Controlar, adivinhar, assegurar, prever… alguns dos verbos que, comummente,
aparecem no nosso discurso, numa tentativa de sublimação da influência que o factor incerteza, que o factor dúvida, tem no nosso funcionamento e no nosso equilíbrio interior, face ao futuro e a tudo o que o mesmo pode acarretar. No entanto, e apesar dos esforços que possamos fazer para controlar aquilo que nos acontece, num movimento para evitar o confronto com a dureza dos eventos imprevisíveis e ameaçadores, estamos (felizmente) condenados a situações, cenários, experiências que fogem ao nosso controlo e que não conseguimos, de todo, adivinhar ou prever. Alguns estudos demonstram que, ao longo do seu percurso de vida, um indivíduo tem uma percentagem a rondar os setenta por cento de se confrontar com um acontecimento traumático. O mesmo será dizer que existe uma elevada probabilidade de se confrontar com um cenário, com uma circunstância de vida que colocará em questão os seus limites, a sua concepção de si mesmo e a sua visão do mundo, obrigando a um esforço de reorganização interior e de adaptação. Tal poderá acontecer quando o indivíduo se depara com diversas situações, sendo possíveis exemplos as situações em que se vê envolvido numa agressão grave, num acidente, numa catástrofe ou num processo de perda de pessoa significativa. Se pensarmos na existência humana como um rio, podemos entender as circunstâncias traumáticas como um desvio no seu leito que provoca uma mudança no seu curso e na forma como flui. Esses desvios podem ser pequenas represas, diques de dimensão considerável ou autênticos aluimentos de terra que o fazem transbordar e que lhe alteram o rumo, fazendo com que seja difícil distinguir o rio das margens que o delimitavam. Na maioria das situações, as pessoas conseguem superar os acontecimentos traumáticos que vivenciaram, conseguindo reorganizar-se e prosseguir o seu caminho, restaurando o fluir das suas águas sem alteração de maior. No entanto, numa percentagem das situações, a dimensão do obstáculo traumático encontrado provoca alterações significativas, gerando elevados níveis de desconforto, sofrimento e de tensão emocional, condicionando a visão de futuro e podendo gerar perturbações psicopatológicas relevantes como, por exemplo, a Perturbação de Stress Pós- Traumático. Adicionalmente, e em função das dificuldades que se verificam, é comum o aparecimento de outras perturbações de ansiedade e do humor que deverão ser tidas em conta e, quando diagnosticadas, alvo de atenção clínica. A psicoterapia é uma via preferencial para a redução do impacto negativo, e invalidante, das perturbações traumáticas, ajudando ao processo de reorganização interior tão necessário, como difícil e desafiante, visando o crescimento pessoal pós- trauma e a superação dos desafios precipitados pelo mesmo. O objectivo não deverá ser concretizar o esquecimento do acontecimento traumático, como se não tivesse acontecido, mas construir uma noção da localização temporal daquilo que foi vivenciado. O objectivo não é eliminar todo e qualquer vestígio do desafio emocional, todo e qualquer resquício da ferida traumática, mas permitir que se aceite a inevitável cicatriz, que nos marca, mas que não nos define. O objectivo é conseguir relembrar aquilo que aconteceu, sem a carga do sofrimento vivido. O objectivo é conseguir deixar de reviver, sem controlo, as circunstâncias traumáticas que atormentam. O objectivo é conseguir relembrar, sem, permanentemente, reviver. É difícil? Sim. É impossível? Não.
Filipe Fernandes (filipe.fernandes@cipp-terceira.com)