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De A Onça e a Diferença
Flávio Gordon
Ser pós-estruturalista pode significar, pelo menos, duas coisas diferentes. O prefixo –pós
pode estar marcando uma sucessão no tempo; neste caso, ele fixa, na direção contrária, o
estruturalismo como fim de uma etapa. Dentro desta alternativa, o prefixo é posto como
índice de uma superação, dentro de um quadro de ‘progresso do conhecimento’. Os pós-
estruturalistas, deste ponto de vista, são aqueles que reagiram contra possíveis
insuficiências da abordagem estruturalista e que, supostamente, desenvolveram melhores
soluções. O estruturalismo seria uma espécie de corolário de uma longa ‘fase’ da história da
antropologia e, dado o declínio de sua influência, uma nova fase se inicia. A outra
alternativa possível é entender o estruturalismo não como o fim de uma etapa, mas como
um conjunto vivo de idéias, como campo fecundo de problemas a serem aprofundados ou
deslocados. O modelo aqui não seria mais o de uma história das idéias mas, na expressão de
Chatêlet (cf. Goldman, 1994: 24), o de uma “geografia das idéias”, onde é possível lançar
mão de certos campos de idéias, estabelecer conexões entre diversos espaços conceituais.
Neste último caso, seria possível, inclusive, re-explorar alguns temas do estruturalismo. No
presente trabalho, estou considerando cada uma das alternativas acima como
exemplificadas por dois estilos de antropologia: de um lado, a antropologia chamada pós-
moderna; de outro, a antropologia de Roy Wagner e Marilyn Strathern, que vou denominar
aqui de antropologia imanentista (1) . Para efetuar tal comparação, pretendo analisar um
período restrito na história da disciplina, que vai mais ou menos de 1973 – data da
publicação de The Interpretation of Cultures, de Geertz – até os trabalhos mais recentes de
Roy Wagner e Marilyn Strathern.
A visão do estruturalismo como fim de uma etapa é defendida explicitamente por Edwin
Ardener (1985). Ardener argumenta que o declínio do estruturalismo, por volta dos anos
70-80, coincide com o fim do modernismo em antropologia, período que teria se iniciado
com Malinowski por volta dos anos 20: “Other lights may be working, but the Modernism
switch is off (...) And who switched it on? Was it Malinowski? We can say that it was...”
(cf. Ardener, 1985: 54). O argumento de Ardener nos leva a concluir que o pós-
estruturalismo é também o pós-modernismo. Há um problema, no entanto, no uso de termos
como ‘pós-modernismo’ ou ‘pós-estruturalismo’, pois eles são extremamente vagos. O
rótulo pós-modernismo pode significar tantas coisas diferentes, incluir tamanha variedade
de obras, autores e iniciativas intelectuais e políticas, que se pode perguntar se não é um
termo carente de sentido. Em antropologia, contudo, talvez seja possível delimitar alguns
eventos que indicam uma certa tendência, tendência esta que pode ser enquadrada sem
grandes sobressaltos no rótulo de ‘antropologia pós-moderna’.
Sherry Ortner (1984; 1996) esboça algumas características deste ‘estado de espírito’ da
disciplina. O campo acadêmico da antropologia estaria vivendo, por volta dos anos 80, um
processo de fragmentação constante. Nomes como Marvin Harris e Eric Wolf, por exemplo,
chegaram a sugerir que o campo estava se dissolvendo, tamanha a quantidade de sub-
campos, micro-disciplinas e especializações que se proliferavam, a ponto de perderem
contato uns com os outros (cf. Ortner, 1984: 126). Esta fragmentação está associada a
vários eventos. Por um lado, ela é resultado de transformações políticas importantes: o
processo de descolonização de países africanos e asiáticos, que teria possibilitado o
desenvolvimento de espaços acadêmicos periféricos e, conseqüentemente, a elaboração de
teorias diversas e de críticas aos postulados da antropologia modernista (cf. Talal Asad,
1973, 1991; Clifford, 1986); a intensificação do processo da globalização e expansão do
Sistema Mundial; o suposto aumento no número de culturas ‘híbridas’ e de ‘fluxos’
interculturais, e a conseqüente ênfase no estudo de ‘sociedades complexas’ (cf. Hannerz,
1997; Thomas, 1991). As situações de campo realmente pareciam ter se alterado muito em
relação à fase modernista (2) , e o pressuposto da totalidade de sistemas sociais –
característico do funcionalismo britânico – já não podia ser sustentado sem ressalvas. Por
outro lado, este movimento implicou no questionamento do ideal de objetividade da
antropologia, tanto pelo lado político (essa objetividade só foi possível graças à situação de
violência imposta pelo colonialismo europeu e, portanto, a antropologia não tinha
legitimidade em representar as ‘culturas periféricas’), quanto pelo lado epistemológico (os
povos que os antropólogos estudavam não eram objetos passivos, mas sujeitos que
exerciam efeitos sobre o processo de pesquisa). Esta crítica à objetividade forneceu as bases
para uma série de experimentos de escrita etnográfica, baseados na idéia de que o etnógrafo
devia estar consciente de seus artifícios literários (cf. Clifford & Marcus, 1986).
A crítica de Clifford (1986), por exemplo, foi dirigida a Malinowski sob o argumento de
que a posição de neutralidade do pesquisador de campo não era um fato do campo, mas
uma construção alegórica no processo de escrita. Esta postura implicava que o etnógrafo
devia tomar consciência de sua posição como autor e explicitar as ‘vozes’ contraditórias e
as disputas inerentes à representação do ‘objeto’ da pesquisa. A realidade que o etnógrafo
descreve era, nas palavras de Crapanzano, uma “realidade negociada” (cf. Strathern, 1987:
264). Ou seja, por um lado as pessoas que o antropólogo estuda deviam ser ‘elevadas’ à
condição de sujeito; por outro lado, este procedimento era complementar a um processo de
objetificação do etnógrafo (cf. Strathern, ibid.). Em suma, o pós-modernismo pode ser
resumido, grosso modo, como uma preocupação com as mudanças ocorridas na situação
mundial, implicando em transformações na prática epistemológica (elaborações de teorias e
métodos de conhecimento) e em experimentos quanto às técnicas de representação da
realidade estudada pelo antropólogo (cf. Ortner, 1996: 10-11).
Se o Sujeito era, pois, o grande inimigo de Lévi-Strauss, o que pode ser feito em relação a
este combate? Estou trabalhando aqui, como disse antes, com duas alternativas possíveis. A
decisão tomada pela antropologia pós-moderna, a meu ver, foi a de um grande mergulho em
direção ao Sujeito. A crítica à objetividade impossível da antropologia parece ter esta
implicação: qualquer tentativa de falar dos outros é apenas uma projeção de nossas próprias
categorias e valores e, sendo assim, é melhor que fiquemos a estudar a nós mesmos,
explicitando nossos procedimentos epistemológicos. Além disso, os pós-modernos têm a
intenção (5) de conferir o estatuto de Sujeito àqueles que estudamos. A antropologia seria,
então, um exercício complexo de intersubjetividade. Contra a objetivação (subjetiva) do
Outro, proceda-se a uma subjetivação (objetiva) do Eu.
É claro que, em certa medida, Lévi-Strauss também reconhece o (algo óbvio) caráter
intersubjetivo da disciplina. No entanto, ao contrário da antropologia pós-moderna, Lévi-
Strauss não atribui nenhum valor transcendental à subjetividade. Que nossos ‘nativos’
sejam ‘sujeitos’, segundo nossa conceitualização, é algo evidente; pouco evidente – ou
mesmo improvável –, no entanto, é que eles assim se definam. Não se deve confundir: o
fato de que nosso conceito de sujeito implica necessariamente uma universalização
(extensiva) de seus atributos não significa que ele seja (intensivamente) universal. Neste
caso, o (Sujeito) universal é imanente ao (sujeito) particular.
Uma outra possível tomada de posição em relação ao combate metafísico contra o Sujeito
é, penso eu, a de Marilyn Strathern e Roy Wagner. Longe de salvar o Sujeito de uma morte
anunciada, trata-se aqui, ao contrário, de enterrá-lo de vez, sem honras e funeral. Wagner e
Strathern procuram fazer da antropologia uma atividade essencialmente relacional. Isto
quer dizer que é preciso dar um estatuto ontológico (e não apenas lógico) à relação.
Explico-me.
Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que o uso que faço de termos como 'lógico' e
'ontológico' é um tanto 'frouxo'. É provável que qualquer filósofo o reprovasse. De qualquer
modo, gostaria apenas de salientar que o tipo de antropologia relacional de Wagner e
Strahern não incide apenas sobre esquemas classificatórios, mas, sobretudo, sobre a
constituição intrinsicamente relacional de realidades. Não se trata de uma leitura do tipo
'totêmica' - ou sobre modos de pensar - mas de uma investigação sobre o ser, ou daquilo
sobre o que se pensa. De fato, acho que a grande diferença disto que chamei de
‘antropologia imanentista’ – rótulo que tenho empregue sem maiores definições, na
esperança de que o argumento o defina por si mesmo – em face da antropologia pós-
moderna é uma nova elaboração do conceito de relação.
Bob Scholte, num artigo em que procura explicitar suas diferenças em relação a Geertz – a
quem suas idéias estavam sendo associadas – critica a pouca importância que este autor deu
à práxis em sua análise dos símbolos (cf. Scholte, 1986). Scholte, marxista convicto, acusa
Geertz de ter enfatizado o aspecto semiótico da cultura – troca e circulação de símbolos – e
dado pouca ou nenhuma atenção ao aspecto político e sociológico – produção e
manutenção de símbolos. Diz Scholte (ibid. p. 11 – grifos meus):
“The results are ironic. Geertz wants to transcend an anthropology based exclusively on
observation and analysis and design one instead that engages in description and
interpretation. Yet by removing his concrete self from the interpretative process, he is bound
to remain a distant observer, one ‘condemned to see all practice as spectacle’ [citando
Bourdieu, 1972] and culture as a map or, if you will, a web. Neither Geertz the constituting
person nor his constituted fictions and the processes that created them are
epistemologically grounded or anthropologically situated.”
Note-se que é justamente sobre a explicitação das ‘ficções’ do etnógrafo que a antropologia
pós-moderna vai se debruçar. O curioso é que o próprio Geertz tinha comentado, em uma
nota de pé de página: “Self-consciousness about modes of representation (not to speak of
experiments with them) has been very lacking in anthropology” (cf. Geertz, 1973: 19).
Geertz foi, neste caso, vítima de seu próprio feitiço. A crítica de Scholte é interessante mas,
do meu ponto de vista, não pelos motivos que a impulsionaram.
