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© 1990, Presses Universitaires de France, 3. ed.

, 2003

Título original em francês: Anthropologie du corps et modernité


SUMÁRIO
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2011, Editora Vozes Ltda.
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Introdução, 7
ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecâni-
co, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco
de dados sem permissão escrita da editora. 1 O inapreensível do corpo, 15

Diretor editorial 2 As fontes de uma representação moderna do corpo -


Frei Antônio Moser O homem anatomizado, 35
3 Às fontes de uma representação moderna do corpo -
Editores
Aline dos Santos Carneiro O corpo-máquina, 77
José Maria da Silva 4 Hoje, o corpo ..., 101
Lídio Peretti
Marilac Loraine Oleniki 5 Uma estesia da vida cotidiana, 111
6 Apagamento ritualizado ou integração do corpo, 149
Secretário executivo
João Batista Kreuch
7 O envelhecimento intolerável- O corpo desfeito, 173
8 O homem e seu duplo - O corpo alter ego, 185
Editoração: Elaine Mayworm
9 Medicina e medicinas: de uma concepção do corpo a
Diagramação: Sheilandre Desenv. Gráfico
Capa: Renan Rivero concepções do homem, 215
10 Os hieróglifos de luz: da imagética médica ao imaginário

ISBN 978-85-326-5185-3 (Brasil)


do corpo, 241
ISBN 978-2-l30-52296-6 (França) 11 A via da suspeita - O corpo e a Modernidade, 273

Este livro teve 3 edições com o título Antropologia do Corpo e Modernidade.


Índice, 315
Editorado conforme o novo acordo ortográfico.

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.


do indivíduo, fronteira de sua relação com o mundo; e, em outro
~ ,-

nível, o corpo dissociado do homem ao qual confere a suâpresen-


a, e isso por meio 9P_rn.g.-~loprivuegiado·-cla máquina. Veremos
~ os ví~~l~s-e~reitos que se estabeleceram entre o individualismo
As FONTES DE UMA REPRESENTAÇÃO
L-- .. ~-~ '~

~orll.Q..JJLüdew,Q,._- - MODERNA DO CORPO

O HOMEM ANATOMIZADO

,I O corpo popular

 ivilização medieval, e mesmo a renascentista, é uma mistura


unfusa de tradições populares locais e de referências cristãs. É um
t rlstianísmo folclorizado", segundo a feliz expressão de [ean De-
lum .au, que alimenta as relações do homem com seu meio social
natural. Uma antropologia cósmica estrutura os quadros sociais
rulturais. O homem não está distinguido da trama comunitária e
I t rnica na qual está inserido, mas, ao contrário, está misturado à
1IIIIItidãode seus semelhantes, sem que sua Singularidade faça dele
tlll\ indivíduo no sentido moderno do termo. Ele toma consciência
11 sua identidade e de seu enraizamento físico no interior de uma
ti' ita rede de correspondências.
Para que "a individualização pela matéria", isto é, pelo corpo,
I J ' admitida, no plano social, é preciso esperar o desenvolvimento
10 individualismo. Então, efetivamente, o corpo será a proprieda-
li do homem, e não mais sua essência. No plano das representa-
t S, uma teoria do corpo como objeto independente do homem,
onquanto estando ligado a ele, e encontrando nele seus próprios
ti' ursos (especificidade do vocabulário anatõmico e fisiológico),
I Iguirirá então uma importância social crescente. Mas nas coleti-

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vidades humanas de tipo tradicional, holista I, reina uma espécie de u ti essa passagem ao paradoxal. É a busca de um segundo fôlego,
identidade de substância entre o homem e o mundo, uma conivên- 11pois que o grande riso da praça pública purificou o espaço e os
cia sem defeito, na qual os mesmos componentes intervêm. Não 110m ns. O carnaval institui a regra da transgressão, conduz os ho-
mais do que o homem dessas sociedades é não discernível de seu 1llt'I1S a uma liberação das pulsões habitualmente reprimidas. Inter-
corpo; o mundo não é discernível do homem. É o individualismo vullum mundi, abertura de outro tempo no tempo dos homens e das
e a cultura erudita que introduzem a separação. (I I idades onde vivem. O sério da vida voa em estilhaços perante o
Para distinguir quais representações do homem (e de seu cor- I o t rrepreensível da coletividade unida no mesmo sacrifício ritual
po) precedem aquelas que nos caracterizam hoje, impõe-se um re- II , onvenções. Festa tipicamente comunitária, na qual o conjunto
torno à festa popular medieval. Sabe-se o quanto esta se encontra 11) bomens tende provisoriamente à comunhão, além das tensões
então no cerne da sociabilidade, especialmente no século xv. Mas I toda vida social. É preciso de tudo para fazer um mundo: o car-
apreender o sentido da festa medieval exige o abandono de nossas I) IV \1 leva essa consciência ao seu máximo de intensidade. Os pra-

referências contemporâneas. Os regozijos do carnaval e as festas II I' li do carnaval celebram o fato de existirem, de viverem juntos
aparentadas: aquelas dos loucos, do asno, dos inocentes etc., os III " ntes, e até mesmo desiguais, ao mesmo tempo frágeis e fortes,
mistérios, as sotias, as farsas, o "riso pascal", os charivaris, perten- li II~s e tristes, comovidos e frívolos, mortais e imortais.
cem a uma região esquecida da história. Em contrapartida, as festas oficiais, instituídas pelas camadas di-
Nos regozijos do carnaval, por exemplo, os corpos se misturam, ntes, não se distinguem das convenções habituais; elas não ofe-
indistintamente, participam de um mesmo estado da comunidade li' escapatórias
11.1 para um mundo fusional, pelo contrário. Elas
levado à sua incandescência. Nada é mais estrangeiro a essas festi- I I o fundadas na separação, hierarquizam os atores, consagram os

vidades do que a ideia de espetáculo, de distanciamento e de apro- ilore religiosos, sociais e afirmam assim o germe de uma indivi-
priação somente pelo olhar. No fervor da rua e da praça pública rluullzação dos homens. O carnaval desliga e confunde justamente
é impossível manter-se arredio, cada homem participa da efusão 11I1t!' a festa oficial fixa e distingue. As inversões operadas pelas fes-
coletiva, da mistura confusa que zomba dos usos e das coisas da I1 I lades de carnaval, tempo de excesso e de dispêndio, ilustram o

religião. Os princípios mais sagrados são ridicularizados pelos bu- 11111 O renas cimento do mundo, a nova primavera da vida.
fões, os loucos, os reis do carnaval; as paródias, os risos irrompem corpo grotesco dos regozijos carnavalescos se opõe de ma-
de toda parte. O tempo do carnaval suspende provisoriamente os 11111"1 radical ao corpo moderno. É um revezamento, o vínculo dos
usos costumeiros e favorece seu renas cimento e sua renovação gra- 1111111 ens entre eles, o sinal da aliança. Não é um corpo separado, e,
I 011 nto, a noção de "corpo grotesco" deve evitar os equívocos. O
I 11 1'0 na sociedade medieval, e, ajortiori, nas tradições do carna-
1. Adotamos aqui a definição de holismo (a noção de comunidade é aqui utili-
zada no mesmo sentido estrutural) fornecida por Louis Dumont: "Uma ideologia 111não é distinguido do homem, como o será, ao contrário, o cor-
que valoriza a totalidade social e negligencia ou subordina o indivíduo humano" !'tI Ia Modernidade, considerado como fator de individuação. O
(DUMONT, L. Essais sur I'individualisme - Une perspective anthropologique sur
111 a cultura popular da Idade Média, e do Renascimento, recusa
I'idéologie moderne. Paris: Seuil, 1983, p. 263).

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é justamente o princípio de individuação, a separação do cosmos, SL r escancarado, que não pode estar senão na abundância, do
o alheamento do homem e de seu corpo. O recuo progressivo do sso que ele invoca sem se enfastiar. Inúmeras ilustrações per-
riso e das tradições da praça pública marca o advento do corpo 1\11'" m a obra de Rabelais ou aquelas, mas em um nível diferente,
moderno como instância separada, como marca de distinção de li .crvantes ou de Boccaccio. Enfatizam-se as atividades de um
um homem em relação a outro. 1111111 m indiscernível de seu corpo, de sua comunidade e do cosmo.
O corpo grotesco é formado de relevos, de protuberâncias, ele J i no século XVI, nas camadas eruditas da sociedade, debu-
transborda de vitalidade, está mesclado à multidão, indiscernível, I, \ O corpo racional, que prefigura nossas representações atuais,
aberto, em contato com o cosmo, insatisfeito com os limites que ele HI'I ,I que marca a fronteira de um indivíduo em relação a outro,
não cessa de transgredir. É uma espécie de "grande corpo popular \ I lisura do sujeito. É um corpo liso, moral, sem aspereza, limi-
da espécie" (Bakhtin), um corpo eternamente renascente: grávido hl 10, reticente a toda transformação eventual. Um corpo isolado,
de uma vida a nascer ou de uma vida a perder, para renascer ainda. I li Irado dos outros, em posição de exterioridade com o mundo,
O corpo grotesco, diz Bakhtin, não é demarcado do resto do I, I h I 10 em si mesmo. Os órgãos e as funções carnavalescas serão
mundo, não é fechado, consolidado, nem totalmente pronto, 1 111 o a pouco depreciados, tornados objetos de pudor, privatiza-
mas ultrapassa-se a si mesmo, supera seus próprios limites.
li . Âs festas serão mais ordenadas, fundadas mais sobre a separa-
Enfatizam-se as partes do corpo onde este está, seja aberto ao
mundo exterior, seja ele mesmo no mundo, isto é, nos ori- ,ti I) que sobre a confusão",
fícios, nas protuberâncias, em todas as ramificações e excre-
mentos: bocas abertas, órgãos genitais, seios, falos, intestino
ma antropologia cósmica
grosso, nariz".

Quer dizer, em todos os órgãos que suportarão a vergonha na rnaval é o revelador de um regime do corpo que não se res-
cultura burguesa. II 11 'mente ao sujeito, mas transborda sua inserção para verter
As atividades nas quais se compraz o homem carnavalesco são mentes constitutivos e sua energia no mundo que se avi-
justamente aquelas onde os limites são transgredidos, aquelas onde homem, indiscernível de seu enraizamento físico, é per-
o corpo transborda, vive na plenitude sua expansão para fora: o fi sua inclusão no seio das forças que regem o universo.
acasalamento, a gravidez, a morte, o comer, o beber, a satisfação das 1 ão permanece limitada às novas camadas dirigentes no
necessidades naturais. E isso com uma sede tanto maior quanto a Iti 1111 '( nõmico e ideológico; ela ainda não operou nas camadas
existência popular seja precária, os períodos de penúria frequentes, Itlll \ I1 I' 'S, nde se mantém vivo um saber tradicional. A burguesia
e o envelhecimento precoce. É uma espécie de corpo provisório, 11 I 101 estantes são os propagadores mais ardentes da visão de
sempre a ponto de transfigurar-se, sem repouso. Um corpo sem
111111 r pressão das festividades populares a partir do remanejamento cul-
11 1111111 III O se inicia, e começa a dar resultados a partir do século XVII, e
2. BAKHTIN, M. L.:oeuvre de François Rabe/ais et /a culture popu/aire au Moyen I , 1111 t1 C nlrole da Igreja e do Estado, a estigmatizar o saber popular, ler
Age et à/a Renaissance. Paris: Gallimard, ls.d.l, p. 35 [Cal. Tell. , 111MI11 'D, R. Culture et eu/ture des é/ites. Paris: Flammarion, 1978.

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mundo nascente, que põe em seu centro o indivíduo, e olha a na- I1I ti, ond um gesto ameaça o cosmo e desencadeia forças deli-
tureza com olhos cheios de uma racionalidade nascente. It 11111 un .nte (feitiçaria) ou por inadvertência. Em Les évangilles
Nas camadas populares, a persona permanece subordinada a ,I 111/('1I0uilles,um apanhado de saberes tradicionais de mulheres
uma totalidade social e cósmica que a ultrapassa. As fronteiras da 1'1111 ido m 1480, em Bruges, encontramos um repertório orga-
carne não demarcam os limites da mônada individual. Um tecido 11 I 10 ti crenças sobre a doença, a vida cotidiana, a educação das
de correspondências mescla sob um destino comum os animais, I IIIIG IH, s remédios, o corpo humano ete.; isto ilustra esse poder
as plantas, o homem e o mundo invisível. Tudo está ligado, tudo II ulv inte que rege o mundo. Graças a um conjunto de conheci-
ressoa junto, nada é indiferente, todo evento é significativo. Lévy- 111 IItos tradicionais, é possível conciliá-lo, utilizá-l o em vantagem
-Bruhl falava outrora, a respeito das sociedades tradicionais, de I 1111 I' ti, ou desencadeá-Io sobre qualquer um a quem se queira
uma mentalidade "primitiva" governada pelas leis da participação, II \I li ar. Demos alguns exemplos disso: "Se alguém urina entre
vinculada simpaticamente a todas as formas animadas ou inertes 111 I asas ou contra o sol, adquire o mal dos olhos chamado leu-
que se pressente no meio onde vive o homem. E. Cassirer também I f "'' '1. "Para evitar ter a cabeça ou os rins paralisados é preciso se
evocou esse sentimento de continuidade, de "comunidade de tudo 1II I r de comer da cabeça ou da carne de um gato ou de um urso"
aquilo que vive': que torna impossível o destacamento de uma for- p, 7'3). "Quando os cachorros uivam, devemos tapar os ouvidos,
ma de vida do resto do mundo. I 'li' III eles trazem más notícias. Em compensação, devemos ouvir
A partir dessa representação, infinitamente diversificada em I1 vr 10 quando ele bufa ou relincha" (p. 76). "Aquele que bebe
suas formas culturais, mas que deixa facilmente entrever sua es- IIW enta aos domingos, na grande missa, afastará o diabo mau,
trutura antropológica, não há qualquer ruptura qualitativa entre l"t' n' o poderá se aproximar dele a mais de sete pés durante toda a
a carne do homem e a carne do mundo. O princípio da fisiologia 111 ma" (p. 78). "Quando uma criança é recém-nascida, se for um
humana está contido na cosmologia. O corpo humano é, nas tra- 1111 nlno, é preciso levá-lo ao pai e pôr-lhe os pés contra o seu pei-
dições populares, o vetor de uma inclusão, não o motivo de uma 111 intão jamais a criança terá má morte" (p. 106). Cada proposta
exclusão (no sentido de que o corpo vai definir o indivíduo e o • uuttda em Les évangilles des quenouilles evoca a correspondên-
separar dos outros, mas também do mundo); ele é o vinculador I simbólica que subordina estreitamente todos os componentes
do homem a todas as energias visíveis e invisíveis que percorrem I1I mais, vegetais, minerais, climáticos ou humanos a veias sutis
o mundo. O corpo não é um universo independente, fechado em li. n rgia, a causalidades singulares em que parece que jamais o
si mesmo, à imagem do modelo anatõmico, dos códigos de sa- 1 ISO ou a indiferença têm a possibilidade de um acometimento.
ber-viver ou do modelo mecanicista. O homem, bem em carne A partir de belas páginas, L. Febvre evocou nesse sentido "a
(no sentido simbólico), é um campo de força em poder de ação lluldez de um mundo onde nada está estritamente delimitado,
sobre o mundo, e sempre a ponto de ser influenciado por ele.
É isso o que mostra também a feitiçaria popular: uma inscrição
1 L s évangilles des quenouilles. Paris: [mago, 1987 [traduzidos e apresenta-
do homem em um tecido holista no qual tudo está em inter-re- do por Jacques l.acarriêrel,

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onde os próprios seres, perdendo suas fronteiras, mudam em um 11)111as leis da comunidade. O criminoso é um homem despro-
piscar de olhos, sem provocar qualquer objeção de forma, aspecto, 10 de laço social, ele impõe sua individualidade de encontro à
dimensão, ou até mesmo de reino': como diríamos: eis tantas his- vontade e aos valores do grupo. Ia colonie pénitentiaire, de F. Kaf-
tórias de pedras que se animam, tomam vida, se movem e progri- I I, íelíneia aqui uma parábola do destino que o espera em repara-
dem; eis as árvores tornadas vivas; eis, enfim, as bestas se compor- ~ () le seu crime. Nesta novela, um viajante assiste com horror ao
tando como homens e os homens, por sua vez, se mudando em 111'1leio de um condenado. O oficial encarregado da justiça fala da
bestas. Casos típicos, aquele do lobisomem, do ser humano que I mência com que beneficiam os acusados: "Simplesmente gra-
pode se encontrar ao mesmo tempo em dois lugares distintos sem Imo ) com a ajuda do rastelo, o parágrafo violado sobre a pele do
que com isso ninguém se mostre surpreso: "Em um ele é homem, I (di ado'", Tal é então o destino do criminoso: sua dissidência rea-
no outro, ele é besta'". I '/,1 111miniatura um desmembramento do corpo social, eis por
Considerada pelo viés da separação, a categoria do corpo é uma 1\" le é punido, de um modo metafórico, pelo desmembramento
abstração, um não senso. Não se pode então considerar o homem .I, s u próprio corpo. Por meio dos delitos pelos quais foi consi-
isoladamente de seu corpo. Mesmo depois de ser surpreendido pela I r ido culpado, ele fez a prova de seu desligamento da comuni-
morte. Assim, pensa-se que os restos mortais da vítima sangrem ti ,ti humana. A tortura visa nele essa falta às regras fundadoras
quando são postos em presença do assassino. Se um homicida, en- dI! I acto social. Não é, pois, anódino que os primeiros despojos
quanto está vivo, escapa da justiça, desenterra-se seu cadáver e se 1,1 rtados à felicidade dos anatomistas sejam precisamente aque-
lhe inflige o castigo que ele mereceria. Lucien Febvre, para susten- 1 condenados à morte. Mas, apesar de tudo, desmembrado
tar sua proposição de que o significado do impossível não é uma 11(,1) arrasco ou pelo escalpelo do anatomista após sua execução,
categoria da mentalidade renascentista, fala desse decapitado que II 1( mem permanece ontologicamente inteiro. E a Igreja, mesmo
toma sua cabeça entre as mãos e põe-se a caminhar pela rua. Todo " h autoriza a dissecção" de maneira muito ciosa, vela por que
mundo o vê: ninguém o duvida. Aí também percebemos o quanto o II homem "anatomizado" tenha direito a uma missa (à qual tam-
corpo permanece solidário com a pessoa. Donde a profusão de me- I" 11\ os iste o anatomista e seu assistente) antes de ser cristãmen-
táforas orgânicas para então designar o campo social ou algumas ti -pultado. Apesar de seus crimes, o condenado não deixa de
de suas instâncias: o corpo social é unitário, como o é o homem. lI\" II n r ao corpo místico da Igreja. Aniquilado socialmente, ele
De um a outro, um contínuum se estende, englobando a condição
humana e o mundo natural sob os auspícios da Revelação.
Ii I AI KA, F. La colonie pénitentiaire. Paris: Gallimard, ls.d.l, p. 16 [Col.
Acontece, entretanto, que criminosos sejam desmembrados.
I 11111 Ir d. de Alexandre VialetteJ.
Mas se trata então de homens que romperam deliberadamente N () 110S
esqueçamos, no entanto, de que numerosos anatomistas ou artistas,
111111Miguelangelo, Leonardo da Vinci, p. ex., procediam ao contrabando de
I I

I I1 VI r ,escavando os cemitérios ou os cadafalsos para procurar os corpos que


5. FEBVRE, L. François Rabelais et le problême de I'incroyance au XVle siêcle. I" I I V irn, Cf. LE BRETON, D. La chair à vif: usages médicaux et mondains du
Paris: Albin Michel, 1968, p. 404-405. 1111' 1111111 in. Paris: Métailié, 1993.

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permanece um homem sob o olhar de Deus. Não é a um amon- S 0, lembranças, expressões de submissão fiel a Deus em
toado de carne desmembrada que o ritual religioso se dirige, mas li ti 1111 IIS quais comunga a coletividade. Um traço de individuação
a um homem, a um membro da universitas', II(OS, sem dúvida, mais profundamente nuançado pelo uso
111I Idlo da relíquia".
11m v zcs não é mais sob a forma da metáfora que o corpo des-
2.3 As relíquias
III 111111 \ 10 do santo desvela sua essência metafísica de templo do

Os despojos dos santos, também eles, são desmembrados, des- pll 10 Santo. Assim, Piero Camporesi evoca, não sem humor, o
pedaçados, e suas relíquias dispersadas a partir da Cristandade. '1" 11'1 'jal11ento meticuloso com que beneficia, em 1308, a Irmã
Mas, no fragmento do corpo santificado, uma espécie de metoní- 11 ill I li ' Monfalco, morta em odor de santidade no convento dos
mia da glória de Deus é celebrada. As relíquias contêm poderes fa- I I tlnlnnos. As diferentes vísceras são cuidadosamente arruma-
voráveis: curar os doentes, favorecer as colheitas, premunir epide- II 111 lima tigela de barro, enquanto o coração é posto à parte. As
mias, proteger os homens em seus empreendimentos etc., mas esse II li' , q lIC procedem elas mesmas a esta singular organização, para
poder de intervenção sobre o curso das coisas é somente o índice • 11 ti lxar um homem tocar uma carne que permaneceu virgem,
da presença de Deus neles. O órgão removido do corpo do santo, ,,111\ 11\ m O coração tão pleno do amor do Senhor. E algumas irmãs
. ou da santa, é o mais curto caminho terrestre para o Reino. Na re- I mbrarn então de ter frequentemente ouvido sua companhei-
líquia, o corpo místico da Igreja se dá a pressentir sob uma forma 111 dizer que ela tinha "Jesus Cristo crucificado no coração':
tangível e simples, que responde aos votos do maior número. Essas I d 'lido a uma intuição, elas mergulham uma lâmina na víscera
memoriae favorecem uma proximidade mais tangível da comu- II 1 m-aventurada e descobrem, com emoção, a forma da cruz
nidade com aquele que ela considera como seu criador. Elas não I, • ,,1\ ida por vários nervos. Um exame mais minucioso permite
são adoradas por si mesmas, não mais do que o são os santos, dos 101 rir outro nervo figurando a chibata com a qual bateram no
quais o dominicano Iacques de Voragine evoca os cruéis destinos I 10. milagre não para aí. Perante uma assembleia de teólogos,
em La légende dorée. A individualidade do santo é simplesmente li ~I ,médicos e religiosos convocados para a ocasião, o coração
uma voz consonante no concerto de louvores dirigidos a Deus. Ele II W I vel da Irmã Chiara desvela, perante os olhos estupefatos
não é um homem vivo por si, sua existência é de parte a parte I. 1I I munhas, os objetos da Paixão, como "a coluna, a coroa de
atravessada pela comunidade. Ele não é senão por ela e para ela. 1I uhos, os três cravos, a lança e a vara com a esponja, represen-
Ele pode assim, sem dor, fazer o sacrifício de sua vida. Os santos
e as relíquias subtraídas de seus despojos mortais são figuras de
IIIH S relíquias, cf. HERMANN-MASCARD, N. Les reliques des saints: Ia
f '"11111 11 coutoumiere d'un droit. Paris: Klincksiek, 1975. Lembremos aqui sim-
I "li, 1111 nte de São Paulo: "Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem mui-
8. Sobre a noção de universitas, cf. MICHAUD-QUENTIN, P. Universitas, ex- I', 111 mbros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam
pressions du mouvement communautaire dans le Moyen Age latin. Paris: Vrin, '1111 ·orpo. Assim também acontece com Cristo. Pois fomos todos batizados
1970, sobretudo p. 11-57. 1111111 pfrito para formarmos um só corpo" (lCor 12,12).

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tados de maneira tão vívida que Bérangario, tocando a ponta da II I l um tabu, os cirurgiões são personagens perturbados, in-
lança e dos três cravos, se espeta, como se eles tivessem realmente 'I I ( I intes, aos olhos de seus contemporâneos. O Concílio de Tours,
fogo"!". A relíquia destacada do santo não é o sinal de um fracio- I III I I , , proibiu aos médicos monásticos fazer correr o sangue. A
namento da unidade do sujeito, ela não singulariza o corpo. Ela 1'11111 NUO médica muda no século XII12, decompondo-se em dife-
é uma metonímia, e encarna, à sua maneira, o "corpo místico da 111111" 'alegorias: aquela dos médicos universitários, clérigos mais
Igreja': no qual todos estão confundidos, malgrado suas diferen- luh -I '111 especulações do que em eficácia terapêutica. Eles in-
ças. Nesse sentido, o despedaçamento dos despojos do santo não li I 11 m apenas para os doentes "externos", sem tocar no corpo do
traduz sua redução a um corpo. O órgão subtraído dos despojos 11'111 " Aquela dos cirurgiões, que começa verdadeiramente a se
significa a pessoa do santo, testemunha sempre suas ações passa- ") in Izar no final do século XIII, e agem no âmbito do interior do
das. Nós estamos nas antípodas das dissecções operadas pelos pri- 1 1111 (l, ousando transgredir o tabu do sangue. São frequentemente
meiros anatomistas, a fim de conhecer o interior invisível do corpo I I1li , I sprezados pelos médicos, por causa de sua ignorância do
humano (desta vez, destacado do sujeito que ele encarnou), para ,11 I 'S olástico. Ambrósio Paré, mestre cirurgião que descobre a
quem a identidade do sujeito pouco importa. 11 I luru das artérias para evitar as hemorragias, e salva assim inú-
uu I' vida, é ridicularizado pela casta dos médicos clérigos por
11 11 unhecer o latim. Somente ao fim de sua vida seus métodos
2.4 O corpo intocável
, 1111 I «t 1111 a ser aplicados, mas a faculdade de medicina ainda se
Em um mundo situado sob o signo da transcendência cristã, e I'11 I' r 'impressão de sua obra. Importa menos ao médico tratar
onde as tradições populares ainda mantêm seu enraizamento so- I 111 1I 10 que conhecer o latim. E, finalmente, aquela dos barbei-
cial, o homem (indiscernível de seu corpo) é uma cifra do cosmos, I I ,I V Iis d s cirurgiões, que deviam conhecer o uso do pente e da
e fazer correr o sangue, ainda que se o faça como terapia, equivale I 1111 \, rn também os diferentes pontos de sangramento. O mé-
a rasgar a aliança, a transgredir um tabu. II ti I "1 a a posição, sob todos os aspectos, privilegiada, daquele
Em seu artigo sobre os ofícios lícitos e ilícitos da Idade Mé- I" upostamente sabe, mas que não se contamina com a impure-
dia, [acques Le Goff enfatiza o opróbrio que associa o cirurgião, o I ti" lllgue e desdenha das necessidades baixas. O status das três
barbeiro, o açougueiro e o carrasco!'. Equívoco companheirismo I ,di I N S estabelece desde o século XIII. Sutil hierarquia que
li'
a atestar que, durante muito tempo, aqueles que tratam, infringin- I I I, 111111 ir distância do doente e do corpo a marca da posição
do os limites do corpo, não gozam de uma estima muito grande. , 111111 tis invejável e aquela do melhor prestígio. É, com efeito, o
Como todo homem cujo status social põe regularmente em pre- II I II un .nto do corpo que mede o status respectivo dessas dife-
111. s sobre o homem doente. O movimento episternológi-
IIllllIlógi O que conduz à invenção do corpo está em marcha.
10. Cf. CAMPORESI, P. La chair impassible. Paris: Flammarian, 1986, p. 755.
11. Cf. LE GOFF, J. Pour un autre Moyen Age. Paris: Gallimard, 1977, p. 93 .•
POUCHELLE, M.-C. Corps et cirurgie à I'apogée du Moyen Age. Paris: Flamma- I I, I' I x. JACQUARD, D. Le milieu medica I du XII" au XI/" siécte. Genebra:
rion, 1983, p. 11955. 11/1,

46 47
2.5 Nascimento do indivíduo I1I 111), bem próprio a colocar à frente sua individualidade. Louis
111110111 enfatiza, a justo título, que o pensamento de Maquia-
É o avanço do individualismo ocidental que vai pouco a pouco
I, XI r ssão política desse individualismo nascente, marca uma
permitir discernir, segundo um modo dualista, o homem de seu
fll 111 • pação da rede holista dos fins humanos?".
corpo, não em uma perspectiva diretamente religiosa, mas no pla-
lmagem moderna da solidão, na qual se amofina o homem
no profano. É isso que é preciso agora interrogar: o vínculo social
I I I t I 'I', manifesta, então, sua versão mais proeminente, no medo
entre indivíduo e corpo, a fim de liberar as fontes da representação
111 d 's nfiança nutridas, a todo instante, pelo príncipe contra
moderna do corpo.
I 111 '11 ões pessoais de seus próximos". À sombra do soberano,
As premissas da aparição do indivíduo em uma escala social
1111 li \ proteção, irrompe outra grande figura do individualismo
significativa são perceptíveis no mosaico italiano do Trecento e do
11\ \ 'IlL , aquela do artista. O sentimento de pertencer ao mundo,
Quatrocento, nos quais o comércio e os bancos desempenham um
11 \(\ mais somente à comunidade de origem, é intensificado pela
papel econômico e social de uma grande importância. O comer-
1II I' o de exílio, na qual se encontram mergulhados milhares
ciante é o protótipo do indivíduo moderno, o homem cujas ambi-
I 110m ns em razão das vicissitudes políticas ou econômicas dos
ções extrapolam os quadros estabelecidos, o homem cosmopolita
I Ii It ntcs estados. Imponentes colônias de exilados se criam nas
por excelência, que faz de seu interesse pessoal o móbile de suas
11,1 I lianas, a dos Florentins, em Ferrara, por exemplo. Longe
ações, ainda que em detrimento do "bem geral". A Igreja não se
I' ibandonar à tristeza, esses homens apartados de suas cidades
deixa enganar, e tenta opor-se à sua influência crescente antes de
Ii I ., 'de suas famílias, desenvolvem o sentimento novo sua per-
ceder terreno na medida em que a necessidade social do comércio
I I1 I (1 um mundo mais amplo. O espaço comunitário se tornou
se faz mais proeminente. Malgrado certas lacunas, J. Burckhardt
I autsladamente estreito aos seus olhos para pretender encerrar
mostra o advento dessa noção nova de indivíduo, que manifesta
111 imbições exclusivamente no interior de seus limites. A úni-
para certas camadas sociais privilegiadas, no plano econômico e
I [ronteíra admitida por esses homens do Renascimento é aquela
político, o começo de uma distensão do continuum dos valores
111 mundo. São, com efeito, indivíduos, mesmo se continuam, sob
e dos vínculos entre os atores. No seio desses grupos, o indivíduo
11111 tos aspectos, a pertencer a uma sociedade na qual os vínculos
tende a se tornar o domicílio autônomo de suas escolhas e de seus
. uuumitários permanecem poderosos. Eles adquiriram, compara-
valores. Ele não mais é levado pela preocupação da comunidade e
111, 11til vínculos anteriores, um grau de liberdade antes impensável.
o respeito das tradições. Certamente, essa tomada de consciência,
li divina comédia, de Dante, é contemporânea desse relaxa-
que confere uma margem de ação quase ilimitada ao homem, toca
I1 t t 1() ainda imperceptível do campo social, que confere de forma
apenas uma fração da coletividade. Essencialmente homens da ci-
dade, comerciantes, banqueiros. A precariedade do poder político
nesses Estados italianos leva igualmente o príncipe a desenvolver llUMONT, L. Essai sur I'individualisme. Op. cit., p. 79.

um espírito de cálculo, de insensibilidade, de ambição, de volun- I I IHJRCKHARDT, J. La civilisation de Ia Renaissance en Italie. Tomo I. Paris:
I tlll I, p. 9 [Col. MédiationJ.

48 49
mesurada, a milhares de homens, o sentimento de ser cidadão do 11 11 ival e das festas populares se faz mais rara. A axiologia corpo-
mundo, antes que de uma cidade ou de uma região. A aventura I 11 modifica, Os olhos são os órgãos beneficiários da influência
de Virgílio no inferno é aquela de um indivíduo; ela, com efeito, , nte da "cultura erudita" Todo interesse do rosto se concentra
postula a valoração do poeta, do artista. Essa grande obra é escrita 11 I s, A visão, sentido menor para os homens da Idade Média, e
em língua vulgar como que para reiterar o exílio interior de Dante, 1111 111 do Renascimento, é chamada a uma fortuna crescente no
constrangido a viver fora de Florença. Mas, malgrado seu despeito, I" o dos séculos porvires. Sentido da distância, ela é tornada o
este pode dizer com exaltação: "Minha pátria é o mundo em geral". '111 do-chave da Modernidade, porquanto autoriza a comunica-
O Deus da revelação, a comunidade, as tradições locais tornam-se • li, I ixando os interlocutores sobre sua reserva.
referências formais, elas não mais ordenam de maneira decisiva 1\ 110 século XV que o retrato individual se torna, de maneira
os valores e as ações de um homem cada vez mais emancipado da I~11 I fi cativa, uma das primeiras fontes de inspiração da pintura,
regência da universitas. O uomo universale começa a sortear, em IIV I'L ndo em alguns decênios a tendência, até então bem-estabe-
suas convicções pessoais, a orientação totalmente relativa de suas I I kln, de não representar apessoa humana sem o recurso a uma
ações sobre o mundo. Ele pressente sua importância social: não II urução religiosa. À expansão do cristianismo corresponde uma
. mais as vias obscuras da providência podem decidir acerca de sua I Ii do retrato", ligada ao receio de que a apreensão da ima-
própria vida, ou da vida de sua sociedade; ele sabe doravante que lI" I homem não seja aquela do homem mesmo. O retrato não
é ele mesmo quem fabrica seu destino, e quem decide a forma e I I' ebido como um sinal, um olhar, mas como uma realidade
o sentido que pode tomar a sociedade em que vive. A emancipa- II1 raptura a pessoa. Na Alta Idade Média, somente os altos digni-
ção do religioso conduz à consciência da responsabilidade pessoal, I "I, s da Igreja ou do Reino deixam retratos de suas pessoas, mas
logo ela conduzirá à emancipação do político no nascimento da I" ul idos dos malefícios pela consonância religiosa das cenas
democracia. III!I\I figuram, cercados de pessoas celestes. O exemplo do papa
I I I ri os doadores a desejar a inserção de sua imagem nas obras
II li}'. osas (afrescos, manuscritos, posteriormente retábulos), para
2.6 Invenção do rosto
1\ ,I I' alização eles contribuem generosamente. A doação, sob o
A geografia do rosto se transforma. A boca deixa de ser aber- 111 ubrimento de um santo patrocínio, autoriza o doador a assegu-
ta, gourmande, lugar do apetite insaciável ou dos gritos da praça I 11 lia própria perenidade, mesclando sua presença àquela dos al-
pública; ela se torna agora tributária de significação psicológica, III 11 'r onagens da história cristã. No século XIV outros suportes
expressiva à imagem das outras partes do rosto. Verdade única de 111111\ -rn os retratos: os retábulos, os frontispícios de palácio e as
um homem único, epifania do sujeito, do ego cogito. O corpo da 111 111 -lras pinturas de cavalete. Sobre esses retábulos, o doador é o
Modernidade deixa de privilegiar a boca, órgão da avidez, do con- fi, quentemente representado na companhia de santos, mas,
tato com os outros pela palavra, o grito ou o canto que a atravessa,
a bebida ou a comida que ela ingere. A incandescência social do
MI stes eram então muito estilizados, sem marca real de individuação,

50 51
por vezes, e notadamente sobre os painéis exteriores, lhe aconte- 1\irável da comunidade, do grande corpo social; ele se torna um
ce de ser figurado isoladamente. É, sobretudo, com [an Van Eyck ,11//'11 'xclusivamente seu. A nova preocupação com a importância
que a afiliação necessariamente religiosa da presença do doador d'l ln llvíduo leva ao desenvolvimento de uma arte centrada dire-
se esvaece. A Virgem do chanceler Rolin (1435 aproximadamente) I IUI nt' na pessoa, e suscita um afinamento da representação dos
põe face a face, à maneira de uma discussão cortês entre esposos, I i11 11 , uma preocupação com a singularidade do sujeito, que os
a Virgem e o doador. A topografia da tela não distingue a Virgem I Idos precedentes tinham socialmente ignorado. O individualis-
do homem profano: o espaço partilhado é igual para os dois inter- 1111\ IHHü1ala
a aparição do homem encerrado em seu corpo, marca
locutores. O retrato dos Arnolfini (1434) celebra, sem consonân- It 111 diferença, e isso, sobretudo, na epifania do rosto".
cia diretamente religiosa, a intimidade doméstica de dois esposos.
Aos seus pés, um cachorrinho está estendido e reforça a dimensão 7 O avanço do individualismo
pessoal da cena. Da celebração religiosa dá-se um resvalamento
,orolário desse desenvolvimento do individualismo na Euro-
para a celebração do profano. Por volta de 1380, no entanto, Girard
I' (h I lental, a glória se vincula a homens cada vez mais numero-
d'Orléans havia aberto o caminho, assinando um dos primeiros
" • .,' poetas gozam, ainda em vida, de um renome considerável.
quadros de cavalete onde somente o perfil de [ean Le Bon figurava.
I \11ft ou Petrarca o ilustram. Outro traço revelador: a aparição
No século XV, o retrato individual, dissociado de toda referên-
I, I tlnatura nas obras dos pintores. Os criadores da Idade Média
cia religiosa, se desenvolve na pintura, tanto em Florença ou em
I 1111 ineciam no anonimato, fundidos na comunidade dos ho-
Veneza quanto em Flandres ou na Alemanha. O retrato se torna
1/11 I1 , tais como os construtores de catedrais. Em compensação,
um quadro por si só, suporte de uma memória, de uma celebra-
I, 111 listas do Renascimento estampam suas obras com seu selo
ção pessoal sem outra justificação. A preocupação com o retrato,
1/ I. Em sua obra sobre O grande atelier da Itália, André Chas-
e, portanto, essencialmente com rosto, tomará uma importância
111111 \ que
crescente ao longo dos séculos (a fotografia substituindo a pintura:
na segunda metade do século XV,o autor de quadros tende a
assim a quantidade de documentos de identidade, cada qual ador- se apresentar a si mesmo com menos discrição do que outro-
nado por uma foto, dos quais dispomos hoje. A individuação pelo ra. É o momento em que a assinatura começa a ser propria-
corpo se afinando aqui pela individuação pelo rosto). mente afixada sob a forma do cartellino (cartão ou plaquinha
apresentando o nome do artista ou outras indicações sobre
Para compreender esse dado é preciso recordar que o rosto é a
a execução da obra). Encontramos também a inserção fre-
parte do corpo mais individualizada, a mais singularizada. O ros- quente do retrato do autor no ângulo direito da composição,
to é a cifra da pessoa. Donde seu uso social em uma sociedade como o fez Botticelli em A adoração dos Magos, dos Médici
na qual o indivíduo começa lentamente a se afirmar. A promoção (1476 aproximadamente). Esses traços novos, que abundam

histórica do indivíduo assinala paralelamente aquela do corpo e,


sobretudo, aquela do rosto. O indivíduo não é mais o membro in-
I I I1 8RETON, D. Des visages - Essai d'antropologie. Paris: Métailié, 1992.

52 53
após 1460, revelam aparentemente uma consciência mais opõe estruturalmente ao enriquecimento de um em detrimento
clara da personalidade'7. IpN utros. Ela se funda na mesura, na preocupação em controlar,
Vasari fez-se o louvador desses homens promovidos subita- I11 maneira mais justa, as somas adjudicadas em troca de um ser-
mente a um reconhecimento social considerável. O artista não é / l. Esse justum pretium traduz a noção "de um sacrifício razoá-
mais a onda de superfície trazida pela espiritualidade das massas, ,I demandado ao consumidor" (Henri Hauser), suficiente para
o artista anônimo dos grandes desenhos coletivos; ele se torna um 11I tnt r a casa do produtor. As regras canônicas em vigor proíbem
criador autônomo. A noção de artista se carrega de uma valência 11 mpréstimo com juros. É Calvino, em 1545, que distingue as leis
social que a distingue das outras corporações. I I I stes e as leis humanas, a fim de justificar o crédito, e dar
As cidades italianas do Renascimento se honram de ter abriga- , m uma legitimidade decisiva ao empreendimento comercial
dos homens célebres entre seus muros: santos, mas também po- II11 I ncário. Paralelamente, aliás, os protestantes, opondo-se às
líticos, poetas, eruditos, filósofos, pintores etc. O sarcasmo, cujas 111 I tuíções eclesiásticas, recusando o magistério do sacerdote, fa-
18
formas se desenvolvem cada vez mais a partir do Quattrocento , é 111 da religião um problema de consciência pessoal, colocando
o corretivo de uma glória e de ambições que nada mais limita. For- ,dll homem perante Deus, sem outro intermediário. Momento
ma de compensação, mas também de resistência do grupo em face 111'1 ortante do avanço individualista. É nesse contexto que o capi-
de uma autonomização dos indivíduos que se efetua em seu detri- 1.1 111 se desenvolve, no final do século XV e no século XVI, e dá
mento. Mas o sarcasmo não se compara ao riso da cultura popular, 111 11 lividualismo uma extensão crescente ao longo dos séculos.
de essência comunitária. Ele é, de certa maneira, uma ideologia do
rosto, marca uma preocupação com a medida, supõe a distância o corpo, fator de individuação
individual. Ao contrário, o riso popular recolhe a essência carna-
valesca de um corpo que se quebra como ondas sobre as galhofas, ( orn o sentimento novo de ser um indivíduo, de ser si mesmo,

um corpo transbordando sem cessar sobre a natureza, o cosmos, a I ser o membro de uma comunidade, o corpo se torna a
1111111 ra precisa que marca a diferença de um homem em relação
massa, o excesso (cf. ínfra).
1 11111 o, "Fator de individuação', ele se torna o alvo da interven-
O movimento de autonomização relativa dos atores de certos
grupos sociais não cessa de se acentuar, na medida em que os qua- II I P I {fica:a mais notável é a pesquisa anatômica por meio da

dros sociais da economia medieval se despedaçam, com a prolife- o operada no corpo humano. O tecido comunitário, que
I h éculos, malgrado as disparidades sociais, as diferentes
ração dos interesses privados. Com efeito, a economia medieval
I 11' Ia sociedade sob a égide da teologia cristã e das tradições
I 111111 li, começa, portanto, a se distender. A estruturação indi-
17. CHASTEL, A. Le grand atelier d'ltalie (1500-1640). Paris: Gallimard, 1965, I11 1II 1.1 aminha lentamente no seio do universo das práticas e
p. 17755. 1111111 illdades do Renascimento. Limitado inicialmente, e por
18. BURCKHARDT, J. La civilisation de Ia Renaissance en Italie. Op. cit., I I III s, a certas camadas sociais privilegiadas, a certas zo-
p.1185s.

55
54
nas geográficas, essencialmente às cidades ..., o indivíduo se distin- lu r nnh cimento, a distinção feita entre o corpo e a pessoa huma-
gue de seus semelhantes. Simultaneamente, o recuo, em seguida 1IIIIIllu2 simultaneamente uma mutação ontológica decisiva. É na
o abandono da visão teológica da natureza, leva -o a considerar o 111 I II~ do corpo, na episteme ocidental, que desembocam esses
O
mundo que o cerca como uma forma pura, indiferente, uma forma 1111/ ntes procedimentos".
ontologicamente vazia que, doravante, somente a mão do homem 111 riormente o corpo não está singularizado do sujeito ao
tem a autoridade de fabricar. Essa mudança de afetação do lugar I ti .mpresta um rosto. O homem é indissociável de seu corpo,
do homem no seio do cosmo singulariza as camadas burguesas. A II linda não está submetido a esse singular paradoxo de ter um
individuação do homem vai de par com a dessacralização da natu- 111 I o. Durante toda a duração da Idade Média, as dissecções são
reza. Neste mundo da divisão, o corpo se torna fronteira entre um 11111 I Idas, impensáveis mesmo. A introdução violenta do utensílio
homem e outro. Perdendo seu enraizamento na comunidade dos 1111 I MpOS seria uma violação do ser humano, fruto da criação
homens, afastando-se do cosmo, o homem das camadas eruditas 1I 1
IHl. Além disso, seria atentar contra a pele e a carne do mun-
do Renascimento considera o fato de sua encarnação sob um ân- 1'1 N universo dos valores medievais e renascentistas, o homem
gulo contingente. Ele se descobre entulhado de um corpo. Forma I tomado pelo universo, ele condensa o cosmo. O corpo não é
ontologicamente vazia, senão depreciada, acidental, um obstáculo II1 V I do homem ou do mundo: ele é o homem e é, na devida
ao conhecimento do mundo circundante (infra). Porque, confor- 1 'II1 1orção, o cosmos. Com os anatomistas, e, sobretudo, a partir
me veremos, o corpo é um resto. Ele não é mais o sinal da presença 1I1 I corporis humani fabrica (1543) de Vesalius, uma distinção
humana, indiscernível do homem: ele é sua forma acessória. A de- 1i111'1i ita nasce na episteme ocidental entre o homem e seu corpo.
finição moderna do corpo implica que o homem esteja separado uusce o dualismo contemporâneo que, de um modo igualmen-
do cosmo, separado dos outros, separado de si mesmo. O corpo é mplícito, considera o corpo isoladamente, em uma espécie de
o resíduo desses três retiros. "eI rença em relação ao homem ao qual empresta seu rosto. O
"11 está associado ao ter e não ao ser. Mas as ambiguidades que
I dls eminam pela obra de Vesalius são a surpreendente ilustra-
2.9 O homem anatomizado I II Ia dificuldade dessa passagem.

Índice fundamental dessa mudança de mentalidade, que auto- A primeiras dissecções, praticadas pelos anatomistas para fins
'111
nomiza o indivíduo e projeta uma luz particular sobre o corpo hu- I formação e de conhecimento, testemunham uma mudança con-
mano: a constituição do saber anatômico na Itália do Quattrocen- Illt'rável na história das mentalidades ocidentais. Com os anato-

to, nas universidades de Pádua, Veneza e Florença essencialmente, 1111 tas, o corpo deixa de se esgotar totalmente na significação da

marca uma mutação antropológica proeminente. Com as primeiras l'll.s nça humana. O corpo é posto em suspensão, dissociado do

dissecções oficiais, no começo do século Xv, seguida da banalização hum m; ele é estudado por si mesmo, como realidade autônoma.

relativa dessa prática na Europa dos séculos XVI-XVII, acontece


um dos momentos-chave do individualismo ocidental. Na ordem 1" Sobre a história da dissecção e suas consequências antropológícas, ct LE
11I TON, D. La chair à vif... Op. cit.

56
57
Ele deixa de ser o signo irredutível da imanência do homem e da 11 I1Ilha tomado por cadáveres humanos ressecados e preparados
ubiquidade do cosmo. Se definirmos o corpo moderno como o in- li" 11111 exame dos ossos), aconteceu-lhe frequentemente de taxar
dício de um rompimento do homem consigo mesmo, de um rom- v clamente de erro os antigos médicos que tinham praticado
111I11
pimento entre o homem e os outros, e de um rompimento entre tI ~~õ s de seres humanos. Além disso, poderíamos encontrar
o homem e o cosmo, encontramos pela primeira vez esses dife- I I1 numerosas conclusões errôneas no que concerne aos próprios
rentes momentos no empreendimento iconoclasta dos primeiros 1111II OS"21.
Até o século XVI, o conhecimento do interior invisível
anatomistas, e, singularmente, a partir de Vesalius. Entretanto, essa I, 01'1 é fornecido pelos comentários feitos em torno da obra
distinção operada entre a presença humana e o corpo, conceden- I, I 11no. Mesmo Vesalius, malgrado os arranhões que não soube
I

do a este último o privilégio de ser cientificamente interrogado de 111111


li', permanece em certos pontos influenciado por seu ilustre
maneira específica, indiferentemente a qualquer outra referência I I, I II "S r. De fato, os tratados de anatomia anteriores ao século XVI
(ao homem, à natureza, à sociedade ...), só o é em seu período nas- 1"111m-se, sobretudo, na anatomia suína, então considerada pouco
cente, ainda assombrado, por um longo tempo, pelas representa- 11111 struturalmente daquela do homem. Se o corpo humano é
ções anteriores, como o ilustram de maneira estranha as gravuras II1I V l, é que o homem, fragmento da comunidade e do universo,
da grande obra de Vesalius, ou aquelas de numerosos tratados de 111111
ável. Ainda em 1300, o Papa Bonifácio VIII se insurge con-
anatomia dos séculos XVI -XVII. "A princípio, escreve R. Caillois a I ',I ruzadas, que fazem cozinhar a carne dos altos personagens
esse respeito, não deveria existir imagens mais sujeitadas a serem 111111
IIlH m terra estrangeira, para transportar mais comodamente

estritamente documentárias, uma vez que, neste domínio, toda I' 1" leto até sua terra natal para serem inumados. Sinal, aliás, de
fantasia é culpada e perigosa'?". À objetividade almejada da figura 1" • P ira os contemporâneos, o homem está sempre associado ao
anatômica, durante muito tempo, com efeito, ajuntam-se suple- 11I IIl'pO, de que não saberíamos distinguir um do outro. Mas Bo-
mentos saídos de um imaginário inquieto, e até mesmo torturado. I I I I) VIU, em sua bula De Sepulturis, condena rigorosamente, em
A dissecção aplicada ao ~omem não é um empreendimento I 11111
do dogma da ressurreição, a redução do cadáver ao estado
desconhecido antes do Renascimento. Raramente, sem dúvida, 1 I I I leto. O cadáver não pode ser desmembrado, deteriorado,
mas parece que os antigos a praticavam. Talvez Galeno tenha aber- I 1.1ti , sem comprometer as condições da salvação do homem
to alguns cadáveres. Entretanto, Vesalius, irônico, sublinha que as 1 empre encarna. Prova também, mas de outra forma, de
retificações trazidas às suas obras por uma prática mais regular da I" 11 • rpo permanece o signo do homem. Colocar o corpo em
anatomia humana "nos demonstram claramente que ele próprio '. ,LI~)s é quebrar a integridade humana, é arriscar comprometer
jamais procedeu à dissecção de um cadáver humano ainda fresco.
Induzido a erro por suas dissecções de macacos (admitamos que ele
I VI ,1\L1US,
A.La fabrique du corps humain - ActesSud-Inserm.ls.l.l: Is.e.I,
I', I . 37. Essapequenaobra billngue (latim-francês)infelizmentesó retoma
I'" 1.1\10de Vesaliusà sua obra. Prefácioque permaneceapaixonantepara
20. CAILLOIS, R. "Aucoeurdu fantastique".Cohérences aventureuses. Paris: 111111116riada anatomiae, portanto,tambémsobreo pensamentodo corpono
Gallimard,ls.d.l, p. 166. "1111111
ocidental.

