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Antes do estopim da segunda grande guerra, o direito internacional era administrado sob
normas estabelecidas no século XVII, mais precisamente a partir dos tratados de paz de Westfália, os
quais, além de encerrarem a guerra dos trinta anos, formulou o reconhecimento, no plano
internacional, “o princípio da igualdade formal dos Estados europeus e a exclusão de qualquer outro
poder a eles superior”1, iniciando então uma nova era do Direito Internacional Público.
Com efeito, não havia uma sociedade supranacional constituída e enraizada antes da Paz em
Westfália, sendo esta um marco na história do Direito Internacional Público, e como é pontuado por
Mazzuoli como o “momento em que se desprenderam as regras fundamentais que passaram a
presidir as relações entre os Estados europeus, reconhecendo ao princípio da igualdade absoluta dos
Estados o caráter de regra internacional fundamental.”2
Ocorre que, no século XX, devido aos acontecimentos da segunda guerra mundial, e
posteriormente a evolução do processo da globalização, muitos conceitos clássicos ou foram
relativizados ou receberam novas interpretações, especialmente aqueles associados ao Estado. Esses
em especial sofreram modificações a partir do advento dos processos de integração, com a formação
de blocos econômicos, forçando uma revisão dos fundamentos da ordem de Westfalia.
A partir de então, valores como a dignidade da pessoa humana, a busca pela paz e a
democracia se mostraram como fatores essenciais para a presença dos direitos humanos tanto no
plano interno como externo do Estado. Ao revés, institutos como o da soberania estatal sofreram
gradativamente com o fenômeno da interação comunitária internacional entre os Estados, resultando,
assim, em uma limitação da soberania, diminuindo seus alcances.
1 MIRANDA, Jorge. Constituição e Democracia. Lisboa: Livraria Petrony. 1976. pp. 10.
2 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2013. pp. 66.
3 Idib., pp. 67
como um possível referencial para uma governança global. Finalmente, as conclusões partem para
uma observação de que aplicando os princípios que democracia garante, em um plano ideal, discute-
se a possibilidade de um constitucionalismo global, demonstrando os desafios para tal. Na
oportunidade, observar-se-á a exposição de uma teoria provinda do constitucionalismo, a qual não
busca criar um documento ou Carta superior que governe os Estados, porém busca estabelecer
premissas para um diálogo entre ordens jurídicas diferentes, mas soberanas, qual seja, o
transconstitucionalismo.
Ao longo dos séculos, filósofos, cientistas políticos, juristas e até mesmo sociólogos vem
estudando o fenômeno da democracia e seus impactos. Acredita-se que o termo foi criado na Grécia
Clássica – Provavelmente pelos atenienses – derivando “demos” de povo e “kratos” de governar,
onde praticava-se uma ativa participação dos cidadãos no governo4.
Mas o que é de fato Democracia? Robert A. Dahl 5 acredita que democracia é um sistema de
governo que respeita um princípio elementar: todos os membros de uma associação democrática
deverão ser tratados como se estivessem igualmente qualificados para participar do processo de
tomar decisões sobre as políticas que a associação seguirá. Dessa forma, sejam quais forem as outras
questões (que são muitas), no governo desta associação todos os membros serão considerados
politicamente iguais.
Ademais, a democracia, sendo um sistema de direitos, não influencia somente a área política
em que se insere, mas se estende à cultura do local onde se estabeleceu 6. O que disse Péricles, o
estadista grego, sobre a democracia ateniense em 431 a.C. aplica-se igualmente a democracia
moderna e sua praticidade: “A liberdade que gozamos em nosso governo também se estende à vida
comum”.
4 DAHL, Robert A. Sobre a Democracia.; tradução de Beatriz Sidou. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001,
2016, pp. 21.
5 Ibid., pp.49.
6 DAHL, Robert A., op. cit., loc. cit.
7 DEWEY, John. The early works: 1882-1898. v. 1. Ed. Jo Ann Boydson. Carbondale; Edwardsville: Southern
Illinois University Press, 1969, pp. 219.
8 DEWEY, John. Democracy and educational administration. In: DEWEY, John. The later works: 1935-1937. v. 11. Ed.
Jo Ann Boydson. Carbondale; Edwardsville: Southern Illinois University Press, 1987. pp. 240.
