UMA INTERPRETAÇÃO DA SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO DE DANIÈLE
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UMA INTERPRETAÇÃO DA SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO DE
DANIÈLE HERVIEU-LÈGER
Carlos Eduardo Pinto Procópio
Universidade Federal de Juiz de Fora Doutorando em Ciências Sociais procopiocso@yahoo.com.br
Resumo
Daniele Hervieu-Lèger é uma referência importante quando o assunto é fenômeno
religioso contemporâneo. Este artigo explora alguns debates-chave de sua sociologia da religião: modernidade, recomposição, memória e exculturação. Estes debates explicam uma parte do problema do religioso na sociedade hoje, a medida em que foca as novas dimensões e contornos que vêm ganhando a esfera religiosa.
Palavras-chave: sociologia da religião; Hervieu-Lèger; esfera religiosa
INTRODUÇÃO
As teorias sociológicas da religião se mantiveram numa polarização entre a
confirmação do paradigma da secularização, que afirmava que as instituições religiosas perdiam espaço para outras instituições (modernas) que desejavam a hegemonia da estrutura do sentido para a vida, e a refutação desse paradigma, quando o surgimento de novas expressões religiosas dentro das instituições tradicionais e fora delas emergiam na cena privada e pública, resgatando um sentido supra-humano para a existência cotidiana. No seio desta problemática é que Daniele Hervieu-Lèger vai construir sua abordagem, entretanto, não buscando se posicionar como adepta de um desses paradigmas, mas ao contrário, procurando se posicionar numa situação intermediária entre ambos, construindo assim uma interpretação diferenciada e particular do fenômeno religioso na modernidade. A autora vai ao epicentro do problema, que são os fluxos e refluxos da modernidade e da religião que, em interação, no sentido fenomenológico do termo, vão ganhando novas dimensões e conformações. A melhor pergunta, que representa o mote da interpretação dessa socióloga, diz respeito ao que estaria representado a emergência dos novos movimentos religiosos (NMR)i para a modernidade e o que esse fenômeno contribuiria para uma
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reinterpretação teórica da situação da o religioso na cena pública tem
religião dentro desta modernidade. “provocado um vasto reexame das Esses NMR colocariam em xeque a hipóteses fundamentais da disciplina” modernidade, ou seriam uma adaptação (1993, p. 35), o que levou, segundo a ela? Num certo sentido as duas coisas. Hervieu-Lèger, a uma revisão das A modernidade, via esse movimentos, é teorias sociológicas da religião. Essa questionada na sua base utópica, revisão consistiria “numa dúvida para sobretudo quanto a tentativa de querer refinar um pouco mais a análise dos superar a religião, o que, entretanto, processos sobre os quais os espaços do fracassou devido aos déficits religioso se retraem ou se difundem na ontológicos de sua composição. Por sociedade” (1993, p. 47). Essa revisão, outro lado, a modernidade, enquanto para a autora, dependeria, antes de mais processo histórico, é num certo sentido nada, de se pensar a definição do que insuplantável, levando esses NMR a seja religião, prisma pela qual se dialogarem com os elementos colocará o problema da sociologia da constitutivos da própria modernidade. modernidade religiosa (idem.). A proposta deste texto é explorar Duas seriam as definições de alguns elementos chaves na sociologia religião presentes nas abordagens da religião de Hervieu-Lèger, sociológicas: a primeira, defendida procurando compreender o modo como pelos autores que Hervieu-Lèger chama trata da questão da modernidade a luz de exclusivistas, trataria a religião de das questões que foram trazidas pelo forma intensiva, onde religião seria tudo surgimento do fenômeno dos NMR. aquilo que é sagrado; a segunda, Nesse ínterim ainda serão colocadas as defendida pelos inclusivistas, trataria a questões referentes ao problema da religião de forma extensiva e definindo religião institucional, que no fluxo dos por religião tudo o que possa produzir NMR perde gradativo espaço dentro da sentido para a vida (1993, p. 50-51). cultura moderna. Hervieu-Lèger propõem uma análise articulada dessas abordagens. Nesse A MODERNIDADE RELIGIOSA sentido aponta para a composição da própria modernidade e da sua relação A evidência que vêem ganhando com a religião, visando ampliar o leque
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de compreensão acerca da problemática econômicas, que gradativamente vão