58 59
suas chances na perspectiva da ressurreição. O corpo pertence ao 111 t rejubila-te de que nosso criador tenha provido o intelecto de
registro do ser (o homem é seu corpo, mesmo se é também outra I ti .xcelência de instrumento:' Tais são as palavras significativas
coisa), ele não está ainda estabelecido segundo o registro do ter (ter I nnscrvadas por Leonardo em seus Quaderni. E, com efeito, as vias
um corpo, eventualmente distinto de si). "I matomía moderna são desbravadas por dois homens bem des-
Mas sob a égide de um emaranhado de fatores sociais, econômi- I11I ilhantes. Mesmo se a história concede sua boa fortuna a Vesa-
cos, políticos, demo gráficos ete., cujos detalhes das circunstâncias III (L514-1564), Leonardo (1452-1519) o precede nessa aventura,
ultrapassam o quadro deste estudo, a trama cultural se transforma, I ando uma trintena de cadáveres e realizando inúmeras notas
as tradições populares são combatidas pelas camadas dirigentes, II I rtórios sobre a anatomia humana. Mas os manuscritos de Leo-
o empreendimento da teologia sobre os espíritos se desnuda pou- 11111 ti têm apenas uma influência reduzida em sua época, e depois,
co a pouco, abrindo caminho a uma secularização do olhar sobre 1'"1 um longo tempo, quase secreta, devido à incúria de seu herdei-
o mundo, e a uma busca de racionalidade que se persegue ainda 111, l'rancisco Melzi, que se contenta, por cinquenta anos, em copiar
hoje. A partir de Galileu, as lógicas intelectuais movimentadas em 11111 nte alguns fragmentos do manuscrito consagrado à pintura.
uma constelação de domínios pelas camadas eruditas dos séculos I 111) rdo da Vinci jamais imprimiu suas ideias ou seus desenhos.
XVI -XVII não cessam de ampliar seu progresso. Ao encontro das 111 11 reensível pela extensão de suas curiosidades e de seus talen-
tradições populares e das posições cristãs, a racionalidade segue 111 , não o foi menos para os pesquisadores dos séculos ulteriores.
seu curso. E a abertura dos corpos terá desempenhado um papel I 1'11 rme observa Georges Sarton, Leonardo desdenhou de duas
na dinâmica da civilização que não se pode negligenciar. Uma das 111 nções maiores de sua época: a tipografia e a gravura", que te-
fontes de nossa atual representação do corpo (e, portanto, do ho- IIIIl odido fazer a sua obra entrar no século e perenizá-la, ao
mem) se cristaliza aí. Com Vesalíus, uma antropologia de outra or- "t' de deixá-Ia dispersa e ao abandono. Os tratados projetados
dem se anuncia, a qual inaugura um rompimento (não ainda com- 1111 I; onardo sobre a pintura ou a anatomia não veem mais o dia
pletamente consumado) com aquela anterior, fazendo do homem II1 qu numerosas das suas invenções recolhidas somente em seus
(e, portanto, de seu corpo) uma parcela do cosmos. A anatomia Ilr,rI rni. Por ocasião da morte de Melzi, estes últimos passaram
vesaliana está um tanto quanto afastada daquela que caracteriza I 11\ em mão antes de conhecer difusão mais ampla, sobretudo
hoje as ciências biomédicas, mas não é isso, para nós, o essencial. I 1 r, uttr de 1796, quando Chamberlaine reproduz uma parte dos
A ruptura epistemológica de Vesalius torna possível o pensamento I I nhos anatômicos em um volume. Foi, sobretudo, a possíbili-
moderno do corpo, ainda que ele seja apenas seu anunciador. IlIh d os impressores reproduzirem os manuscritos em fac-símí-
I 1111\ final do século XIX) que tornou definitivamente conhecidas

2.10 Leonardo da Vinci e Vesalius

"Ó tu que te entregas a especulações sobre essa máquina que é AI TON, G. "Léonard de Vinci ingénieur et savant". Léonard de Vinci et
111 1ft nce scientifique du XVlesiecle. Paris: PUF, 1953. Cf. tb. nesse mesmo
a nossa, não te entristeças por conhecê-Ia pela morte de outrem,
,111111 , BELT, E. "Les dissections anatomiques de Léonard de Vinci".

60 61
a amplitude e a qualidade do trabalho de Leonardo em matéria de I • lltos, relativamente livres em relação à religião; eles penetram
anatomia. Vesalius, sem dúvida, jamais teve conhecimento desses '111 rocosmo com a mesma independência de espírito que Ga-
desenhos e desses comentários, e é a ele que compete o privilégio I11 I, I' vogando com um golpe matemático o espaço milenar da
de introduzir o saber anatômico no corpus da ciência moderna. ,I \( o. M.C. Pouchelle tem razão em sugerir que, ao abrir o
As primeiras dissecções oficiais aconteceram nas universidades , '11111 h umano, os anatomistas "desbravavam talvez o caminho de
italianas, no começo do século XlV, tomando por objeto o cadá- 1 11I1 I descobertas, fendendo, com as fronteiras do corpo, aquelas
ver de condenados. Elas se sucedem, seguidas de intervalos regu- 111 Inundo terrestre e do macrocosmo'?".
lares, sob o controle da Igreja, que mede com rigor as autoriza- primeiras lições de anatomia, efetuadas a partir de um ca-
ções conferidas. Donde a solenidade dessas primeiras dissecções: " organizam-se à maneira de um comentário de Galeno, e a
lentas cerimônias desdobradas em vários dias, realizadas com fins II I 11 ia em relação ao corpo dissecado traduz uma sutil hierar-
pedagógicos para um público de cirurgiões, barbeiros, médicos 1"1, ocial. Uma miniatura do tratado de Guy de Chauliac (1363)
e estudantes. Elas se generalizam no século XVI, e transbordam '1'11 idmiravelmente essa topografia simbólica, toda articulada
então sua intenção original para ampliarem-se à maneira de um 1111tII'110 da relação com o corpo. A cena se passa na Universidade
espetáculo à curiosidade de um auditório heterogêneo. Os teatros I Montpellier, onde a dissecção é praticada, a título excepcional,
anatômicos são mencionados nos guias de viagem. M. Veillon" It .I,. L315. Um pouco afastado da mesa onde repousam os des-
cita um texto de 1690, que relata a presença regular de quatrocen- I '10 l/e magister, com uma obra de Galeno à mão, contenta-se em
tos a quinhentos espectadores por ocasião das sessões públicas de I I , 111 voz alta o texto consagrado. Em sua outra mão, a distância,
anatomia nos jardins do rei. Lembramo-nos, aliás, da proposta de 1, li signa os órgãos aos quais se refere. Aqueles que retalham o
Diafoirus à Angélique, em O doente imaginário: "Com a permissão "'IHI pertencem a duas categorias diferentes de barbeiros. O que
também do senhor, eu vos convido a vir ver um dia desses, para 11,1 \ carne é iletrado, e o segundo, que extrai os órgãos para
vos divertir, a dissecção de uma mulher, sobre a qual eu devo re- II I ntar as intenções do mestre, é mais instruído. Nessa minia-
fletir" (Ato II, cena v). As mentalidades desse século tornaram-se '''1 " vários eclesiásticos estão presentes. Desde a bula de Bonifá-
hospitaleiras a fatos que teriam enchido de horror os homens das 111 V 111, a Igreja comanda as autorizações para se proceder ao ato
épocas anteriores, entre os quais aqueles discípulos de Galeno, que 111" mico. Uma religiosa, as mãos juntas em gesto de oração, e um
exercem a profissão de tratar. O corpo não fala mais para o homem 1'111 re stão lá para velar pela salvação da mulher assim exposta à
cujo rosto ele porta: um e outro são distintos. Os anatomistas par- urlosídade pública. Nota-se ainda a gravidade dos rostos, a sole-
tem à conquista do segredo da carne, indiferentes às tradições, aos 111.1 ItI das posturas.

23. VEILLON, M. "La naissance de Ia curiosité anatomique en France (milieu du


XW-XVW siêcles)". Ethique médicale et droits de I'homme - Actes Sud-Inserm. I I'OUCHELLE, M.-C. Corps et cirurgie à I'apogée du Moyen Age. Op. cit.,
[s. 1.): ls.e.l, 1988, p. 233-250. 1 1)7.

62 63
Outra ilustração, tirada da Anatomie de Mondo de Luzzi (1532), I processo que acarreta a invenção do corpo no pensamento
de Latrian e J anot, ilustra melhor ainda a preocupação com a distân- " ti 11111. E, no entanto, a Fabrica discorre longamente sobre os
cia do magister. No alto da tribuna este último lê uma obra de Gale- II 11 s mentais que é preciso ainda suprimir para que o corpo
no, designando vagamente, com a mão, os órgãos que um barbeiro II r unsiderado, de maneira definitiva, como virtualmente distinto
se apressa em descobrir, sob as ordens de um letrado, que repete 111111111 m.

as palavras do mestre. Nessa prancha, os religiosos desapareceram. " illus nasceu em Bruxelas, em 1514. A casa de seus pais não
Entre os dois tratados é deflagrada uma mudança de mentalidade. 1'111 I(I afastada dos lugares onde acontecem as execuções capitais.
I1 toricamente, aliás, uma parte da ciência anatõmica nas-
, perfila à sombra dos cadafalsos (ou na solidão noturna
2.11 A fábrica de Vesalius
I mitérios). Os cadáveres permanecem instalados aí até seu
"Enfim, em Pádua, na escola mais célebre do universo [...], con- 1111,111\ into. As primeiras observações de Vesalius sobre a anato-
sagrei minhas preocupações diligentes às pesquisas sobre a estrutu- II humana encontram suas fontes neste olhar distanciado, que
ra do homem, e, rejeitando os métodos ridículos em uso nas outras 111 rnetodologicamente o homem para considerar somente
universidades, ocupei-me da anatomia e a ensinei de maneira a que 11111'°' Vesalius faz seus estudos em Lovaina, depois em Paris,
nada daquilo que nos transmitiram os antigos permanecesse na 11 ti , qundo a lenda, ele volta e meia frequenta os cemitérios e
sombra?". Em 1543, é publicado na Basileia o De humani corporis I' ulhulos para procurar os cadáveres dos quais precisa para suas
fabrica, de Vesalius. Um enorme tratado de 700 páginas, contendo II S clandestinas. Ele parte em seguida para o norte da Itá-
300 ilustrações gravadas, sem dúvida, por [ean de Calcar, um alu- I 111 O propício às experiências iconoclastas. Em 1537, torna-se
no de Ticiano. Desde o início Vesalius afirma sua independência 11111111 m medicina pela Universidade de Pádua.
de espírito em relação à tradição galênica. O frontispício da obra lustrações da Fabrica esboçam uma mutação epistemoló-
(realizado talvez por Ticiano) mostra simbolicamente Vesalius t , II r gada de consequências, mas elas rendem um tributo síg-
procedendo, ele mesmo, à intervenção em um cadáver. A gravura 11 1I Y) às representações anteriores do homem e do cosmos. O
seguinte o mostra de novo, convidando o leitor a aprender a lição ,11" nlsta e o artista não decalcam nas pranchas uma observação
de sua obra. Ele toma o braço, posto a nu, de um esfolado, dis- II \ d interior tornado visível do corpo humano. A transpo-
pondo ao seu lado uma pena e um papel para anotar o detalhe II , I\ pessura do corpo sobre o espaço em duas dimensões
de sua observação. Com André Vesalius a anatomia livra-se de ~lua torna toda duplicação impossível. O artista, traçando
sua sujeição a Galeno. A aparição da Fabrica, no mesmo ano em 111 I anatõmicas sob o olhar exigente e cúmplice de Vesalius,
que De Revolutionibus, de Copérnico, situa uma data importante 'I 1 se no interior de uma convenção, de um estilo. Ele opera
" I I, msposição simbólica, em que a preocupação com a exati-

25. VESALlUS, A. La fabrique ... Op. cit., p. 35. Sobre a via e a obra de Vesalius,
, 1111\\ a fidelidade ao objeto, emaranha-se no jogo confuso do
cf. O'MALLEY, C.D. Andreas Vesalins of Brussels, 1514-1564. Berkeley: Univer- I I. 11 morte, da angústia. A pintura dos esfolados está longe
sity of California Press, 1964.

65
64
de ser efetivamente neutra nesse momento, ainda nascente, de sua I, of recem, ao longo de suas páginas, as situações insólitas de
reprodução pela mão do gravador. O inconsciente do artista, aque- 11\1 mu eu imaginário da tortura, um catálogo onírico do insus-
le do anatomista, que vela pela fidelidade do detalhe, intervém no 11I v L A necessidade do anatomista não é indene de culpa, e
traçado das figuras, na escolha de suas posturas, do fundo que as I11I o deixa de transparecer através das figuras. O corpo cavado,
acolhe. Além desse aspecto individual, e a comandando, intervém II1 Irado, testemunha assim, simbolicamente, o homem que ele
em negativo a trama sacio cultural, isto é, a soma dos interditos, I 1111 Iria, e lembra sua inviolabilidade passada. "Nestes documen-
das resistências enraizadas nos espíritos ao olhar do ato anatõmico. I , 1\ )5 quais o que conta é a precisão, afiara mais de verdadeiro
A angústia e a culpa cercam as dissecções e suscitam numerosas " I 1'10 do que nas mais delirantes invenções de [erônirno Bosch",
objeções em relação a essa violação da integridade humana, e a Ir. I~ ger Caíllois". Vesalius representa seus esfolados, ou seus
esse voyeurismo mórbido do interior do corpo. Por muito tem- (111\ .tos, sob uma forma humanizada, em atitude, e não inerte e
po, até o século XVIII, e mesmo além, cada tratado de anatomia é I, I11 nvida dos sinais da vida. O corpo se apaga perante a presença
uma resolução particular desse debate interior, que opõe a sede de 111i.u Ia, que transparece na estílização dos gestos do cadáver. Em
conhecimento do anatomista ao seu próprio inconsciente, e às res- illus, e muitos outros, o corpo epistemologicamente dissociado
sonâncias afetivas dos valores implícitos da época ancorados nele. I, 110m rn, tornado autônomo, é contradito pelo corpo figurado,
1111.1<10, mas homem, antes de tudo. A preocupação do anatomis-
As ilustrações da Fabrica, e aquelas de numerosos outros tra-
tados até o século XVIII, apresentam corpos supliciados, ou al- 11111\ a exatidão é sobrecarregada pela repressão cultural de sua

ternam imagens carregadas de angústia ou de horror tranquilo". " '111 sa. Certas ilustrações dizem infinitamente mais do que seu
11111 \ reditava. O corpo protesta contra o gesto que o isola da
1I I 11~ humana. Por sua insistência em ser, ele testemunha que é
26. Roger Caillois, buscando uma definição do fantástico fora dos caminhos ba-
tidos, fora da pesquisa intencional dos escritores ou dos artistas, consagra belas 1\ '1" um homem. O corpo dissecado realmente pelo anatomista
páginas a esses tratados de anatomia: CAILLOIS, R. Au coeur du fantastique. Op. 11110\ sua revanche simbólica por meio do corpo figurado, que
cit., p. 165ss. Evocando imagens carregadas de angústia, pensamos em certas
ilustrações de Vesalius, de T. Bertholin (o frontispício de sua Anatomia Reformata
lillll\ sua condição de homem.
(1651) é um modelo do gênero), de G. Bilos, d'Albinus (assim seus esqueletos I \1111 rariamente às aparências, Vesalius não retalha um cadáver,
meditando, subitamente confrontados a hipopótamos em seus Tabulae sce/eti et
11 [u permanece um homem indissociável de seu corpo, um
musculorum corporis humeni), quanto ao horror tranquilo, os exemplos seriam
numerosos: Gauthier d'Agauty, p. ex., com seu famoso "anjo da anatomia" muito I 1111 11\ que urra sob a incisão do escalpelo, que medita sobre sua
aproveitado pelos surrealistas; outras ilustrações ainda nas quais ele "escancara I II11 Ii morte, e desvela, em seus gestuais de supliciado, a recu-
o dorso ou o peito de sorridentes jovens mulheres, admiravelmente penteadas e
vestidas, para investigar a economia dos tecidos de seus corpos" (CAILLOIS, R. t votada ao fracasso, porquanto a dissecção aconteceu) desse
Au coeur du fantastique. Op. cit., p. 172) ou Juan Valverde (1563), Charles Es- li, untológíco, que faz do corpo um puro artifício da pessoa,
tienne (1546) etc. Para um apanhado sobre os tratados de anatomia, remetemos
ta última a um destino solitário, separado do mundo, se-
a BINET, J.-L. & DESCARGUES, P. Dessins et traités d'anatomie. Paris: Chêne,
1980 .• CHOULANT, L. History and bibliography of anatomie illustration. Nova
York: Hoffner, 1962 .• MAYOR, A.H. Artists and anatomists. Nova York: Metro-
politan Museum, 1984. , 111 15, R. Au coeur du fantastique. Op. cit., p. 173.

