Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
IDENTIDADE E SEXUALIDADE:
Reformando nossa visão de conceitos fundamentais
Pedro Dulci
3
Sumário
PREFÁCIO .................................................................................................................................. 4
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 8
1. BEM-VINDO À ERA DAS QUESTÕES DE GÊNERO, SEXO E SEXUALIDADE ..................................... 10
CONCLUSÃO ............................................................................................................................ 50
PREFÁCIO
Por certo existem inúmeros livros, artigos e pregações que demonstram que a
prática homossexual é um pecado grave aos olhos de Deus. Não é aqui que reside a
nossa carência. A despeito dessa abundância de materiais (nem todos biblicamente fiéis,
desnecessário dizer), não há praticamente nada acerca, por exemplo, de como um
cristão deve lidar com os desejos homossexuais, aparentemente por causa de uma
pressuposição (por vezes oculta) de que tal coisa não existe. Em outras palavras, um
cristão lida com muitos desejos pecaminosos, mas não com esse tipo específico.
Tenho falado com dezenas de homens e mulheres que estão há anos adorando a
Deus numa igreja, enquanto lutam sozinhos contra a atração por pessoas do
mesmo sexo. Eles tinham pavor de contar a alguém, e estavam convencidos de
que, se outros cristãos soubessem do seu segredo, seriam marcados e descarta-
dos. Imagine o trauma de acreditar que sua luta é diferente de qualquer outro pe-
cado. O pregador faz aplicações em seus sermões sobre mentira, roubo ou ego-
ísmo conjugal. E periodicamente um homem pode testificar sobre a sua luta com
a lascívia heterossexual. Ou uma mulher pode pedir oração por causa da sua an-
siedade. Mas esses pecados parecem normais, compreensíveis. E há esperança e
ajuda para que a mudança ocorra. Mas a homossexualidade parece diferente.
1
Gordon H. Clark, The Trinity (Unicoi, Tennessee: The Trinity Foundation, 2010), p. 10.
2
Alerta de spoiler: em breve pela Monergismo!
5
Você, leitor, talvez já tenha ouvido muitos sermões ou aulas sobre a Trindade.
Afinal, em anos recentes tem havido um resgate da importância da bendita doutrina da
Santíssima Trindade. Livros como Deleitando-se na Trindade, de Michael Reeves, são
um testemunho dessa renovação. Contudo, você alguma vez ouviu uma aplicação
durante um sermão destinada àqueles que lutam contra o pecado da homossexualidade?
Algum ensino ou admoestação aplicado àqueles que, a despeito de crerem em Jesus, a
despeito de acreditarem no que a Escritura afirma sobre a homossexualidade,
permanecem tendo desejos que não deveriam estar ali? Infelizmente, suponho que não.
Este livreto do jovem pastor Pedro Dulci lida exatamente com essa questão.
Dulci, juntamente com outros autores que têm se dedicado ao tema, nos ajuda a
entender que o pecado da homossexualidade não é tão diferente de outros pecados,
como costumamos presumir. É claro que há diferença de grau 3 nos pecados que
cometemos contra Deus e contra o próximo, conforme nos lembra o Catecismo maior
de Westminster.4 Além disso, Paulo claramente demonstra a singularidade do pecado
sexual: “Fugi da impureza. Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer é fora do
corpo; mas aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo. Acaso, não
sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes
da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço.
Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo” (1Co 6.18-20).
Contudo, não existe nenhum respaldo bíblico para supor que um crente
regenerado será tentado em várias áreas da vida, exceto no que diz respeito à atração por
pessoas do mesmo sexo. Da mesma forma que um homem piedoso pode lutar contra
desejos heterossexuais desordenados durante toda a vida, alguém genuinamente
3
A Escritura é clara a esse respeito, como em Pv 6.16-19: “Seis coisas o Senhor aborrece, e a sétima a
sua alma abomina: “olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que
trama projetos iníquos, pés que se apressam a correr para o mal, testemunha falsa que profere mentiras e o
que semeia contendas entre irmãos”. Uma das primeiras coisas que deveríamos fazer é proibir
sumariamente que tolices sejam ensinadas às nossas crianças por meio de músicas como “Pecado,
pecadinho, pecadão, isso não!”.
4
Pergunta 150: “São todas as transgressões da lei de Deus igualmente odiosas em si mesmas à vista de
Deus?”. R: “Todas as transgressões da lei de Deus não são igualmente odiosas; mas alguns pecados em si
mesmo, e em razão de diversas circunstâncias agravantes, são mais odiosos à vista de Deus do que outros.
Ed 9.14; Sl 78.17,32,56; Hb 2.2,3”. Cf. também a pergunta e resposta 151.
6
alcançado por Cristo pode travar uma batalha intensa contra desejos impróprios por
pessoas do mesmo sexo. Ou seja, não existe diferença entre os pecados nesse sentido,
pois todos eles podem ser a “fraqueza” de determinado cristão.
Também não podemos dizer algo como: “Um crente de verdade não lutaria
contra isso; isso é coisa de réprobo”. Ora, por causa do pecado original, a diferença
entre um cristão e um incrédulo não é o desejo em si, mas o que fazemos com tais
sugestões malignas (da nossa carne, do mundo e do diabo). Um ímpio dará vazão aos
seus desejos mais vis, enquanto aquele que teme a Deus lutará, na força do Espírito
Santo, para mortificá-los. É claro que Deus nos transformará ao longo da caminhada,
mas isso não significa que estaremos totalmente imunes às tentações. Aliás, esse é um
dos motivos pelos quais uma comunidade da fé se torna vital, pois é o ambiente onde
poderemos exortar e encorajar uns aos outros.
E não se engane o leitor. Este livro é para todo cristão, visto que a solução para o
problema da atração por pessoas do mesmo sexo é a mesma para qualquer outro tipo de
pecado. Uma vida de santidade não será possível sem que nossas afeições sejam
redimidas, e aqui reside uma necessidade de todos nós. Devemos trocar os nossos
7
amores menores por Deus. Precisamos, como diria Thomas Chalmers, do poder
expulsivo de uma nova afeição. Afinal, como já dissera Agostinho, “ama-te menos
aquele que, ao mesmo tempo que a ti, ama alguma coisa, que não ama por causa de ti”.
INTRODUÇÃO
Minha opção foi abordar as questões de sexualidade em sua relação com a nossa
identidade. Originalmente, o conteúdo deste livro foi uma série de palestras que proferi
em variados contextos — igrejas, seminários teológicos, escolas, etc. Ele tinha um no-
me mais provocativo — Problemas de Gênero — e era uma clara referência ao livro da
filósofa norte-americana Judith Butler, que se tornou uma referência incontornável para
quem procura compreender e discutir sexualidade, feminismo e subversão das identida-
des hoje. 5
Assim como os ambientes em que proferi essa série de palestras foram distintos,
as reações ao conteúdo deste livro também foram as mais díspares. Uns me disseram
que se tratava da melhor abordagem já ouvida sobre alguns dos tópicos mais espinhosos
de nossos tempos. Outros me acusaram de utilizar relativismos filosóficos e teológicos
para anestesiar a consciência dos meus ouvintes. As diferentes reações foram muito
instrutivas para mim. Recebi críticas e elogios de todos os lados do espectro ideológico
que a discussão pode assumir — e isso, para mim, é um excelente sinal! Apesar da mi-
nha satisfação com o conteúdo que estou apresentando, caro leitor, muitas pessoas iden-
tificaram minha palestra como uma tentativa insidiosa de fazer meus ouvintes aceitarem
que a atração por pessoas do mesmo sexo é um pecado como outro qualquer — chegan-
do ao cume de comparar as tentações sexuais a que qualquer heterossexual está sujeito
com as tentações oriundas da atração por pessoas de mesmo sexo. Ora, que absurdo!
