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UM PUNHAL PÚTRIDO:
UMA ANÁLISE DA CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA DE
LÚCIO CARDOSO
DISSERTAÇÃO
PATO BRANCO – PR
2018
ELIS REGINA MELERE
UM PUNHAL PÚTRIDO:
UMA ANÁLISE DA CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA DE
LÚCIO CARDOSO
PATO BRANCO – PR
2018
M519p Melere, Elis Regina.
RESUMO
ABSTRACT
1.1 O AUTOR
1 “who refused to go to school, was obsessed with movie stars, and played with dolls”
2 “queer”
3 But Lúcio never had a lasting relationship [...] He apparently never wanted one either, though he was
sendo advertido por um médico após ter sofrido alguns espasmos faciais. Contudo,
o escritor manteve sua vida de boêmio até que em 7 de dezembro de 1962, Maria
Helena o encontrou em seu apartamento gravemente doente, e, na sequência, em
coma. Ao retornar do coma, as sequelas do acidente vascular cerebral deixaram o
lado direito paralisado, impedindo-o de escrever; assim, depois do derrame, “ele
nunca seria capaz de falar normalmente de novo. Sua carreira de escritor havia
terminado”4 (MOSER, 2016, p.19, tradução dos autores).
No entanto, sob os cuidados da irmã, o escritor encontrou na pintura outro
meio de expressão, tornando-se um pintor talentoso usando apenas a mão
esquerda. Compôs perto de quinhentas telas de filiação surrealista e expressionista,
recriando, de acordo com Mario Carelli “uma atmosfera próxima do resto de sua obra
literária, através da violência cromática e das opções temáticas” (1996, p. 638) e
realizou exposições em galerias de arte do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
Horizonte. Faleceu vítima de derrame cerebral, em 22 de setembro de 1968.
Clarice Lispector em seu ensaio “Lúcio Cardoso” descreve tristezas e
saudades do escritor quando, doente, ficou impossibilitado de escrever. Depois, na
sala de espera do quarto no hospital, onde ele permanecia em coma, a romancista
lamenta que “Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que
eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha
adolescência” (1991, p. 789). Ela confessa, enfim, não ter ido ao velório, nem ao
enterro, nem à missa, pois dentro dela havia silêncio demais. De acordo com suas
palavras, “eu vira a morte” (1991, p. 789). Sobre Cardoso, Lispector revela os “seus
anseios e alegrias, de suas angústias profundas, de sua luta com Deus, de suas
fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do Mal” (1991, p. 790). A autora
reflete que, apesar de estar mudo, Cardoso havia encontrado maneiras de
expressar-se através da pintura, nunca estando de fato mudo.
A estreia de Lúcio no campo literário foi em 1934, com a publicação de
Maleita, livro no qual o autor “encontraria o próprio caminho, a introspecção e a
análise” (BOSI, 2006, p. 441). Maleita foi publicado em meio a uma profusão dos
chamados “romance do Nordeste”, que possuía como característica a ambientação
nordestina e uma forte crítica social. Acompanhando as discussões literárias,
Cardoso descreveu no romance, baseando-se em uma história familiar, a fundação
4 “He would never again be able to speak normally. His writing career was over”.
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de Pirapora por seu pai Joaquim Lúcio Cardoso, em 1893, adicionando elementos
ficcionais e a descrição dos hábitos, costumes, ambiente e fala das personagens.
Carelli afirma que Maleita “é a transposição romanesca de uma história autêntica, a
epopeia trágica e lamentável da fundação da cidade de Pirapora, em 1893, pelo pai
do escritor” (1996, p. 626).
Devido ao assunto de caráter naturalista de seu primeiro romance que retrata
a fundação de Pirapora no sertão mineiro, Cardoso foi agrupado equivocadamente
pela crítica entre os escritores chamados regionalistas. Desta vertente da literatura
escrita na década de 1930, os melhores romances se chamavam Cacau de Jorge
Amado, Os Corumbas de Amando Fontes, Menino de Engenho de José Lins do
Rego. Entretanto, de acordo com Bosi, tal filiação de Lúcio Cardoso ao romance
regionalista foi um engano cultural, visto que logo sua produção mostraria mais
afinidade com o grupo espiritualista de Octávio de Faria, Jorge de Lima, Cornélio
Pena, Vinicius de Moraes, grupo este com o qual Lúcio manteve contato até sua
morte.
Segundo Mario Carelli, na edição crítica de Crônica da casa assassinada
(1996) em que atua como coordenador e crítico, certas nuances como densidade
poética e a criação de atmosferas pesadas de suas obras posteriores já podiam ser
observadas em seu primeiro livro. Comenta Luís Bueno, em Uma história do
romance de 30, que Maleita “foi um grande sucesso de crítica” (2006, p. 204)
entusiasmando Agripino Grieco, considerado o crítico mais ferino da literatura
nacional de então.
Percebe-se, pela escrita de Maleita, que Cardoso conhece e reconhece as
peculiaridades das falas bem como o registro da oralidade em que se nota o
distanciamento intelectual das personagens. Isso ocorre, por exemplo, no trecho em
que o protagonista da obra repreende os pescadores e sua nudez: “- Vossemecê
sabe que é mior para a pesca... Adispois vestimo todos.” (CARDOSO, 2005, p. 76).
Característica contestada pela crítica, a fala em Crônica da casa assassinada tem
sido alvo de questionamentos pela aparente homogeneidade dos discursos,
considerada como falha do romance, defeito de técnica ou ainda como um elemento
destruidor da verossimilhança.
Ao realizar a leitura de Maleita e Crônica da casa assassinada elucida-se
que o autor não só afirma conhecer as particularidades de discursos, bem como não
as ignora. O autor “redargüia com a afirmação do seu direito de realizar uma obra
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desvinculada dos moldes mais convencionais ou, pelo menos, que lhe pareciam
convencionais” (SANTOS, 2005, p. 156), rompendo com moldes de retratos fiéis de
personagens, aproximando-se a uma verdade humana, sem o ar familiar e
encontradiço dos romances de costumes. Consuelo Albergaria reitera que todas as
personagens usam o mesmo registro de fala, independente de sexo, idade ou
condição social e este recurso remete a presença de Cardoso como sujeito-autor e
que em todas as enunciações paira “um clima de conciliábulo, de intriga e de
curiosidade mórbida [...]” (1991, p. 683).
Assim posto, Albergaria expõe que o motivo de manter uma comunicação
fragmentária revela o entredito e o interdito, discurso monológico em que as opiniões
do falante permanecem submersas, uma linguagem não comprometida que se
caracteriza por falar e não dizer, permeando a mensagem “sem que na verdade
sejam transmitidas informações diretamente provenientes de um sujeito, sendo
característica da gente mineira, bem pode ser um dos fundamentos da sua
reconhecida desconfiança [...]” (1991, p. 683) um costume advindo do século XVIII
em que a sensatez na fala e a desconfiança ao ouvir refletem o conhecimento de
antepassados em que cada palavra proferida pode levar à autodestruição. Logo, a
homogeneidade dos discursos em Crônica da casa assassinada constrói no leitor
a imagem de uma família que, presa a uma aura ao redor do casarão dos Meneses,
constitui um só discurso, um discurso de desesperança, rancor, vigilância e
infindáveis suspeitas.
Uma curiosidade para ser ressaltada é que tanto em Maleita quanto em
Crônica da casa assassinada, existem famílias com sobrenome Meneses, sendo
que em Maleita a diferença se dá em sua grafia Menezes com a letra Z ao invés da
S. No primeiro romance, há a seguinte passagem: “Antônio Menezes sorriu. Dobrou
a carta que um tropeiro lhe trouxera e passeou pela sala, as mãos atrás das costas,
distanciado” (CARDOSO, 2005, p. 35). Ainda, outra curiosidade interessante é que
em ambos os textos há menção a Antônio Meneses. Em Maleita, Antônio Menezes
é o fundador da cidade de Pirapora, é quem leva modernização a um lugar ermo,
enquanto em Crônica da casa assassinada, Antônio Meneses foi o nome do pai
dos três irmãos Meneses e seria o nome do futuro filho de Valdo e Nina como no
trecho em que Valdo, extasiado, comenta com o farmacêutico que “[...] se chamará
Antônio, como se chamou meu pai” (CARDOSO, 2013, p. 140).
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suas criaturas [...]” (1996, 638), romance este que teria continuidade no livro O
viajante, que ficara incompleto devido ao estado de saúde do escritor.
Apesar de suas personagens buscarem a comunhão com Deus, de acordo
com Coelho, André do Carmo Seffrin, em seu artigo “Câncer e violetas”, afirma que
Lúcio era um boêmio e, por isso, “[...] escreveu com algum método misterioso em
que imperavam as leis do destino” (1996, p. 792). As leis do destino que Seffrin
discorre são os inúmeros infortúnios e desarranjos de uma família completamente
desestabilizada. Infortúnios estes que transparecem como obra do destino e não
como escolha de um ser.
Além dos comentários críticos sobre Crônica da casa assassinada, para
este estudo foram analisados os diários escritos pelo autor, alguns publicados em
vida, e reorganizados por Ésio Macedo Ribeiro (2012). Nos Diários, reeditados por
Ribeiro, existe um cuidado em apresentá-los cronologicamente. Além disso, o autor
corrige os “muitos equívocos, como a inserção de trechos em duplicidade e leitura
errônea de letras e vocábulos na transcrição dos manuscritos, sem mencionar as
gralhas, também numerosas” (2012, p. 11).
A leitura dos Diários permite um aprofundamento da maneira como Cardoso
pensa, conhecendo-o no seu íntimo e tendo contato com sua trajetória no cinema,
no teatro, na escrita, nas leituras, além de verificar as influências sofridas pelo
escritor e sua percepção religiosa, resultando em uma maior compreensão da sua
literatura, sobretudo lançando luzes sobre pontos obscuros de Crônica da casa
assassinada.
De acordo com Afrânio Coutinho, “Lúcio encarna, dentro do romance
brasileiro, a figura solitária de um homem que somou ao fascínio pessoal e
legendário uma força criadora altamente romântica e surpreendente” (1986, p. 445).