66 67
parado dos outros, e órfão de si mesmo, afligido que é por esse Vesalius torna possível o caminho, mas ele permanece no li-
apêndice de carne que modela seu rosto. "O homem de Vesalius, 1I111r.Ele testemunha, por um período, a prática e a figuração
constata G. Canguilhem, permanece um sujeito responsável por unutômica, no curso do qual aquele que ousa a dissecção não está
suas atitudes. A iniciativa da postura, segundo a qual ele se oferece 1111 'iramente liberado das antigas representações, enraizadas não
ao exame, lhe pertence, e não ao espectador'?". Melhor ainda, os umente na consciência, na qual podem ser combatidas, mas tam-
esfolados de Vesalius assumem as poses dos atores convencionais 111' m e, sobretudo, no inconsciente cultural do pesquisador, em que

da Commedia deliarte", 111/1 prosseguem, por um longo tempo, sua influência".


A antiga inserção do homem como figura do universo não apa- bjetivamente cindido de si mesmo, reduzido ao estado de
rece mais do que em negativo nas figuras de Vesalius. Reduzido à 1111'10, o esfolado de Vesalius não cessa de manifestar, pela huma-
condição de esfolado e de esqueleto, o homem dá simbolicamen- uklade de suas posturas, a recusa desse estado de fato. Objetiva-
te férias ao cosmos. A significação do corpo não remete a nada 1I11'ntedistinto dos outros homens, tornado indivíduo, a estilização
mais. O microcosmo é tornado para Vesalius uma hipótese inútil: I h uas atitudes mostra, no entanto, uma ancoragem social intacta:
o corpo não é outra coisa senão o corpo. E, no entanto, como I I•.permanece um homem sob o olhar. E enfim, objetivamente se-
anteriormente, uma transição se impõe ao inconsciente pessoal Ihll' Ido do cosmos, ele banha em uma paisagem natural, caricatura
e cultural do anatomista. Destacado do corpo humano, o cosmos 10 mícrocosmo, mas prova de que Vesalius não pode ainda fazê-Ia
é relegado negligentemente ao segundo plano, ele se degrada em li 'parecer totalmente".
paisagem destinada a adocicar a exposição demasiadamente crua
dos esfolados: então aparecem esses campos trabalhados, esses 111 I Ichard Selzer, cirurgião americano, evoca um retrato de Vesalius que orna
"IIIV r de uma célebre faculdade de medicina. Ele nota o quanto "seu rosto está
campanários, esses vilarejos minúsculos, essas colinas. Um uni-
IlIlpll nado de uma expressão de culpa, de melancolia e de medo. Ele sabe que
verso socializado cerca as figuras e tempera sua solidão, mas a til' põem ao mal, à transgressão, mas ele não pode se impedir porque é um fa-
presença dos outros homens, como aquela do cosmos, reduz-se li 1111) r... ] eu compreendo Vesalius. Hoje ainda, após tantas viagens para dentro,
11 rlmento o mesmo sentimento de transgressão de um interdito quando con-
apenas a esses sinais. A partir de Vesalius, o homem cosmológico I 1I1!l1 O interior do corpo, o mesmo medo irracional de cometer uma má ação
da época anterior não é mais do que a caricatura de si mesmo: um I' 1.1 qu I serei castigado. Desde que pensemos nela, a visão dos nossos órgãos
1111 I r cusada. A quantos dentre nós é dado contemplar sua própria vesícula,
cosmos em retalhos se oferece como o mundo por detrás do ho-
" I nr ção, e sobreviver. A geografia secreta de nosso corpo é uma cabeça de
mem anatomizado, ele se tornou decoração (de-corpo, se poderia 111 dll , que cega o olho, um tanto quanto presunçoso, para olhá-Ia no rosto"

dizer brincando com a assonância). I I t 1I R, R. La chair et te couteu - Confessions d'un chirurgien. Paris: Seuil,
/, p. 17 [traduzido do inglêsl.

1 {( rges Canguilhem adverte que o homem de Vesalius inscreve seu destino


11111111 mundo, em vários aspectos, pré-copernicano: "Sobre a terra, que ele pode
28. CANGUILHEM, G. "L'homme de Vesalius dans le monde de Copernic, 1543". IIII! I I r r imóvel, o homem de Vesalius conserva a postura aristotélica: ele está
Estudes d'histoire et de philosophie des sciences. Paris: Vrin, 1983. I \I, beça erguida para o alto do mundo, em correspondência com a hierar-
29. Segundo a advertência de GANDELMAN, C. "L'art comme Mortificatio carnis". 11111 do lementos, análogo e espelho à hierarquia dos seres" CCANGUILHEM, G.

Le regard dans le texte. Paris: Méridiens-Klincksieck, 1986, p. 54-56. 111/111111


de Vesalius dans le monde de Copernic, 1543". Op. cit., p. 29).

69
68
o homem de Vesalius anuncia o nascimento de um conceito l.lgado ao individualismo, isto é, ao relaxamento dos vínculos
moderno: aquele de corpo, mas que permanece, em certos aspec- IIj I I os atores e ao aspecto mais voluntário dos contatos, com a
tos, sob a dependência da concepção anterior de homem como dnrização crescente da vida privada oposta à vida pública, emer-
microcosmo. Penetrando sua carne, isolando o corpo, distinguin- '. 110 século XVI um sentimento novo: a curiosidade". Contem-
do-o do homem, ele também toma distância da tradição. Mas ele 11111 n os da legitimação da dissecção para fins de pesquisa médica
se atém ainda ao limite do individualismo e em um universo II ti ensino, particulares instalam em seu domicílio cabines ana-
I

pré-copernicano. Apesar de tudo, a baliza posta por Vesalius é 111111 as onde reúnem as curiosidades que o corpo humano é sus-
essencial para que o homem aprenda a fazer o luto do cosmos e de • I V 'I de conter, ou mesmo os despojos de homens anatomizados,
sua comunidade, e para que se descubra logo subsumido pelo co- 111111 lima predileção por toda "monstruosidade': Na possibilidade
gito. O cogito que funda precisamente a legitimidade do indivíduo, 01. I -unír, para uso pessoal, cadáveres humanos, por mera curiosi-
do homem que se autoriza, antes de tudo, a si mesmo. De Vesalius I li i! 1 para coleção, da mesma forma que se reúnem outros obje-
a Descartes, da Fabrica ao Discours de Ia méthode, fez-se o luto no 11, .m que se perceba nesta prática a menor ruptura axiológica,
pensamento ocidental: em certo nível, o corpo é purificado de toda 10111- e de novo o resvalamento do corpo para fora da pessoa, e
referência à natureza e ao homem que ele encarna. 1,1 l racterização como fim em si mesmo, suscetível de alimentar
Em Descartes o corpo está submetido a uma metáfora mecâni- 11 • I igações particulares: objeto anatômico para perscrutar sua
ca, fato revelador do resvalamento que se operou. Ao contrário, a n utura interna, objeto de estudos estéticos para definir as pro-
metáfora orgânica se faz mais rara para designar o campo social. 1'"1 ( ideais, o corpo também se afigura objeto de exibição".

O individualismo ganhou um terreno considerável. O corpo, "mo- ,olecionam-se os despojos ou os fragmentos anatômicos por

delo por excelência de todo sistema finito', segundo a justa obser- I" I le sua particularidade, ou para melhor se impregnar, à ima-
111 ti Ambrósio Pare, de um conhecimento direto e mais metó-
vação de Mary Douglas", não é mais apropriado para figurar uma
I.•I I corpo, a fim de melhor nutrir a prática médica. Cindido
coletividade humana cuja dimensão holista começa a se distender.
I. homem que ele encarna, e do qual não é mais do que o signo
Entre os séculos XVI e XVIII nasce o homem da Modernidade:
I .ulo de valor, vestígio tornado indiferente de alguém que não é
um homem cindido de si mesmo (aqui sob os auspícios da divisão
1111 I I ma-se lícito, a partir dessa representação, procurar e guar-
ontológica entre o corpo e o homem), cindido dos outros (o cogito
não é o cogitamus) e cindido do cosmos (doravante o corpo não
',lll1r a curiosidade, cf. POMIAN, K. Coltectionneurs, amateurs et cu-rieux
pleiteia mais do que por si mesmo; desenraizado do resto do uni- /I ~ nise. XW-XVIW siàcles. Paris: Gallimard, 1987. r

verso, ele encontra seu fim em si mesmo, ele não é mais o eco de I pr ciso ainda sublinhar os tráficos de múmias entre o Egito e a França
1110 miúde confeccionadas pouco tempo antes da venda com cadáveres de
um cosmos humanizado).
• IV I e doentes) que caracterizam os séculos XVI e XVIII. Certos médicos
1III I I) quais se insurge A. Pare, recomendam, com efeito, tomar da "múmia':
, cl
fender contra inúmeros males e para o prolongamento da vida, cf. LE
32. DOUGLAS, M. De Ia souillure. Paris: Maspero, [s.d.l, p. 13l. I ION, D. La chair à vif ... Op. cit., p. 118ss.

70
II
dar, para sua edíficação pessoal, os tumores, as pedras, os fetos, os t 11" -rltc Yourcenar conta a história de Zenão, personagem fie-

membros malformados, ou conservar despojos anatomizados. Em I! I I 111lI! plausível, ao mesmo tempo médico, alquimista, filósofo,

1582, Ambrósio Pare assim relata a posse de um despojo humano I li I -rn 1510. No curso de suas peregrinações, ele se entrega a
do qual se serve para revisar sua anatomia, de certa forma: 'S landestinas, notadamente com um confrade cujo filho
Posso dizer que tenho um corpo em minha casa, o qual me m rrer. Zenão se lembra: "No quarto impregnado de vi-
foi dado pelo tenente criminal chamado Seguier, barão de La I I I 011 Ic dissecamos, esse morto não era mais filho ou amigo,
Verriere, após ter sido executado pela justiça, há vinte e sete 11 11111 nte um belo exemplar da máquina humana [...]"37. A me-
anos passados, que eu anatomizei: levantei quase todos os
II II i moderna nasce nessa fratura ontológica, e a imagem que ela
músculos do corpo da parte destra [...] a parte sinistra eu dei-
xei inteira: para melhor conservá-Ia, furei-o com uma agulha II1 10 orpo humano nasce dessas representações anatõmicas
em vários lugares, a fim de que o licor penetrasse no profundo I III I ' ses corpos sem vida, onde o homem não é mais. Uma
dos músculos e em outras partes: e veern-se ainda presentes
IlIlf til surpreendente desse desprendimento, desse despojamen-
os pulmões inteiros, coração, diafragma, mediastino, estôma~
go, rins, aparentemente os pelos da barba, e outras partes, ate .",1111 gico: em 1560, o espanhol [uan Valverde publica seu Ana-
mesmo as unhas, as quais eu percebi evidentemente cresce- II/hl dcl corpo humano, sob a inspiração dos trabalhos de Vesa-
rem de novo, após tê-Ias, por diversas vezes, cortado". III Uma das gravuras do tratado mostra um esfolado brandindo
A invenção do corpo como conceito autônomo implica uma II 11 le, semelhante a uma flanela, onde se adivinham os orifícios
mutação do status do homem. A antropologia racionalista anun- I" III to. Sua mão esquerda segura ainda, com firmeza, a faca de
ciada por certas correntes do Renascimento, e que se realiza nos j 111 óprio suplício. Mas um artista já desbravara o caminho. No

séculos seguintes, não está mais inclusa no interior de umacos- III I tl do luizo final, da Capela Sistina (1536-1541), Miguelangelo

mologia; ela propõe a singularidade do homem, sua solidão, e pa- 11,111 I S a si mesmo esfolado. Ele pinta seu próprio rosto sobre a
raleIam ente atualiza um resto que se chama o corpo. O saber ana- II 1l'rancada no martírio de São Bartolomeu, uma figura impo-
tõmico consagra a autonomia do corpo e a espécie de suspensão I III!. situado não longe do Cristo-juiz.
do homem que ele, no entanto, encarna". Em E oeuvre au noir,

corpo como resto


35. Apud VEILLON, M. La naissance de Ia curiosité ... Op. cit., p. 237.
36. A hiperespecialização da medicina atual em torno de certas funções ou ce~os lilllre os séculos XVI e XVII, notadamente com o empreendi-
órgãos persegue hoje a mesma lógica. Tal é a contradição maior de toda m~l:ma 111 11t~ anatomista, abre-se o caminho que deprecia os saberes po-
que não é aquela da pesso,a: É o homem que está doen,te ou algum de seus orgaos,
1III,IIéSe, em contrapartida, legitima o saber biomédico nascente.
alguma de suas funções? E o doente ou a doença que e preciso tratar? ~onslderan-
do frequentemente o homem como um epifenômeno de uma alteraça~ que toca lI! r sobre o corpo se torna o apanágio mais ou menos oficial
apenas seu corpo, uma grande parte da medicina atual proclama sua fl~elldade ~
essa divisão da qual Vesalius é o anunciador. O argumento regular que e opo,sto_a
medicina moderna é o de que ela se interessa pela doença (pelo corpo, pelo orgao
Y URCENAR, M. t.:oeuvre au noir. [S.I.]: [s.e.], ls.d.l, p. 118 [Col. Le livre
doente) mais do que pelo doente mesmo. A história pessoal do sujeito é considera-
1'lIt,11e).
da como passível de ser negligenciada.

73
72
de um grupo de especialistas protegido pelas condições de racio- ) saber anatômico torna o corpo superficial, e o toma segundo
nalidade de seus discursos. A cultura erudita, que se estabelece ! 1, II \ das matérias que ele atualiza sob o escalpelo. A correspon-
por volta do século XVII, toca apenas uma minoria da popula- 1, 11111 entre a carne do homem e a carne do mundo é rompida.
ção europeia, mas esta é atuante. Ela transforma, pouco a pouco, I I I urpo não remete a mais do que a ele mesmo. O homem está
os quadros sociais e culturais. Também as tradições populares de 1IIInlo icamente separado de seu próprio corpo, que parece con-
cura continuam a manter sua influência contra ventos e marés, e /1111'1 ertamente fixado ao homem, sua aventura singular. Não é
a preservar saberes sobre o homem e o corpo, recorrendo a outras II li I 'r nte que o filósofo do cogito admita seu fascínio pela anato-
fontes, nos antípodas do saber anatômico e fisiológico. 1 li \, ma anedota relata mesmo que, a um visitante que o interroga
O divórcio do corpo no seio do mundo ocidental remete his- Illli • suas leituras, Descartes responde indicando sobre uma mesa
toricamente à cisão entre a cultura erudita e a poeira das culturas 1111 vltelo esfolado: "Eis a minha biblioteca" Lembremos dessa frase
populares, de tipo comunitário", O apagamento ritualizado do I IIH sa das Méditations: "Eu me considerei primeiramente como
corpo, tão típico da Modernidade, encontra aí suas fontes. Des- 1110 um rosto, mãos, braços, e toda essa máquina composta de
valorizado no âmbito das camadas sociais privilegiadas dos sécu- I' de carne, tal como ela aparece em um cadáver, a qual desíg-
los XVI e XVII, o corpo permanece em seu lugar central, pivô do 111 10nome corpo". A imagem do cadáver vem naturalmente sob
enraizamento do homem no tecido do mundo, para as camadas I 1'1IIIl de Descartes, denotando assim a reificação, a ausência de
populares. Duas visões do corpo se polarizam então", uma que dll! de que o corpo é objeto. Descartes prossegue em sua descri-
o deprecia, distancia, e acarreta sua caracterização enquanto, de [li li "onsiderei, além disso, que eu me alimentava, caminhava, me
certa forma, diferente do homem que ele encarna; trata-se, então, I rntava e pensava, e remeti todas essas ações à alma" A axiologia
de ter um corpo; e a outra, que mantém a identidade de substância u lcslana eleva o pensamento ao mesmo tempo em que denigre o
entre o homem e seu corpo: trata-se de ser o seu corpo. III po. Nesse sentido, sua filosofia é bem um eco do ato anatômico,
I1 distingue no homem o corpo da alma, conferindo a esta últi-
111.10 xclusivo privilégio de um valor. A afirmação do cogito como
38. R. Muchembled analisou bem o processo de estigmatização dos saberes
populares pelas elites no seio da "cultura erudita". "As camadas dirigentes têm, 111111 tda de consciência do indivíduo repousa em paralelo sobre a
sem dúvida, cada vez menos consciência, no curso dos decênios, de combater I 111 ciação do corpo; ela denota a autonomia crescente dos atores
um todo cultural. Do seu ponto de vista, só existe uma civilização: a sua. Em
face reinam a ignorância, as superstições e os abusos, quer dizer, os distancia-
1I t rtos grupos sociais em relação aos valores tradicionais que os
mentos em relação à norma, distanciamentos que é preciso corrigir para impor II wum solidariamente ao cosmos e aos outros homens. Estabele-
a todos a mesma adesão aos mesmos valores, para assegurar a estabilidade e a
I lido cogito ao invés do cogitamus, Descartes se coloca como in-
perenidade da ordem social" (MUCHEMBLED, R. Culture et culture des élites.
Op. cit., p. 227). " r lu . A divisão que ele ordena entre si e seu corpo é típica de um
39. Cf. os trabalhos de Norbert Elias, que mostram a que ponto o "saber-viver", I I 1111 de socialização no qual o indivíduo prima sobre o grupo.
as etiquetas corporais que as camadas sociais privilegiadas estabelecem nas I 'II n é também a ausência de valor que afeta o corpo, tornado ba-
relações de interação, a partir do século XIV, testemunham a preocupação em
se distinguir do vulgar, do plebeu cujos modos são considerados simplórios, cf.
I ,I tln fronteira de um homem em relação a outro. Depois de tudo,
ELlAS, N. La civilization des moeurs. [s.l.]: [s.e.], ls.d.l [Cal. Livre de Poche]. I I1'I nada mais é do que apenas um resto.