5
Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (Routledge, 1990).
9
conteúdo tão atrativo pode ser assimilado e aparelhado pelas ideologias preferidas de
cada ouvinte. Nesse sentido, as questões de gênero, sexo e sexualidade apontam para
outra fragilidade da formação intelectual da igreja evangélica brasileira: a ausência de
lentes bíblicas para enxergar toda a realidade. Enquanto não for feito um trabalho pro-
fundo de análise e crítica das nossas idolatrias políticas, muitas discussões no interior da
cristandade, bem como na esfera pública, estarão profundamente prejudicadas.6
Diante de tudo isso, acredito que o mérito deste livreto é, justamente, estimular
os leitores a reformar alguns dos pressupostos mais bem estabelecidos que a cultura
ocidental sustenta a respeito de nossa identidade e sexualidade. Não podemos nos en-
volver no debate público, nem tentar contribuir em situações privadas, com a caixa de
ferramentas conceituais da cultura moderna. Nesse sentido, temos aqui a necessidade de
um trabalho de Reformador. Não tenho nenhuma pretensão de que meu raciocínio esgo-
te as questões que orbitam o núcleo dessa discussão. Entretanto, busquei ser bastante
preciso nos pontos mais básicos que devem ser levados em estreita consideração quando
formos abordar a sexualidade humana de um ponto de vista genuinamente cristão.
Boa leitura,
— Pedro Dulci
6
Para esse trabalho intelectual de análise e crítica das idolatrias políticas, recomendo fortemente a obra
do cientista político David T. Koyzis, Visões e Ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das
ideologias contemporâneas (São Paulo: Vida Nova, 2014). Koyzis faz parte de uma tradição intelectual
chamada Reformacional, que conta com outros autores e publicações importantes para reformarmos nossa
visão de mundo e de vida. Sugiro entusiasticamente a leitura de Herman Dooyeweerd, J. M. Spier, Hans
Rookmaaker, entre outros. Todos estes publicados pela Editora Monergismo.
10
Em 2018, a BBC Brasil publicou uma reportagem sobre o cantor brasileiro Pa-
bllo Vittar. A reportagem falava da preparação do novo álbum do artista e de como a
produção desse material tinha um público bem específico: os adolescentes. Na época, eu
trabalhava como coordenador de ensino religioso em uma escola presbiteriana, e a re-
portagem me chamou a atenção. Vejam o que diz um trecho da reportagem:
7
Lígia Mesquita, Pabllo Vittar quer mirar público adolescente em 2018 – e diz não temer críticas.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-42513721. Acessado em: 12 de jul de 2019.
11
Gostaria de destacar como uma produção cultural, de caráter bem popular, não
só está inteirada do assunto, mas também tem um viés muito específico. Os produtores
dizem que têm uma mensagem muito clara e querem passá-la adiante. No caso específi-
co, o núcleo da produção desse artefato cultural é: “nós podemos ser o que nós quiser-
mos”. Existe aqui uma lição muito importante sobre arte, política e cultura pop. Muitas
vezes, somos muito mais flexíveis com nossos valores do que as pessoas que estão na
linha de frente da produção cultural. Quem nos ensina isso didaticamente é Steve Tur-
ner, no livro Engolidos pela cultura pop:
Ouço pessoas justificando o consumo acrítico a partir da ideia de que o que es-
tão assistindo, lendo, jogando ou ouvindo é apenas “para relaxar” ou “não deve
ser levado a sério”. Acham que avaliar o que estão consumindo envolve muito
esforço e vai contra o espírito do entretenimento. Dizem que não querem ser sé-
rias demais ou muito “rígidas”. Essa atitude subestima seriamente a inteligência
e a motivação daqueles que produzem a cultura popular. Esses profissionais não
são crianças brincando com giz de cera. Predominantemente, são pessoas treina-
das com um profundo conhecimento de sua forma de arte e de sua história. Eles
tendem a ser pessoas bastante inflexíveis com relação à visão de mundo que
querem expressar.8
Manter nossos jovens entretidos no prédio da igreja não é de modo algum sinô-
nimo de formá-los como membros dinâmicos do corpo de Cristo. O que se en-
tende por ministério para jovens muitas vezes não é uma forma séria de forma-
8
Steve Turner, Engolidos pela cultura pop: Arte, mídia, e consumo: uma abordagem cristã (Viçosa, MG:
Ultimato, 2014), p. 27.
12
Sem dúvida, esse é o paradigma da cultura pop: bem-vindos à era das questões
de gênero, sexo e sexualidade. Cada um desses conceitos é uma entidade distinta. Ex-
plicaremos a classificação que vem sendo usada pela grande mídia quando aborda esse
tema. Embora eu não concorde com os pressupostos nem com os desdobramentos de
alguns desses conceitos, vou utilizá-los para que tomemos consciência das categorias
em uso e possamos compreender o debate público sobre essas questões.
9
James K. A. Smith, Você é o que você ama: o poder espiritual do hábito (São Paulo: Vida Nova, 2016),
p. 193.
Lígia Mesquita, Pabllo Vittar quer mirar público adolescente em 2018 — e diz não temer críticas.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-42513721. Acessado em: 12 de jul de 2019
13
Sexo, por sua vez, diz respeito apenas ao corpo masculino ou feminino — em
especial, à genitália —, podendo também contemplar exceções como os intersexuais
(por serem hermafroditas). Ou seja, trata-se de uma referência estritamente biológica e
física.
Por fim, sexualidade ou orientação sexual pode ser compreendida como o que
fazemos tanto com o nosso corpo quanto com o nosso gênero. Isto é, refere-se à vida
sexual de uma pessoa, tanto em seu lado subjetivo, como a atração que sente, quanto em
seu lado objetivo, como a prática sexual em que está envolvida. A orientação homosse-
xual pode referir-se tanto à relação quanto à atração por pessoas do mesmo sexo. É im-
portante ressaltar que comumente se faz uma distinção entre sexualidade e gênero, uma
vez que não estão, necessariamente, relacionados. Uma pessoa trans pode ser heterosse-
xual, homossexual ou bissexual. Reparem em como a reportagem apresenta Pabllo Vit-
tar: ele não fez nenhum tipo de cirurgia, então sua genitália é masculina; no entanto,
veste-se como mulher — ou seja, uma drag mulher ou cross-dresser. Já sua identidade
de gênero é fluida, compreendendo-se tanto como homem quanto como mulher.
Alguns leitores podem ter sentido certo mal-estar ou algum tipo de vertigem
com tantas variações e com a complexidade de um assunto que parecia ser tão mais
simples. Realmente, o tempo em que vivemos é marcado por uma sensibilidade supera-
guçada a essas questões – o que as transforma em objeto de crises pessoais, culturais e
até políticas. Seja como for, a compreensão desses conceitos básicos, à revelia de nossa
concordância, é fundamental nos jogos de linguagem hoje em circulação. Na forma co-
mo uma notícia é veiculada, um estudo acadêmico é publicado, entre outras produções
de artefatos culturais, gênero é tratado como diferente de sexo, e este é tratado como
diferente de orientação sexual. O conjunto de pesquisas e publicações que descreve,
contemporaneamente, o interesse nesses assuntos recebeu o nome de queer studies —
ou, simplesmente, teoria queer.
14
Queer é uma palavra que em inglês significa “estranho”, “esquisito” ou, sim-
plesmente, “inadequado” e começou a ser usada como adjetivo pejorativo. Tratava-se de
uma crítica quando alguém era chamado de queer! No entanto, o movimento LGBT
apropriou-se dessa palavra e assimilou-o como conceito para instalar-se como um con-
junto de iniciativas “inadequadas” ao padrão social que queriam questionar — a hete-
rossexualidade como norma. Tudo que era heteronormativo passou a ser questionado
pelas performances e pessoas queer.11
Tornar-se um sujeito feminino ou masculino não é uma coisa que aconteça num
só golpe; antes, implica uma construção que, efetivamente, nunca se completa
[…] a Cult se sente muito orgulhosa de ter se transformado em uma grande di-
vulgadora da cultura queer no Brasil. 13
11
Quanto à origem e ao significado do conceito em uma perspectiva não cristã, recomendo a leitura de
Guacira Lopes Louro, Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer (Belo Horizonte:
Editora Autênica, 2007).
