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20 9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n.

2, 2º semestre/2016
O herói de duas faces:
a dupla identidade dos
super-heróis
 Marcelo Bolshaw Gomes1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
1. Professor adjunto
do Departamento de
Comunicação Social da
Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.

Resumo: o presente texto discute a mediação narrativa da dupla identidade dos super-
heróis. Amparado nos estudos de Umberto Eco e Grant Morrison, destaca-se três fatores
irredutíveis nesse estudo: a transferência não-analítica de emoções (estudadas pela
psicanálise); a formação ideológica resultante do contexto de enunciação e dos pactos de
leitura; e o conteúdo mítico e arquetípico dos heróis. Conclui-se que a mediação narrativa
da dupla identidade está se tornando uma nova forma de identidade nos ambientes virtuais.

Palavras-chave: Comunicação Midiática; Estudos Narrativos; Histórias em Quadrinhos;


Super-heróis;

Abstract: This paper discusses the narrative mediation of the dual identity of superheroes.
Bolstered Umberto Eco´s and Grant Morrison´s studies, three irreducible factors highlight
in this study: the transfer of non-analytical emotions (studied by psychoanalysis); the
resulting ideological formation of enunciation context and reading pacts; and the mythical
and archetypical contents of heroes. We conclude that the narrative mediation of dual
identity is becoming a new form of identity in virtual environments.

Keywords: media communication; Narrative Studies; Comics; Super heroes;

Introdução é que nas antigas mitologias havia uma


Há uma história conhecida sobre dialética entre o passado e o presente, em
um ventríloquo que, após muitos anos que a tradição interpretava os fatos e os
trabalhando com um boneco, passou acontecimentos confirmavam a tradição;
a acreditar que o personagem tinha enquanto, na mitologia atual, há uma
vida própria e o integrou como amigo dialética entre o presente e o futuro. Para
e conselheiro a sua vida pessoal. Fatos os antigos, os heróis mitológicos existiram
como esse, em que objetos representam em um passado distante; hoje, os super-
personagens míticos, são comuns em heróis vivem uma aventura aberta, com
várias culturas – como nas bonecas do eventos que estão acontecendo e que vão
maracatu nordestino. ainda acontecer.
Há duas diferenças fundamentais A segunda diferença fundamental
entre o antigo herói mitológico e o é a dupla identidade. Na mitologia
super-herói contemporâneo. A primeira midiática, a encarnação do mito (ou da

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entidade simbólica) é posto como uma completa revisão histórica dos estudos
dupla representação de si, real e ideal acadêmicos sobre quadrinhos no mundo
- uma cara para cada um dos dois lados desde 1940, e, no Brasil, a partir de 1951,
da caverna de Platão – sendo que o eu acentuando suas diferentes abordagens:
verdadeiro é o Batman e Bruce Wayne, funcionalista (BOGART, 1973);
seu disfarce social. O Super-Homem é marxista (DORFMAN, MATTELART,
um alienígena disfarçado de jornalista. A 1980); estruturalista (FRESNAULT-
ideia sugerida é que o personagem real é a DERUELLE, 1980); e estudos culturais
máscara e não seu portador humano. (MATTELART; NEVEU, 2004).
Umberto Eco (2008, p. 248) A maioria desses estudos era
foi o primeiro pensador a entender a centrada na crítica ideológica dos
importância da dupla identidade. Em sua personagens das histórias em quadrinhos e
obra clássica, Apocalípticos e integrados, tinha por objetivo principal desmascarar a
Eco ressalta uma compensação da sugestão de valores simbólicos capitalistas
sensação de impotência do repórter Clark pela indústria cultural. Moacy Cirne
Kent (e dos leitores) através da catarse (1982) é a maior expressão brasileira deste
de sua contraparte superpoderosa. A tipo de crítica ao aspecto ideológico dos
dupla identidade narrativa dos heróis quadrinhos.
atuais reflete, assim, o desejo de superação É possível que os super-heróis
das frustrações do leitor comum, em fossem menos ‘contra-hegemônicos’ até os
um mundo injusto. A identidade dupla anos 1990, mas os antigos heróis míticos
mito/homem é então uma relação de também tinham ‘um lado rebelde’ frente à
sublimação. sociedade (e aos deuses) – mesmo que de
modo mais discreto. O próprio conceito
1. O fator ideológico de herói implica (tanto para modelo da
Porém, a sublimação não é suficiente jornada de Campbell (1990, 1995) como
para explicar a dupla identidade. Mesmo para o modelo de análise estrutural das
com o aparecimento contemporâneo narrativas de Lévy-Strauss (1976, 2004,
de diversos super-heróis pansexuais, 2005, 2006, 2011) em ser ‘um transgressor
transgêneros e homoafetivos, eles não são legítimo’ – alguém que é simultaneamente
machões que se transvestem em super- rejeitado e aceito por sua comunidade.
heroínas ou dondocas que se tornam Seja pelo bom comportamento dos
super-heróis. super-heróis no passado ou pelo exagero
Além da psicanálise dos sentimentos da crítica ideológica de seus analistas,
2. No Brasil, existe o trabalho
pioneiro do professor Antônio e desejos reprimidos, há ainda um forte os primeiros estudos sobre quadrinhos
Vicente Seraphim Pietroforte aspecto ideológico nos super-heróis. Na acentuavam mais o lado ‘sistêmico’
(2004, 2007, 2009) sobre verdade, uma ambiguidade ideológica, dos heróis do que sua singularidade e
análise textual de história
em quadrinhos e algumas uma vez que ao mesmo tempo em desadequação social.
aplicações interessantes de que representam valores socialmente Apenas recentemente, com as
suas alunas, como Tomasi, dominantes (são abertamente pró- abordagens inspiradas na Análise do
em A missividade: por uma
gramática tensiva da semiótica americanos, por exemplo) também Discurso e na Semiótica Narrativa2,
de HQs (2011) e Cronopoiese representam valores culturais críticos e estabelecidos elementos formais para
e c ro n o t ro fi a n a h i s t ó r i a progressistas (feministas, ecológicos ou crítica analítica (SILVA, 2001) chegou-
em quadrinhos (2012, em
transgressores sobre algum aspecto). se a um entendimento mais amplo da
parceria com Jean Christtus
Portela); e Débora Camargo No texto As Histórias em dimensão ideológica dos quadrinhos.
(2013), em Fun Home: Os Quadrinhos como objeto de estudo das Por exemplo: A construção da
efeitos de referencialidade na teorias da Comunicação, os professores realidade na história em quadrinhos Alias:
autobiografia de Alison Bechdel
– que são discutidos no final Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio codinome investigações (LIMA, 2014) faz, a
no artigo. dos Santos (2014) procedem a uma partir da Análise do Discurso, uma história