Apesar de ser considerado o sistema mais viável no panorama recente, a democracia ideal é
algo quase inatingível, dado os inúmeros limites que o mundo real nos impõe 9, além de ser um
sistema jovem, vindo a se estabelecer e difundir a aplicação de seus princípios, empiricamente, no
século XX. Dessa maneira, por exigir participação mais ativa de seus membros entre outras
características, é alvo de várias críticas, entre estas Rousseau já afirmou em seu texto Do contrato
Social quando disse da democracia:
Em sentido estrito, jamais pôde existir democracia verdadeira, e jamais existirá. É contra
a ordem natural que o grande número governe e o pequeno número seja governado. Não
se pode imaginar que o povo permaneça incessantemente reunido para participar dos
negócios públicos, e vemos facilmente que não se poderia estabelecer para isso
comissões sem que a forma de administração se modifique10.
Ainda nessa esteira, o filósofo jurista contemporâneo Hans-Hermann Hope, em seu Livro
‘Democracia, O Deus Que Falhou’ se inclina de forma pessimista quanto a instituição da democracia
nos Estados modernos, vez que, de forma incisiva, declara ter sido um erro fatal a adoção de tal
sistema, utilizando como exemplo a democracia instituída nos Estados Unidos da América:
[…] em vez de um rei que considerava a América colonial como a sua propriedade
privada e os colonizadores como os seus inquilinos, ela colocou zeladores temporários e
intercambiáveis no comando do monopólio da justiça e da proteção do país. Esses
zeladores não detêm a propriedade do país; porém, enquanto eles estiverem no cargo, eles
podem fazer uso dele e dos seus residentes em favor de si próprios e dos seus protegidos.
A teoria econômica elementar prevê que essa configuração institucional não eliminará a
tendência perpetrada pelo autointeresse a uma crescente exploração do monopólio da lei
e da ordem. Pelo contrário: esse arcabouço institucional só fará com que a exploração do
monopólio seja menos calculada, mais imediatista (visão de curto prazo) e
desperdiçadora11.
11 HOPPE, Hans-Hermann. Democracia: o Deus que falhou. Tradução de Marcelo Werlang de Assis. - São Paulo :
Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014. pp. 312.
12 DAHL, Robert A., op. cit., pp. 74-75.
Apesar das extensas críticas ao sistema democrático, fato é que a democracia enfrentou e
enfrenta diversos desafios, se moldando e adequando com a constante evolução global.
Outro fato interessante que muito se discute sobre o tema proposto são as variações que a
democracia pode apresentar. Ao longo de seu desenvolvimento (pleno) e com a constante evolução
da sociedade internacional e a instituição de inúmeros Estados, é notável, nestes, a diversidade do
regime democrático, firmado por institutos que permitem uma maior ou menor participação popular
no exercício do poder.
Não é esclarecido por Bobbio, em seu conceito de democracia, o que são leis fundamentais,
mas presume-se que se trata essencialmente dos direitos fundamentais de primeira geração, relativos
às garantias que o cidadão possui contra ações arbitrárias e despóticas do Estado ou contra outros
cidadãos, como o direito à vida, à igualdade, à liberdade de expressão, à liberdade de locomoção, à
segurança, à privacidade, ao sigilo de correspondência, ao devido processo legal, à ampla defesa, à
legalidade penal, entre outros que abarcam garantias individuais14.
13 BOBBIO, Norberto. Democracia. Norberto Bobbio: o filósofo e a política: antologia. Trad. César Benjamin (palavras
preliminares e partes I a V) e Vera Ribeiro (partes VI a IX). Organização e apresentação José Fernandez Santillán.
Prefácio Norberto Bobbio. Rio de janeiro, 2003. pp. 233.
14 DA SILVA, Fernando Fernandes, Direito Internacional e consolidação democrática. Revista Brasileira de Direito
Constitucional, N. 3. [S.L.] – p. 3. jan./jun. 2004.
15 Com a Carta Magna Inglesa surge o que se convencionou chamar de “pactum subjectionis”, que nada mais é do que
um acordo para se delimitar as bases e limites do arbítrio dos governantes.
