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Belo Horizonte
2018
Raquel Leal dos Santos Pegado
Belo Horizonte
2018
Raquel Leal dos Santos Pegado
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Prof ª Drª Maria Ignez Costa Moreira (Orientadora)
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Prof.ª. Joana D’Arc Alves (Leitora)
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Prof.º Luiz Guilherme Mafle Ferreira Duarte. (Leitor)
Agradeço, antes de mais nada, a Deus e à Deusa que conduziram minha vida por
caminhos tão importantes para a minha formação como um Ser Humano.
Ao universo, por conspirar a meu favor e trazer-me pessoas tão especiais e importantes
para o meu amadurecimento como mulher, acadêmica e profissional.
A minha família, em especial a meus pais, Duca Leal e Marcos Pegado, por me
ensinarem o valor dos estudos. Grata mãe e pai, por terem lutado pela minha formação, sempre
sinalizando o melhor caminho, mas jamais impondo qual direção seguir. Agradeço também a
meus irmãos, pelo cuidado e apoio.
A minhas tias, por me terem ajudado nos momentos decisivos no meu caminho
acadêmico, do primário até a faculdade. Gratidão por tanto amparo e confiança.
À Juliana Panadés, por termos convivido tanto no período da faculdade, acredite, foi
fundamental para o meu crescimento pessoal.
A meu marido, faltam-me palavras para agradecer tamanho companheirismo e estímulo!
Grata, Mateus Vinícius, pelo seu amor que, em muitos momentos, se expressou através de
palavras motivadoras e pela sua confiança em minha capacidade.
Às minhas amigas, Geísa, Regiane, Hanna, Júlia e Deborah, sou grata pela amizade
construída no decorrer do curso e por me encorajarem a sustentar o meu desejo de estudar Jung.
À minha orientadora Maria Ignez, por acolher o meu tema de monografia com tanto
carinho e zelo, e por sua maestria em nos guiar de forma tão leve, mas ainda tão precisa.
À Joana D’Arc e ao Luiz Guilherme, agradeço por todo o suporte dado no decorrer do
desenvolvimento da monografia e por aceitarem o convite para serem os meus leitores.
À Larissa Paixão, agradeço as contribuições dadas nas orientações que, em muitos
momentos, clarearam minhas ideias.
Ao grupo espiritual Fraternidade Rainha da Floresta, em especial às Filhas da Lua, por
toda experiência vivida nos círculos de mulheres. Ademais, agradeço a todos que colaboraram
diretamente ou indiretamente, para o fechamento de um ciclo tão importante como este.
Arreda, homem, que aí vem mulher
Arreda, homem, que aí vem mulher
Ela é Pombagira, Pombagira de fé
Ela é Pombagira, Pombagira de fé
(RAINHA DO CABARÉ..., 2012)
RESUMO
The present monograph is based on a study that seeks to understand the image of Pombagira by
the bias of the Analytical Theory. Initially, this work presents the Analytical Psychology
developed by the psychiatrist Carl Gustav Jung, thus discussing the concepts of symbol, myth,
archetype and collective unconscious. Subsequently, the mythical construction of Pombagira is
approached. In the course of the present work, the reflection on the stigma and sacred place of
Pombagira in the collective unconscious as well as in Afro-Brazilian religions was also made
important. Finally, the image of Pombagira is related to the sexuality of the modern woman,
emphasizing the feminine behavior that transgresses to the "model of woman" expected by the
patriarchal society.
Keywords: Jung. Analytical Theory. Sexuality. Woman. Pombagira and Afro-Brazilian
regiment.
LISTA DE IMAGEM
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11
3.4 Pombagira: entre o estigma e o lugar sagrado nas religiões afro-brasileiras .................. 32
5 CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 43
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 46
11
1 INTRODUÇÃO
ser humano. Segundo Jung, os elementos das experiências inconscientes individuais formam o
inconsciente pessoal, já as experiências inconscientes compartilhadas com a família, a etnia ou
o comum à espécie humana, denominam-se inconsciente coletivo. Ainda no primeiro capítulo,
é apresentado o conceito de arquétipo, umas das ideias centrais do pensamento junguiano e
fundamental para a compreensão do tema do presente trabalho. Em seguida, serão expostos os
conceitos de símbolo e mito pela perspectiva de Jung.
No segundo capítulo, será abordado o mito da Pombagira. Será feita uma breve
contextualização do cenário do Brasil Colônia, principalmente no campo religioso,
especialmente as influências trazidas pelos africanos escravizados. Ainda nesse capítulo, será
abordada a história de Maria Padilha de Castela, relatada por Meyer (1997), que ressalta na
história dessa mulher a sua contestação quanto às práticas repressivas dirigidas às mulheres. A
historiadora oferece indícios de semelhança entre as imagens de Maria Padilha de Castela e a
Pombagira, no que se refere à sexualidade feminina. Finaliza-se, então, o capítulo com uma
reflexão sobre o estigma e o lugar sagrado da Pombagira no inconsciente coletivo e nas religiões
afro-brasileiras.
O último capitulo tem como proposta relacionar a imagem da Pombagira com a
sexualidade da mulher moderna, ressaltando-se que, embora ainda exista muita repressão
dirigida às mulheres, especialmente no campo da sexualidade, encontramos manifestações
simbólicbs de livre expressão como no mito da Pombagira, no qual é possível perceber que
estamos em constante transformação, com novas produções coletivas que trazem novas
maneiras de as mulheres vivenciarem a sexualidade e romperem estereótipos.
Nas considerações finais, ressaltamos que o estudo da teoria analítica é fundamental
para que entendamos a influência dos símbolos nos modos pelos quais nos conduzimos na vida.
Afinal, somos nós que criamos os símbolos para dar sentido a algo que escapa da ordem linear
e lógica, mas que está o tempo inteiro atravessando-nos, seja nas experiências inconscientes ou
conscientes.
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“Jamais alguma ciência substituirá o mito e jamais o mito poderá nascer de alguma
ciência. Não é “Deus” que é um mito, mas o mito que é a revelação de uma vida divina
no homem. Não somos nós que inventamos o mito, é ele que nos fala como “verbo de
Deus”. (JUNG: 2016. p, 335)
Carl Jung nasceu em 1875, em Kesswil, na Suiça. Aos quatro anos, mudou-se com a
família para Basileia, naquela época, um grande centro cultural da Suíça. Jung estudou biologia,
zoologia, paleontologia e arqueologia. Em 1895, ingressou na Universidade de Medicina da
Basileia, vindo a interessar-se pela psiquiatria. Dando continuidade aos estudos, em 1902,
concluiu seu doutorado na Universidade de Zurique, tendo defendido a tese sobre “Psicologia
e Patologia dos Fenômenos Chamados Ocultos”.