religiosa na modernidade. perdendo seu sentido transcendental. Para Hervieu-Lèger, a Por outra via, ao introduzir uma utopia modernidade tem uma chave de leitura, que pretendia a realização individual e o “progresso”, que deve ser interpretado coletiva no interior do próprio a partir de duas dimensões: uma progresso, a modernidade tornou histórica e uma utópica. Enquanto a possível a configuração de uma dimensão histórica permite uma análise estrutura afim com a problemática de do progresso como uma suscetividade plenitude e de salvação presente na de etapas, a dimensão utópica permite religião (idem.). Será nesta via que a analisar esse progresso como uma força modernidade encontrará barreiras na motriz para ação humana, como fim a sua tentativa de supressão dos ser alcançado. Se por um lado a elementos religiosos, a medida em que dimensão histórica destruía a religião, não conseguirá dar todas as repostas por outro a dimensão utópica manteve para a vida cotidina (individual e as condições para um relacionamente coletiva), sob a égibe do progresso entre o cotidiano e os seus significados enquanto utopia. (1987, p. 224-225). É essa última Essa via utópica permitirá a dimensão que tornou possível a análise da religião a partir de um duplo manutenção de um caráter ontológico movimento: o processo pela qual a para o progresso, permitindo que a idéia religião modela a modernidade; o de religare, própria da religião, fosse processo pela qual a modernidade mantida e utilizada. produz a religião. Quer dizer, esta É somente pela via histórica que perspectiva “sugere centrar a análise a modernidade consegue abolir a sobre os processos multiformes do religião enquanto sistema de trabalho recíproco da modernidade significações e motor dos esforços sobre o campo religioso instituído, e da humanos (1987, p. 225), pois a religião sobre os processos sociais, modernidade engendrou não apenas econômicos, políticos, culturais e transformações no campo da ciência e simbólicos” (1990, p. 302). Nesse da tecnologia, mas também na forma de sentido a modernidade seria um se ver as relações políticas e paradoxo.
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Desse modo, uma abordagem da A RECOMPOSIÇÃO DO
religião deve se situar entre dois planos RELIGIOSO de análise, num certo sentido polarizados: uma “análise do processo Hervieu-Lèger procura entender de decomposição-recomposição do crer a recomposição do fenômeno religioso, sobre o império do individualismo, da expresso nos NMR, como um déficit da pluralização e das incertezas utopia moderna do progresso e como características da modernidade”, onde a uma adaptação do próprio religioso à referência ao transcendente e a modernidade. Apesar de retomarem, referência confessional se faz ainda num certo sentido, um antimordenismo, dentro das religiões históricas (1993, p. esses NMR procuram, entretanto, 63); e uma “análise dos processos de servir-se de elementos presentes na desestruturação-reestruturação dos modernidade. Esses “novos grupos dispositivos culturais e sociais de religiosos questionam o que consideram identificação cultural”, “onde a como perversões da modernidade: o referência a um transcendente é desconhecimento das raízes dos completamente descolado de toda indivíduos na natureza, a negação da referência confessional” (idem.). afetividade nas relações humanas, Esse processo implica, por um relações reduzidas somente à dimensão lado, na idéia de que as religiões funcional numa sociedade históricas, apesar de “não organizarem compartimentada em múltiplas mais exclusivamente e diretamente o instituições especializadas” (1987, p. acesso individual e coletivo ao 223-224). Entretanto, são situados transcendente, continuam a oferecer os dentro das fronteiras da própria cultura referenciais simbólicos maiores, moderna, o que é expresso no “seu definindo massivamente as funções de pragmatismo, seu modo de considerar a uma tal referência” (idem.). Por outro tradição religiosa como uma 'caixa de lado essas referências são efetuadas ferramentas' que somente se utilizam os dentro da própria modernidade, levando instrumentos quando úteis para o a uma inevitável “contaminação” das processo pessoal, concedendo a religiões pelas referências modernas. primazia à experiência ao desenvolvimento pessoal e sua maneira
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de buscar o bem-estar espiritual da 301).