Essa figura solitária é o que se percebe em Crônica da casa assassinada quando
suas personagens, apesar de pertencerem a um mesmo núcleo, não se relacionam
fraternalmente. Coutinho reflete sobre o romance apontando-o como uma obra
extraordinária, com tamanha densidade e riqueza rara, que beira uma morbidez em
derrocada. O crítico descreve Crônica da casa assassinada como obra de temática
universal “que paira solitário dentro da ficção brasileira, e que representa a síntese
de uma vivência em nosso tempo, em nossa crise de almas e de grandeza, atrás da
qual fulgura a vocação incontida do homem para a ressurreição” (COUTINHO, 1986,
p. 455).
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Cardoso foi um dos temperamentos mais fortes de sua geração e que sua obra-
prima possui perturbadora e apaixonante densidade. Ainda enfatiza que com
Crônica da casa assassinada “a literatura brasileira se enriqueceu de um texto
convulsivo e rebelde, marco de uma de suas fronteiras: a busca angustiada do
sentido da aventura humana” (CARELLI, 1991, p. 26).
Somando às pesquisas críticas, analisa-se a tese apresentada pela autora
Cássia dos Santos, estudo que ilumina diversas pesquisas sobre Lúcio Cardoso e
Crônica da casa assassinada como também seu projeto posterior à publicação
deste livro. Esta obra de Cardoso, conforme observa a pesquisadora, “é igualmente
representativo desse projeto ambicioso que, a partir de 1951, ano do início da
elaboração do romance inacabado O viajante, passou a absorver o escritor”
(SANTOS, 2005, p. 3) e que deixou outras obras suas inconclusas.
Crônica da casa assassinada seria o primeiro livro de uma série de três
romances constituído por Crônica da casa assassinada (1959), O viajante (1973)
e Réquiem, livros em que o autor daria continuidade à fictícia cidade de Vila Velha e
a personagens de Crônica da casa assassinada que têm seu fim desconhecido
como André, que aparece junto ao bando de Chico Herrera, e personagens que são
apenas mencionados teriam seu caráter desenvolvido na sequência dos romances
como Chico Herrera e Donana de Lara. Todos esses, Faria afirma, possuem
“importância excepcional [que] não devemos duvidar” (1996, p. 679). Acrescenta o
crítico que estas personagens abordariam temas que já vinham despontando em
outras obras, como a crueldade do ser humano, o questionamento religioso, a
revolução patriarcal e a decadência do sistema.
Os fatos de Crônica da casa assassinada ocorrem nas proximidades da
fictícia cidade de Vila Velha, nalgum lugar de Minas Gerais, onde a família Meneses
vive numa imponente Chácara. A família, composta por Demétrio, Valdo, Timóteo,
Ana (mulher de Demétrio) e os empregados, Betty (a governanta), Alberto (o
jardineiro) e outros, aguardam a chegada de Nina, mulher de Valdo, que está se
mudando do Rio de Janeiro para viver na pequena cidade de seu marido. Nina é a
personagem principal, sendo que as narrativas, confissões, depoimentos, cartas e
diários retratam acontecimentos relacionados a ela. É também ela quem denuncia a
decadência da família Meneses e a critica por viver na glória do passado recusando-
se em alterar a situação atual.
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Portella ainda salienta que a ordem social representada por Cardoso reflete
as ruínas de “um mundo soterrado, porém ainda não de todo morto: letárgico,
coagulado, larval, incapaz de decidir sobre o que fazer dos seus distúrbios
recalcados ou das suas feridas expostas” (1991, p. 20). As marcas sociais da ordem
patriarcal que o autor de Crônica da casa assassinada apresenta são marcas de
um sistema ultrapassado, mas ainda assim um sistema que persiste, que rasteja,
para manter-se em um poder quase que inexistente.
No ensaio “Lúcio Cardoso”, Octavio de Faria analisa a figura do autor e suas
séries inacabadas, abordando os motivos para a série A luz no subsolo não ter seu
segundo e terceiro volume publicados. Aborda seu itinerário afirmando que após seu
terceiro livro “não havia mais como duvidar: estávamos diante de um criador de
envergadura equivalente à dos maiores de que podíamos nos orgulhar” (1996, p.
661), comparando o escritor a autores das grandes tragédias gregas, distinguindo-o
no patamar de autores brasileiros como “o mais autêntico, o mais completo, o mais
vivo e o mais importante dos nossos atuais romancistas” (1996, p. 661).
Faria ainda explora as personagens e todas as suas complexidades e o
mundo que o romancista criou, que se caracteriza por ser:
Octavio de Faria declara que, por esse motivo, por ser um mundo completo
de infelicidade ancorado na desgraça humana com seres que carregam consigo a
tragédia e não podem e não parecem querer fugir, Cardoso deveria ser filiado à linha
dos grandes trágicos. Soma-se a tragédia de seus romances, o ódio que promove,
as desavenças que obriga seus personagens a esconderem-se e a espionarem-se
uns aos outros fazendo emergir situações como pecado, adultério, maldição,
havendo, em consequência de tudo isso, o banimento da esperança na Chácara.
Em “Espaço e transgressão” de Consuelo Albergaria, há uma retrospectiva
histórica e social do período literário em polvorosa no Brasil como os romances de
1930 e seu engajamento social e a geografia do estado de Minas que interfere em
suas relações sociais. Ela retrata como os autores deste estado se portavam e
afirma: “diz o ditado que Minas trabalha em silêncio. E rumina” (1991, p. 681),
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século XXI e assim passa a integrar, cada dia mais, o hall de autores consagrados
pela crítica.
‘Olha, pode dizer ao meu irmão que o sonho jamais se realizará: o Barão
nunca pisará nesta casa.’ Sempre me guardei de transmitir tais palavras,
mas um dia (posso mesmo dizer: recentemente...) Demétrio aludindo
novamente ao Barão, afirmei um pouco distraída que ele jamais viria à
Chácara (CARDOSO, 2013, p. 105).
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[...] com a perda da mãe os três irmãos Meneses têm dificuldade em ocupar
o núcleo, já que pertencem a uma família cuja condução sempre foi
vinculada a figuras femininas com traços viris, até mesmo de caráter
autoritário, no que concerne à questão do comando (2017, p. 163).
As figuras femininas que conduzem a família e são citadas na obra são Maria
Sinhá, que se vestia como homem e era considerada mais forte e valente que os
varões da fazenda e Dona Malvina, mãe de Timóteo, Valdo e Demétrio, retratada no
romance como independente e extravagante. Apenas quando se cogita nomear o
primogênito de Valdo em referência ao seu pai, faz-se alusão aos homens da
família, no entanto, sem garantia que fosse um dos ascendentes masculinos que
poderiam ter assumido e comandado o clã. Desta maneira, é inegável que a
influência feminina na liderança da família afeta os irmãos Meneses, que não
conseguem conduzir a Chácara tão bem quanto as mulheres que os precederam.
Por isso, tentam repudiar suas fraquezas e seus traços femininos. Apenas Timóteo
abraça sua feminilidade, e, por escancarar a verdade que os irmãos tentam
esconder, encontra-se encerrado em sua solidão.
Demétrio é a única personagem do romance que não oferece nenhum relato
de sua autoria. Constata-se nessa obra de várias vozes que o condutor da família é
construído pelas outras personagens, porém não é possível conhecer
profundamente seus sentimentos. Albergaria declara que, de todas as personagens,
Demétrio é a que não possui voz, não possui capítulos por ele redigidos, sendo
representado no discurso direto alheio, construindo uma identidade que pode ser
questionada pela interferência do autor do fragmento (ALBERGARIA, 1991). Tais
considerações corroboram as observações de Candido sobre personagens:
Sinhá uma vez da sua contemporaneidade, enquanto o livro tem seu enredo situado
em meados do século XX. Dessa forma, as teorias pós-modernas que tratam sobre
a sexualidade e todo o seu leque estariam começando a ser discutidas e,
possivelmente, Cardoso ainda não as conheceria como hoje se retrata.
Ao longo desse trabalho e com as concepções compreendidas, aborda-se a
nomenclatura homossexual para definir os papéis de Timóteo e de Maria Sinhá em
razão de as terminologias que caracterizam a comunidade homossexual oscilarem
frequentemente. A título de exemplo o autor Jurandir Freire Costa, em A inocência
e o vício: estudos sobre o homoerotismo, onde discute brevemente a isenção
valorativa e descritiva - ou não - da palavra homossexual, apresenta que, em virtude
de estar relacionada a estudos médicos sobre sexualidade e comportamento,
sobretudo no que tange ao conceito de enfermidade, as palavras homossexualidade
e homossexualismo “[...] está inevitavelmente comprometida com a ideologia médica
que lhe deu origem e, por conseguinte, saturada de preconceitos” (1992, p. 60).
Noutras palavras, desde meados do século XIX, homossexualidade e
homossexualismo apresentam o sentido de moléstia, de modo que a sociedade que
se formou dessa época em diante relaciona sujeitos e vocábulos a concepções
preconceituosas. Dessa maneira, o autor prefere utilizar o termo homoerotismo.
Portanto, ao longo deste trabalho e com as concepções compreendidas, são
utilizados os vocábulos sem distinções, posto das diversas terminologias que
circundam o campo de estudo possibilitando olhares diferentes sob diversas
perspectivas teóricas acrescendo as discussões de gêneros, sujeito e sociedade.
Herança que nos legou a cultura europeia, é possível constatar que desde o
Brasil colonial também têm havido, no seio da sociedade que aqui se constituiu e
evoluiu, rígidas separações entre os papéis sexuais femininos e masculinos, e as
exceções a essa regra foram tratadas severamente pelas instituições sociais e
religiosas que faziam as vezes de mantenedoras da ordem e da moral. Segundo
Peter Fry e Edward MacRae no livro O que é homossexualidade, desde pequenos,
os meninos e as meninas são educados para serem homens e mulheres mais tarde:
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Dito isto, pode-se encontrar nos gregos e nos índios ameríndios uma
semelhança quanto aos relacionamentos sexuais, já que para ambos a atividade
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homossexual é uma maneira de obter prazer e não ocorre pela falta de mulheres.
Nos dois casos, a prática era considerada regular e frequente entre os membros
daquela comunidade, praticada sob algumas regras sociais que regulamentavam
alguns aspectos do relacionamento homossexual.
Quanto ao papel do negro submetido a um papel homossexual, Gilberto
Freyre descreve uma cena rotineira da época: o menino branco “ganhar”, ao nascer,
um companheiro negro que seria seu e serviria para o que o proprietário ordenasse
“através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos e
expressivamente chamado leva-pancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco
no amor físico” (2003, p. 113). Sem explicitamente tratar da questão sexual, essa
cena está descrita em Machado de Assis, no livro Memórias póstumas de Brás
Cubas, no qual o narrador relata como era a relação com o seu leva-pancadas:
estradas de ferro. O romance de Raul Pompeia, O Ateneu (1996), ilustra bem este
aspecto quando narra o relacionamento entre os meninos do internato de Aristarco.
Freyre cita algumas pesquisas que comentam sobre a rigidez do ensino, as regras
de vestimenta e os problemas que começaram a surgir após a popularização dessas
instituições de ensino.
Um dos trabalhos citados por Freyre foi o de Frutuoso Pinto da Silva no qual
há a discussão da moralidade e da higiene sexual nos internatos sendo eles os
perigos do onanismo e a pederastia que ocorriam nos colégios bem como a procura
dos meninos por escravas e de outras mulheres para a satisfação sexual. Esse tipo
de procedimento parece ser algo culturalmente enraizado na sociedade brasileira,
como é possível depreender da canção “Doze anos”, de Chico Buarque, na qual
existe alusão a esse “troca-troca” como se depreende do trecho “Rodopiando pião/
Fazendo troca-troca/Ai, que saudades que eu tenho” (BUARQUE, 1977) que se
realizava entre os meninos durante a fase inicial da adolescência.
Ao longo dos escritos de Gilberto Freyre, percebe-se uma análise profunda da
sociedade brasileira na qual diversos aspectos são analisados e da qual podem ser
inferidos inúmeros aspectos da sexualidade da época. Também há como
compreender qual a concepção da época e do autor sobre a homossexualidade e
como tal compreensão influenciaria Cardoso e seus escritos.
duas maneiras de obter seu prazer, uma das quais convinha melhor a
certos indivíduos ou a certos momentos da existência (1984, p. 170).
No entanto, convém observar que muitos que tiveram tal tipo de iniciação não
se identificaram como homossexuais. Mesmo aqueles que fizeram o papel de
passivo nem sempre optaram pela homossexualidade. Como se pode perceber, na
sociedade grega o relacionamento homossexual era habitual e era constituído pelo
erasta e eromeno. Erasta era o homem que detinha e repassava o conhecimento ao
eromeno. Erasta é definido por Foucault como aquele que:
[...] evitar ceder com muita facilidade; deve também evitar aceitar
demasiadas honras diferentes, conceder seus favores às cegas e por
interesse, sem pôr à prova o valor de seu parceiro; também deve manifestar
reconhecimento pelo o que o amante fez por ele (1984, p.175).
Heinrich Ulrichs, jurista alemão, que “no caso dos uranistas, os órgãos genitais vão
numa direção e o cérebro noutra. Assim se produz ‘uma alma feminina encapsulada
num corpo masculino e vice-versa’” (1991, p. 63).
A medicina exerceu, e continua a exercer, grande influência na sociedade,
pois, ao afirmar que a homossexualidade era uma doença rotulou os homossexuais
de doentes necessitados de tratamentos os quais, muitas vezes, eram cruéis e
humilhantes. Após as críticas vindas do movimento homossexual, introduziu-se o
termo “homossexual sadio”.
Em meados de 1930, apesar de a ciência desmistificar a ideia de que o
homossexual era um doente de personalidade medíocre e instável, a sociedade
ainda os via como um perigo, pois “impunham um sério risco ao tecido social
brasileiro, à família e à correta ordenação dos relacionamentos entre os gêneros”
(GREEN, 2000, p. 208). Além disso, o homossexual foi excluído do convívio da
sociedade burguesa, que o transformou em uma espécie de parasita. O
homossexual era visto, segundo Jurandir Freire Costa, em A inocência e o vício:
estudos sobre o homoerotismo, como:
médicos, psiquiatras, psicólogos, entre outros. Na contramão dos velhos e não raros
preconceituosos discursos que abordavam essa questão, Edward Carpenter, por
exemplo, constata que os homossexuais seriam:
era aquela senhora e trazer à tona toda a vergonha que tentava esconder. De certo,
porém, a retirada do quadro acaba influenciando a revolta de Timóteo contra a
família.
Na “Primeira carta de Nina a Valdo Meneses”, Nina descreve a antiga
localização do retrato de Maria Sinhá que se achava na sala, acima do aparador
grande com pratas empoeiradas, em que o quadro da Ceia de Cristo tentava ocultar
a mancha larga que denunciava o lugar onde o retrato havia ficado. Segundo
Brandão “a marca do retrato, entretanto, continuou como uma inscrição na parede
da sala, funcionando como cicatriz de algo que deve ser recalcado. [...] olhar o
retrato de Maria Sinhá é violar um segredo” (2006, p. 164). Apesar do empenho de
Demétrio para acobertar o passado inglório da família Meneses, a mancha do retrato
de Maria Sinhá evoca a lembrança da antepassada que causava alvoroço na região.
Ademais, a recordação da tia-avó permanece intensa, posto que Timóteo não a
esquece, revive-a em memórias e comportamento, e, assim como a mancha, não
esmorece em seu intento.
Timóteo descreve várias vezes Maria Sinhá com orgulho, emoção e
entusiasmo, sendo possivelmente o único membro da família que fala
encarecidamente de Maria Sinhá: “- Quem – tornou ele com uma breve risada –
quem nesta casa ousaria falar nisto senão eu? ” (CARDOSO, 2013, p. 57) e o único
que descreva este sentimento pela tia-avó, como se percebe no diálogo em que
trava com Betty:
não detém poder algum, não está à testa da família; sua situação é a de permanecer
prisioneiro em seu próprio quarto.
A relação que Timóteo desenvolve com Maria Sinhá influencia-o em sua
escolha sexual, visto que Maria Sinhá não ocultou sua masculinidade para a
sociedade de seu tempo, permitindo a Timóteo também reconhecer sua
feminilidade. Esta influência pode ser considerada a inversão de gênero de Timóteo,
em razão de Maria Sinhá ser mulher e apresentar características masculinas e
Timóteo ser homem e apresentar características femininas. Essa influência é de fácil
percepção nos trechos já apresentados, bem como no trecho a seguir, quando
Timóteo descreve o retrato que existia na sala e a atração que este lhe incutia:
5
Inasmuch as “identity” is assured through the stabilizing concepts of sex, gender, and sexuality, the
very notion of “the person” is called into question by the cultural emergence of those “incoherent” or
“discontinuous” gendered beings Who appear to be persons but Who fail to conform to the gendered
norms of cultural intelligibility by which persons are defined. (2008, p. 23, grifos da autora).
51
expulsado um padre segurando-o pela batina quando este infringira suas ordens de
ministrar os últimos sacramentos a uma de suas escravas.
Maria Sinhá é uma personagem construída por intermédio de lembranças de
outras personagens sendo assim difícil classificá-la e entendê-la no todo. Não se
pode afirmar que Maria Sinhá envolvia-se sexualmente com outras mulheres, visto
que esta informação não está clara em nenhuma das passagens nas quais ela é
retratada no romance. Porém, de acordo com as descrições feitas pelas
personagens acima, percebe-se Maria Sinhá como uma mulher forte que impôs sua
vontade em uma época e em uma sociedade na qual poucas mulheres detinham
alguma forma de poder.
Mesmo sendo esquecida pelos membros da família – ou intencionalmente
relegada ao olvido, de acordo com a retirada de seu quadro da sala – pelo tempo ou
pela imposição de Demétrio, Maria Sinhá repercute durante todo o romance em
passagens de Timóteo, Valdo, Nina e Betty. Essa repercussão revela a importância
que essa personagem outrora viveu e como sua presença permanece incrustrada na
Chácara e nos Meneses.
Sua reminiscência permanece viva em Timóteo, personagem que mais se
referencia na antepassada de gestos e ações viris. Durante todo o romance, ele
assume características femininas, enquanto ela assumiu postos e características
masculinas, apresentando a inversão de gêneros. Essa inversão pode ser
compreendida pela própria falta de modelos masculinos, já que as personagens
masculinas do passado da família Meneses se encontram ausentes durante a trama.
Ademais, Timóteo pensa ser uma reencarnação de Maria Sinhá, a incorporação da
antepassada quando afirma “sou dominado pelo espírito de Maria Sinhá”
(CARDOSO, 2013, p. 57).
Portanto, ainda que durante toda a narrativa Maria Sinhá e Dona Malvina
sejam apresentadas como protagonistas que fazem apenas parte da memória
familiar, a tia-avó revela-se uma representação que influencia diversos momentos do
romance incluindo seu desfecho assinalando um ou outro personagem, sobretudo
repercutindo aspectos da inversão em Timóteo, no que tange às suas ações e ao
seu discurso.
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rodeiam constitui-se uma grande coragem, mesmo quando esse protesto é feito
entre quatro paredes aguardando o momento exato para executar seu plano de
vingança.
Valdo também exprime sua percepção sobre Timóteo quando ao conversar
com o Médico na “Terceira narrativa do Médico” ele o retrata como um “ser
extravagante, um demente [...] é um ser doente e maldoso, uma alma intratável”
(CARDOSO, 2013, p. 263) e em sua voz transparecia “um ódio decidido e firme,
além dos limites do desprezo, e que em última análise era o que alimentava seu
sentimento” (CARDOSO, 2013, p. 263). O Médico, ao ouvir a narrativa de Valdo,
relata que “já ouvira muitas vezes histórias a respeito daquele rebento espúrio dos
Meneses, sentia o exagero, se bem que tivesse plena convicção de que era ele a
vergonha da família” e finaliza chamando-o de “irmão infame”. (CARDOSO, 2013, p.