O psiquiatra Carl Jung integrou-se ao movimento psicanalítico em sua fase inicial, tendo
sido o primeiro presidente da Associação Internacional de Psicanálise – IPA, entidade que
congregava os psicanalistas que se formavam em torno de Freud. (SERBENA, 2010).
Importante destacar que o início de sua carreira foi marcado pelos estudos desenvolvidos, além
de principalmente por Freud, também por Breuer e Pierre Janet. (JUNG, [1902]/2016)1.
O primeiro contato de Jung, com a obra de Freud, foi em 1901, através do livro
“Interpretação dos sonhos”. Naquela época, começava uma grande parceria entre eles, que iria
perdurar por pouco mais de dez anos. Por volta de 1911, surgiram as primeiras divergências
entre Jung e Freud, relativas à teoria da libido. Enquanto Freud afirmava a libido como uma
energia sexual em sentido amplo, ou seja, para além da conotação genital, e que a neurose seria
1
A data entre colchetes indica o ano de publicação original da obra que só será indicada na primeira citação da
obra no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data da edição consultada pelo autor/redator ou a data da
publicação original.
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explicada pelas vicissitudes das pulsões, Jung considerava a pulsão como uma energia vital. O
rompimento definitivo entre eles veio quando Jung publicou o livro “Símbolos da
Transformação” (1986) no qual deixa claras suas diferenças teóricas com Freud. O rompimento
não foi nada fácil para Jung, como ele mesmo deixa claro na sua obra “Memórias, sonhos,
reflexões” (JUNG, 2016):
Depois da ruptura com Freud, começou para mim um período de incertezas internas
e, mais que isso, de desorientação. Eu me sentia flutuando pois ainda não encontrara
minha própria posição. O que mais almejava nesse momento era adquirir uma nova
atitude em relação aos meus doentes. (JUNG, 2016, p. 178)
Em 1912, Jung passou a perguntar aos seus pacientes de onde vinham e quais eram o
sentido das imagens que eles expressavam, em sonhos ou produções artísticas. Ele não buscava
por suas respostas só no trabalho com os seus pacientes, mas também mergulhando em seu
próprio inconsciente. Ele conta que passou por sua vida interior toda, detendo-se sobretudo na
infância, buscando algum entendimento em suas imagens. No entanto, nada havia encontrado
em seu inconsciente pessoal e começou, então, a perceber que era necessário ampliar o conceito
de inconsciente. É neste contexto, de ampla investigação sobre a mente humana, que ele
encontra suas respostas no mundo dos mitos. Jung percebeu a existência de imagens que são
formadas a partir da vivência de cada um, contudo essas imagens possuíam uma estrutura
semelhante e comum a todos e que se manifestavam também na mitologia e nos rituais
religiosos e místicos. Em 1912, ele se referirá a essas imagens como “imagens primordiais”,
contudo, em 1919, substitui o nome “imagens primordiais” por arquétipo. (JUNG, 2016).
Para Jung (2016), o conceito de libido pode ser compreendido como uma energia
psíquica geral e não apenas uma energia de caráter sexual, como defendia Freud. Sendo assim,
a visão da psique, a partir da teoria analítica de Jung, diverge da teoria de Freud, a partir do
conceito de libido.
Além disso, a psique para Jung não era concebida como “uma página em branco” no
nascimento de cada indivíduo, pois o seu conceito de inconsciente amplia-se de maneira a serem
incluídas nele as estruturas e as imagens comuns a toda humanidade, ou seja, os arquétipos,
nomeação criada por Jung. Os arquétipos manifestam-se nos sonhos, nos mitos, nas religiões e
nos contos de fada. (SERBENA, 2010).
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Desta maneira, pode-se compreender que uma camada superficial do inconsciente seja
realmente pessoal, que vai surgindo e ganhando forma a partir das experiências e vivências do
sujeito no decorrer da vida. Também pode ser comparada a um espaço no qual os conteúdos
esquecidos e recalcados adquirem significado e sentido. (JUNG, 2017).
Os materiais contidos nessa camada são elementos que foram, em algum momento,
incompatíveis e por isso submetidos à repressão, tornando-se assim inconscientes, contudo, por
outro lado, sempre há a possibilidade dos elementos inconscientes tornarem-se novamente
conscientes, uma vez que sejam reconhecidos. Ou seja, os conteúdos inconscientes só são de
natureza pessoal quando podem ser reconhecidos, em nosso passado, a partir dos seus efeitos e
suas manifestações parciais no presente momento, ou até mesmo quando pode-se reconhecer a
sua origem específica. (JUNG, 2017).
Segundo Serbena (2010), o inconsciente coletivo está em uma camada mais profunda,
que já não tem mais sua origem nas experiências de natureza individual, mas sim universal. Isto
é, no inconsciente coletivo existem conteúdos e modos de comportamento que são comuns a
tudo e a todos “Em outras palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo,
portanto, um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada
indivíduo.” (JUNG, 2017, p 15).
Partindo da ideia que Jung nos traz, sobre uma base universal de natureza psíquica
existente em todos os indivíduos, é possível dizer que a psique tem duas maneiras distintas e
complementares de funcionamento. A consciência egoica, que se manifesta por meio da lógica
ou raciocínio analítico, e o inconsciente, que funciona por meio da analogia. Desta forma, o
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Portanto, para uma tentativa de compreensão, é possível dizer que os arquétipos são
estruturas básicas e universais da psique, sendo utilizados como um elemento para entender os
tipos de experiências, nas quais a função criativa da imaginação está presente. Isso acontece
porque o arquétipo manifesta-se concomitantemente em diversos níveis; como imagem, com
modelo de percepção ou filtro da realidade, mas também pode aparecer como um afeto ou
impulso. (SERBENA, 2010).