12
Uma das pesquisas teológicas mais significativas no Brasil é do teólogo e professor André S.
Musskopf.
13
Editorial da Revista Cult de novembro de 2015.
15
14
Decerto há aqui uma referência à obra de uma das precursoras do moderno movimento feminista, a
filósofa francesa Simone de Beauvoir, que, em seu livro O Segundo Sexo (1949), popularizou a ideia de
que ninguém nasce mulher, mas torna-se uma.
16
O que é, afinal, uma ideologia? Quero deixar claro desde já que vejo as ideolo-
gias como tipos modernos do fenômeno perene da idolatria, trazendo em seu bo-
jo suas próprias teorias sobre o pecado e a redenção […] Como as idolatrias bí-
blicas, cada ideologia se fundamenta no ato de isolar um elemento da totalidade
criada, elevando-o acima do resto da criação e fazendo com que esta orbite em
torno desse elemento e o sirva. A ideologia também se fundamenta no pressu-
posto de que esse ídolo tem a capacidade de nos salvar de um mal real ou imagi-
nário que há no mundo.15
15
David T. Koyzis, Visões e Ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias
contemporâneas (São Paulo: Vida Nova, 2014), p. 18.
17
des comunitárias — e diz que esse é o fim supremo de todos os esforços não só políti-
cos, mas da existência temporal humana, estamos diante de uma formulação perfeita de
idolatria política em forma ideológica. Não é de assustar que, para a ideologia socialista,
a iniciativa privada seja um grande mal social a ser combatido — pois qualquer entida-
de ou dinâmica social que ameace a estabilidade do ídolo deve ser combatida.
O que aconteceu com os estudos queer foi exatamente a mesma coisa. Escolhe-
ram um âmbito da experiência temporal, que é um âmbito bom e criado por Deus, ou
seja, um aspecto da criação importante para nossa vida — as nossas relações com outras
pessoas e com nós mesmos, o entendimento sobre quem somos, a identidade que temos,
como lidamos com nossa economia afetiva e libidinal — e o transformaram no principal
assunto da vida, isto é, no elemento definidor de nossa existência. As lutas e conflitos
sociais, agora, são todos medidos unicamente pelos critérios da sexualidade, do gênero e
do sexo — mesmo que vários outros fatores estejam envolvidos em cada uma das cir-
cunstâncias. Além disso, qualquer outro âmbito da sociedade que toque nessas questões
está tocando no Bezerro de Ouro, no ídolo — o que justificaria a agressividade e vio-
lência contra qualquer tentativa de profanar essa divindade.
É precisamente por isso que as discussões públicas sobre esses temas são sempre
viscerais e carregadas de paixão. Um comentário ou crítica sobre esses âmbitos soa co-
mo um sacrilégio. As reações são agressivas porque envolvem afetos religiosos. Por
exemplo, quando a família tenta dizer o que devo fazer com meu corpo, ou quando a
igreja tenta dizer o que devo fazer com meu desejo sexual, ou, ainda, quando escola e o
18
Estado tentam legislar sobre meus afetos. Nada disso é bem-vindo, pois “meu corpo,
minhas regras”. Assim como toda ideologia política, também quando as questões de
gênero são idolatradas, uma palavra de ordem passa a evidenciar o caráter ideológico de
minha visão sobre o assunto.
Assim como os queer studies são amplos e envolvem várias disciplinas acadê-
micas diferentes, eles também têm pesquisadores e representantes de correntes intelec-
tuais diversas. Não obstante, um nome se destaca nos últimos anos por sua capacidade
de popularizar ideias fundamentais para a teoria queer e o feminismo: a filósofa norte-
americana Judith Butler. Professora do departamento de retórica e literatura comparada
da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Butler também ministra seminários na cá-
tedra Hannah Arendt de Filosofia no European Graduate School (EGS), na Suíça. Escri-
tora prolífera, ficou conhecida mundialmente com seu livro Problemas de Gênero
(1990), obra em que aplica os princípios gerais do pós-estruturalismo francês ao femi-
nismo e à identidade de gênero. Sob forte influência de Michel Foucault e Jacques Der-
rida, Butler apropria-se dos desafios que esses filósofos fizeram à hermenêutica e à teo-
ria literária e constrói uma teoria de subversão da identidade e da sexualidade. Sem exa-
geros retóricos, trata-se de uma versão corporal da desconstrução textual de Derrida. Da
mesma forma que o filósofo franco-argelino buscava superar o logocentrismo insistindo
em uma hermenêutica dos textos que dispensasse a intenção autoral e os significados
únicos,16 Butler também busca ultrapassar construções sexuais heteronormativas e iden-
tidades de gênero fixadas por princípios estruturantes.
Em uma entrevista recente à Revista Cult, Butler explicita em sua própria condi-
ção pessoal o significado e os desdobramentos de sua filosofia:
É por isso que, apesar de ser chamada de lésbica, e de chamar a mim mesmo as-
sim (embora não diariamente e não em todas as circunstâncias), relutaria em ins-
talar o lesbianismo na ordem do ser. Isso não porque as lésbicas não existam –
estamos em toda parte. É porque devemos ser cuidadosas sobre aquilo que que-
16
Para entender esse desafio hermenêutico, sugiro Kevin J. Vanhoozer, Há um significado nesse texto?
(São Paulo: Editora Vida, 2009).
19
Em outras palavras, Judith Butler está em uma condição de silêncio, que caracte-
riza as visões de mundo não cristãs contemporâneas.18 Ela não pode se declarar nada
porque, se assumisse alguma identidade minimamente estável, cairia em contradição
com a fluidez da filosofia que propõe. O que seu raciocínio nos oferece, portanto, é
apenas uma filosofia do silêncio, uma filosofia que impede os indivíduos de falar quem
somos e o que queremos com nossa identidade e sexualidade.
17
J. Butler, “A filósofa que rejeita definições” (Revista Cult, Edição 185, 2013), p. 23.
18
Cf. Francis Schaeffer, O Deus que se revela (São Paulo: Cultura Cristã, 2018), p. 90.
19
J. Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 2003), p. 59.
20
Diante dessa situação, fica a pergunta: qual é a melhor abordagem cristã para li-
dar com essas questões? Não podemos permanecer superficiais aqui. Existe uma ten-
dência na igreja evangélica brasileira a tentar lidar com essas questões sem fazer o tra-
balho intelectual sério de repensar categorias e conceitos fundamentais.
Não podemos ser ingênuos e pensar que essa batalha está no começo e que ainda
há tempo de reagir. Nesse aspecto, eu sou mais pessimista. A igreja demora muito para
discernir o Zeitgeist [espírito de seu tempo]. Estamos continuamente envolvidos com a
luta contra o marxismo cultural — algo que foi, com certeza, um grande problema para
a igreja cristã na década de 1980 no Brasil, mas que hoje simplesmente não faz mais
nenhum sentido para nossos jovens e adolescentes. Como estudante e pesquisador da
faculdade de filosofia de uma universidade federal durante dez anos, tive apenas 2 aulas
sobre Karl Marx. Na filosofia elas não eram ministradas. Já não havia interesse nisso.
No entanto, pergunte-me: a quantas aulas de pós-estruturalismo você assistiu? Quantos
seminários sobre Michel Foucault? E sobre pós-marxismo? Sobre a escola de Frankfurt?
Dezenas! Centenas de publicações, congressos, seminários e minicursos.
podemos honestamente oferecer aconselhamento e ajuda cristã a quem sofre com ques-
tões de gênero, sexo e sexualidade? Que alternativa estamos apresentando aos adoles-
centes que cresceram vendo e ouvindo Pabllo Vittar? Como a grande tradição teológica
e filosófica reformada pode esclarecer essas questões? Tenho algumas sugestões.
22
Quem conseguiu explicar muito bem e popularizar essa ideia foi o teólogo canadense
Albert Wolters, em A Criação Restaurada, livro que todo cristão deveria ler. Nesse li-
vraço, curto e direto ao ponto, Wolters apresenta os rudimentos mais fundamentais da
maneira como os discípulos de Cristo devem enxergar, compreender e pensar todas as
coisas — ou seja, a cosmovisão cristã. Em determinado momento, Wolters diz o seguin-
te a respeito dessa tarefa cristã:
20
A. Wolters, Criação restaurada: base bíblica para uma cosmovisão reformada (São Paulo: Cultura
Cristã, 2006), p. 98.
23
O que Wolters está argumentando aqui é que toda a realidade tem um aspecto
duplo. Quando criou todas as coisas por sua Palavra, Deus deu leis à realidade — inclu-
indo nossa sexualidade — que podem ser compreendidas como uma estrutura inegociá-
vel do mundo real. Ou seja, quando falamos de estrutura, temos um jogo de soma zero,
não há possibilidade de variação. Como Deus criou o ser humano, e a sexualidade, e a
sociedade e o trabalho cultural, cada uma dessas esferas da existência temporal assume
um caráter estrutural — essas ordenanças estruturais vindas da divindade foram chama-
das pelos teólogos da Reforma de leis criacionais. A ordem criacional é o primeiro pilar
da visão cristã de mundo e define a estrutura essencial de todos os aspectos da realidade
a partir do Logos divino.
Essa é a forma cristã de enxergar toda a realidade em seu sentido mais amplo.
Agora pense, por exemplo, em nosso tema específico: a sexualidade humana. A sexua-
lidade é uma boa estrutura criada por Deus para sua glória. Ou seja, somos seres estrutu-
ralmente sexualizados e fomos feitos assim para viver nossos relacionamentos, sexuali-
dade e afetividade de uma determinada forma. Entretanto, a nossa história contém outro
elemento, que é igualmente definidor de nossa identidade e de nossa sexualidade: a pre-
sença do pecado. Este é real, ainda que não destrua nossa sexualidade. Sendo incapaz de
destruir as estruturas criacionais de Deus, ele pode deturpá-las e colocá-las para operar
em uma direção totalmente oposta aos desígnios eternos de Deus. O pecado coloca nos-
sa sexualidade em uma direção contrária e faz com que ela saia de um estado de ordem
24
para a total desordem — afetando, consideravelmente, quem nós somos, isto é, nossa
identidade.
O desafio para os cristãos é abrir um caminho entre o falso dilema que dá ori-
gem aos extremos. Mais uma vez, a questão não é “a sexualidade é basicamente
boa ou má?”, mas “O que é estrutural e o que é direcional na sexualidade huma-
na?”. Se estrutura e direção são os termos de referência, é possível ao mesmo
tempo afirmar sinceramente a sexualidade humana e opor-se às suas perversões
com igual convicção e vigor.21
21
Ibidem, p. 118.
25
tudo existe a boa estrutura de Deus que foi redirecionada segundo os padrões rebeldes
do pecado.
A contribuição que essa maneira de pensar traria não só para a Igreja, mas para
toda a sociedade brasileira, é imensa. Trata-se de uma maneira de colocar velhos pro-
26
blemas sob novas perspectivas, de um modo mais fiel à revelação de Deus, sem perma-
necermos presos e limitados pelos clichês da nossa cultura. Nas palavras do próprio
Wolters:
Outro nome importante para nos auxiliar a reformar nossa compreensão da iden-
tidade e da sexualidade humanas é o do teólogo anglicano Sam Allberry. Ele é um dos
editores do site The Gospel Coalition e um dos pastores da Igreja Anglicana St. Mary,
em Maidenhead, no Reino Unido. Além de conferencista de dimensões internacionais,
Allberry também é autor de um pequeno — mas poderoso — livro intitulado Deus é
contra os homossexuais? (2013). Trata-se de uma obra em que ele apresenta argumen-
tações bíblicas preciosas sobre a visão cristã da atração por pessoas do mesmo sexo, ao
mesmo tempo que nos dá testemunho de sua própria trajetória. É um livro fininho e
meio autobiográfico. Entre seus argumentos, ele também fala um pouco sobre estrutura
e direção:
22
Ibidem, p. 120.
27
alguém que sinta essa atração pela primeira vez não presuma que ela consista
agora na “orientação” com que viverá pelo resto da sua existência.23
Talvez uma das coisas mais importantes que aprendi no tempo em que trabalha-
va diariamente com crianças em uma escola tenha sido ensinar os meninos a não crista-
lizarem (transformarem em uma estrutura irrevogável) expressões direcionais de sua
identidade e sexualidade. Isso é algo muito fácil de perceber em nossos filhos ou crian-
ças ao nosso redor. Geralmente, quando eles são pequenos, as polarizações entre meni-
nos e meninas é muito forte. Os meninos simplesmente não querem saber das meninas,
não brincam com meninas, não querem nada atrelado a elas e não há nada mais ofensivo
a um menino pequeno que chamá-lo de menininha. Claro, essa polarização acontece
quando eles são bem pequenos, pois, quando o tempo passa, de repente, parece que eles
se descobrem e passam a se enxergar de uma nova forma — e aí todas as novidades
típicas da adolescência começam a borbulhar. Com isso, somando-se à argumentação de
Allberry acima, estou querendo defender que nossa identidade e os elementos constitu-
tivos de nossa sexualidade são muito dinâmicos e complexos. Nossas percepções do
mundo, afeições e desejos vão sofrendo não só as mudanças típicas de nossas fases de
desenvolvimento, mas também são influenciados pelo pecado que constantemente nos
assedia. Nesse contexto de natureza dinâmica de nossa sexualidade, é muitíssimo im-
portante ajudarmos os mais novos e imaturos a lidar com essas transformações estrutu-
rais e pressões direcionais.
23
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo
sexo (Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018), p. 49.
28
zes de compreender tais questões —, precisamos ajudá-los a entender que a prática ho-
mossexual, por exemplo, nunca conseguirá ser compatível com as expectativas cristãs
para a identidade e para a sexualidade do ser humano.
Acredito que lidar honestamente dessa forma com as perguntas honestas das
pessoas que sofrem com confusões dessa natureza não será apenas de grande valor. An-
tes, um aconselhamento dessa forma, com o poder do Espírito Santo, tem condições de
libertar para sempre um indivíduo das cadeias da culpa, do medo e da incerteza que o
pecado produz em nós. É um feito incrível para a saúde emocional e espiritual não per-
mitir que um indivíduo que está percebendo, pela primeira vez na vida, uma atração
29
homoafetiva presuma, a partir disso, que agora esse desejo determinará sua identidade
para o resto da vida. Desassociar atração, afeição e sexualidade de identidade é uma
necessidade urgente, e o raciocínio de estrutura e direção nos ajuda muito nessa tarefa.
Não podemos permitir que nossos amigos, nossos filhos, nem nós mesmos, transfor-
memos variações, tentações e desejos direcionais em marcas estruturais de nossa identi-
dade. Quem diz quem nós somos, o que nos qualifica e nos fornece a estrutura de nossa
identidade não é nosso gênero, nem nosso sexo, nem nossa sexualidade. Antes, é nossa
nova aliança com Cristo!