263). De idêntico modo, no “Diário de Betty (II)”, existe o mesmo discurso, quando
ela narra que “todos consideravam um réprobo [...]” (CARDOSO, 2013, p. 122).
Como destacado nas citações anteriores, a vestimenta de Timóteo consiste
no uso de perucas, joias, maquiagem e trajes femininos dos quais a personagem se
apossou após a morte da mãe. No romance, esses signos tornam-se parte da
identidade de Timóteo, visto que ele não aparece com outras roupas, exceto na
“Segunda carta de Nina a Valdo Meneses”, na qual ela narra que o cunhado havia
deixado seu quarto para visitá-la no Pavilhão e colocara sobre os ombros um paletó
de homem, mas por baixo ainda usava as roupas femininas usuais.
Timóteo conta à Betty como em tempos passados ele tentou seguir a
tradição, achou “que devia seguir o caminho de todo mundo”, usando gravatas
apertadas e tendo conversas banais. Porém, afirma que “era criminoso, era
insensato seguir uma lei própria”. Sendo assim, Timóteo se questionou “por que
seguir leis comuns se eu não era comum, por que fingir-me igual aos outros, se era
totalmente diferente?” (CARDOSO, 2013, p. 59). Seguindo a visão científica da
época, a personagem reflete sobre a dicotomia entre os sexos, ou se era homem ou
mulher, não podendo transparecer elementos considerados do sexo oposto, mesmo
sem definir-se homossexual ou lésbica. Fry e MacRae e a teoria queer,
anteriormente mencionados, discutem esse aspecto que ultrapassou a esfera
médica e influenciou diversas gerações.
Timóteo declara que era apenas a sombra de um homem, que nada
despertava sua paixão como se o seu ser não existisse. Assim que ele suspende os
55
senão uma alegoria: quero erguer para os outros uma imagem da coragem
que não tive. Passeio-me tal como quero, ataviado e livre, mas ai de mim, é
dentro de uma jaula que o faço. É esta a única liberdade que possuímos
integral: a de sermos monstros para nós mesmos (CARDOSO, 2013, p. 59).
Para Timóteo, suas roupas, seus costumes, vão além de representar sua
identidade tal como ela é. Ele pretende demonstrar coragem e verdade, pois “a
verdade é essencial a este mundo [...] A verdade não se inventa, nem se serve de
maneira diferente, nem pode ser substituída – é a verdade. Pode ser grotesca,
absurda, mortal, mas é a verdade” (CARDOSO, 2013, p. 60), em razão da sua
negação violenta quando Betty sugere que ele estaria afrontando a sociedade
apenas pela sua felicidade.
Timóteo afirma no romance que ao vestir-se de mulher ele estaria honrando
as vozes do sangue, as vozes de Maria Sinhá, como se percebe no diálogo travado
com a governanta no “Diário de Betty (I)”:
- [...] Betty, você não acredita que se possa atender às puras vozes do
sangue?
- Como assim Sr. Timóteo? – e não havia nenhum fingimento e nem falso
pasmo em minha pergunta.
Seus olhos velaram-se de súbita gravidade:
- Sou dominado pelo espírito de Maria Sinhá. Você nunca ouviu falar em
Maria Sinhá, Betty? (CARDOSO, 2013, p. 57)
Por meio desse travestimento, dessa dominação pelo espírito de Maria Sinhá,
Timóteo tenta mostrar a verdade da identidade dos irmãos Meneses. Essa
verdadeira identidade, provavelmente, seria a faceta feminina da família, uma vez
que esta sempre foi comandada por mulheres com traços masculinizados, fortes e
de pulso firme como D. Malvina que quase não aparece na trama, mas tem um ar de
gente que manda, ordena e organiza – prerrogativas, no mundo patriarcal, dos
homens –, e Maria Sinhá descrita como uma mulher muito mais eficiente que
qualquer cavaleiro da fazenda. Porém, quando a família passa a ser comandada por
Demétrio este se vê perdido, uma vez que o exemplo de masculinidade passada aos
56
irmãos sempre foi de referências femininas. Essa família atual liderada por Demétrio
demonstra-se frouxa e oscilante.
Portanto, ser forte e liderar a família entre os Meneses são dois quesitos que
representam a condição de assumir, paradoxalmente, uma forma invertida: mulheres
que se assemelham a homens; homens que se assemelham a mulheres. Os irmãos
Valdo e Demétrio, apesar de, por um lado, na aparência e nas vestes masculinas
apresentarem o comportamento do sexo masculino, por outro, são sujeitos
titubeantes, fracos. Na trama, essas personagens possuem passagens no romance
nas quais demonstram sua faceta feminina como no capítulo “Carta de Valdo
Meneses” no qual há a tentativa de Valdo suicidar-se, ação vista como uma fraqueza
“feminina”, demonstração de sua falta de pulso. No caso de Demétrio, após a morte
de Nina, durante uma discussão com Valdo ele grita femenilmente:
Até mesmo sua voz era estranha, vibrante, quase moça. Talvez, recuando
no tempo, não fosse a voz de um homem – havia nela, pelo seu desejo de
aliciar e de submeter, alguma coisa estranhamente feminina – um grito de
criança, um gemido de mulher no cio – e quem sabe, possivelmente, a voz
do único Meneses autêntico, que eu não conhecia, que jamais conhecera,
mas que repontava agora, revelado, fatal (CARDOSO, 2013, p. 487 e 488).
6
“If it is possible to speak of a “man” with a masculine attribute and to understand that attribute as a
happy but accidental feature of that man, then it is also possible to speak of a “man” with a feminine
attribute, whatever that is, but still to maintain the integrity of the gender”
58
Diante de mim, lento e majestoso (não sei se já disse que o Sr. Timóteo –
que começava a beber com certo exagero, talvez para fugir à causticante
monotonia de sua vida entre aquelas quatro paredes, talvez por um motivo
mais secreto e triste, um suicídio lento – engordava a olhos vistos, e os
ricos e extravagantes vestidos que haviam pertencido à sua mãe, e que
tanto lustro haviam dado outrora à crônica social da Chácara, estouravam
agora pelos cantos, rompiam em cicatrizes, esgarçados em lugares onde o
excesso já torneava as primeiras e irremediáveis deformidades...) [...]
(CARDOSO, 2013, p.120).
[...] estupor nos olhares [...], [a afronta aos] olhares como se acabasse de
chegar de um outro mundo [...] À medida que me aproximo, as pessoas
vão-se afastando – dir-se-ia que carrego comigo não esmeraldas e
topázios, mas o emblema de uma doença horrível, de uma lepra que eles
desejam evitar a todo custo (CARDOSO, 2013, p. 508-509).
Essa personagem, por mais isolada que esteja do convívio familiar, conhece o
sentimento dos irmãos em relação a suas “tendências”, sabe que seu perfil afronta
61
Essa incorporação de Maria Sinhá por Timóteo resulta na vingança dele que
se dá pelo extermínio dos Meneses. Para isso ele conta com a ajuda de Nina.
Paradoxalmente, o momento crucial para efetivar seu plano acontece justamente
quando o funeral dela está transcorrendo na casa.
Durante o romance, percebe-se ser Timóteo uma personagem que está
engajada “em exterminar o mundo dos Meneses ao mesmo tempo em que
reconhece que aquela é sua gente” (ROSA E SILVA, 2004, p.168). A personagem
trama com Nina a destruição da família. Betty narra a desconfiança de Valdo quando
Timóteo solicita uma garrafa de champanha para comemorar com Nina “[...] - Que
faziam, que tramavam contra mim? [...] Ninguém tramava contra o senhor, não se
disse coisa alguma!” (CARDOSO, 2013, p.120) e “Timóteo não descansará
enquanto não nos destruir” (CARDOSO, 2013, p. 121). Nina, por sua vez, deixa
claro em sua carta ao Coronel que ela e Timóteo estavam planejando o fim da
família quando Timóteo declara: “Ah, Nina, quando começamos uma coisa, é preciso
ir até o fim. E nós começamos, você não se lembra? Nós começamos, Nina, e você
era toda a minha esperança” (CARDOSO, 2013, p. 215) e “Nina, é preciso destruir
esta casa. Ouça-me bem, Nina, é preciso liquidar os Meneses. É preciso que não
sobre pedra sobre pedra” (CARDOSO, 2013, p. 215).
Ao saber da morte de Nina, Timóteo esquematiza tudo rapidamente para ir ao
encontro do Barão que viria ao funeral e, assim, desferir o golpe final na família
Meneses. Timóteo solicita a Betty que três empregados negros o carreguem para a
sala em uma rede onde o velório ocorria assim que o Barão chegasse, solicitando
também à governanta que lhe arranje as violetas com as quais prometera
homenagear Nina em seu leito de morte. Com a chegada do Barão, Timóteo
encaminha-se para a sala e Valdo descreve a cena como um espetáculo que
inicialmente ninguém conseguia adivinhar do que se tratava:
acontecimento, relata a surpresa de Timóteo ao ver André e ele julga ver Timóteo
“[...] erguer a mão e desferir uma bofetada no cadáver. Sim, uma bofetada. Mas juro
como não sei qual foi o motivo [...] (CARDOSO, 2013, p. 505).
No momento em que Timóteo esbofeteia o cadáver de Nina descobre-se que
Alberto havia despertado paixões em Ana, Nina e Timóteo, pois o último era quem
roubava as violetas que o enamorado jardineiro deixava para Nina em sua janela.
Além disso, o mais jovem dos Meneses observava todo dia o empregado da casa
por uma fresta da cortina que puxava possibilitando-lhe a visão. Em seu segundo
livro de memórias, Timóteo afirma que a visão de Alberto era “[...] a única coisa que
me alimentou durante este longo exílio no meu quarto – meu único contato com o
mundo, o único enredo, solitário e triste [...]” (CARDOSO, 2013, p. 510).
Após o espetáculo dado por Timóteo no velório de Nina, ele passa mal, sofre
uma apoplexia e é encaminhado ao seu quarto seguido por curiosos que olhavam
todos os detalhes da casa meticulosamente com olhares maliciosos e pelo médico
que havia sido chamado às pressas. Constrangidas ou quiçá satisfeitas com a cena
que Timóteo fizera outras pessoas que se encontravam no funeral procuraram uma
maneira de sair do ambiente.
Como se pode averiguar pelas discussões efetuadas nos parágrafos acima,
Timóteo pode ser reconhecido como uma das personagens mais marcantes de
Crônica da casa assassinada, pois se apresenta irreverente e desafiadora de
padrões que julga serem obsoletos. Durante a trama, diz-se estar possuído pelo
espírito de Maria Sinhá, espírito que regeria diversas escolhas dele; uma delas, sua
opção de mostrar sua faceta feminina. Como dito anteriormente, Maria Sinhá e
Timóteo apresentam a inversão dos gêneros, posto que a primeira se caracteriza por
modos e atitudes consideradas masculinas, ao passo que a segunda revela
características femininas.
Uma leitura cuidadosa do romance demonstra, porém que não são só essas
personagens que são assinadas pela inversão dos gêneros já que Valdo e Demétrio
também possuem essas características, mas são mascaradas na tentativa de
transpassar uma imagem máscula. Sendo assim, Timóteo e Maria Sinhá podem ser
apreendidos na densa e tensa narrativa de Crônica da casa assassinada como
representantes de uma forma de inversão que se consubstancializa no corpo e na
alma.
65
Assim como Maria Sinhá, é possível supor que Timóteo não tenha relações
sexuais no romance. No entanto, os signos que essa personagem assume durante a
trama, as roupas, a maquiagem e as joias, evidenciam sua orientação sexual. A
homossexualidade se revela ao término do romance quando ele afirma que Alberto
era o homem que observava e que, indiretamente, acalentava durante os dias de
escuridão de seu quarto transformado em sua própria prisão.
Timóteo mostra-se enclausurado e essa reclusão deriva de suas escolhas de
vestuário e atitudes que contrariam a visão dos demais moradores da Chácara. Por
ser uma personagem que demonstra a decadência do meio em que vive e o refuta,
seu confinamento é bem visto pelos outros membros da família assim como para os
moradores da cidade de Vila Velha. Ademais, suas características e sua irreverência
tornam-no semelhante a uma caricatura cruel da homossexualidade na época, além
de ser uma espécie de elemento ativo que engendra a destruição de um sistema
econômico como aquele representado pelo clã dos Meneses.
66
Para tratar dessas personagens, deve-se atentar que elas carregam consigo
signos subversivos e trafegam em um mundo transgressivo que já se manifestava
com a inversão de gêneros de Maria Sinhá e Timóteo, já abordados nesta pesquisa.
Como afirma Ruth Silvano Brandão em Mulher ao pé da letra: a personagem
feminina na literatura algo transgressivo já marcava o casarão dos Meneses:
[...] a subversiva presença de Maria Sinhá, uma mulher que ousava romper
com a ordem, invertendo os papeis masculinos e femininos. Tal troca de
papéis vai ser a marca da desordem, que se estabelecerá na família,
através da indiferenciação sexual, que vai ter seu ponto máximo em
Timóteo (2006, p. 164).
Assim, fala-se de um sexo que pode ser administrado pelo contexto científico,
à parte de juízos de valor e condenações postos pelo contexto religioso e moral, em
que o religioso busca a demarcação dos limites entre pecaminoso e não
pecaminoso; e o moral procura estabelecer a fronteira entre o lícito e o ilícito. Chauí
afirma ainda que existe um círculo vicioso, mesmo com a inserção da perspectiva
médica que busca introduzir conhecimentos e normas, no entanto sem questionar os
códigos repressivos, constituindo-se em novas dificuldades. Para a autora:
São esses distúrbios que a medicina busca evitar, mas, sem a contestação
dos códigos morais, pouco efeito reflete na sociedade. Desse modo, a mulher
casável permanece insegura e alienada sexualmente e socialmente permanecendo
nos espaços reclusos com afazeres considerados femininos. As ações que
transgridam esse sistema são condenadas das mais diversas formas sendo as mais
comuns a difamação popular e a exclusão do meio social.
Uma das transgressões abordadas em Crônica da casa assassinada se
revela no incesto cometido entre Nina e André, mãe e filho respectivamente. No
entanto, como se sabe, Nina não é mãe de André o que torna o relacionamento um
presumido incesto. Já quando Ana impõe sua vontade sexual a André, caso a sua
69
imposição fosse bem-sucedida, seria então um caso real de incesto, visto que Ana é
sua mãe de verdade, o que é revelado apenas no último capítulo do romance.
Sigmund Freud descreve o horror ao incesto e o tabu que permeia diversas
discussões sociais. Freud explana que desde os selvagens já existia um “[...] horror
excepcionalmente intenso ao incesto ou são sensíveis ao assunto num grau fora do
comum [...] (1996, p. 10). As punições para o incesto consistiam nas mais severas
punições desde o apedrejamento e até a morte sendo que “[...] a própria sociedade
encarregava-se da punição dos transgressores, cuja conduta levara seus
semelhantes ao perigo” (FREUD, 1996, p. 20).
Acresce-se às punições a carga negativa que o indivíduo adquire “o fato mais
estranho parece ser que qualquer um que tenha transgredido uma dessas proibições
adquire, ele mesmo, a característica de ser proibido - como se toda a carga perigosa
tivesse sido transferida para ele” (FREUD, 1996, p.21) e, a esta carga negativa,
soma-se o sentimento de culpa – no romance, vivenciado claramente por André – e
o inevitável castigo final: a morte.
Freud relata casos incestuosos que possuem fins trágicos como as figuras
divinas Átis, Adônis e Tamuz que cometeram incesto com a mãe, em desafio ao pai.
O sentimento de culpa não era amenizado e com vidas breves, sua punição se daria
“[...] pela emasculação ou pela ira do pai manifestada sob a forma de um animal.
Adônis foi morto por um javali, o animal sagrado de Afrodite; Átis, amado de Cibele,
pereceu por castração” (1996, p. 109).
Em Crônica da casa assassinada, ao transgredir a relação mãe e filho, Nina
sofre uma morte repulsiva seguida de um velório patético, enquanto André sofre com
a culpa de seus atos, foge da família sem nunca saber a verdade. Ademais, o
incesto não é o único ato transgressor em que estas personagens estão envolvidas;
o adultério ressoa nas páginas do romance como um lembrete da transgressão que
as mulheres puderam cometer e, em conjunto, permaneceram caladas.
Em Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil, Mary Del
Priore aborda a questão da infidelidade e afirma que o valor feminino perante a
sociedade estava diretamente ligado ao seu recato, suas funções no lar e os filhos
que proveria para a família. Além disso, a “[...] mulher casada passava a vestir-se de
preto, não se perfumava mais, não mais amarrava seus cabelos com laços ou fitas,
nem comprava vestidos novos. Sua função era ser ‘mulher casada’, para ser vista só
por seu consorte” (2011, p. 56). Bem adequado a esta concepção, tem-se Ana
70
Del Priore ainda afirma que o adultério feminino seria passível de ser punido
com a morte “afinal, os homens sentiam-se obrigados a lavar sua honra em sangue.
O poder masculino dentro do casamento era total” (2011, p. 45). Dessa forma,
percebe-se que o silêncio imposto ante as personagens femininas provém,
provavelmente, de seu temor a reação de uma família patriarcal com costumes
antiquados que eram os Meneses. Ana afirma que não podia aceitar André como
seu filho “[...] se a esta simples ideia meu ser se paralisava, imaginando o olhar de
meu marido, sua reprovação, meu castigo?” (CARDOSO, 2013, p. 533). Assim, a
infidelidade das mulheres Meneses permanece obscura aos homens da família, pois
elas temiam a reação e a punição, as quais mesmo que não tenham vindo de seus
lábios, se pronunciaram em suas mortes. Tal circunstância relaciona-se com o
sentimento de culpa das suas transgressões – segundo a ótica de Freud –
resultando em mortes perturbadas e solitárias, espelhado em um castigo perante
seus atos.
Elizabeth da Penha Cardoso, em sua tese Feminilidade e transgressão –
uma leitura da prosa de Lúcio Cardoso, reafirma a fala de Del Priore: a mulher era
vislumbrada de uma única maneira de ser dona de casa-mãe-esposa, imposta a
sujeição de repressão sexual e moral, “qualquer configuração fora desse padrão
caía na ilegalidade do adultério e da prostituição” (CARDOSO, 2010, p. 140). É esta
a busca de Cardoso, a quebra do padrão esperado pela sociedade patriarcal, pelas
suas mulheres que se tornam transgressoras, pelos homossexuais no cotidiano, o
questionamento de uma liderança débil levando-se à criação de um ambiente
71
A casa é a mesma, mas a ação do tempo é bem mais visível: há outras janelas
que não se abrem mais, a pintura passou de verde ao tom escuro, as paredes
gretaram-se pelo esforço da chuva e, no jardim, o mato misturou-se às flores. Não
há como negar, Nina, houve aqui uma transformação desde que você partiu –
como que um motor artificial, movido unicamente pelo seu ímpeto, cessou de
bater – e a calma que se apossou da casa trouxe também esse primeiro assomo
da morte que tantas vezes reponta no âmago do próprio repouso [...] (CARDOSO,
2013, p. 127).
Os rumores que precedem a vinda de Nina são tamanhos que mesmo antes
de a personagem chegar a haviam considerada “[...] a mais formosa das mulheres,
rica, dotada de todos os atributos que poderiam caracterizar a escolhida de um
Meneses” (CARDOSO, 2013, p. 96) e, dado o seu atraso, os falatórios que giravam
ao seu redor já se mostravam hostis e desagradáveis, “diziam que ela não queria vir
para a roça, e que detestava sair do Rio de Janeiro [...]” (CARDOSO, 2013, p. 96).
Afirma ainda o farmacêutico que “desde o momento em que pisou a cidade
converteu-se no centro de interesse geral, fazendo os próprios Meneses recuarem
para um discreto segundo plano” (CARDOSO, 2013, p. 97).
Somam-se a sua chegada, as suas idas e vindas do Rio de Janeiro e
solicitações de médicos e farmacêuticos a atenderem Nina e os moradores da
75
Chácara “[...] uma expectativa e uma tensão em torno de sua pessoa. Tanto fascínio
e sedução produzem, também, uma atmosfera de estranheza, perigo e suspeição
em sua volta” (BRANDÃO, 2006, p. 168), constituindo-se em um jogo de presença e
ausência o qual eleva a febre que paira sobre a personagem.
Essa curiosidade incessante pela personagem de Nina é a mola propulsora
do romance, posto que todos os olhares e discursos voltam-se a ela, levando até os
imponentes Meneses a se obscurecerem com desmesurada excitação que é
agravada pelo não-saber, pelas dúvidas não saciadas, pelas “lacunas, silêncios,
contradições, ou, às vezes, por um excesso de pormenores, de minúcias que tem,
paradoxalmente, um efeito de irrealidade [...] produzindo-se um efeito contraditório:
de dúvida e de desconhecimento” (BRANDÃO, 2006, p. 178). As inúmeras
incertezas que rondam a Chácara e Nina só são superadas pelo excesso de
histórias que se inventam para saciá-las a respeito do que se passa dentro das
paredes do casarão.
Brandão afirma que são essas múltiplas ficções que, de certa forma,
conduzem-nas as suas mortes “a casa é assassinada e também o é Nina:
assassinada pela palavra alheia, palavra excessiva e mortífera que a satura de
signos, sem esclarecer seu enigma” (BRANDÃO, 2006, p.161). Será essa
curiosidade incessante, esse desejo intenso pelos membros da família, acentuado
pela presença de Nina, a estrangeira em seu meio, que farão as vozes da cidade de
Vila Velha e as vozes da Chácara sussurrarem sem nunca lhe atribuir uma imagem
real e verdadeira, apenas estilhaços de uma Nina em cada relacionamento,
percepções de cada personagem sobre ela impossibilitando, assim, que haja uma
verdade unânime sobre Nina. Betty expressa no capítulo 34 – “Diário de Betty (V)”
que muitas coisas eram ditas e sussurradas, mas que “[...] ao certo, sabia-se tão
pouco a respeito daquela criatura!” (CARDOSO, 2013, p. 335).
Acresce-se a pouca transparência de Nina e as diversas invenções dos
cidadãos de Vila Velha a sua capacidade de atuar, manipular como afirma Valdo no
capítulo “Carta de Valdo a Padre Justino” “[...] assistindo-a, eu indagava a mim
mesmo se tudo não passaria de mais uma das suas habituais comédias”
(CARDOSO, 2013, p. 244) em que Nina utiliza de diversos artifícios para findar a
discussão com Valdo entre eles um pouco de pele a mostra na qual “[...] a curva dos
seios reaparecia [...]” (CARDOSO, 2013, p. 245); suas lágrimas de supetão que mais
indicavam “[...] um descontrolado prazer [...]” (CARDOSO, 2013, p. 245).
76
como afirma Roberto Reis em A permanência do círculo que detecta vazio o centro
do círculo, isto é, o espaço central de exercício do poder masculino não está
devidamente ocupado. Dessa forma, “[...] as relações hierárquicas perdem sua
vigência e abre-se, vacante, o lugar do poder” (REIS, 1984, p. 91).
Reis afirma ainda que Nina procurava junto aos Meneses amparo, abrigo,
proteção e estabilidade financeira e social, mas que ao perceber a fraqueza em que
estes se encontravam em uma realidade de economia e pouca ou nenhuma pompa,
ela acaba desafiando esta estrutura de poder cindido. Assim sendo, Nina é a
provável personagem que poderia reverter a situação decadente dos Meneses
assim como foram Dona Malvina e Maria Sinhá que “[...] se colocaram à testa dos
Meneses. Na falta de um pai, mesmo de ‘outro pai’, mulheres ocupam o núcleo e
dominam” (REIS, 1984, p. 93, grifos do autor).
No entanto, “[...] sua capacidade de comandar a torna um perigo – Nina não é
do clã, é elemento da nebulosa” (REIS, 1984, p. 98, grifos do autor). Constitui-se
como elemento do núcleo a figura do senhor e patriarca junto com aqueles que
habitam a casa-grande como Demétrio e a família Meneses, excetuando-se Timóteo
que, por não respeitar o sistema imposto, passa a integrar a nebulosa. A nebulosa
constitui-se dos personagens restantes: os que figuram com categorias étnicas,
sociais estando “[...] subjugados na base de uma relação de dominação, hierárquica.
Efetivamente, os figurantes do núcleo senhorial exercem domínio sobre os da
nebulosa.” (REIS, 1984, p. 32, grifos do autor).
Logo, por não pertencer a uma presumida pureza que caracterizaria os
Meneses, Nina não pode comandá-los, visto que tal ação representaria uma ameaça
ao núcleo fraturado do poder do clã. Além disso, ela acabaria por ressaltar a
incapacidade de Demétrio e Valdo de estar à frente da família. Segundo Reis:
Por não assumir a liderança dos Meneses, Nina “[...] tendo sido impregnada
pelo declínio da família, quase que passa a ser um deles, o que a faz ainda mais
perigosa” (REIS, 1984, p. 99) como quando afirma que “mais do que a minha própria
palidez, o que se achava colado a mim era o nome Meneses” (CARDOSO, 2013, p.
80
Ana é o resultado do desejo de Demétrio, tem a forma que ele lhe imprimiu.
Padre Justino a vê como o espírito dos Meneses, determinada a
permanecer nos limites traçados pelo rígido sistema de Demétrio, sem
jamais ultrapassar a esfera do bom senso. Mas o encontro com Nina revela
a outra face (a verdadeira Ana?): um ser movido por forças antagônicas,
desejos e sentimentos recalcados (2004, p. 75, grifos da autora).
Ana percebe-se então uma criatura que foi construída conforme o modelo dos
Meneses e vivencia o mais profundo sentimento de desamparo face ao seu criador,
Demétrio. “Não se trata somente de desprezo, é descaso, é destituição. Aquele
olhar, entretanto, desperta-lhe a consciência de si mesma, de sua individualidade”
(ROSA E SILVA, 2004, p. 75).
Ao ser considerada uma criatura, como ela mesma se denomina “De pé,
lamentável, eu era como uma criatura abandonada pelo seu criador” (CARDOSO,
83
2013, p. 112) e que um monstro a coabita “[...] mas suficientemente lúcida para ter
certeza de que um monstro existe dentro de mim, um ser fremente, apressado, que
acabará por me engolir um dia” (CARDOSO, 2013, p. 161), há a possibilidade de
aproximação de uma leitura entre Crônica da casa assassinada com o romance
Frankenstein (1823) de Mary Shelley. Nesta obra, Victor Frankenstein reúne partes
de vários corpos para construir um novo ser humano. Ao dar vida para sua criatura,
esta se volta contra o criador em um misto de ódio e rancor por tê-lo concebido
desta maneira e abandonando-o à sua própria sorte. Ana não tem seu corpo
construído por Demétrio, mas possui seus pensamentos dominados pelo sistema
Meneses; sua recriação por Demétrio é tão invasiva quanto a de Frankenstein, uma
vez que Ana deixa de ser quem ela é, ou quem ela poderia ser, para incorporar-se
naquilo que é esperado que seja.
Desse modo, Ana percebe-se como um monstro, uma criatura modelada para
viver os preceitos do clã. As mudanças que Nina efetua no seio da família Meneses,
seja provocando os olhares de Demétrio, seja mantendo relacionamentos
extraconjugais com Alberto e André, seja seu conluio com Timóteo, entre outros
exemplos, altera a atmosfera da casa. Assim, começa a nascer uma Ana que se
questiona a partir da possibilidade de ver Nina espécie de representação de outras
possibilidades com as quais Ana nunca havia contado. Observa Santos que:
O real sofrimento de Ana parece ter se iniciado, porém, menos com seu
casamento do que com a chegada de Nina. Até então, se não é feliz, pelo
menos vive em paz consigo mesma. A partir de sua convivência com a
outra, no entanto, tudo se modifica. Percebe que o marido a despreza e se
dá conta de sua falta de graça, de sua palidez, de seus vestidos escuros
(2005, p. 262).
Dessa maneira, percebe-se que Ana, apesar de não ser feliz em seu
casamento vivia em paz consigo, com os mandamentos da religião e seus trajes
antiquados. No entanto, tão logo Nina chega a consciência sobre sua infelicidade, os
questionamentos sobre a religião e a percepção do quanto é um ser insosso,
transformam-na e até mesmo o casarão, sua moradia, se converte no seu espaço de
exaustão.
Enquanto Nina e a casa dos Meneses se refletem, se constituem e se
fundem, para Ana a casa é seu túmulo, é o local que exaure suas forças. Brandão
afirma que “pedra, cimento e cal, a casa é túmulo para uma Ana incapaz de viver
sua sexualidade [...]” (BRANDÃO, 2006, p. 167) e, sem forças em si, Ana busca em
84
Nina o que a casa e os Meneses lhe tomaram. Ana “[...] invejosa da vitalidade, do
brilho e do poder de fascinação de Nina, figura privilegiada de uma feminilidade que
se mostra em sua complexidade de objeto de construção imaginária” (BRANDÃO,
2006, p. 167) busca nela o ímpeto de viver, as cores que a constituem, a
sexualidade que a outra desfruta, a influência que Nina possui sobre os Meneses.
É a essa influência, essa autoridade que Nina goza sobre o clã que indica sua
possível liderança permitindo-lhe que pudesse ser considerada a figura feminina que
viria a organizar o sistema da Chácara dando continuidade ao poder feminino que
reinava na casa. Em contrapartida, Ana não pode sequer ser considerada, uma vez
que seu modo de atuação é bastante masculinizado até mesmo mais que os irmãos
Meneses levando o Padre a constatar “[...] um tom profundamente masculino [...]”