Como já foi mencionado, para Jung, a ideia de uma mente vazia que vai sendo
preenchida com as experiências pessoais no decorrer da vida é equivocada. A mente, para Jung,
é mais que isso, ela é composta por imagens primordiais que reaparecem sempre e por toda
parte. Essas imagens são um a priori, ou seja, são anteriores às experiências individuais. Nossa
mente contém sensações, emoções, pensamentos e memórias de forte carga afetiva comum a
toda humanidade. Sendo assim, toda forma de conhecimento que deriva do inconsciente
coletivo é chamado por Jung de arquétipo. (JUNG, 2016).
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Foi esse poder da psique de criar imagens que, por exemplo, verteu o arquétipo da
“luta entre a luz e as trevas, ou do bem e do mal” para um evento retratável como luta
entre o dragão e o herói (um tema primordial de muitas cosmogonias); ou que traduziu
o arquétipo da “ideia de morte e renascimento” para uma sequência representável da
vida do herói ou também para o símbolo do labirinto, tornando-se o criador de uma
série ilimitada de mitos, contos de fadas, fábulas, épicos, baladas, dramas, romances,
etc. Vemos esse poder em atividade impressionante em todas as grandes criações
intemporais da arte, que inesgotavelmente conectam o passado primordial com o
futuro mais distante; nós o identificamos nas visões dos videntes e nas aparições e
sinais de santos e buscadores religiosos, nas fantasias dos poetas e também sem dúvida
no mundo noturno dos sonhos, que, haurindo do tesouro inesgotável de arquétipo do
inconsciente, está insistentemente criando novos símbolos (JACOBI, 2016,p. 93).
Com base no que foi mencionado por Jacobi (2016), é possível compreender que, se o
arquétipo se mostra no aqui e agora, quer dizer que ele é percebido na consciência de alguma
forma, ou seja, a partir do símbolo. Então, o símbolo, em certa medida é, ao mesmo tempo, um
arquétipo. Haja vista que o símbolo sempre tem algo que é invisível e algo que é visível, o que
é da ordem do invisível está atribuído ao arquétipo, que por sua vez está no inconsciente
coletivo, já o que se refere ao visível está relacionado com a imagem, que foi produzida pela
consciência. Ou seja, para o arquétipo ser visto é necessário que este tenha um desenho básico
arquetípico para assim ser visto como símbolo.
A psique cria símbolos, sendo que a base é o arquétipo inconsciente e cuja imagem
manifesta surge das ideias que o consciente construiu. Portanto, os arquétipos são elementos
estruturais precisos da psique, possuindo, assim, uma certa autonomia e energia para atrair os
conteúdos adequados do consciente para eles. Para maior compreensão, pode-se pensar que o
inconsciente oferece a forma arquetípica, que em si é vazia e, por isso, irrepresentável. Mas, no
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símbolos, incluindo as narrativas que validam as religiões, os cultos, as lendas, o conto popular
e as narrativas românticas. Ou seja, o sentido simbólico dos termos e a conexão das narrativas
são fundamentais para o mito.
Interessante refletir a função dos mitos, já que se ouve muito falar sobre eles, de um
lugar que empobrece e distorce sua função na humanidade. Porém, para compreender melhor o
que realmente são os mitos, é necessário entender, mais profundamente, o que é o símbolo e
como o processo de repetição e redundância deste faz surgir os mitos. (JACOBI, 2016).
O símbolo e sua energia têm diversas funções, inicialmente a sua função é somente
investigativa, pois, ao explorar, vai desenvolvendo o “sentido da aventura espiritual dos
homens, lançados através do espaço-tempo”. (CHEVALIER; GHEERBRANT apud
SERBENA, 2016 p. 80). Assim, o indivíduo representa o mundo notado e vivido em sua
universalidade psíquica, tanto consciente, quanto inconsciente. Neste processo, o sujeito
também substitui conteúdos e vivências afetivas impossíveis de serem vividas, devido à
realidade em si ou pela atitude consciente. Este sistema de investigação, representação e
substituição, proporciona um intermédio entre os elementos separados e opostos na experiência
do sujeito, unindo e condensando em uma imagem preenchida de sentido e significando a
integralidade da experiência humana em todos os seus níveis, ou seja, nos âmbitos sociais, nos
campos religiosos, na esfera cósmica e no plano psíquico. (SERBENA, 2016).
Sendo assim, Serbena (2016) afirma que se pode afirmar que o símbolo pode ter uma
função terapêutica, pois gera um sentimento e sensação de pertencimento, ou melhor dizendo,
de participação em uma totalidade que responde às múltiplas necessidades humanas. A presença
do símbolo no mundo humano tem a função de socialização, pois é a partir dele que os sujeitos
se comunicam com a totalidade social. Então, o símbolo está vivo e atuante, através da cultura
e da experiência individual. Por meio desta atuação e da imaginação, ele desenvolve uma
relação entre as vivências psíquicas (conteúdos internos) e as assimilações do mundo externo.
Assim, um reflete o outro, gerando uma “ressonância” entre si e viabilizando o aprofundamento
do sujeito na sua experiência pessoal e na vivência em sua universalidade.
Esse processo acontece no “mundo interno” do sujeito, através de suas fantasias e
imaginação, contudo, muitas vezes, pode não ser notado. Dessa maneira, ele corre o risco de
ser desvalorizado, pois há uma confusão entre a dimensão mítica e a dimensão “utilitária” do
simbolismo, sendo que a dimensão mítica acaba sendo rebaixada à utilitária. (SERBENA,
20616).
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Nesse segmento, o mito é uma importante manifestação do símbolo, por isso que reduzir
o mito ao semiológico é empobrecê-lo, pois ele é do campo semântico. Importante destacar,
que o mito é o início da racionalização da experiência simbólica, contudo, na forma de narrativa,
no qual o símbolo é traduzido em palavras e os arquétipos em ideias, maneiras de pensamentos,
visões sobre o mundo e conceitos. (SERBENA, 2016)
Para Campbell (1979), os mitos são como pistas para as potencialidades espirituais da
vida humana. Ele afirma que os mitos nos ensinam a nos voltarmos para dentro com a intenção
de captar as mensagens simbólicas. Ele ainda sugere que se leia mitos de outros povos e não
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mitos da própria religião, pois é comum interpretar a própria religião como um fato. Ao lermos
mitos de outras culturas, a mensagem mítica fica mais fácil de ser captada.
Campbell (1979), ainda, considera que a mitologia tem grande função e influência na
vida humana. Os mitos são vestígios que se alinham ao redor dos sistemas de crença dos
indivíduos, “como cacos de cerâmica partida num sítio arqueológico”. (Campbell, 1979, p, 10).
E uma vez que somos seres orgânicos, há uma grande energia nos mitos, que aparece através
dos Deuses e Deusas, dos heróis e da história em si, que nos influencia indiretamente. Um dos
exemplos dado por ele são os rituais em que se evocam forças simbólicas.
Campbell (1979) lança mão de outro exemplo para compreender melhor a importância
dos mitos e dos rituais que nos atravessam constantemente, nas situações mais comuns do
cotidiano, mas que, no fundo, têm muita simbologia envolvida. Pense na posição dos juízes em
nossa sociedade, qual a imagem que vem à sua cabeça? Possivelmente virá a imagem de uma
pessoa usando uma toga escura, pois este traje está diretamente associado à imagem de um juiz.
Campbell (1979) vai encarar esse tipo de situação em termos mitológicos e não sociológicos.
Desta forma, ele afirma que para a lei manter a autoridade, além da imposição, o poder do juiz
precisa ser ritualizado (mitologizado), através de um símbolo que transpareça esse poder.
É por isso que tanto ele, quanto outros autores, inclusive Carl Jung, afirmam que
estamos o tempo inteiro sendo envolvidos por imagens, símbolos e forças inerentes. Não
estamos separados do todo e não somos uma folha em branco ao nascer. Muito do que se tem
hoje, já estava aqui há milênios, e é por isso que os sinais estão bem aí, nas mitologias, nas
poesias, nos rituais, etc. (CAMPBELL, 1979).
O trecho abaixo, do livro o Poder do Mito, em forma poética, ilustra muito bem a
importância de nos atentarmos aos mitos que estão tão presentes em nossa vida, em forma de
histórias e vivências:
3 O MITO DA POMBAGIRA
na Umbanda e em outras religiões afro-brasileiras. No entanto, segundo Prandi (2001), não foi
encontrada na África nenhuma informação sobre um Orixá que tivesse o nome de Pombagira.
Na cultura africana, “orixá” é uma expressão que designa uma divindade que representa os
elementos da natureza, tais como o mar, o rio, o trovão, a mata, entre outros. Dessa forma, há
indicações de que a entidade Pombagira seja de origem brasileira.
A denominação “Pombagira”, é também associada à alteração da palavra “Bombogirá”,
pois, na língua ritual dos candomblés angola, da tradição banto, o nome de Exu é Bombogirá.
Assim, entende-se Pombagira como o princípio feminino que complementa Bombogirá que é
o princípio masculino. Sendo que, no decorrer do tempo, a própria tradição oral se encarregou
de denominar de Pombagira, o principio feminino de Exu, pela semelhança fonética. (PRANDI,
2001).
Contudo, o escritor Saraceni (2011), em seus estudos, faz a associação da Pombagira
com as feiticeiras africanas Yamins ou Lá mi Oxorangá, que são entidades femininas cultuadas
no culto Geledé, uma sociedade secreta Yorubá, de natureza matriarcal. Entretanto, quando
Meyer (1993) aprofunda as suas pesquisas em relação à Pombagira, ela levanta a hipótese de
que o mito fundante da Pombagira brasileira, possa ter alguma relação com a história da Maria
Padilha de Castela. (COSTA, 2015).
Costa (2015) ressalta o aspecto sincrético no mito da Pombagira, e, a partir da exposição
transcrita abaixo, é possível compreender que haja múltiplos sentidos à imagem da Pombagira:
Meyer (1993) é considerada uma referência nos estudos sobre o mito da Pombagira. Em
seu trabalho, sobre a história da Maria Padilha de Castela, a personagem histórica é tomada
como uma matriz na construção da imagem da Pombagira. Embora o trabalho de Meyer (1993)
não seja o único sobre a construção da imagem da Pombagira, essa monografia não se ocupou
do levantamento desses diversos trabalhos, em razão do foco do presente estudo e dos limites
próprios do desenvolvimento de uma monografia.
A imagem da Pombagira é um construto sincrético, com vários elementos pertencentes
a diversas culturas religiosas trazidas para o Brasil colonial, sendo ela fruto do imaginário dos
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povos colonizadores europeus, dos ciganos, africanos e dos povos nativos, como descreve Costa
(2015).
Como já foi exposto anteriormente, todo mito é dinâmico, dúbio e atravessado
constantemente por diversas narrativas. Neste sentido, não é diferente com os relatos que
envolvem o mito da Pombagira. Contudo, no presente trabalho, limitar-nos-emos à associação
entre a personagem de Maria Padilha de Castela e a Pombagira, como já havíamos adiantado.
Existem registros de que no século XIV, em meados de 1352, na Espanha, Maria Padilha
de Castela ganha grande importância na vida do Rei Dom Pedro I de Castela, tornando-se sua
amante. (BIÃO, 2011).
Maria Padilha era, na verdade, conhecida como Mari Díaz. Nasceu numa família
importante de Castela e, por volta dos seus 20 anos, ficou conhecida como Doña Maria Padilha,
ao encontrar o Rei Dom Pedro. Ao lado do Dom Pedro I, ela se tornou uma das mulheres mais
poderosas da época, não só por estar ao lado do Rei, mas também por saber utilizar sua beleza,
inteligência e poder de sedução, como o próprio povo dizia entre si. O Rei era conhecido como
um homem mau e com várias mulheres ao seu redor. Teve cinco filhos reconhecidos, sendo que
com Maria Padilha ele teve um filho (falecido quando criança) e três filhas. (BIÃO, 2011).
De acordo com a narrativa, Maria Padilha morre em 1361, aos vinte sete anos. Nove
meses após sua morte precoce, o Rei torna-a rainha de Castela, conseguindo fazer um acordo
com as autoridades eclesiásticas de Sevilha, no sentido de que, mesmo com dois casamentos
públicos, considerassem o fato de ele ter-se casado em segredo com Maria Padilha, antes de sua
morte. Assim, uma amante torna-se rainha de Castela naquela época. (BIÃO, 2011)
Após tornar-se rainha, ela passa a ser vista como um modelo de mulher sedutora,
poderosa, sensual, inteligente e astuta. É desta imagem que se foi criando um imaginário cheio
de mistério e de poderes mágicos em torno da sua identidade. Ficou sendo também um
estereótipo de mulher perigosa, fatal e independente. Vale ressaltar que esse imaginário é criado
em um período de muita repressão da mulher. E é por isso que ela também ganha outro
significado: (COSTA, 2015).