30
Essa é uma das realidades mais fáceis de perceber em nossa experiência tempo-
ral. Estamos muito acostumados a falar da graça comum de Deus — que derrama chuva
sobre bons e maus, sobre justos e injustos —, mas a desgraça também é comum, afetan-
do todos os entes da criação e afetando-os totalmente. Em suma, o pecado não diz res-
peito apenas à vida de algumas poucas pessoas nem afeta somente os aspectos religiosos
da vida. Antes, atingiu toda a criação, colocando-a numa direção contrária a Deus, e
isso inclui nossa sexualidade.
A queda de Adão e Eva em pecado não foi apenas um ato isolado de desobedi-
ência, mas um acontecimento de significado catastrófico para a criação como
um todo. […] Biblicamente falando, o pecado não anula a criação nem se identi-
fica com ela. Criação e pecado permanecem distintos, mas intimamente entrela-
çados em nossa experiência. A prostituição não elimina a bondade da sexualida-
de humana. […] Podemos dizer que o pecado e o mal têm sempre o caráter de
31
uma caricatura — ou seja, de uma imagem distorcida que contém certas caracte-
rísticas reconhecíveis. 24
O que precisa ficar claro é que ter uma compreensão robusta dos efeitos do pe-
cado na realidade vai nos ajudar a analisar toda a criação de uma maneira muito mais
precisa. Ainda que estejamos concentrados em questões de gênero, sexo e sexualidade,
essa maneira de enxergar o mundo vale para tudo: para a arte, para a política, para a
ciência e tecnologia, e assim por diante.
Albert Wolters está nos ajudando a entender que o pecado, a forma de vida pe-
caminosa, o abuso da criação, sempre tem uma natureza caricatural. Ou seja, o pecado
funciona de modo muito a uma caricatura. Geralmente, quando querem produzir a cari-
catura de alguém, os cartunistas aumentam alguma característica que já é uma marca
chamativa de quem está sendo representado — uma orelha, um nariz, uma boca. Mesmo
que a gente olhe e veja que se trata de uma caricatura, também conseguimos reconhecer
a quem ela se refere. Com o pecado acontece exatamente o mesmo. Quando olhamos
para a prostituição, por exemplo, conseguimos enxergar sexualidade, relacionamento,
24
A. Wolters, Criação restaurada: base bíblica para uma cosmovisão reformada (São Paulo: Cultura
Cristã, 2006), p. 67-68.
32
desejo, mas algumas características desses elementos de nossa experiência foram desfi-
gurados pelo pecado gerando a caricatura: a prostituição. A prostituição, bem como
todas as outras desordens sexuais e de gênero, são meras caricaturas das intenções ori-
ginais de Deus para nossa vida. São experiências de estruturas boas que foram hipertro-
fiadas pelo pecado, de forma que produziram uma representação deformada do que era
a imagem e semelhança divina.
Nesse sentido, podemos compreender melhor o que o pecado faz quando afeta
totalmente nossa sexualidade. Ele dá dimensões equivocadas a aspectos bons da nossa
identidade e sexualidade e, por isso, não consegue produzir vida, uma vez que não tem
as dimensões adequadas, as condições apropriadas para satisfazer as expectativas cria-
cionais dos seres humanos. É por isso que o salário do pecado é a morte, nunca a vida.
Buscar na prostituição, ou em qualquer outra orientação sexual que subverta os desíg-
nios originais de Deus, a satisfação de nossos anseios relacionais, físicos e emocionais é
tentar matar a sede com Coca-cola. É pecaminoso esperar de alguma coisa — seja nossa
vida sexual, seja nossa identidade — mais do que esta pode oferecer. O pecado não con-
segue suprir nossos anseios.
Uma das mais importantes modificações que essa compreensão do pecado traz
para nossa discussão sobre gênero, sexo e sexualidade é a percepção de que devemos
abandonar outra tendência equivocada: a de reduzir as discussões sobre identidade e
sexualidade a uma conversa sobre homossexualidade versus heterossexualidade. Esse é
um empobrecimento muito grande do testemunho da igreja na esfera pública como tam-
bém uma ausência total de compreensão bíblica da questão. Quando afirmamos que o
pecado afetou horizontal e verticalmente toda a sexualidade humana, as orientações
heterossexuais não podem ficar de fora. Não podemos pensar, nem por um segundo, que
a marca do pecado na sexualidade se restringe às orientações homoafetivas, bissexuais,
transexuais e assim por diante. Não é o indivíduo com atração homoafetiva que está em
rebeldia contra Deus, é o ser humano! Todos nós temos em nossa experiência temporal
as marcas do pecado. Além de desonesto e insensível, seria biblicamente incorreto não
reconhecer as marcas do pecado nas várias experiências heterossexuais.
ção com os abusos e as caricaturas pecaminosas que existem em muitas práticas hete-
rossexuais celebradas no interior da comunidade cristã. Somente uma compreensão bi-
blicamente orientada do pecado tem condições de fornecer a capacidade de questionar
práticas heterossexuais comuns em nosso meio que são igualmente pecaminosas e apon-
tam da mesma forma para a depravação de alguma área da nossa vida.
Existe uma luta no interior de quem quer honrar a Deus com o corpo e a mente.
O desejo em si mesmo, seja do homoafetivo em relação ao seu igual, seja do he-
terossexual pelo sexo fora o casamento, não é pecado. O heterossexual não pos-
sui um botão mágico que desliga nele o sentimento de atração sexual por outra
mulher quando está longe da esposa. Deus nos fez pessoas sexuais. Para o ho-
moafetivo, esse desejo sexual foi direcionado para a pessoa do mesmo sexo. No
entanto, enquanto a questão se restringe à tentação, a batalha não foi perdida.25
Essa é mais uma forma de reiterar o núcleo do argumento que está sendo apre-
sentando aqui. O que é estrutural em nós? Dentre muitas outras coisas, a nossa sexuali-
dade, com certeza. Agora, o que é direcional? Sem sombra de dúvidas, o nosso descon-
trole referente a essa sexualidade. Uma terceira pergunta que poderia ser feita é: o que é
contextual?26 Ou seja, como essa estrutura e essa direção se manifestam em contextos
25
Lisânias Moura, Cristão homoafetivo? Um olhar amoroso à luz da bíblia (São Paulo: Mundo Cristão,
2017), p. 67.
26
O raciocínio de Estrutura e Direção foi enriquecido por outros dois intelectuais reformados de primeira
importância para nossa tradição, a saber: o professor de filosofia da Universidade Livre de Amsterdã,
Sander Griffioen, e o teólogo norte-americano Richard J. Mouw. Além de pensar em termos de Estrutura
e Direção, eles também colocaram a ideia de “contexto”. Foge ao espaço e aos propósitos do presente
livro apresentar detalhadamente essa contribuição dos dois autores, mas eu já reconstruí sua
argumentação em outro lugar. Para quem tiver interesse em aprofundar-se nessas questões, recomendo a
leitura de Pedro Dulci, Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade cristã (Viçosa,
MG: Ultimato, 2017), p. 101 ss.
34
específicos? Bem, aqui vem aquele refinamento necessário para as discussões cristãs:
em relações heterossexuais esse descontrole se mostra de certos modos; em relações
homoafetivas, de outros. Seja como for, nenhum de nós tem um botão em si que, ao ser
acionado, automaticamente nos faz parar de desejar — ou quando nos casamos, ou
quando somos batizados, ou quando entramos para o ministério e “Pronto! Parei de sen-
tir aquela atração”. Isso não acontece com ninguém, pois a santificação — ou o proces-
so que os indivíduos que estão em Cristo experimentam, no poder do Espírito, de reor-
denar todos os aspectos que foram desordenados pelo pecado — não trabalha dessa
forma.