comunidade e de cada um de seus Todo esse processo, denominado membros” (1987, p. 224). de recomposição do religioso, não deve Esses NMR se situam sobre o ser associado a alguma crise aparente da terreno do paradoxal, característica modernidade, mas aos déficits inerentes própria da modernidade. Hervieu-Lèger à sua dimensão utópica. Por mais que os afirma que os grupos que compõem NMR tentem fazer um retorno a alguma esse movimento estão esfera tradicional, esta se dará pela via “profundamentalmente enraizados na da modernidade (1990, 304-305). cultura moderna, forjados desde o seu Vejamos o caso do cristianismo na interior, sendo tão extranhos ao contemporaneidade. rechasso do mundo moderno realizado Hervieu-Lèger aponta três pelas seitas e grupos integristas, como à tendências do campo cristão e que estão política de acomodação cultural ligadas ao processo de singularização e praticado pelas igrejas” (idem.). Tal de subjetivação das representações, o afirmação dá margem para o que leva à privatização das crenças: a entendimento das características desses primeira aponta para a configuração da NMR. religião privatizada, que se desdobra no Esses grupos que constituem que a autora chama de 'religião festiva'; esse movimento são denominados de a segunda refere-se à composição comunidades emocionais, carismática das referências de fé e das caracterizados pela adesão pessoal com referências à tradição; a terceira diz laços emotivos entre indivíduos e respeito à expansão das comunidades comunidade, pela porosidade de suas emocionais no interior do cristianismo fronteiras, pela desconfiança diante o mesmo. dogmático e o doutrinal, e por ter fins A primeira tendência aponta em princípio espirituais (1987, p. 220- para dois movimentos. Por um lado a 223). O seu desenvolvimento dependerá “reformulação das atividades das também da automização das pequenas instituições religiosas sobre a vida narrativas crentes, do acesso livre a uma quotidiana, dos indivíduos e das memória cristã e da eufemização das experiências individuais” (1990, p. tradições sobre a Tradição (1990, 300- 306). Por outro a “tendência à
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privatização das experiências religiosas Do ponto de vista da religião
individuais” (idem.), que culmina numa privatizada, prevalece o “aderente religiosidade dita festiva. festivo”. Este, por sua vez, “vive em seu Do ponto de vista das drama interior a disjunção de fato entre instituições religiosas, a religião uma vida social e pessoal inteiramente cotidianamente administrada produz secularizada e uma participação uma nova situação, composta na religiosa organizada sobre o modo dialética entre a fé e o religioso do dia- extracotidiano” (1990, p. 308). A a-dia. Essa nova situação gera uma nova participação religiosa desse “aderente temporalidade, que valoriza os festivo” expressa outras concepções e 'momentos fortes' da vida litúrgica e práticas no que tange a referência da uma nova geografia, que cria espaços religião para a existência pessoal e para que possam suprir as carências a sociedade, ao mesmo tempo em que decorrentes da administração local da mantém uma referência tradicional religião cotidiana (1990, p. 307). regida por uma instituição. Esse tipo de Hervieu-Lèger aponta que “estas novas conduta favorece tanto a cultura cristã, temporalidade e geografia sagradas que permanece enquanto um valor, correspondem ao desenvolvimento de quanto a formação de uma identidade uma nova sociabilidade religiosa, religiosa moderna, que é “compatível fundada sobre a associação voluntária, o com a privatização dos conteúdos de agrupamento temporário e a crença atuantes para a dispersão dos participação móvel, sociabilidade componentes institucionais” (idem.). passageira que se desdobra A segunda tendência coloca num correntemente às formas clássicas de lugar central o personagem carismático sociabilidade paroquial e da equipe na vida religiosa (1990, p. 309), militante” (idem.). Esse tipo de elemento motivador que contribui para sociabilidade reforça a idéia de que a a atração das pessoas à tradição, religião se compõem como um “lugar reforçando a fé. O carisma apareceria de memória”, oferecendo como “uma força de compensação voluntariamente celebrações ideológica”, dando plausibilidade ao passageiras, rituais nostálgicos, etc. discurso eclesiástico (1990, p. 311), (idem.). mas também podendo contribuir para a