16 A adoção do Bill of Rights se deu após a Revolução Gloriosa, momento em que os poderes do monarca foram
limitados. Tal instrumento teve o condão de restringir os poderes do rei (a monarquia havia se restabelecida no ano de
1.660), uma vez que a este não seria possível legislar de forma autônoma ou mesmo convocar o Exército ou impor
tributos sem a autorização do Parlamento. Consagrou-se a supremacia do Parlamento, impondo-se, após a abdicação do
rei Jaime II, aos novos monarcas Guilherme III e Maria II poderes reais limitados pela declaração de direitos. Estar-se-á
diante da monarquia constitucional. Ressalte-se que a revolução gloriosa fez triunfar o liberalismo sobre o absolutismo.
GADOTTI, Giselle Araujo. Do constitucionalismo ao transconstitucionalismo Faculdade de Direito. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 2012. pp. 28.
17 A Declaração da Virgínia tem em si uma preocupação com a positivação dos direitos tidos como inalienáveis,
imprescritíveis, invioláveis de todos os homens, ou seja, direitos naturais inerentes à pessoa humana, dando-lhes o caráter
de normas jurídicas obrigatórias, cuja violação não ficaria infensa ao amparo judicial. GADOTTI, Giselle Araujo., op.
cit., pp. 81.
18 A Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen é considerada o grande marco da revolução francesa,
estabelecendo a separação de poderes e poder constituinte, bem como empregou o caráter de universalidade dos direitos
fundamentais, haja vista tratar do gênero humano e não somente de algumas camadas privilegiadas da sociedade.
GADOTTI, Giselle Araujo., op. cit., pp. 83.
Dessa maneira, como pode se observar do conceito de Democracia de Bobbio, os direitos
fundamentais representam o sustentáculo primordial deste sistema, pois garante aos seus cidadãos
uma segurança na resolução de conflitos de forma pacífica.
Um fato notável na história recente é a difusão global dos valores democráticos a partir do
pós-guerra, isso se deve a crescente expansão do direito internacional do direito Humano desde a
metade do século XX. Acerca disto, se mostra necessário tecer comentários a respeito de sua
evolução histórica, difusão e efeitos.
Segundo Sidney Guerra20, vale anotar que devido o surgimento da ONU e a constante
preocupação que assolava os países em decorrência da grande guerra, foi possível a instauração da
Declaração de Direitos Humanos em 1948, inaugurando um novo momento em relação aos direitos
humanos na medida em que o referido documento internacional proclama direitos para todas as
pessoas, independentemente de sexo, cor, raça, idioma, religião, opinião etc.
De fato, em decorrência dos cruéis eventos ocorridos na Segunda Guerra Mundial imperou-se
no cenário mundial uma profunda alteração no que tange as relações internacionais, tendo como
resultado o nascimento do direito internacional do Direito Humano, este que tratou de estar
intimamente ligado ao tema da subjetividade internacional21. A esse respeito, leciona Sidney Guerra:
Por essa razão o Direito Internacional dos Direitos Humanos vai construir os seus alicerces
com base em princípios distintos dos que imperam no Direito Internacional clássico, que
desconhecia o indivíduo como sujeito de direito internacional, o que vai trazer grandes
repercussões em sua autonomia dogmática22.
[...] insurge o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao sustentar que o ser humano é
sujeito tanto de direito interno quanto de direito internacional, dotado em ambos de
personalidade e capacidade jurídicas próprias. (...) o primado é sempre de norma de origem
internacional ou interna que melhor proteja os direitos humanos (pro homine23); o Direito
Internacional dos Direitos Humanos efetivamente consagra o critério da primazia da norma
mais favorável às vítimas24.
19 GUERRA, Sidney. Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva. 2011. pp. 73-74.
20 Ibid., pp. 75.
21 Ibid., pp. 76-77.
22 Ibid., pp. 79.
23 Garante o ser humano a aplicação da norma que, no caso concreto, melhor o proteja, levando em conta a força
expansiva dos direitos humanos, o respeito do conteúdo essencial desses direitos e a ponderação de bens e valores. V.
Rivera Santivañes, José Antonio. Tribunal Constitucional y protección de los derechos humanos. Sucre: Tribunal
Constitucional, 2004, p. 14-15.
24 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre:
Sérgio Fabris, 1997. v. 1, p. 401-402
Sobre essa ótica que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada como ideal
comum a ser alcançado por todos os povos e todas as nações, com o fim de estabelecer a manutenção
da paz e a segurança internacional, bem como fomentar as relações amistosas entre as nações
baseadas no respeito na igualdade de direitos e autodeterminação dos povos, ensejando o
desenvolvimento desses direitos e liberdades por meio de medidas progressivas na ordem nacional e
internacional, o seu reconhecimento e sua aplicação, tanto entre as populações dos próprios Estados-
membros como entre as dos territórios colocados sob sua jurisdição25.
Vale ressaltar que, conforme Mazzuoli26 a Declaração Universal tem servido de paradigma e
de referencial ético para a conclusão dos inúmeros tratados internacionais de direitos humanos que se
conhece hoje, o que desencadeou, portanto, a criação de tratados referentes aos direitos humanos.
Alguns autores chegam até mesmo a considerar que os Estados têm uma obrigação moral de
implementar os direitos previstos na Declaração Universal nas suas respectivas legislações internas,
tal a importância que atribuem à Declaração 27. Além do mais, não se pode esquecer que a Declaração
Universal tem servido como fonte para decisões judiciárias nacionais, conforme pode-se observar em
ementa proferida pelo Tribunal do Rio de Janeiro:
Precedente Citado: STJ AgRg no Ag 1392493/RJ, Rel. Min. Castro Meira, julgado em
16/06/2011 e AgRg no REsp 1160643/RN, Rel. Min. Benedito Gonçal ves, julgado em
23/11/2010 (negritei).
Tal fato, como o acima exarado, corrobora com a afirmação de que o fenômeno da inter-
relação entre Direitos Humanos e Democracia se consubstancia de forma orgânica, devido a proteção
que ambos buscam garantir. Dahl28 diz que instituições que proporcionem e protejam oportunidades e
direitos democráticos essenciais são necessárias à democracia, não simplesmente na qualidade de
condição logicamente necessária, mas de condição empiricamente necessária para a democracia
existir. Nesse contexto, o autor deixa claro a necessidade de Instituições de cunho democrático, ou
seja, que propaguem e defendam os ideais democráticos.
Insta trazer à baila que a influência no cenário internacional, devido a celebração de tratados
de direitos humanos, alavancou a instituição de princípios que enaltecessem a adoção de normas
específicas de promoção dos valores democráticos. Os exemplos mais relevantes são: a concepção do
princípio da Autodeterminação dos povos no âmbito do Sistema das Nações Unidas, e Cláusulas
Democráticas no âmbito dos processos de integração efetivado pela União Europeia e Mercosul.
Neste contexto, o princípio da autodeterminação foi estruturado para servir como um meio de
interpretação jurídica para determinar a soberania popular no âmbito externo, ou seja, a
independência de um povo em relação a outro, baseando-se, dessa maneira, em ideais democráticos.
Tais cláusulas são regras que obrigam os Estados signatários a adotarem e respeitarem
princípios democráticos e de direitos humanos consagrados em vários tratados internacionais
e nas suas próprias Constituições, sob pena de sofrerem restrições em relação aos direitos
que possuem nos seus respectivos espaços institucionais comunitários. Estas cláusulas
28 DAHL, Robert A. Sobre a Democracia.; tradução de Beatriz Sidou. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001,
2016, pp. 61-64.
29 IKEDA, Maria Angélica. O princípio da autodeterminação dos povos: o nacionalismo e a autodeterminação das
minorias nacionais no direito internacional. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 2001. pp. 110.
30 DA SILVA, Fernando Fernandes., op. cit., pp. 04.
revelam que os processos de integração patrocinados pela União Européia e pelo Mercosul
não são exclusivamente de caráter econômico, mas, também, de caráter político, social e
cultural. Além disso, promovem a afirmação de valores considerados universais a exemplo
da democracia e dos direitos humanos31.
Chris Thornhill33, admite que os instrumentos centrais ao sistema jurídico global estabelecem
descrições prescritivas para democracia como um sistema ideal de autoridade pública e muitas
organizações internacionais, amparadas pelo direito internacional, reivindicando para promover
democracia. Entretanto, o mesmo autor afirma que a democracia enfrenta grandes desafios para que
esta se estabeleça, com a força necessária, como uma ordem universal:
O que pode ser definido com alguma convicção, no entanto, é que a expansão global da
democracia e a ascensão do direito internacional como um sistema global são processos
intimamente conectados. Embora não faça referência específica a um direito à democracia
permanente e exigível, o direito internacional certamente cria pré-condições propícias ao
desenvolvimento de tal direito e promove diretamente a construção de instituições
democráticas35.