(CARDOSO, 2013, p, 189) em sua voz e em sua fisionomia de homem. Sendo
considerada masculinizada, Ana destoa das mulheres imponentes que comandaram
o clã. Reis afirma que “Ana foi anulada pelos Meneses e não chegou a ser uma
efetiva postulante ao poder” (1984, p. 100).
Ademais, é o olhar de Nina para Ana que instaura nesta todo o desassossego
que a acompanha desde o primeiro jantar em que ambas estiveram reunidas. Nessa
ocasião, Demétrio indicou Ana para a cunhada como modelo de vestir-se. Segundo
Betty, “[...] foi desde aí, desse olhar largado de alto e cheio de espantoso desdém,
que a inimizade para sempre surgiu entre ambas” (CARDOSO, 2013, p. 68) até seu
leito de morte, no qual em “seu semblante não havia nenhum sinal dessa paz que é
tão peculiar aos mortos” (CARDOSO, 2013, p. 536).
Mas é por ação de Nina, por esse olhar que Ana vai descobrir tudo o que lhe
fora negado. Segundo Rosa e Silva, em um primeiro momento, Ana “rejeita a
imagem que percebe de si mesma, anódina e insignificante, destituída de graça ou
de sedução [...]” (2004, p. 76), para que, na sequência, estabeleça-se “uma relação
de confronto em que crescem a sua revolta e seu ódio pelo efeito espe[ta]cular que
a outra proporciona [...]” (ROSA E SILVA, 2004, p. 77, grifos da autora). Ademais, a
comparação entre as personagens, suas vestimentas, cabelos e modos, instaura em
Ana o desprezo que sente por si. São esses elementos que Nina lhe desperta que
vão levar Ana a receber o que “nenhuma outra pessoa poderia conceder-lhe: a
revelação de si mesma. Nina lhe outorga a condição de ser” (ROSA E SILVA, 2004,
p. 77), ou seja, Ana pode finalmente descobrir-se sem a forma que Demétrio e sua
mãe haviam-na moldado.
85
Revolta, falta de fé, ódio por si mesma e pelos seus semelhantes, inveja,
egoísmo, recusa em aceitar a vontade e os desígnios de Deus, em quem
deixa de crer, as características atribuídas pelo escritor a Ana parecem
fazer dela a personagem realmente demoníaca do romance (2005, p. 264).
Minha cunhada Ana viera comigo, e eu o apresentei a ela: ‘Aqui está o meu
melhor amigo’. Lembro-me até hoje da expressão do seu rosto. Quando
87
anunciei que não voltaria a Chácara, e que iria tentar a vida por mim
mesma, ali na cidade ela disse simplesmente: ‘Eu sei, aquele seu amigo.’ E
o pior é que não havia nenhuma ironia em sua voz. Atingimos Coronel, o
ponto que eu desejava chegar. Ana partiu para a Chácara, cumprindo sua
missão, que era de levar meu filho (CARDOSO, 2013, p. 343)
feminina: “[...] aquela mãe que era uma estranha para mim, e que sozinha, como um
fato inédito, assumia aos meus olhos todo o inebriante fascínio das mulheres”
(CARDOSO, 2013, p. 198) e ambos estarão comungando de um ato leva à
“impressão de carregar uma secreta culpa” (CARDOSO, 2013, p. 229).
Para Nina o relacionamento com André visa à busca de seu amor perdido por
Alberto, uma reminiscência daquele que outrora ela havia amado. Segundo André
“[...] teria ela realmente me amado, ou procuraria em mim apenas a reminiscência de
alguém?” (CARDOSO, 2013, p. 353) e Nina exprime na “Continuação da terceira
confissão de Ana” que “Se me deito com André, é para ver se o reencontro, se
descubro nos seus traços, nos seus ombros, na sua posse, enfim, a criatura que já
desapareceu” (CARDOSO, 2013, p. 318). Segundo Teresa de Almeida há uma
transmigração de almas que seria vivenciada por André
sugava, eu a fazia minha, porque queria arrancar de seus lábios a presença daquele
amante, eterno, formidável na sua eloquência” (CARDOSO, 2013, p. 316). Ela busca
em André o mesmo êxtase que Nina afirma sentir “quero ver como é feito. Se
soubesse como preciso disto... Quero sentir a linha do seu nariz, a força dos seus
lábios. Beije-me André, beije-me como beija sua mãe, como beija uma mulher
qualquer, uma vagabunda de rua” (CARDOSO, 2013, p. 331). Como se sabe que
Ana e André representam efetivamente mãe e filho desta trama pode-se cogitar que
se o investimento da suposta tia fosse bem-sucedido, haveria um caso de incesto na
família Meneses.
Brandão afirma que “o desejo de Ana era, em última instância, não Alberto,
Demétrio ou André, mas a própria Nina. Pode-se falar num amor estruturalmente
homossexual, especular, de Ana em relação a Nina” (2006, p.192), devido aos seus
atos para com a protagonista que podem inferir tal leitura, uma vez que ao sugar,
usurpar o local de Nina, segui-la incessantemente, parece-lhe querer sê-la, tê-la
intimamente. Tal desejo se assemelharia ao que ocorre com Timóteo que resguarda
em si um amor homossexual pelo jardineiro sem nunca de fato concretizá-lo o que
condizia com os fatos transgressores que já se acercam da vida dos Meneses. No
entanto, tal leitura pode ser apenas especular como a autora afirma, dado que não
há afirmação por nenhuma das personagens deste amor homossexual.
Nessa família, há duas mães, mas nenhuma atua como tal. Nina confunde
André deixando-o sem saber como seria um amor maternal e levando-o a acreditar
que ele estaria traindo preceitos religiosos ao relacionar-se com sua mãe. Ana
renega o próprio filho que trouxe consigo do Rio de Janeiro não demonstra por ele
qualquer carinho ou afeição em sua criação relegando o jovem aos cuidados da
governanta Betty. Conforme observa Rosa e Silva, Ana elimina o filho de sua vida de
maneira dura e cruel, pois ao não o reconhecer como filho ela o recusa ao amor:
“durante anos, nega ao filho qualquer tipo de afeto ou atenção. Nem mesmo quando
o vê consumir-se na suspeita de uma relação incestuosa com Nina, ela assume sua
maternidade. Não consegue enfrentar os Meneses [...]” (2004, p. 80). Ao ser
abandonado pela própria mãe, André se afeiçoa a figura que por tantos anos
venerou e imaginou criando por Nina uma paixão presumidamente edipiana.
Segundo Saffioti “O tabu do incesto apresenta alta relevância, pois é ele que
revela a cada um seu lugar na família, em vários outros grupos, enfim, na sociedade
em geral” (2004, p. 29). Percebe-se assim que, além do poder vacilante nas mãos
92
Ambas as mortes são solitárias: enquanto Ana faleceu sozinha, apenas com a
presença do Padre, no quarto pequeno que era de Alberto, Nina faleceu rodeada de
93
familiares e vizinhos que pouco se condoem por sua morte. Essas mortes significam
o fim moral e o fim físico dos Meneses, respectivamente.
Ao descobrir sua doença, Nina retorna à Chácara justificando a necessidade
do luxo que os Meneses poderiam lhe ofertar e a necessidade de rever seu filho.
Retornando à Vila Velha, a protagonista busca desesperadamente reviver sua vida,
seu amor com Alberto, já que acometida pelo câncer está ciente de que sua morte
se aproxima e em André ela encontra esse último sopro de vida. Similar ao mito
edipiano, após a consumação do incesto o mal, as pragas recaem sob a cidade e a
família de Édipo. Em Crônica, tem-se análoga leitura posto que a condenação da
família Meneses, inicia-se muito antes da chegada de Nina. De qualquer forma, é
Nina o gatilho que dispara a desgraça familiar desde quando se enamorou de
Alberto. Mas a tragédia se consuma quando vive uma relação afetiva com André
ação reprovável já que representa o incesto.
Uma interpretação possível aos atos transgressores cometidos por Nina
(julgados por Ana como pecado) é a transformação de tais ações na doença que a
mata representando, portanto, uma espécie de punição. De acordo com esta leitura,
o câncer deriva de seu envolvimento com Alberto e a suposta culpa sua pela morte
do jardineiro; da sua suposta promiscuidade com Alberto e com André e até mesmo
do abandono de Glael. É possível acrescentar que:
minúcias retratadas pelo autor oferecem ao ledor uma leitura repleta de desgosto,
asco e perplexidade, visto que não se trata de uma relação carnal com cheiro de
mocidade, mas “[...] um odor rançoso, indefinível, que sobrevinha do seu âmago
como um excesso de óleo que fizesse andar as escuras profundezas daquele
engenho humano (CARDOSO, 2013, p. 427). Relata-se o encontro de André com a
morte e a sua paixão: “amei como nunca, sem saber ao certo o que amava - o que
possuía. Não era um interior, nem uma mulher, nem coisa alguma identificável – era
uma monstruosa absorção a que me entregava, uma queda, um esfacelamento”
(CARDOSO, 2013, p. 427).
Rosa e Silva expõe que “Nina consegue transgredir uma dupla interdição: a
da vida, praticando o incesto; e a da morte, ao realizar, agonizante, habitada pela
própria morte, o intercurso sexual ‘incestuoso’ com André” (2004, p. 63, grifos da
autora). Teresa de Almeida em seu ensaio “Marcas do texto: Julie Green e outros”
relata a eficácia estética quase intolerável que Cardoso evoca nesta cena, “[...] aqui
desdobram-se imagens articuladas de forma altamente insólita, nesse tempo
derradeiro de uma paixão maldita. Ou que em seu maximalismo se situa
tragicamente além do bem e do mal” (1996, p. 704). Dessa forma, Cardoso retrata
uma relação considerada incestuosa durante boa parte do romance e seu ápice de
repulsa ocorre nessa cena em que as personagens transgredem o momento que
prenuncia o falecimento da moribunda.