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produção de inovações, a partir da sua criticam “o imperialismo do
posição exemplar (1990, p. 312). A racionalismo técno-científico” e posição do elemento/figura carismática recusam a automização e toma, então, duas direções: pode ser a funcionalização das referências sociais afirmação da necessidade de um retorno da sociedade urbano-industrial, rompem ao passado, indo de encontro às regras com a modernidade na forma de sociais e propondo sua supressão (1990, protesto (idem.). Hervieu-Lèger p. 313); pode “funcionar como uma ressalta, entretanto, que “ao mesmo força de inovação religiosa sobre uma tempo em que é portadora de um conjuntura onde a crise dos ideais protesto contra os erros da conquista modernos, longe de restaurar a moderna de autonomia, a religião de credibilidade da mensagem cristã, tende comunidades emocionais se revela ser para o agravamento ainda da crise de também (...) o vetor de uma aculturação identidade das igrejas que, dos valores modernos no cristianismo” explicitamente ou de fato, estão (1990, p. 315), “um modo de acomodados a estes ideais” (idem.). ressocialização 'moderna' numa A terceira tendência tem a ver tradição” (1990, p. 316). com a expansão do cristianismo em comunidades emocionais, colocando o RELIGIÃO E MEMÓRIA cristianismo entre a modernidade e a anti-modernidade. Essa religião de Hervieu-Lèger define que a comunidades emocionais favorece a função da memória religiosa é resgatar subjetividade na referência da norma uma descendência de fé. Retomando a doutrinal, conferindo a esta referência reflexão de Maurice Halbwachs, ela um caráter pragmático, onde “prevalece afirma que essa memória possuirá maior os elementos 'úteis' para uma atitude caráter normativo quanto mais possuir o individual e coletiva [marcada] sobre a núcleo religioso a “capacidade de dinâmica comunitária” (1990, p. 314). oferecer a 'memória verdadeira' do Aí estariam os indícios demonstrativos grupo”. Para o caso da vida moderna, da afinidade do terreno cristão com os entretanto, a transmissão da memória valores modernos. Todavia, a medida ocorrerá de modo esfacelado. Nesse que essas comunidades emocionais contexto ocorre uma crise da memória
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social total, “ligada à emergência da descendência de fé, grupos estes que
modernidade e que acompanha seu inventam, reparam e manipulam desenvolvimento histórico”, acarretando dispositivos buscando “fazer tradição”. a perda de espaço da religião-instituição Todavia esse processo é limitado e enquanto moldura de uma sociedade- controlado, sendo “a história e as memória. É no fluxo da pluralização e determinações sócio-culturais próprias a da inexistência de um continuun um ou outro contexto particular [que] minimum da memória presentes na cerceiam o universo do pensável e do sociedade moderna que vai ocorrer essa imaginável dentro do qual essas decomposição da memória coletiva recomposições se efetuam”. Nas (1996, p. 9-10). sociedades modernas esta recomposição Esse processo de decomposição da descendência de fé colocam em da memória deve-se, segundo esta xeque a instituição religiosa, que viverá sociológa, à conjugação de duas a tensão entre a memória que fornece e tendências: a primeira tendência estaria a memória que é entendida pelos ligada a dilatação e a homogeinização sujeitos (1996, p. 12-13). da memória, que passaria a ser Para o caso da tentativa de caracterizada como uma memória de transmissão institucional de uma superfície, achatada, com capacidade e memória, Hervieu-Lèger apresenta o criatividade dissolvidas (1996, p. 11); a caso do catolicismo. A Igreja Católica segunda tendência estaria ligada à buscaria manipular a memória, fragmentação do infinito, devido à pretendendo um “efeito de possibilidade de pertença a uma descendência”, lançando mão de uma pluralidade de grupos, cuja mobilização emocional e de uma consequência imediata seria a racionalização cultural. Esta última é dissolução funcional da experiência possível na medida em que a Igreja pessoal que veda o acesso a uma Católica reafirma o lugar central de uma memória unificada (1996, p. 12). dada comunidade para a história da O vínculo social da religião Igreja e desta para a história daquela tentará a ser recomposto a partir de (1996, p. 20-21). Já a mobilização pequenas narrativas crentes a partir de emocional dependeria do carisma grupos que venham a reivindicar uma pessoal do corpo eclesiástico, que por
