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O sujeito: Ulisses ou Quixote?

A travessia do mar das sereias e o nascimento da subjetividade moderna.

A ideia de Kafka sobre a travessia do mar das sereias por Ulisses é extravagante.
Por isso mesmo, é boa. As sereias teriam cantado? O modo como Ulisses saiu do
episódio, com o rosto embevecido e domado pelo fantástico, é compatível com
aquele homem engenhoso, o responsável pela ideia e pela entrega do cavalo
grego aos troianos? Não era Ulisses, diferentemente de Aquiles, um herói antes
negociador com o destino do que cumpridor dele? Como que uma raposa poderia
ver deuses, se todo seu espírito estava voltado para estratagemas de cordas e
ceras?

A tradição denunciou Ulisses ao compará-lo com uma raposa. Afinal, eis aí um


bicho que Esopo imortalizou tanto quanto Homero fez com Ulisses. A raposa é
aquela personagem que sendo pega saltando para apanhar uvas, não se deixa
abater pelo fracasso do salto, e qualifica a parreira como fora do tempo. As uvas
estão verdes! Ora, se Ulisses é a raposa, talvez essa sua fama tenha ocorrido aos
antigos não pela sua estratégia de pegar galinhas, afinal, troianos não eram
galinhas. Ulisses pode ter ficado conhecido por sua capacidade de engar os outros
ao buscar enganar a si mesmo.

Se pudermos levar a sério esse retrato de Ulisses, talvez tenhamos mesmo de


concordar com Kafka, no célebre “O silêncio das sereias”: na travessia do mar das
sereias o governador de Ítaca não ouviu nem ouviu nada. O mar calmo só produzia
o som vindo das galés, o cadenciado do remo sangrando na mesma vala o oceano.
Diante das uvas inalcançáveis, Ulisses transtornou seu rosto e fingiu escutar as
potências míticas. Mentiu para si mesmo e, como isso, enganou a todos nós até
hoje, ou até Kafka vir desmenti-lo.

Como aquela criança que entra no quarto com o irmão pequeno, para lhe mostrar
monstros, e que cai em si, pela primeira vez, notando que os monstros não virão
mais para ele, e que então finge vê-los para que não ocorra com o irmão o
desencantamento, o fim da infância, que acabou de ocorrer com ele. Ulisses tomou
consciência de seu desencantamento no mar das sereias, mas se recusou de deixar
isso para a posteridade, pois não suportaria apresentar-se tão inacabado diante do
fim da infância helênica. Talvez esperasse mais do fim da infância. Talvez esperasse
ganhar luzes como quem ganha presentes. Ao fim e ao cabo iria iluminar-se e sair
das trevas de florescimento da imaginação para a beleza do mundo da razão, mas
isso lhe veio como perda.

Quando deslocamos essa odisseia do espírito na história para a história da odisseia


individual de cada um de nós, Kafka parece poder ser apreendido como dizendo
mais coisas. Caso a travessia das sereias seja uma aventura acústica, ou seja, a
alegoria do encontro que fazemos com o som antes da instauração da própria
visão, que é a nossa condição enquanto parceiros da placenta, então há mais a
dizer.

Enfrentar o som que seduz porque aparece como as primeiras distinções entre o
que se deve dar atenção nas sinestesias ainda pré-auditivas e logo depois
auditivas, é viajar pelas primeiras saudações. É acompanhar a mensagem
evangélica, a Boa Nova, que se escuta de todas as mães, lá no útero, sobre a vida
que irá ser percorrida logo. Essa experiência sonora é sempre um misto de gozo do
que oscila entre se estar protegido e ainda não individualizado, e as
protoindividualizações que a mensagem evangélica acarreta.

Esse saber pertencia a Homero. Esperava-se, então, que Ulisses, como qualquer um
de nós, enfrentasse esse momento no qual há a criação dos desejos ao mesmo
tempo em que há a promessa dos sons lá de fora de que estes desejos serão
satisfeitos. Quando Ulisses não ouviu o que tinha de ouvir, ele desconfiou que
talvez jamais tivesse nascido naturalmente. Não sendo seduzido por nenhuma
lembrança dos tempos pré-natais, ele descobriu que talvez não passasse do que
todos podemos ser mesmo, abortos crônicos. Somos gerados como vasos
adamíticos que poderiam ser preenchidos de vivências a partir do sopro divino em
nossas narinas e, se tais vivências não são encontradas, só resta uma única coisa:
inventar as experiências. Como? Vivendo-as como mentiras ou, então, de modo
menos culpado, como ficção.

É aqui que a leitura de Peter Sloterdijk da passagem das sereias, feita em Bubles,
me faz lembrar outra passagem dele, a de que o homem moderno é menos o
reprimido neurótico que o histérico. A passagem que está em O Palácio de Cristal.
Sim, o desejo de Ulisses não foi reprimido, pois nem foi conformado e, portanto,
menos ainda satisfeito. Ele nada escutou do que a sabedoria homérica lhe
prometeu que escutaria, então, ele foi gerado como aquele que precisa, de fato,
ser sujeito, ou seja, se autocolocar, se autodeterminar, arrancar de si, mesmo que
vazio, sua função. Há um homem moderno que faz isso, mas ele não se chama
Ulisses!

O nome desse homem Sloterdijk não diz (creio eu, do eu sei), mas outros dizem: D.
Quixote de La Mancha. Uns querem ser sujeito e, então, buscam consultar seu
interior para sua autodesinibição, necessária nessa tarefa. Quando isso não ocorre,
a autoconsulta se torna consulta. Deve-se buscar o lado os consultores. Quixote
consultou a literatura de cavalaria e, então, saiu pelo mundo em desvario a partir
de uma autoinvenção de si.

Não é Quixote, às vezes, mais parecido com o homem moderno que Ulisses? Não é
Quixote suficientemente histérico para ser o sujeito moderno? Não é Quixote
aquele que toma mil surras, que até ajuda alguns bandidos a fugir, na maior das
boas intenções, e então retorna mais uma vez para sua contínua autocriação
mirabolante? Não é Quixote aquele que, como cada um de nós, não tendo
nenhuma vivência, vive do combate de moinhos de vento? E a nossa ligação com o
empírico? É uma experiência rica se, enfim, nem ouvir ouvimos? Não, nossa
experiência com o empírico, em nosso mundo subjetivo, tem como parceiro
Sancho Pança – um simplório que não nos comunica o empírico, nos comunica o
sensível na sua pobreza sensorial. Uma subjetividade que agrupa Quixote e Pança é
o que, afinal? A caricatura de uma subjetividade e, por isso mesmo, a própria
subjetividade.
Quando damos atenção ao que Kafka relata, que é a experiência de Ulisses diante
da experiência que não houve, começamos a achar que Ulisses é só uma versão a
mais do sujeito, do homem moderno. A outra versão não lhe é negativa, mas
complementar, e tem como herói o cavaleiro da triste figura.

Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo.

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