Há indicações de que sua história acaba inspirando poetas, que, com o passar dos anos,
difundiram sua imagem de rainha poderosa e perversa, com poderes mágicos que manipulavam
um rei cruel. Sua imagem então ressurge no século XV em romances e contos, perdurando até
o século XVI. Especialmente em 1547, registros mostram que aparecem, nos romances velhos
do editor espanhol Martin Núcio, em sua primeira edição e em mais três edições novas em 1581,
vários poemas épicos sobre Maria Padilha. (COSTA, 2015).
Ainda se afirma que, com a chegada dos ciganos na Espanha, Maria Padilha ganha mais
força entre esses povos, já que os ciganos acabam desenvolvendo uma identificação muito
grande com o símbolo libertário que ela representava, até porque era correspondente à forma
com a qual eles próprios viviam. (COSTA, 2015).
Interessante ressaltar que a historiadora Meyer (1993) traz referências à Maria Padilha
nos teatros do século XIX, no qual ela ganha uma nova roupagem, através da obra escrita pelo
francês, Prosper Mérimée, por meio da personagem cigana andaluza, Carmen. A personagem
cigana Carmem era protagonista da ópera de Georges Bizet, fazendo alusões à figura de Maria
Padilha, através dos seus conjuros, cânticos e por invocar o nome da rainha de Castela.
Também, no ano de 1841, há registros de que no teatro La Scala, em Milão, estreou a ópera
denominada Maria Padilla (Padilha), criada por Gaetano Donizatti. Vale mencionar que,
segundo a historiadora, essa ópera posteriormente também foi apresentada no Rio de Janeiro,
pela primeira vez, em 1856.
Muitas lendas e histórias circularam sobre rainha de Castela, narrativas sobre as suas
aparições e os que a viam nestas aparições descreviam-na como muito bela e vestida de roupas
eróticas. Há também lendas em que ela aparecia nas tabernas, seduzia os homens e durante o
ato sexual contava-lhes quem ela realmente era, assustando-os. A circulação dessa narrativa
motivava os homens a irem às tabernas espanholas, na esperança de que se pudessem encontrar
com essa bela mulher. Na inquisição espanhola, Maria Padilha também aparece nas expressões
das ciganas feiticeiras, tanto nas suas invocações, quanto nas confissões ao tribunal eclesiástico.
(COSTA, 2015).
Tudo indica que, com esses acontecimentos e com o apreço do povo cigano, ela
tenha-se tornado uma referência para os povos ciganos da Península Ibérica que a nomearam
como a “Baró Crallisa”, a grande rainha dos ciganos. (MEYER, 1993).
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O Brasil Colônia “era a tensão entre o céu e o inferno, sendo o purgatório dos brancos
e o inferno dos negros”. (VAINFAS, 1988 p.168). A justificativa ideológica do processo de
colonização era a cristianização dos “povos bárbaros”. Contudo, havia também a crença de que
as caravelas portuguesas estavam indo para o paraíso. As próprias descrições, no início, eram
de que as novas terras se assemelhavam às narrativas do Jardim do Éden. Porém, segundo a
historiadora Laura de Mello (2009), essa visão não durou muito, pois, com a estadia dos
portugueses e com o contato com os costumes dos outros povos, designados pelos portugueses
como “as impurezas do diferente”, foi transformando, aos poucos, o paraíso em um inferno.
O contato com esse ambiente, denominado “infernalizado”, acabou consolidando, ao
mesmo tempo a terra conquistada, como também um espaço de purgação para a salvação dos
cristãos. Desta maneira, a visão cristã do expansionismo, além de estabelecer que as terras
foram “descobertas”, também muda o discurso do Paraíso Terrestre para o Novo Mundo, para
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assim reforçar o processo de colonização. É assim que o paraíso se tornou o “Novo Mundo”,
para ser o porto de abrigo aos exilados de Portugal e para “ensinar” aos nativos e aos escravos
a fé cristã. Toda vida humana no Novo Mundo foi demonizada e considerada pecadora. O Brasil
surgia e criava suas bases nesse contexto marcado pela contradição entre o paraíso terrestre,
identificado pela natureza exuberante e um inferno, devido à humanidade que ali estava.
(SOUZA, 2009).
Em referência à religiosidade, por mais que os jesuítas tentassem implantar o
catolicismo e extinguir qualquer outra manifestação religiosa, não foi possível dizimar algo que
estava tão presente e vívido naquele povo. Então, surge uma religião sincrética, que tinha traços
católicos, indígenas, judaicos e africanos. O universo religioso colonial era uma mistura dos
santos católicos, com orixás e com a presença do diabo. (SOUZA, 2009).
Meyer (1993) relata que a história da Maria Padilha de Castela chega ao Brasil colonial,
principalmente, através dos ciganos exilados de Portugal no século XVI. Ainda segundo Meyer
(1993), no decorrer do século XVII, o mito de Maria Padilha novamente surge no imaginário
do Brasil colônia, no entanto, agora não só como a rainha dos ciganos, mas sim, como aquela a
ser invocada pelas feiticeiras, também exiladas de Portugal, por praticarem magia e
compactuarem com “forças trevosas”.
Costa (2015) considera que a primeira feiticeira a chegar ao Brasil tenha sido a Maria
Paixo. Ainda no século XVII, também, tem-se a notícia de que, na Bahia, havia uma bruxa,
Antônia, designada como Nobrega. Existem indícios de que ela possuísse uma expressiva
clientela feminina, por trazer o amor de volta. Também há notícias de uma degredada que veio
para o Brasil em 1633, conhecida como Ana Martins que, com seus noventa anos, efetuava
conjuros de Maria Padilha e de toda a sua quadrilha. (COSTA, 2015).
Importante destacar o que representava a feitiçaria naquela época, qual a sua função e
porque era tão procurada. Segundo Mello (1986), a ideia de magia e feitiçaria estava
intimamente ligada à sobrevivência das pessoas. Assim, buscavam-se, através da feitiçaria,
soluções imediatas para os problemas, desde questões de saúde até problemas referentes aos
relacionamentos amorosos. (SOUZA, 2009).
30
Padilha continua viva no imaginário do povo, transpassado por lendas, histórias, credos, medo
e devoção. (COSTA, 2015).