Repulsa é a aura que segue todo o velório de Nina. O seu translado do quarto
para a sala onde aconteceria o velório é precipitado e negligente. A mando de
Demétrio, Betty e Ana retiram Nina de sua cama sem que tivesse exalado seu último
suspiro. Com o corpo ainda quente, Ana envolve-o com um lençol de linho, um dos
melhores da casa, e transportam-no para a sala momento em que Betty “[...] parecia
escutar um protesto se elevar a cada um daqueles solavancos, imaginando a pobre
com os olhos apenas cerrados, onde rolariam devagar duas grossas lágrimas de
cera” (CARDOSO, 2013, p. 467).
Conforme destacam Kelly dos Santos Moreira e Rita Félix Fortes (2011), o
tratamento com que Ana e Demétrio destinaram ao cadáver de Nina representa os
sentimentos que o casal lhe dispensava e a omissão de Valdo por mais uma vez não
dispor de voz ativa para oferecer a sua esposa um velório respeitoso “de acordo
com a tradição, a toalete no morto é um elemento importante nos ritos funerários e
não cumpri-los desvela o desrespeito para com a morta [...]” (MOREIRA; FORTES,
95
Como dito anteriormente, Ana também morre ao relento e de uma morte aflita.
Após o falecimento de Nina, Valdo e André deixam a Chácara; sobre Demétrio,
Timóteo e Betty não se sabe o paradeiro, mas Ana permanece na casa, mesmo
depois desta ter sido saqueada pelo bando de Chico Herrera. Segundo Rosa e Silva,
Ana a única herdeira orgulhosa da família passa a viver no Pavilhão, no pequeno
quarto que pertencera ao jardineiro Alberto.
É neste ambiente que Ana sente a presença daquele que fora seu amor.
DaMatta sustenta que os “[...] espectros estão também presos a promessas, bens
materiais e emoções que só podem ser liberadas depois de serem devidamente
descobertas e receberem as orações apropriadas” (1997, p. 107). Assim, Ana
protege aquele ambiente para que a lembrança de Alberto permaneça viva. Para
Ana, o túmulo de Alberto era seu quarto e existem “obrigações para com eles [os
mortos], devendo cuidar de seus túmulos e ossos, provendo para que não se
percam ou se destruam e, naturalmente, fiquem sempre unidos e em família”
(DAMATTA, 1997, p. 107).
Assim, ela permanece perto de Alberto, da sua lembrança, mas ela “[...]
dilacera-se, buscando respostas para as dúvidas que a acompanharam durante toda
sua vida. Morre envolta na mais profunda solidão por não ter compreendido e aceito
sua falta, por não ter emitido seu grito de salvação [...]” (ROSA E SILVA, 2004, p.
82) e quando o faz, quando se permite revelar a verdade ao Padre Justino somente
o faz por estar em seus últimos minutos de vida terrena.
É por meio de sua confissão que se descobre a verdadeira identidade de
André e o conluio que existiu entre as personagens femininas. À Ana é relegada a
difícil tarefa de revelar, de proferir o que nunca havia sido dito em voz alta: ambas as
mulheres transgrediram em seus matrimônios, esconderam os filhos de relações
adúlteras e partilharam deste segredo culminando no irreversível fim da família. A
confissão de Ana busca o perdão do padre, da religião católica para obter seu
repouso eterno, no entanto, em meio aos seus pensamentos Padre Justino, pouco
antes de perdoá-la, percebe que Ana Meneses não existia mais e que em seu “[...]
semblante não havia nenhum sinal dessa paz que é tão peculiar aos mortos”
(CARDOSO, 2013, p. 536).
DaMatta afirma que o ser humano é responsável pelos atos cometidos,
responsável pela sua salvação e que os outros, os que sobrevivem não podem
recuperar o seu caráter “não há mais confissão, nem compadrio, nem purgatórios,
97
nem indulgências, rezas ou missas que os outros possam realizar por sua melhoria
moral” (1997, p. 98). Consequentemente, Ana não conquista o descanso que busca
ao chamar o Padre e tampouco conseguiria caso seus familiares pudessem orar por
sua alma. “E para Ana não há salvação, visto que ela não sente remorso por ter
guardado esse segredo durante tanto tempo e nem gratidão por Nina não tê-lo
revelado” (MOREIRA; FORTES, 2011b, p. 93).
Ana não esboça paz de espírito, uma vez que, sua confissão revela dados
surpreendentes sobre o romance que provocam mais questionamentos ao leitor.
Sem a absolvição divina, Ana morre repleta de remorsos e, assim como Nina, sua
morte pode ser compreendida como uma metáfora de sua transgressão, e das
transgressões ocorridas na família, sendo punida enfim.
As personagens Ana e Nina estão fadadas a um destino incrivelmente triste.
A primeira desconhece-se como ser humano e descobre-se a partir do olhar da
chegada de uma estrangeira no seio familiar. A segunda debate-se contra um
sistema viciado e prepotente determinada a eliminá-lo por vez. Ambas são infelizes
e sabem da infelicidade que as rondam; compartilham os segredos de suas traições
e morrem expondo a podridão que corroía os pilares da família Meneses.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
que não participa ativamente das decisões familiares, já que foi excluído do núcleo
do clã pela sua escolha sexual.
Soma-se a discussão a presença de Maria Sinhá personagem que aparece
apenas como uma reminiscência familiar e que teria sido a influência de Timóteo.
Sua presença é marcante no romance: ela é comparada a uma espécie de Anita
Garibaldi de Minas Gerais. Sua aparência é definida como a de um homem:
cavalgava melhor que os cavaleiros da fazenda, usava chicote, açoitava os
escravos, detinha o controle da Chácara. Apesar de não ser a única mulher no
período a comandar uma família, Maria Sinhá tivera uma posição de respeito
naquela sociedade, posição esta que não era comum ver-se em mãos femininas.
Maria Sinhá, assim como Timóteo, apresenta a inversão do gênero: ela é
descrita como homem, enquanto ele é descrito como mulher sendo por essa razão a
influência que teria feito Timóteo a assumir sua porção feminina. Relevante ressaltar
que este aspecto transgressivo assumido por Maria Sinhá e Timóteo também
aparece nas personagens Demétrio e Valdo que, no entanto, mascaram suas
porções femininas e tal ação culmina em tragédias pessoais, haja vista que nunca
reconhecem seu lado feminil.
Nina e Ana também contribuem para esta discussão transgressiva. Nina é
protagonista do romance, aquela sob a qual todas as vozes desencontradas
emitiram uma opinião. Ela surge no meio de Vila Velha como uma lufada de ar
fresco a um recanto desencantado; todos admiram sua beleza, no entanto, logo ela
acaba exaurida pelas imposições de Demétrio e Valdo e comete seu primeiro ato
transgressivo: trai o marido com o jardineiro Alberto. Influenciada por aquela
presença arrebatadora, Ana que desde a chegada de Nina passa a ser sua sombra
percebe como sua vida era sem graça e não questionada por si mesma. Assim, ela
também se torna infiel a Demétrio, entregando-se a Alberto.
As duas engravidam e concebem seus filhos no Rio de Janeiro, retornando de
lá apenas um, o filho de Ana e Alberto nomeado André. A outra criança é deixada
no Rio de Janeiro sabendo-se dele apenas o nome Glael. Dessa segunda criança
diversas conjecturas são levantadas não havendo possibilidade de afirmações, visto
as poucas informações disponíveis no romance. Uma das belezas do romance é
justamente as conjecturas que o tornam um material infinito de buscas e incertezas.
Acresce-se à primeira transgressão cometida pelas personagens femininas o
incesto. Incentivado pelas narrativas caleidoscópicas que várias personagens do
100
romance fazem, crê-se André como filho de Nina e Valdo, e com sua suposta mãe,
André aventura-se em um romance repleto de culpa e estranheza que culmina na
cena em que Nina, já abatida e carcomida pelo câncer, relaciona-se com André pela
última vez. Esta presumida e dilacerante relação supostamente incestuosa deixa
ressoar o mito de Édipo. Só não o é de fato porque se descobre no fim do romance
que André era filho de Ana e Alberto, não configurando uma relação entre mãe e
filho.
No entanto, Ana, novamente dominada pelas palavras de Nina, busca o
contato sexual de André que, se bem-sucedido, configuraria uma relação
incestuosa. Dado as suas ações transgressoras contra a sociedade patriarcal de
Demétrio questionando sua autoridade e o sistema opressor, as personagens são
fadadas a um fim trágico e solitário, assim como sucedera a Maria Sinhá, a
antepassada que havia morrido abandonada na antiga fazenda Serra do Baú.
Nina, acometida por um câncer, entra em decomposição ainda em vida
metáfora que torna possível analisar sua putrefação semelhante ao que ocorre com
a Chácara em que os corpos se intrincam. Portanto, a morte de Nina revela também
a morte da casa. A protagonista sofre punições que deveriam ser sofridas pelos
Meneses tornando-a um bode expiatório dos Meneses. Sua morte provoca a vinda
do Barão de São Tirso à Chácara; provoca a saída espalhafatosa de Timóteo do
quarto, escandalizando as pessoas que vieram ao velório de Nina; provoca, enfim, o
golpe fatal que expõe os Meneses e toda a aura negativa que ronda seus membros.
Além disso, sua morte define o fim da casa uma vez que Valdo e André a
abandonam e as outras personagens não se tem notícias, excetuando Ana.
Com Ana uma morte sem paz a acomete, uma vez que sozinha e no antigo
quarto de Alberto, no inóspito Pavilhão. Sua morte reflete também seus atos
transgressores, a culpa religiosa que a persegue, o peso de ser encarregada de
proferir ao Padre Justino a confissão de seus atos e dos atos de Nina. Sua confissão
revela que a vingança planejada por Timóteo e Nina de não permitir que o sangue
dos Meneses tivesse continuidade foi afortunada, dado que não há herdeiros para
manter o clã vivo.
Lúcio Cardoso constrói uma obra primorosa descrevendo todos os desgostos
do ser humano, seu final infeliz e suas dores em ser. Acresce-se a atualidade de
seus escritos que abordam a condição feminina em um cenário pouco propício a
autonomia a condição homossexual; a transgressão a um sistema falido que persiste
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