Dessa maneira, muitos direitos básicos estabelecidos no contexto global não podem ser facilmente
exercidos fora de um cenário democrático.
O período que se evidencia esse progresso denota-se no final da década de 80, quando a
democracia começou a tomar seus passos para atingir uma forma de norma global, o que,
providencialmente, coincide com a materialização real de um regime internacional geral de direitos
humanos.
Devido a isso, pode se observar que tal coincidência (democracia nacional e direito
internacional) é notória em diversos pontos, entre eles, nota-se que o constante avanço da
integralização internacional entre Estados facilitou o diálogo como inter-judicial, proporcionando às
novas democracias uma proteção dos direitos humanos no âmbito interno. Adicionalmente, conforme
suscita o supramencionado autor37, pondera-se que o efeito progressista do direito internacional dos
direitos humanos impulsionou a inclusão plena da democracia em Estados que a utilizavam de forma
parcial38 ou intermitente39.
De fato, a promoção global dos direitos humanos, incluindo o direito à democracia, tende a
conduzir, de forma ampla, um ideal igualitário no ceio da sociedade nacional e um diálogo direito
com as normas globais.
Como bem já citado, os impactos causados pela segunda grande guerra motivaram a
necessidade da criação de organizações de apoio internacional com um viés mais humanitário, como
maior exemplo temos a Organização das Nações Unidas de 1945 e desde então busca-se uma justiça
globalizada a qual poderia ser institucionalizada por uma norma superior supranacional, uma
constituição global.
Das ideias até então citadas, o constitucionalismo global se adequa como idealização da
instituição de preceitos democráticos de maneira mais incisiva no plano internacional. O
constitucionalismo global provém de uma evolução do constitucionalismo contemporâneo o qual
“pode ser observado através da evolução de um modelo de conexão externa entre direitos e
princípios constitucionais e ordem – operando como limites negativos à ação do Estado limitando a
soberania”41.
Dessa maneira, para se discuti constitucionalismo global se mostra necessário antemão tratar
da nova concepção de soberania que vem traçando novos rumos diante da evolução internacional e a
interação dos Estados com as Organizações de direito Internacional.
Nessa toada, pode ser traduzido como o próprio “sinónimo do Estado” 43 por envolver as
atribuições do Estado como ente soberano. Para Ferrajoli, a ideia de soberania pode envolver tanto a
soberania interna – referente à “progressiva limitação e dissolução paralelamente à formação dos
Estados constitucionais e democráticos de direito” – assim como a soberania no plano externo, o qual
cita que “ainda está longe de concluir-se e continua a mostrar como uma ameaça permanente de
guerras e destruições para o futuro da humanidade”44.
Não obstante a tais conceitos e subdivisões de soberania, um fato que pode ser observado
dentro da evolução histórica recente do presente instituto é a redução de seus alcances na esfera
interna de grande parte dos Estados, principalmente após os acontecimentos da segunda guerra
A segunda guerra, neste contexto serviu como o maior e mais trágico exemplo do uso da
soberania absoluta de um Estado (reconhecido como única fonte de direito), excluindo os direitos
fundamentais daqueles que não eram seus cidadãos, ou não eram considerados, e estes não possuíam
"garantias supra-estatais de direito internacional contra violações dos próprios Estados”46.
Seguindo essa lógica, pode-se afirmar que os Estados, após tais eventos, mantem sua
soberania (internamente e externamente), contudo sua soberania encontra limitação quando esta viola
uma norma de valor universal, de valor jus cogens, como por exemplo, a dignidade da pessoa
humana.
Nesta contextura, a soberania no plano normativo deixa de ser uma liberdade absoluta e
selvagem e passa a estar, a partir de então, subordinada, juridicamente, a duas normas fundamentais,
quais sejam: a imperatividade da paz e a tutela dos direitos humanos47.
Por conseguinte, conforme já mencionado no capítulo anterior, não somente os Estados são
considerados sujeitos de direito internacional, mas também os indivíduos e os povos.
Dos fatos acima elencados, depreende-se que o desenvolvimento acelerado que o Direito
Internacional tomou após a década de 50 fomentou a criação de comunidades internacionais
regionais, o que pode ser considerado uma das evidentes mudanças e evoluções na esfera global.
Dentre essas comunidades, podemos citar a criação da Comunidade Econômica Europeia (CEE)
como sendo uma das primeiras comunidades regionais internacionais, sendo que esta tratava de
assuntos da mercadologia. E é a partir da década de 1950, com as primeiras experiências vividas,
mesmo que de forma tímida, pela Europa, nasce o direito comunitário. Casali, citando Ventura nos
apresenta sua função.
Apesar de ser considerado uma novidade dentro da estrutura do Direito Internacional Estatal,
um dos grandes desafios que esse sistema comunitário enfrentou (e enfrenta até hoje) é a interação
dos sistemas jurídicos dos entes de uma comunidade de Estados sem deixar de lembrar o necessário
conceito de soberania49. Entretanto, buscando amoldar a teoria à situação fática demonstrada, a
estruturação comunitária global se desenvolveu a partir de então, chegando a esboçar para si uma
constituição própria, com uma participação consideravelmente mais ampla dos Estados, o principal
exemplo é a União Europeia, a qual a partir de 2007, já continha 27 membros50.
45 “O estado de direito, internamente, e o estado absoluto, externamente, crescem juntos os dois lados da mesma moeda.
Quanto mais se limita – e, através de seus próprios limites, se autolegitima – a soberania interna, tanto mais se absolutiza
e se legitima, em relação aos outros Estados e sobretudo em relação ao mundo ‘incivil’, a soberania externa. Quanto mais
o estado de natureza é superado internamente, tanto mais é reproduzido e desenvolvido externamente.” Ibid., pp. 34-35.
46 FERRAJOLI, Luigi., op. cit., loc. cit.
47 Ibid., pp. 35-36.
48 CASALI, Guilherme Machado. A Necessidade de um Constitucionalismo Global. XIX Encontro Nacional do
CONPEDI, Fortaleza. 2010. pp. 3.
49 CASALI, Guilherme Machado., op. cit., loc. cit.
50 Ibid., pp. 4.
A partir desta, muito se discutiu sobre qual seria a qualificação de uma organização
comunitária internacional. Conforme Casali (2010, p. 4-5), evidente que não era um Estado unitário,
apesar de haver uma constituição que discipline seus valores e objetivos, tão pouco uma federação,
pois nesta, os entes que a compõe não gozam de soberania, apesar de serem autônomos, concluindo-
se que não há possibilidade de secessão. Não pode ser considerada também uma confederação,
apesar de aproximar-se mais desta, pois sendo os Entes soberanos, preservam para si sua soberania
original. Poder-se-ia dizer que a comunidade internacional é um meio termo entre federação e
confederação, sendo tratada como organização de natureza sui generis, por apresentar características
como o caráter voluntário, a interestatalidade, o sistema orgânico permanente, autonomia na tomada
de decisão, competência própria no âmbito de determinadas matérias e cooperação internacional
institucionalizada.
Outra aparente dificuldade a ser superada é a que versa sobre a instituição de uma
constituição comum entre vários Estados. Em decorrência de inúmeros fatores, como, variedade
econômica e social, realidade cultural e fática, há a possibilidade de que sua execução prejudique a
efetiva aplicação de normas que não considerem particularidades de cada região 52. Grimm, tratando
da soberania no plano global, assegura que em tal circunstância, as noções de soberania estatal
devem ser reanalisadas, haja vista a permissão do plano fático vigente, de constituição e de direito,
especialmente em razão da intensificação da sociedade mundial e do consequente processo de
globalização. Além da delimitação entre as esferas internas (estatal) e externas (internacional) já não
ser tão notório, os Estados passaram a estabelecer organizações internacionais às quais transferiram
parte de suas atribuições soberanas53.