Foi no contexto do Brasil colônia que credos, crenças, lembranças, Deuses e Santos
misturaram-se de tal maneira que naturalmente foram surgindo religiões com elementos
indígenas, africanos e católicos. Suspeita-se que a primeira religião a surgir dessa fusão tenha
sido a nomeada de “Cantimbós”, na segunda metade do século XVII. Há também relatos de que
será na religião ameríndia-afro-brasileira, “Toré”, que Maria Padilha Castela se manifesta,
através da incorporação, mas que posteriormente é vista manifestando-se em outros cultos:
Instaura-se o elo entre o lado feminino de Exu, a Lebará dos cultos afros yorubás, e a
‘Lebará branca’, das Macumbas cariocas brasileiras, por meio do mito, da feiticeira
andaluza, amante insaciável, fêmea indomável e sedutora. Maria Padilha de Castela,
depois de se manifestar por vários anos no Nordeste brasileiro, migrou e se solidificou
no Rio de Janeiro, a partir do final do século XIX, na Macumba carioca, tornando-se
um Exu-alma-feminina, ou a mulher de Exu-alma, e foi consagrada a rainha carioca
da magia (AUGRAS, 2009; FARELLI, 2006). Após essa associação da Lebará
africana, o lado feminino de Exu yorubano e o duplo feminino de Bombogiro banto,
com a rainha branca Maria Padilha de Castela, ela passa a ser invocada nos terreiros
de religiões sincréticas afro-brasileiras, presentes em todo o País. (COSTA, 2015 p.
33).
Portanto, é perceptível que Maria Padilha talvez seja a mais “popular” imagem da
Pombagira, sendo o foco de muitos historiadores, conhecida em muitos terreiros espalhados
pelo Brasil, e sendo até popular entre os que não são adeptos das religiões afro-brasileiras.
(PRANDI, 2001).
Prandi (2001), relata que Meyer desenvolve uma construção literária baseada em fatos
documentais, no que se refere tanto à personagem histórica ibérica, como às concepções míticas
sobre a Maria Padilha afro-brasileira. A associação, entre o mito construído sobre a história de
Maria Padilha e a imagem da Pombagira, não deixa de ser um ponto muito intrigante para os
historiadores, tanto pela permanência no imaginário popular da rainha de Castela, como pelo
paradoxo da emergência de imagens de mulheres poderosas e livres em períodos históricos
marcadamente repressores sobre as mulheres.
Novamente, fica claro como o mito da Pombagira foge do pensamento linear, como não
cabe em nenhuma história, justificativa ou narrativa fechada e limitada. Mas, embora sejam
muitas versões e narrativas sobre a imagem da Pombagira, percebem-se uma semelhança e
aproximação em suas manifestações, seja no campo religioso ou no imaginário popular, ficando
nítidos os seus traços marcantes de “pouco santa”, mas de muito poder nas diversas histórias
lidas. (BARROS, BAIRRÕES, 2015).
32
Por mais que o sincretismo tenha, de certa forma, preservado elementos próprios dos
negros e dos nativos, grande parte foi perdida, primeiramente, porque a moralidade estava sob
controle do branco, impondo novas maneiras de viver e de ser ao negro, além de a escravidão
separar muitas famílias, aos poucos, destruir as referências tribais. (PRANDI, 1997). Contudo,
por mais que muitos princípios e cultos religiosos africanos tenham sido reprimidos e a religião
dos brancos tenha sido imposta, os negros resistiram.
As práticas das religiões afro-brasileiras permaneceram ao longo da história e não
perderam a sua maior característica: o reconhecimento e a expressão da personalidade humana
em sua totalidade, ou seja, em seus aspectos “positivos” e “negativos”. Por isso, muito se fala
que as religiões afro-brasileiras são religiões de liberação da personalidade, pois não é seu
objetivo o aniquilamento das paixões humanas. Pelo contrário, a própria mitologia dos Orixás
mostra claramente como “mal e bem” fazem parte da natureza humana. (BARROS, BAIRRÃO,
2015).
As religiões afro-brasileiras reconhecem o mal como um elemento característico do
homem e desmistifica a ideia de “mal”. Não existe Orixá ou entidade que seja boa ou má, não
existe pior ou melhor. São forças distintas, mas fundamentais para realização do homem. Nessa
lógica, não há uma moral estabelecida que dite o que é certo ou errado, o que pode e o que não
33
pode, destoando, assim, das religiões de raízes cristãs que pregam normas de conduta, definindo
e separando o que é o bem do que é o mal.
Sendo assim, é possível dizer que as religiões de matrizes africanas veem as pessoas
como seres ambivalentes, que desejam e que lutam por suas realizações. Segundo Prandi
(1997), “o bom seguidor das religiões dos orixás deve fazer todo o possível para que seus
desejos se realizem, pois é através da realização humana que os Deuses ficam mais fortes, e
podem assim mais nos ajudar.” (PRANDI, 1997, p.13).
Interessante pensar nesta relação que se estabelece através da busca do devoto em
realizar os seus desejos, a fim de fortalecer o Orixá, para que este o ajude mais ainda a satisfazer
os seus próprios anseios. Sendo que quando este elo se enfraquece, devido à falta do devoto
para com suas obrigações, o Orixá pode ficar contrariado, afinal, mesmo sendo uma divindade
sagrada, ele pode oscilar entre os sentimentos positivos e negativos, assim como nós, os seres
humanos (BARROS, BAIRRÃO, 2015). Diante dessa lógica, pode-se refletir, a partir do olhar
da psicologia, que se a pessoa não reconhece os seus desejos, uma hora ou outra, ela terá que
se haver consigo mesma.
No que diz respeito à imagem da entidade Pombagira, em relação à aceitação e o
reconhecimento dos próprios desejos humanos, compreende-se que os desejos de ordem sexual
e afetiva podem e devem ser realizados pela mulher. E é por isso que os “Exus e as Pombagiras
são bons exemplos de como essa religião é capaz de incluir toda e qualquer característica do
humano no sagrado”. (BARROS; BAIRRÃO, 2015, p.128). Afinal, as Pombagiras são
entidades que:
lhe permite um total conhecimento e domínio sobre a vida sexual e os relacionamentos afetivos,
podendo assim dar conselhos àqueles que não compreendem os seus desejos, fantasias e
angústias.
