mais, esses homens de qualquer con-
européia, branca, fruto de uma tradição ao mesmo tempo admirá- tato que pudesse arrastá-Ios a embates individuais, (fossem de or-
vel e cruel. O mar "literário" que suscitam as águas próximas, dem física ou espiritual); a única sugestão nesse sentido, represen-
visíveis, enquanto nos instrui sobre a transformação, no pseudo- tada pelo rosto que Gonzaga rabisca obsessivamente, sendo jogada
-narrador, do conhecimento em poesia, revela como ~:lbsiste nele para algum passado remoto ou mesmo para o mito, o sonho. Clama
o seu desalento, cuja extensão é evocada pela grandeza mesma da
110 Id., ibid., p. 131.
108 Id.: ibid., p. 109. 111 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. p. 46.
109 Id., ibid.,p. 130. 112 RAMOS, Graciliano. Op. cit., p. 47.
146 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ
TEMÁTICA, ESPAÇO, AMBIENTAÇÃO, FUNÇÕES... 147
Gonzaga de Sá: "O que mais me aborrece é ter chegado a esta no sentido de uma vida mais alta? Resta alguma saída? Deve o
idade vazio de tudo, vazio de glória, de amizade, só, e quase iso- exilado, recusando integrar-se na barbárie, renunciar também a
lado dos meus e dos que me podiam entender." 113 Machado re-
qualquer esforço e abrigar-se, desconhecido, resignado, rendido,
pudia a perspectiva, que lhe parece inevitável, de permanecer "na na sua pequena ilha solitária? Tentar, por algum meio, infiltrar-se
vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos." 114 Ex- no terreno onde não o admitem e proclamar as suas visões? Gon-
cluídos de um convívio real com o próximo (e o isolamento de
za~"ade Sá e Augusto Machado encarnam este dilema. Se a opção
ambos, mais agudo e carregado de sentido que o de outras perso- c primeiro é definitiva, o jovem, ao longo do romance, hesita:
nagens de Lima Barreto - isolamento que a amizade mútua, o
modo como os dois burocratas a usufruem, ao contrário de negar, contempla, entre fascinado e reticente, o exemplo do amigo. En-
confirma -, reduz ao mínimo as possibilidades de serem eles al- quanto não se decide, faz-se parceiro do outro nas peregrinações
terados ou estimulados por agentes humanos), Gonzaga de Sá e em busca do passado: "era um gosto ouvi-Io sobre as coisas velhas
Machado, simultaneamente expressões e portl\-vozes dos temas da cidade." 116 "Nós estávamos sentados num banco do Campo
profundos da obra, voltam-se para fora, sendo-Ihes impossível igno- de Sant'Ana. Tínhamos marcado o encontro ali, para que ele me
rar as provocações do espaço, que interrogam e interpretam sem mostrasse onde ficava exatamente o Teatro Provisório". 117 O
cessar. Seria a animização, /apenas, o aspecto mais evidente - não passado, embebido quase sempre numa atmosfera idealizante, as-
o mais importante - dessas relações. socia-se à nostalgia de algum paraíso onde outra fosse a sua con-
dição. Absorve-os, entretanto, com força ainda maior, o espaço.
Insulados, não encontrarão nas coisas resposta e abrigo? Não nos
Eis, então, os dois amigos - cuja amizade, como o livro todo, espantemos com as longas e assíduas caminhadas, com o olhar in-
é ambígua -, indo e vindo pelas ruas do Rio de Janeiro. Não os vestigador, com a tensão incessante entre aqueles personagens e
veremos seguir, ao longo do relato, para uma revelação qualquer tudo que os circunda: hão que vencer por algum modo a segrega-
que os salve ou sequer altere os seus destinos. Sem certezas a res- ção em que vivem.
peito do que fazem no mundo, ambos questionam a própria con- Ponto extremo de um fenômeno presente em outros livros, es-
dição e a condição do homem, vagando perplexo através da vida, te movimento dos personagens centrais transformaria talvez Gon-
com a "interrogação a que ninguém até hoje respondeu com segu-
rança". 115 O mistério da existência, que os atrai e que parece zaga de Sã na negação de uma face do autor: seu empenho, apesar
sempre presente neles, gera posições conflitantes: vacilam entre o de tudo, em favor dos oprimidos, seu ardor polêmico, seu incon-
fervor e a desconfiança ante a razãó. A impossibilidade de com- formismo, seu esforço de participação enfim. O livro, é certo, re-
preenderem o mundo leva-os mais de uma vez a odiar o pensa- presentaria - e isto já foi dito antes - o gesto de Machado em
mento, preferindo a inconsciência dos sargaços. Mas também lhes direção aos hom'ens. Mas isso talvez fosse uma prova tênue e,
parece que a elevação do espírito - e, portanto, o pleno uso da portanto, problemática. Reforçando-a, temos o lado social do li-
reflexão - resgata o homem da sua miséria. Que outra saída have- vro, resultante da sua lógica interna. A organização da sociedade,
ria, quando ruína e morte, inexoráveis, tudo destroem? Mas esta- com a distribuição não equitativa da riqueza, instaura os privilé-
mos presos a um contexto inóspito, indiferente às nossas angústias gios, convertendo-os em norma. O próprio Gonzaga de Sá, tão
existenciais. Não são os de alma branda e sim os bárbaros que go- inclinado à omissão e à obscuridade, exclama: "Eu não compreen-
vernam o mundo, cuja organização desdenha o saber e a poesia. do, ( ... ) que haja quem se resigne a viver desse modo e organizar
Se amamos a beleza e o conhecimento, não há lugar para nóS. famílias dentro de uma sociedade, cujos dirigentes não admitem,
Quantos indivíduos sem nome, nas pedreiras e nas repartições, ven- para esses lares humildes os mesmos princípios diretos com que
cidos pela iniqüidade da estrutura social, sufocam em si o apelo mantêm os deles luxuosos, em Botafogo ou na Tijuca." 118 Ainda