A idéia básica (que, em Wagner, não é nem um pouco banal) é a de que os elementos
simbólicos só fazem sentido uns em relação aos outros. Eles dependem de um contexto de
associações e extensões. Este contexto forma os sentidos convencionais de um dado
símbolo. Assim, o conceito de ‘pai’, por exemplo, possui um amplo escopo de sentidos
convencionais e associações. Ele pode significar um laço biológico, um laço moral, um
termo religioso (Deus Pai) e muitos outros sentidos possíveis. Toda a vez que este termo é
utilizado em um contexto específico, ele ‘carrega’ suas outras associações contextuais. Ou
seja, trata-se de um processo constante de metaforização. Alguns sentidos de um dado
símbolo podem parecer mais literais do que outros (por exemplo, o ‘pai’ biológico parece
ser literal em relação ao ‘pai celestial’) mas, segundo Wagner, isso é apenas uma ilusão
resultante da ‘convenção’. Diz o autor: “Our symbols do not relate to an external ‘reality’ at
all; at most they refer to other symbolizations, wich we perceive as reality” (ibid. p. 42). A
teoria da simbolização de Wagner procura ampliar (ou metaforizar) o conceito de metáfora
para contextos semióticos não-verbais. O processo de simbolização é tanto de extensão
metafórica quanto de comunicação. As pessoas precisam participar de certos contextos
convencionais para que as associações sejam comunicadas.
O relacionalismo de Wagner decorre do uso simultâneo que ele faz de duas implicações do
nosso conceito de cultura. Em primeiro lugar, o antropólogo estuda as ‘culturas’, e a
‘Cultura’ em geral, através da cultura (que concebemos como o conjunto das capacidades
humanas). É a isso que Wagner chama de "objetividade relativa" (ibid. p. 2). O antropólogo
não transcende seu ‘objeto’, ele é parte dele. Em segundo lugar, nós assumimos que todas
as culturas se equivalem, o que Wagner chama de "relatividade cultural" (ibid. p. 3). A
combinação destas duas noções implica, por um lado, que os antropólogos também são
nativos e, por outro, já que cada ‘cultura’ se equivale, os nativos também são capazes de
realizar uma atividade análoga ao da antropologia. Ou seja, os antropólogos e os nativos
mantém uma relação de mesmo tipo em relação às suas próprias ‘culturas’ e às ‘culturas’
dos outros. De direito, os rótulos ‘antropólogo’ e ‘nativo’ são termos de uma relação.
Somente esta relação é que estabelece uma distribuição diferencial do que é ‘metáfora’ e do
que é ‘convencional’ do ponto de vista de cada termo (11). Trata-se, de fato, de um diálogo
no sentido literal, pois só existem dois lados nesta relação. O ‘nativo’ é nativo em relação à
convenção; o ‘antropólogo’ é antropólogo por sua capacidade de ‘invenção’, ou seja, de
extensão simbólica sobre sentidos diversos. Antropólogos e nativos são, neste sentido,
figuras desdobradas ou fractais.
Wagner, por sua vez, está preocupado com outros modos de relação, ou seja, com outras
formas de antropologia. Como conseqüência, ele não parte de nossa idéia convencional de
um sujeito pronto e constituído. Para que o objeto mude de estatuto é preciso que o mesmo
aconteça ao sujeito. Por isso, a objetividade relativa de Wagner pode ser entendida como
objetividade perspectiva. Ela é perspectiva pois não há sujeito constituído antes da relação
com o outro. O perspectivismo não é um simples relativismo. Como mostra Deleuze (1991:
40), não se trata de uma variação de verdade de acordo com um sujeito; trata-se, ao
contrário, da condição pela qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito. Trata-se de
afirmar a verdade da relação e não a relatividade do verdadeiro (ibid. p. 42). A questão é
que o outro não é mesmo um objeto diante do meu olhar; mas tampouco é um sujeito que
me transforma em objeto quando me olha. O problema desse jogo de perspectivas sartreano
é justamente o olhar. ‘Olhar’ não é uma boa imagem pois supõe algo que preexiste a esse
olhar, algum transcendente a ser olhado. Deleuze (Deleuze & Guattari,1991; Deleuze,
2000[1969]) faz esta crítica a Sartre e propõe o conceito de “Outrem”. Para Deleuze,
Outrem é uma condição de todo e qualquer objeto e todo e qualquer sujeito; é uma estrutura
logicamente anterior às posições de ‘eu’ e de ‘outro’. Outrem é a “expressão de um mundo
possível”. O ‘outro’ não possui um possível ponto de vista sobre o mundo; ele é o ponto de
vista de um mundo possível. Sujeitos e objetos particulares são apenas derivados parciais
da estrutura-Outrem. Trata-se, então, de uma espécie de ‘Outro transcendental’. De certa
forma, o fenômeno ‘cross-culture’, para parafrasear Marilyn Strathern, é anterior às culturas
que se cruzam (12) . Neste caso, é preciso pensar a cruz não como intersecção de duas retas
mas, ao contrário, as retas como desmembramentos (ou atualizações) da cruz. Um
segmento de reta, segundo a definição formal, é a menor distância entre dois pontos. Ou
seja, a reta depende do conceito de ponto para sua definição. No entanto, o que é o ponto
afinal? Sem querer mergulhar de cabeça numa ontogenia deste personagem conceitual, um
dos modos possíveis de concebê-lo é como a intersecção de duas retas – o centro da cruz.
Disto se conclui que, para que haja uma reta, é necessário ao menos uma outra. Uma reta já
contém internamente a potência do múltiplo. Ela é também uma espécie de divíduo (cf.
Strathern, 1988). A antropologia de Wagner não se ocupa das ‘retas’ mas da ‘cruz’, espaço
pré- ou proto-cultural que é o momento mesmo da invenção.
No diagrama da ‘invenção’, tanto o ‘antropólogo’ (A) quanto o ‘nativo’ (N) são inventores
de cultura. O ponto N onde a estrutura se inicia é, evidentemente, um recorte arbitrário
numa progressão virtual ao infinito. ‘Antropólogos’ e ‘nativos’ se desdobram, cada qual, em
antropólogos e nativos. É claro que, da mesma forma que eles são diferentes ‘nativos’, eles
não são ‘antropólogos’ da mesma maneira. É preciso reformular (ou metaforizar, no sentido
wagneriano) o conceito de antropologia para que ele dê conta desta diversidade de modos.
Pode-se dizer que fazer antropologia é comparar diferentes modos de (e teorias sobre a)
relação. Não é o caso, no entanto, de reintroduzir uma culturalização no seio mesmo desta
comparação – não se tratam de variações ‘culturais’ de teorias da relação. O ponto é que
não há uma antropologia superior às outras, posição transcendente de contemplação das
diferenças. As antropologias se encontram e se transformam pelo encontro. Elas não apenas
catalogam diferenças de relação; elas entram em relações diferentes. Não há uma versão
privilegiada de antropologia. A antropologia, como os mitos para Lévi-Strauss, é o conjunto
de suas versões.
Tanto em Roy Wagner quanto em Marilyn Strathern, penso eu, há uma ambição teórica de
amplo escopo. Nos dois casos, trata-se de reformular toda a antropologia a partir da crítica
de dois de seus conceitos mais caros – ‘cultura’ e ‘sociedade’ – de modo a conceder
primazia, não apenas lógica (como na lingüística estrutural), mas ontológica, à relação.
Strathern propõe o conceito de socialidade com esta intenção. A sociedade enquanto tal é
apenas um modo de socialidade. Sociedade é uma abstração (nossa) que está associada a
uma série contextual de associações (indivíduo, cultura, regra, controle etc.) e,
particularmente, a um certo modo de conceber as relações. Diz Strathern (cf. Ingold, 1996:
63):
“...we have relations between separate domains of study (relating society to other things),
between discrete societies (cross-societal relations) and finally between individual human
beings, where the external nature of relations is hipostasized in the concept of society
itself”
O problema para Strathern não é que ‘sociedade’ seja uma abstração, mas sim que ela seja
nossa abstração. O perigo é quando a ‘sociedade’ deixa de indicar uma certa matriz
relacional e passa a se opor aos indivíduos, encarados como entidades discretas que,
autonomamente constituídas, entram em relações (sociais). Ao falar em ‘socialidade’,
Strathern está enfatizando a matriz relacional que constitui a vida das pessoas. É, ao mesmo
tempo, um conceito mais modesto e mais extenso que o conceito de ‘sociedade’. É mais
modesto pois não parte de nenhuma grande dedução transcendental para sua definição, mas
apenas da dedução empírica de que as pessoas se relacionam, e que as relações constituem
a vida das pessoas. É mais extenso, por outro lado, por sua capacidade de metaforizar
outros sentidos (particularmente, os sentidos melanésios de ‘sociedade’) e de conceber a
relação como intrínseca, e não extrínseca, à constituição das pessoas. A questão é que não
adianta criticar o conceito de ‘sociedade’ como uma abstração se é apenas para concretizar
seu conceito correlato, o indivíduo. É por este motivo que Strathern considera o conceito
‘obsoleto’.
A antropologia deve, justamente, investir neste Nada, aqui entendido no mesmo sentido do
caos deleuzeano: “On se définit le chaos moins par son désordre que par la vitesse infinite
avec laquelle se dissipe toute forme qui s’y ébauche (...) C’est une vitesse infinite de
naissance et d’évanouissement” (cf. Deleuze & Guattari, 1991: 111-112). Este Nada é, pois,
anterior à ‘coisa concreta’ como imagem de pensamento. É por isso que a relação
(diferença) entre as ‘coisas’ não é externa, mas interna a elas: velocidade infinita de
nascimento e evanescimento! A relação entre as ‘culturas’, de certo modo, também é
interna a elas. Como mostra Wagner (1981[1975]: 27), o conceito antropológico de cultura
não possui referente: ele é fruto de uma série de metaforizações. A antropologia imanentista
seria uma investigação ontogenética da relação. Ela não parte das coisas para explicar as
relações, mas o contrário.
Simondon propõe uma verdadeira ontogênese, partindo não dos indivíduos já constituídos,
mas do processo de individuação. Ele sugere que se deva investigar a “zona obscura” (ibid.
p. 22) que encobre a operação de individuação. A experiência conceitual de Simondon é
supor que a individuação não produz apenas os indivíduos, que algo permanece não-
individuado. Em suma, ele pretende conhecer o indivíduo através da individuação e não o
contrário (ibid.). Utilizando metáforas termodinâmicas, Simondon sugere que o indivíduo é
apenas um momento da individuação – fase relativa e não estado absoluto. Há um potencial
energético que não foi atualizado, algo de pré-individual que permanece no interior do
próprio indivíduo. O ser concreto não é uma unidade auto-idêntica, ele conserva um certo
potencial de auto-diferença. Em vez de entidades discretas irredutíveis umas às outras, entre
as quais só há o vazio e, por isso, qualquer relação entre as duas se dá em seu exterior,
Simondon quer imaginar os seres como sendo mais do que unidades. Diz ele:
“Pour penser l’individuation il fault considérer l’être non pas comme substance, ou matière,
ou forme, mais comme système tendu, sursaturé, au-dessus du niveau de l’unité, ne
consistant pas seulement em lui-même, et ne pouvant pas être adéquatemant pensé au
moyen du principe du tiers exclu; l’être concret, ou être complet, c’est-à-dire l’être-
préindividuel, est un être qui est plus qu’une unité” (ibid. p. 23).
A proposta de Simondon serve bem à antropologia. Pois nossa disciplina tende, a seu modo,
a operar com as mesmas duas matrizes teóricas da metafísica: o monismo e o hilemorfismo.
Por um lado, nós usualmente pensamos em termos de unidades discretas (culturas,
sociedades, indivíduos) que entram em relações de composição ou decomposição. Por outro
lado, trabalhamos com a idéia de que nossa Cultura é o modelo para as ‘culturas’; nosso
Sujeito é o que faz dos outros também ‘sujeitos’. Enfim, nosso discurso é forma, os outros
são matéria (cf. Viveiros de Castro, 2002b: 115). Marilyn Strathern e Roy Wagner, de certa
forma, atacam justamente estas duas matrizes.
Strathern põe mais ênfase no problema monista. No entanto, sendo antropóloga, suas
questões não são primeiramente filosóficas (ou, se o são, não é apenas de nossa filosofia
que se trata). Ela parte de um pressuposto idealista, ou seja, as entidades concretas possuem
estatuto ontológico secundário diante das relações que as constituem. Estas entidades são
apenas ‘aparências’ ou, diria Gell (1998), ‘índices’ de relações. Strathern adota, segundo
Gell (1999: 32-33), um idealismo heurístico ou metodológico. Ela interpreta a imaginação
conceitual melanésia como sendo também idealista (ou relacional). Ou seja, ela faz de um
contraste interno à filosofia ocidental um modo de opor Ocidente e Melanésia. O mesmo
procedimento é feito em relação à oposição gift X commodity (cf. Strathern, 1988: 136).
Seu grande inimigo conceitual é aquilo que ela chama de “commodity thinking”, a idéia de
unidades discretas cuja natureza não é transformada pelas relações nas quais se envolvem.
Para Strathern (1988; 1991), esta imagem de pensamento cria problemas para a
conceitualização de relações. Já Roy Wagner critica, justamente, a idéia de que ‘nossa’
Cultura contém as demais ‘culturas’ (13) , e de que exista uma realidade externa aos
processos de simbolização convencional e diferenciantes, transcendente ao constante e
relativo jogo de figura e fundo entre a metáfora e o literal. Diz Wagner:
“...every time we make others part of a ‘reality’ that we alone invent, denying their
creativity by usurping the right to create, we use those people and their way of life and
make them subservient to ourselves” (Wagner, 1981[1975]: 16)
Para estes autores, de fato, a antropologia é um diálogo com – e não um “escrever sobre”
(cf. Clastres, 1968: 90) – outros modos de pensamento. É uma relação entre uma série de
outras relações, todas elas ‘eclipsadas’ ou ‘objetificadas’ nas posições de ‘antropólogo’ e
‘nativo’. Em se tratando de relação, não há possibilidade de que os termos não se
transformem com ela. Como disse antes, a antropologia, sendo o conjunto de suas versões,
participa de um grupo de transformações contínuas num mesmo plano de imanência. No
entanto, para que esta imanência não se transforme em identidade absoluta – para insistir
nas metáforas termodinâmicas – é preciso que nem toda a energia potencial se transforme
em calor (o que seria o equivalente a um estado de entropia ou ‘morte térmica’); ou seja, as
duas posições envolvidas no diálogo devem conter um potencial de transformação, de auto-
diferença molecular, anterior ao processo de molarização que resulta no ‘antropólogo’ e no
‘nativo’. Para utilizar uma nova metáfora-raiz (pois, como já vimos, é apenas de
metaforizações e ampliações conceituais que se trata), podemos pensar na relação
antropólogo-nativo à maneira da fórmula canônica de Lévi-Strauss (1996[1955]), ou, uma
imagem mais concreta, da faixa de Moebius representada por Escher. A faixa se dobra e,
com isso, instaura uma dimensão supranumerária (na expressão de Lévi-Strauss) em
relação à bi-dimensionalidade inicial. Em cada ponto da dobra há certos distanciamentos
provisórios, possibilitando a diferença de potencial que faz a faixa permanecer em seu
estado helicoidal. O fundamental é que a faixa se dobra. Ela não é dobrada por nenhuma
posição transcendente. Não há um espaço possível de totalização absoluta; apenas
distanciamentos relativos. A dimensão supranumerária é justamente o momento de
indiscernibilidade entre ‘antropólogo’ e ‘nativo’, não porque eles sejam idênticos mas, ao
contrário, porque cada um é interna e infinitamente distinto de si próprio antes que seja
distinto do outro .
Para Lévi-Strauss, o fato de que os gêmeos sejam ‘cross-sex’ é menos importante do que o
fato de que eles são ‘cross-sex’. Trata-se de mostrar que a diferença é logicamente anterior
à identidade. A suposta semelhança total entre os gêmeos constitui-se sobre um fundo de
diferença latente. Diz Lévi-Strauss: “...a semelhança não tem realidade em si mesma; ela é
apenas um caso particular da diferença, no qual a diferença tende a zero” (cf. Lévi-Strauss,
1990[1971]: 38). Para que os gêmeos, de fato, possam ser ‘same-sex’ é preciso que, antes, a
idéia de ‘sex’ já esteja presente. De certa forma, creio que a preocupação de Strathern é
também esta, a de pensar a diferença como encompassando a identidade. A diferença é
interna, e não externa, aos termos que ela diferencia.
Outro caso interessante do desenvolvimento de certas elaboraçãos teóricas que aparecem,
algo dispersas, na obra de Lévi-Strauss, é o caso do conceito de ‘obviação simbólica’ de
Wagner (1978; 1981[1975]; 1986). No ‘Finale’ de HN, Lévi-Strauss faz alguns comentários
sobre o que ele chama de “natureza diacrítica” do mito (cf. Lévi-Strauss, 1990[1971]: 645).
Lévi-Strauss refuta críticas de certos lingüistas que o acusaram de ter dado pouca atenção à
diversidade de línguas em que os mitos são contados, e de não ter levado em conta a
importância de um estudo filológico das versões. Lévi-Strauss se defende argumentando
que sua análise mostrou que o processo de criação do mito é essencialmente o da
contradição, no sentido literal da palavra. Contar (conter) uma história é sempre recontá-la
(conte redire), ou seja, é de algum modo contradizê-la (contredire) constantemente. E isto,
como ele já afirmara na Abertura de seu estudo, porque não há versão original do mito;
todo mito é, por natureza, uma tradução de um mito vindo de um povo vizinho ou de uma
outra versão do mesmo povo (ibid. p. 644). O mito é, em suma, um discurso que é só
tradução: “...sua essência repousa no fato irredutível da tradução pela e para a oposição”
(ibid. p. 645). Lévi-Strauss vai ainda mais longe. O mito, diz ele:
“não existe em uma língua e em uma cultura ou sub-cultura, mas no seu ponto de
articulação com outras línguas e outras culturas. Assim, um mito nunca pertence à sua
língua, ele antes representa um ângulo de visão sobre uma língua diferente, e o mitólogo
que o está apreendendo através de tradução não se sente em uma posição essencialmente
diferente da que os narradores ou ouvintes nativos ocupam” (ibid. – grifos no original)
Creio que aqui temos um formulação bem próxima a algumas das idéias de Wagner. Este
último quer mostrar, através do mesmo tipo de “idealismo metodológico” com que Gell
(1999: 32-33) caracteriza o trabalho de Strathern, que as noções de ‘realidade’ x
‘construção’, ou de ‘inato’ x ‘artificial’, são idéias; elas não repousam, por assim dizer, na
natureza das coisas. O homem não lida com a natureza, ou com um real absoluto. Ele lida,
diz Wagner, “with semiotic constructions that are experienced as, or, if you will, confused
within reality or the world, and he deals with these trough the medium of other semiotic
constructions” (cf. Wagner, 1978: 21). Wagner introduz o contraste entre ‘simbolização’
diferencial’ e ‘simbolização convencional’ para mostrar que os sentidos literal e metafórico
dos símbolos são obtidos através do contraste entre estes dois modos de simbolização. Cada
modo, por assim dizer, funciona como o ‘referente’ ou o ‘objeto’ para o outro (ibid. p. 26).
Simbolização convencional é aquela que estabelece um contraste explícito entre o símbolo
e seu referente. A convenção, como já vimos anteriormente, pressupõe e produz um
contexto de associações; este contexto é distinguido do mundo ou da ‘realidade’, que
funciona como fonte referencial para os símbolos convencionais. A simbolização
diferenciante opera através de ‘tropos’ ou metáforas; ou seja, ela, ao mesmo tempo em que
desloca os sentidos convencionais de dado símbolo, introduz um ‘novo’ referente. A
metáfora, diz Wagner, é um “symbol that stands for itself” (1978: 25; 1981[1975]: 43;
1986). Ou seja, ela é, de certa forma, uma metáfora sobre metáfora, um meta-tropo. É a isso
que Wagner dá o nome de ‘obviação’. Ele descreve este conceito como “the process by
wich the artificial comes to metaphorize the innate (and the reverse process)” (cf. Wagner,
1978: 31). Enfim, a metáfora e a convenção funcionam como figura e fundo uma para a
outra. A metáfora precisa dos sentidos convencionais, da impressão de que há um ‘dado’ ou
‘referente’ último a sustentar o contexto simbólico; por outro lado, a convenção necessita
dos processos de deslocamento que produz a simbolização diferenciante, pois estes tendem
a ‘decantar’ ou ‘cristalizar’ os sentidos convencionais dos símbolos, sugerindo a existência
de uma ‘realidade’ referencial. A obviação é o processo pelo qual o artificial é criado a
partir do inato e vice-versa (ibid.); ela é “the discourse or invention that speaks between the
lines of a given reality” (ibid. p. 34 – grifos meus). De certa forma, o mito, na formulação
de Lévi-Strauss citada logo acima, também opera “between the lines”.
Lévi-Strauss talvez tenha sido um dos primeiros a postular uma imanência radical entre o
discurso antropológico e o discurso nativo. Na Abertura das Mitológicas, ele afirma que
aquele livro é o mito da mitologia, e que “tanto quanto os outros códigos, este não é
inventado ou recebido de fora. É imanente à própria mitologia, onde apenas o descobrimos”
(cf. Lévi-Strauss, 2004[1964]: 31). Mais à frente ele continua:
Lévi-Strauss, no entanto, não leva esta sua sugestão para fora dos limites do seu ‘objeto’, o
mito. Na verdade, se há algo de complexo no estruturalismo é saber exatamente em que
ponto o discurso do analista se aproxima e se confunde com o do analisado ou quando eles
se distanciam consideravelmente. Lévi-Strauss é extremamente equívoco em relação a este
aspecto. Creio que isto se deve a um dinamismo interno ao seu pensamento, dinamismo que
se sustenta em relações diferenciais sobre o seguinte tripé: mito-filosofia-ciência. Por
vezes, Lévi-Strauss se une aos mitos contra os filósofos. Assim é, por exemplo, no final de
A Oleira Ciumenta, onde o autor argumenta que os Jívaro não precisaram esperar por Freud
para elaborar a teoria de Totem e Tabu. Procedimento semelhante é feito em relação a
Sartre, no final de O Pensamento Selvagem. Em outros momentos, Lévi-Strauss equipara
os selvagens aos filósofos, contrapondo-os à ciência. A associação do ‘pensamento
selvagem’ à filosofia ocidental pode, de fato, significar duas coisas: ou os ‘selvagens’
possuem um pensamento cujo estatuto é elevado à condição de filosófico; ou, ao contrário,
são os filósofos que pensam de forma selvagem; entenda-se, eles pensam de forma
selvagem em relação ao estruturalismo, aqui servindo como espécie de embaixador da
ciência. E aqui também se percebe toda a ambigüidade de uma noção como a de “lógica das
qualidades sensíveis” (cf. Lévi-Strauss, 2004[1964]: 19). É a lógica que deve incorporar as
qualidades sensíveis (ou secundárias) como mais um de seus domínios de investigação ou,
ao contrário, são as qualidades sensíveis que possuem uma ‘lógica’ própria? Lévi-Strauss
vacila entre a concepção de que o pensamento selvagem é uma espécie de ciência (cf. Lévi-
Strauss, 1997 [1962]) e a de que ele “não nos informa nada sobre a ordem do mundo, a
natureza do real, ou sobre a origem do homem e seu destino” (cf. Lévi-Strauss, 1990[1971]:
639) .
Mitológicas é o mito da mitologia, ou seja, é uma obra que mantém uma relação de
semelhança com seu objeto. No entanto, na Introdução de História de Lince, Lévi-Strauss
retrata curiosamente sua relação com o mito na forma de uma disputa, como numa partida
de xadrez. Os mitos agora são adversários: “Trata-se de saber qual das duas estratégias – a
deles [mitos] ou a dele [analista] – vai vencer” (cf. Lévi-Strauss, 1993[1991]: 9). Os mitos,
que eram ‘paralelos’, tornam-se ‘cruzados’ (ou ‘afins’). Os mitos ameríndios, afinal, são o
Mesmo do pensamento estruturalista ou são uma espécie de Outro? Este problema é
significativo em seu tratamento do ‘dualismo em perpétuo desequilíbrio’. No artigo sobre
as organizações dualistas, ele concedia ao dualismo instável uma espécie de universalidade.
A conclusão a que se pode chegar lendo este texto de 1956 é a de que não há dualismo
estável ou simétrico; todo dualismo produz uma assimetria inevitável, pelo fato mesmo de
que o divisor está contido num dos lados da divisão. Ou seja, para resolver uma assimetria
inicial, o pensamento institui outra divisão assimétrica e assim sucessivamente. Em vários
momentos, Lévi-Strauss descreve este processo como característico do pensamento
humano:
Já em História de Lince, ele atribui especificamente aos ameríndios esta maneira particular
de conceber o dualismo. O último capítulo do livro chama-se, justamente, “A Ideologia
Bibartida dos Ameríndios”, numa alusão ao “A Ideologia Tripartite dos povos Indo-
Europeus”, de Georges Dumézil. Neste capítulo, ele responde a Anthony Seeger:
No entanto, este tema do dualismo em desequilíbrio perpétuo pode mesmo ser percebido,
encoberto sob outras formas, ou em outras claves, como um tema central do estruturalismo
como um todo. A expressão ‘dualismo em perpétuo desequilíbrio’ aparece primeiramente,
talvez, em As Estruturas Elementares do Parentesco, no contexto da discussão sobre os
modos de troca direta ou ‘paralela’ (casamento matrilateral) – onde os casamentos ocorrem
entre membros da mesma geração – e ‘oblíqua’ (casamento patrilateral), onde o casamento
entre membros de uma mesma geração é compensado pelo casamento entre membros de
gerações sucessivas. O exemplo típico desta última modalidade de troca de mulheres é o
casamento avuncular, no qual um homem dá sua irmã para outro homem e recebe a filha
deste homem com sua irmã, ou seja, sua sobrinha, em troca. Lévi-Strauss comentava: “a
perspectiva oblíqua acarreta um perpétuo desequilíbrio, pois cada geração tem que
especular sobre a geração seguinte...” (cf. Lévi-Strauss, 1982[1967]: 490). Depois disso,
como já vimos, a expressão reaparece no texto sobre as organizações dualistas e, por
último, em História de Lince, agora no plano da Mitologia (cf. Viveiros de Castro, 2002)
(15) .
Em que consiste este dualismo, afinal? Ele é uma das manifestações, creio eu, da teoria da
diferença no pensamento de Lévi-Strauss. Assim como as metades numa divisão diametral,
para Lévi-Strauss, jamais são equivalentes, assim também os gêmeos não podem ser
idênticos. Esta assimetria constitutiva nada mais é, suponho, que uma das manifestações da
problemática lévi-straussiana do contínuo e do discreto. Não há divisão perfeita pois
sempre pode-se introduzir outro ponto de corte em seu interior. O dualismo concêntrico,
como o dualismo em desequilíbrio perpétuo, são imagens conceituais complexas. Eles
constituem uma dualidade que tende a um triadismo. Um dos pólos da dualidade pode ser
constantemente desmembrado. Assim também, num espaço contínuo, sempre se pode
introduzir um novo ponto entre dois outros pontos. De certa forma, pois, o estruturalismo
‘pensa’ como o mito. Mas, se é assim, se o pensamento de Lévi-Strauss é uma versão (no
sentido estruturalista) do pensamento ameríndio, resta saber qual ‘código’ o estruturalismo
acrescenta à mitologia ameríndia.
“Na medida em que consiste em tornar explícito um sistema de relações que as outras
variantes apenas incorporavam, ela [a análise estrutural] as integra a si própria e integra a si
própria a elas em um novo plano, onde a fusão definitiva do conteúdo e da forma pode
tomar lugar (...) A estrutura do mito, tendo sido revelada à si própria, encerra a série de seus
possíveis desenvolvimentos” (cf. Lévi-Strauss, 1990[1971]: 628 – grifos meus).