Interessante pensar como o termo “prostituta” foi utilizado pelo autor para caracterizar
a entidade. O uso desse termo revela um preconceito? Teria sido empregada para fazer uma
referência às mulheres que rompem com os padrões, em busca de realizarem seus desejos e
viverem livremente suas relações amorosas, ou uma mulher que de fato trabalha como
profissional do sexo? (BARRO, BAIRRÃO, 2015).
Na tese de mestrado, “Arreda homem que ai vem a mulher”, de Nilza Lagos (2007),
percebe-se que há pensamentos que divergem daqueles que o autor Prandi (2001) associa à
imagem da Pombagira. É possível notar essa diferença na declaração que a Mãe de Santo
Yalorixá, Maria Otilia de Omolú, faz ao ser entrevistada por Lagos: “A Pombagira é como nós,
que gosta de tudo que é bom, e, acontece de muitas pessoas acharem que a Pombagira é uma
prostituta, uma mulher que só trabalha para o mal, mas ela ajuda muita gente”. (LAGOS, 2007,
p. 31).
A mãe de santo Fátima de Oyá, também entrevistada por Lagos (2007), traz para
discussão as características da Pombagira, associadas ao seu “poder feminino”.
Ela é maravilhosa e como eu disse, [...] tem gente que diz que Pombagira só faz mal,
é prostituta, isso, aquilo, representa a prostituição. Nada disso. Ela é maravilhosa,
feiticeira, ela passa aquela energia, assim, faz a mulherada se sentir mais mulher, mais
sexy. É isso. Eu gosto que meus olhos chega brilhar, né. (LAGOS, 2007, p. 31).
mulheres”, como Barros e Bairrão (2015) colocam, ou seja, aquela que defende a mulher para
que possa buscar a realização dos próprios desejos.
36
Acreditava-se que eram capazes de gerar toda sorte de monstruosidades, e tal façanha
fazia com que fossem vistas como verdadeiras aliadas do Diabo [...] as mulheres
parecem emprestar seus corpos para que, neles, o Demônio realize as suas astúcias.
(DEL PRIORE, 2013, p. 109).
A crença de que a mulher era mais propensa aos pecados da carne do que o homem
surge devido ao mito do Jardim do Éden, no qual Eva era seduzida pela serpente, cometendo
não só o pecado de comer o fruto proibido, como também induzindo Adão a pecar. Essa era
uma das justificativas para as mulheres serem controladas primeiro pelos pais, posteriormente
pelos maridos, mas sempre sob a direção da Igreja Cristã que postulava uma ligação entre a
sexualidade da mulher com a manifestação do demônio. (COSTA, 2015).
Interessante pensar que o lugar de santa e sagrada era, na verdade, um lugar que tentava
controlar o comportamento e os impulsos sexuais da mulher. Até porque, mesmo ela acatando
o lugar de submissão (santa), era vista como a portadora do “pecado original”.
de criar um ideal de mulher santa, não foi possível calar totalmente as mulheres. A Pombagira
é um símbolo que representa exatamente essa ruptura com a ideia de que a mulher é um objeto,
dando a ela o lugar de sujeito na própria vida, tendo liberdade sexual e impulsionando-a a
quebrar as regras estabelecidas e romper com o continuísmo histórico de submissão e de posse.
(BARROS, BAIRRÃO, 2015).
A Pombagira questiona a opressão sexual vivenciada pelas mulheres. Ela é, segundo
Menezes (2009), um agente transformador que simbolicamente não permite às mulheres
submeterem-se às construções socioculturais desse feminino submisso, passivo e assexuado. A
Pombagira é o símbolo do direito de dizer não, de se colocar em suas relações e de ser dona do
seu próprio corpo. (COSTA, 2015).
Então, da mesma forma que ao mencionar o mito da Pombagira é necessário falar da
repressão da mulher e do estereótipo de prostituta, é fundamental também enfatizar que ela,
mesmo tendo uma imagem de devassa, no imaginário popular, é um grande símbolo da
libertação das mulheres na vivência de seus corpos e dos seus desejos mais íntimos e
encobertos. (LAGOS, 2007).
Importante ressaltar que, mesmo tendo essa característica ambivalente, ela está presente
no campo religioso, ou seja, a sua figura paradoxal é reconhecida como sagrada. Uma figura
como a da Pombagira pertencer ao campo religioso, afro-brasileiro, é muito significativo, uma
vez que esta religião exalta a ambiguidade da personalidade humana, mostra que as
características de forte, livre e desejante podem fazer parte da personalidade, em especial, da
personalidade da mulher. Isso parece soar óbvio, mas não é, pois se fosse ela não seria tão
recriminada e demonizada. (BARROS, BAIRRÕES, 2015).
Quando a Pombagira se opõe à subserviência da mulher, de postura angelical e submissa
que foi estabelecida, ela mostra que não cabe na moldura idealizada para a mulher. Ela não é
angelical e é por isso que é associada ao demônio. Afinal, ambos (a mulher e o demônio), para
a Igreja, seriam indomesticáveis e figuras sem juízo. O mal é atribuído a ela por sua
desobediência ao poder masculino e por sua ousadia em ser diferente do que se é “permitido”
pela sociedade. (BARROS, BAIRRÕES, 2015).
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Interessante pensar que a Pombagira vem acabar com o ‘mal’, sendo que esse mal, de
acordo com Oli Costa (2015), é a violência psicológica e física sofrida por todos os
marginalizados, principalmente a mulher. Neste sentido, percebe-se novamente um paradoxo,
pois a Pombagira é vista como a agente do mal, mas também é quem livra de todo mal a mulher
submissa e todos os excluídos. Sendo assim, é importante refletir que, ao definir a Pombagira
como o demônio feminino ou uma “agente do mal”, deve ser levado em conta de onde vem essa
definição, afinal, por mais que sua imagem seja marcada pela ambiguidade, há que se pensar
que muitas vezes as acusações, as difamações e os estereótipos de destruidora de lar e prostituta
são, na verdade, leituras feitas por um olhar viciado e já preconcebido que distorce aquilo que
destoa e que sai do que é dito normal. Demonizando quando o que se revela é transgressor,
prostituindo quando o que se expressa é erótico, patologizando quando o que vem à tona é o
desejo.
Essa lógica preconceituosa tenta impedir uma elaboração de um feminino que se mostre
de outra maneira, que não só àquela imposta pela sociedade machista. Mas, ao pensarmos que
o símbolo da Pombagira se manteve mais de 600 anos vivo, permite-nos concluir que essa
tentativa não foi de todo um êxito. Alguma coisa esse símbolo tem a dizer, alguma coisa o
mantém no imaginário popular que o faz estar vivo até hoje. (LAGOS, 2007).
42
não corresponde à totalidade das mulheres, uma vez que ainda se vivencia uma transformação
que está em processo. (VIEIRA, 2005).
5 CONCLUSÃO
direto a ele. Mas, a partir de suas manifestações, como, por exemplo, as imagens psíquicas,
padrões de comportamento e as produções humanas, é possível perceber a presença e a
influência dele em nossa vida.
Essas produções humanas, imagens psíquicas e padrões de comportamento podem ser
entendidas como símbolos já que o arquétipo é uma estrutura, uma forma, sendo esta vazia e
em potência. Quando essa imagem é elevada à consciência, ela é preenchida pelas
representações culturais, formando assim um símbolo. Ou seja, pode-se dizer que o símbolo é
o arquétipo em ato, repleto de sentidos, sendo que há os sentidos visíveis, relacionados à cultura
e aos sentidos invisíveis, relacionados ao inconsciente coletivo.
Então, foi possível compreender que a imagem da Pombagira não é um arquétipo por
esta fazer parte da ordem do inalcançável, mas entendê-la como um símbolo foi fundamental,
pois pensar que o seu mito se manteve vivo por mais de 600 anos, percorrendo muitos lugares
do mundo, através de um imaginário popular que levou e leva a imagem de uma mulher forte,
transgressora, sensual e poderosa, é pensar que a imagem da Pombagira diz algo sobre nós
mesmos.
Afinal, como o próprio Jung (2016) afirma, estamos o tempo inteiro sendo envolvidos
por imagens, símbolos e forças inerentes. Não estamos separados do todo. Nossa história é
refletida em mitos e os mitos são reflexos das experiências humanas. Tanto é que, segundo
Campbell (1979), os mitos são narrativas que tentam explicar o mundo humano, sendo assim
ele diz de uma experiência pessoal e de uma vivência em sua universalidade.
Deste modo, considero que consegui depreender o objetivo proposto na elaboração desta
monografia, posto que no decorrer dos estudos pude constatar que a imagem da Pombagira
pode ser uma figura da liberdade sexual da mulher moderna, já que esta traz em sua imagem a
marca de guerreira, sedutora, poderosa, independente e capaz, dando força para a ideia de que
a mulher não pode ser limitada às características de um feminino frágil e santificado. Sua
imagem traz um recado claro: a mulher tem o direito de usufruir da sua sexualidade da maneira
que desejar e de vivenciar o feminino do jeito que para ela faz sentido, proporcionando para si
mesma prazer e bem-estar.
Embora, considerando que foi possível atingir o objetivo desta monografia, não há a
pretensão de esgotar o assunto, visto ser um tema com diversos atravessamentos e que exige
um nível de aprofundamento maior. Finalizo este trabalho sabendo que ele só é o começo.
Afinal, pensar na imagem da Pombagira como um símbolo de libertação sexual da mulher
convida-nos a adentrar em outras discussões, que não foram o foco aqui, mas que são de muita
45
relevância, como por exemplo, a discussão do conceito de gênero, a busca das mulheres pela
igualdade dentro das religiões afro-brasileiras, a relação do mito da Pombagira com o mito
fundante de Lilith, entre outras questões.
Além desses pontos que são levantados como recomendações de futuros trabalhos
complementares a este, fica também uma questão a ser um dia estudada em relação ao arquétipo
da Grande Mãe. Sei, superficialmente, que este arquétipo tem quatro aspectos principais, a
nutrição, a fertilidade, o poder e a destruição. Os dois primeiros são considerados os aspectos
positivos, já os dois últimos são denominados como aspectos negativos. Então, será que a nossa
cultura ocidental nega os aspectos negativos da Grande Mãe? Ou ainda, será que a Pombagira
pode ser um símbolo dos aspectos negativos do arquétipo da Grande Mãe?
Ademais, penso que esta monografia poderá ser de grande utilidade para outros
trabalhos e para estudos realizados sobre o feminino, trazendo, assim, mais informações e mais
clareza sobre um assunto ainda tão polêmico, mas presente cada vez mais em nosso cotidiano,
seja pelas mídias sociais, no ambiente acadêmico ou até mesmo em nossas casas e em nossas
relações.
Acredito, também, que este trabalho poderá ser muito proveitoso para os estudantes de
psicologia que desejam começar a sua jornada dentro da Teoria Analítica, como eu desejei um
dia, mas que não tiveram nenhuma matéria dentro da sua própria graduação acadêmica que
contemplasse o pensamento de Jung, que contribui tanto para o campo da Psicologia.
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REFERÊNCIAS
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(Org.); História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo; Contexto, 2004.
JACOBI, Jolande. Complexo, arquétipo e símbolo. Tradução de Milton Camargo Mota. Rio
de Janeiro: Vozes. 2016.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Rio
de Janeiro: Nova fronteira, 2016.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Vol. 12. Tradução de Léon Bonaventure et al.
Petrópolis: Vozes, 2015.
LAGOS, Nilza Meneses Lino. “Arreda homem que aí vem mulher...”. 2007. 130f.
Dissertação de Mestrado. Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo,
2007. Disponível em: <
47
http://tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/435/1/Nilza%20Menezes%20Lino%20Lagos.pdf
>. Acesso em 09 mar.2018.
MEYER, Marlyse. Maria Padilha e toda sua quadrilha: de amante de um rei de Castela a
pomba-gira de umbanda. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
PRANDI, Reginaldo. Deuses africanos no Brasil. In: PRANDI, Reginaldo (Org.); Herdeiras
do Axé. São Paulo; Hucitec, 1997.
SILVA; Camila Vieira. Magia e feitiçaria na colônia: a originalidade das práticas sincréticas.
Revista Historiador, Brasil, N. 04. pp. 77-86, Dez. 2011. Disponível em:
<http://www.historialivre.com/revistahistoriador> Acesso em 06 fev.2018
VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo Feminino e o Santo Ofício. In: DEL PIORE, Mary
(Org.); História das mulheres no Brasil. 10ª ed. São Paulo; Contexto, 2013.