113 In: Gonzaga de Sá. p. i49-50. 116 Id., ibid., p. 64.


114 Id., ibid., p. 110-11. 117 Id., ibid., p. 71.
115 Id., ibid., p. 108. 118 Id., ibid., p. 133.
148 CAPo VII - VIDA E MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ

Gonzaga vê na platéia do Teatro Lírico "os mesmos fazendeiros


sugadores de sangue humano". 119
Contudo, o trecho mais eloqüente e o que atesta, no roman-
cista, a consciência do significado assumido pelo espaço no seu
livro, está como que perdido em um parágrafo extenso: BmLIOGRAFIA
"O jantar foi triste; Dona Escolástica, com a indiferença do
seu olhar verde, jantou sempre cerimoniosa, tendo sempre um sor-
riso de bondade fixado nos lábios. Não perdia nunca aquele seu
ar de remanso, de placidez. Mas, com tanta passividade, que não AGOSTINHO.Confissões. Trad. de J. Oliveira Santos S. J. e A.
lhe adivinhei qualquer contração, ter descoberto a crise por que Ambrósio de Pina, S. J. Porto, Liv. Apostolado da Im-
vinha passando o sobrinho." 120 prensa, 1952.
Inicia-se o parágrafo, portanto, insistindo significativamente ALENCAR,José de. Senhora. São Paulo, Ed. CuItrix, 1968.
no tema do ilhamento. Escolástica, que desde sempre viveu ao lado AMORA, Antônio Soares. "Iracema - um romance de atmos-
de Gonzaga, ignora o que se passa com ele; e também Gonzaga fera." In: Classicismo e Romantismo no Brasil. São Paulo,
sofre em silêncio. As observações de Machado, entretanto, não aca- Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1966.
bam aí. Ele falou, antes, no "ar de remanso" de Escolástica, ex- ARIST6TELES.Arte Retórica. Trad. de Antônio Pinto de Carvalho.
pressão não alheia à idéia de espaço. Logo constatamos que a São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1959. ("Clássicos
Garnier")
imagem nada tem de casual: assemelha-se a anfitriã a "essas deli-
ciosas paisagens para onde corremos quando a alma se nos tolda ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo, Ed. CuItrix,
1960.
de desgosto. Contemplamo-Ias, horas e horas, esperando um con-
solo, um afago, e elas nada nos dizem. Continuam, como sempre, BACHELARD,Gaston. La Poétique de l'Espace. 4. éd. Paris,
belas para toda a gente, mas sem compreensão simpática para um Presses Universitaires de France, 1964. .
qualquer· dentre os muitos que as procuram. Dona Escolástica BARBOSA,Francisco de Assis. Aldebarã - A Vida de Lima Bar-
continuava plácida e remansosa, mas parecia ser assim para todos, reto. Rio de Janeiro, Tacnoprint Gráfica, 1967.
sem escolha nem eleição." 121 Nada, pois de acolhedor reconhece "Prefácio." In: BARRETO,Lima. Recordações do Escrivão
Machado na anciã (em quem, antes, enxergara tanta candura e Isaías Caminha. 5.a ed. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1971.
simpatia), quando identifica o seu modo de ser com a neutralidade BARRETO,Afonso Henriques de Lima. Bagatelas. 2.a ed. São
das paisagens que buscamos em nosso desespero e que "nada nos Paulo, Ed. Brasiliense, 1961.
dizem." Inutilmente buscará o homem nas coisas o que só pode - Clara dos.Anjos. 3.a ed. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1969.
encontrar no convívio humano. - Coisas do Reino do Ja;;;bõn. z:-a ed. São Paulo, Ed. Brasi-
liense, 1961.
- Correspondência (Ativa e Passiva). 2.a ed. São Paulo,. Ed.
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- Feiras e Mafuás. 2.a ed. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1961.
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- Impressões de Leitura. 2.a ed. São Paulo, Ed. Brasiliense,
1961.
- Marginália. 2.a ed. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1961.
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Os Bruzundangas. 2.a ed. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1961.
119 Id., ibid., p. 159. O Cemitério dos Vivos. 2.a ed. São Paulo, Ed. Brasiliense,
120 Id., ibid., p. 151. 1961.
121 Id., ibid., p. 151-52.
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4. O Inconsciente na Antropologia de Lévi·Strauss