Vamos falar mais sobre santificação no último capítulo. Por hora, o que é neces-
sário deixar claro aqui é que distinções que não reconhecem as marcas do pecado em
toda sexualidade humana — inclusive nas experiências heteronormativas — precisam
ser descartadas pelos cristãos. Para a renovação de nossa visão sobre identidade e se-
xualidade, não podemos manter esses clichês da cultura predominante na igreja evangé-
lica brasileira que só enxergam pecaminosidade em certas práticas e orientações sexu-
ais, enquanto outras formas de vida são encaradas como livres de direcionamento rebel-
de contra Deus. Não é isso que a visão de mundo retirada da narrativa bíblica nos orien-
ta. Ademais, pensar dessa forma apenas alimenta uma condescendência com certos tipos
de pecado. Se a santificação e a glória de Cristo são nossos objetivos, o lugar onde vigo-
ra o erro e o pecado precisa passar pelo processo purificador da verdade e do arrepen-
dimento.
35
Toda a argumentação que está sendo construída é uma trajetória em que cada
passo leva ao próximo. Nesse sentido, os dois capítulos anteriores necessariamente me
levam, agora, para o terceiro aspecto necessário para reformar nossa visão de sexualida-
de e identidade. A terceira compreensão basilar que precisamos assumir é que nossa
ética sexual deve ser retirada das Escrituras. Sabendo que nossa sexualidade é tanto
estrutural quanto direcional e sabendo que ela foi totalmente afetada pelo pecado, incon-
tornavelmente precisamos de parâmetros éticos e morais para nos reordenarmos sexu-
almente. Nessa altura, a pergunta que surge é: de onde a gente tira esses parâmetros? Se
nosso interesse é construir uma ética genuinamente cristã, precisamos retirar tais parâ-
metros da revelação do Senhor em sua Palavra. Parece simples e óbvio, mas não é.
27
Charles Taylor, Imaginários Sociais Modernos (Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2005).
36
O contrassenso que existe nessa história — e que ilustra o meu argumento sobre
a moralidade sexual de muitos evangélicos — é que Hermínia foi concebida e interpre-
tada pelo talentoso ator brasileiro Paulo Gustavo, que não esconde sua orientação sexual
homoafetiva e sua união estável com o dermatologista Tales Bretas. Ou seja, apesar de
uma orientação absolutamente distinta da personagem que criou, Paulo Gustavo conse-
guiu levar milhões de pessoas ao teatro e ao cinema justamente porque sua personagem
consegue nos remeter aos usos e costumes das mães mais desajeitas e conservadoras
que conhecemos. Por meio de um clichê sobre as mulheres brasileiras de meia-idade,
Paulo Gustavo conseguiu criar uma ponte perfeita com os costumes e preconceitos mais
tradicionais da cultura brasileira — a mãe que cria dois filhos sozinha, que foi deixada
por um marido de práticas heterossexuais descontroladas, cheia de sexismos e precon-
ceitos em suas falas com os filhos e parentes, etc.
so cônjuge. Quando mencionava sua espera pelas bodas e pela sua noiva, Cristo falava
no sentido mais profundo que o casamento pode apontar: para nossa aliança mística de
pertencimento a Cristo — que relativiza todo o resto de nossa existência temporal.
28
Wesley Hill, “Christ, Scripture and Spiritual Friendship”. In: Preston SPRINKLE (org.), Two views on
Homosexuality, the Bible and the Church (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2016), p. 143.
39
mesmo sexo. Nossa identidade é bem maior que nossas práticas. Novamente, o raciocí-
nio do apóstolo Paulo nos ajuda a entender como os autores do Novo Testamento enca-
ravam essas questões e construíram uma moralidade que não limitava nossa identidade
aos nossos sentimentos e afetos. Quando o apóstolo dos gentios faz uma lista de práticas
de indivíduos que não herdarão o reino de Deus, além de tratar de maneira igual menti-
rosos e homossexuais, ele deixa claro: “assim foram alguns de vocês” (1Co 6.11a), mas
a identidade de vocês foi mudada; “vocês foram lavados, foram santificados, foram jus-
tificados, no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de Deus” (1Co 6.11b). A iden-
tidade de vocês agora não está atrelada ao que faziam ou continuam desejando fazer.
Vocês morreram, e agora a sua identidade está escondida com Cristo em Deus (Cl 3.3).
Essa forma de enxergar nossa identidade e sexualidade é libertadora.
Um exercício histórico pode nos ajudar muitíssimo nessa tarefa. Quando pensa-
mos que há 150 anos era inconcebível uma pessoa atrelar sua identidade às suas práticas
sexuais ou desejantes, fica mais fácil ultrapassar nosso próprio tempo e pensar de ma-
neira extemporânea. Para não falarmos só sobre a moralidade bíblica — nosso padrão
imutável — pense, por exemplo, em como Sócrates, Platão ou Aristóteles compreendi-
am identidade e sexualidade. Apesar da pederastia dominante em sua época, nenhum
deles se apresentava como tal. Não era distintivo, não constituía o paradigma de sua
identidade. Ou passe os olhos pela obra de Friedrich Nietzsche. Veja o que ele fala de
identidade, transvaloração dos valores e sexualidade. Nem a atração nem a orientação
sexual são fundamentais para a constituição da figura identitária fundamental de sua
filosofia, o Übermensch [Super-homem].
41
Essa é uma lição fundamental para a igreja evangélica brasileira. Nossa moral
sexual precisa ser retirada da tradição cristã que foi fundada sobre as Escrituras. Isso vai
42
mudar até mesmo a forma como nós mesmos tratamos nossas lutas e dilemas de ordem
afetiva e sexual. Um dos exemplos de que mais gosto dessa mudança vem de um gigan-
te da teologia: Agostinho, bispo de Hipona. Em um trecho belíssimo das suas Confis-
sões, ele ora a Deus confessando seus próprios pecados. Veja como ele enxergava a si
mesmo e tratava seus pecados:
É incrível como Agostinho não usa nenhum dos termos que se tornaram cotidia-
nos de nossa época para falar sobre sexualidade e, mesmo assim, seu discurso é muito
mais rico do que o nosso. Não existe aqui nenhuma associação de sexualidade com
identidade. Na verdade, é justamente a consciência sólida de Agostinho de que sua iden-
tidade está alicerçada em sua relação com Deus que lhe permite encontrar auxílio e per-
dão em oração. Mais do que isso. Nem mesmo os seus pecados ocupam muito de sua
atenção. Ele se concentra menos nas práticas em si mesmas — para onde olhou, o que
desejou, onde colocou a mão, etc. — do que nas suas motivações. Seu interesse e a ra-
zão de sua confissão é que ele reconhece que seu coração, por muito tempo, ficou divi-
dido por amores antagônicos — o amor a Deus e o amor a si mesmo. Essa percepção é
fundamental para toda a filosofia de Agostinho, não só em termos antropológicos, mas
até mesmo políticos, como podemos ver em A Cidade de Deus. Agostinho ensinou para
29
Agostinho, Confissões (São Paulo: Paulus, 2014), p. 49-50.
43
o ocidente que as motivações mais profundas dos corações humanos determinam quem
somos. Nossas práticas, desejos e crenças são reflexos dos nossos amores — que for-
mam duas cidades, alicerçadas em dois amores distintos. Essa antropologia agostiniana
tem muito potencial para transformar, de cima a baixo, não só nossa compreensão iden-
titária, como também nossa visão da politização da sexualidade.
Usei o termo “atração por pessoas do mesmo sexo”, porque o desafio imediato é
a descrição de mim mesmo. Na cultura ocidental de hoje, o termo óbvio para al-
guém com sentimentos homossexuais é “homossexual”. Todavia, na minha ex-
periência, ele muitas vezes se refere a muito mais que à orientação sexual de al-
guém. O termo descreve uma identidade e um estilo de vida.