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sua importância e estima, consegue Esse processo se desenvolveu a
congregar milhares de pessoas nas partir de três tempos típicos: a atividades em que está presente (1996, laicização, que marca o fim do p. 21). monopópio católico do transcendente; a secularização interna, respaldado na EXCULTURAÇÃO atração que a modernidade exerce sobre INSTITUCIONAL o catolicismo; e a ultramordenidade, que dá primazia à cultura Os esforços da instituição contemporânea do indivíduo, que católica de retomar as rédeas da vida incorpora e desintegra a instituição cotidiana encontrar-se-ão limitadas no religiosa. momento em que a cultura moderna não O processo de laicização deixa espaço para a penetração dos representa uma mudança de foco, elementos da lógica católica, ao mesmo quando a Igreja Católica perde seu lugar tempo em que esses elementos central com as mudanças políticas de igualmente não conseguem 1789. Neste contexto a “nova corresponder às necessidades dos configuração das linhas entre o poder e sujeitos. Quando ocorre esse processo, os indivíduos fazem da política o seguindo Hervieu-Lèger, a instituição princípio fundamental da linha social”, apresentar-se-á em vias de onde emerge como centro a figura do exculturamento, não tendo, nesse cidadão e da comunidade ao seu redor sentido, mais nada a dizer para a cultura (2003, p. 56-57). A liberdade religiosa é e a sociedade moderna. Essa saída proclamada, paralelo à centralidade do cultural da religião, ressalte-se bem, não direito natural e civil, e a Igreja Católica significa o fim da crença, “ela passa, ao perde lugar de centro tanto na sociedade contrário, para uma proliferação do crer quanto na esfera religiosa e deixa de ser que explode dos grandes códigos a religião do Estado (2003, p. 57). Por prescritos pelas instituições religiosas e sua vez o Estado sacraliza a política e obrigando estas a um considerável transfigura o religioso na soberania, remanejamento” (2003, p. 20), o que passando a se constituir como poder dilui a capacidade normativa da espiritual, “inseparável do poder moral instituição. que emana da vontade livre dos
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cidadãos que ele representa” (2003, p. individualização da crença e a
62). Esses processo, desde seu início realização de si (2003, p. 81). conflituoso, acabou levando à A ultramordenidade, terceiro supremacia do Estado, com sua religião momento desta saída cultural católica civil, sobre a Igreja Católica, que por institucional, está atrelada a quatro sua vez viu seu monopólio diluir-se tendências: individualismo, com o crescimento do sentimento de reivindicação da realização de si e laicidade (2003, p. 64 ss). exaltação da subjetividade; A secularização interna deveu-se reorganização do tempo devido ao a três linhas: a modernização da acesso rápido a informações; mudança sociedade que impôs uma organização na relação com a natureza, devido aos interna e uma definição da missão do grandes avanços científicos e catolicismo, onde “a Igreja viu-se tecnológicos; contratualização das progressivamente expulsa não somente relações sociais, que substituiu os da posição central que ocupava na valores pelas regras racionais (2003, p. sociedade, mas também da empresa 86-88). englobante sobre comportamentos Esse processo de coletivos e sobre as consciências individualização, que preconiza a individuais” (2003, p. 70); os conflitos realização de si, reflete-se no interior internos surgidos na Igreja Católica, das relações de