Iniciei este texto com a palavra ‘Ser’, na intenção deliberada de fazer uma brincadeira sobre
a obra de Lévi-Strauss. Todos hão de recordar as páginas conclusivas do Finale do Homem
Nu, último volume de sua monumental Mitológicas. Lévi-Strauss encerra em tom
pessimista, tecendo comentários sobre a impossibilidade do pensamento acompanhar o
vivido e sobre o fim da experiência humana sobre a Terra. No belo estilo que lhe é
característico, ele finaliza a obra justamente com a palavra ‘nada’. Faço aqui uma meta-
leitura desta passagem final, interpretando-a como um questionamento sobre o futuro da
antropologia pós-estruturalismo. O que será que nos resta fazer depois de uma obra de
tamanha dimensão? Nada? O estruturalismo foi, de fato, como diria Lyotard, “o fim das
grandes narrativas”?
Estas perguntas são, evidentemente, alegóricas. Não é preciso fazer nenhum drama a
respeito disso. O próprio Lévi-Strauss escreveu outros livros depois de Homem Nu. E, de
um jeito ou de outro, é evidente que antropologia continua sua trajetória, a despeito das
inúmeras ‘crises’ (cf. Goldman, 1994: capítulo 1) que parecem constituir sua existência.
Mas gostaria de encarar este ‘Nada’ como já foi dito anteriormente: como um virtual. Creio
que Wagner e Strathern foram dois exemplos de antropólogos que conseguiram atualizar
criativamente este espaço de virtualidade que é o ‘Nada’ pós-lévi-straussiano. Em certo
sentido, creio que a antropologia como um todo pode ser vista desta forma. Para aqueles
que questionam uma antropologia tão fundamental (no sentido literal da palavra) de autores
como Wagner e Strathern, alegando que a disciplina não pode partir do zero - “Onde está o
espírito humano?”, “Vocês não acreditam na natureza?”, “O que fazer com a sociedade?”
(16) -, eu responderia: de fato, reprèndre à zero (cf. Jorion, 1986) não basta. Podemos
recuar ainda mais. A antropologia não deveria partir do zero. Ela deveria partir do Nada...
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[editar] Notas
(3) Houve uma série de críticas do tipo: “Como pode Evans-Pritchard falar dos Nuer em
geral? Por que ‘Os Nuer’ e não ‘Os Nuer em 1936’?” (cf. Ardener, 1985: 60). Se levarmos
esta crítica adiante, teríamos que insistir perguntando: “Por que ‘Os Nuer em 1936’, e não
‘Os Nuer em 1936, no dia 25 de outubro, às 14: 23h’?” ou ainda “Por que ‘Os Nuer’ em vez
de “As mulheres Nuer com menos de 20 anos’?”. Não vejo por quais motivos este tipo de
delimitação seria menos abstrata do que, simplesmente, “Os Nuer”.
(4) Cf. Strathern (1987: 269): “To construct past works as quasi-intentional literary games
is the new ethnocentrism”.
(5) “Car l’anthropologie, comme l’enfer, a toujours été pavée de bonnes intentions” (cf.
Jorion, 1986: 301).
(6) É preciso deixar claro que Geertz não substancializa o nativo. Ele entende o nativo
como uma posição (ocupada também, evidentemente, pelo antropólogo em relação à sua
cultura).
(8) Um acontecimento importante que contribui para o desenrolar destas críticas foi,
certamente, a publicação, em 1967, dos diários de campo de Malinowski. Seja por motivos
éticos ou epistemológicos, o evento sacudiu o cenário antropológico da época (cf. Firth,
1997[1988]; Geertz, 1997[1983]: capítulo 3).
(9) “The purpose of comparison disappears: all that exists is the internal referencing of one
anthropological text to another, and there the permutations are endless” (cf. Strathern, 1991:
13). Diante disso, poder-se-ia perguntar: para quem aprecia tanto o autoconhecimento, será
a antropologia a melhor arte a seguir?
(10) “If invention is indeed the most crucial aspect of our understanding of other cultures,
then this must also be of central significance in the way in wich all cultures operate” (cf.
Wagner, 1981[1975]: 35).
(12) O antropólogo não estuda em aldeias (tribos, cidades, vizinhanças etc.) como pretendia
Geertz (1973: 22). Ele estuda entre aldeias. Este ‘entre’, é escusado dizer, não é uma
localização empírica mas uma categoria transcendental.
(14) Ver, por exemplo, esta passagem em A Origem das Maneiras à Mesa: “Ainda quando a
estrutura muda ou se enriquece para superar um desequilíbrio, nunca é senão ao preço de
um novo desequilíbrio que se revela em outro plano. Verificamos uma vez mais que a
estrutura deve a uma inelutável dissimetria seu poder de engendrar o mito, que não é outra
coisa que um esforço para corrigir ou dissimular esta dissimetria constitutiva” (cf. Lévi-
Strauss, 1970[1968]: 427 – grifos meus).
(15) Não deixa de ser curioso que o casamento avuncular fosse típico entre os Tupinambá,
os mesmos índios que servirão de modelo (através da saga do demiurgo Maíra-Pochy) para
o famoso diagrama do dualismo em desequilíbrio perpétuo em História de Lince (cf. Lévi-
Strauss, 1993[1991]: 55; Viveiros de Castro, 2002: 438).
(16) Lembro-me da imortal resposta de Clastres a Pierre Birnbaum: "É uma provocação. E
Marx, então? E Durkheim? E nós? Não se pode mais digerir tranqüilamente? Não podemos
mais continuar contando nossas historinhas? Ah, não! Isso não ficará assim! Em suma, eis
aí um caso interessante do que a psicanálise chama resistência. Percebe-se muito bem a quê
resistem todos esses doutores, e que a terapêutica será longa." (cf. Clastres, 2004[1977]:
206).
---
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http://amazone.wikia.com/wiki/Manifesto_do_Nada
Em 04/05/08