A globalização teve (ainda têm) um grande papel na quebra do paradigma no que se refere a
soberania Estatal, alterando inclusive o status quo do que se entendia por Estado, o que pode ser
evidenciado pela diminuição de sua influência em diversas áreas que antes compreendia. Esse
fenômeno em si pode ser tratado como uma diminuição do poder Estado-Nação, não uma extinção,
não suprimindo a soberania. Contudo, tal conceito deve ser revisto, pois esta, segundo Antônio
Negri, “tomou nova forma, composta de uma série de organismos nacionais e supranacionais, unidos
por uma lógica, ou regra única.” Nesse sentindo, Negri completa dizendo que “as distintas cores
nacionais no mapa imperialista do mundo se uniram e mesclam, num arco-íris imperial global.54”
Habermas, revela que dessa maneira, para melhor administrar uma Instituição Supranacional
é necessário a instauração de uma constituição, admitindo que esta possui um papel fundamental,
expressando-se “como moldura institucional eficiente para uma dialética entre a igualdade jurídica e
factual, que ao mesmo tempo fortalece a autonomia privada dos cidadãos, bem como sua autonomia
cidadão no âmbito do estado.55
A ascensão dos direitos humanos mudou o cenário internacional para sempre, motivo pelo
qual a instituição de uma constituição global, ainda que pareça tratar de questões meramente
econômicas (livre mercado, o que pode ser evidenciado pela criação da comunidade econômica
Europeia CEE 1957) é palpável e real. A dignidade da pessoa humana agora é um princípio que
integra uma nova feição do direito constitucional.
Neste ínterim, pode se evidenciar um padrão na história recente do direito internacional, onde
a governança interna de um Estado, utilizando-se de todos seus aparatos jurídicos e meios de
administração, já não são suficientes para regular e manter todos os aspectos que regem a sociedade
atual e sua constante mudança, sendo em suma caracterizada pela globalização.
Segundo Grimm, o Estado, por causa de seus limites territoriais e de sua soberania, não
deixava que a comunidade internacional interferisse nos seus assuntos internos, bem como,
havia uma separação muito clara entre agente público e privado. Explica que é sabido que
vivemos um momento de erosão da soberania e de porosidade entre os limites externo e
interno, público e privado. Isso se dá, no primeiro caso, por causa da permeabilidade das
fronteiras, já que o Estado começou a transferir à organizações internacionais algumas
competências, que por conta de sua soberania, só a ele cabiam, para se tentar aumentar a
capacidade de resolução dos problemas, a exemplo da criação das Nações Unidas em 1945, a
quem coube a missão de manutenção da paz. Hoje a ONU, entre outros, tem poder de
intervenção humanitária em caso de desrespeito aos direitos humanos e de minorias, além da
criação de Tribunais por meio decisão do seu Conselho de Segurança, que atuarão dentro das
fronteiras do Estado.57
A instituição da União Europeia e Mercosul revelou que seus membros abdicaram de certa
parte de sua soberania para permitir que a resolução de alguns de seus problemas fossem
solucionados por Tribunais Supranacionais, o que diametralmente causou um impacto na
constituição.
Nesta lógica, quando se faz uma análise do papel de uma constituição, logo percebemos que
esta sempre teve como expoente o condão de ser o estatuto máximo na exaltação e proteção dos
direitos fundamentais, todavia, ante a uma aparente vulnerabilidade delas na conjectura atual, sua
efetividade começa a ser questionada. Nesse sentido, diante de uma constituição e uma ordem
jurídica-política interna que tem seus papéis relativamente suprimidos, da mesma maneira que na
esfera internacional o Estado vem exercendo uma soberania co-participativa, é levantado um
questionamento justo por Gadotti: “O Estado consegue ser o agente promotor dos direitos
fundamentais?”58
Fato é que, os perigos apresentados pelo autor não fogem da atual realidade e permitir seu
crescimento não só desacreditaria, mas também ameaçaria a própria existência da democracia 61.
Dessa forma, se faz mister se apoiar na busca por um direito público que seja umbilicalmente ligado
a concepção de uma organização comunitária supraestatal, como forma de uma garantia que seja
capacitada a assegurar a paz, a democracia e os direitos humanos.