… Essa descrição é uma forma de reconhecer que o tipo de atração sexual que
experimento não é fundamental para a minha identidade. 30 É parte do que sinto,
mas não é quem sou, no nível mais básico. Eu sou muito mais que a minha sexu-
alidade.
Tomemos outro tipo de apetite. Eu amo carne. Considero que haja algo de erra-
do quando vejo um prato sem o pedaço de um animal. Contudo, meu amor à
carne não significa que eu gostaria de ser definido por alguém pela principal ca-
tegoria de “carnívoro”. 31
As opções de Allbery são muito inteligentes. Ao dar nomes corretos para ques-
tões diferentes, ele desarticula uma série de conflitos que poderiam ser enfrentados sem
necessidade. O desafio de quem sente atração por pessoas do mesmo sexo é diferente do
desafio de encontrar em Jesus o paradigma de sua identidade. É claro que o segundo
30
Há uma mudança importante na terminologia empregada: ao falar de atração por pessoas de mesmo
sexo, em vez de homossexualidade, Allbery enfatiza que a fonte de nossa identidade é o relacionamento
com Cristo, não o tipo de atração que sentimos.
31
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo
sexo (Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018), p. 14-15.
44
A última contribuição que gostaria de trazer com esse material será de grande
valia, principalmente para pessoas que lidam diretamente com o sofrimento pessoal
causado por desordens sexuais e, por conseguinte, identitárias. Trata-se da defesa da
ideia de que o imperativo bíblico de rejeitar o pecado que afetou toda a sexualidade hu-
mana não é sinônimo de negar a si mesmo enquanto rejeição psicológica de si. Nova-
mente, é fundamental fazer distinções aqui para não chamar raposa de cachorro.
O cuidado com essa diferenciação não é meramente teórico. Talvez seja o que
tem consequências mais imediatas e danosas para quem sofre de maneira pessoal com
as questões de gênero, sexo e sexualidade. A incompreensão dessa distinção entre o
imperativo bíblico e uma recado psicológico doentio de rejeição de si mesmo pode levar
desde à automutilação até ao suicídio.
A própria cultura pop tem dado sinais de incapacidade de distinguir o que está
em jogo nessas situações. O recente filme Girl: Trans-formação (2018) é uma excelente
peça da cultura que nos ajuda a entender alguns aspectos da pressão psicológica envol-
vida nos procedimentos de formação e deformação sexual e identitária. A narrativa do
filme conta a história de Lara, uma adolescente transexual que aparece já no início do
filme com todo o fenótipo feminino — e uma grande aceitação da comunidade em que
está inserida, como seu pai, médicos e psicólogos. Não existe jornada de descoberta até
aquele ponto da sua vida. A película já se inicia com o estado de coisas estabelecido.
Entretanto, a virada do filme, que o deixa interessante, é que o diretor Lukas Dhont pro-
põe o caminho inverso dessa trajetória de descoberta: tudo que estava indo bem percorre
o sentido contrário. Cena após cena, a situação fica mais complexa e angustiante. Vou
parar por aqui para não dar spoiler, mas toda a discussão que o filme levanta é a carga
física e emocional pesadíssima que um adolescente naquela circunstância enfrenta para
“estabelecer a correta relação entre sua sexualidade e sua identidade”. É justamente do
que acontece no interior do coração de um indivíduo em situações semelhantes à do
protagonista de Girl que o presente capítulo se ocupa.
46
Quanto a isso, quem nos ajuda a compreender um pouco mais o estado emocio-
nal de alguém que enxerga a si mesmo como “inadequado”, “estranho” e, por que não,
“queer” é, uma vez mais, Sam Allberry:
Conheci vários cristãos que disseram que suas experiências de atração por pes-
soas do mesmo sexo fizeram-nos sentir-se profunda e espiritualmente impuros.
Alguns mencionaram sentir-se como “produtos danificados” (eu vim com erro
de fábrica), como se estivessem além do reparo e fossem desagradáveis a Deus
para sempre.32
32
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo
sexo (Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018), p. 47.
47
Quando tinha cerca de 13 anos, comecei a perceber que aquilo que meus amigos
estavam sentido por meninas — um deleite vertiginoso, um anseio emocional e
físico comumente chamado de “atração romântica”, “ter um crush” ou, mais se-
riamente, “estar apaixonado” — eu sentia por meninos, por homens. Encontrava-
me observando-os de uma forma que eu nunca havia feito antes. [...] Ao mesmo
tempo, também sabia que eu era cristão — e que queria viver minha vida tanto
quanto possível em agradecida obediência ao presente de Deus que é Jesus Cris-
to, cuja vida, morte e ressurreição alcançou para mim o perdão dos pecados e a
promessa da vida eterna. E, à medida que ficava mais velho, ambas as realidades
começaram a mostrar-se mais centrais no desenvolvimento da noção de quem eu
era. [...] Como um homem ou mulher gay deveria viver, como uma pessoa com
atração por pessoas do mesmo sexo como eu deveria expressar sua sexualidade,
em vez de simplesmente reprimi-la ou de tentar negar sua existência?33
Sempre que leio o relato de Hill, lembro-me da janela 4x14, uma janela missio-
nária que não é geográfica, mas etária. É incrível quantas experiências formativas acon-
tecem durante esses dez anos da nossa vida. Estatísticas dizem que mais de 80% das
conversões à fé cristã ocorrem nesses anos — como aconteceu com Hill. Imagino que
também seja uma fase importantíssima para toda sorte de questões sexuais e seus refle-
xos na formação de nossa identidade. Seja como for, veja que Hill lidou com essas duas
dimensões simultaneamente. Na mesma época que percebeu que se sentia atraído por
pessoas do mesmo sexo, ele também compreendeu que Cristo o alcançou. À medida que
crescia, essas duas realidades mostravam-se competindo pela lealdade de seu coração;
então ele levantou uma série de perguntas que, infelizmente, não são respondidas em
muitas comunidades de fé que conhecemos. Ele queria saber como um homem ou mu-
lher com atração sexual por pessoas do mesmo sexo deveria viver de forma que Deus
glorificasse — sem que essa pessoa precisasse reprimir, negar ou tentar rejeitar o que
estava experimentando.
33
Wesley Hill, “Christ, Scripture and Spiritual Friendship”. In: Preston SPRINKLE (org.), Two views on
Homosexuality, the Bible and the Church (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2016), p. 124.
48
Podemos definir santificação como a ação graciosa do Espírito Santo – que im-
plica nossa participação responsável – mediante a qual Deus liberta a nós, peca-
dores justificados, da contaminação do pecado, renova toda a nossa natureza
conforme a sua imagem e nos permite viver de forma a agradá-lo.34
Esse é um trecho bem técnico, mas existem muitas lições condensadas aqui. Ve-
ja que a santificação é uma obra do Espírito de Deus através da qual Deus nos liberta da
contaminação do pecado. Isso ele faz renovando a nossa natureza conforme sua imagem
— ou seja, aquelas estruturas criacionais que mencionamos anteriormente, que estavam
em uma direção rebelde, são redirecionadas pelo Espírito para apontarem outra vez para
a imagem e semelhança divina à qual fomos criados. É como se o Espírito Santo nos
despertasse para enxergar esse direcionamento equivocado e nos dissesse: “É para cá,
nessa direção, que você vai caminhar agora… e eu vou te ajudar!”.
É por isso que Hoekema diz que, na santificação, Deus não nos concede novos
poderes ou capacidades diferentes das que tínhamos anteriormente. As estruturas são as
mesmas. Nós continuamos desejando, amando, querendo da mesma forma. A diferença é
34
A. Hoekema, “A Perspectiva Reformada”. In: S. Gundry (org.), Cinco perspectivas sobre santificação
(São Paulo: Editora Vida, 2006), p. 69.