trabalho, na família, nas devido à modernidade, gerando pontos relações de amizade, etc. (2003, p. 123). de vista e estratégias contraditórias Diante deste cenário o catolicismo se quanto à resposta de questões, que coloca como hostil, ficando na contra- culminou no que Hervieu-Lèger chama mão das transformações, acarretando de catolicismo intransigene, que levou o para si o estigma de “uma 'religião fria', catolicismo a adotar um comportamento normativa e administrada do alto” dissonante dos seus pressupostos morais (2003, p. 133). Via de regra, “esta e teológicos (2003, p. 74); percepção superficial de um catolicismo transformação interna da mentalidade triste é associado, em fim, à idéia de religiosa, derivada da linha anterior e que a moral católica é uma moral de que gerou uma mutação do sentimento repressão do prazer, uma moral que religioso, voltado sobretudo para a contraria, por definição, o direito
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fundamental de cada um a atingir sua projetos são sempre voltados para o
felicidade conforme as vozes que ele mundo (intramundanos); seu mesmo escolhe” (2003, p. 134). desenvolvimento é relacional e Não se pode, então, se realizar harmonioso (lembrando Tocqueville: hoje a “promessa cristã de realização individualismo é diferente de egoísmo); numa sociedade onde o ser si tende ao há uma consciência da precariedade do mesmo tempo a adquirir evidência” mundo e seus riscos (2003, p. 151-155). (2003, p. 137) [grifo meu]. O sujeito Hervieu-Lèger lembra que “a atribui maior importância para uma configuração de sentido característico felicidade subjetiva, na valorização da das sociedades ultramodernas se família, do trabalho e dos amigos, constituem e se reconstituem no associados ao cultivo da independência permanente cruzamento de uma cultura na vida privada (2003, p. 139-141). de si e de uma cultura de risco que se Esse processo de subjetivação se estende sobre combinações variadas, em estendeu a muitos campos, onde a função das situações e experiências referência totalizadora perde espaços individuais” (2003, p. 156). O risco é o para as construções pessoais que, no limite para as auto-proposições (2003, entanto, devem ser entendidas num p. 157 ss.). sentido positivo, ou seja, na sua O projeto de realização cristã, capacidade de estabelecer outras formas desse modo, fica em descompasso com de relação social (2003, p. 141 ss.). a realização ultramoderna, ficando cada Nesse sentido ganha dimensão vez mais à margem da sociedade (2003, individual todas as iniciativas, mesmo p. 160). Muitas das mensagens cristãs aquelas de cunho totalizantes, como a perdem espaço numa sociedade que participação política. O individual, a cada vez mais vê muitas de suas realização de si, é a medida das coisas necessidades supridas, o que ocasiona (2003, p 148). uma defasagem desta mensagem. Contudo, as iniciativas Hervieu-Lèger traz um bom exemplo no individualizadas se sobrepõem sobre âmbito alimentar, tendo em mente o um campo bem determinados de regras: pressuposto weberiano de que a as preocupações com a vida cotidiana mensagem religiosa é expressão de seu são exploradas e valorizadas; os contexto (Weber, 2004). A autora
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afirma, por exemplo, que a mensagem verdade, caudatário da desorganização
cristã do “dê-nos o pão de cada dia” não do poder religioso e das transformações consegue mais fazer sentido numa na regulamentação católica do tempo e sociedade em que o risco da falta de do espaço. A autoridade eclesial é comida é reduzidíssimo (2003, p. 161 diluída, ficando a cargo dos crentes a ss.) sua reconfiguração. Igreja e seu corpo Hervieu-Lèger, de modo eclesial passam a ser referências a partir enfático, aponta que a Igreja Católica de suas atititudes, reforçando o “perdeu sua capacidade de conteúdo emocional da religiosidade circunscrever os indivíduos numa contemporânea. Ademais, ocorre a cultura específica, organizada por divisão do trabalho religioso entre clero referências comuns de sentido dadas do e laicato, demarcando novas fronteiras alto” (2003, p. 267). Esse processo da autoridade religiosa (2003, p. 289). culminaria num novo regime de autoridade e de institucionalidade, Essa divisão do trabalho levando a Igreja Católica a procurar religioso possibilitou uma maior algum diálogo com o mundo cultural democratização da instituição, que que a circunscreve (2003, p. 269). culminou no aumento do corpo de Desse modo passa a fornecer para a diáconos, que reflete uma maior sociedade, antes de uma verdade única e participação leiga diante das “verdades” universalizande, um corpo de até então monopolizadas pela hierarquia especialistas que possam dar respostas da instituição, no momento em que aos problemas momentâneos dos ocorria uma crise no enquadramento sujeitos (2003, p. 270-272). Emerge no clerical. Dessas mudanças do trabalho catolicismo “figuras renovadas da religioso ainda pode-se ressaltar a institucionalidade católica que constituição de uma burocracia clerical corresponde aos processos – burocracia aqui, também no sentido contemporâneos de uma socialização weberiano -, passando parte dos religiosa alinhada sobre o estilo geral da funcionários da instituição a serem socialização nas condições da assalariados (2003, p. 301-303). ultramordenidade” (2003, p. 276). O engajamento na vida eclesial Instaura-se um novo regime de também sofre modificações. A entrada
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de um jovem para a vida de seminarista, MODERNIDADE: O
CATOLICISMO EM MOVIMENTO por exemplo, ocorre cada vez mais como fruto da busca de uma realização A guisa de conclusão, e de si, ultramoderna, do que pela finalizando parcialmente a contribuição descoberta de uma vocação sob sociológica de Hervieu-Lèger, quero inspiração divina (2003, p. 304). A chamar a atenção para duas formas verdade dita divina é, nesse sentido, (imagens) presentes na modernidade transformada em valor simbólico e religiosa e que estão atreladas à relação disponibilizada para a experimentação e com religião institucional. Essas complementação do si mesmo. imagens são a do pelegrino e a do Esse processo de exculturamento convertido, que vão tomar caminhos se deve ainda ao descompasso entre as diferentes na relação com a instituição propostas proibitivas da Igreja Católica, religiosa, mas afunilam num mesmo como a impossibilidade de acesso das princípio e num mesmo fim, consoante mulheres a cargos eclesiais e a com a tendência moderna de realização proibição do casamento dos membros de si. Os convertidos são aqueles do corpo eclesiástico, com a cultura sujeitos que elaboram ou respondem às moderna centrada no direito individual proposições mais variadas adotando de escolha. Hervieu-Lèger chamou todos os formalismos, com condutas essas práticas católicas de ilegíveis pessoais construídas sobre a crença nas (2003, p. 310). Soma-se a isso o fato de promessas e demandas até certo ponto que essa igreja, respaldada na idéia de coerentes (2003, p. 277). Já os “instituição de identificação”, se pelegrinos são aqueles que optam por transforma cada vez mais em uma engajamentos que duram pela livre “instituição de serviço” (2003, p. 326), conveniência (idem). e converter-se num regime de A religiosidade pelegrina é autoridade articulado ao aquela “religiosidade plástica que acompanhamento dos problemas e a atravessa as delimitações institucionais” vigilância, por parte de sua hierarquia (2003, p. 277), correspondendo a uma (2003, p. 329). forma de sociabilidade religiosa de mobilização e de associação temporária IMAGENS RELIGIOSAS DA
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(2003, p. 278). Caracteriza-se também práticas estão ligadas com a ideologia
