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Homofobia
História e crítica de um preconceito
Tradução
Guilherme João de Freitas Teixeira
autêntica
Copyright © 2000 Presses Universitaires de France
Copyright desta edição @ 2010 Autêntica Editora
TITULO ORIGINAL
L'homophobie
TRADUÇÃO
Guilherme João de Freitas Teixeira
Diogo Droschi
EDITORAÇÃO ElETRONICA
Alberto Bittencourt
REVISÃO
Cecilia Martins
EDITORA RESPONSÁVEL
Rejane Dias
7
a partir de meados dos anos 1970, ganhou notoriedade e co- e preconceito sexual. Ao demonstrar as particularidades da
nheceu considerável êxito, especialmente nos países do Nor- homofobia individual, social, na cultura e nas instituições, este
te, e foi adquirindo novos contornos semânticos e políticos. livro abre novas oportunidades de pesquisa e compreensão das
Além de ser empregado em referência a um conjunto de ati- lógicas de hierarquização e inferiorização social.
tudes negativas em relação a homossexuais, o termo, pouco a A homofobia tem se revelado como um sistema de humi-
pouco, passou a ser usado também em alusão a situações de lhação, exclusão e violência que adquire requintes a partir de
preconceito, discriminação e violência contra pessoas LGBT. cada cultura e formas de organização das sociedades locais, já
Passou-se da esfera estritamente individual e psicológica para que essa forma de preconceito exige ser pensada a partir da sua
uma dimensão mais social e potencialmente mais politizadora. interseção com outras formas de inferiorização como o racis-
Mais recentemente, verifica-se a circulação de uma compreen- mo e o classismo, por exemplo. Nesse ponto, Daniel Borrillo é
são da homofobia como dispositivo de vigilância das fronteiras insistente, ao evidenciar que a homofobia se alimenta da mes-
de gênero que atinge todas as pessoas, independentemente da ma lógica que as outras formas de violência e inferiorização:
orientação sexual, ainda que em distintos graus e modalidades. "desumanizar o outro e torná-Io inexoravelmente diferente".
Este livro, oportunamente traduzido para o português, Nesses termos, o livro que ora o leitor tem em mãos apresenta
acompanha o movimento de atualização do preconceito se- um debate afinado de como o acirramento das diferenças, mui-
xual na sociedade contemporânea. Para além da origem psí- tas vezes, ocupa disfarçadamente a lógica de exclusão social.
quica das fobias, Daniel Borrillo não só traz para o debate as Na sociedade brasileira ainda temos pouco conhecimento
origens históricas da homofobia, mas também enfatiza a in- sobre a homofobia. Sim, sabemos que ela existe tanto atra-
tensa relação entre a homofobia individual e as formas de ho- vés de dados empíricos, de pesquisas quanto pela lógica da
mofobia institucional, jurídica e social. Nesse ponto, cabe-nos experiência. No entanto, estamos em um momento bastante
ressaltar um dos aspectos que merecem ser sublinhados neste contraditório: sabemos que ela existe, mas sabemos tão pouco
livro: a sua atualidade, marcada por uma compreensão da com- sobre como ela funciona e quais as suas dinâmicas ao se ar-
plexa relação entre as instituições, a cultura, as leis e os indiví- ticular com outras formas de inferiorização. Compreender o
duos quando se trata de compreender a homofobia muito além funcionamento da homofobia, sobretudo quando é evidente
de qualquer sentimento de aversão individual de cunho psi- que o preconceito não só reside nos indivíduos, mas também
cológico. Aí, sem dúvida, podemos perceber a importância de se articula na cultura e nas instituições, é fundamental para
uma abordagem para o fenômeno da homofobia ao considerar aprimorar as formas de enfrentamento e desconstrução de
também que as instituições revelam-se espaços de produção, suas práticas violentas e silenciosas.
reprodução e atualização de todo um conjunto de disposições É ainda no campo do não nomeado e do não pensável que
(discursos, valores, práticas, etc.) por meio das quais a heteros- a homofobia, como mecanismo que é produto e produtor das
sexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade hierarquias sexuais (RUBIN, 1984), das violências e das na-
legítima de expressão sexual e de gênero (WARNER,1993). turalizações das normas de gênero (BUTLER, 2006), reside e
No Brasil, o livro de Daniel Borrillo vem sendo bastante se sustenta. Não nomeado porque sua descrição é de difícil
utilizado, mesmo sem uma tradução para o português até o apreensão e não pensável porque não refletida pelos sujeitos
momento, e ganhou importante espaço em debates entre gru- e pelas instituições.
pos de pesquisa e ativistas, exatamente pela sua atualidade ao Nossa compreensão é a de que o duplo aspecto da norma,
evidenciar as relações entre indivíduos e sociedade numa cum- discutido por Butler (2006) a partir de Foucault, evidencia o
plicidade silenciosa e perversa sobre as formas de inferiorização quanto a norma implica diretamente a formação e orientação
8 Homofobia 9
Prefácio a esta edição
das ações, mas também a normalização violenta que alimenta praticado por indivíduos, grupos e ideologias que pactuam em
a construção de coerções sociais com relação às posições se- algum nível um mundo do sensível que exclui e inclui! Exclui
xuadas. Dessa maneira, abriga aí a violência da normalização, porque o consentimento sempre pressupõe a exclusão de ou-
a qual cria o terreno do não pensável e do silêncio para a vio- tras sociabilidades. E inclui porque busca, através da política do
lência homofóbica, já que a esta corresponde certa coerência armário e do preconceito, integrar nas bases do consentimento
que se encontra implícita no cotidiano da cumplicidade entre a subalternização de alguns grupos e indivíduos.
indivíduos e instituições, como bem evidencia Borrillo neste Estamos, portanto, diante de um fenômeno pouco explo-
livro. Assim, as praticas homofóbicas se instituem como pré- rado no seu funcionamento e bastante complexo, exatamente
reflexivas, e trazer a tona esse mecanismo é urgente na socie- porque não se localiza num âmbito só, nem indivíduo nem
dade brasileira. sociedade. Ele se articula em torno de emoções, condutas,
A prática da violência homofóbica é, então, de difícil diag- normas e dispositivos ideológicos e institucionais, sendo ins-
nóstico nas sociedades atuais, o que neutraliza possibilidades trumento que cria e reproduz um sistema de diferenças para
de enfrentamentos. Aí reside outro aspecto importante da justificar a exclusão e a dominação de uns sobre os outros
obra de Borrillo, pois através da história e da categorização (PRADO;ARRUDA;TOLENTINO, 2009).
da homofobia como forma de violência e humilhação com Encarar a homofonia, nesta perspectiva, exige muito de
cumplicidade jurídica, científica, cultural e institucional, o todos nós. Um bom começo o leitor terá aqui no trabalho que,
autor nos ajuda a dar nomes no terreno do não pensável e apesar de recente, se tornou clássico. Através dele, o leitor terá
do não nomeado. Ou seja, é através do preconceito homo- recursos para nomear formas de preconceito até então resi-
fóbico como elemento de conservação cognitiva e social das dentes no terreno do impensável.
hierarquias invisibilizadas que se constrói e dinamiza o terre-
no do impensável. Portanto, se este não se revela como limite
da percepção e da cultura, mas sim como uma violência que
esconde a violência da não nomeação, elemento fundamental
na manutenção das hierarquias sociais pré-reflexivas, neces-
sário se torna o seu enfrentamento através da nomeação e da
reflexão de sua dinâmica de funcionamento.
Essa tarefa poderá ser encontrada com algumas pistas no
trabalho de Borrillo, o qual consegue, ao ir além da conceitu-
ação das fobias, descortinar ao leitor os muitos mecanismos
da homofobia nas sociedades ocidentais. Dessa forma, o au-
tor nos ajuda a pensar o preconceito como um paradoxo que
busca esconder outro paradoxo: a historicidade e a contin-
gência das relações sociais (PRADO;MACHADO,2008).
Assim, pensar a homofobia exige-nos compreender essas
práticas do preconceito não como meramente individuais, mas,
sobretudo, como consentimentos das práticas sociais, culturais
e econômicas que constituem uma ideologia homofóbica. A
homofobia pode ser pensada como um consentimento social
1 Em sua edição de 1993, ele inclui somente o termo "homofóbico'; mas não
"homofobiâ:
"Homo'; elemento de composição, antepositivo, deriva do grego homós, que signi-
fica "semelhantê; "igual"; a distinguir de seu homônimo "homo'; nominativo latino
de homo, hominis, ou seja, "o homem'; "o gênero humano'; "um homem': (N.T.).
2 Esses dois termos aparecem, pela primeira vez, na sua edição de 1998.
I-
13
norma social como bizarro, estranho ou extravagante. E no Por ser um atributo da personalidade, a homossexualidade
pressuposto de que o mal vem sempre de fora, na França, a deveria manter-se fora de qu~lquer intervenção institucional;
homossexualidade foi qualificada como "vício italiano" ou do mesmo modo que a cor da pele, a filiação religiosa ou a
"vício grego", ou ainda "costume árabe" ou "colonial". À se- origem étnica, ela deve ser considerada um dado não perti-
melhança do negro, do judeu ou de qualquer estrangeiro, nente na construção política do cidadão e na qualificação do
o homossexual é sempre o outro, o diferente, aquele com sujeito de direitos.
quem é impensável qualquer identificação. Ora, de fato, se o exercício de uma prerrogativa ou a frui-
A recente preocupação com a hostilidade contra gays e ção de um direito deixaram de estar subordinados à filiação
as lésbicas modifica a maneira como a questão havia sido real ou suposta, a uma raça, a um ou ao outro sexo, a uma
problematizada até aqui: em vez de se dedicar ao estudo do religião, a uma opinião pública ou a uma classe social, em
comportamento homossexual, tratado no passado como des- compensação, a homossexualidade permanece um obstáculo
viante, a atenção fixa-se, daqui em diante, nas razões que le- à plena realização dos direitos. No âmago desse tratamento
varam a atribuir tal qualificativo a essa forma de sexualidade. discriminatório, a homofobia desempenha um papel impor-
De modo que o deslocamento do objeto de análise para a ho- tante na medida em que ela é uma forma de inferiorização,
mofobia produz uma mudança tanto epistemológica quanto consequência direta da hierarquização das sexualidades, além
política: epistemológica porque se trata não tanto de conhe- de conferir um status superior à heterossexualidade, situan-
cer ou compreender a origem e o funcionamento da homos- do-a no plano do natural, do que é evidente.
sexualidade, mas de analisar a hostilidade desencadeada por Enquanto a heterossexualidade é definida pelos dicioná-
essa forma específica de orientação sexual; e política porque rios (Le Grand Robert, 1992; Le Petit Robert, 1996) como a
deixa de ser a questão homossexual (afinal de contas, banal "sexualidade (considerada como normal) do heterossexual" e
do ponto de vista institucional),3 mas precisamente a questão este como aquele "que experimenta uma atração sexual (con-
homofóbica que, a partir de agora, merece uma problemati- siderada como normal) pelos indivíduos do sexo oposto", por
zação específica. sua vez, a homossexualidade está desprovida de tal norma-
Independentemente de tratar-se de uma escolha de vida lidade. Nos dicionários de sinônimos, nem há registro da
sexual ou de uma questão de característica estrutural do de-
palavra "heterossexualidade"; em compensação, termos tais
sejo erótico por pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade
como androgamia, androfilia, homofilia, inversão, pederastia,
deve ser considerada, de agora em diante, como uma forma
pedofilia, soeratismo, uranismo, androfobia, lesbianismo, safis-
de sexualidade tão legítima quanto a heterossexualidade. Na
mo e tribadismo são propostos como equivalentes ao de "ho-
realidade, ela é apenas a simples manifestação do pluralis- mossexualidade': E se Le Petit Robert considera que um hete-
mo sexual, uma variante constante e regular da sexualidade
rossexual é simplesmente o oposto de um homossexual, este
humana. Enquanto atos consentidos entre adultos, os com-
é designado por uma profusão de vocábulos4: gay, homófilo,
portamentos homoeróticos são protegidos - pelo menos, na
pederasta, veado, salsinha, michê, boiola, bicha louca, tia, san-
França - como qualquer outra manifestação da vida privada.
dalinha, invertido, sodomita, travesti, lésbica, maria homem,
homaça, hermafrodita, baitola, gilete, sapatão, bissexual. Essa
3 A banalização institucional implica que os grandes aparelhos do poder norma-
lizador - tais como a religião, o direito, a medicina ou a psicanálise - renunciem
a abordar a questão homossexual; deste modo, os gays e as lésbicas têm a pos- 4 Vocábulos citados no original: gay, homophile, pédéraste, enculé, folle, homo,
sibilidade de criar, individualmente, sua própria identidade e de negociar suas lope, lopette, pédale, pédé, tante, tapette, inverti, sodomite, travesti, travelo, les-
contribuições a uma cultura específica. bienne, gomorrhéenne, tribade, gouine, bi, à voile et à vapeur. (N.T.).
Introdução 15
14 Homofobia
desproporção no plano da linguagem revela uma operação ele é objeto da atenção dos médicos e deve submeter-se às
ideológica que consiste em nomear, superabundantemente, terapias que lhe são impostas pela ciência, em particular, os
aquilo que aparece como problemático e deixar implícito o eletrochoques utilizados no Ocidente até a década de 1960.
que, supostamente, é evidente e natural. Se algumas formas mais sutis de homofobia exibem certa to-
A diferença homo/hétero não é só constatada, mas serve, lerância em relação a lésbicas e gays, essa atitude ocorre me-
sobretudo, para ordenar um regime das sexualidades em que diante a condição de atribuir-Ihes uma posição marginal e
os comportamentos heterossexuais são os únicos que mere- silenciosa, ou seja, a de uma sexualidade considerada como
cem a qualificação de modelo social e de referência para qual- inacabada ou secundária. Aceita na esfera Íntima da vida pri-
quer outra sexualidade. Assim, nessa ordem sexual, o sexo vada, a homossexualidade torna-se insuportável ao reivindi-
biológico (macho/fêmea) determina um desejo sexual unÍvo- car, publicamente, sua equivalência à heterossexualidade.
co (hétero), assim como um comportamento social especí- A homofobia é o medo de que a valorização dessa iden-
fico (masculino/feminino). Sexismo e homofonia aparecem, tidade seja reconhecida; ela se manifesta, entre outros as-
portanto, como componentes necessários do regime binário pectos, pela angústia de ver desaparecer a fronteira e a hie-
das sexualidades. A divisão dos gêneros e o desejo (hétero) rarquia da ordem heterossexual. Ela se exprime, na vida
sexual funcionam, de preferência, como um dispositivo de re- cotidiana, por injúrias e por insultos, mas aparece também
produção da ordem social, e não como um dispositivo de re- nos textos de professores e de especialistas ou no decorrer
produção biológica da espécie. A homofobia torna-se, assim, de debates públicos. A homofobia é algo familiar e, ainda,
a guardiã das fronteiras tanto sexuais (hétero/homo), quanto consensual, sendo percebida como um fenômeno banal:
de gênero (masculino/feminino). Eis por que os homosse- quantos pais ficam inquietos ao descobrir a homofobia de
xuais deixaram de ser as únicas vítimas da violência homo- um(a) filho(a) adolescente, ao passo que, simultaneamente,
fóbica, que acaba visando, igualmente, todos aqueles que não a homossexualidade de um(a) filho(a) continua sendo fonte
aderem à ordem clássica dos gêneros: travestis, transexuais, de sofrimento para as famílias, levando-as, quase sempre, a
bissexuais, mulheres heterossexuais dotadas de forte persona- consultar um psicanalista?
lidade, homens heterossexuais delicados ou que manifestam Invisível, cotidiana, compartilhada, a homofobia participa
grande sensibilidade ... do senso comum, embora venha a culminar, igualmente, em
A homofobia é um fenômeno complexo e variado que uma verdadeira alienação dos heterossexuais. Por essas ra-
pode ser percebido nas piadas vulgares que ridicularizam o zões é que se torna indispensável questioná-Ia no que diz res-
indivíduo efeminado, mas ela pode também assumir formas peito tanto às atitudes e aos comportamentos quanto a suas
mais brutais, chegando até a vontade de extermínio, como foi construções ideológicas. O que é a homofobia? Quais são suas
o caso na Alemanha Nazista. À semelhança de qualquer for- relações com as outras formas de estigmatização? Quais são
ma de exclusão, a homofobia não se limita a constatar uma suas origens? De que modo e a partir de quais discursos fo-
diferença: ela a interpreta e tira suas conclusões materiais. ram construí das a supremacia heterossexual e a desvaloriza-
Assim, se o homossexual é culpado do pecado, sua condena- ção correlata da homossexualidade? Como definir a persona-
ção moral aparece como necessária; portanto, a consequência lidade homofóbica? Quais são os recursos à nossa disposição
lógica vai exigir sua "purificação pelo fogo inquisitorial': Se para lutar contra essa forma de violência? No decorrer dos
ele é aparentado ao criminoso, então, seu lugar natural é, na quatro capítulos deste livro, vamos tentar responder a essas
melhor das hipóteses, o ostracismo e, na pior, a pena capital, questões, e nossa conclusão é apresentada sob a forma de pro-
como ainda ocorre em alguns países. Considerado doente, posição de ação.
16 Homofobia Introdução 17
Começaremos nosso estudo pela análise das definições problematização se elabora atualmente. As citações históri-
possíveis e dos problemas terminológicos encontrados quan- cas, assim como as referências teóricas do discurso homofó-
do se trata de circunscrever o fenômeno homofóbico. Além bico, são necessariamente incompletas e suscetíveis de serem
disso, para compreender melhor o alcance da questão e de aprofundadas. A hostilidade contra todas as formas de "trans-
suas principais implicações, vamos colocá-Ia sob a perspecti- gressões sexuais" e, em particular, contra a homossexualida-
va de outras formas de exclusão, tais como o racismo, o antis- de, é tão antiga quanto a civilização judaico-cristã; o simples
semitismo, o sexismo ou a xenofobia. recenseamento de tais manifestações exigiria vários volumes.
Em um segundo momento, vamos dedicar-nos ao estudo das Os exemplos pontuais extraídos da História têm a única fina-
origens do ódio homofóbico. A relativa tolerância que o mundo lidade de ilustrar uma demonstração teórica, sem qualquer
pagão havia reservado às relações homossexuais contrasta, con- pretensão de ser um estudo exaustivo. Em vez de pesquisa
sideravelmente, com a hostilidade do cristianismo triunfante. sociológica, análise psicológica ou ensaio jurídico, esta obra
A condenação da sodomia na tradição judaico-cristã - pedra apresenta o balanço atual sobre a questão da homofobia.
angular do sistema repressivo - aparece como o elemento pre-
cursor fundamental das diferentes formas de homofobia.
Analisaremos, em seguida, a ideologia heterossexista vei-
culada pelas principais doutrinas que substituem a noção de
"vício sodomítico" pela noção de "perversão sexual" e que,
daí em diante, consideram a homossexualidade como um
"acidente na evolução afetiva", uma "regressão da cultura
amorosà: uma "simples escolha de vida privadà: um "vício
burguês" ou um "perigo para a raçà: Já não será em nome da
ordem natural, nem em nome da religião que gays e lésbicas
serão objeto das perseguições, mas em nome da psiquiatria,
da antropologia, da consciência de classe e/ou da higiene do
3° Reich, que, ao substituir a teologia, hão de reatualizar, com
eficácia, o ódio homofóbico.
A dupla dimensão da questão, rejeição irracional (afetiva),
por um lado, e, por outro, construção ideológica (cognitiva),
obriga-nos a considerá-Ia no plano individual e no social.
Assim, as predisposições psicológicas da personalidade ho-
mofóbica e os elementos do meio circundante heterossexista
serão objeto da quarta parte deste livro.
Por último, à guisa de conclusão, vamos nos interessar
pelas estratégias institucionais, preventivas e/ou repressoras,
suscetíveis de lutar contra essa forma específica de hostilidade
e de exclusão.
A única pretensão deste livro consiste em fornecer alguns
elementos de reflexão a propósito de um fenômeno cuja
)-,
18 Homofobia Introdução 19
Capítulo 1
"'-'
21
"homoerotofobià' (CHURCHILL, 1967), "homossexofobià' imigração, na França, são muito significativos, no sentido em
(LEVIT; KLASSEN, 1974), "homossexismo" (LEHNE, 1976) e que a questão da igualdade foi cuidadosamente esquivada).
"heterossexismo" (MORIN; GARFINKLE,1978). A partir da crítica do termo "homofobià' - adotado por
As primeiras críticas provêm de J. Boswell (1985), ao ob- razões de ordem prática8 -, tentaremos extrair uma definição
servar que o termo "homofobià' significaria, de preferência, mais adequada da hostilidade contra as lésbicas e os gays no
"receio do semelhante'; em vez de "receio do homossexual': contexto da França contemporânea.
Por essa razão, esse historiador prefere retomar a palavra "ho- A ideologia que preconiza a superioridade da raça branca
mossexofobià; na medida em que este termo parece-lhe mais é designada sob o termo "racismo"; a que promove a superio-
adequado do ponto de vista etimológico, apesar de seu caráter ridade de um gênero em relação ao outro se chama "sexismo':
híbrido. Todavia, essa denominação continua sendo insatisfa- O antissemitismo designa a opinião que justifica a inferiori-
tória por referir-se exclusivamente à atitude extrema de apreen- zação dos judeus, enquanto a xenofobia refere-se à antipatia
são psicológica (fobia), ocultando outras formas de hostilidade diante dos estrangeiros. Portanto, em função do sexo, da cor
menos irracionais. Ora, se existem reações virulentas contra os da pele, da filiação religiosa ou da origem étnica é que se ins-
gays e as lésbicas, a homofobia cotidiana assume, sobretudo, a taura, tradicionalmente, um dispositivo intelectual e político
forma de uma violência do tipo simbólico (BOURDIEU, 1998), de discriminação. O sistema a partir do qual uma sociedade
que, na maior parte das vezes, não é percebida por suas víti- organiza um tratamento segregacionista segundo a orienta-
mas. Nesse sentido, e a fim de circunscrever melhor a ques- ção sexual9 pode ser designado sob o termo geral de "heteros-
tão, Hudson e Ricketts (1980) propuseram a distinção entre sexismo': Esse sistema e a homofobia - compreendida como
homofobia e homonegatividade: esta última refere-se não só a consequência psicológica de uma representação social que,
ao caráter de aversão e de ansiedade peculiares à homofobia pelo fato de outorgar o monopólio da normalidade à heteros-
no sentido clássico do termo, mas também e sobretudo ao con- sexualidade, fomenta o desdém em relação àquelas e àqueles
que se afastam do modelo de referência - constituem as duas
junto das atitudes cognitivas de cunho negativo para com a
homossexualidade nos planos social, moral, jurídico e/ou an- faces da mesma intolerância e, por conseguinte, merecem ser
denunciados com o mesmo vigor utilizado contra o racisrpo
tropológico. O termo "homofobià' designa, assim, dois aspec-
ou o antissemitismo.
tos diferentes da mesma realidade: a dimensão pessoal, de na-
tureza afetiva, que se manifesta pela rejeição dos homossexuais;
e a dimensão cultural, de natureza cognitiva, em que o objeto 8 Para exprimir a complexidade do fenômeno, de maneira mais satisfatória, de-
da rejeição não é o homossexual enquanto indivíduo, mas a veríamos utilizar, em vez de homofobia específica, os seguintes termos: "gayfo-
homossexualidade como fenômeno psicológico e social. Essa bia'; para a homofobia em relação aos homossexuais masculinos; "lesbofobia",
no caso de mulheres homossexuais, vítimas do menosprezo em decorrência de
distinção permite compreender melhor uma situação bastante
sua orientação sexual; "bifobia", ao se tratar de bissexuais; ou, ainda, "travesti-
disseminada nas sociedades modernas que consiste em tolerar fobia" ou "transfobia'; em relação aos travestis ou aos transexuais que sofrem
e, até mesmo, em simpatizar com os membros do grupo estig- tal hostilidade. Por razões de economia de linguagem, adotamos "homofobia"
matizado; no entanto, considera inaceitável qualquer política para o conjunto desses fenômenos.
de igualdade a seu respeito (os debates sobre o PaCS7 e sobre a 9 A orientação sexual é uma componente da sexualidade enquanto conjunto
de comportamentos relacionados com a pulsão sexual e com sua concretiza-
ção. Se a atração sexual é dirigida para pessoas do mesmo sexo, designamos
7 Para obter mais esclarecimentos sobre o debate em torno do PaCS [Pacte civil de tal orientação por "homossexualidade"; se ela se inclina para o sexo oposto,
solidarité/Pacto Civil de Solidariedade - regulariza, na França, a união entre pessoas trata-se de "heterossexualidade"; e, ainda, de "bissexualidade'; se o sexo do
do mesmo sexo], conferir Borrillo, Fassin e Iacub (1999). parceiro é indiferente.
22 Homofobia
Definições e questões terminológicas 23
Homofobia irracional e homofobia cognitiva escárnio. A injúria constitui a injunção da homofobia afetiva
com a cognitiva na medida em que, de acordo com a observa-
Uma primeira forma de violência contra gays e lésbicas
ção de D. Éribon (I999a, p. 29),
caracteriza-se por sentimento de medo, aversão e repulsa.
Trata-se de uma verdadeira manifestação emotiva, do tipo fó- [...] as expressões "veado nojento" ("sapatão sem vergonhà')lo
bico, comparável à apreensão que pode ser experimentada em estão longe de ser simples palavras lançadas ao vento, mas
espaços fechados (claustrofobia) ou diante de certos animais agressões verbais que deixam marcas na consciência, trau-
mas que se inscrevem na memória e no corpo (de fato, a
(zoofobia). Esse teria sido o sentido original do termo "ho- timidez, o constrangimento e a vergonha são atitudes cor-
mofobiá' que, no entanto, se revelou bem depressa como ex- porais resultantes da hostilidade do mundo exterior). E uma
tremam ente limitado, abrangendo de forma bastante parcial das consequências da injúria consiste em modelar a relação
a amplitude do fenômeno. Com efeito, essa forma brutal de com os outros e com o mundo; portanto, em modelar a per-
sonalidade, a subjetividade e o próprio ser de um indivíduo.
violência corresponde unicamente a uma atitude irracional
que encontra suas origens em conflitos individuais. A violência em estado puro - destilada pela homofobia
Outras manifestações menos grosseiras, sem deixarem psicológica - nada é além da integração paradigmática de
de ser menos insidiosas, exercem suas violências cotidiana- uma atitude anti-homossexual que, aliás, permeia a história
mente. Essa outra forma de homofobia, mais eufemística e de de nossas sociedades. O medo, às vezes pueril, suscitado ain-
cunho social, enraíza -se na atitude de desdém constitutiva de da pela homossexualidade resulta da produção cultural do
um modo habitual de apreender e de categorizar o outro. Se Ocidente judaico-cristão. Dos textos sagrados às leis laicas,
a homofobia afetiva (psicológica) caracteriza-se pela conde- passando pela literatura científica e pelo cinema, a campanha
nação da homossexualidade, a homofobia cognitiva (social) de promoção da heterossexualidade não hesita em proferir
pretende simplesmente perpetuar a diferença homo/hétero; o anátema não só contra a homossexualidade, mas também
neste aspecto, ela preconiza a tolerância, forma civilizada da contra qualquer manifestação de afeto entre pessoas do mesmo
clemência dos ortodoxos em relação com os heréticos. Neste sexo. Assim, a homofobia cognitiva serve de fundamento a um
último registro, ninguém rejeita os homossexuais; entretanto, saber sobre o homossexual e a homossexualidade baseado em
ninguém fica chocado pelo fato de que eles não usufruam dos um preconceitoll que os reduz a um clichê.
mesmos direitos reconhecidos aos heterossexuais. Como é
ironicamente descrito por Fassin (1999): Homofobia geral e homofobia específica
No mundo social, toda a gente gosta dos homossexuais em Considerando a complexidade do fenômeno, se essa pri-
geral - inclusive, muitas pessoas têm amigos homossexuais meira distinção entre homofobia psicológica (individual)
em particular. Entretanto, ninguém iria ao ponto de defen- e homofobia cognitiva (social) é indispensável, ela é insufi-
der a igualdade das sexualidades, proposição radical que es- ciente. Outras classificações são necessárias para circunscre-
barra no senso comum: mesmo que nada exista de anormal ver melhor o mosaico de situações que, sob o mesmo termo,
na homossexualidade, cada um de nós sabe que o casamento
ou a filiação reconhecidos aos casais do mesmo sexo não se- agrupa diversas formas de antipatia contra gays e lésbicas.
riam considerados uma situação normal.
10 No original, "sale pédé" ("sale gouine"); "pédé" é a abreviatura, em francês, de
Presente nos insultos, nas piadas, nas representações cari- "pédéraste". (N.T.).
caturais, assim como na linguagem corrente, a homofobia des- II No original, "préjugé" [em castelhano: "prejuicio"; em italiano: "pregiudizio"; e
creve os gays e as lésbicas como criaturas grotescas, objetos de em inglês "prejudice"], literalmente: "pré-juízÔ'. (N.T.).
24 Homofobia 25
Definições e questões terminológicas
Como já descrevemos, a homofobia mostra hostilidade não implacável, fixa o indivíduo seja à masculinidade, seja à femini-
só contra os homossexuais, mas igualmente contra o conjunto lidade. E quando se profere o insulto "veado!" ["pédé!"], denun-
de indivíduos considerados como não conformes à norma cia-se quase sempre um não respeito pelos atributos masculinos
sexual. Em função da amplitude do termo, é possível estabe- "naturais" sem que exista uma referência particular à verda-
lecer uma primeira distinção entre homofobia geral e homo- deira orientação sexual da pessoa. Ou quando se trata alguém
fobia específica. como homossexual (homem ou mulher), denuncia-se sua
O sociólogo D. Welzer-Lang foi o primeiro que, na França, condição de traidor(a) e desertor(a) do gênero ao qual ele ou
ampliou a noção de homofobia a discursos e comportamentos ela pertence "naturalmente':
que, superando a mera apreensão em relação a gays ou lésbi- Ao contrário da homofobia geral, a homofobia específica
cas, articulam uma forma geral de hostilidade contra atitudes constitui uma forma de intolerância que se refere, especial-
opostas aos papéis sociossexuais pré-estabelecidos. Para esse mente, aos gays e às lésbicas. Alguns autores propuseram a dis-
autor, a homofobia geral nada é além de uma manifestação do tinção entre "gayfobia" e "lesbofobià' - noções que designam
sexismo, ou seja, da discriminação de pessoas em razão de seu declinações possíveis dessa homofobia específica. As represen-
sexo (macho/fêmea) e, mais particularmente, de seu gênero tações de cada um dos sexos, assim como as funções que lhes
(feminino/masculino). Essa forma de homofobia é definida são inerentes, merecem efetivamente uma terminologia pecu-
como "a discriminação contra as pessoas que mostram, ou às liar. A lesbofobia12 constitui uma especificidade no âmago de
quais são atribuídas, determinadas qualidades (ou defeitos) outra: com efeito, a lésbica é vítima de uma violência particular,
imputadas ao outro gênero': Assim, nas sociedades profun- definida pelo duplo desdém que tem a ver com o fato de ser
damente marcadas pela dominação masculina, a homofobia mulher e homossexual. Diferentemente do gay,ela acumula as
organiza uma espécie de "vigilância do gênero': porque a viri- discriminações contra o gênero e contra a sexualidade.
lidade deve estruturar-se em função de dois aspectos: negação Na opinião de F. Guillemaut (1994, p. 225), o que ca-
do feminino e rejeição da homossexualidade. De acordo com racteriza as lésbicas nas relações sociais baseadas no gê-
Welzer-Lang (1994, p. 20; ver também KOPELMAN, 1994), nero é o seguinte fato: em razão de sua feminilidade, elas
são invisíveis e silenciosas. A historieta atribuída à rainha
[...] a homofobiano masculino é a estigmatização[...] por Vitória, no momento da atualização, no século XIX, das
designação,repulsaou violência,das relaçõessensíveis- se-
xuaisou não - entre homens,particularmente,quando estes penas contra as relações sexuais entre homens é bastan-
são apontadoscomohomossexuaisou se afirmamcomotais. te eloquente. Tendo sido interrogada sobre a impunidade
A homofobia é, igualmente,a estigmatizaçãoou a negação das relações sexuais entre mulheres, a rainha respondeu:
das relaçõesentre mulheres que não correspondem a uma "Como punir algo que não existe?". Do mesmo modo, em
definiçãotradicionalda feminilidade.
sua obra Psychopathia sexualis, R. von Krafft-Ebing (1886)
É assim que a homofobia geral permite denunciar os des- observa que "todas as informações suscetíveis de serem
vios e deslizes do masculino em direção ao feminino e vice- obtidas na literatura especializada demonstram claramen-
versa, de tal modo que se opera uma reatualização constante te que, em relação às mulheres, trata-se raramente de uma
nos indivíduos ao lembrar-Ihes sua filiação ao "gênero corre- autêntica homossexualidade, mas sobretudo de uma pseu-
to': Segundo parece, qualquer suspeita de homossexualidade do-homossexualidade"; de qualquer modo, no pressupos-
é sentida como uma traição suscetível de questionar a identi- to de que ela venha a ser confirmada "a homossexualidade
dade mais profunda do ser. Desde o berço, as cores azul e rosa
marcam os territórios dessa summa divisio que, de maneira 12 A gayfobia é abordada, mais adiante, no primeiro título do Capítulo IV.
26 Homofobia
Definições e questões terminológicas 27
da mulher não tem as graves consequências da homosse- de uma misoginia que, ao transformar a sexualidade femini-
xualidade do homem': 13 O fato de tornar essa sexualidade na em um instrumento do desejo masculino, torna impensá-
invisível parece estar, portanto, no âmago da violência homo- veis as relações erótico-afetivas entre mulheres. A iconografia
fóbica em relação às mulheres. Se é mais difícil "detectar" a pornográfica heterossexual ilustra perfeitamente essa realida-
homossexualidade feminina, assinala H. Ellis (1895), é pre- de: os jogos sexuais entre mulheres são sistematicamente repre-
cisamente porque "estamos habituados ao fato de que a in- sentados para excitar o homem, e, mesmo que elas deem a im-
timidade é maior entre mulheres que entre homens; ora, tal pressão de ter prazer, o desfecho do espetáculo sexual é sempre
constatação impede-nos de suspeitar da existência de uma protagonizado pela penetração e pela ejaculação do homem.
paixão anormal entre elas': Alguns anos depois, ao analisar O menosprezo dos homens pela sexualidade feminina - in-
a homossexualidade, S. Freud refere-se quase exclusivamente cluindo a da lésbica, considerada como inofensiva - trans-
aos homens; o pai da psicanálise dedica um único estudo à forma-se em violência quando as mulheres contestam o sta-
homossexualidade feminina (1920) e, diferentemente do que tus atribuído a seu sexo, ou seja, quando elas rejeitam ser
ocorre com os outros analisandos, ele não chega a adotar um esposas e mães. A obra organizada por Ch. Bard (1999), Um
pseudônimo para a paciente.14 século de antijeminismo, dá testemunho do ódio contra as
Se as lésbicas foram, visivelmente, menos perseguidas que lutas libertadoras das mulheres: se rejeitam a maternidade,
os gays, tal constatação não deve ser interpretada, de modo as mulheres tornam-se um perigo para si mesmas e para a
algum, como indício de uma maior tolerância a seu respeito; sociedade porque, ao assumirem uma atitude viril, elas co-
pelo contrário, essa indiferença nada mais é do que o sinal de locam sob ameaça não só sua identidade, mas, sobretudo, o
uma atitude que manifesta um desdém muito maior, reflexo equilíbrio demo gráfico.
No momento em que as reivindicações feministas come-
13 As instâncias judiciais europeias compartilhavam o ponto de vista do psiquia- çaram a surgir, os médicos reagiram vigorosamente ao con-
tra do século XIX. Com efeito, na petição apresentada à Comissão Europeia dos siderar essas mulheres emancipadas como depravadas "que
Direitos Humanos, em 1975, por um cidadão alemão que havia sido condenado preferem o laboratório ao quarto dos filhos". Ao abandonar
por sodomia, o pleiteante evocava uma violação do princípio de igualdade entre
sua função social, essas mulheres constituíam, "do ponto de
os sexos; de fato, tratando-se de uma mulher homossexual, não havia punição
vista moral e físico, uma geração de pervertidas que, além de
para as relações com um individuo do mesmo sexo. O tribunal respondeu que "a
existência de um perigo social específico a propósito da homossexualidade mas- tudo, produzem filhos efeminados e filhas viris" (HOWARD,
culina [...] pelo fato de que os homossexuais masculinos constituem, frequente- 1900, p. 687); e se rejeitam os papéis de esposa e mãe que lhes
mente, um grupo sociocultural distinto que se empenha em um nítido proseli- são atribuídos, é precisamente por detestarem os homens.
tismo em relação aos adolescentes, que, desse modo, correm um sério risco de
Como sublinha Ch. Bard (1999, p. 28)
isolamento social [...], a questão dos atos homossexuais entre mulheres nunca foi
considerada como suscetível de criar para os jovens um dos inconvenientes seme- [...] ao desafiarem, por sua simples existência, a norma de um
lhantes àqueles que são desencadeados pela homossexualidade masculinà: Por sexo destinado "por naturezà' ao casamento e à maternidade,
essa razão é que a Comissão tirou a conclusão segundo a qual, nesse caso concreto, as lésbicas são associadas espontaneamente aos/às feministas
não existe discriminação (Petição n° 5935/72, de 30 de setembro de 1975). que contestam a rigidez exclusiva de tais "destinos': Antifemi-
14 "Essa omissão é impressionante, sublinham N. O'Connor e J. Ryan: ... deixar de nismo e lesbofobia se nutrem, portanto, reciprocamente; neste
atribuir um nome a alguém é, de algum modo, recusar-lhe o estatuto de sujeito. caso, a lesbofobia é um recurso eficaz para descrever um femi-
nismo "contra a naturezà' e "imoral':
Como efeito, esse procedimento cria um distanciamento, uma despersonaliza-
ção e uma reificação, além de representar provavelmente o primeiro indício da
dificuldade onipresente entre os psicanalistas para abordar a questão do lesbia-
Eis como a caricatura antifeminista transformou a mu-
nismo" (1993, p. 30, apud PEERS; DEMCZUK in DEMCZUK, 1998, p. 85). lher autônoma em uma lésbica e a própria lésbica em uma
28 Homofobia 29
Definições e questões termino lógicas
personagem invisível, discreta, simples vítima de um senti- A heterossexualidade aparece, assim, como o padrão para
mento necessariamente passageiro e suscetível de "reparação" avaliartodas as outras sexualidades. Essa qualidade normativa -
pela intervenção salutar de um homem "de verdade': e o ideal que ela encarna - é constitutiva de uma forma específica
Assim, segundo parece, qualquer tipo de problematização te em função da outra e a partir da negação de seu contrário.
exclusiva da homossexualidade só tem condições de produzir Ser homem é, em primeiro lugar e antes de mais nada, não
argumentos homofóbicos: em vez de denunciar o fato de que ser mulher; além disso, ser heterossexual implica, necessa-
um aspecto da personalidade (a orientação sexual) constitui riamente, não ser homossexual. Desde o livro do Gênesis até
um obstáculo para o reconhecimento dos direitos, o pensa- a psicanálise, passando pela literatura romântica, a mulher
mento diferencialista empenha-se em questionar e sublinhar tem sido pensada corno um homem incompleto (portanto,
a diferença. Todavia, a atenção deveria estar dirigida não para necessitando dele para atingir sua completude); do mesmo
inscrita formalmente na ordem jurídica. Nenhuma outra "ca- 24 A primeira proposta de lei contra as afirmações homofóbicas foi registrada
na Assembleia Nacional francesa, sob o n° 1.893, em 9 de novembro de 1999,
tegoria" da população é excluída da fruição dos direitos funda-
pelo deputado liberal François Léotard. Inspirado pelo "Manifeste pour une
mentais em razão de sua filiação a uma raça, religião, origem stratégie contre l'homophobiê' [Manifesto em favor de uma estratégia contra
étnica, sexo ou a qualquer outra designação arbitrária. Além a homofobia], publicado pelo periódico parisiense de esquerda Libération, em
disso, enquanto o racismo, o antissemitismo, a misoginia ou 3 de dezembro de 1999, o Partido Comunista francês apresentou, em 1° de
fevereiro de 2000, uma proposta de lei com o objetivo de combater a incita-
a xenofobia são formalmente condenados pelas instituições,
ção ao ódio homofóbico. Um mês depois, adotando o mesmo procedimento, o
a homofobia continua sendo considerada quase uma opinião
grupo socialista do Senado apresentou uma proposta "no sentido de sancionar
de bom senso. Praticamente, o conjunto da doutrina jurídi- as afirmações de caráter discriminatório"; e com o mesmo intuito, os Verdes
ca (BORRILLO, "Pantasmes des juristes ..:: 1999), as religiões apresentaram, igualmente, a proposição nO2.376.
C"-'
43
triunfante28 transformará essa exclusão da natureza no ele- o homossexual em um pária suscetível de comprometer os
mento precursor e capital da ideologia homofóbica. Mais próprios alicerces da sociedade (FOUCAULT, 1999). Ao enfa-
tarde, se o sodomita é condenado à fogueira, se o homosse- tizar a condenação da homossexualidade e ao dissimular as
xual é considerado um doente suscetível de ser encarcerado narrativas em que personagens bíblicos manifestam, aber-
ou se o perverso acaba seus dias nos campos de extermínio, tamente, seus sentimentos para com pessoas de seu sexo, a
é porque eles deixam de participar da natureza humana. A Igreja organiza uma censura dos textos sagrados a fim de
desumanização foi, assim, a condi tio sine qua non da inferio- promover, incessantemente, a heterossexualidade monogâ-
rização, da segregação e da eliminação dos "marginais em mica. Além de ser obrigatório lembrar o castigo impiedoso
matéria de sexo". infligido a Sodoma e Gomorra, conviria silenciar as intensas
Além disso, se a origem do androcentrismo deve ser relações - sinal de uma homofilia latente - entre as figuras bí-
procurada no pensamento pagão, como é ilustrado pelo es- blicas, tais como Davi e Jônatas (Primeiro Livro de Samue118,
tudo de F. Valdes (1996), as fontes do heterossexismo e da 20,41; Segundo Livro de Samuel, 1,23 e 1,26), Rute e Noemp!
homofobia encontram-se, sem qualquer dúvida, na concep- ou ainda Jesus e João, seu discípulo bem-amado.32
ção sexual do pensamento judaico-cristão. Segundo esse
autor, as elites judaico-cristãs, assim como as do universo o mundo greco-romano
greco-romano, acreditavam na superioridade do masculino A Grécia Antiga reconhecia oficialmente os amores mas-
e na ordem patriarcal que é sua consequência. Mas elas in- culinos; se as relações sexuais entre homens desempenha-
troduziram, igualmente, um elemento novo que modificará vam uma função iniciática, nem por isso tais ritos estavam
radicalmente o paradigma da sexualidade: a abstinência. desprovidos de desejo e prazer. Assim, impregnada por essa
A única exceção a esse ideal asceta que, ao mesmo tem- atmosfera de erotismo viril, a sociedade grega considerava a
po, permite confirmar seu status é o ato sexual reprodutor homossexualidade como legítima. Com efeito, embora a re-
no âmbito do casamento religioso. A sexualidade não re- lação entre o adolescente (eromenos) e o adulto (erastes) as-
produtora - e, em particular, a homossexualidade, forma sumisse o caráter de uma preparação para a vida marital, os
paradigmática do ato estéril por essência - constituirá, daí atos homossexuais usufruíam de verdadeiro reconhecimento
em diante, a configuração mais acabada do pecado contra social. O termo "pederastià' - do grego pais, paidós (meni-
a natureza. no) e éros, érotos (amor, paixão, desejo ardente) - implicava
Ao apoiar-se em uma leitura incompleta e preconceitu- a afeição espiritual e sensual de um homem adulto por um
osa dos textos bíblicos,29 o cristianismo - desde os Padres menino. Um diálogo apócrifo do escritor grego Luciano de
da Igreja30 até a teologia moderna, passando pela Escolás- Samósata (atualmente, cidade da Síria), nascido por volta de
tica e pela tradição canônica - não deixou de transformar 120 de nossa era, relata que
28 Ao tornar-se religião oficial do Império Romano, em 380. O imperador Cons- 31 "Mas Rute respondeu: 'Não insistas comigo para que te deixe e me afaste de ti!
tantino havia concedido aos cristãos - em 313, com a publicação do Edito de Porque aonde fores, irei contigo; onde pousares, lá pousarei eu; teu povo será
Milão - o direito de praticar livremente sua religião. meu povo e teu Deus será meu Deus. Onde morreres, ali morrerei e serei sepul-
29 J. Boswell (1985) elaborou uma crítica radical contra a leitura proposta pelas au- tada onde estiver tua sepultura. Que o Senhor me trate como quiser; somente
toridades religiosas sobre a sodomia e os sodomitas (d. VALLE, 2006; LIMA, a morte me separará de ti!" (Livro de Rufe, 1,16-17). Cf. Bíblia Sagrada. Edição
2007; 2009; FERNANDES, 2008; LONGO, 2009; SILVA, 2009). da Família. Petrápolis: Editora Vozes, 2001.
30 Referência aos bispos, do Ocidente e do Oriente, que se distinguiram, antes do 32 "Um deles, a quem Jesus amava [...] inclinando-se sobre o peito de Jesus [...]"
século V, na defesa da verdadeira doutrina cristã. (N.T.). (Evangelho de João, 13,23-25). Ver Frontain, 1997.
38 Tradução literal do original. Entre colchetes, os termos utilizados em três versões o termo "efeminados" precede o de "sodomitas" ou "pederastas".
da Bíblia, em português: BSFV [Bt'bliaSagrada, Edição da família, Editora Vozes, 40 De acordo com a observação de Colin Spencer (1998), o próprio Agostinho
2001]; BSCB [Bt'bliaSagrada, tradução da CNBB, 2001]; e BJFA [Bíblia traduzi- tinha vivido uma ardente paixão com um homem, exprimindo seu profundo
da por João Ferreira de Almeida, Sociedade Bíblica do Brasil, 2004]. (N.T.). sofrimento pela morte do amigo: "Parecia-me que nossas duas almas (escreve
me de Touraine-Anjou] estabelece o seguinte: "Se alguém é 44 Do ponto de vista penal, a maioridade era de 13 anos para os atos heterossexuais
e de 21 anos para os atos homossexuais. A decisão do governo de Pétain tem a
suspeito de devassidão [bougrerie] contra a natureza, a justiça
ver com a política eugenística do poder nazista. De acordo com a observação
deve prendê-Io e enviá-Io ao bispo; e se for comprovado seu
de J. Danet (1977, p. 82), "para proteger a raça com eficácia, para salvar o povo
ato, ele deverá ser queimado; todos os seus bens móveis são da França de si mesmo, o marechal protege sua juventude e deve, evidentemen-
entregues ao suserano. E deve-se adotar esse procedimento te, protegê-Ia dos perversos". Sobre a história da penalização e despenalização,
em relação aos heréticos". ver o artigo de Lascoumes (1998).
""Proibições contra a conduta (homossexual) têm raizes antigas [...] a condenação 49 Documento romano - Declaração "Persona humanà' - de 1976 sobre algumas
dessas práticas está firmemente enraizada nos padrões morais e éticos da tradição questões de ética sexual; cf. Théo - EEncyclopédie eatholique pour tous, 1989,
judaico-cristã [...] a invocação do requerente do Levítico e dos Romanos [...] é uma p. 823; cf. ALISON, 2008; BOFFO, 2009; BENTO XVI, 2010; SCOFIELD JR.,
afirmação de que os valores judaico-cristãos proíbem tal condutà' (BOWERS, 1986). 2010.
As doutrinas heterossexistas
e a ideologia homofóbica
""
63
infantil, a masturbação, o fetichismo e a sodomia, assumem ver- mas sobretudo do discurso na área da medicina. A própria
dadeira autonomia. Começando por estar a serviço da medicina noção de homossexualidade é o resultado de uma tentativa de
e, em seguida, das ciências sociais (e em detrimento do direi- medicalização da velha ideia de sodomia; seus precursores fo-
to e da moral), os prazeres homossexuais tornam-se o objeto ram Karl Heinrich Ulrichs53 (1825-1895), assim como Károly
privilegiado de uma nova tentativa de normalização dos indi- Mária Kertbeny54 (1824-1882). Com efeito, eles consideram
víduos e da subjugação das consciências. A antiga hostilidade que a ausência de desejo pelas pessoas do sexo oposto impele
religiosa contra os sodomitas encontra nova vitalidade em um a relações necessariamente estéreis, situação considerada for-
discurso que, revestido de linguagem científica, torna legítima çosamente patológica, sobretudo, em um momento em que
a inferiorização e, às vezes, até mesmo o extermínio dos indi- a teoria darwiniana sobre a evolução das espécies - ampla-
víduos considerados, daí em diante, não mais como pecadores, mente disseminada nas esferas científicas - confere posição
contrários à ordem divina, mas como perversos (ver FOUCAULT, de destaque à reprodução sexual. Outros médicos e psiquia-
1976-1984, t. I, p. 59) e perigosos para a ordem sanitária. tras da época propõem uma interpretação mais diferenciada.