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do protagonismo feminino em quadrinhos e assim por diante.
das primeiras heroínas supererotizadas – Além das diferenças de gênero,
‘representações masculinas do feminino’ orientação sexual, cor e deficiência física,
– até a personagem Jessica Jones, que os heróis também são de países diferentes:
largou a fantasia de heroína e o grupo de Wolverine é canadense; Colossus, russo;
super-heróis a que pertencia, se tornando Tempestade, queniana; Noturno, alemão;
uma investigadora particular cheia de Banshee, escocês; Solaris, japonês; e
problemas pessoais. Tâmara, brasileira. O que realmente
Dentro de toda essa ótica, os estigmatiza o grupo e o faz objeto de
autores formatam uma mulher com suas preconceito é que ele é formado por
fragilidades e dificuldades buscando se indivíduos que passaram por mutações
encontrar naquele mundo em que vive e genéticas e desenvolveram superpoderes.
no seu caminho como ser humano, sem A mutação genética faz com eles sejam
necessariamente cair num estereótipo tratados como ‘aberrações’ pelo governo e
também comum da mulher dramática, pela sociedade em geral.
indefesa e mais preocupada com sua Como os X-Men são seres mutantes
aparência. A Jessica Jones de Bendis e e o que é mediado é a exclusão social
Gaydos é uma personagem complexa, dos personagens, suas histórias não
que foge da unilateralidade comum na tratam diretamente da questão da dupla
caracterização heroica e feminina dentro identidade e sim de uma única identidade
dos quadrinhos, aproximando-se não só híbrida.
de seu público como do humano em si: Tanto a deserção de Jessica Jones do
um ser perdido, com acertos e falhas, em super-heroísmo por motivos psicológicos
uma jornada de busca de sentido para si como a identidade híbrida dos mutantes
mesmo (2014, p. 57). são pontos importantes para entender
Lima ressalta a realidade opaca e a noção de mediação narrativa da ‘dupla
cinzenta em que vive a personagem, em identidade’. Mas, agora, o importante é
oposição ao universo colorido e glamoroso perceber que esses trabalhos colocam a
dos super-heróis, do qual ela fez parte crítica ideológica dos super-heróis em
um dia, como se a narrativa, para retratar outro patamar, tanto metodologicamente
uma protagonista feminina de uma forma (levando em conta mais aspectos de
mais realista, tivesse que abrir mão de uma análise), mas sobretudo mostrando novas
parte de sua identidade. questões políticas em um universo análogo
Outro exemplo: utilizando da à realidade de modo mais complexo e
metodologia da Semiótica Narrativa, refinado.
Gene X: uma análise semiótica das HQs dos
x-men em revista (SILVA, 2011) mostra 2. O fator mítico
como as histórias em quadrinhos dos O escritor e roteirista Grant
X-Men tratam a questão da diversidade Morrison (2012) aprofunda as
cultural e da exclusão social existentes observações de Eco sobre a sublimação
no mundo não-ficcional. Os X-Men têm das frustrações através da mediação de
características de minorias excluídas: identidade dos super-heróis, bem vista sua
Ororo (Tempestade) é negra; Jean-Paul utilização ideológica no contexto social em
(Estrela Polar) é assumidamente gay; que foram criados, mas também ressalta
Raven Darkholme (Mística) possivelmente o aspecto mitológico dos personagens,
é bissexual; Scott Summers (Cíclope) é suas semelhanças estruturais com deuses,
deficiente visual; Professor Charles Xavier, demônios e outros seres míticos das
cadeirante; Hank McCoy (o Fera) é narrativas tradicionais.
portador da Síndrome do Homem Lobo; Aliás, Morrison, como roteirista da

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DC Comics nos anos 1990, praticamente Aprofundando na Psicologia
reinventou a Liga da Justiça com base na Analítica e considerando a dupla identidade
mitologia grega. Superman inspirado em como uma relação entre Personalidade (a
Zeus; Batman como Hades, o senhor máscara) e Individualidade (o self ), pode-
dos infernos; e o Aquaman, pensado a se inclusive elaborar uma arqueologia de
partir de Poseidon, rei dos mares. Além super-heróis: o herói-monstro (Hulk,
disso, reforçou também características Dr. Jekyll/Mr. Hyde); heróis-máquinas
já existentes de Flash como Hermes e da (Homem de Ferro, Cyborg); heróis deuses
Mulher Maravilha como Artêmis. (Mulher Maravilha, Namor, Thor); heróis-
Oliveira (2016), observando o vigilantes (Demolidor, Batman); e até anti-
caráter arquetípico dos super-heróis, faz heróis (como Deadpool). Os super-heróis
um levantamento extenso a partir da funcionam como ‘totens’ ou identidades
dupla-identidade, concluindo que [...] simbólicas. E cada um desses super-heróis
[...] se pode chegar é que cada guarda uma relação diferente com sua
3. As profissões mais comuns super-herói lida com a questão dupla identidade, não apenas em relação
nas identidades cotidianas dos da dupla identidade de modo ao herói-mito, mas também em relação ao
super-heróis são jornalistas,
detetives e cientistas. Sobre diferente. Al¬guns têm uma humano3.
esse tema, vale a pena ler Do personalidade predominante
Novo Jornalismo ao Cyberpunk: com a qual se identificam mais, 3. Repaginando ideologicamente os mitos
Elementos contraculturais do
seja ela a identidade fisicamente Divide-se a história das histórias
jornalismo e da ficção científica
em Transmetropolitan, de Alex mascarada ou a que é ocultada em quadrinhos em quatro fases distintas:
de Souza (2013). por artifícios teatrais relacionados A Era de Ouro, começa em 1938 (criação
ao papel que de-sempenha do Super-Homem) e termina em 1954,
em sua vida civil. Enquanto com a criação de uma entidade reguladora
existem outros que convi¬vem das revistas de banda desenhada, o Comics
de maneira ambígua com suas Code Authority. A Era de Prata de 1954
duplas identidades, a ponto de ao ano 1969 (com a morte de Gwen Stacy,
não conseguir identificar qual é a namorada do Homem-Aranha); a Era de
sua real identidade e qual é a que Bronze, até 1986; e a Era Moderna, que
usa como disfarce. começa com o lançamento de três séries
[...] Mais do que as habilidades, de histórias (Crise em Infinitas Terras;
o que faz um super-herói é seu Watchmen, de Alan Moore; e Batman Ano
senso de dever e responsabilidade, Um/O Cavaleiro das Trevas, de Frank
apesar de seus problemas e falhas Miller) e que perdura até nossos dias
pessoais. (MORRISON, 2012).
Cada passagem de uma era para
Outro ponto a ser destacado é que outra corresponde a uma reconfiguração
nem só os super-heróis usam máscaras e estética e narrativa da identidade mediada,
possuem vidas duplas. A pessoa comum, a uma repaginação ideológica do conteúdo
assim como o super-herói, é capaz de mítico de cada herói, de acordo com um
se adequar as diferentes situações e novo contexto sociocultural e com os
contextos, criando identidades paralelas novos pactos de leitura neles existentes.
para as diferentes si¬tuações, cada uma O super-heróis foram criados na Era
delas representando uma diferente faceta de Ouro e tiveram um papel importante
da personalidade de um mesmo indivíduo. na segunda guerra mundial, muitas vezes
Portanto, muitas vezes, é desnecessário lutando contra o nazismo. Na Era de
buscar uma distinção entre as identidades Prata, após a guerra e um período de
de tal sujeito, seja na ficção dos quadrinhos declínio editorial, as narrativas gráficas
ou na vida real (OLIVEIRA, 2016, 92-92). se tornaram mais bem desenhadas e com

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histórias mais elaboradas, aproximando- Mas, a dupla identidade resistiu.
se da ficção científica em virtude da ênfase Um caso exemplar da sobrevivência
na tecnologia. Nessa Era, os inimigos atual da dupla identidade é Kamala
principais foram o crime organizado, Kahn, a adolescente islâmica, que assume
monstros e alienígenas, muitas vezes os poderes de Carol Danvers e se torna a
metáforas da URSS e da China. A nova Miss Marvel. A heroína é estudada
televisão produz um novo público para o por Fernandes (2016). A pesquisa de
super-heroísmo. Nos anos 1960, surgem Fernandes tem vários méritos: entende
a Marvel Comics e diversos grupos de os super-heróis como mediações
super-heróis. de identidade narrativa e não como
Na Era de Bronze, os heróis meros produtos da indústria cultural;
começam gradativamente a se revoltar contextualiza a nova cena cultural dos
contra o mundo e os antagonistas passam quadrinhos pós 2011; entende a heroína
a ser vilões extravagantes. As narrativas islâmica como o resultado de um longo
passam a tratar de temas tabus, tais como processo de construção, nas histórias em
a sexualidade, a morte, a injustiça. A quadrinhos, do protagonismo feminino
Era Moderna é hiper-realista, violenta, e de inclusão social de comportamentos
artística e os quadrinhos passam a estigmatizados.
interagir com outras mídias (cinema, A dupla identidade – que é o que
TV, jogos, bonecos, etc). Os super- nos interessa –, permanece porque a
heróis tornaram-se multiculturais e têm identidade cotidiana do herói é uma
comportamentos singulares e críticos em representação do leitor no interior da
relação à sociedade. O terrorismo, em suas narrativa. É um personagem-leitor.
múltiplas formas, passa a ser antagonista Kamala lê quadrinhos, tem um blog
principal dos super-heróis. sobre Os Vingadores, é uma fã de super-
Morrison (2012, 169) prefere dizer heróis. Ao ‘ser escolhida’ para receber
chamar a Era de Bronze de ‘Era do Ferro’ os poderes do arquétipo feminino do
(ou Era Sombria) e vê uma continuidade universo Marvel, ela passa a conviver e
de aumento gradativo do realismo, do a interagir com seus ídolos, os mesmos
sexo e da violência entre as Eras de super-heróis que cultuava como fã.
Bronze e Moderna. Porém, se adotarmos A mudança da identidade humana
o parâmetro dos contextos sociais e dos associada a um mito não é novidade. O
pactos de leitura (e não só elementos Fantasma era uma máscara passada de
temáticos e estéticos nas narrativas), os geração em geração. Batman já ‘encarnou’
quadrinhos só atendem a um público em outros personagens além de Bruce
adulto mais culto e exigente a partir da Era Wayne. A diferença no caso da nova
Moderna. Outra característica exclusiva da Miss Marvel é que novo ‘médium’ do
Era moderna é a tendência de apresentar mito é uma representação de um leitor
os super-heróis como pessoas normais que globalizado, uma adolescente de outra
se fantasiam com roupas extravagantes, cultura. E essa diferença estrutural
como em Watchmen ou em Alias. implica em toda uma interpretação
Em cada Era, o tema da dupla intercultural da personagem mítica, em
identidade passou por mudanças. De certa termos estéticos e narrativos.
forma, pode-se dizer que a chamada Era
Moderna tentou desmascarar os super- 4. Modelagem pelo avesso do Anti-sujeito
heróis, seja apresentando-os de modo A noção de Anti-sujeito, nos
mais humano e realista, seja fazendo com estudos narrativos, representa tudo
eles ‘saíssem do armário’ e assumissem sua aquilo que impede a ação do sujeito e
natureza mítica. que retarda a narrativa. Engloba não

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apenas os antagonistas, mas também lei e da ordem impostas pela sociedade.
toda ordem de adversidade ambiental ou Porém, de forma geral, nas aventuras
pessoal. Tomasi (2011) e Portela, Tomasi de super-heróis, os protagonistas são
(2012) demonstram como o conflito mocinhos; e os antagonistas, vilões.
entre o ‘Sujeito em percurso’ e o Anti- E os ‘personagens Anti-sujeito’ não
sujeito dá ritmo à história, emoldurando representam apenas as qualidades e as
os acontecimentos, acelerando e características opostas às representadas
desacelerando a duração e a intensidade pelo lado mítico dos super-heróis, mas
da narrativa. (sobretudo e indiretamente) aos valores,
Nas histórias em quadrinhos, os crenças e convicções de sua personalidade
inimigos (e o Anti-sujeito) têm um papel cotidiana (à ideologia do público leitor).
simbólico fundamental na definição Em relação à nova Miss Marvel,
da identidade dupla dos heróis. A por exemplo, a encarnação do mito
responsabilidade do Batman torna-se (o arquétipo do feminino) em uma
ainda mais sombria, séria e triste frente adolescente mulçumana aposta, por
à alegria destrutiva e colorida do Coringa. um lado, em um Anti-sujeito indireto e
Algumas histórias, como A piada mortal intercultural, formado pelo terrorismo
de Alan Moore, tentam inclusive inverter e pela xenofobia; e, por outro, pelo
essas relações narrativas, colocando o protagonismo feminino globalizado em
Coringa como um antagonista/sujeito relação direta ao patriarcalismo e ao
(para autor, próximo ao arquétipo machismo.
original do louco do tarô) e o Batman Há, assim, um triângulo entre
como protagonista/Anti-sujeito, o protagonista mítico, sua identidade
representando a justiça, acima e além da cotidiana e o Anti-sujeito da narrativa.

Herói protagonista Anti-sujeito


(Mito) (Ideologia combatida)

Identidade cotidiana Outros personagens


(Leitor) (Narrador)

Tabela 1 - Quadrado Semiótico Narrativo do super-heroísmo

Há também o papel do narrador. esse esquema da relação entre Narrador


Não apenas do narrador discursivo, e Protagonista na dupla identidade) é a
aquele texto que contextualiza os autobiografia em quadrinhos da jornalista
desenhos e os diálogos, mas, sobretudo, Alison Bechdel: Fun Home: Uma
o narrador ampliado, a mediação entre tragicomédia em família. Como se trata
autor-leitor, que conta a estória através de uma autobiografia, há uma identidade
das cenas sequenciadas, envolvendo além explicita entre a protagonista e a narradora
da narração discursiva, os diálogos, os – o que nos permite entender melhor a
desenhos e sua disposição em quadros elaboração do protagonismo feminino nas
e páginas. O narrador ampliado pode narrativas de gênero.
definir a profundidade psicológica dos Camargo (2013), utilizando a
personagens; pode também ser mais metodologia da Semiótica Narrativa,
ou menos realista em vários aspectos; estuda atentamente a autobiografia
ou ainda utilizar de expedientes mais de Bechdel, observando os elementos
mitológicos ou mais ideológicos. textuais e visuais que formam a ‘narração’
Um contraponto interessante (a (a relação entre protagonista e narrador)

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e identificando traços específicos da de Jung) investiga a existência do mito no
narrativa de gênero. presente; e a comunicação pesquisa os
mitos nas narrativas da mídia em relação
5. Conclusão ao futuro.
Abordaram-se aqui três aspectos Hoje as mediações de identidade
da mediação da identidade narrativa dos dos super-heróis estão transformando
super-heróis: a psicanálise dos desejos os personagens em ‘Avatares’ de jogos
inibidos, a crítica ideológica, e o conteúdo eletrônicos e em personagens de RPG;
mítico e/ou arquetípico. Esse último são mimetizados através de fantasias de
aspecto faz com que, embora passem pelos cosplay em eventos temáticos; e há até
mesmos mecanismos de reprodutibilidade pessoas que assumem a identidade de
técnica da cultura de massas, os super- heróis - seja em performances artísticas e
heróis se diferenciem de outros produtos políticas ou por problemas psicológicos.
da indústria cultural. Os super-heróis são Estamos passando da mediação
a representação dos mitos e arquétipos, narrativa da identidade mítica para sua
mediados ideologicamente dentro da representação teatral e política.
linguagem fragmentada e descontínua Michel Serres (LEVY, 2007, p. 15),
da mídia, em seus múltiplos suportes dando um exemplo sobre a teoria dos
atuais. Os super-heróis dos quadrinhos quatro espaços antropológicos de Levy
estão agora na TV, no cinema e em várias (a Natureza, o Território, o Mercado e o
dimensões do cotidiano. Saber) diz que nosso nome e sobrenome
Também se destacou que, na são nossas identidades no espaço da
mediação narrativa da identidade, o mito Terra; nosso endereço, nossa identidade
precisa ser repaginado ideologicamente de no espaço territorial; a profissão, a posição
acordo com o contexto social e os pactos que ocupamos no mundo das mercadorias;
de leitura, principalmente através de e que, atualmente, estamos definindo uma
novos inimigos, mas também por meio de quarta identidade para o espaço do saber:
mudanças estéticas, narrativas e editoriais. a senha, a impressão digital, o DNA.
Os inimigos geralmente representam A definição desta quarta identidade
antagonistas sociais, como o nazismo da ainda está em construção, mas o Avatar
Era do Ouro; os países socialistas nas Eras (ou corpo virtual) é o principal candidato
de Prata e Bronze; e o terrorismo, em suas para a função, pois foi lentamente
diferentes versões, na atualidade. gestado através da mediação narrativa
Foi ainda analisado aqui como da dupla identidade dos super-heróis,
as próprias histórias em quadrinhos tem a vantagem do anonimato virtual
mais recentes problematizam e de propiciar uma experiência poética
metalinguisticamente a dupla identidade, e narrativa diferenciada da identidade
tanto humanizando os heróis como cotidiana.
pessoas normais como os desumanizando
como mutantes, alienígenas ou divindades. Referências bibliográficas
Mas, como a metade humana da dupla BOGART, Leo. As HQs e seus leitores
identidade implica na representação adultos. In: ROSENBERG, Bernard;
do leitor dentro da narrativa, essas WHITE, David Manning (Org.).
desconstruções narrativas não vingaram Cultura de massa. São Paulo: Cultrix,
e o duplo protagonismo permanece como 1973. p. 223-234.
uma das principais características das CAMARGO, Débora C. Ferreira. Fun
atuais narrativas gráficas de aventuras. Home: Os efeitos de referencialidade
A antropologia estuda as mitologias na autobiografia de Alison Bechdel.
do passado; a psicologia analítica (derivada Dissertação de Mestrado apresentado ao

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Programa de Pós-graduação em Linguística (Mestrado em PROGRAMA
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências DE POS GRADUAÇÃO EM
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1982. na era dos super-heróis. São Paulo:
DORFMAN, Ariel; MATTELART, Seoman, 2012.
Armand. Para ler o Pato Donald: PIETROFORTE, Antônio Vicente
comunicação de massa e colonialismo. 2. Seraphim. Análise textual da história em
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São Paulo: Cosac Naify, 2004. – Sociedade Brasileira de Estudos
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São Paulo: Cosac Naify, 2005. Congresso Brasileiro da Comunicação –
______. A origem dos modos à mesa: Campo Grande /MS – setembro 2001.
Mitológicas III. São Paulo: Cosac Naify, SOUZA, Alexandro Carlos de Borges. A
2006. representação do jornalista nas histórias em
______. O homem nu: Mitológica IV. São quadrinhos: cyberpunk e novo jornalismo
Paulo: Cosac Naify, 2011. numa leitura crítica de Transmetropolitan.
LEVY, P. A inteligência coletiva: por uma Dissertação (Mestrado em PROGRAMA
antropologia do ciberespaço. São Paulo: DE POS GRADUAÇÃO EM
Loyola, 2007. COMUNICAÇÃO) - Universidade
LIMA, Marcelo Soares de. A construção Federal da Paraíba. 2013.
da realidade nas história em quadrinhos TOMASI, Carolina. A missividade:
Alias: codinome investigações. Dissertação por uma gramática tensiva da semiótica

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de HQs. 281 f. Dissertação (Mestrado) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, 2011.
VERGUEIRO, Waldomiro; SANTOS,
Roberto Elísio dos. As HQs como objeto
de estudo das teorias da Comunicação.
In FRANÇA, Vera Veiga (et al.) Teorias
da Comunicação no Brasil: reflexões
contemporâneas. Salvador: Edufba, 2014.
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