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alteridades mais radicais só podem ser representadas de modo crível por pessoas dotadas
das competências de tradução autorizadas, portanto brancas.
A descorporalização dos locus de enunciação passa em larga medida pelas injunções do
antiessesncialismo que funciona como máquina de silenciamento das experiências
subalternas que se expressam localizadas geopolítica e corporalmente. Como se o corpo
não fosse capaz de nomadismo identitário, a desessencialização das identidades ficou
colada a dispositivos de descorporalização dos lugares de enunciação.
Vou partir de minha experiência de encontro com minha corporalidade como uma
alteridade insuportável para pensar as condições em que negros se encontram nas
universidades brasileiras e o acontecimento que é enunciar sob tais condições. Cheguei de
um país cuja inserção adulta na comunidade das nações levava suas elites a tentar apagar os
rastros da diferença colonial sob rituais de construção de uma mestiçagem geral, englobante
e homogeneizante. Cheguei ao Brasil em 1987, crente no caráter residual de raça, uma
categoria que a independência dos países africanos teria tornado anacrônica. Interpelado
por metralhadoras policiais a pretexto da minha semelhança física com bandidos
perseguidos na cidade de Porto Alegre insisti em acreditar que fatores históricos
retardatários me deixavam nos lugares desconfortáveis de uma necessária prática de
vigilância.
O estalo eclodiu no dia em que sai do trabalho de campo numa madrugada fria de uma
sessão de batuque na periferia engolida da vila Mirim em Porto Alegre. Buscava ansioso
um táxi que me deixasse em casa e avistei no ponto da vila Jardim um taxista isolado
parecendo feito sob medida das minhas pressas e desconfortos noturnos. Eu tinha a certeza
que eu era naquela hora o cliente que um sofrido taxista na madrugada aguardava. Cheguei
à beira de um encontro assomando o vidro do taxi com indisfarçável alegria. O motorista
tirou da cintura uma arma e estabeleceu: “cai fora!”. Recuando perplexo esbarrei em minha
corporalidade.
Obviamente, não encontraria na academia recursos para os impasses entre o meu corpo
estragado pelo racismo e meus estados mentais mais civilizados. É um acontecimento local,
provisório, não generalizável que a matriz do batuque tenha me apresentado modos de
continuar a problematizar para além de minhas angústias. O que a religiosidade afro-
brasileira apresenta como paradigma para o tratamento irreconciliável dessa fissura entre
corpos febris e eus despedaçados, mesmo para aqueles que como eu nunca estiveram nem
perto de cair no santo, é a presença como afirmação de uma multiplicidade, a reivindicação
de minha corporalidade por um acontecimento que ultrapassa todos os meus sentidos de
historicidade. Seguir os rastros da relação entre corpo e história como a arte de multiplicar
os sentidos da catástrofe: o encontro com a branquitude. O espaço para que cada um
trabalhe essa relação de si para consigo como se uma parte de si pertencesse a um outro
divino é que chamo aqui de matriz epistêmica afro-brasileira, eclosão do sentido da
diferença colonial como negrura.
Um continente de conhecimentos parece emergir desse modelo de se adoçar o que nos
acontece: e se em lugar de tentar controlar e projetar sentidos o acontecimento for senhor
de sua própria matriz epistemológica. Então os lugares de enunciação poderiam explodir
numa multiplicidade incontrolável para além dos regimes normativos das metodologias e
de matrizes epistemológicas fixas. Textos construídos na encruzilhada de forças ainda não
recenseadas pelos inspetores da matriz colonial de produção de conhecimento escapariam a
possibilidade de serem corrigidos. Estaria revogada a mediação branca dos silêncios não-
brancos.
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Não foi essa a modalidade de revogação dos santos católicos que o pensamento de matriz
afro brasileiro impõe a liturgia católica? Trata-se de fazer com que as intensidades sagradas
sejam evocadas apenas o suficiente para que sua materialidade seja cavalgada pela potência
do acontecimento negro. Na negreira escritura do mesmo modo que com os santos, os
enunciados eurocêntricos citados permanecem no texto, mas não sem que um abismo de
possibilidades se instale sob cada enunciado como a esquiva potência de sentidos do
encontro colonial. Cheio de interrogações, nossos textos são incertos, imprecisos, se
vergam na multiplicidade de sentidos do acontecimento, como se os enunciados fossem
pontes frágeis entre os convites humanistas brancos e nossas corporeidade em chamas.
