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Desperdício

IHU
A mística

ON-LINE
nupcial
Teresa de Ávila e
Thomas Merton,
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 460 - Ano XIV - 16/12/2014
ISSN 1981-8769 (impresso)
ISSN 1981-8793 (online)

dois centenários

Arte: Andriolli Costa. Fonte: Merton.org

Marco Giselle Luciana


Vannini: Gómez: Barbosa:
A conexão mística Santa Teresa e a A poesia
de Teresa de Ávila e revolução espiritual das carícias
Thomas Merton feminina
E MAIS

Timothy Lenoir: Tshepo Madlingozi: José Eduardo Franco:


Controle neural e A derrocada dos “Vieira era um Indiana
neuromarketing. Uma movimentos sociais na Jones das missões”
reconfiguração do ser África pós-Apartheid
humano
A mística nupcial. Teresa de Ávila e
Editorial

Thomas Merton, dois centenários

E
m 2015, comemoram-se os 500 nho inverso ao de Copérnico, o qual havia Cristiana Dobner, irmã carmelita
anos do nascimento de Teresa de deslocado o eixo da Terra para o Sol. Se- descalça, escritora, estudiosa e pesqui-
Ávila (1515-1582) e o centenário gundo ele, Teresa talvez seja a santa mais sadora de teologia, que vive no mosteiro
de Thomas Merton (1915-1968) estudada por psicanalistas e filósofos, e de Santa Maria do Monte Carmelo, Itália,
duas grandes referências da mística cristã. é um fenômeno midiático. “Sobre ela há analisa a aproximação da espiritualidade
Reconhecidos pela busca da interioridade uma infinidade de obras de arte: filmes, de Teresa com Inácio de Loyola, já que o
e pelo amor a Deus e ao próximo, eviden- peças de teatro, romances, etc”. magis de Inácio “ressoa em todas as suas
ciar o legado teológico de ambos os mís- No ponto de vista de Giselle Gómez, obras”.
ticos, sua trajetória, sentido e atualidade da Pontifícia Universidade Lateranense Norma Nasser, doutoranda em Ci-
de suas vivências é o que pretende esta de Roma, Teresa “foi capaz de ouvir a si ência da Religião pelo Programa de Pós-
edição da revista IHU On-Line. mesma, de aprender a confrontar-se com graduação da UFJF, reflete acerca da apro-
Para o teólogo Faustino Teixeira, aquilo que supõe a mudança e de ir cons- ximação entre a mística de Merton e o
professor e pesquisador da Universidade truindo outra maneira de ser mulher”. zen-budismo como caminho para alcançar
Federal de Juiz de Fora – UFJF, há uma Para Lúcia Pedrosa-Pádua, professo- o cristianismo.
relação evidente entre as trajetórias de ra e pesquisadora da Pontifícia Universida- Por fim, para Sibelius Cefas Pereira,
Teresa de Ávila e Thomas Merton, já que de Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, professor da Pontifícia Universidade Cató-
ambos se inserem numa tradição de mís- Teresa rompeu com o estereótipo submis- lica de Minas Gerais – PUCMG, a obra de
tica nupcial – aquela cujo tema central é o so e piedoso esperado das mulheres. Merton transcende em muito o universo
do amor, que se insere no coração mesmo Analisando suas visões e êxtases, o religioso, e defende a contemplação como
da divindade. psiquiatra espanhol Jesús Sanchez-Caro uma resposta à vida contemporânea.
Marco Vannini, reconhecido como frisa que as experiências místicas de Tere- Complementam essa edição as
um dos maiores especialistas sobre mís- sa de Ávila de modo algum têm a ver com entrevistas com José Eduardo Franco,
tica especulativa no mundo, afirma que psicopatologias, e que a vida dessa mística Universidade de Lisboa, sobre as obras
a experiência comum entre esses dois é um exemplo paradigmático daquilo que completas e a vida do padre Antônio Viei-
místicos é “aquela da interioridade mais na psicologia moderna se denomina de ra, Tshepo Madlingozi, Universidade de
profunda, aquele ‘local místico’ que é a “resiliência”. Pretória, África do Sul que aborda a der-
essência do ser humano em geral, sem Luciana Barbosa, doutoranda em rocada dos movimentos sociais na África
conhecer o que se perdeu na ‘região da Ciência da Religião pela Universidade Fe- pós-Apartheid e com o filósofo norte-
desigualdade’ da memória agostiniana”. deral de Juiz de Fora – UFJF, observa que o -americano Timothy Lenoir, Universida-
O teólogo espanhol Secundino Cas- corpo, para Teresa, se torna uma extensão de de Duke, que acentua que a visão e a
tro Sánchez, da UniversidadPontificiaCo- de sua experiência mística. E que é nele postura antropocêntrica que constituem
millas, de Madri, reflete sobre a cristolo- que a demonstração do que é vivenciado a modernidade estão transformando a
gia de Teresa de Ávila, relacionando Jesus com Deus pode se apresentar. natureza em algo que controlamos e que
– em sua corporeidade – como lugar defi- Já para o editor espanhol das obras podemos usar para nossos próprios fins.
nitivo de revelação de Deus. teresianas, Maximiliano Herraiz, “a ponte A revista voltará a circular em 2015.
Frei Betto, escritor, acredita que a entre verdade e amor, inteligência e afeti- A todas e a todos uma boa leitura e
grande novidade que Teresa de Ávila reali- vidade, adquire em Teresa uma harmonia os melhores votos de um Feliz Natal e Ano
zou, à sua época, foi ter percorrido o cami- perfeita”. Novo!
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Unisinos REDAÇÃO Revisão: Carla Bigliardi

Diretor de redação: Inácio Projeto gráfico: Agência


Neutzling (inacio@unisinos.br). Experimental de Comunicação
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São Leopoldo/RS. Humanitas Unisinos – IHU (andriollibc@unisinos.br),
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na Unisinos. (ricardom@unisinos.br). Larissa Tassinari

2
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Biografias – Teresa de Ávila e Thomas Merton
6 Faustino Teixeira – O legado de Teresa e Merton – Por uma conexão entre o amor
humano e o espiritual
12 Marco Vannini – A conexão mística de Teresa de Ávila e Thomas Merton
18 Giselle Gómez – Santa Teresa e a revolução espiritual feminina
22 Luciana Barbosa – A poesia das carícias
28 Cristiana Dobner – A beleza e a incompreensão de uma vida contagiosa
32 Secundino Castro Sánchez – “Em seu eu volta a acontecer o Gênesis” – A interioridade
em Santa Teresa
37 Frei Betto – O deslocamento celestial do Deus de Teresa de Ávila
40 Lúcia Pedrosa-Pádua – A liberdade da experiência no encontro com Deus
46 Jesús Sanchez-Caro – Contra a patologização psicológica da Mística
50 Maximiliano Herraiz – “Deus é antropocêntrico por ser amor”
52 Sibelius Cefas Pereira – A contemplação como resposta em Thomas Merton
57 Norma Ribeiro Nasser – A grande compaixão em Merton – Os nexos entre Cristianismo
e Zen-budismo
61 Baú da IHU On-Line

DESTAQUES DA SEMANA
64 Destaques On-Line
66 Timothy Lenoir – Controle neural e neuromarketing. Uma reconfiguração do ser humano
72 Tshepo Madlingozi – A derrocada dos movimentos sociais na África pós-Apartheid

IHU EM REVISTA
76 Guia de Leitura
80 Eventos 2015 – Mística, cinquentenário do Concílio Vaticano II e as metrópoles abrem o
calendário de eventos do IHU em 2015
83 José Eduardo Franco – “Vieira era um Indiana Jones das missões”
90 Publicação em Destaque – A Arte da Ciência e a Ciência da Arte: uma abordagem a
partir de Paul Feyerabend
91 Retrovisor
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3
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Teresa de Ávila (1515-1582)

Tema de Capa
para estudar no Convento Letras, 2010), Caminho da Perfeição
das Agostinianas de Ávila. (São Paulo: Paulus, 2014), Moradas e
Quando leu as Cartas de São Fundações (São Paulo: Paulus, 2014),
Jerônimo, disse que iria se entre outros. Escreveu também po-
tornar religiosa. Como o pai emas, dos quais restam 31 deles, e
não aprovou, com 20 anos enorme correspondência, com 458
acabou fugindo para o Con- cartas autenticadas.
vento Carmelita de Encarna- Santa Teresa morreu no dia 4 de
cíon, em Ávila. outubro de 1582, com 67 anos. Foi se-
Passados 25 anos, pe- pultada em Alba de Tormes, onde estão
diu permissão ao provincial suas relíquias. Foi canonizada no dia 27
para fundar novas casas. de setembro de 1970, pelo Papa Paulo
Teresa de Cepeda e Ahumada A intenção foi buscar uma vida mais Vl, que lhe conferiu o título de Doutora
nasceu em Ávila, Espanha, no ano de austera e numa casa menor, já que da Igreja, e sua festa é comemorada no
1515. De família nobre, desde cedo vivia com cerca de 200 freiras. Anos dia 15 de outubro. Sobre Teresa, con-
demonstrava traços de sua personali- depois, fundou a ordem das carmeli- fira Teresa - A Santa Apaixonada (Rio
dade forte. Gostava de ler histórias de tas descalças. Também fundou vários de Janeiro: Objetiva, 2005), de autoria
santos e chegou a fugir de casa com conventos e deixou uma extensa bi- de Rosa Amanda Strausz, Obras com-
seu irmão para tentar evangelizar os bliografia. Entre os livros mais conhe- pletas (São Paulo: Loyola, 1995) e San-
mouros. Sua mãe faleceu quando cidos estão Livro da Vida (São Paulo: ta Teresa de Jesus – “Livro da vida” (4ª
tinha 14 anos. Assim, o pai a levou Penguin Classics - Companhia das ed., São Paulo: Ed. Paulus, 1983).

Thomas Merton (1915-1968)


quinze idiomas. É autor de mais de 60 dos direitos civis. