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Neste capítulo, analisamos conteúdos da revista Veja referentes aos atentados ocorridos em 11 de setembro

de 2001, em Nova York e Washington. Sensíveis à gravidade e complexidade dos fatores envolvidos, examinamos a
cobertura jornalística da revista, as suas páginas de opinião e as reações publicadas de seus leitores, buscando a
identificação de padrões de tratamento informativo e opinativo da tragédia, suas implicações e conseqüências. Do
reconhecimento dos níveis de coerência desses padrões, e da sua articulação numa concepção abrangente (embora
específica e excludente) de Veja sobre o acontecido, explicitamos conexões entre tal concepção ideológica e a
economia política da revista.

In this chapter, we analyze contents of Veja magazine about the attacks in New York and Washington on
September 11, 2001. Sensitive to the situation's graveness and complexity, we examine the magazine's journalistic
coverage, opinion pages and readers' published reactions in order to identify patterns of informative and
opinionative treatment of the tragedy, its implications and consequences. From recognizing these patterns' levels of
coherence, and their articulation into a comprehensive (although specific and exclusive) framework of those events
by Veja, we make connections explicit between such an ideological conception and the magazine's political
economy.

Sobre o 11 de setembro: notícia, opinião e recepção em Veja

Sérgio Euclides de Souza1 e Érica Andrade2

Objeto e procedimento

Em artigo publicado no domingo seguinte aos trágicos eventos em Nova York e


Washington, um dos autores deste capítulo exortou os meios de comunicação a assumirem
responsabilidade nova – com efeito, antiga em sua realização precária –, então definitivamente
imperiosa face à gravidade do acontecido.
Embora a lógica e a dinâmica que presidem o funcionamento da mídia contemporânea privilegiem a notícia
mercadologicamente atraente – ou seja, enquanto representação simplificada, fragmentada e
espetacularizada da realidade –, a tragédia de terça-feira exige de todos nós um reconhecimento sóbrio da
sua complexidade. Aqui, a cobertura jornalística não pode restringir-se ao "factual", a despeito do seu
horror patente: ela precisa ser analítica; tratar os fatos em questão da perspectiva das suas causas,
implicações, desdobramentos e conseqüências; ser generosamente abrangente na abordagem dos diferentes
pontos de vista envolvidos. Enfim, cabe aos meios reconstituir o contexto necessariamente histórico no qual
tais fatos se deram, a fim de prover informação fundamentada, confiável – numa palavra, fidedigna –

1
Sérgio Euclides de Souza, professor do curso de Comunicação Social do Instituto de Educação Superior de Brasília
(IESB) e professor visitante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), é bacharel em
Jornalismo e mestre em Comunicação pela UnB, e doutor em Comunicação pela Universidade do Colorado em
Boulder, Estados Unidos. Seus interesses envolvem teorias e métodos em comunicação, estética e cultura de massa,
economia política da comunicação, comunicação e desenvolvimento, direito de comunicações, legislação e políticas
de comunicação, e regulamentação de novas tecnologias. (Agradecemos a Carlos Eduardo Fonseca pela assistência
de pesquisa).
2
Érica Andrade é jornalista, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. Em 1999, concluiu o
Mestrado em Comunicação na Universidade de Brasília, com a dissertação “Estado, Internet e Sociedade – A
Comunicação Estatal na Era das Redes”. Trabalha na Assessoria de Imprensa do Ministério da Fazenda e é
professora do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB).

1
àqueles que dela precisam na formulação, apoio e/ou implementação de políticas que efetivamente
contribuam para a diminuição das tensões e conflitos existentes.
Isso significa que os meios de comunicação, apesar dos valores dualistas e dicotômicos caracteristicamente
"ocidentais" que permeiam a sua atividade, terão de problematizá-los: imaginar que é possível um mundo
no qual a imensa diversidade de crenças, concepções e modos de vida seja reduzida a um conflito de morte
entre duas abstrações – "nós" e "eles" – implica submetermo-nos, sem exceções, ao risco da destruição
total.3
De que forma e em que medida Veja, a revista semanal de informação de maior
circulação no país, "atendeu" à exortação acima? Qual é o escopo de sua cobertura jornalística?
Qual a reação (publicada) de seus leitores ao seu noticiário e às colunas? De que forma se
articularam notícia, opinião e recepção para a construção de uma concepção coerente e
conseqüente acerca do ocorrido em Nova York e Washington e de seus desdobramentos? Que
relação existe entre tal concepção e a economia política da revista?
Para fornecer resposta preliminar a essas perguntas, examinamos quatro edições de Veja
(dos dias 19 e 26 de setembro e 3 e 10 de outubro de 2001)4, com o intuito de analisar e
interpretar (a) os eixos temáticos da sua cobertura jornalística do 11 de setembro e
desdobramentos imediatos, com especial atenção para os editoriais da revista enquanto sínteses
normativas daquela cobertura; (b) as opiniões de seus articulistas regulares enquanto
parâmetros das possibilidades e limites "explicativos", editorialmente aceitáveis, dos
acontecimentos em foco; e (c) manifestações relacionadas de seus leitores enquanto indicativos
dos tipos de recepção e reação públicas incorporáveis à construção de uma concepção coerente,
pela/na revista, sobre os temas em questão.
Nesse sentido, elegemos as três edições de Veja seguintes aos atentados, nas quais o 11 de
setembro, a guerra ao terror e as críticas à postura americana foram respectivamente temas de
capa, mais a edição de 10 de outubro, considerada apenas em função das cartas de leitores
relativas à edição anterior (embora também apresente assunto de capa relacionável àqueles
eventos)5. Procedemos então à leitura das páginas da cobertura diretamente referentes aos tópicos
acima mencionados, procurando identificar padrões de tratamento jornalístico dos protagonistas
e seus contextos de atuação, e checando-os (confrontando-os) com os editoriais correspondentes.
Analogamente, lemos as colunas buscando o reconhecimento de padrões de opinião de cada um

3
Sérgio Euclides de Souza, "Responsabilidade histórica: a mídia tem a chance de colocar as diferenças culturais no
centro das atenções", Correio Braziliense, Brasília, 16 de setembro de 2001, caderno Pensar, pp. 6-7.
4
Edições nº1.718, nº1.719, nº1.720 e nº1.721, respectivamente.
5
De setembro a dezembro de 2001, Veja elegeu o 11 de setembro e tópicos relacionados como temas de capa em
oito edições – além das quatro aqui tratadas, as dos números 1.722, 1.723, 1.730 e 1.732, referentes aos dias 17 e 24
de outubro, e 12 e 26 de dezembro, respectivamente.

2
dos articulistas e, eventualmente, entre eles. Por fim, privilegiamos as mensagens de leitores
explicitamente referentes aos eixos temáticos da cobertura da revista e/ou às suas páginas de
opinião, averiguando a possível existência de padrões opinativos também nesse público.
Importa-nos esclarecer que a identificação de tais padrões não resultou tanto de
quantificações por categorias, mas sim de uma preocupação essencialmente qualitativa com o
modo, a extensão e a variedade das posições expressas (vale lembrar: embora a freqüência de
uma ocorrência seja o que defina, ultimamente, a existência de um padrão, não se trata,
definitivamente, do melhor critério para o reconhecimento da importância desse padrão). Isso
deve-se à natureza da análise e interpretação propostas, cujo arcabouço teórico-conceitual
introduzimos a seguir.

Pequena digressão teórica

Nesta abordagem dos primeiros conteúdos de Veja sobre os atentados de 11 de setembro


nos Estados Unidos, visamos um mapeamento inicial de padrões nos três segmentos
mencionados (notícia, opinião e recepção) com o objetivo de verificar os seus níveis de
coerência – isto é, sua consistência e flexibilidade, tanto intra como entre segmentos. A intenção
era de identificar os termos básicos de um discurso compreensivo editorialmente aceitável que,
ao consubstanciar-se numa determinada concepção dos fatos, indicia os seus pressupostos
ideológicos, ou seja, aquilo que ultimamente "justifica" a sua economia política. Para a
orientação do nosso esforço, concorreram duas vertentes teóricas – uma, acerca dos efeitos da
mídia; outra, da reprodução ideológica propriamente dita –, cujos aspectos primordiais cabe
agora ressaltar.
1. Nas últimas décadas, a problemática dos efeitos dos meios de comunicação junto aos
seus receptores, originalmente concebida nos termos da tradição da pesquisa administrativa
norte-americana (instrumental, positivista e empirista), tem sido redefinida no âmbito de uma
corrente de estudos que, fundeada na sociologia do conhecimento, enfatiza a importância dos
processos simbólicos como pressupostos da sociabilidade. Mais especificamente, reconhece o
papel da mídia nas sociedades contemporâneas como determinante na construção das percepções
predominantes, socialmente compartilhadas, da realidade 6. A idéia de que os meios são decisivos
6
De acordo com Wolf (1995, 127-128), antecedentes históricos dessa perspectiva podem ser encontrados em Walter
Lippmann (Public Opinion, 1922) e Paul Lazarsfeld (Radio and the Printed Page, 1940). Sobre a correspondente
mudança de paradigma observada na abordagem da questão dos efeitos, Wolf explica que "muda, em primeiro lugar,
o tipo de efeito, que já não diz respeito às atitudes, aos valores, aos comportamentos dos destinatários, mas que é um
efeito cognitivo sobre os sistemas de conhecimento que o indivíduo assume e estrutura de uma forma estável, devido
ao consumo que faz das comunicações de massa. Em segundo lugar, muda o quadro temporal: já não efeitos

3
na construção, a longo prazo, de uma realidade social "de segunda mão" ('creating a second-hand
reality') foi expressa inicialmente em 1962 por K. Lang e G. E. Lang, referindo-se à política.
Muito do que se conhece sobre a vida política é apreendido em segunda ou terceira mão, através dos mass
media. Estes estruturam um contexto político muito real, mas que nós podemos conhecer apenas "de longe"
[...]. Para além disso, os mass media estruturam também uma realidade mais vasta, não local, a que é difícil
subtrairmo-nos [...]. Existe algo de intruso (obstrutivo) naquilo que os mass media apresentam, algo que
torna a sua influência cumulativa7.
Assim sendo, os meios de comunicação, ao gerarem e/ou mediarem os fluxos dominantes
de informação e conhecimento sobre a realidade social, terminam por virtualmente formatar o
processo contínuo de construção simbólica do real – em suma, o próprio processo da formação
cultural. De acordo com E. Noelle Neumann, são três as características que fundamentalmente
constituem, então, o papel dos meios: a acumulação, a consonância e a onipresença. A
acumulação diz respeito ao poder da mídia na criação e sustentação de certos assuntos como
importantes; trata-se do efeito global, num determinado período, da (re)produção constante de
formas e conteúdos comunicativos, o que reflete "[o] modo como funciona a cobertura
informativa no sistema de comunicações de massa"8. A consonância, por sua vez, refere-se ao
fato de que as semelhanças existentes nas estruturas e rotinas produtivas tanto entre veículos
como entre tecnologias, sendo maiores que as diferenças, traduzem-se em formas e conteúdos
comunicativos "substancialmente mais semelhantes que dissemelhantes" 9. E a onipresença,
relativa não apenas à enorme quantidade de mensagens de massa veiculadas, relaciona-se a uma
particularidade do "saber público" enquanto conjunto articulado das informações, opiniões e
atitudes difundidas pela mídia: "é do conhecimento público que esse saber é publicamente
conhecido"10.
Concomitantes, essas três características apontam um modo de operação dos meios de
comunicação no qual, segundo Mauro Wolf, é reforçada

pontuais, ligados à exposição à mensagem, mas efeitos cumulativos, sedimentados no tempo. Isto é, realça-se o
carácter processual da comunicação, que é analisada quer na sua dinâmica interna, quer nas suas relações com
outros processos comunicativos, anteriores ou contemporâneos. A duração do espaço de tempo em que esses efeitos
se tornam perceptíveis, e são de qualquer forma mensuráveis, é, portanto, bastante ampla. Evidencia-se a interacção
e a interdependência permanentes dos factores que entram em jogo no processo de influência, e este aspecto, na
minha opinião, institui a via interdisciplinar que tal atitude de pesquisa insinua." (p. 126).
7
K. Lang e G. E. Lang, "The Mass Media and Voting", in Burdick-Brodbeck (eds.), American Voting Behavior, New
York, Free Press, 1962; (Wolf, 1995, pp. 128-129).
8
Wolf (1995, p. 129) reproduz o argumento de Noelle Neumann em "Return to the Concept of Powerful Mass
Media", Studies of Broadcasting, vol. 9, 1973, pp. 67-112).
9

(Idem)
10

(Ibidem)

4
... a disponibilidade para a expressão e para a evidência dos pontos de vista difundidos pelos mass media,
e daí o poder que essa evidência tem sobre aqueles que não formaram ainda uma opinião própria. O
resultado final é que, muitas vezes, a repartição efetiva da opinião pública se regula pela opinião
reproduzida pelos mass media e se adapta a ela, segundo um esquema de conjecturas que se
autoverificam11.
É neste ponto que se mostra a pertinência do argumento delineado acima para o tipo de
mapeamento, análise e interpretação aqui pretendido. Acreditamos que, respeitante ao 11 de
setembro e desdobramentos, Veja procurou – juntamente com os outros meios – estabelecer,
relativamente a um assunto, o que foi uma vez definido por M. Fishman como "as condições da
nossa experiência do mundo para lá das esferas de interacções em que vivemos" 12. No nosso
caso, entre tais condições certamente figuraram a cobertura jornalística, as opiniões dos
colunistas e as manifestações dos leitores nas páginas da revista. Essas condições articuladas,
entre outras (re)produzidas pela mídia em geral, regulam "a repartição efetiva da opinião
pública" há pouco aludida, a elas adaptada "segundo um esquema de conjecturas que se
autoverificam". Cabe lembrar que este processo contínuo de autoverificação e ajustamento
mútuos é causa e conseqüência do caráter sistêmico – compreensivo, articulado e coerente – da
relação entre mídia e sociedade, cujo reconhecimento é crucial para uma explicação adequada
do papel estrutural decisivo dos meios de comunicação na construção simbólica da realidade
social. O nível interno de articulação e coerência de um exemplo específico dessa construção
discursiva – o 11 de setembro nas páginas de Veja – é, portanto, a nossa preocupação central
neste capítulo.
2. Dito isso, podemos nos remeter brevemente à questão ideológica, qual seja, das
desigualdades estruturais cujas tensões, se adequadamente administradas pelo establishment,
tornam-se conjunturalmente neutralizáveis nos processos de construção simbólica através da sua
subsunção em totalidades discursivas estáveis (representações equacionadas dos conflitos).
Depreendemos que "as condições da nossa experiência do mundo para lá das esferas de
interacções em que vivemos", estabelecidas pelos meios13, sempre apresentam um grau
determinado de articulação e coerência, interna e externamente. Quanto às formas e conteúdos
comunicativos, sustentamos que, se maior o seu grau de articulação e coerência intra e entre si
(isto é, de uma combinação não-contraditória de consistência e flexibilidade dos significados),
11

(Wolf, 1995, p. 129.)


12

(M. Fishman, Manufacturing the News, Austin, University of Texas Press, 1980; citado por Wolf, Teorias da
Comunicação, p. 129.)
13

Certamente, pode-se argumentar hoje, nas sociedades midiaticamente saturadas, que os meios crescentemente
estabelecem tais condições também nas esferas de interações em que vivemos. Contudo, esta questão foge ao escopo
deste trabalho.

5
maiores as chances das condições mencionadas refletirem ideologicamente a perspectiva – logo,
os interesses em última instância materiais – dos proprietários e/ou controladores daqueles meios
e de seus associados. Em qualquer das três versões comuns do conceito na literatura marxista 14,
ideologia refere-se a sistema relativamente (auto)consciente, formal e articulado de idéias,
significados, valores e crenças, "de um tipo que se pode abstrair como 'visão de mundo', ou
'perspectiva de classe'"15. De acordo com Raymond Williams, "[a]s formas [da consciência]
plenamente articuladas e sistemáticas é que são reconhecíveis como ideologia" 16. Por
conseguinte, a identificação do ideológico – ou seja, da predominância, numa formação
discursiva, de uma dada perspectiva em detrimento de outras possíveis – depende do grau de
articulação e coerência das suas partes constitutivas.
Nesse sentido, cremos que o nível de concordância nos conteúdos noticiosos e opinativos
de Veja selecionados sobre o 11 de setembro, determinável pelo procedimento exposto, indicaria
(algo paradoxalmente), de um lado, o que a revista reproduz da natureza sistêmica da operação
da mídia em sociedades desiguais e, de outro, o caráter específico do seu jornalismo, atribuível a
seus sujeitos no confronto (não necessariamente contraditório) entre aspirações individuais e
determinações institucionais – entre os seus jornalistas, colunistas e leitores e a sua economia
política.

A cobertura e sua polarização

Veja abre a sua cobertura do 11 de setembro com uma edição especial (nº1.718, de
19/09/2001), cujos título e imagem de capa – "O Império Vulnerável", e a fotografia de uma das
torres do World Trade Center explodindo sob o impacto de um dos aviões 17 – ilustram o que será
priorizado, ao mesmo tempo que prenunciam o espírito atribuitivo, qualificante, do seu
tratamento jornalístico, explicitado adiante no editorial da "Carta ao leitor" – "O que incomoda o
terror":
14

Na distinção clássica de Raymond Williams (Williams, 1979, p. 60) ideologia pode denotar "i) um sistema de
crenças característico de uma classe ou grupo; ii) um sistema de crenças ilusórias – idéias falsas ou consciência falsa
– que se pode contrastar com o conhecimento verdadeiro ou científico; iii) o processo geral da produção de
significados e idéias."
15

(Idem, p. 113)
16

(Ibidem). Em Marxismo e Literatura, Williams distingue ideologia de "cultura" e de "hegemonia", embora


relacionando os três conceitos à questão das distribuições específicas (desiguais) de poder e influência nas
sociedades de classe.
17

Os subtítulos de capa desta edição são os seguintes: "Os americanos prometem acabar com os países que abrigam
terroristas"; "A perícia dos pilotos suicidas"; "Ocidente x Oriente: o choque de civilizações"; "A cultura do
apocalipse entre os americanos"; "As raízes do terrorismo islâmico"; "O medo da recessão mundial".

6
O verdadeiro alvo visado pelos terroristas que atacaram Nova York e Washington na semana passada não
foram as torres gêmeas do sul de Manhattan nem o edifício do Pentágono. O atentado foi cometido contra
um sistema social e econômico que, mesmo longe da perfeição, é o mais justo e livre que a humanidade
conseguiu fazer funcionar ininterruptamente até hoje. (...) Foi uma agressão perpetrada contra os mais
caros e mais frágeis valores ocidentais: a democracia e a economia de mercado.
O que realmente incomoda (...) os fundamentalistas, apontados como os principais suspeitos de autoria dos
atentados, não é só a arrogância americana ou seu apoio ao Estado de Israel. O que os radicais não
toleram, mais que tudo, é a modernidade. É a existência de uma sociedade em que os justos podem viver
sem ser incomodados e os pobres têm possibilidades reais de atingir a prosperidade com o fruto do seu
trabalho. Esse é o verdadeiro anátema dos terroristas que atacaram os Estados Unidos. Eles são enviados
da morte, da elite teocrática, medieval, tirânica que exerce o poder absoluto em seus feudos. Para eles, a
democracia é satânica. Por isso, tem de ser combatida e destruída (nº1.718, p. 9) (grifos nossos).
O texto acima, auto-explicativo, em si dispensa exegese; em nenhum outro momento,
Veja terá sido tão categórica quanto à sua posição face aos atentados nos EUA. Contudo, aqui a
relevância desse editorial reside especificamente no fato de nele se antecipar um quadro
dualístico de fundo, básico e apriorístico. Trata-se de oposição entre "realidades" mutuamente
excludentes, que determinará toda a cobertura da revista nesta edição e nas seguintes: entre o
moderno e o arcaico, o progresso e o atraso, a liberdade e a servidão, a justiça e o terror, a
democracia secular e a ditadura teocrática, a sociedade de mercado e a sociedade de Estado, o
Ocidente e o Oriente – enfim, entre o Bem e o Mal, entre "nós" e "eles". É dessa forma que,
contrariando uma aspiração deontológica do jornalismo moderno – a opinião, subjetiva, não se
confunde com a informação, objetiva –, o editorial acima apresenta-se como síntese normativa
da cobertura jornalística.
A sua polarização traduz-se estilisticamente, nas páginas de Veja, no emprego de um tipo
peculiar de narração conativa: à exposição dos acontecimentos (em toda a sua tragicidade, no
caso dos de 11 de setembro) e suas possíveis implicações, mesclam-se juízos ligeiros,
dicotômicos, adjetivando ações e personagens, e o conseqüente e repetido chamamento a uma
tomada de posição tida como inevitável. Em relação a esta, qualquer atitude distinta é percebida
como desviante ou contrária, e imediatamente desqualificada como imprópria e/ou equivocada.
Nesse processo, o argumento resultante – tautológico, reificado como "bom senso"
(naturalmente) – só é ressalvado de maneira eventual, superficial, e deslocada e/ou distorcida. As
objeções são tratadas ironicamente – quando não simplesmente ridicularizadas –, servindo
apenas para reforçar em seguida a tese da revista.
Desse mecanismo discursivo, a construção do argumento principal é obviamente o
melhor exemplo. Nesta primeira edição especial dedicada ao 11 de setembro, lê-se:
Dez anos atrás, depois do colapso da União Soviética, o presidente George Bush, pai de George W.,
anunciou uma nova ordem mundial, (...) o triunfo dos valores americanos e da democracia liberal. Parecia

7
que o derradeiro desafio da humanidade era promover o comércio global. Vive-se agora uma realidade
muito mais perigosa. A única superpotência tornou-se alvo de fanáticos dispostos a tudo. Como a nação
mais poderosa do planeta pode proteger-se das atrocidades terroristas? (nº1.718, p. 50) (grifos nossos).

A resposta, duas páginas à frente, prima por seguir fielmente o mecanismo descrito (da
narração conativa), levando de roldão a complexidade inerente dos acontecimentos e suas
repercussões – assim como das abordagens que, nesse sentido, poderiam lhes fazer justiça –, a
caminho da polarização a um só tempo simplista e mistificadora:
O momento pertence aos guerreiros, reação natural diante da enormidade da agressão. Não é de espantar
que, após os atentados, o discurso americano tenha mudado. Desapareceu como por mágica o relativismo
cultural (...) [que] (...) preconiza que nenhuma cultura é superior a outra. Que cada uma deve ser entendida
dentro de seu próprio contexto e, por isso mesmo, não cabem comparações entre elas (...) .
É dessa perspectiva que alguns estudiosos acham possível justificar, por exemplo, a prática de
muçulmanos africanos de extirpar o clitóris das adolescentes. Do relativismo cultural nasceria (...) o
discurso politicamente correto, que aboliu do vocabulário palavras e expressões que soam pejorativas a
minorias étnicas, homossexuais e portadores de deficiência física. Entre os governos, (...) baniu de
documentos e discursos termos que pudessem soar chauvinistas e prepotentes. Com os atentados, o
relativismo sofreu um abalo: por alguns dias, pelo menos, o mundo voltou a ser dividido entre países
civilizados e nações bárbaras. E, contra os bárbaros, políticos e analistas pediram "vingança" (nº1.718, p.
52) (grifos nossos).
Além da evidente circularidade tautológica dessa passagem – "o momento pertence aos
guerreiros" (porque) "contra os bárbaros (...) pediram vingança" (e vice-versa) –, dela cabe aqui
mencionar uma dupla redução, algo grosseira, de uma conquista histórica dos movimentos pelos
direitos humanos e civis – o respeito discursivo à diferença, confundido por Veja com
"relativismo cultural". Tal conquista é reduzida primeiramente ao denominado "politicamente
correto", e em segundo lugar, ao registro absurdo de um exemplo totalmente deslocado, porque
de contexto estranho e específico: a clitorectomia18.
Apesar do problema da identificação daqueles contra os quais agir – admitido pela revista
ao longo de sua cobertura, embora temporariamente contornado na referência não a indivíduos
ou grupos, mas a "nações bárbaras" –, a retaliação americana "contra terroristas que se escondem
nos grotões do Terceiro Mundo" (nº1.718, p. 53) mereceu destaque na edição seguinte (nº1.719,
de 26/09). Nesta, antes de abordar o tema propriamente dito – "Guerra ao Terror", título de capa 19
18

Veja não se dá ao trabalho de citar um único "estudioso" que tenha defendido a clitorectomia (erroneamente
chamada de circuncisão feminina), prática ancestral limitada a certas comunidades da África e absolutamente
minoritária nas sociedades islâmicas daquele continente. É patente que a menção a essa prática amplamente
condenada visou somente provocar, junto aos leitores, reações emocionais por associação – no caso, àquilo
indevidamente associado à extirpação do clitóris: o islamismo.
19

Nesta edição, a imagem de capa é a fotografia de um helicóptero de ataque, e os subtítulos são os seguintes:
"George W. Bush: 'Cada país tem uma decisão a tomar. Ou está do nosso lado ou do lado dos terroristas'"; "As ações
de Osama bin Laden foram descritas em livros e artigos. Mas a CIA não agiu"; "A rede mundial de apoio ao

8
– Veja permitiu-se, com relação à receptividade obtida pela edição da semana anterior, um largo
exercício de autocongratulação então registrado no editorial da "Carta ao leitor", intitulado "Um
porto seguro para o leitor":
Nunca um assunto estampado na capa de VEJA atraiu tanto a atenção dos leitores quanto os atentados
terroristas a Nova York e Washington. (...) Mais de 400.000 exemplares foram vendidos nas bancas. (...)
Com isso, a circulação total da revista ... ultrapassou a casa de 1,3 milhão de exemplares. A edição especial
encontrou um leitor incrédulo, curioso, perplexo diante da enormidade da catástrofe e dos enigmas que ela
lançou. VEJA se orgulha de ter cumprido seu papel de informar com exatidão e analisar em profundidade
e sem rodeios as reais dimensões da tragédia que mudou o curso da história mundial. As reportagens da
edição passada suscitaram também um número recorde de e-mails, cartas e fax enviados à redação. A
edição que chega agora às mãos dos leitores, quase totalmente dedicada ao tema do terrorismo e suas
implicações, tem a mesma ambição da que a precedeu: ser um porto seguro de informações exatas e
análises da grave situação de guerra em que a ousadia sem limites do terror colocou o planeta (nº1.719, p.
31) (grifos nossos).
Definitivamente afinada com o espírito bipolar inaugurado pelo presidente George W.
Bush – "ou estão do nosso lado ou do lado dos terroristas" (nº1.719, p. 40) –, a revista recorre a
uma benevolência (auto)condescendente ao garantir a seu público, tomado como desnorteado, a
qualidade, integridade e correção de sua perspectiva, contrastando-a com a inflexibilidade da sua
cobertura sobre a necessidade da resposta iminente da superpotência, exemplificada num
subtítulo à página 41: "Com um fervor patriótico e união nacional nunca vistos desde a II Guerra
Mundial, os Estados Unidos vão ao contra-ataque ao terror. Para a civilização ocidental, a
opção é vencer ou vencer" (grifo nosso). O tom belicoso atinge sua culminância nos termos da
polarização já descrita, beirando o delírio em passagens como esta: "A vitória dos americanos na
guerra que começou na semana passada está assegurada até mesmo pelo absurdo insustentável da
hipótese contrária: um Ocidente dominado por mulás islâmicos enlouquecidos pelo poder
absoluto exercido por meio do braço armado de seus terroristas suicidas" (nº1.719, p. 42). A fim
de afastar tal "possibilidade", certezas são estabelecidas: "Essa é a primeira guerra do império
americano que começa com a simpatia de todas as nações livres do mundo. É a primeira também
a qual eles se lançam impulsionados por uma opinião pública irada com o assassinato
premeditado de 6.000 civis, imolados num palco de exposição planetária, Nova York, a cidade
mais cosmopolita da Terra" (idem). Daí, o objeto da matéria de capa ganha a forma de uma
pergunta cujas conseqüências são potencialmente terríveis: "O que a máquina de guerra dos
Estados Unidos é capaz de fazer nessas circunstâncias?" (ibidem).

terrorismo islâmico se estende por dezenas de países"; "O Afeganistão, que já derrotou ingleses e russos, é um país
arrasado. Fora terroristas, lá não existem alvos para destruir"; "Os EUA restringem garantias individuais e aceitam
guerra suja na espionagem para combater o terror".

9
Conseqüências tão terríveis quanto estapafúrdias, numa discrepância que o espírito
polarizador da cobertura de Veja só acentua. De acordo com a revista, o poder militar mais
poderoso e sofisticado da história, com o apoio do mundo livre, desencadearia uma guerra "suja
e longa" (nº1.719, p. 44), empregando todos os recursos necessários 20, contra (...) o Afeganistão,
uma nação miserável, arrasada por 22 anos ininterruptos de guerra civil, sede do talibã, um
regime teocrático obscurantista e opressivo, anfitrião de Osama Bin Laden, chefe da Al Qaeda e
suposto mentor dos atentados de 11 de setembro.
Não é fácil escolher o que bombardear num país sem estradas, sem hidrelétricas, sem pontes (...) . Hoje, o
país afegão é um lugar de cidades fantasmas. A população está em fuga para o campo, para as montanhas,
para as cavernas abertas na rocha bruta, onde, nos casos mais extremos, as pessoas conseguem sobreviver
comendo os sais minerais colhidos de terra fervida. Como tornar ainda pior a vida de um povo que come
terra? (nº1.719, p. 53) (grifo nosso).

Surpreendentemente, o disparate contido nessa questão – o de que não há como piorar a


vida do povo afegão bombardeando-o; portanto, ao bombardeio! – adquire novas cores na
terceira edição de Veja com matéria de capa dedicada ao 11 de setembro (nº1.720, de 3/10). A
imagem de uma bandeira americana incendiando-se ilustra o título – "O Vírus Anti-EUA: A
demagogia que transformou a vítima em culpada"21. Sua "Carta ao leitor", intitulada "A
permanência da notícia", novamente dita o tom da cobertura; na segunda metade do editorial, lê-
se:
As reportagens da revista, além de informar, não fogem da missão mais delicada mas vital de tentar dar
sentido aos fatos. Uma das reportagens discute uma questão da qual quase todo mundo fugiu: a existência
de guerras justas, de batalhas que precisam ser lutadas, um conceito que o próprio Vaticano reafirmou na
semana passada.
A presente edição trata em profundidade da questão do antiamericanismo (...) . Trata especialmente do uso
político que foi feito desse sentimento pelos tradicionais adversários dos Estados Unidos e pelos
inconformados com a dispersão do estilo de vida americano pelo mundo. (...) [M]ostra como a
manipulação demagógica do antiamericanismo tentou transformar a vítima em culpada pelo atentado
terrorista (nº1.720, p. 31) (grifos nossos).
Diante da questão complicada – moralmente incontornável e operacionalmente difícil –
de como, em primeiro lugar, neutralizar e punir os responsáveis pelos atentados em Nova York e
Washington sem agravar o sofrimento dos civis afegãos e depois erradicar, a médio e longo
20

A revista cita passagem do discurso do presidente Bush ao Congresso americano, no dia 20 de setembro, em
resposta aos atentados: "Usaremos todos os recursos a nossa disposição, todas as gestões diplomáticas, todos os
dados de inteligência, todos os instrumentos legais, toda a influência financeira e todas as armas de guerra que forem
necessárias para derrotar a rede mundial de terrorismo." (nº1.719, p. 45).
21

Subtítulos de capa desta edição: "A ofensiva diplomática que pode impedir a guerra"; "Comandos ingleses e
americanos já vasculham montanhas no Afeganistão"; "A rede de televisão CNN dá um banho nas concorrentes
cobrindo o conflito com mil profissionais"; "A terceira onda do terror: como seria um ataque com armas químicas e
biológicas"; "Osama Bin Laden tem sucessor, um médico egípcio que pode ser ainda mais perigoso do que o chefe".

10
prazos, as causas estruturais do terrorismo, Veja opta por escarnecer seus propositores. Segundo
a revista, os protestos generalizados contra a anunciada reação militar americana, "num momento
de genuína consternação planetária contra o ato terrorista, são intrigantes". (nº1.720, p. 56). Tais
manifestações, entendidas como "um teatro orquestrado e perfeitamente natural" (nº1.720, p. 58)
quando ocorridas no mundo muçulmano, nas metrópoles ocidentais representaram "um atentado
ao bom senso" (nº1.720, p. 55), oportunismo resultante da "união velhaca de raposas da esquerda
e da direita, fazendo seu proselitismo" (nº1.720, p. 58) 22. Aqui, Veja divide a multidão pacifista
"de crianças inocentes, de artistas de cabeça oca e de ingênuos em geral" (nº1.720, p. 64),
manipulada por tais espertalhões, em dois grupos:
No primeiro, alinham-se aqueles que, habituados a uma automática reação antiamericana, não conseguem
conceber uma situação na qual a superpotência seja vítima, não perpetradora, de um crime. Por esse
caminho é que se chega à conclusão indecente de que os americanos, em geral, fizeram por merecer os
ataques hediondos. O segundo grupo abriga os bem-intencionados e mal informados, os que consideram
que toda guerra é intrinsecamente má e deve ser combatida a qualquer preço (nº1.720, pp. 64-65) (grifo
nosso).
Emparedada entre as pechas respectivas da indecência e da inocência inútil, de fato está
descartada, na cobertura da revista, qualquer crítica séria que conseqüentemente fuja à
bipolaridade preestabelecida – esta, sim, mal informadora ao não problematizar, por exemplo, o
apoio histórico dos Estados Unidos aos fundamentalistas do talibã na luta contra os russos no
Afeganistão23. O caminho é o contrário, fácil, claro e simples. Veja admite "os erros e até os
crimes cometidos pelos americanos em sua expansão imperial" (nº1.720, p. 55), mas sem
especificá-los. Porém, com a ajuda de especialistas variados24, lista e exemplifica uma série de

22

Os "velhacos" vão desde o líder da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen, "um racista declarado" (nº1.720, p.
58) até "parte da intelectualidade engajada do Brasil ... [de] porta-estandartes da esquerda brasileira e também de
representantes indistintos da tolice nacional" (idem). Com relação aos ingredientes tupiniquins dessa mistura leviana
de alhos com bugalhos, Veja não nomeia os eleitos por sua crítica – desobrigando-se, assim, de facultar-lhes direito
de resposta.
23

Acerca deste assunto espinhoso, mesmo alguém como Yossef Bodansky, ex-diretor da Força-Tarefa sobre
Terrorismo e Guerra Não-Covencional, do Congresso americano, e consultor dos Departamentos de Defesa e de
Estado dos EUA, tem algo a dizer. No seu livro Bin Laden: O Homem que Declarou Guerra à América (2001),
Bodansky reconhece que, na década de 80, Washington financiou, por meio da CIA, a jihad afegã contra os russos,
numa operação intermediada pelo ISI, o serviço de inteligência do Paquistão. No entanto, segundo ele, "Islamabad
fez o necessário para que [a CIA] não descobrisse, a princípio, o tipo de mujadin que os contribuintes americanos
estavam financiando" (Bodansky, 2001, p. 58). Essa tese é desmascarada por Tariq Ali, escritor paquistanês, na sua
obra Confronto de Fundamentalismos: cruzadas, jihads e modernidade (2002), ao reproduzir passagem de uma
entrevista de Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro de segurança nacional do presidente Carter (1976-1980), ao
semanário francês Le Nouvel Observateur de 15-21 de janeiro de 1998, na qual o entrevistado confirma, aberta e
cinicamente, não apenas que os EUA iniciaram o seu apoio ao talibã em 1979 – portanto, antes do governo do
presidente Reagan –, como o fizeram com o objetivo "de dar à URSS [no Afeganistão] sua guerra do Vietnã". (Ali,
2002, p. 289) (grifo nosso).
24

Estes, sim, identificados: os americanos Mark Hadley, Anatol Lieven e Paul Krugman; o inglês Bryan Appleyard; e
os brasileiros Boris Fausto e Alcides Costa Vaz.

11
virtudes e conquistas dos EUA – o progresso econômico, as vitórias sobre o fascismo e o
nazismo, a reconstrução européia, o colapso do comunismo, a defesa da liberdade e da
democracia –, para em seguida oferecer a sua explicação do porquê de muitos odiarem os
Estados Unidos. Os "senhores do mundo ... [tidos como] superficiais, imersos numa cultura
consumista e tosca" (idem), são na verdade invejados e temidos pelo seu poder político e militar,
a eficiência e produtividade de sua economia, o apelo popular de sua cultura, a sua vanguarda
intelectual e científica. Em conjunto, esses fatores minam a soberania de nações competidoras
e/ou retardatárias, contrariam interesses tradicionais, levam estruturas, valores e práticas à
obsolescência – enfim, multiplicam "sentimentos planetários de insegurança e impotência."
(nº1.720, p. 60).
"Não existem impérios inocentes. Nenhum país chega à posição de líder guindado pela
ingenuidade." (nº1.720, p. 62). A revista insinua que, uma vez esclarecidas as razões espúrias do
antiamericanismo, estão automaticamente exorcizadas quaisquer críticas à intervenção militar no
Afeganistão; assim, a questão evidente do 'contra quem retaliar' permanece intocada. Em reforço
à tese da "guerra justa", Veja abençoa a posição da chefia da Igreja Católica em Roma, favorável
a mais uma cruzada do Ocidente cristão25.

Os colunistas e sua "oxigenação" precária

De que modo e em que extensão se distinguem os espaços da notícia e da opinião numa


revista que, como anunciado em editorial, chama a si a responsabilidade de "dar sentido aos
fatos"? (nº1.720, p. 31). Cabe inicialmente reconhecer que a prática do jornalismo, informativo
ou opinativo, obedece a um processo de construção simbólica e ideológica que lhe é próprio. No
gênero 'artigo', no jornalismo opinativo, os colaboradores desenvolvem e expressam idéias com
liberdade de forma e conteúdo, embora obviamente mantenham vínculos com o "espírito
editorial" do veículo. Para José Marques de Melo, no Brasil as divergências acerca dos limites
entre informação e opinião se dão segundo um artifício profissional e também político:
... profissional no sentido contemporâneo, significando o limite em que o jornalista se move, circulando
entre o dever de informar (registrando honestamente o que observa) e o poder de opinar, que constitui uma

25

Em matéria intitulada "Quando a guerra é justa", a revista registra as palavras do monsenhor Joaquín Navarro Valls,
porta-voz do papa João Paulo II: "Se alguém causou um grande dano à sociedade e se existe o risco de que,
continuando livre, possa voltar a fazê-lo, impõe-se aí o direito à autodefesa, ainda que este implique o uso de meios
que possam ser agressivos. (...) Às vezes, é mais prudente reagir do que ser passivo. Nesse sentido, o papa não é um
pacifista, pois é preciso notar que, em nome da paz, foram cometidas muitas injustiças." (nº1.720, p. 65).
Corroborando essa posição, Veja também reproduz o artigo 51 da Carta das Nações Unidas: "'Nada na presente
Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado
contra um membro das Nações Unidas'" (nº1.720, p. 66).

12
concessão que lhe é facultada ou não pela instituição em que atua. Político no sentido histórico: ontem o
editor burlando a vigilância do Estado ... ; hoje, desviando a vigilância do público leitor em relação às
matérias que aparecem como informativas (news), mas na prática possuem vieses e conotações26.
Do ponto de vista da produção jornalística, Melo destaca que os articulistas dispõem de
condições "ideais" de criação, já que "escrevem sem a pressão do tempo, descompromissados
das rotinas de produção industrial"27. Comparativamente à rotina produtiva do jornalismo
informativo, percebe-se, ao contrário, o que Adriano Duarte Rodrigues denomina
"constrangimentos organizacionais" – a política editorial da empresa é incorporada por meio de
padrões de recompensa e punição que "socializam" o jornalista 28. Portanto, operando à parte do
processo produtivo da redação, o articulista introduz "diferentes prismas para analisar a
conjuntura e traz novas informações e idéias para completar a crítica do cenário sociopolítico"29.
É daí que começamos a perceber e avaliar, quanto ao 11 de setembro e desdobramentos, a
colaboração dos colunistas de Veja: estes, ao "oxigenarem" uma cobertura jornalística
monolítica, dela ressaltam aspectos que escaparam, de maneira propositada ou não, aos textos
informativos. Em relação à cobertura, os articulistas assumiram posições tendencialmente mais
neutras e/ou cuidadosas, menos bipolares e mais relativizadas. Todavia, frente ao tratamento
massivo, contundente e apelativo do jornalismo da revista, tais contribuições cumpririam uma
função dupla e contraditória: se de um lado permitem aos leitores um leque potencialmente mais
amplo de entendimentos possíveis sobre o acontecido, de outro terminam por legitimar – graças
à sua presença moderada, editorialmente "consentida" – a perspectiva de Veja, refletida em sua
cobertura30. Retomando a reflexão anterior, lembramos que, se durante a rotina de produção os
colaboradores sofrem menos constrangimentos, os seus argumentos, por serem personalizados,
vinculados à assinatura do autor, estão sujeitos a maiores críticas. Posto de outra maneira, os
artigos, ao refletirem sempre um posicionamento pessoalmente identificado, expõem seus
autores a um risco do qual estão imunes, por exemplo, não apenas os jornalistas que fazem a

26

( Melo, 1994, p. 24).


27

(Idem, p. 121)
28

Adriano Duarte Rodrigues, "O acontecimento", citado por Nelson Traquina (Traquina, 1999, p. 169)
29

(Melo, 1994, p. 122).


30

Vale registrar que, nas três primeiras edições de Veja acerca dos atentados, o espaço dedicado à cobertura
jornalística (textos, fotos e ilustrações) foi, em média, 18 vezes maior que o reservado aos colunistas. De resto,
nosso argumento não leva em consideração o peso adicional dos conteúdos (não abordados neste capítulo) das
entrevistas das tradicionais páginas amarelas que abrem aquelas edições – respectivamente com o americano Ian O.
Lesser, consultor sobre terrorismo do governo dos EUA; o historiador inglês Paul Johnson; e John Keegan, inglês,
historiador militar. Todas as três informam e corroboram, direta, indireta e inequivocamente, a perspectiva da
revista.

13
cobertura propriamente dita, mas especialmente aqueles que redigem editoriais – onde a opinião
é apócrifa, e sustentada pela instituição que a publica.
Nesta apresentação crítica dos dez artigos, ensaios e colunas das três primeiras edições de
Veja sobre os atentados nos Estados Unidos, optamos por agrupá-los por autor, buscando, além
dos padrões já discutidos, checar permanências e verificar mudanças entre os textos escritos sob
o impacto dos eventos e os surgidos nas semanas posteriores.
Roberto Pompeu de Toledo escreveu três vezes para Veja. Em seu ensaio publicado na
edição de 19 de setembro, intitulado "Alguém faltou ao grande encontro" (nº1.718, p. 142), ele
declara, apocalíptico: "A Terceira Guerra Mundial começou exatamente como era de esperar:
com um ataque surpreendente, brutal, louco, contra uma grande cidade de um grande país."
(idem). Após relembrar o que denomina a mitologia da Terceira Grande Guerra, "tão inevitável
quanto a morte, e tão temida como o fim do mundo" (ibidem), recuperando do passado as suas
oportunidades perdidas – a crise de Berlim, dos mísseis em Cuba, a guerra do Vietnã –, Toledo
sustenta que ela chegou "no momento errado" (ibidem), por não mais haver o confronto das
superpotências típico da Guerra Fria. E, ao notar o caráter peculiar do momento, pergunta:
(...) trata-se de guerra contra quem? Eis o problema. É uma guerra em que falta o outro lado. Se o leitor
tem em mente os palestinos, que raio de adversários são esses – pouco mais que um bando de favelados,
armados mais freqüentemente de paus e pedras que de outra coisa? Se tem em mente o Afeganistão, que
raio de adversário é esse, cujas lutas tribais o situam a um degrau da Idade da Pedra? Não. Não dá para
imaginar a Terceira tendo como oponentes, de um lado, a super e invencível América, e do outro os
esfarrapados palestinos, ou os obscuros afegãos. (ibidem) (grifos nossos).
Essa crítica – demasiado sutil para parecer efetiva – a uma retaliação militar americana (e
talvez à própria tese de que, de fato, começou a Terceira Guerra Mundial) ganha alguma
consistência no ensaio seguinte, "Deixemos o pobre século XXI em paz" (nº1.719, p. 150), da
edição de 26 de setembro, quando Toledo critica os que vêem o 11 de setembro como o marco
inaugural do novo século. Embora alegue não querer diminuir a importância histórica dos
atentados, ele observa: "O que ressalta (...) é a arrogância de considerar que se pode escrever a
história no momento mesmo em que ela acontece. É um engano. A história é propriedade dos
pósteros. São eles que decidem, de acordo com seu ponto de vista, seu gosto e suas
conveniências, quais os eventos que marcaram época" (idem). No entanto, é na passagem a
seguir que o autor explicita a sua posição de fundo.
A melhor hora dos Estados Unidos não foi a profusão de bandeiras e o compulsivo coro dos God Bless
América que assolaram o país. (...) Também não foi o movimento de solidariedade [às vítimas] (...) . A
melhor hora [dos EUA] foram duas, a primeira, quando um sacerdote muçulmano foi convidado a
participar, junto com representantes de outras religiões, da cerimônia realizada na catedral de Washington ...
e a segunda – e melhor ainda – a visita do presidente Bush à mesquita de Washington (...) . A faceta aberta

14
da nação americana, tolerante, pluralista, atenta ao outro e respeitadora da diversidade, fez-se então
presente (ibidem) (grifo nosso).
No terceiro ensaio, "Dois ídolos de um tempo sombrio" (nº1.720, p. 150), da edição de 3
de outubro, Toledo afirma que cada lado do conflito já elegeu espontaneamente o seu herói. De
um lado, traça o perfil do prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, elogiando a sua atuação na
"organização do inorganizável" (idem) do pós-atentado: "Se alguém pode ser agraciado com a
palma da popularidade e do reconhecimento dos concidadãos, nestes dias de luto, nos Estados
Unidos, é ele" (ibidem). De outro, destaca a elevação de Osama Bin Laden à condição de ídolo
no Paquistão e nos territórios palestinos: "[Veja] chamou-o, em seu último número, de Che
Guevara do Islã. A comparação é apropriada (...) até certo ponto. Guevara é um ídolo morto, de
um tempo morto. (...) Laden é o pôster vivo de uma gente viva que, no empenho de afirmar-se
perante o mundo, chega a flertar com a catástrofe." (ibidem).
Sérgio Abranches, por sua vez, escreveu dois artigos. No primeiro, intitulado "O vôo da
águia vingadora" (nº1.718, p. 73), da edição de 19 de setembro, ele trata da virada abrupta da
sorte de George W. Bush: "O ataque terrorista unificou o país em torno de um presidente que
marchava para uma das mais vertiginosas perdas de popularidade e credibilidade da história
recente da Presidência americana" (idem). Com isso, Bush passa a dispor de "uma base legítima
para exercer plenamente a função que mais valoriza entre todas as que são atribuídas ao
presidente americano: a de comandante-em-chefe da nação" (ibidem). De acordo com o autor, as
prováveis conseqüências desse consenso são inquietantes:
(...) a ação dos terroristas e a presumida retaliação americana projetam o preço do petróleo em uma nova
escalada, [e] isso pode reduzir o fluxo global de investimentos e atingir a saúde financeira de empresas já
combalidas pela depressão recente da bolsa americana. Pior ainda, cria-se (...) um clima de tensão
internacional, inédito desde o fim da guerra fria. O mundo está imobilizado pela expectativa de dois
desastres mundiais: uma recessão global e a primeira guerra do século XXI. Tudo dependerá do escopo do
vôo da águia americana em sua missão de vingança (ibidem) (grifos nossos).
A postura relativamente neutra desse artigo repete-se no segundo, "Sem chance de
entendimento" (nº1.720, p. 77), da edição de 3 de outubro. Face à variedade de análises surgidas
acerca dos atentados e suas implicações, Abranches coloca-os entre os "eventos históricos
divisores de águas" (idem), marcando, no caso, "a ascensão de um novo paradigma de relações
internacionais e [inaugurando] uma nova polêmica carregada de conotações ideológicas,
políticas e morais" (ibidem). Essa polêmica refere-se à conversão do contraterrorismo na "maior
prioridade da política externa americana" (ibidem), o que significaria a militarização desta, e
conseqüências como restrições às liberdades civis e garantias individuais. Aqui, o articulista, ao
procurar ser equânime, resulta tortuoso e hesitante:

15
O sentimento de retaliação é compreensivelmente majoritário entre os americanos. O novo consenso de
Washington elimina a hipótese de uma resposta sem um forte componente militar. E há uma minoria ativa
que é contra um revide (...) .
É legítimo um povo se defender e retaliar quando sofre uma agressão brutal dessas, independentemente de
suas causas presumíveis. Um povo miserável e tiranizado como o afegão (...) não deve sofrer as
conseqüências dos erros bárbaros de suas elites. Miséria e opressão nutrem ressentimentos e ódios. (...) O
povo americano não deve ser culpado pelo que seus governos tenham feito no passado a outros povos.
Quem morreu nas torres gêmeas e no Pentágono era inocente.
Não há um lado totalmente certo, nem respostas totalmente verdadeiras às questões postas por essa
situação, e seus desdobramentos ainda provocarão muito choro e ranger de dentes (ibidem).
Equanimidade não foi exatamente uma das preocupações de Diogo Mainardi ao abordar o
11 de setembro. Na sua primeira coluna a respeito, com o título "Bombas literárias" (nº1.719, p.
147), da edição de 26 de setembro, ele desanca escritores conhecidos – Paul Auster, Jay
McInerney, Richard Ford, Norman Mailer, John Updike, Martin Amis – por seus comentários
sobre a tragédia, tidos como piegas, provincianos, impróprios e/ou triviais: "Foi um fiasco.
Quase todos quebraram a cara. Se o objetivo dos terroristas era destruir a civilização ocidental,
atingiram em cheio um de seus alicerces: a literatura" (idem). Sobram farpas especialmente para
os americanos: "[eles] têm uma certa dificuldade para entender que o planeta é um pouco mais
vasto que o bairro em que moram" (ibidem). Dessa crítica generalizada, escapa apenas Susan
Sontag: "Para ela, os americanos substituíram a política pelo psicodrama. 'Sim, choremos todos
juntos. Mas tentemos não ser estúpidos todos juntos.' O presidente Bush repete continuamente
que os Estados Unidos são fortes. Todo mundo sabe que eles são fortes. O problema, conclui
Sontag, é que o país 'tem o dever de não ser apenas isso'" (ibidem).
Já em "Melhor mandar chumbo" (nº1.720, p. 141), coluna da edição de 3 de outubro,
Mainardi escolhe zombar da posição da maioria dos brasileiros contra uma resposta militar aos
atentados:
No domingo passado, 8000 paulistanos se reuniram no Parque do Ibirapuera para pedir paz. A atriz Letícia
Sabatella pediu paz. O cantor Fábio Jr. pediu paz. A mãe-de-santo Sylvia de Oxalá pediu paz. Assim como
pediram paz o governador Geraldo Alckmin e a prefeita Marta Suplicy. Eles refletiram o estado de ânimo
do resto da população. Segundo uma pesquisa do Datafolha (...) 79% dos brasileiros se diziam contrários a
uma ação militar contra os países coniventes com o terrorismo. Se 79% dos brasileiros são contrários a
uma coisa, significa que ela tem algo de bom. Sobretudo se os 79% incluem as personalidades citadas
acima (idem) (grifo nosso).
A diabrura acima não implica necessariamente um apoio comprometido do colunista a
um ataque ao Afeganistão: "Não faz o menor sentido bombardear o país, mas pode ajudar a
acabar com o regime ditatorial do Talibã" (ibidem).

16
Luiz Felipe de Alencastro, Gustavo Franco e Stephen Kanitz escreveram um artigo cada.
Luiz Felipe Alencastro é definitivamente o autor, entre todos os textos opinativos considerados
neste capítulo, explicitamente mais crítico à postura dos Estados Unidos. Em artigo intitulado "A
trilha do terror" (nº1.718, p. 22), publicado na edição de 19 de setembro, ainda no calor dos
acontecimentos, Alencastro aborda o fracasso da inteligência americana em prever (e deter) os
movimentos dos extremistas, e diagnostica a falência antecipada do programa antimíssil "Guerra
nas Estrelas". Mas a sua observação mais ácida é destinada ao isolacionismo da política externa
do governo Bush: "As ações no âmbito das organizações internacionais e as arbitragens
diplomáticas são evitadas [pelos EUA] para deixar apodrecer os conflitos externos (como em
Israel e na Macedônia) e as crises econômicas estrangeiras purgar-se na bancarrota (como na
Argentina)" (idem). Nesse tom, ele reproduz passagem do articulista Morton Abramowitz no
Washington Post, ilustrando a posição de parte da imprensa americana acerca do assunto: "'Após
quase oito meses em atividade, nem o presidente George W. Bush nem o secretário de Estado,
Colin Powell, conseguiram formular um única declaração clara sobre a política externa. É difícil
achar outra Presidência (americana) que tenha feito tão pouco para explicar quais são seus
objetivos no campo da política externa (...)'" (ibidem). Alencastro é ainda a única voz, nas três
primeiras edições de Veja sobre o 11 de setembro, a apontar a conexão entre a CIA e Osama Bin
Laden:
No prolongamento dos inquéritos do Congresso americano aparecerá o mau passo dado pela CIA anos
atrás: os principais suspeitos do atentado foram, no início de seu combate, equipados pelos serviços
secretos americanos. De fato, o primeiro campo de treino de Bin Laden e dos extremistas islâmicos que
combatiam a ocupação soviética no Afeganistão foi aberto em 1984 no Paquistão, graças ao apoio
americano (ibidem).
Na edição seguinte, de 26 de setembro, está o artigo de Gustavo Franco, "Keynes e os
gastos com a Nova Guerra" (nº1.719, p. 75), no qual o economista informa que os US$ 40
bilhões imediatamente aprovados pelo Congresso dos EUA para a luta contra o terrorismo
equivaleriam a quatro vezes ou mais o PIB do Afeganistão, "mesmo contando a riqueza gerada
pela heroína e pelo contrabando empreendido pelas máfias de caminhões dos Estados mais ao
norte, ex-repúblicas soviéticas" (idem). Após sugerir a insuficiência da ajuda humanitária
recebida do exterior pelos afegãos (US$ 150 milhões por ano), Franco oferece a sua receita – de
orientação infelizmente esquecida – de combate ao extremismo:
(...) nada seria mais danoso aos talibãs e aos terroristas alojados naquela região que um agressivo
programa de desenvolvimento gastando-se uma fração do dinheiro que vai ser utilizado com as ações
militares e de inteligência. Seria infinitamente mais barato, para não falar em razões humanitárias, e
provavelmente muito mais eficaz (...) . (ibidem) (grifo nosso).

17
Por último, Stephen Kanitz prevê, na edição de 3 de outubro, o fim dos paraísos fiscais
em artigo de mesmo título (nº1.720, p. 18). "Paraísos fiscais [Jersey, Bahamas, Ilhas Virgens,
Cayman, Nauru, etc.] não têm leis rigorosas nem fiscalização internacional, e dão guarida a
traficantes, terroristas, políticos corruptos e dinheiro frio" (idem). Ele registra que o Brasil, antes
dos atentados, já participava de iniciativa da OCDE31 visando o monitoramento e controle dos
fluxos financeiros correspondentes; a iniciativa era então combatida pelos Estados Unidos,
grande beneficiário de tais transações. Dado o fato de que os eventos de 11 de setembro
mudaram rapidamente a posição americana, ao final Kanitz alerta uma clientela muito especial:
"Os 300.000 brasileiros que têm dinheiro frio lá fora temem o risco Brasil, mas não sabem o
risco que estão correndo agora. (...) Risco por risco, o Brasil é agora o lugar mais seguro"
(ibidem).

Os leitores escolhidos e suas escolhas

As reações publicadas dos leitores de Veja à destruição das Torres Gêmeas do World
Trade Center e de parte do Pentágono expressam, em sua maioria, choque e perplexidade face ao
acontecido, solidariedade com as vítimas e indignação contra os extremistas; sentimentos
generalizados, previsíveis e justificados diante de tragédias como a de 11 de setembro. Todavia,
tais reações tendem a obedecer os termos estabelecidos pela cobertura da revista (como já vimos,
simplista em sua polarização de eventos e protagonistas), a despeito das exceções que, pela
presença marcante em sua desigualdade, paradoxalmente confirmam a regra, ou seja, a
concepção dualista – do ser 'confortavelmente a nosso favor ou desconfortavelmente contra nós'
– cultivada por Veja.
Provavelmente por isso, da primeira leva de respostas aos atentados – reações anteriores
ao noticiário discutido neste capítulo32 – o que particularmente chama a atenção escapa àquela
bipolarização: trata-se do receio de leitores quanto à natureza e extensão da resposta americana,
e de suas conseqüências para as relações internacionais. Das 24 mensagens publicadas na edição
especial de 19 de setembro, seção "Cartas", tópico "Terror" (nº1.718, pp. 24, 29) 33, dez
manifestam esse temor e/ou referem-se às implicações potencialmente funestas do ocorrido.

31

Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, vinculada às Nações Unidas.


32

Isto é, publicadas na edição especial que inaugurou a cobertura do 11 de setembro (nº1.718, de 19/09); logo, em
resposta não às notícias e opiniões a respeito, em Veja, que são o objeto deste capítulo.
33

Sobre a correspondência da semana, a revista acusa o recebimento de 1.414 mensagens de leitores (e-mails, faxes e
cartas), sendo 98 acerca dos atentados nos Estados Unidos (nº1.718, p. 31). Normalmente, não aparecem os lugares
de origem dos leitores que escrevem por e-mail.

18
Exemplificando, um leitor de São Paulo escreve: "(...) sabemos que os Estados Unidos têm uma
política de retaliação a atos terroristas, e isso inquieta. Preocupa também ninguém saber ao certo
(...) o poderio nuclear e biológico do Oriente Médio. Talvez seja um momento de reflexão."
(nº1.718, p. 24) (grifo nosso). Outro leitor, por e-mail, assustado, completa: "O que esses loucos
pretendem? Provocar a III Guerra Mundial? Um ataque nuclear por parte dos americanos?"
(idem).
Sobre a dor das vítimas nos Estados Unidos, são cinco as mensagens. A de um leitor
argentino impressiona pela crítica a uma radicalização percebida como insensível: "(...) muita
gente neste mundo ficou louca e o resto vive de soberba e hipocrisia. A maioria das
manifestações (...) dá a sensação de euforia, (...) até de felicidade, porque humilharam o país
mais poderoso do mundo (...) . Não sou seu defensor, a mim o que importa são as pessoas que
morreram" (nº1.718, p. 29). Por e-mail, uma leitora transmite o mesmo sentimento: "O ataque
sofrido pelos Estados Unidos é covarde, absurdo, sem precedentes, apocalíptico! Gostaria de
manifestar meu repúdio aos infelizes desprovidos de cérebro que estão manifestando alegria pela
morte de milhares de pessoas" (idem). Noutras cinco correspondências, criticam-se os EUA,
especialmente o presidente George W. Bush. Nesse sentido, diz um leitor de São Paulo: "Para
nós, simples mortais, [os atentados são] mais um desrespeito à vida, com vem ocorrendo no
Oriente Médio, no Afeganistão e como houve no Vietnã. (...) A posição autoritária e prepotente
do presidente americano estimulou esse terrível episódio (...)." (nº1.718, p. 24). Outro leitor, por
e-mail: "O presidente Bush não tem competência para governar o país mais poderoso do mundo.
(...) Seu pouco jogo de cintura e sua visão ambígua dos problemas mundiais podem levar o
planeta a uma situação sem precedentes de conflitos armados e terrorismo. Gerenciar problemas
com ameaças (...) é a mesma coisa que guiar um navio de encontro a um iceberg." (nº1.718, p.
29).
Uma leitora de Pernambuco ilustra o espírito de três cartas com conteúdo religioso: "As
diferentes raças, homens, mulheres crianças, anciãos estão se esquecendo do verdadeiro
significado da expressão 'ser humano'. É preciso ensinar-lhes novamente o significado do Deus
Uno. Devemos respeitar as religiões de todos os povos, devemos reaprender a amar o próximo,
como a Deus" (nº1.718, p. 24). Já defendendo a retaliação, duas outras mensagens. Por exemplo,
a de um leitor, por e-mail: "A humanidade está em perigo. (...) Se não houver uma revanche à
altura, todos estarão vulneráveis ao desvario de fanáticos" (nº1.718, p. 29). Um leitor de Minas
Gerais, contudo, pensa diferente. "De tudo isso podemos tirar uma lição: a de que devemos nos
unir em prol do bem comum" (idem).

19
A seção "Cartas" da edição seguinte (nº1.719, de 26/09) já não apresenta o espectro
relativamente variado das reações observadas acima. A cobertura de Veja, uma vez disposta na
linguagem conativa descrita anteriormente – a qual demanda dos leitores a tomada de posições –,
estreitaria o escopo de suas opiniões34. A respeito do acontecido, os tópicos "Tragédia" e
"Tragédia 2" (nº1.719, pp. 26, 28-29)35 somam 17 correspondências; destas, oito elogiam o
tratamento da revista ao 11 de setembro, reforçando explicitamente, ao nível da recepção, a
perspectiva da publicação. Nas palavras de uma leitora de Minas Gerais:
Primorosa a reportagem sobre o lamentável atentado terrorista ocorrido nos Estados Unidos. Além da
cobertura e da análise completa dos fatos, a maneira como a revista abordou o tema demonstrou
sensibilidade e visão pouco convencional, porém correta, da atual condição dos [EUA]. Sua invejável
democracia é o real motivo pelo qual esse país é constante alvo de ataques. Como se não bastasse, VEJA
foi fantástica em sua promoção publicitária em outdoors, excluindo o tradicional comentário sobre a capa
da semana para manifestar(...) [seu] luto. É por essas e outras que VEJA é a melhor revista do Brasil (...) ."
(nº1.719, p. 26) (grifos nossos).
Não tão administrativa, mas na mesma linha, é a mensagem por e-mail de outro leitor:
"Mais uma vez VEJA sai na frente (...) ao mostrar de maneira clara, objetiva e imparcial tudo o
que aconteceu e o que poderá acontecer depois desse trágico episódio". (nº1.719, p. 29).
Questões substantivas tiveram menos espaço, e menos ainda aquelas que indicam
resistência ao belicismo da cobertura. Defendendo incondicionalmente a paz, o recado de um
leitor do Paraná: "Se o homem se empenhasse tanto em propagar a paz quanto se empenha em
criar bombas, armas e conflitos, hoje nem saberíamos o significado da palavra terrorismo."
(nº1.719, p. 26). Outro, crítico dos dois lados, vem de um leitor do Rio Grande do Norte: "Sou
avesso e refratário ao estilo de vida nos moldes medievais de alguns países do Oriente Médio.
Também considero medieval e tenho aversão à justiça privada (leia-se com as próprias mãos) que
é defendida pelos EUA a título de retaliação" (nº1.719, pp. 26, 28). O imperativo da revanche,
contudo, impõe-se através de mensagens fortes como esta, de um leitor da Flórida: "Sou
brasileiro de origem, americano de coração. (...) Com isso aprendi a ser patriota como todos os
americanos. Ainda bastante traumatizado, espero com muita ansiedade pela retaliação contra
esses terroristas ... ." (nº1.719, p. 29). Outro leitor da Flórida preocupa-se mais com equívocos na
discriminação: "(...) recebo com apreensão notícias de que um brasileiro foi espancado em Nova

34

No entanto, não devemos insistir numa definição precisa do papel, em Veja, da narração conativa, tradução da sua
cobertura jornalística, que condicionaria respostas de leitores. Lembramos apenas o nosso desconhecimento da
extensão de um fato óbvio: é Veja que seleciona, edita e publica as cartas a ela dirigidas – entre centenas, apenas
algumas são escolhidas –, o que, presume-se, a revista não realiza contrariamente aos seus interesses.
35

Para esta edição, Veja registra o recebimento de 1.670 correspondências (e-mails, faxes e cartas), das quais 512
dedicadas ao 11 de setembro; além dessas, a revista anota 11 mensagens referentes ao ensaio de Roberto Pompeu de
Toledo publicado na edição anterior (nº1.719, p. 29).

20
York e duas brasileiras foram agredidas a cusparadas em Boston, em ambos os casos por terem
sido confundidos com árabes" (nº1.719, p. 28).
Por sua vez, os tópicos referentes a colaboradores de Veja – nesta edição, Roberto
Pompeu de Toledo, Sérgio Abranches e Luiz Felipe de Alencastro (idem) – totalizam quatro
correspondências36. O primeiro ensaio de Toledo sobre o 11 de setembro ("Alguém faltou ao
grande encontro", nº1.718, p. 142) evocou duas cartas positivas; a de uma leitora da Bélgica,
embora elogiosa, não foge à lógica que preside a cobertura jornalística:
Talvez (...) [o] que venha a caracterizar a 'primeira guerra do século XXI' [seja] uma guerra contra um
inimigo invisível, organizado e espalhado por um território que abrange vários países. O que assusta é o
fato de que os integrantes dos grupos islâmicos fundamentalistas, que representam um formidável
oponente, não têm medo de morrer. Como combater indivíduos que estão dispostos a sacrificar a vida para
estar ao lado de Alá após a morte? (nº1.719, p. 28) (grifo nosso).
Já um leitor de Montes Claros, Minas Gerais, escreve: "Em meio à profusão de
sensacionalismo, alarmismo e outros 'ismos' desencadeados pelo ataque aos Estados Unidos, é
um alento contar com o bom senso habitual de Roberto Pompeu de Toledo" (idem).
Quanto ao artigo de Abranches ("O vôo da águia vingadora", nº1.718, p. 73), há a
expectativa algo desencontrada de um leitor, por e-mail: "Muito oportunas as colocações do
colunista (...) . Esperamos que a Presidência americana, pressionada pela opinião pública, tome
a decisão mais acertada, pois há o perigo de uma recessão global e, o pior, (...) o risco da
primeira guerra do século XXI." (nº1.719, p. 28) (grifos nossos). Acerca do texto de Alencastro
("A trilha do terror", nº1.718, p. 22), a mensagem, de um leitor por e-mail, eleva o tom ácido do
articulista: "Muito bom o artigo (...) . Perfeito o comentário de Morton Abramowitz sobre esse
caipira caubói texano que tomou de assalto a Presidência dos Estados Unidos numa conturbada e
ridícula eleição" (nº1.719, p. 28).
A terceira edição de Veja com tema de capa relacionado ao 11 de setembro, datada de 3
de outubro, traz seis correspondências publicadas sob o tópico "terrorismo" na seção "Cartas"
(nº1.720, p. 22)37. Em resposta esperada face ao caráter hostil da cobertura da revista, três delas
referem-se à defesa do islamismo, como a enviada por uma leitora de Brasília: "Como
muçulmana eu me entristeci com o fato de que uma minoria (...) comete graves erros, usando o
Islã para justificar sua insanidade, resultando em preconceito para todos os seguidores. O
36

Há ainda uma mensagem em resposta a artigo de Claudio de Moura Castro publicado na edição de 29 de agosto –
antes dos atentados, portanto, fora do escopo deste trabalho –, no qual (de acordo com a mensagem, de uma leitora
da Inglaterra) o articulista adequadamente esclarece "as diferenças entre o que é ser árabe, islâmico e
fundamentalista." (nº1.719, p. 29).
37

As mensagens da semana totalizam 1.522 e-mails, faxes e cartas, sendo 166 referentes ao terrorismo. Outras 56
correspondências dizem respeito à entrevista das páginas amarelas com o historiador inglês Paul Johnson sobre o
Islã, publicada na edição anterior e não contemplada neste estudo.

21
islamismo (...) muito contribuiu para o desenvolvimento da humanidade em várias épocas (...) .
(idem)38. Além disso, prossegue o elogio da cobertura, agora acoplado a uma crítica dos críticos,
como no exemplo de um leitor de Pernambuco: "As duas últimas edições de VEJA foram
perfeitas. Cobertura sóbria. O que não se entende é a insistência de certa 'inteligência' brasileira
(...) na pregação da tese de que os Estados Unidos estão 'colhendo o que plantaram'. (...) . (...) O
mundo nunca, em momento algum, respirou tanta democracia e liberdade (...) ." (nº1.720, p. 22).
Entre os colaboradores, o artigo de Gustavo Franco ("Keynes e os gastos com a Nova
Guerra", nº1.719, p. 75) recebe duas avaliações positivas (tópico "Gustavo Franco", nº1.720, p.
24), sendo que numa delas o leitor, por e-mail, exorta o articulista: "Por favor, fale mais sobre a
alternativa de os Estados Unidos 'bombardearem' o Afeganistão com alimentos, infra-estrutura e
educação, curando uma chaga de origem econômica, mais que ideológica, na face deste pequeno
planeta. (...) Insista no tema, por favor (...) ." (idem). A ênfase dessa reação quase solitária nas
páginas de Veja certamente aponta a ausência de alternativas à bipolaridade estabelecida pela
revista.
No início deste capítulo, esclarecemos que a edição de 10 de outubro nos interessa
somente pela sua seção "Cartas", relativa à semana anterior 39. Nela, o tópico "Vírus
antiamericano" (nº1.721, p. 22) soma dez mensagens, oito elogiando a cobertura de Veja. De uma
leitora do Texas, EUA:
Finalmente um artigo [sic] inteligente, que diz exatamente aquilo que a esmagadora maioria de brasileiros
residentes nos Estados Unidos gostaria de ter dito (...) . Não há causa, razão nem estratégia política nesta
vida que justifique o terrorismo perpetrado não só contra os EUA, mas contra toda a civilização. A todas
essas pessoas, a reportagem de VEJA foi uma digna resposta à altura" (idem).
Um leitor de Brasília: "Depois de ver tanta ignorância e inveja vomitada por velhas
raposas da esquerda e da direita tive receio de ser o único a me revoltar contra tal atitude.
Confortou-me, portanto, saber que há gente sensata e justa, condenando o terrorismo. É preciso
mesmo denunciar essa demagogia barata, que tenta transformar a vítima em culpada" (ibidem). E
um leitor de São Paulo: "Enquanto isso, alguns órgãos de imprensa travestem seu preconceito
ideológico de análises mesquinhas e pseudo-intelectuais. (...) É um alívio para o cérebro saber
que temos VEJA" (ibidem) (grifo nosso).
Em meio à correspondência majoritariamente generosa no apoio à perspectiva da revista
– "corajosa", "magistral e extremamente oportuna"; "clara, honesta e sem rodeios"; "racional e
38

Tais mensagens podem ser entendidas também como respostas indiretas à mencionada entrevista com Paul Johnson,
na qual o historiador defende uma tese polêmica: a de que o islamismo seria essencialmente fundamentalista. A
entrevista provocou reações polarizadas de leitores, alguns engalfinhados numa discussão teológica que se
prolongou pelas semanas seguintes.
39

Curiosamente, nesta edição Veja não informa o número total de correspondências recebidas.

22
equilibrada" (ibidem) –, sobram duas manifestações críticas da sua cobertura. Um leitor, por e-
mail: "Discordo totalmente da revista VEJA, que qualifica as manifestações pela paz (...) como
produto da manipulação por parte de pessoas mal-intencionadas, que abusam da ideologia e
ingenuidade de pessoas desinformadas. (...) Se eu for obrigado a me posicionar entre o belicismo
desenfreado americano e a insanidade fundamentalista afegã, escolho a paz" (ibidem).

Veja e a verdade da sua economia política

Em nossa análise e interpretação dos conteúdos das três edições de Veja seguintes aos
atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington, relativos à cobertura
jornalística da revista (notícia), às posições de seus colaboradores (opinião) e às reações
publicadas de seus leitores (recepção), observamos a existência, intra e entre segmentos, de
certas regularidades no tratamento e apresentação daqueles conteúdos. Esses padrões, embora
contenham elementos heterogêneos (distinções e contradições particulares), quando considerados
em seu conjunto indicam claramente a articulação de uma percepção/compreensão dominante
daqueles acontecimentos e de seus desdobramentos (uma construção simbólica coerente,
ideológica). Essa, por sua vez, é orientada por uma concepção de fundo da realidade social (uma
ideologia) que ao mesmo tempo informa e reflete os interesses materiais de seus promotores e
beneficiários (a sua economia política).
Ilustremos, pois, o argumento. Em Veja, a notícia sobre o 11 de setembro se dá
radicalmente nos termos de uma polarização civilizacional, editorialmente explicitada, entre "o
Ocidente" (cristão, moderno, avançado, justo, livre, democrático, secular) e "o Oriente"
(islâmico, arcaico, atrasado, injusto, cativo, ditatorial, teocrático). O primeiro é, por definição, a
expressão do Bem, e corresponde ao que é familiar, a "nós"; o segundo, encarnação do Mal, nos
é estranho, e refere-se a "eles". O primeiro teve o seu principal bastião (os Estados Unidos,
defensores da civilização) brutalmente atacado por forças do segundo (os autores dos atentados,
agentes da barbárie). É lícito, portanto, que o primeiro responda ao segundo (no caso, o
Afeganistão, ninho dos terroristas) na mesma moeda, providência adicionalmente justificada
pelo segundo representar uma ameaça permanente ao primeiro. Restrições a tal solução, mesmo
partindo daqueles entre nós, somente favorecem o "nosso" inimigo; logo, é imperioso
desqualificá-las e descartá-las40.
40

Importa destacar que a tese de uma bipolaridade estanque entre Ocidente e Oriente monolíticos, como a
estabelecida pela revista, não resiste a qualquer retrospectiva historiográfica séria: desde as primeiras civilizações do
Mediterrâneo, há milhares de anos, povos do sul da Europa, do norte da África e do Oriente Médio têm
intercambiado de genes a mercadorias. A expansão colonial européia séculos mais tarde, embora fonte de
ressentimentos entre os não-europeus, ampliou e intensificou o processo. A esta altura de nossas histórias inter-

23
Encampada resolutamente por Veja, a perspectiva acima, rígida e estreita, traduzida numa
abordagem simplista, dramatizada e espetaculosa da tragédia, necessariamente constrange e
delimita a opinião na revista, obrigando-a, no mais das vezes, a uma espécie de neutralidade
especulativa (o que acontecerá agora?) ou a referir-se a aspectos da situação tornados
secundários pela cobertura (conflitos passados, ajuda e controle econômicos, reações no Brasil,
posições de escritores). Exceção marcante à regra, o artigo de Luiz Felipe de Alencastro ("A
trilha do terror", nº1.718, p. 22) ultimamente consiste numa crítica "administrativa" (apenas
conjuntural) à inteligência americana e à política externa do presidente Bush. Quanto à recepção
dos conteúdos informativos e opinativos de Veja, as reações dos leitores publicadas obedeceram,
em sua imensa maioria, à mencionada bipolaridade fixada pela cobertura da revista.
A construção, ao final, de uma perspectiva do 11 de setembro decididamente pró-
americana inscreve-se com perfeição no esforço editorial mais amplo, de Veja e das demais
publicações do Grupo Abril, de defesa incondicional do modelo neoliberal da globalização em
curso – da sua doutrina (capitalismo laissez-faire), instituições (Banco Mundial, Fundo
Monetário Internacional, corporações multi e transnacionais) e políticas (desregulamentação de
mercados, privatização de empresas públicas e estatais, internacionalização de capitais).
Naturalmente, tal esforço implica ataques igualmente incondicionais aos críticos da globalização
atual (partidos de esquerda, novos movimentos sociais) e a forças que possam, de algum modo,
se contrapor ao processo hegemônico (fundamentalismos religiosos, extremismos terroristas,
nacionalismos, regionalismos).
Os Estados Unidos têm sido, sem dúvida, o maior promotor e beneficiário da nova ordem
mundial pós-Guerra Fria. Em relação ao Grupo Abril, existem pelo menos duas razões
fundamentais a justificar o seu alinhamento automático com os EUA e interesses associados. A
primeira, genética, diz respeito ao surgimento do grupo enquanto iniciativa de caráter
geopolítico. Em 1950, durante a Guerra Fria, o ítalo-americano Victor Civita chegou ao Brasil,
oriundo de Nova York. Aqui, com os direitos de reprodução e adaptação de publicações
americanas (entre elas, comics de Walt Disney) e o apoio de agências de publicidade americanas
instaladas no país (J. W. Thompson e McCann-Erickson, as maiores, detentoras das contas de
várias multinacionais), fundou a Editora Abril. Quinze anos depois, Civita havia construído o
mais avançado parque editorial e gráfico da América Latina e era responsável pela edição de 22
revistas com tiragem mensal total superior a 4,5 milhões de exemplares 41. Hoje, a herança do
relacionadas, não deveríamos ter dificuldade de lembrar que as três grandes religiões monoteístas do mundo
(judaísmo, cristianismo e islamismo) têm a mesma origem geográfica, e partilham vários elementos comuns.
41

Genival Rabelo, em seu O Capital Estrangeiro na Imprensa Brasileira, (Rabelo, 1966) registra a origem do Grupo
Abril: "O sr. Civita nasceu na Itália, recebeu batismo de imprensa em Nova Iorque, onde trabalhou para o grupo
Time-Life [o mesmo do acordo ilegal que deu origem à Rede Globo de Televisão nos anos 60], vindo,

24
fundador está multiplicada em mais de 200 títulos, com um público aproximado de 30 milhões
de leitores. Veja é a quarta maior revista de informação do mundo. No Brasil, o Grupo Abril
controla a TVA (televisão por assinatura), o canal MTV, a Abril Music e as editoras de livros
Ática e Scipione. O grupo é ainda sócio da Universo Online (UOL, provedor de acesso e
conteúdo na Internet). Em 2001, possuía cerca de oito mil funcionários. A Editora Abril é
responsável por 69% da receita líquida do grupo, de R$ 1,8 bilhão em 2001.
A segunda razão, contemporânea, refere-se às dificuldades financeiras enfrentadas
atualmente pelos grandes grupos de mídia brasileiros – o que precipitou a aprovação, em 2002,
de emenda à Constituição Federal permitindo a participação de capital estrangeiro nas empresas
jornalísticas e de radiodifusão em até 30%42. Investimentos em novas tecnologias e serviços, ao
demandar a importação de equipamentos (aproveitando a paridade real-dólar nos anos seguintes
a 1994), deram origem a endividamentos crescentes a partir da posterior desvalorização da
moeda nacional frente à americana; a situação agravou-se com a recessão econômica, e a
resultante retração dos mercados consumidores. Em novembro de 2001, circulava a informação
de que o Grupo Abril demitiria 700 funcionários, cerca de 8% do seu pessoal43.
Daí o apego do conglomerado de Veja – refletido na política editorial dos demais veículos
– às políticas monetária, comercial e externa do governo de Fernando Henrique Cardoso. Deste
dependem a estabilidade cambial, o aporte de recursos estrangeiros, a manutenção das dívidas
em níveis administráveis – conseqüentemente, a saúde financeira da família Civita. Ilustra tal
simbiose de interesses a seguinte passagem:
A mesa de [Roberto] Civita fica diante do aparador. Sobre ele, fotos. A mulher, os filhos, a família. Além
dos Civita, mais uma, só mais uma foto. De Fernando Henrique Cardoso.
Por mais de uma vez, a mais de um amigo, Civita explicou:

posteriormente, para o Brasil ... . Seu irmão [Cezar Victor] foi para a Argentina, onde dirige a Editorial Abril, que
publica lá revistas com os mesmos títulos das publicadas aqui." (p. 24). No livro, Rabelo descreve a asfixia
econômica imposta a publicações de capital nacional devido à concentração seletiva de inversões publicitárias a
partir da articulação entre anunciantes, agências e editores vindos do exterior, e a conseqüente desnacionalização (de
parte) da imprensa brasileira.
42

Em março deste ano, veio a público a informação de que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) – sócio da Globocabo, a empresa de TV por assinatura das Organizações Globo – já teria injetado
recursos da ordem de R$ 1 bilhão nas operações da parceira (a dívida total das Organizações Globo estaria hoje
acima de US$ 1,3 bilhão). A revelação gerou protestos das demais empresas de comunicação, inconformadas com o
tratamento privilegiado do governo federal à Globo. Bob Fernandes, em reportagem publicada na revista Carta
Capital 181, São Paulo, 20 de março de 2002, pp. 26-30 ("O jogo do milhão"), então especulava: "Resta a dúvida se
a Globo arruma seu balanço para atrair um sócio estrangeiro ou se já existe o sócio e o que se fez agora foi um
trabalho antes que se aprove o ingresso de capital estrangeiro nas empresas de mídia."
43

Paulo Henrique de Sousa e Sérgio Lírio, "A mídia se entrega", Carta Capital 167, São Paulo, 28 de novembro de
2001, pp. 28-33: "O conglomerado dos Civita enfrenta uma reestruturação que deve levar ao fechamento de algumas
publicações. Na TVA, TV por assinatura, com cerca de 700 mil usuários, o grupo anunciou uma capitalização de R$
360 milhões. A americana Hearst diminuiu sua participação no negócio de 17,4% para 8,1%. O banco JP Morgan, de
8,1% para 3,8%." (p. 31).

25
– Pensam que a Abril apóia o programa [de] governo do Fernando Henrique. A questão está mal
colocada. Não é a Abril que apóia o programa do Fernando Henrique. É o Fernando Henrique quem
apóia o programa de governo da Abril44.

Referências

ALI, Tariq. Confronto de Fundamentalismos: cruzadas, jihads e modernidade. Rio de Janeiro: Record, 2002.

BODANSKY, Yossef. Bin Laden: o Homem que Declarou Guerra à América. São Paulo: Ediouro, 2001.

FERNANDES, Bob. "O jogo do milhão". Carta Capital 181. São Paulo, 20 de março de 2002, pp. 26-30.

MELO, José Marques de. A Opinião no Jornalismo Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994.

RABELO, Genival. O Capital Estrangeiro na Imprensa Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

RODRIGUES, Adriano Duarte. "O acontecimento". In Nelson Traquina (org.). Jornalismo: questões, teorias e
"estórias". Lisboa: Vega, 2 ed., 1999.

SOUSA, Paulo Henrique de, e LÍRIO, Sérgio. "A mídia se entrega". Carta Capital 167. São Paulo, 28 de
novembro de 2001, pp. 28-33.

SOUZA, Sérgio Euclides de. "Responsabilidade histórica: a mídia tem a chance de colocar as diferenças
culturais no centro das atenções". Correio Braziliense. Brasília, 16 de setembro de 2001. Caderno Pensar, pp. 6-
7.

Veja. Edições nº1.718, de 19 de setembro de 2001; nº1.719, de 26 de setembro de 2001; nº1.720, de 3 de


outubro de 2001; e nº1.721, de 10 de outubro de 2001.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Lisboa: Presença, 4 ed., 1995.

44

Bob Fernandes, "O jogo do milhão", p. 30.

26

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