74 75
Às FONTES DE UMA REPRESENTAÇÃO
MODERNA DO CORPO

o CORPO-MÁQUINA

revolução galileana

0111 as diferentes etapas epistemológicas marcadas pelos tra-


,1111\ I Copérnico, Bruno, Kepler e, sobretudo, Galileu, a socíe-
I '\ rudita" ocidental, infinitamente minoritária, mas atuante,
I 1 \0 mundo fechado da escolástica ao universo infinito da fi-
/111 \ mccanicista. Ela se desloca, segundo a palavra de Koyré, do
\I 1111 10da aproximação, ao universo da precisão'". Passagem an-
II 11m modo de inteligibilidade a outro, mais preciso em rela-
rtos critérios culturais, que introduzem com força as novas
111 de medida, exatidão, rigor etc. Os homens do Renascimen-
m à vontade em um mundo singular, no qual os fenôrne-
II I ão exatamente percebidos, onde o tempo não estabelece,

IIIYIU' , A. Ou monde c/os à I'univers infini. Paris: Gallimard, 1973. Está


1 1 111 "te fora de questão desenvolver aqui o percurso dessa metamorfose
IIi I 11\ visão do mundo ocidental, que se inicia assim no século XVII e se
1 11, tê nossos dias com uma eficácia crescente, pelo menos no plano do
11111111 (I natureza e do homem, que é seu projeto essencial. Remetemos, pois,

1
.11111' tlvantes de Robert Lenoble, Georges Gusdorf, Alexandre Koyré ... Aqui
1[11 111 11111 ti sam apenas as incidências dessa change of mind sobre as represen-
mndernas do corpo. Importa, no entanto, precisar que essa mutação da
'111 I mundo é obra das "camadas eruditas", e que as tradições populares
I 'I Ijl nas muito lentamente afetadas.
entre os eventos e as existências, uma ordem rigorosa de sucessão, 11\ I reão. "Os três princípios dos nossos conhecimentos: os
onde o que deixou de ser pode ainda existir, onde a morte não \, I t 1\ razão e a fé, têm cada um os seus objetos separados e
impede um ser de existir ainda, e de se retirar em outros seres, des- I 1'\ zas nessa extensão:' Mas ele já mede o perigo que o
de que apresente consigo certas similitudes [...] eles que não têm I eornetria faz o homem correr: De que serve ao homem
sempre, e em toda parte, nossa certeza instintiva de que existem I II I I1 universo se ele vem a perder sua alma?
leis'". Com o século XVII e o advento da filosofia mecanicista, a I I!lU , fatura epistemológica introduzida com uma força defi-
Europa ocidental perde sua base religiosa. A reflexão sobre a na- I 11111' alileu, a fórmula do mundo é dada pelos matemáticos.
tureza, conduzida pelos filósofos, ou pelos eruditos, emancipa-se 'nh iros tornam-se os novos mestres de obras. Em 1632,
da autoridade da Igreja e das causas transcendentes; ela situa -se em ndo em seus Dialoghi um encontro de engenheiros no ar-
outro nível: à altura do homem. V neza, dissertando sobre os sistemas do mundo, Galileu
Mas se o mundo dá-se à altura do homem, está em condição de 111 I 11 I de fundação simbólica de uma dominação propria-
racionalizar o homem e de rejeitar as percepções sensoriais ao do- I I I II 1mana sobre uma natureza doravante privada de trans-
mínio da ilusão. A astronomia e a física de Galileu se escrevem em 11.\1 II in. Com Copérnico, e, sobretudo Galileu, a estrutura do
fórmulas matemáticas. Elas são abstratas, refutando os dados sen- 1111 1 I () oscila em seu eixo anterior, milenar, e projeta a terra no
soriais e o sentimento da orientação do homem no espaço. Elas são I 1111111 uo de um espaço infinito, onde torna-se impossível situar
também radicalmente estrangeiras às suas convicções religiosas, 111 111 da Revelação. Que a astronomia de Galileu seja refutada
uma vez que reduzem o espaço da Revelação a um ponto ínfimo, 111 di nitários da Igreja ignorando tudo de astronomia, e que este
imerso em um universo sem fim. Elas relativizam o lugar do Deus II unstrangído, para salvar sua vida, a abjurar suas descobertas
criador. A tampa do mundo, que tampava a cena da Revelação e da 11 I mais do que uma peripécia da história, o último sobressal-
Paixão, abre-se nos espaços infinitos que tanto assustavam Pascal. I ti I I 'reja Romana para reter um mundo que lhe escapa cada

As novas formas de conhecimento, o individualismo nascente, o 1I1.li • O sucesso provisório que ela obtém sobre o homem não
avanço do capitalismo, libertam certos homens de sua fidelidade I ti. i mpedir a difusão de suas ideias através da Europa. Uma nova
às tradições culturais e religiosas. Pascal, em quem se partilham I Ilil 10 saber, em germe nas épocas precedentes (notadamente
o espírito de geometria do Novo Mundo e o espírito de fineza do 11111 V \ alius ou Leonardo), inicia sua progressão. É a passagem da
filósofo sensível àquilo que funda a existência do homem, vive na I. uü« contemplativa à scientia activa.
angústia essa partilha entre uma época e outra ... Ele oferece nas I)()J'avante,trata-se não mais de maravilhar-se com a engenho-

Provinciales uma fórmula luminosa para caracterizar essas três 1.1 11\ do criador em cada uma de suas obras, mas de empregar
modalidades de conhecimento, doravante chamadas a uma radi- 1111.1 nergia humana para transformar a natureza ou para conhe-
I (I interior invisível do corpo. Sob a égide dos matemáticos, con-
11\ rstabelecer as causas que presidem à recorrência dos fenôme-
2. FEBVRE, L. François Rabelais et le problême de I'incroyance au XVle siécte.
Paris: Albin Michel, 1968, p. 404-409.
llil. conhecimento racional de suas leis deve dar ao homem a

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capacidade de suscitá-Ias ao seu modo ou de contrariá-Ias segun- I 1"ll1luladesse novo sistema: "O universo é uma máquina em que
do seu interesse. Esvaziada de seus mistérios, a natureza torna-se 1\III hó absolutamente coisa alguma a considerar a não ser as figuras
um "brinquedo mecânico" (Robert Lenoble) entre as mãos dos II movimentos de suas partes': escreve Descartes, fornecendo o
homens que participam dessa mutação epistemológica e técnica. I" 1I 'rpio e o programa do mecanismo. A natureza é identificada a
Importa agora tornarem-se "dominadores e possuidores da natu- 111 injunto sistemático de leis, ao caráter impessoal, não axiológi-
reza': A continuidade entre o homem e seu ambiente é denunciada II () mundo não é mais um universo de valores, mas de fatos. E de
em proveito da subordinação sem apelo do segundo ao primeiro. IIIi subordinados a uma apreensão racional, submetida à exígên-
Com o advento do pensamento mecanicista, que conduz à criação 1,1 110possível, porquanto doravante o non posse só pode engendrar
de uma relação de domínio sobre o conjunto das características do "/1111 sse: Não há mistério cuja razão não possa vir à tona.
mundo, desaparecem os hinos à natureza, associados, entretanto, à () I' lógio pelo qual se realiza a redução do tempo ao deslo-
maioria dos pensadores das épocas anteriores, de Platão aos filóso- uuruto no espaço, exorcismo do inapreensível em tangível, é a
fos do Renascimento". A consagração do modelo matemático para II i I fora privilegiada, o modelo refinado do mecanismo; o recurso
a compreensão dos dados da natureza arruína por um longo tem- JII I itima a assimilação de todos os aspectos da natureza em
po o sentimento poético ligado a este último. A aliança é rompida \11\1 i oniunto de engrenagens invariáveis cujos deslocamentos,
em nome da dominação. O conhecimento deve ser útil, racional, 11 I I s por um choque inicial e exterior, são previsíveis, por-
despido de sentimento e capaz de produzir eficácia social', O ho- 111111110
dependem de leis imutáveis. Mas o sucesso do mecanismo
mem não é mais o eco do mundo, nem o mundo o eco do homem 1111'11
\ que todos os conteúdos aparentemente irredutíveis sejam
entre o sujeito do conhecimento e seu objeto; as únicas corres- 1I!t1l lidos a esse modelo ou eliminados. E a conquista do tempo
pondências possíveis competem às matemáticas. A natureza não h I I lógío, e a espacialização da duração, oferecem uma imagem
é mais o sinal propício no qual se inscreve a existência do homem, tunlunte do fato de que nada finalmente escapa ao mecanismo. E,
natureza maternal, na qual os desígnios de Deus, impenetráveis, ,ltll I ido, o homem, ou, antes, essa parte isolada dele mesmo em
deixam sempre lugar ao milagre, e onde nada, jamais, é impossível. 1"' I tornou seu corpo.
As causalidades miraculosas cedem perante as causalidades fí- ( 11m. o século XVII chega o tempo do racional para uma par-
sicas em um mundo onde tudo é concebido segundo o modelo do I I do campo social que transtorna os sistemas simbólicos ante-
mecanismo. A perspectiva -teológíca se apaga. A máquina fornece I! 111, Mas a imensa maioria dos homens permanece no mesmo
11.110 de pensamento pré-copernicano, mesmo se em suas exis-
3. LENOBLE, R. Histoire de I'idée de nature. Paris: Albin Michel, 1969, p. 326.
11II começam a reter os efeitos desse empreendimento novo so-
Esse será, pouco a pouco, o fim do paradigma da anima mundi, a passagem
de uma concepção metafísica do mundo a uma concepção legal e mecanicista.
I ,I 11 itureza, notadamente pelas condições de trabalho, que são
4. P. ex., DESCARTES, R. Discours de Ia méthode. Paris: Garnier-Flamarion,
ls.d.l, p. 53. Descartes enfatiza os conhecimentos "que sejam extremamente
úteis à vida". Ele rejeita "essa filosofia especulativa que se ensina nas escolas". II liVRE, L. François Rabelais et le problême de I'incroyance au XVle siécie.
O veto r desse conhecimento sem escória, produtivo, é o engenheiro. ,11, p. 407.

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as suas, nas manufaturas. A fratura epistemológica galileana é uma I ulvas, Além disso, é um homem errante através da Europa,
onda de superfície: mesmo se ela perturba a ordem do mundo, as fi' lmmem que escolheu permanentemente o exílio, para não di-
mentalidades populares quase não são afetadas. I 11 xílio interior, pela disciplina da dúvida metódica, e a quem
Nada escapa a essa vontade de domínio. Assim, quando Des II 111 óprio corpo não pode não aparecer como uma realidade am-
cartes busca identificar a natureza das paixões, ele constata qu~ 11"11, li sa atenção circunspecta que ele concede ao corpo é uma
elas não passam de um efeito da maquinaria do corpo: uma conse , IlItI I de viajante confrontado, onde quer que seja, ao irredutível
quência do deslocamento dos espíritos animais. Mas ele pensa que I I lII'p que se fatiga; deve modificar sem cessar seus hábitos de
o homem pode aprender a controlá-Ias: "Eu não sou absolutamen- 1 •• 1111I to, suas maneiras de ser ete. Esse sentimento de dualidade,
te da opinião [...] de que devemos nos eximir de ter paixões, basta "'1" ' provisório, se nos situarmos no âmbito da vida cotidiana,
sujeitá-Ias à razão" (carta a Elisabeth, de 1° de setembro de 1645). , I \1 l s o eterniza, faz dele um absoluto sob a forma do dualis-
Robert Lenoble analisou com fineza os pressupostos de tal atitu- I" Mns entre a dualidade e o dualismo estende-se um abismo,
de: "Às questões ansiosas do moralista, inquieto com as causas do 'I' li' into, se a primeira permanece fixada pela presença humana,
pecado, [Descartes] substitui a tranquilidade objetiva do técnico 1111. '111 consequência, a segunda torna o corpo autônomo, pri-
às voltas com um problema de equilíbrio de forças'". Encontra- I. ,\ O polo espiritual sob uma forma absoluta. Certamente, não
mos em Maquiavel ou Hobbes posições bastante próximas, mas 111 tis do que esse sentimento de viajante ou de exilado voluntá-
aplicadas às paixões políticas. Os movimentos do pensamento, I, ,I lógicas sociais e culturais que conduzem a dissociação do
que buscam reduzir o conjunto dos movimentos do mundo, ou as 1111 10 'iluminam o corpo em negativo são anteriores a Descartes.
turbulências da condição humana a um conjunto de leis objetivas, 11111 ofia cartesiana é reveladora da sensibilidade de uma época,
a recorrências previsíveis, desenvolve-se no século XVII, e, desde IhlO é uma fundação. Ela não é o ato de um só homem, mas a
então, nunca mais cessou de exercer sua influência. Ldlzação, a partir da palavra de um homem, de uma weltans-
/llfl/lg dífusa nas camadas sociais mais avançadas.
I' I l nce a Descartes, que teria vivido com insistência sua pró-
3.2 o corpo na filosofia cartesiana
11,111 lividualidade e sua independência, pronunciar de uma ma-
Homem do cogito e não do cogitare ou do cogitamus, homem l! I em certa medida oficial as fórmulas que distinguem o ho-
do "Para mim, eu [... r: Descartes coloca-se claramente como um 111 ti seu corpo, fazendo deste último uma realidade à parte e,
indivíduo. A dúvida metódica que ele institui nos Discursos é dis- I 'li dts o, depreciada, puramente acessória. Não que o dualismo
so a ilustração mais flagrante. Descartes pertence a uma época na I 1.\110 seja o primeiro a operar uma cisão entre o espírito (ou
qual o indivíduo começa a tornar-se uma estrutura significativa da 1111 ,) "0 corpo, mas esse dualismo é de outra espécie, ele não está
socialidade, não em seu conjunto, certamente, mas em suas franjas lundado sobre um solo religioso, ele nomeia um aspecto so-
1111 inlfesto, cujas etapas nós evocamos anteriormente: a inven-
6. LENOBLE, R. Histoire de I'idée de nature. Op. cit., p. 335. , .!II rpo ocidental; o batente do corpo como limite à própria