Na medida em que os eventos racistas precisam ser habitados de novo por nossa escrita
como um estrangeiro em sua própria corporeidade, escrever é aqui proceder à mediação de
alteridades entre sentidos nômades de si mesmo e corporalidades insuportáveis. No ângulo
insuportável do acontecimento colonial escavamos nossas perspectivas e nos enterramos
nelas para renascermos nos corpos gloriosos de nossos carnavais. Escondemos as marcas e
reinventamos os nossos corpos nas passarelas do nosso por vir como humanos em meio a
novos humanos. A desgraça que se abate sobre nossos corpos tornando os menos conforme
a uma boa humanidade irá passar. Escrevemos como se fosse passar, como se nossos
leitores já fossem adventistas dessa era por vir. Nossos corpos ilegais merecedores mais da
disciplina do que a lei se fazem deslizar para além da norma e aguardamos a correção como
as costas aguarda a chibata para se rebelar.
Foi nos primeiros tempos de uma infância traquinas que a revelação irrompeu em mim, assim, um
dia, tudo de uma vez. Lembro-me bem quando a nuvem me varreu. Eu era uma coisa pequena,
vivendo longe, entre os montes da Nova Inglaterra... Numa escolinha de madeira, alguém meteu na
cabeça dos rapazes e raparigas que tinham de comprar lindos cartões de visita — a dez cêntimos o
maço — e de os trocar entre si. Foi uma troca jovial, até que uma rapariga alta, recém-chegada,
recusou o meu cartão; recusou-o peremptoriamente, sem hesitar. Foi então que me foi dado a ver,
numa certeza repentina, que era diferente dos outros; ou, porventura, semelhante no coração, na
vida e nos desejos, mas excluído do mundo deles por um enorme véu.
No resto do texto o personagem habita o corpus histórico do homem negro americano. Seus
anseios e hesitações passam a recompor a narrativa de um século de história negra. O
presente pessoal e o passado coletivo se fazem um amálgama. Como se tudo o que passou
aos negros no Estados Unidos pudesse agora ser cavalgado por um personagem que
escreve, que eclode entre o texto e as dores de uma memória que se faz carne depreciada.
De modo similar, o que tenho verificado é que em que pese as injunções normativas para o
distanciamento, os estudantes negros praticam uma outra coisa, nos interstícios das
disciplinas, uma espécie de negro-acontecimentologia. Não é nem bem história, nem
antropologia, nem se encaixa bem nas regularidades da sociologia ou da filosofia.
As feridas provocadas pelas experiências pessoais de racismo encontra na sobrecodificação
estatal do acontecimento genocídio negro na forma de estatísticas e narrativas historicistas
seu lugar primeiro de repouso. Emanam das perspectivas de mulheres negras, jovens
quilombolas, estudantes indígenas, formas de cavalgar o acontecimento se fazendo parceiro
do que já eclodiu. Esse devir ser em estado de genocídio é o eclode no papel na forma de
uma dissertação em que um enredo pessoal se entrelaça ao evento devir um povo .
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acontecimento presente, um presente sem fim subjacente aos instantes pessoais. Nas
escrituras negras também está em jogo deixar-se ocupar pelo sentido do acontecimento de
modo que o genocídio negro ocupe as possibilidades existenciais deste texto aqui e agora,
seja um de seus regimes de existência. Veja-se, por exemplo, no extrato de uma aluna
minha do texto final para avaliação numa disciplina sobre Racismo e pós-colonialismo:
(...) tenho como objetivo analisar a narrativa de mulheres negras familiares e companheiras de
jovens negros (15 a 29 anos) vítimas de homicídio em Porto Alegre. (...) mesmo que sejam os
homens negros as principais vítimas de mortes violentas, são as mulheres negras quem
experienciam a longo prazo as consequências dessa violência. A partir da narrativa destas
mulheres, que chamo de “as que ficam”, procurarei observar seus possíveis processos de resistência
e como organizam suas vidas após a perda (...) a minha experiência enquanto mestranda negra cujo
familiar foi vítima de homicídio depois de eu já ter proposto o meu projeto. Ou seja, aconteceu uma
ruptura com quem eu era antes e quem eu acabei me tornando na metade do curso de mestrado.
Pensar que eu me desloquei de lugar de “empatia” para um lugar onde me descobri pertencente ao
meu próprio objeto de pesquisa.
lados. Veja-se por exemplo, e Fanon declamando o texto como sangue coagulado que
elabora o ser do negro:
Nessa época, desorientado, incapaz de estar no espaço aberto com o outro, com o branco que
impiedosamente me aprisionava, eu me distanciei para longe, para muito longe do e meu estar-aqui,
constituindo-me como objeto. O que é que isso significava para mim, senão um desalojamento, uma
extirpação, uma hemorragia que coagulava sangue negro sobre todo o meu corpo?