Ainda segundo Ferrajoli, ele acrescenta que hoje, muitas das pontuações de Francisco da
Vitoria62 “assumem uma atualidade singular [...] sendo que hoje parece possível despi-las de sua
dimensão utópica, assim como de seu caráter assimétrico original, e amarrá-las a garantias efetivas
de direito positivo.”63
Nesta toada, Ferrajoli64 pontua quatro indicadores de que a humanidade pode ser percebida
como uma referencial unificador por intermédio de um constitucionalismo global:
O terceiro indicador dispõe acerca dos direitos das gentes de todo o mundo: “ius societatis
et communicationis, o ius peregrinandi para nossas provincias et illic degendi, o ius migrandi para
nosso países ricos e de neles adquirir a cidadania por força do simples título, proclamado por Vitoria,
de todos nós sermos homens, e ergo videtur quod amicitia inter hominis sit de iure naturali, et
contra naturam est vitare consortium hominum innoxiorum (é, portanto, evidente que a amizade dos
homens faz parte do direito natural, e que é contra a natureza evitar o consórcio dos homens probos)”
acrescenta que ainda é preciso reconhecer o caráter supra-estatal dos direitos humanos e da
democracia, garantindo-os de forma interna e externa, para assim “dar um fim a esse grande
apartheid que exclui do seu a maioria da humanidade”.67
O quarto e último indicador o autor delibera que o futuro do direito, em especial do direito
internacional depende de todos nós, “enquanto pessoas e enquanto filósofos e juristas”.68
Contudo, o autor69 evidencia um pessimismo tendo em vista o rumo que a política interna e
externa tem tomado, em uma “direção exatamente oposta”, qual seja, a diminuição da valorização da
divisão dos três poderes, desequilibrando o sistema de contrapesos constitucionais “em nome do
poder absoluto da maioria”, igualmente, aponta que essas tendências tendem a esvaziar o papel da
ONU nas recentes crises internacionais e finalmente como um eventual fechamento dos blocos
regionais o que consequentemente acarretaria em um refreamento mais rígido nas fronteiras.
Migrando para outra alternativa que se demonstra menos impositiva, podemos nos deparar
com o chamado Transconstitucionalismo, teoria idealizada por Marcelo Neves em sua obra de
mesmo título, cujo desafio foi desenhar uma prospecção do cenário global e como desenvolver um
diálogo entre os diversos sistemas constitucionais baseando-se nos princípios do constitucionalismo,
afim de buscar soluções para os obstáculos que transpassam as variadas ordens jurídicas que
surgiram nessa esfera.
Dessa forma, diante do estudo feito, acredita-se que tal teoria se revela a mais promissora na
propagação e difusão dos direitos fundamentais no cenário supra-estatal, pois ao invés de propor uma
constituição global, se preocupa em alcançar um ponto de convergência entre as distintas culturas
constitucionais do globo.
“[...] a proposta desse último é harmonizar as decisões de forma que cada órgão
responsável por uma decisão possa se valer do que já foi objeto de experiência por
parte de outra instância, em outro Estado ou ente extraestatal. A preocupação aqui está
centrada em dialogar e não prevalecer. Não se quer aqui preterir-se a Constituição ou
criar-se outro documento equivalente a nível mundial. Ao revés. [...] No
transconstitucionalismo nossa preocupação não tem a ver com estabelecimento de
uma hierarquia entre as fontes normativas nacionais, supranacionais ou
transnacionais. Os nossos olhos voltam-se ao relacionamento, baseado no
aprendizado recíproco entre os mesmos.”72
70 “A necessidade das chamadas “pontes de transição” é uma imposição proveniente da existência de várias ordens
jurídicas, cada uma delas albergando todas as especificidades (identidades) próprias do Estado e suas estruturas de
funcionamento, inclusive no que tange ao exercício das funções estatais (nelas se incluindo a função jurisdicional dentro
do seu espaço territorial, e a ela nos referimos por se tratar de um ponto extremamente relevante no que toca as ‘pontes
de transição’).” GADOTTI, 2012, pp. 117.
71 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2008. pp. 25.
72 GADOTTI, Giselle Araujo., op. cit., pp. 116.
73 PEREIRA, Ricardo Diego Nunes. O transconstitucionalismo: atualidades constitucionais. In: Revista Jus navigandi,
2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21398/otransconstitucionalismo-atualidades-constitucionais>.
Acesso em: 10 novembro de 2018.
Em suma, a presente teoria busca criar um entrelaçamento entre as diversas ordens
constitucionais com o fim de solucionar problemas constitucionais, visto que, como já citado, o
Estado não se apresenta mais como a principal e exclusiva fonte de proteção apta a resolver todos os
problemas que surgem.
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