49
que agora tenho a condição de possibilidade (o Espírito Santo operando em nosso cora-
ção) de sentir e querer de uma maneira que glorifique a Deus. Não nascem asas angelicais
em nossas costas, nem uma auréola dourada sobre nossa cabeça. As estruturas permane-
cem, mas a direção é alterada segundo a eficácia do poder do Espírito, que nos redirecio-
na e começa em nós a obra da redenção. Conforme Hoekema continua explicando:
Além disso, a santificação realiza uma renovação de nossa natureza, ou seja, faz-
nos mudar de direção, em vez de transformar nossa essência. Santificando-nos,
Deus não está nos concedendo poderes e capacidades totalmente diferentes dos
que já tínhamos. Antes, ele nos permite usar de forma correta, não de forma pe-
caminosa, os dons que nos concedeu. A santificação nos capacita a pensar, dese-
jar e amar de forma que glorifique a Deus, isto é, a pensar no que Deus pensa de
si mesmo e a fazer o que se harmoniza com sua vontade.35
35
Ibidem, p. 70.
50
CONCLUSÃO
Existem muitos aspectos que ainda poderíamos tratar aqui. Acredite, deixei al-
guns assuntos mais polêmicos para depois. No entanto, eu gostaria de terminar esse pe-
queno livro da forma como todas as nossas conversas deveriam terminar. Ainda que boa
teologia e filosofia sejam fundamentais para nossa vida enquanto discípulos de Jesus,
existe algo que é o mais profundo diferencial da fé cristã em nossa experiência tempo-
ral: o fato de que nossa esperança não se limita à nossa experiência temporal. Ainda que
habitantes da Cidade dos Homens, somos mesmo cidadãos da Nova Jerusalém. Essa
perspectiva deve regular toda a nossa compreensão dos afetos, desejos e pensamentos.
Lidar de forma escatológica com nossas experiências pessoais significa trans-
formar nossa vida agora à luz de toda a certeza quanto aos eventos que nos aguardam no
futuro. Especificamente falando sobre sexualidade e identidade, quem nos lembra de
tudo isso é o pastor Sam Allberry:
Na eternidade, seremos mudados para sempre a fim de sermos como Cristo. Es-
sa é a esperança inabalável do cristão. Mas e nessa vida? É possível que Deus
mude nossos desejos sexuais antes de alcançarmos a nova criação? Acredito na
possibilidade de mudança; no entanto, a Bíblia jamais promete a mudança com-
pleta da orientação sexual. Não há dúvida de que Deus pode mudar nossos dese-
jos sexuais, e há numerosos relatos de que ele o fez. Precisamos nos lembrar de
que, como cristãos, vivemos entre duas realidades. Recebemos uma nova identi-
dade (Ef 4.24). Entretanto, ainda não recebemos a plenitude da nossa salvação
como povo de Deus. Por essa razão, Paulo diz que gememos (Rm 8.23) e, por-
tanto, a desejamos em toda a sua plenitude. Algo como receber uma colher para
experimentarmos uma refeição deliciosa que está sendo preparada e, de imedia-
to, percebermos o tamanho da fome e quão maravilhoso será se sentar à mesa e
comer até não poder mais. 36
36
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo
sexo (Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018), p. 50-51.
51
Por outro lado, essa esperança última precisa orientar e transformar nossa vida
penúltima, isto é, nossa experiência temporal no presente. Nesse aspecto, ainda é rele-
vante perguntar se pessoas com subversões profundas de gênero, ou indivíduos com
atração por pessoas do mesmo sexo, podem experimentar uma vida transformada desde
já. Isso significa a transformação do nosso desejo? Deixar de sentir-se atraído por pes-
soas do mesmo sexo e passar a ser atraído por pessoas do sexo oposto? Junto com All-
berry, acreditamos que é possível. Deus pode fazer isso. Entretanto, precisamos dizer:
não sabemos se ele vai fazer isso com todos. Uma pessoa legitimamente alcançada por
Jesus pode passar a vida toda lutando com sua atração por pessoas do mesmo sexo. Por
mais doloroso que seja, isso não é uma exclusividade dos cristãos homoafetivos. Os
indivíduos heteroafetivos que são alcançados por Cristo também têm aspectos do peca-
do que serão lutas constantes até o encontro final com Jesus. Assim como o hétero não
se liberta de uma vez por todas de seus conflitos de ordem sexual quando é convertido à
fé bíblica, quem luta contra o desejo homoafetivo também não o será.
Além disso, veja que Allberry faz uma segunda diferenciação muito esclarece-
dora e importante para nossos objetivos. Ele mostra a diferença abismal que existe entre
aquele que sente atração por pessoas do mesmo sexo, mas não efetiva os seus desejos, e
aqueles que vivem na prática do pecado. No núcleo dessa diferenciação existe a convic-
ção teológica de que ser tentado não é pecado! É uma luta, e o próprio Senhor Jesus,
que habitou entre nós, até o fim também teve de lidar com tentações. Nossa cristologia
afirma que Jesus era plenamente Deus e, ao mesmo tempo, plenamente homem. A dou-
trina da dupla natureza de Cristo nos ajuda muitíssimo a lidar com nossas tentações e
lutas sexuais. Jesus era homem igual a todos os que você conhece: sentia desejos, tinha
hormônios, órgão genital, etc. Não existe nada na revelação bíblica que nos faça duvidar
de que Jesus sentia os mesmos desejos e carências que nós. Assim como sentia fome,
tristeza e alegria, ele também deveria sentir atração e desejo. A diferença é que Jesus
52
estava livre do pecado, que distorce e põe a estrutura sexual numa direção rebelde. Ain-
da assim, ele não se casou e, portanto, não pôde efetivar de maneira legítima esses dese-
jos numa relação temporal. No entanto, a solteirice de Jesus não o fez menos humano do
que eu e você. Ele continuava plenamente humano. Tudo isso precisa nos ajudar a com-
preender melhor o que Deus quer para nós, enxergando em Jesus um exemplo de al-
guém que, apesar de tentado, nunca pecou. Precisamos, então, enquadrar melhor nossos
problemas para que não tenhamos um olhar viciado ao pensar em nossas dores e desafi-
os como coisas difíceis demais de enfrentar. Temos um sumo sacerdote que conhece a
condição humana e tem muito o que nos dizer e nos ajudar.
É precisamente por tudo isso que a imagem que Alberry usa de “provar um pou-
co da refeição que será servida em breve” é muito significativa. Talvez você já tenha
experimentado isso na infância. Sabe quando estamos famintos à beira do fogão e al-
guém da está cozinhado e, então, a pessoa nos dá só uma colherada para experimentar?
Quando provamos aquela pequena porção, imediatamente percebemos o tamanho de
nossa fome: “Meu Deus, que coisa maravilhosa! Você pode me dar mais?”. Geralmente
a pessoa nos diz: “Espere mais um pouco, porque ainda não está na hora do almoço”.
Não é sem motivo que o Novo Testamento usa a analogia dos alimentos para
comunicar dimensões da vida com Deus. Essa é, com certeza, uma das melhores formas
de entender uma experiência escatológica do “já e ainda não”. Assim como acontece à
beira do fogão, nós já provamos da nova vida com Jesus e como isso afeta nossa identi-
dade e sexualidade. No entanto, “ainda não é hora do almoço”. Precisamos esperar um
pouco mais, até que o Noivo venha nos buscar e então provemos daquilo que é perfeito!
53
Este livro é parte de uma série de iniciativas sobre gênero, sexo e sexualidade
que estou desenvolvendo nos últimos anos. Se você quiser continuar recebendo gratui-
tamente mais conteúdos como este, adicione o número +55 62 8160-2134 e me chame
no WhatsApp. Essa foi uma forma bem simples que encontrei de continuarmos conec-
tados para que eu possa enviar para você mais estudos complementares.