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individualidade. Em uma sociedade onde o caráter individualistu IllItI mo cartesiano prolonga o dualismo vesaliano. Em am-
exerce seus primeiros efeitos significativos, o enclausuramento do 11111 I -sta-se uma preocupação com o corpo descentrado do
sujeito em si mesmo faz do corpo uma realidade ambígua, a marca II I .(11 [ual empresta sua consistência e seu rosto. O corpo é
mesma da individualidade. I 1111 HI LI m acessório da pessoa, que se processa no registro do
Fruto, com efeito, de uma partição social, o indivíduo encon 11, I) , ndo indissociável da presença humana. A unidade da
tra-se dividido ontologicamente em duas partes heterogêneas: o II mpida, e essa fratura designa o corpo como uma reali-
corpo e o espírito, soldados pela glândula pineal. A dimensão cor 1i ,I intal, indigna do pensamento. O homem de Descartes é
poral da pessoa recolhe toda a carga de decepção de não valor. Em I I ,111 n no qual se friccionam um espírito que só encontra
contrapartida, como se fosse necessário conservar no homem uma I 11' li) pensar, e um corpo, ou antes, uma máquina corporal,
parcela de divindade, malgrado o desencantamento do mundo qu ' 1111 '1 I lusivamente à sua extensão",
se inicia, o espírito permanece sob a tutela de Deus. O homem I1 I 'ito de suas inúmeras dificuldades para justificar essa
está sobrecarregado de um corpo que tem a desvantagem, mesmo 11 IIIIÇ- o do homem, Descartes escreve na Sexta meditação:
se é considerado como uma máquina, de não ser suficientemente E,portanto, pelo fato mesmo de que conheço com certeza que
existo, e de que, no entanto, não noto absolutamente que per-
confiável e rigoroso em sua percepção dos dados do ambiente. O
tence necessariamente nenhuma outra coisa à minha natureza
racional não é uma categoria do corpo, mas é uma das categorias ou à minha essência, a não ser que sou uma coisa que pen-
possíveis do espírito. Para os filósofos mecanicistas, de resto, ai sa, concluo efetivamente que minha essência consiste nisso
reside sua qualidade mais eminente. Não sendo um instrumento somente, que sou uma coisa que pensa, ou uma substância
cuja única essência ou natureza consiste apenas em pensar. E,
da razão, o corpo, distinguido da presença humana, está votado
embora talvez (ou, antes, certamente, como direi em breve)
à insignificância. O pensamento, para Descartes, é inteiramente eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente conju-
independente do corpo, ele se funda em Deus; sua imanência à gado; nada obstante, já que, de um lado, tenha uma ideia clara
e distinta de mim mesmo, na medida em que sou somente
alma repousa na dupla exclusão, impensável ainda alguns decênios
uma coisa que pensa e não uma coisa extensa, e que, de outro,
antes, da criança e do louco: tenha uma ideia distinta do corpo, na medida em que ele é so-
Pelo fato de a faculdade de pensar estar adormecida nas crian- mente uma coisa extensa e que não pensa, é certo que eu, isto
ças, e de nos loucos ela não estar, na verdade, extinta, mas é, minha alma, pela qual eu sou isso que sou, é inteiramente e
perturbada, não é preciso pensar que ela esteja de tal maneira
ligada aos órgãos corporais, que não possa existir sem eles.
Porque pelo fato de nós vermos frequentemente que ela seja
impedida pelos seus órgãos, não se segue, absolutamente, que , nulro plano o "dualisrno" entre o homem e seu corpo se encontra nas
ela seja produzida por eles". I 111 m nufaturas onde o "trabalho em migalhas", monótono, desgastante,
'I, solicita do operário exclusivamente sua força física, seu "corpo", e não
I IIlltllde de homem. Marx fará dessa alienação do trabalho uma magistral
I vocando notadamente a fábula de Agrippa na qual um homem é reduzi-
7. DESCARTES, R. Discours de Ia méthode. Op. cit., p. 206. 11111 Ó de seus órgãos.

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verdadeiramente distinta de meu corpo, e que ela pode ser ali obre o corpo um esclarecimento ambíguo, que, conforme o
existir sem ele'", I 11 () , designa-o como "fator de individuação', fronteira do su-
Nos Discursos, a formulação da certeza de sua própria existên- 1111, Mos é forçoso constatar que o corpo é afetado por um índice
cia pelo cogito subentende a onipotência do pensamento e suscita til ( itivo". Descartes chega mesmo a conduzir o paradoxo até
a dificuldade de, apesar de tudo, associar um corpo a esse pensa , 1 II I a reconhecer-se nele: "Eu não sou, diz ele, essa assembleia
mento. A natureza do homem não é angélica, e Descartes luta con 11 Illlbros que denominamos corpo humano': Nós já evocamos
tra um obstáculo intransponível, qual seja, a impossibilidade de II I I im das Meditações na qual Descartes assimila categorica-
considerar o homem fora de seu enraizamento corporal. Ele não I 111 .cu corpo a um cadáver. O corpo aparece no pensamento
faz senão constatar que a união substancial do corpo e do espíri- I1II XVII como a parte menos humana do homem, o cadá-
to é urna manutenção da vida. "Eu não nego, no entanto, escreve 11 su pensão no qual o homem não conseguiria se reconhe-
ele em suas Meditações, que essa estreita ligação do espírito e do I suspensão do corpo ao olhar da pessoa aparece como um
corpo, que experimentamos todos os dias, não seja a causa de não 1.1110 mais significativos da Modernidade. Lembremo-nos o
descobrirmos facilmente, e sem uma profunda meditação, a dis IIdlll sta distinção ontológica entre o corpo e o espírito só é ela-
tinção real que existe entre um e outro"!". Ele desenvolve alhures I Iltl acessível aos homens das camadas privilegiadas e eruditas
a ideia de que, se tomarmos um membro do corpo, a mão, por 11I1!,lI ia. As camadas populares inscrevem-se em tradições
exemplo, esta não é uma substância incompleta, a não ser que ela 11111 IIt1 stadas e não isolam o corpo da pessoa. A epistemologia
esteja relacionada ao corpo, mas, em contrapartida, nela mesma I ulo XVIII (seguindo o caminho aberto especialmente por
ela é considerada como uma substância completa. "E, de forma se .1111 , tratando da questão do corpo), cujos desenvolvimentos
melhante, conclui ele este singular raciocínio, o espírito e o corpo 111101 S vão fecundar os valores e as práticas científicas e técni-
são substâncias incompletas, uma vez que estão relacionados ao I, Modernidade, está indissoluvelmente ligada a esse divór-
homem que compõem, mas sendo considerados separadament .• 1111 o corpo. Divórcio também, e o fato é significativo, com a
eles são substâncias completas" 11 •
O corpo é tornado axiologicamente estrangeiro ao homem, 1 1111 outro plano os trabalhos de Norbert Elias, já citados. Certos setores
dessacralizado e objeto de investigações que fazem dele uma reali 111 I ,que elaboraram etiquetas corporais rigorosas, começam a colocar
1"1 I di tância, a ter por desprezível aquilo que esclarece de maneira de-
dade à parte. O nascimento em uma escala coletiva de uma socia
01 111 nte crua a existência corporal do homem: o arroto, a flatulência, o
bilidade na qual o indivíduo prima sobre o grupo corresponde ao I ,I ti, Ias regulam de maneira extremamente cerrada a parte do corpo no
'11 I I. Ela inventa essa "fobia do contato" (Elias Canetti) que caracteriza
advento moderno do corpo. O estreitamento da noção de pessou
11( I Iidade ocidental contemporânea. A sexualidade mesma começa a
I I un problemas. Montaigne já se insurge: "Quem fez a obra de carne ... "
I 11111 m aí o quanto a questão do corpo preocupa as camadas privilegia-
9. DESCARTES, R. Méditations métaphysiques. Paris: PUF, 1970, p. 118-11 111 I da de do Renascimento e do século XVII que acedem a uma ampla
, 1111 ti suas ações, individualizam-se, mas tropeçam no corpo e regulam
10. Ibid., p. 206.
, 111 nte os ritos de interação social.
11. Ibid., p. 202.

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imaginação, considerada, portanto, como potência de ilusão, fonte 11 "o mero poder de julgar que preside em meu espírito': Con-
constante de erros. Além disso, a imaginação é uma atividade apa 11\ Isolar o momento da apropriação do mundo pela inteligência
rentemente inútil, improdutiva, irracional, pecados maiores para o 'til m io da marginalização "do testemunho variável dos senti-
jovem pensamento burguês. Em uma palavra, a imaginação é tão I. ou dos juízos enganadores da imaginação". A partir da con-
supranumerária quanto o corpo. II ,) rnantida pela sensorialidade e a imaginação do homem, a
I n desbasta para si um caminho, dissipa os equívocos, impõe
II V rda de abstrata de encontro às evidências sensíveis, Aceder à
3.3 O corpo supranumerário
"I, I consiste em despojar as significações de seus traços cor-
A inteligibilidade mecanicista fez das matemáticas a única cha- I 111 ,ti u imaginativos. A filosofia mecanicista reconstrói o mun-
ve de compreensão da natureza. O corpo é, portanto, atingido pela I., 1 purtir de sua categoria de pensamento, ela dissocia o mundo
suspeita. O universo vivido, sentido, tal como aparece graças às "ILldo pelo homem, acessível ao testemunho dos sentidos, do
atividades perceptivas, cai em desgraça em proveito de um mundo IIllIdo real, acessível apenas à inteligência. Descartes é perfeita-
inteligível, puramente conceituaL Ao mesmo título que a imagi-
I "11' lúcido malgrado todas as consequências de tal divórcio; ele
nação, os sentidos são enganadores, não se poderia fundar sobre
""11 \ a esse tema em suas Respostas às quintas objeções. Assim
eles a menor certeza racional. As verdades da natureza já não são
1111 I cal estabelece três ordens de verdade segundo o ângulo
imediatamente acessíveis à evidência sensorial; elas são objeto de
'I tt iximação do fenômeno: segundo os sentidos, a razão ou a
um distanciamento, de uma purificação, de um cálculo racional.
Ih artes contrapõe uma apreensão da realidade das coisas sob
É preciso remover as escórias corporais que elas são suscetíveis d '
I1 111 da vida cotidiana, a outra, sob o ângulo da razão: "Mas,
revestir. E Descartes, a esse respeito, oferece uma memorável ilus-
I1 1.\1110, é preciso ter cuidado com a diferença que existe entre
tração, no curso da Meditação segunda, com a parábola do pedaço
I • 1\ da vida e a busca da verdade, a qual eu tantas vezes incul-
de cera. Este último, recolhido no pavio, evidentemente manifesta
I IlI)1,quando é a condução da vida que está em questão, seria
certo número de qualidades sensíveis aparentemente irredutíveis:
I 1111 iramente ridículo não se reportar aos sentidos, razão pela
forma, odor, volume, consistência ete. Mas, ao contato da chama,
I ti rpre debocharmos desses céticos que a tal ponto negli-
o pedaço de cera começa a perder sua substância primeira, ele der-
\I IIV m todas as coisas do mundo, que, para impedirem-se de
rama-se em líquido, torna-se brilhante, seu odor desaparece etc,
\I • eles mesmos nos precipícios, deviam ser vigiados pelos
Finalmente, as qualidades que se dão por intermédio dos sentidos
1111 OS"13. Da mesma maneira Descartes escreve a Elizabeth
revelam -se ilusórias: nem a cor, nem o odor, nem a consistência
1111) nte usufruindo da vida e das conversações ordinárias, e
permanecem as mesmas e, entretanto, o pedaço de cera está pre-
sente. Descartes destitui a imaginação de todas as prerrogativas" "do-se de meditar e de estudar as coisas que exercitam a ima-

esse respeito. A realidade do pedaço de cera não é mais acessível


à imaginação do que por intermédio dos sentidos. Importa ape 1',( flRTES, R. Méditations métaphysiques. Op. cit., p. 227.

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ginação, é que aprendemos a conceber a união da alma e do corpo" I ,.111111 iquinismo, contribuem ainda para dissociar a atividade
(28 de janeiro de 1643). Mas a filosofia só se entende radicalmen 11I Ic 111 daquela da inteligência. Com as diferentes mediações
te dissociada do corpo, e Descartes oferece, no limiar da Terceiro I , li I' ampliam o domínio pelo homem utilitário do mun-
meditação, essa expressão fulgurante: "Eu fecharei agora os olhos, II11 41 'I' a, outro uso dos sentidos aparece, mas dissociado do
taparei os meus ouvidos, desviarei todos os meus sentidos, apaga I" I homem consegue ver astros furtarem-se à apreciação do
rei de meus pensamentos até mesmo todas as imagens das coisas " , 11II1 rr, .le percebe o infinitamente longe e o infinitamente pe-
corporais, ou pelo menos, já que isso dificilmente pode ser feito, eu 1111 I'. "sas descobertas são como a confirmação experimental
as considerarei como vãs e como falsas': Essa frase ressoa como um " 111' micistas das insuficiências da sensorialidade humana.
manifesto da epistemologia mecanicista. Ela legitima a distinção 1111 V 'r o é uma máquina onde não há absolutamente nada
operada entre o homem e seu corpo. Malgrado a resistência dos 11I 'I' 1,. senão as figuras e os movimentos de suas partes" é a
românticos, da psicanálise, da fenomenologia husserliana, a cisão nll, nuncíada por Descartes, na qual se condensa o mecani-
entre os sentidos e a realidade aparece hoje como uma estrutura Jlln esses homens radicalmente afastados das fontes e do
fundadora da Modernidade. E o aperfeiçoamento técnico aprofun- lltl tio Renascimento, a natureza não é mais do que uma for-
da ainda mais essa distância. Espinosa oferece uma fórmula lumi- 1.\, r gída por um Deus mecânico ou calculador. O universo
nosa da nova episteme. Segundo ele, não é com os olhos do corpo 1'1" de engrenagens invariantes, mas inertes nelas mesmas,
que é preciso-decifrar os mistérios da natureza, mas "com o olho da ,1111 I m ismo próprio. O movimento lhe vem sempre do exte-
alma?", O corpo é tornado supranumerário. I ( 11111 I a ideia do famoso peteleco dado por Deus no momen-
Para os filósofos mecanicistas, a natureza não é mais a forma I, I I ,'~'<o).
viva do Renascimento, ela é composta de um grande número de I "I., movimentos do mundo seriam suas consequências:
objetos em inter-relaçâo, mutuamente subordinados a leis intangí- . ~ O de Descartes". O mecanismo repousa, com efeito, em
veis. Ela se estende sobre um espaço geométrico, absolutamente es- IH.d IIITIO entre o movimento e a matéria. O tempo, a duração,
tranho às categorias corporais, um espaço acessível somente a uma 'I' \I nesse sistema senão de maneira espacializada (o re-
compreensão muito avisada. Uma série de descobertas, como por I!,) () homem é objeto da mesma cisão entre a alma, vetar de
exemplo, a do telescópio ou a do microscópio, a da imprensa e o 11111 III s, e o corpo, matéria, máquina, onde se repercutem os
IIIII'I\C s da alma.

14. Descartes, em Méditations, p. 60, opõe o sol sensível, apreendido pelos


I 11111 Tresm?ntant observa que, entre os diferentes movimentos possíveis,
olhos do homem, ao sol astronômico. Os olhos percebendo pequeno aquilo que O
,', depois dele Malebranche e Hume estudam apenas o movimento
astrônomo avaliará "muitas vezes maior que toda a terra". Encontramos a mesma
I 1111 unento, isto é, o mais afastado do organismo. "O universo cartesiano
imagem em Espinosa, aplicada a distância, os olhos do homem concebem o sol , IIIIIVt rso de "coisas", isto é, de objetos fabricados. Ele é caracterizado
muito próximo, "a cerca de duzentos pés", quando o sábio sol nos ensina que el 1111 IIi conhecimento total daquilo que é o orgânico. Descartes confunde
se mantém a uma distância "de mais de seiscentas vezes o diâmetro terrestre", li" 11 mecânico, isto é, criação e fabricação", d. TRESMONTANT, C. Essai
ct, SPINOZA. Ethique. Paris: Garnier/Flammarion, 1965, p. 109. 1'1"" e hébretoue, Paris: Cerf, 1953, p. 32.

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o advento do modelo mecanicista como princípio de inteligibi ,li I\ linguagem e de pensamento. Os comportamentos do
lidade do mundo está associado à difusão de mecanismos de todos I I, I nr anizam-se sob o paradigma da máquina. O animal é
os tipos desde o século XVI, a imprensa, o relógio, por exemplo, I II 111' do autômato. Na quinta parte dos Discursos, Descartes
que dão ao homem um sentimento de poder sobre o mundo desco 1,11 I I .oria do animal-máquina'? Se os animais não falam, é
nhecido anteriormente. Da mesma forma, a assimilação do corpo I I 'P)I" lhes faltarem os órgãos adequados do que por ausência
e de suas funções a um esquema mecanicista supõe a anterioridad . 1'1 fi unento. O automatismo de suas ações é concluído de sua
da construção de autômatos engenhosos, parecendo bastarem-se n I 1.1i lutitude, esta decorrente da disposição de seus órgãos e não
si mesmos em seus movimentos". A matematização dos fenôrnc II 11 11 1 razão. Além disso, atríbuír-Ihes um pensamento equi-
nos naturais não poupa a esfera do biológico. O vivo está subordi 1101 \ • nferir-lhes uma alma, hipótese que Descartes rejeita. A
nado ao modelo da máquina e nele esgota-se inteiramente. III do animal-máquina manifesta a sensibilidade de uma épo-
Esse modelo subentende ainda novas práticas sociais inaugura 1111 muls precisamente de certas franjas sociais de uma época,
das pela burguesia, o capitalismo nascente e sua sede de conquista. I I que elaboram uma cultura erudita), ela funciona mesmo à
Uma vontade de domínio do mundo, que então só é pensável sob I I II I de um lugar-comum. Mersenne assim o enuncia em seu
a condição de generalizar o modelo mecanicista. Se o mundo c "/1011(' universelle, no qual ele se maravilha com a composição e
uma máquina, ele está na medida do desafio do engenheiro e do 1111 im ntos de um mosquito, "de maneira que, se pudéssemos
empreendedor. Quanto ao corpo, razoável, euclidiano, ele está nas t 111'1 I visão de todas as molas presentes neste pequeno animal,
antípodas da ubris, corpo sequencial, manipulável pelas discipli t 1II rn aprender a arte de fazer autômatos ou máquinas que
nas nascentes, depreciado enquanto tal, o que justifica o trabalho 1111 tantos movimentos, tudo quanto o mundo jamais pro-
segmentário e repetitivo das manufaturas nas quais o homem se 111 1111 frutos, ouro e prata não bastaria para o justo preço da
enxerta na máquina sem realmente distinguir-se dela. Corpo des- 1/,1 vi ão dessas molas?". Tais são as formidáveis proezas do
pojado do homem, o que permite pensá-lo, sem reticência, segun' 11 'li ânico.
do o modelo da máquina. I I h.' artes, negando toda sensibilidade ao animal, desculpa-se
" Inumeráveis dissecções e vivisseções que realiza, durante sua
3.4 O animal-máquina I Itll ira, nos animais a fim de melhor compreender "a máqui-

O dualismo entre o pensamento e o corpo, a preeminência do


primeiro por meio do cogito, leva à conclusão da natureza pura- 11111li e prometida a uma respeitável fortuna crítica até Pavlov e os beha-
1 I, sa noção caminhou e concorreu ainda para nossa visão do animal; cf.
mente corporal do animal, este último sendo posto como des
/lll 11 ARO, J. "Les bêtes: territoire et métamorphoses". Simulacres et simu-
I ,I.J: Galilée, 1981. Cf. tb. as páginas esclarecedoras de GUSDORF, G. La
11/111/ aliléene. T. 11. Paris: Payot, 1969, p. 148ss.
16. Cf. CANGUILHEM, G. "Machine et organisme". La connaissance de Ia vie. "'111 LENOBLE, R. Mersenne ou Ia naissance du mécanisme. Paris: Vrin,
Paris: Vrin, 1965, p. 104ss. ,li 74-75.

92 93
1III

na do corpo" (ele também desculpa o homem por fazer deles lIlIl 11 11li -nte a fisiologia e a anatomia de Descartes são lacunares
uso servil, e os homens de ciência, por experimentar neles: como I I 1I1111vas,
como se observou frequentemente, mas o interes-
um mecanismo conheceria o sofrimento?). Em uma carta, Descar It ti t bscrvação é secundário, O elemento significativo reside
tes dá a entender que sua "opinião não é tão cruel em relação .1s 1111 plnnificação do corpo, em sua dessimbolização, já reali-
bestas quanto não é piedosa em relação aos homens, libertos das I I' 10 unatomistas, mas que a filosofia mecanicista prolonga
superstições dos pitagóricos, porque ela os absolveu da suspeita dv 1 IIU ti Ia redução mecanicista e do assentimento de seu divór-
culpa cada vez que eles comem ou que eles matam animais" (carta. 111\ I) homem a quem ela dá consistência. O corpo humano é
a Morus, 21 de fevereiro de 1649). Os animais, e de certa forma n ica discernível das outras pela exclusiva singularidade
os homens, reúnem assim a natureza sob o mesmo paradigma do fl renagens; não é mais do que um capítulo da mecânica
mecanismo; ambos são purificados de todos os ranços vitalistas Oll 1.11 mundo. O fato de encarnar a presença humana não lhe
hilozoístas. A dessacralização ganha todos os domínios acessíveis d, qualquer privilégio. No Traité de l'homme, Descartes leva
à condição humana, inclusive o vivo. As mentalidades esclarecidas I h Itl' I a metáfora mecanicista
concordam em tornar pensáveis e possíveis uma ação de trans e verdadeiramente pode-se muito bem comparar os nervos
formação radical da natureza e uma experimentação no corpo do da máquina que eu vos descrevo às tubulações das máqui-
nas dessas fontes; seus músculos e seus tendões às diversas
homem ou do animal que não suscita qualquer indignação moral.
engrenagens e recursos que servem para movimentá-Ias; seus
espíritos animais à água que os move, cujo coração é a fonte e
3.5 O corpo segundo o modelo da máquina as concavidades do cérebro são os olhares. Além disso, a res-
piração e outras tais ações, que lhe são naturais e ordinárias, e
o dualismo, malgrado seus tortuosos raciocínios para provar a que dependem do curso dos espíritos, são como os movimen-
tos de um relógio ou de um moinho que o curso ordinário da
união da alma e do corpo, não poupa o homem desse deslize para
água pode tornar contínuo.
o mecanismo. Para Descartes, o corpo, senão o homem todo intei-
ro, é uma máquina. No rastro do cogito, o homem aparece à ma- I 111 ianismo é não somente cindido do homem, mas é, além
neira de um autômato movido por uma alma. "Como um relógio , 1rrlvado de sua originalidade, da riqueza de suas respostas
composto de engrenagens e contrapesos [...J eu considero o corpo 'l'ls, O corpo aqui não é mais do que uma constelação de
do homem' (Sexta meditação). Toda poderosa analogia relojoeira, 11 11108 em interação, uma estrutura de engrenagens bem-ajus-
que funciona como um paradigma para explicar tão bem os mo- im surpresa. Que o organismo humano não seja tão espe-
vimentos das estrelas, da natureza ou do corpo humano. "O corpo Ido quanto um utensílio ou um mecanismo não é percebido.
vivo difere tanto do de um homem morto quanto um relógio, ou uuklnde da presença humana e do corpo não suscita qualquer
outro autômato, quando montado, e o mesmo relógio, ou outra I ',' 11. A Razão persegue sua evicção do corpo por sua redução
máquina, quando está quebrada e o princípio de seu movimento 11111 Inato.
cessa de agir" (Traité de l'homme).

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Ilustrando, aliás, o sentimento de onipotência que invade os anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas foram escritas
por Descartes, e que os médicos e os filósofos continuaram;
filósofos mecanicistas, o autômato proveniente das mãos do ar
aquele técnico-político, que foi constituído por todo um
tesão se oferece como uma figura da criação. O homem aparecI' conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares,
menos criatura do que rival do Deus mecânico. Com toda justiça e por procedimentos empíricos e refletidos para controlar
Descartes atribui a Deus o privilégio mesura do de ser um artesão ou corrigir as operações do corpo [...). O homem-máquina
de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista
mais hábil do que os outros: "[...] todo corpo é uma máquina, e as
da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro das
máquinas fabricadas pelo divino artesão são as melhor ajustadas,
quais reina a noção de "docilidade", que junta ao corpo ana-
sem deixarem, entretanto, de serem máquinas. Não há, considc lisável o corpo manipulável".
rando-se apenas o corpo, qualquer diferença de princípio entre as
máquinas fabricadas pelos homens e os corpos vivos engendrados 11 111 a concepção racional do mundo acrescentam-se, a partir
por Deus. Existe apenas uma diferença de aperfeiçoamento e d. I, II ulo XVII e XVIII, uma racionalização capciosa do corpo e
complexidade" (Discours de Ia méthode, p. 102). 11 u atitudes, uma analítica social de seu funcionamento, que
IrV a relação natural do homem com seu corpo em uma dua-
3.6 Uma "anatomia política" I li Ir que Marx descreverá com força, por meio da imagem
'1111 tada de Agrippa, do homem reduzido a apenas um de
Uma "tecnología política do corpo': bem analisada por Michel
111 irnbros.
Foucault, prolonga a metáfora mecânica nos movimentos mesmos
do corpo e racionaliza a força de trabalho do indivíduo; ela coor- I I artes oferece uma garantia filosófica à utilização instru-

dena nas instituições (usinas, escolas, casernas, hospitais, prisões I corpo em diversos setores da vida social. A metafísica,
etc.) a justaposição dos corpos segundo um cálculo que deve cul- ,11 I11 augura seriamente, encontra, no que concerne ao mundo
minar na docilidade dos sujeitos e na eficácia que se espera da ação I trlal, seu executor privilegiado em Taylor (e Ford), os quais
empreendida. Objeto entre outros objetos, caracterizado somente 11 \111 de facto o julgamento pronunciado implicitamente por
talvez por uma teimosia maior pelo fato de ser humano e, portan- 111 '. O analogon da máquina, que é o corpo, está alinhado
to, tributário de uma inalienável subjetividade, o corpo está sub- 1111 I máquinas da produção, sem beneficiar-se de uma indul-
metido ao princípio de uma ordenação analítica que se esforça em I Itl I irticular, O corpo é "apêndice vivo da máquina", com esse
não omitir detalhe algum. hlllll 11 cessário e embaraçoso que é o homem que ele encarna.
As disciplinas impõem-se no século XVII e no século XVIll
II tivamente, é menos o homem que trabalha do que tal seg-
como "fórmulas gerais de dominação" (Michel Foucault) chama-
das a um futuro próspero.
O grande livro do Homem-máquina foi escrito simultanea- IIII/( AULT, M. Surveiller et punir - Naissance de Ia prision. Paris: Galli-
mente segundo dois registros, diz Michel Foucau/eJue!c I li I1 I p. 138. Para uma análise aprofundada das disciplinas, nós reme-
obra.

96 97
mento de si mesmo constrangido à incansável repetição dos mes- 1111\ l' .implesmente: nostalgia de uma condição humana que não

mos gestos. Chaplin, em Os tempos modernos, faz uma admirável I '. lia mais nada ao corpo, lugar da queda.

crítica dessa instrumentalização do homem. Canguilhem, evocan- I I'cnica e a ciência contemporâneas se inscrevem em conso-

do os trabalhos de Georges Friedmann, constata que o fato de "os 11 ti \ om essa busca que desde então não foi desmentida: Como

movimentos técnicos supérfluos serem movimentos biológicos ne- \ I I I esserascunho, que é o corpo, um objeto confiável, digno dos
cessários foi o primeiro entrave encontrado por essa assimilação 1'"1 \ limentos técnicos e científicos? A ciência está em uma rela-
unicamente tecnicista do animal humano à máquina?". Malgrado II psntosamente ambivalente com o corpo: ele é seu antimode-

seus estritos limites, e as críticas das quais pôde ser objeto, a me- I 1,1, O contorna, busca desembaraçar-se dele, ao mesmo tempo
táfora mecânica do corpo conheceu uma grande fortuna histórica. 111Ijll tenta, sem cessar, duplicá-Io com seus próprios meios e de
Nós a reencontraremos frequentemente em nossa estrada ao longo 1I111l1l't\
desajeitada. Talvez toda a história da ciência seja apenas

deste caminho sinuoso no seio da Modernidade. li' 1I'lI'iadas correções operadas sobre as insuficiências (aos seus
11111
) do corpo, das inumeráveis rasuras para escapar de sua preca-
.t 111,de seus limites. Tentação demiúrgica também de imitá-Ia,
3.7 Aberturas I 'li I' tecnicamente sobre ele. Hoje outra faceta revela-se sempre
Desde o século XVII uma ruptura com o corpo se iniciou nas I I vidente: a luta contra o corpo desvela sua estrutura oculta,
sociedades ocidentais. Sua posição a título de objeto entre outros, II 11II111 ido que a sustentava: o medo da morte. Corrigir o corpo,
sem dignidade particular, o recurso banalizado desde essa épOG1 1I ti Ic uma mecânica, associá-lo à ideia da máquina, é escapar
à metáfora mecânica para descrevê-lo, as disciplinas, as próteses 1i I, adência, é apagar "a insustentável leveza do ser" (M. Kun-
corretivas que se multiplicam". Tantos índices entre outros que I) () corpo, lugar da morte no homem. Não é isso o que escapa
deixam entrever a suspeita que pesa sobre o corpo e as vontades .urtes, à maneira de um lapso, quando em suas Meditações a
esparsas de corrigi-Io, de modificá-lo. caso não seja possível submetê- lI' 111do cadáver se impõe espontaneamente ao seu raciocínio
-10 totalmente ao mecanismo. Uma fantasia implícita, certamente I nomear sua condição corporal: "Eu me considerarei primei-
informulável, está subjacente, aquela de abolir o corpo, de apagá-to ti 111como tendo um rosto, mãos, braços, e toda essa máquina
'1'" ta de ossos e de carne, tal como ela parece em um cadáver, a

20. CANGUILHEM, G. "I'hornme de Vesalius dans le monde de Coperni ,


1I11tl signarei pelo nome de corpo': Imagem tanto mais pertur-
1543". Op. cit., p. 126. 1,11 \ [uanto menos necessária e mesmo insólita.
21. "É no século XVII que a cirurgia multiplica de maneira decisiva os exemplo I imilação do corpo ao mecanismo tropeça contra o resí-
de aparelhagens corretivas. O novo pensamento mecanicista desdobra sua fecun
didade sobre um corpo que se tornou, ele mesmo, máquina. O arsenal terapêutlco
I '1111''Ia é constrangi da a negligenciar sob pena de invalidar-se:
cresce bruscamente em engrenagens, que, malgrado suas engrenagens gastas [I 1111'111.
A complexidade infinita da condição humana ligada à
primitivas, visam a endireitar. Era preciso que se banalizasse o esp~.ç~ c~,rporal (I
li' () simbólica é um limite contra o qual se choca a analogia
que se generalizasse o mecanismo para que nascessem tais ,~ropos!\çoes (VIG~
RELLO G. "Panoplies redresseuses: [aions pour une histoire . Irevetses, 14-b, 111 mtre o corpo (e até mesmo o indivíduo) e a máquina. O
1979, 'p. 121). Cf. tb. do mesmo autor: Le corps redressé. Paris: Qelarge, 1978.

99
98
corpo, confrontado a esses procedimentos de racionalização, pa
rece-se com um animal alojado no coração do ser, inapreensível, ,I

não ser de maneira provisória e parcelar. O corpo, vestígio mult i


milenar da origem não técnica do homem. HOJE, O CORPO ...
Culpa das origens que numerosos procedimentos se esforçam
em corrigir. A assimilação mecânica do corpo humano, que dei
xa estranhamente a espessura humana de lado, traduz na Moder
LI i são as representações atuais do corpo nas sociedades
nidade a única dignidade que seja possível conferir ao corpo. 11
I ti ntaisi Vimos que o racionalismo nascente dos séculos XVI
admiração dos cirurgiões ou dos biólogos perante o corpo, cujos
II renova completamente os critérios de conhecimento. O
arcanos eles tentam penetrar, ou aquela, mais cândida, do profa
I II I iro não mais está fundado na herança ancestral do fun-
no, traduzem-se pelo mesmo grito: "Que maravilhosa máquina II

o corpo humano". Não contamos mais o número de obras ou de


111 I ullural. Ao saber, em parte consensual, repousante sobre as
ti ~ e partilhado potencialmente pelo conjunto da comuni-
'I
I 5
capítulos que testemunham essa assimilação. A linguagem corren
te faz mesmo um estereótipo dela. Não conseguiríamos exprimir I , ubstitui-se, pouco a pouco, um saber de especialistas, os
melhor nosso maravilhamento hoje senão reconduzindo o corpo ;\ 1111 II aptos a apreciar os critérios do verdadeiro a partir de um
máquina. A filosofia mecanicista prevaleceu historicamente sobr ' 1Illll1l de regras pretendendo a uma validade independente
as outras visões do corpo. A carne do homem presta ao embaraço, ulturas e da história. O divórcio é, portanto, pronunciado
como se este devesse declinar de uma realidade tão pouco gloriosa. I1I os saberes populares do corpo, sempre ativos em nossos
A metáfora mecânica aplicada ao corpo ressoa como uma repara notadamente por meio das tradições de cura, e a cultura
ção para conferir ao corpo uma dignidade que ele não seria capa1 ,111 I, notadamente biomédica.
de ter permanecendo simplesmente um organismo.

) aber biomédico

, .1011' do corpo nas sociedades ocidentais hoje é suscitar a evo-


11 do iaber anatomofisiológico sobre o qual se apoia a medicina
I .1\ \. E é supor um consenso em torno do saber e das práticas
II subentende, esquecendo, como o recorda Georges Balan-
1"1 "as sociedades jamais são aquilo que parecem ser ou o que
IIlh!TI ser, elas exprimem-se em dois níveis pelo menos; um,
1111 1.11, apresenta as estruturas 'oficiais' [00'] o outro, profundo,
'\ IH isso às relações reais mais fundamentais e às práticas re-
J

100

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