Claude Lépine

5. O Dialeto Caipira na Região de Piracicaba


Ada Natal Rodrigues

6. A Semântica Gerativa e o Artigo Definido


Mary Aizawa Kato

7. A Tradição do Impasse
João Alexandre Barbosa
8. Burocracia e Ideologia
Maurício Tragtenberg

9. Níveis de Significação no Romance


15. O Espírito e a Letra
Yara Frateschi Vieira
Rubens Rodrigues Torres Filho

10. Epilepsia e Personalidade


16. Os índios de Ipavu
Lúcia Maria Salvia Coelho
Carmen Junqueira.

11. Os Quadrinhos
17. Psicologia e Profissão em São Paulo
Antônio Luís Cagnin
Sylvia Leser de Mello

12. Sintaxe' TraJisformacional do Modo Verbal


18. Teoria, Retórica, Ideologia
Leila Barbara
João Paulo Monteiro

}3 . Byron no Brasil 19. Preconceito de Cor e a Mulata na Literatura Brasileira


Onédia Célia de Carvalho Barboza
Teófilo de Queiroz Júnior

14. Crônica do Cinema Paulistano


20 . Lima Barreto e o Espaço Romanesco
Maria Rita Eliezer Galvão Osman Uns
PRÓXIMOS LANÇAMENTOS

Fichte, Doutrina·da·Ciência Os Estados Subjetivos


Rubens Rodrigues Torres Filho Amo Engelmann

A Noção Aristotélica de Ciência


Messianismo e Conflito Social
Oswaldo Porchat de Assis Pereira da Silva
Maurício Vinhas de Queiroz
O Intervalo Semântico
João Francisco Lisboa
Carlos Vogt
Maria de Lourdes Monaco Janotti
A Disjunção: Forças e Signos em Nietzsche
Leon Kossovitch
Desemprego e Subemprego no Brasil
Helga Hoffmann A Comunidade Judaica em São Paulo

Henrique Rattner
Marx & Marx
Luís Alfredo Galvão A Tradição Sempre Nova
Roberto de Oliveira Brandão
Os Sofistas
Rousseau: Da Teoria à Prática
José Cavalcante de Souza
Luís Roberto Salinas Fortes

A Ideologia Nacional·Desenvolvimentista A Reconstituição da Realidade


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