pela fluidez dos conteúdos de crença institucional e dela recebem seu apoio que elabora e a incerteza do jurídico e canônico. Constituem-se por pertencimento comunitário (idem). Seu grupos que desenvolvem atividades desenvolvimento coloca o catolicismo voltadas para a ampliação do modelo de institucional de frente de um duplo sociedade defendido pela instituição desafio, relacionado ao tempo e ao religiosa, levando-os muitas vezes à espaço religioso. construírem um discurso sectário e A religiosidade pelegrina projeta fundamentalista. uma nova dimensão em relação a gestão Contrastando os dois modelos, religiosa do tempo, entendida esta Hervieu-Lèger afirma que se por um gestão como a influência que tem uma lado se configura um posicionamento religião sobre a vida ordinária de seus soft, com uma sociabilidade que fiéis com regras prescritas (2003, p. reconhece a singularidade das escolhas 279). Essa influência é convertida em religiosas, do outro se configura um opção individual, que redefinirá a posicionamento hard, com uma mensagem religiosa de acordo com os sociabilidade intensiva revestida por interesses de cada um. Essa virtuosos que optam por valores e religiosidade, em relação ao espaço, normas bem definidas (idem.). Se a será responsável pela fluidez territorial religiosidade hard reafirma do catolicismo, deslocando sua abruptamente a autoridade do sociabilidade, levando a experiência magistério eclesiástico, a religiosidade religiosa a ser buscada em espaços soft pulveriza seu sentido, dispondo-o extra-institucionais (2003, p. 281 ss.), para além das fronteiras institucionais. configurando o que a autora chamou de O maior desafio está colocado, religisiosidade difusa. perante a cultura do si, para o modelo Já a religiosidade cujo modelo é convertido, que exige uma posição o convertido se constitui a partir das enrijecida perante ao mundo para “formas intensivas de validação sujeitos que cada vez mais são comunitária do crer que se estabelece socializados numa cultura que valoriza no seio de pequenos grupos de crentes a escolha individual. Enquanto escolha 'integrados'” (2003, p. 287). Suas individual, o posicionamento hard pode
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até ser aceito. Entretanto, quando as a part of the problem of religion in
society today, emphasizing the new fronteiras individuais dessa opção dimensions and contours that have pretendem ser transportadas para outros drawn the religious sphere. Key words: sociology of religion; níveis, encontram na crença no direito Hervieu-Lèger; religious sphere de escolha individual seus limites. Já o modelo soft, pelo seu BIBLIOGRAFIA componente festivo e individualizante, CAMURÇA, M. A sociologia da tem mais chances na sociedade religião de Danièle Hervieu-Leger: ultramoderna, que valoriza o si mesmo. entre a memória e a emoção. In: TEIXEIRA, F. Sociologia da Religião: Pesa ao seu favor a defasagem enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, querigmática do catolicismo, que acaba 2003. tendo que se recompor sobre uma nova HERVIEU-LÈGER, D. Secularización linguagem que, apesar das dimensões y modernidade religiosa. 1987. tradicionais que resgata, acabam sendo ______ Les manifestations contemporaines du chistianisme et la estruturadas sobre a lógica da modernité. In: DUCRET, R.; modernidade. Todavia, acredito, que HERVIEU-LEGER, D. et LADRIÈRE, P. Christianisme et Modernité. Paris: esse resgate tradicional pela via CERF, 1990, moderna traz os vestígios agregadores ______ Chapitre II: La religion dissémenée des sociétés modernes. In: para uma sociabilidade religiosa, Religion pour mémoire. Paris: CERF, configurando na agenda religiosa novos 1993. ______ Catolicismo: el desafio de la compromissos e possibilitando a Memoria. Sociedad y Religión, n. 14/15, emergência de novas formas de novembro de 1996. ______ Representam os surtos sociabilidade, evidentemente diferente emocionais contemporâneos o fim da dos modelos de cristandade implantados secularização ou o fim da religião? Religião e Sociedade, n. 18/01, 1997. outrora. ______ Le pèlerin et le converti. La religion en mouvement. Paris: Flammarion, 1999. Abstract ______ Catholicisme, la fin d'un monde. Paris: Bayard, 2003. Daniele Hervieu-Leger is a reference in the sociology of Religion. This article WEBER, M. Capítulo V: Sociologia da explores some key debates of his religião. In: Economia e Sociedade. sociology of religion: modernity, Brasília: EdUNB, 2004. reconfiguration, memory and exculturation. These discussions clearly NOTAS
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i Os NMR surgiram e ganharam evidência
global a partir da década de 1960.
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