A ideologia homofóbica está contida no conjunto das Em particular, nos escritos de Carl Friedrich Otto Westphal
ideias que se articulam em uma unidade relativamente sis- (1833-1890), Ríchard Freiherr von Krafft-Ebing (1840-1902)
temática (doutrina) e com finalidade normativa (promover e Arrigo Tamassia (1849-1917), foi possível ler que a atra-
o ideal heterossexual). Forma sofisticada das concepções ção de pessoas por outras de seu próprio sexo constitui uma
populares e cotidianas sobre a homossexualidade, as teorias forma de "monomania afetivà' que, entretanto, não afeta, de
homofóbicas, através de suas diferentes vertentes, propõem modo algum, o resto da personalidade do homossexual. Em-
uma forma de considerar os gêneros e as sexualidades pela bora esses autores tivessem tido a intenção de lutar, pelo viés
construção de um sistema de valores (a promoção da heteros- da medicalização, em favor de uma descriminalização dos
sexualidade monogâmica) e pela proposição de um projeto comportamentos homoeróticos, uma forma moderna de hos-
político (a diferenciação, a cura, a segregação ou a eliminação tilidade começou a desenhar-se, desde o final do século XIX,
dos/as homossexuais). As doutrinas heterossexistas permitem desencadeada por essa patologização da homossexualidade.
fortalecer a dominação dos "normais" sobre os "anormais", Do mesmo modo que a teoria contemporânea do darwinismo
além de ter em comum - da medicina à sexologia, passando social serviu, conforme sublinha G. Chauncey (1985), para
pela psicanálise e pela antropologia - essa formidável capaci- legitimar o racismo e o colonialismo, ao defender a ideia de
dade para produzir discursos sobre a homossexualidade; aliás, uma hierarquia racial do desenvolvimento social baseada na
tais discursos estão na origem da justificativa das políticas biologia, assim também as primeiras teorias sexológicas jus-
discriminatórias. Vamos abordar, aqui, as principais opiniões tificaram a subordinação das mulheres ao afirmar seu cará-
(apresentadas em sua linguagem científica), agrupando-as em ter biologicamente determinado; e, paralelamente, em razão
função da ideia central, articuladora de uma forma proble-
mática de analisar o desejo pelas pessoas de seu próprio sexo. 53 Ele próprio homossexual, K. Ulrichs publicou numerosos artigos sob o pseudô-
nimo de "Numa Numantius" ao popularizar o termo "uranismo" para referir-se
A homofobia clínica à homossexualidade provocada por uma anomalia hereditária que produzia
uma "alma feminina presa no corpo de um homem'; mais tarde, Carl Westphal
No decorrer do século XIX, a força normativa do casal retoma as teses de Ulrichs para afirmar a existência de um "terceiro sexo': no
heterossexual culmina na rejeição do celibatário e do homos- qual ele coloca os homossexuais.
sexual. Essa normatização deixará de emergir - como ocorria 54 Esse escritor húngaro de expressão alemã teria sido, segundo T.-C. Feray (1989,
durante os séculos precedentes - da lei divina ou do direito, p. 24), o inventor da palavra "Homosexualitiit':
68 Homofobia 69
As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica
pôde ou não soube superar os conflitos capitais da infância. A A homossexualidade - sublinha Lacan - não deixa de ser o
ideia segundo a qual uma "boà' solução dos conflitos culmina que ela é: uma perversão" (LACAN,1991, p. 42-43).59
necessariamente na heterossexualidade exclusiva encontra-se As explicações propostas pela psicanálise têm a ver com a
no âmago da teoria psicanalítica. A preeminência de uma forma ideologia. Os gays e as lésbicas são oriundos de famílias dota-
de sexualidade em relação a outra aparece como uma concessão das de tipos semelhantes às dos heterossexuais ou bissexuais; o
intelectual à sociedade conservadora do início do século XX. desejo por pessoas do mesmo sexo ou por pessoas mais idosas
Ao ser formulada a questão para saber se um homosse- ou mais jovens, a atração por louros ou morenos, por intelec-
xual podia tornar-se psicanalista, tanto S. Freud quanto S. tuais ou artistas, assim como a preferência pelo tipo asiático
Ferenczi - que, em sua época, não deixavam de ser bastante ou mediterrâneo poderiam ser explicados de várias maneiras
progressistas58 - dobraram-se às exigências de E. ]ones, que, e no contexto de cada história pessoal. Afinal de contas, "qual é
no âmago da International Psychoanalytical Association, re- prova de que a heterossexualidade não é tão complexa quanto
cusou categoricamente considerar a questão ao assinalar que, a homossexualidade e não é também o produto de lutas na pri-
na percepção das pessoas, a homossexualidade era "um cri- meira infância e na infância para superar, entre outros aspectos,
me repugnante: se um de nossos membros viesse a cometê- traumatismos, conflitos e frustrações?" (STOLLER, 1989,p. 135).
10, seríamos gravemente desacreditados por sua presença, ele Se pode parecer legítimo questionar-nos sobre nossos
iria atrair para nós um grave descrédito': Mais tarde, Anna próprios desejos ou procurar conhecer as razões que condi-
Freud há de empreender uma ardente luta contra o acesso cionam nossas preferências sexuais, a problematização de um
dos homossexuais à profissão psicanalítica. Sendo ela própria tipo de desejo, em detrimento de todos os outros, pressupõe
lésbica, a filha do pai da psicanálise "teve sempre o objetivo que os únicos seres a serem considerados "normais" sejam
de transformar seus pacientes homossexuais em bons pais aqueles que amam as pessoas do sexo oposto, além de terem
de família heterossexuais, no decorrer de sua prática clínicà' a mesma cor de pele, a mesma idade, serem oriundas do mes-
(PLON;ROUDINESCO, 1996, verbete "Homosexualité", p. 450). mo meio social, praticarem a mesma religião e pertencerem
a uma cultura comum. Na realidade, esse pressuposto não
Do mesmo modo, J. Lacan, figura progressista da nova
psicanálise, não escapará aos preconceitos homofóbicos. possui qualquer apoio racional, mas baseia-se em um postu-
lado arbitrário que consiste em acreditar na superioridade das
De fato, ele vai ainda mais longe que Freud ao lembrar o
tendências heterossexuais e na doxa etnocêntrica segundo a
caráter fundamentalmente perverso da homossexualidade,
qual é preferível permanecer entre pessoas do mesmo meio,
tanto na Antiguidade quanto em nossos dias: "Apretexto de
em vez de expor-se às diferenças, sejam elas sexuais, culturais,
ser uma perversão aceita, aprovada, até mesmo, festejada,
sociais, de geração e/ou políticas.
não nos venham dizer que não se trata de uma perversão.
A busca das causas da homossexualidade constitui, por
si só, uma forma de homofobia (DORAIS,1994), já que ela
"Em 1903, Freud defende publicamente, no diário Die Zeit, um homem pro- se baseia no preconceito que pressupõe a existência de uma
cessado judicialmente por práticas homossexuais. Em 1935, em carta enviada sexualidade normal, acabada e completa, a saber: a heterosse-
a uma mãe que lhe havia pedido conselho em relação ao filho, ele escreve o
xualidade monogâmica em função da qual se deve interpretar
seguinte: "De acordo com sua carta, fiquei com a impressão de que seu filho é
homossexual [...]. A homossexualidade não é, evidentemente, uma vantagem,
e julgar todas as outras sexualidades. Partindo da ideia de que
mas não há qualquer motivo para sentir vergonha: não se trata de um vício,
as diversas formas de sexualidade entre adultos conscientes
nem de um aviltamento, tampouco seria possível qualificá-Ia como doença;
nós a consideramos como uma variação da função sexual, provocada por uma
espécie de interrupção do desenvolvimento sexual". 59 Sobre a homofobia psicanalítica, ver Éribon, 1999b.
llll Homofobia 87
i
lésbicas; ninguém pensa em enfatizar a especificidade homos- com os colegas, os homens demonstram um incômodo parti-
sexual para reconhecer outros direitos aos gays ou para imple- cular para manifestar seus sentimentos em tais relações.
mentar dispositivos de discriminação positiva em seu favor. Essa barreira em relação à intimidade parece encontrar
Os dados históricos e ideológicos descritos nos capítulos sua origem na socialização masculina: a competição, a forte
precedentes delimitam a esfera em que nossas imagens so- apreensão relativamente à demonstração de vulnerabilidade,
bre a homossexualidade foram construídas. Para além dessa o controle dos sentimentos e a homofobia constituem os ele-
moldura, existem outros elementos de explicação que, even- mentos que modelam o jeito de ser homem. De acordo com
tualmente, nos permitem circunscrever melhor a hostilidade J. Tognoli (1980), o ódio contra homossexuais aparece como
contra os gays e as lésbicas. Ao preconizar a divisão dos sexos o mais importante desses elementos na (auto)construção da
e ao radicalizar a diversidade dos gêneros, a ideologia diferen- masculinidade. Com base em 24 estudos empíricos que mos-
cialista transforma a repulsa (ou a segregação) relativamen- travam maior tolerância das mulheres e, correlatamente, hos-
te a homossexuais em um elemento central capaz, ainda por tilidade mais marcante dos homens heterossexuais contra os
cima, de garantir o equilíbrio individual e a coesão social. gays (KITE, 1984), o medo de ser considerado "pédé" consti-
tui uma importante força na composição do papel masculino
A homofobia como elemento constitutivo
tradicional. Segundo o processo de socialização masculina, a
da identidade masculina
aprendizagem desse papel efetua-se em função da oposição
No primeiro capítulo, foi enfatizado o modo como a ho- constante à feminilidade. Como observa É. Badinter: "Em
mofobia geral manifesta hostilidade não só a gays e lésbicas, vez de ser obtida automaticamente, a virilidade deve ser
mas também a qualquer indivíduo que não se adapte aos pa- construí da, digamos, fabricada. O homem é, portanto, uma
péis, supostamente, determinados pelo sexo biológico. A lógi- espécie de artefato e, como tal, ele corre sempre o risco de ser
ca binária que serve de estrutura para a construção da identi- defeituoso': A carência mais grave do maquinismo destinado
dade sexual funciona por antagonismo: assim, o homem é o a fabricar a virilidade é a produção de um veado [pédé]. Ser
oposto da mulher, enquanto o heterossexual opõe-se ao ho- homem significa ser rude (e até mesmo grosseiro), competiti-
mossexual. Em uma sociedade androcêntrica como a nossa, os vo, bagunceiro; ser homem implica menosprezar as mulheres
valores apreciados de forma especial são os masculinos; neste e detestar os homossexuais. O caráter mais evidente da mas-
caso, sua "traição" só pode desencadear as mais severas con- culinidade permanece a heterossexualidade: "Após a dissocia-
denações. Portanto, o cúmulo da falta de virilidade consiste ção da mãe (não sou seu neném) e a dissociação radical em
em assemelhar-se à feminilidade, "disfarçar-se de drag-queen", relação ao sexo feminino (não sou uma moça), o rapaz deve II
"assumir trejeitos femininos", "maquiar-se para frequentar ca- provar (a si mesmo) que não é homossexual, portanto, que
sas noturnas" ou "falar com uma vozinha aguda e efeminadà' evita desejar outros homens ou ser desejado por estes" (BA- ~II
(ver a pesquisa de DURET, 1999, p. 52; d. LOURO,2008, p. 84). DINTER, 1992, p. 149). Fortalecer a homofobia é, portanto, um
Um estudo efetuado com uma população heterossexual mecanismo essencial do caráter masculino, porque ela permi-
masculina por uma equipe de psiquiatras mostra a estreita liga- te recalcar o medo enrustido do desejo homossexual. Para um
ção entre a homofobia e a impossibilidade de estabelecer rela- homem heterossexual, confrontar-se com um homem efemi-
ções de intimidade entre pessoas do gênero masculino. Várias nado desperta a angústia em relação às características femini-
pesquisas dão testemunho da grande dificuldade experimen- nas de sua própria personalidade; tanto mais que esta teve de
tada pelos homens para exprimir sua intimidade. Em rela- construir-se em oposição à sensibilidade, à passividade, à vul-
ção às mulheres, apesar de travarem mais facilmente amizade nerabilidade e à ternura, enquanto atributos do "sexo frágil':
Se a homossexualidade desperta, ainda, um número tão ''A economia da homossexualidade': para não falar de sua
grande de reações de hostilidade é porque ela é percebida repressão, encontra-se na própria base da socialização. Legi-
como uma etapa suplementar do processo de decadência psi- timar a homossexualidade equivale a colocar em perigo a so-
cológica e moral em que estariam soçobrando as sociedades ciedade. O amor por si e a sexualidade primitiva atribuídos ao
contemporâneas: ao confundirem a liberdade com um narci- desejo homossexual devem ser mantidos a distância, sob pena
sismo egoísta, estas se encontrariam instrumentalizadas por de implicar a desintegração cultural da sociedade. Esse racio-
um individualismo desenfreado. Semelhante tentativa indi- cínio baseia-se em uma teoria da defesa da sociedade (hete-
vidualista estaria na origem da legalização da contracepção, rossexual) a partir da qual - no pressuposto de que a ordem
do aborto e da banalização da multiparceria, apresentadas antropológica (heterossexual) é ameaçada pelo indivíduo - é a
como práticas nocivas para a integridade do tecido social; heterossexualidade que deve necessariamente prevalecer.
todavia, nessa evolução, a homossexualidade representa a Se o fortalecimento da diferença entre os sexos e o incen-
etapa mais acabada da desintegração civilizacional. A manei- tivo à heterossexualidade são imperativos relevantes para o
ra dos antropólogos do final do século XIX que não hesita- desenrolar adequado do processo civilizacional, a inferioriza-
vam em assimilar a homossexualidade a práticas selvagens, ção e a estigmatização da homossexualidade aparecem como
os ideólogos modernos consideram o desejo por pessoas do as consequências lógicas do dever moral que é a defesa da
mesmo sexo o sinal de uma adolescência afetiva, impregnada sobrevivência comunitária. Por essa dialética, que consiste
de narcisismo. Eis por que as "sexualidades contemporâneas" em estabelecer a oposição entre dois polos, basta determinar
- e, particularmente, a homossexualidade - são denunciadas arbitrariamente o que pertence ao "bem comum" para tirar
como se estivessem orientadas exclusivamente para a realiza- a conclusão de que este deve necessariamente prevalecer ao
ção egoísta do indivíduo, ao excluir sua dimensão relacional "interesse individual"; em caso de contradição, a sobrevi-
(ANATRELLA, 1990, p. 131). Por isso é que a heterossexualida- vência de um desses polos pode justificar o desaparecimento
de é vislumbrada como a única forma de sexualidade capaz do outro. Ora, além da imoralidade de tal raciocínio, nada
de associar prazer individual e coesão social, no sentido em permite considerar a homossexualidade como um compor-
que ela está a serviço dos fins da espécie: "Transmitir a vida tamento nocivo para a sociedade. No entanto, a fim de justi-
é, também, um ato social, e não unicamente uma gratifica- ficar a exclusão, é enfatizada, sem hesitação, a incapacidade
ção narcísica que fornece o sentimento de estar libertado da reprodutora dos casais homossexuais. Mas então, se a repro-
impotêncià' (p. 134). Assim, qualquer forma de sexualidade dução qualifica o interesse social de uma sexualidade (hete-
dissociada da reprodução aparece como suspeita, por fazer rossexual) em detrimento de outra (homossexual), por que
preceder a sobrevivência do indivíduo à da espécie. não impor, por um lado, a obrigação de casamento para os ce-
A repressão da homossexualidade é justificada, nessa libatários heterossexuais e, por outro, a reprodução aos casais
ideologia, como uma espécie de "legítima defesà' social. De heterossexuais? E por que não impor aos estéreis a obrigação
acordo com o padre-psicanalista T. Anatrella (1990, p. 211): de se curarem ou de adotarem crianças? E, finalmente, por
Quando a tendência homossexual não foi precocemente que continuar autorizando a contracepção ou a interrupção
erotizada,elatransforma-seem sentimentossociais:a partir voluntária da gravidez? Eis outras tantas situações que nos
dela, constrói-sea relaçãosocial.Ao impelir à aproximação levam a nos interrogar se, por trás do argumento da reprodu-
com "o mesmo",essa tendência permite o estabelecimento ção, não se dissimularia certa hostilidade anti-homossexual.
I11
Do mesmo modo, o racismo é acompanhado, frequente- anos, as mais prestigiosas publicações científicas consideram a II
'111
não passam de reação sintomática de defesa contra a atração
estudo mostra que existe uma relação direta entre adoles- III
os homossexuais (ALSTON, 1974, p. 479-481). Por sua vez, telectualmente o mundo em um sistema fechado e previsível. II
105
o contrário de um homossexual. Esse poderoso sentimento de como uma disfunção psicológica, ou até mesmo uma doen-
filiação, de participação natural e espontânea à heterossexuali- ça. O debate em torno do reconhecimento legal dos casais
dade tem o efeito de provocar uma adesão imediata, irrefletida, do mesmo sexo, na França, desencadeou numerosas reações,
a uma identidade experimentada como originária que serve de entre as quais uma passeata no centro da capital, em 31 de
referência para o reconhecimento dos "normais" (heterosse- janeiro de 1999, no decorrer da qual milhares de manifestan-
xuais) de todos os círculos da sociedade. Ora, essa construção tes vociferavam o slogan "veados para a fogueirá', sem que tal
social da normalidade nada tem de natural; centenas de trata- postura tivesse suscitado a menor indignação. Ora, a tomada
dos teológicos, enciclopédias médicas, recomendações morais, de consciência da gravidade do fenômeno homofóbico parece
códigos e regulamentos, assim como de contos de fadas, filmes uma condição prévia indispensável a qualquer ação repres-
e romances, foram necessários para enraizar esse sentimento sora: caso contrário, esta será necessariamente experimenta-
no mais recôndito das consciências. Estigmatizar o outro para da como unilateral, a serviço exclusivo dos interesses de um
se justificar, eis a lógica do mecanismo psicológico bem rodado segmento da população. Na realidade, a homofobia é não só
que já deu provas de sua eficácia em grande número de outros uma violência contra os homossexuais, mas igualmente uma
domínios (racismo, antissemitismo, xenofobia, etc.). agressão contra os valores que fundamentam a democracia.
Previamente à repressão, a luta contra a homofobia exige, Em seu livro Espírito das leis, Montesquieu (1689-1755) es-
portanto, uma ação pedagógica destinada a modificar a du- creveu o seguinte: "Eu me sentiria o mais feliz dos mortais se
pla imagem ancestral de uma heterossexualidade vivenciada pudesse contribuir para que os homens conseguissem curar-
como natural e de uma homossexualidade apresentada como se de seus preconceitos':8oMenos ambiciosos, devemos tomar
uma disfunção afetiva e moral. consciência da violência destilada pelos preconceitos; ora, é
A homofobia é um preconceito e uma ignorância que con- somente se essa iniciativa vier a revelar-se ineficaz que convi-
siste em crer na supremacia da heterossexualidade. Em nome rá fazer apelo aos instrumentos repressores do direito.
de que princípio e em virtude de que tese será possível ainda
A prevenção da homofobia
continuar defendendo que a heterossexualidade é preferível à
homossexualidade? Pode-se aceitar a evocação das exigências A violência e a discriminação em relação a homosse-
da reprodução da espécie para fundamentar tal julgamento? xuais ocorrem, frequentemente, diante da maior indiferença
A tradição poderá ainda justificar o tratamento de favor de da população. Com certa regularidade, ficamos sabendo que
que se beneficia a heterossexualidade? numerosos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais vi-
As razões que levaram a crer na preeminência da união vem com temor de serem agredidos simplesmente por causa de
heterossexual são, atualmente, contestadas. sua orientação sexual. Em um relatório terrificante, a Amnes-
Na realidade, a homofobia constitui uma ameaça aos va- ty International (1998) denuncia os assassinatos, as execuções
lores democráticos de compreensão e respeito por outrem, no legais, as .torturas, os estupros, as terapias forçadas, os despe-
sentido em que ela promove a desigualdade entre os indiví- dimentos abusivos e os insultos de que os homossexuais con-
duos em função de seus simples desejos, incentiva a rigidez tinuam sendo vítimas. Ainda é reduzido o número de países
dos gêneros e favorece a hostilidade contra o outro. Enquanto que descriminalizaram a homossexualidade, a qual, na maior
problema social, a homofobia deve ser considerada como um
delito suscetível de sanção jurídica; todavia, a dimensão re-
80 Entre nós, Paulo Autran afirma o seguinte: "Todo preconceito é fruto da burrice,
pressora é destituída de sentido se ela não for acompanhada da ignorância, e qualquer atividade cultural contra preconceitos é válida". E, ain-
por uma ação preventiva. Com efeito, um número importan- da, este desabafo de Albert Einstein "Triste época! É mais fácil desintegrar um
te de pessoas continuam considerando a homossexualidade átomo que um preconceito': (N.T.).
83 Para ter uma ideia geral das agressões perpetradas contra os homossexuais, ver
81 "Un postapartheid encore plus gay" [Um pós-apartheid ainda mais gay*], no
SOS Homophobie, 1999.
periódico parisiense de esquerda Libération, 22 de novembro de 1999, p. 13.
*À semelhança do original inglês, a palavra homófona "gai': em francês, sig- 84 "Tenho 22 anos, já fiz uma tentativa de suicídio aos 19 anos e, ao deixar o hospital,
nifica "alegre"; por exemplo, na expressão familiar, "être gai comme un pinson voltei a tentar suicidar-me. Sinto desejos homossexuais, mas não posso aceitar tal
[pintassilgo]" = ser/estar muito alegre. (N.T.). situação; é algo diferente de mim" - testemunho de um jovem da região parisiense
(PARLONS D'AZUR, 1999, p. 11; d. HERNÀNDEZ, 1999; SMIGAY, 2002).
82 Em 5 de abril de 2001, o Parlamento Europeu condenou essa tomada de posi-
ção, cf. Resolução BS-0264. 85 Literalmente, o indivíduo que é penetrado pelo ânus. (N.T.).
86 Ver Bruner, 1981; nesse relatório, as medidas propostas levam em consideração 87 Diretrizes do Conselho da Europa relativas ao artigo 13 do Tratado de Amsterdã:
as relações entre a polícia, por um lado, e, por outro, os gays e as lésbicas em l/diz respeito à criação de um quadro geral em favor da igualdade de tratamento
Toronto, Canadá. Um relatório do CDPDJ [Comitê dos Direitos da Pessoa e em matéria de emprego e trabalho; 2 / relativa à implantação do princípio de
dos Direitos da Juventude] do Québec recomenda, entre outros aspectos, que igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de raça ou origem étnica;
os responsáveis pela formação dos policiais garantam informação adequada 3/ decisão do Conselho que estabelece um programa de ação comunitária foca-
sobre a realidade de gays e lésbicas. lizado na luta contra a discriminação (2001-2006), Bruxelas, 2000.
90 Ver o artigo 9 do Código Civil francês, o artigo 10 da Declaração dos Direitos 92 Em 12 de outubro de 2000, a Assembleia Nacional Francesa votou uma lei so-
do Homem e do Cidadão de 1789, o Preâmbulo da Constituição francesa de 27 bre a "modernização social'; mediante a qual são condenadas as discriminações
de outubro de 1946, o artigo 8 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos fundadas na orientação sexual (Art. L. 122-35).
e o artigo 2 da Constituição francesa de 4 de outubro de 1958. 93 Assim, o artigo 13 enuncia: "Sem prejuízo das outras disposições do presen-
91 Este termo ["mreurs"] é um eufemismo adotado pela lei para referir-se, de ma- te Tratado e nos limites das competências que este confere à Comunidade, o
neira pudica, à homossexualidade. A expressão "orientação sexual" parece mais Conselho, estatuindo por unanimidade com base na proposição da Comissão
apropriada e já é utilizada pelas principais constituições modernas, assim como e após consulta do Parlamento Europeu, pode tomar as medidas necessárias
pelo artigo 13 do Tratado de Roma (25 de março de 1957), modificado pelo para combater qualquer discriminação baseada em sexo, raça ou origem étnica,
Tratado de Amsterdã (2 de outubro de 1997). religião ou convicções, deficiência, idade ou orientação sexual':
116 Homofobia
Condu"Oo 117
brutal. Todos os herdeiros da tradição homofóbica estavam Desde o final do século XIX, na França, a lei tem protegido
presentes: associações católicas, muçulmanas, protestantes e os indivíduos e os grupos contra esses ataques verbais insultan-
judaicas desfilavam, lado a lado, com a extrema direita e a teso A difamação é definida como a alegação ou a imputação de
burguesia conservadora. A antiga repulsa visceral esbaldou- um fato preciso que causa prejuízo à honra ou à consideração
se freneticamente nas paixões homofóbicas: "Veados nojen- da pessoa ou da corporação à qual ele é imputado. A injúria é
tos", "Que essa escória vá para o inferno" ou, ainda, "Parem uma expressão ultrajante que utiliza termos de menosprezo ou
de nos torrar o saco com a AIDS de vocês" - eis outros tantos de ofensa, mas, diferentemente da difamação, não contém a im-
insultos proferidos, publicamente, pelos manifestantes. 100 putação de um fato concreto. A provocação à discriminação, ao
Diante de tal violência, a necessidade de uma lei para pro- ódio ou à violência - em particular, por razões raciais - contra
teger os homossexuais começa a impor-se nas mentes. Com uma pessoa ou um grupo de pessoas é igualmente sancionada
efeito, alguns meses depois, em 18 de outubro, uma primeira pelo direito. Se, após vários anos, as associações de luta contra
proposta de lei, na Assembleia Nacional francesa, ampliando o racismo podem apresentar-se como parte civil, foi apenas re-
a provocação à discriminação e à violência homofóbicas foi centemente (graças a uma emenda proposta, em 10 de fevereiro
apresentada pelo deputado liberal, F. Léotard.lol Em seguida, de 2000, pelo deputado Jean-Pierre Michel) que as associações
vários projetos foram elaborados por outras formações polí- de gays se beneficiaram, igualmente, dessa possibilidade nos
ticas e pelas principais associações de defesa dos direitos do casos tanto de discriminação material quanto de ameaças vo-
homem;102 todos esses textos propõem incluir a orientação luntárias à vida ou à integridade das pessoas, mas sempre no
sexual nas incriminações penais de injúria, difamação e pro- âmbito de incitação ao ódio.
vocação à discriminação, ao ódio e à violência em relação a A fim de atender a essa situação, uma lei de 30 de dezembro
uma pessoa ou a um grupo de pessoas. de 2004, "relativa à criação da HALDEl03", amplia a punição dos
discursos injuriosos, difamatórios e de incitação à discrimina-
100 Para uma análise mais aprofundada das ações contra o reconhecimento dos ção contra "uma pessoa ou um grupo de pessoas em razão de
casais formados por pessoas do mesmo sexo, ver Fourest; Venner, 1999; Bor- sua orientação sexual': Desde então, o Ministério Público pode
rillo; Fassin; Iacub, 1999; Desfossé; Dhellemmes; Frai'ssé; Raymond, 1999.
apresentar queixa quando as afirmações forem dirigidas a um
Proposição de lei relativa à luta contra a provocação à discriminação, ao ódio ou
101
grupo de pessoas; por sua vez, as associações inscritas, no mí-
à violência em relação a pessoas em razão de suas práticas sexuais não reprimi-
das pela lei, registrada em 9 de novembro de 1999, sob o n° 1.893.
nimo, há cinco anos e tendo por objeto a defesa dos direitos
de gays e lésbicas podem constituir-se como parte civil, com o
102 Cf. Borrillo e Lascoumes, 1999. As associações de luta contra a AIDS e de defesa
dos direitos de gays e lésbicas (Aides, Act -Dp, "Sida Info Service'; o "Centre Gay et
acordo da vítima, tratando-se de injúrias, difamações ou incita-
Lesbien de Paris'; ProChoix, "Fond de lutte contra l'homophobie" e "sos Homo- ção à discriminação considerada individualmente.
phobie") constituíram, em 1999, um organismo interassociativo com a Liga dos Di- Além disso, uma lei de 18 de março de 2003 - na sequência
reitos do Homem a fim de apoiar um projeto de lei contra o sexismo e a homofobia;
da lei desse mesmo ano "que visava agravar as penas que san-
em seguida, os principais partidos políticos de esquerda começaram a trabalhar
cionam as infrações com caráter racista, antissemita e xenó-
sobre a questão. O Partido Comunista foi a segunda formação política a apre-
sentar, oficialmente, uma proposta de lei, em 1° de fevereiro de 2000 (n° 2.150); fobo" - introduz no Código Penal francês uma circunstância
proposta do Partido Socialista registrada em 10 de maio de 2000 sob o n° 2.373; agravante em razão da verdadeira, ou suposta, "orientação se-
proposta dos Verdes registrada, nesta mesma data, sob o nO2.376; além de propos- xual" da vítima; à semelhança do móbil racista ou antissemita,
ta de lei oriunda do Grupo Socialista, no Senado, apresentada em 21 de março de
2000 (n° 274). Em 26 de janeiro de 2000, a Assembleia Parlamentar do Conselho
da Europa votou uma resolução que propõe a proteção das discriminações basea- 103 Sigla de Haute autorité de lutte contre les discriminations et pour l'égalité [Alta
das na orientação sexual, assim como dos discursos de ódio contra gays e lésbicas. Autoridade de Luta contra as Discriminações e em favor da Igualdade]. (N.T.).
grupo monolítico em função, exclusivamente, do desejo se- AMNESTY INTERNATIONAL. Briser le silenee: violations des droits de
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xual. A abordagem minoritária, especialmente quando seus
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não só para as vítimas, mas também contra qualquer tentação AQUINO, T. Summa Theologiae. [Suma Teológica. 8 vols. São Paulo:
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não se baseia, de modo algum, em qualquer filiação a uma ARÁN, M. Políticas do desejo na atualidade: o reconhecimento social
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que deve tornar-se o objeto de qualificações jurídicas. BADINTER, É. XY de l'identité maseuline. Paris: Odile Jacob, 1992.
BAGOAS - Revista semestral do Centro de Ciências Humanas, Letras
104 Essa banalização não deve implicar um apelo à discrição; tal atitude, como e Artes da UFRN [lançada em dezembro de 2007, publica artigos resul-
observa L. Bersani, "nada é além da deferência para com uma hierarquia dife-
tantes de estudos teóricos e pesquisas empíricas sobre gênero, sexuali-
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