Вы находитесь на странице: 1из 11

1

Reflexões esparças sobre a presença de negros na pós-graduação

Os protocolos de cientificidade estabelecidos hoje nasceram precários, mas foram


acalentados em grande medida pela credibilidade acumulada previamente de seus
anunciadores. Mas precisaram de investimentos em recursos financeiros, foram adequados
à auditórios especializados. Resultados frágeis foram protegidos em circulações
adequadamente embaladas tanto nos movimentos entre laboratórios como destes para os
espaços não científicos de produção de interessamentos. Nenhum resultado se fez científico
sem exigir adesões e colaboradores dedicados em polir os enunciados, em ajustar o sistema
de provas, engajamentos pacientes na calibragem dos instrumentos de medida e na
definição de estratégias de exposição conforme os públicos e os interesses a serem
despertados. Muitas outras possibilidades concorrentes são anuladas por falta dos mesmos
investimentos, e outros protocolos não chegaram sequer a ter credibilidade para se tornarem
audíveis. Outras possibilidades latentes do mesmo campo mal foram enunciados por falta
de credibilidade de quem os carrega. Não são enunciados necessariamente piores do que as
mais consistentes e consolidadas descobertas científicas em seus inícios.
Estou tentando aqui confrontar um dos protocolos que asseguram a possibilidade de certo
distanciamento do sujeito que investiga em relação ao seu próprio tempo, e no alienamento
de sua coporalidade. Cientistas sociais escreve como se estivessem sob uma temporalidade
diferente daquele do trabalho de campo. No campo, compartilham da coetaniedade dos
interlocutores, mas reservam o tempo real para o momento da escrita. Escrevem como se
desprovidos de corpos no momento da escrita. Raramente alguém se dedica a esmiuçar os
desconfortos físicos da escrita, os cerceamentos materiais que permitem a purificação. É
óbvio então o personagem do escritor reintroduzido para preencher as lacunas da narrativa
realista é menos uma afirmação do acontecimento – pesquisa como uma multiplicidade de
agenciamentos incompossíveis – do que a composição de uma autoficção mais ou menos
barata. Esse conjunto de rituais de purificação do sujeito do enunciado do relatório da
pesquisa é o que autoriza a fragmentar, decompor, recombinar o tempo, o espaço e no
conjunto, as práticas dos interlocutores em campo enquanto o tempo e a subjetividade do
autor é pressuposto como estabilizado. É a partir dessas considerações epistemológicas
2

iniciais que eu gostaria de tecer considerações a respeito da presença de negros e indígenas


nas universidades brasileiras. Num primeiro momento reflito sobre o modo como a
universidade silencia as perspectivas que não consegue domesticar sob essa modalidade
friccionada na perspectiva do sujeito des-corporado e inserido no tempo real. Na sequência
pretendo elaborar reflexões sobre possibilidades epistêmicas que vejo sendo
experimentadas nos escritos pós-graduandos de minorias étnico-raciais.

Escrituras carregadas de corporalidade

Parece-me estranho que nossos melhores interlocutores em campo se transformem em


orientandos "complicados" se inseridos em programas de pós-graduação. Mas é isso que
acontece na maioria dos casos em que programas de pós-graduação abrem reservas de
vagas para segmentos minoritários. Tanto que em lugar de serem disputados, esses alunos
que teriam sido interessantes interlocutores em aparecem como se fossem ônus, e o esforço
de normalização geralmente busca repartir para não sobrecarregar a uns mais do que a
outros professores. Não seria o caso de nos perguntarmos por que e como nossos jogos de
verdade implicam esse flagrante regime de distribuição de silêncios, para pelo menos,
marcarmos o que perdemos de conhecimento e o que permitimos de infelicidades? O que
faz com que talvez seja mais fácil admitir mestres não diplomados para que ministrem
disciplinas marginais do que se abrir à interpelação da escrita negra e indígena não
domesticada reivindicando lugares de autoridade científica? Quais são os lugares de
enunciação reivindicados pelos nossos orientandos cotistas em que somos mais resistentes
em realizar investimentos consistentes? Porque esses investimentos tendem a ser
confundidos com alguma espécie de populismo ou condescendência acadêmica?
Quanto mais avançam no curso menos interessantes como interlocutores se tornam meus
orientandos e alunos negros. Impõe-se uma moldura epistêmica, eles se recobrem de
jargões, simulam lugares epistêmicos que não conseguem frequentar sem se violentarem. A
colonialidade epistêmica lhes impõe um distanciamento em relação a uma imagem de si
mesmo colada a ideia de uma identidade negra. Longas e repetitivas epifanias de
cientificidade marcam o deslocamento do lugar de enunciação constituído nas tramas do
3

saber em relação a um sujeito de uma suposta experiência corporal de si mesmo. O fato


desses dois processos de formação de sujeito serem irreconciliáveis não é o que gera um
campo de sofrimento, mas a sobrecodificação dos experimentos de pensamento derivados
como erro. A universidade como lugar de um sofrimento racial não tematizável, como
complexo estrutural gerador de situações de violência epistêmica, para não-brancos,
permanece intocável, enquanto a litania dos imponderáveis em campo confere teatralidade
inconfidente à escritura antropológica normalizada de estudantes brancos em campos não-
brancos de pesquisa. . Mata-se um lugar de enunciação negro a cada aula, em cada banca,
em cada orientação. O epistemicídio é o correlato direto do genocídio da juventude negra.
A essa altura por tudo o que já sabemos das relações entre conhecimentos potenciais e
conhecimentos certificados como descobertas cientificas, o silenciamento da experiência
minoritária é um buraco que condena à mediocridade o conjunto da instituição e suas rasas
epistemes. Não apenas por uma questão ética ou de sentido de justiça, mas porque o
crescimento do conhecimento depende do acalentar de múltiplos lugares de enunciação a
universidade se empobrece no exato momento em que uma imensa oportunidade lhe bate à
porta. O que está em jogo aqui não é apenas que existam conhecimentos outros que
poderiam não ser desperdiçados. É que existem sujeitos outros e outros fluxos corporais
que podem suportar formas de eclosão de conhecimentos igualmente maravilhosos e
frágeis.
Os efeitos da colonialidade no cotidiano acadêmico abastecem o processo de
empobrecimento dos textos dos meus orientandos cotistas: processos de seleção euro-
centrados (quando o capital étnico-racial (associado à aparência) se articula ao capital
cultural para produzir um efeito de sub-representação não branca; insinuações e formas
subliminares magistrais de se dirigir aos não eleitos têm efeitos de censura que quando
interiorizadas funcionam como auto-censura; estrutura de campo fechado de um em espaço
de possibilidade expressão passível de reconhecimento provocam o cerceamento dos
lugares de enunciação credíveis.
Na medida em que as perspectivas não-brancas são capturadas por lugares brancos de
enunciação nossas disciplinas estão assentadas sobre um ruidoso silêncio que se configura
como dupla captura de alteridades, dentro e fora das universidades. O resultado é uma
redução do campo de mediações por corporalidades negras, já que nas redes de tradução as
4

alteridades mais radicais só podem ser representadas de modo crível por pessoas dotadas
das competências de tradução autorizadas, portanto brancas.
A descorporalização dos locus de enunciação passa em larga medida pelas injunções do
antiessesncialismo que funciona como máquina de silenciamento das experiências
subalternas que se expressam localizadas geopolítica e corporalmente. Como se o corpo
não fosse capaz de nomadismo identitário, a desessencialização das identidades ficou
colada a dispositivos de descorporalização dos lugares de enunciação.
Vou partir de minha experiência de encontro com minha corporalidade como uma
alteridade insuportável para pensar as condições em que negros se encontram nas
universidades brasileiras e o acontecimento que é enunciar sob tais condições. Cheguei de
um país cuja inserção adulta na comunidade das nações levava suas elites a tentar apagar os
rastros da diferença colonial sob rituais de construção de uma mestiçagem geral, englobante
e homogeneizante. Cheguei ao Brasil em 1987, crente no caráter residual de raça, uma
categoria que a independência dos países africanos teria tornado anacrônica. Interpelado
por metralhadoras policiais a pretexto da minha semelhança física com bandidos
perseguidos na cidade de Porto Alegre insisti em acreditar que fatores históricos
retardatários me deixavam nos lugares desconfortáveis de uma necessária prática de
vigilância.
O estalo eclodiu no dia em que sai do trabalho de campo numa madrugada fria de uma
sessão de batuque na periferia engolida da vila Mirim em Porto Alegre. Buscava ansioso
um táxi que me deixasse em casa e avistei no ponto da vila Jardim um taxista isolado
parecendo feito sob medida das minhas pressas e desconfortos noturnos. Eu tinha a certeza
que eu era naquela hora o cliente que um sofrido taxista na madrugada aguardava. Cheguei
à beira de um encontro assomando o vidro do taxi com indisfarçável alegria. O motorista
tirou da cintura uma arma e estabeleceu: “cai fora!”. Recuando perplexo esbarrei em minha
corporalidade.

Reorganizei minha experiência na universidade sob a catástrofe da dissolução sem aviso


prévio desta estrutura outrem que poderia me sustentar com um entre pares. Uma dinâmica
de relações constituída por tempos de esquecimento de minha corporalidade e eventos
estupefatos que podiam exacerbar evidências em torno da minha cor de pele e textura do
5

cabelo impuseram-me um processo de desaprender. Quando em fim o Estado brasileiro me


concedeu um visto residente eu já tinha sido evacuado da comum humanidade que trazia de
casa; foi o processo de reincorporação de um território negro desolado.
A quando da possibilidade de ser invadido e jogado em um estado de perplexidade em que
não sou apenas mais um, em que não me encontro em lugar adequado, quando minha
corporalidade não responde aos meus anseios de simples humanidade, me faço aprendiz.
Ao encontrar um outro em mim, mergulho nos efeitos de uma corporalidade carregada de
uma densidade histórica alheia as minhas expectativas humanistas. Então só posso me jogar
em espaços de possibilidades enunciativas intratáveis com os recursos metodológicos e sob
as injunções epistemológicas que configuram o campo acadêmico que conheço.
A perplexidade pela qual minha corporalidade emerge da zona de não ser com suas próprias
e para mim desconhecidas razões me impõe urgências. A presença se impõe como
incontroláveis medos, uma inquietude pegajosa, movimentos sorrateiros, um
posicionamento que privilegia os cantos, os fundos, as zonas de intimidades em lugar dos
espaços centrais, das falas abertas; o cultivo da impostura deliberada no momento de
encarnar as performances do logos viril; o corpo parece ter vida própria e independente de
qualquer mim mesmo que eu possa tentar restaurar. Quando o corpo parece ter suas
próprias razões, um estado de guerra emerge em oposição a uma alma crente nas premissas
do humanismo, já agora, branco. Descobri que um corpo volta e meia febril quando cercado
de branquitudes está em busca de um ponto de fuga. E do mesmo modo fui descobrindo em
minhas escritas linhas de fuga que passavam pelas artes da camuflagem, os saltos mortais
argumentativos de que na maioria não conseguia escapar. As evasivas como a arte de não
responder diretamente e a sedução como convite ao leitor a habitar a vizinhança de uma
biografia pegajosa se tornaram artifícios e estratégias. Se sempre se escreve para se
encontrar no texto um outro, esse outro talvez seja, no caso da experiência negra, as
pegadas de uma fuga. Obviamente não estamos aí, nas mal traçadas, mas numa caverna que
o labirinto de nossas escritas nos ajudou a transformar em esconderijo, mas esse lugar
sempre recua para além de qualquer eu que busque fixá-lo.
A questão da orientação, nesses casos, é como trabalhar com rastros e restos, como lidar
com aquilo que o acontecimento colonial deixou em cacos. Orientar meus alunos negros
tem sido experimentar o como me desorientei nesse mundo de um humanismo em
6

alternância com a desqualificação animalizante. As possibilidades de pensar e estabelecer


novos pactos identitários entre as injunções da academia que me priva do privilégio da
essencialização e as prerrogativas do movimento negro exigindo-me uma lealdade que sirva
de suporte para a restauração de um lugar lutas pelo sentido do acontecimento colonial tem
sido o desafio.

Uma matriz epistêmica afro-brasileira?

Obviamente, não encontraria na academia recursos para os impasses entre o meu corpo
estragado pelo racismo e meus estados mentais mais civilizados. É um acontecimento local,
provisório, não generalizável que a matriz do batuque tenha me apresentado modos de
continuar a problematizar para além de minhas angústias. O que a religiosidade afro-
brasileira apresenta como paradigma para o tratamento irreconciliável dessa fissura entre
corpos febris e eus despedaçados, mesmo para aqueles que como eu nunca estiveram nem
perto de cair no santo, é a presença como afirmação de uma multiplicidade, a reivindicação
de minha corporalidade por um acontecimento que ultrapassa todos os meus sentidos de
historicidade. Seguir os rastros da relação entre corpo e história como a arte de multiplicar
os sentidos da catástrofe: o encontro com a branquitude. O espaço para que cada um
trabalhe essa relação de si para consigo como se uma parte de si pertencesse a um outro
divino é que chamo aqui de matriz epistêmica afro-brasileira, eclosão do sentido da
diferença colonial como negrura.
Um continente de conhecimentos parece emergir desse modelo de se adoçar o que nos
acontece: e se em lugar de tentar controlar e projetar sentidos o acontecimento for senhor
de sua própria matriz epistemológica. Então os lugares de enunciação poderiam explodir
numa multiplicidade incontrolável para além dos regimes normativos das metodologias e
de matrizes epistemológicas fixas. Textos construídos na encruzilhada de forças ainda não
recenseadas pelos inspetores da matriz colonial de produção de conhecimento escapariam a
possibilidade de serem corrigidos. Estaria revogada a mediação branca dos silêncios não-
brancos.
7

Não foi essa a modalidade de revogação dos santos católicos que o pensamento de matriz
afro brasileiro impõe a liturgia católica? Trata-se de fazer com que as intensidades sagradas
sejam evocadas apenas o suficiente para que sua materialidade seja cavalgada pela potência
do acontecimento negro. Na negreira escritura do mesmo modo que com os santos, os
enunciados eurocêntricos citados permanecem no texto, mas não sem que um abismo de
possibilidades se instale sob cada enunciado como a esquiva potência de sentidos do
encontro colonial. Cheio de interrogações, nossos textos são incertos, imprecisos, se
vergam na multiplicidade de sentidos do acontecimento, como se os enunciados fossem
pontes frágeis entre os convites humanistas brancos e nossas corporeidade em chamas.

Na medida em que os eventos racistas precisam ser habitados de novo por nossa escrita
como um estrangeiro em sua própria corporeidade, escrever é aqui proceder à mediação de
alteridades entre sentidos nômades de si mesmo e corporalidades insuportáveis. No ângulo
insuportável do acontecimento colonial escavamos nossas perspectivas e nos enterramos
nelas para renascermos nos corpos gloriosos de nossos carnavais. Escondemos as marcas e
reinventamos os nossos corpos nas passarelas do nosso por vir como humanos em meio a
novos humanos. A desgraça que se abate sobre nossos corpos tornando os menos conforme
a uma boa humanidade irá passar. Escrevemos como se fosse passar, como se nossos
leitores já fossem adventistas dessa era por vir. Nossos corpos ilegais merecedores mais da
disciplina do que a lei se fazem deslizar para além da norma e aguardamos a correção como
as costas aguarda a chibata para se rebelar.

De modo por vezes similares vejo os alunos cotistas negros explodirem em


experimentações fora dos bancos escolares. Não cabem nas salas de salas de aula. Exigem,
implicam, se retraem. Aguardam o momento. Acumulam forças para frequentarem a
encruzilhada. Os alunos não-brancos continuam ocupando posições periféricas nas
geografias universitárias, mas um complô epistêmico nasce nas margens. Seus escritos
carregam as potências do cruzamento. O cruzamento não como lugar de síntese, mas de
prosseguimento de uma mutiplicidade de caminhos sobrepostos. Eles provêm e são
habitados volta e meia por outras epistemologias, outros modos de serem tomados pelo
acontecimento colonial. Não carregam epistemologias de seus universos de origem
8

enquanto derivados culturais. As epistemologias derivam de modos de habitar


acontecimentos singulares, são experimentações precárias, resultados precários dos
enfrentamentos aos desafios de responder cientificamente diante de situações limite sem os
instrumentos adequados. Eles têm de encontrar suportes metodológicos de ocasião quando
se salvar é poder salvar o pensamento produzindo encadeamentos corporais entre os
enunciados e as dores do racismo. Fazendo da própria corporalidade a extensão de uma
escrita incerta, meus orientandos se deixam cavalgar pelos tempos do acontecimento
colonial de modo não linear. Mas esse exercício é tateante, incerto e sofrido. De modo
magistral essa estratégia é encontrada em Du Bois:

Foi nos primeiros tempos de uma infância traquinas que a revelação irrompeu em mim, assim, um
dia, tudo de uma vez. Lembro-me bem quando a nuvem me varreu. Eu era uma coisa pequena,
vivendo longe, entre os montes da Nova Inglaterra... Numa escolinha de madeira, alguém meteu na
cabeça dos rapazes e raparigas que tinham de comprar lindos cartões de visita — a dez cêntimos o
maço — e de os trocar entre si. Foi uma troca jovial, até que uma rapariga alta, recém-chegada,
recusou o meu cartão; recusou-o peremptoriamente, sem hesitar. Foi então que me foi dado a ver,
numa certeza repentina, que era diferente dos outros; ou, porventura, semelhante no coração, na
vida e nos desejos, mas excluído do mundo deles por um enorme véu.

No resto do texto o personagem habita o corpus histórico do homem negro americano. Seus
anseios e hesitações passam a recompor a narrativa de um século de história negra. O
presente pessoal e o passado coletivo se fazem um amálgama. Como se tudo o que passou
aos negros no Estados Unidos pudesse agora ser cavalgado por um personagem que
escreve, que eclode entre o texto e as dores de uma memória que se faz carne depreciada.
De modo similar, o que tenho verificado é que em que pese as injunções normativas para o
distanciamento, os estudantes negros praticam uma outra coisa, nos interstícios das
disciplinas, uma espécie de negro-acontecimentologia. Não é nem bem história, nem
antropologia, nem se encaixa bem nas regularidades da sociologia ou da filosofia.
As feridas provocadas pelas experiências pessoais de racismo encontra na sobrecodificação
estatal do acontecimento genocídio negro na forma de estatísticas e narrativas historicistas
seu lugar primeiro de repouso. Emanam das perspectivas de mulheres negras, jovens
quilombolas, estudantes indígenas, formas de cavalgar o acontecimento se fazendo parceiro
do que já eclodiu. Esse devir ser em estado de genocídio é o eclode no papel na forma de
uma dissertação em que um enredo pessoal se entrelaça ao evento devir um povo .
9

suportar o acontecimento na primeira pessoa do plural se transforma no índice de um modo


de ressoar do acontecimento que faz a racilidade negra eclodir no papel.
Longas citações de falas nativas asseguram, não uma transferência de autoria, mas,
disjunções que impedem sínteses completas no ponto de vista do mediador intelectual. É
como se sempre faltasse algo a retirar daquela fala nativa no modo como fica a citação
suspensa no texto. O encadeamento que se totaliza numa meta-teoria sobre a etnicidade,
território ou cultura não impede uma proliferação de subtextos que estendem outros meta-
enquadramentos teóricos para os conflitos locais.
Chamo momentaneamente de pensamento de encruzilhada a esse espaço que se abre com o
adensar da presença de estudantes negros na pós, constituído de enunciados em
encadeamentos centrífugos, como linhas de fuga para a multiplicidade de sentidos do
acontecimento. Experiências que não cabem nas molduras enunciativas instituídas de
reincorporação dos sujeitos de conhecimento: assumir que se está em ambientes carregados
de violência epistêmica que os métodos regulam mas não eliminam.
Não se trata aqui de um esforço para encontrar um marco analítico que amarre um leque de
conceitos utilizados pós-graduandos negros. Trata-se de uma leitura que aposta na
possibilidade de que o acontecimento carregue sua própria episteme e amarre o seu próprio
leque de conceitos de modo que o texto seja visto como parte da incorporação do senso de
se estar a beira do abismo o genocídio negro.
Sugiro que a experiência temporal da incorporação na religiosidade de matriz africana
possa ser tomada como modelo de leitura e plano de investimentos. Quando um orixá se
ocupa do corpo de um médium trata-se do dar-se de um acontecimento. A relação do
médium com o orixá é a de quem alimenta um acontecimento, uma extensão temporal do
acontecimento. Nunca significa apenas retomar como quem apenas performatiza a partir de
um figurino e de um roteiro. Como nunca se sabe quando um acontecimento de fato está
encerrado, trata-se de explorar possibilidade de que o orixá ainda esteja acontecendo aqui.
A feitura de um orixá é uma operação de cuidado que expande a duração do acontecimento.
Um orixá que teria acontecido em tempos imemoriais numa certa região da África ocidental
é semanalmente cultivado, anualmente alimentado de sangue sacrificial, de sessão em
sessão, o espírito é abrigado esplendorosamente em um corpo medium transformado em
corpo sacralizado. Um deslocamento de si para que um espírito se ocupe do corpo é um
10

acontecimento presente, um presente sem fim subjacente aos instantes pessoais. Nas
escrituras negras também está em jogo deixar-se ocupar pelo sentido do acontecimento de
modo que o genocídio negro ocupe as possibilidades existenciais deste texto aqui e agora,
seja um de seus regimes de existência. Veja-se, por exemplo, no extrato de uma aluna
minha do texto final para avaliação numa disciplina sobre Racismo e pós-colonialismo:

(...) tenho como objetivo analisar a narrativa de mulheres negras familiares e companheiras de
jovens negros (15 a 29 anos) vítimas de homicídio em Porto Alegre. (...) mesmo que sejam os
homens negros as principais vítimas de mortes violentas, são as mulheres negras quem
experienciam a longo prazo as consequências dessa violência. A partir da narrativa destas
mulheres, que chamo de “as que ficam”, procurarei observar seus possíveis processos de resistência
e como organizam suas vidas após a perda (...) a minha experiência enquanto mestranda negra cujo
familiar foi vítima de homicídio depois de eu já ter proposto o meu projeto. Ou seja, aconteceu uma
ruptura com quem eu era antes e quem eu acabei me tornando na metade do curso de mestrado.
Pensar que eu me desloquei de lugar de “empatia” para um lugar onde me descobri pertencente ao
meu próprio objeto de pesquisa.

Aqui, nas estratégias de escritura do pós-graduando negro, trata-se de um modelo de habitar


o acontecimento de tal modo que o ritual de escritura se faça um silogismo disjuntivo:
narra-se o acontecimento, mas já agora também se faz um grito de denúncia encarnado no
cerne do acontecimento. Em lugar de se tomar toda a cultura do terreiro como um texto, o
convite é para se tomar a escritura como uma parte do real, fazer da folha de papel um
terreiro e da escritura uma sessão saturada de espíritos, rasgar a garganta da folha para que
possa explodir nela uma parte do sangue que eclode nas calçadas. Está na pele do escritor,
escorrendo para a folha de papel; mas o sujeito das estratégias de escritura é uma ficção
elaborado para os efeitos persuasivos da argumentação. Fazer da própria escrita uma
encruzilhada de um multiplicidade de sujeitos que permanecem irredutíveis entre si é o
destino de um texto negro.
Um dos sujeitos da escrita negra é elaborado no lugar de uma urgência. Algo como: “Dizem
que eclode um genocídio negro. O que vocês fazem aqui? Enquanto lá fora morre-se. É
preciso de algum modo morrer-se aqui também para que seja, aqui, o papel, extensão da
rua. Se não, não faz sentido escrever nas bordas de um genocídio”. Um outro é elaborado
no lugar de quem percorre o acontecimento como um outro afetado pelo acontecer nos
corpos de seus próximos. Um outro mais distante ainda é o sujeito que analisa e descreve
como um acadêmico que resguarda as devidas distâncias. Incapaz de suportar o sujeito
unificado de uma autoria cartesiana, explode nos textos negros inconsistências por todos os
11

lados. Veja-se por exemplo, e Fanon declamando o texto como sangue coagulado que
elabora o ser do negro:

Nessa época, desorientado, incapaz de estar no espaço aberto com o outro, com o branco que
impiedosamente me aprisionava, eu me distanciei para longe, para muito longe do e meu estar-aqui,
constituindo-me como objeto. O que é que isso significava para mim, senão um desalojamento, uma
extirpação, uma hemorragia que coagulava sangue negro sobre todo o meu corpo?

Esse extrato é de todo inconsistente. O sujeito desorientado não é o mesmo que me


distancia para muito longe; o constituído como objeto não é nem mais um sujeito. O sangue
coagula sobre o corpo e não sobre o sujeito, mas o sujeito se faz devir devir e percorre o
sangue coagualdo como única forma de se fazer negro. Sangue negro coagulante,
hemorragia sobre a folha de papel é um percurso sobre o acontecimento genocida de um
sujeito que eclode nas estratégias da escritura. A urgência negra para que o texto possa
mimetizar o que acontece lá fora: genocídio da população negra. Chamar pelo nome a pele
como sangue coagulado é esconjurar o acontecimento para que possamos ter alguma
chance de sobreviver como uma multiplicidade de povos.

Вам также может понравиться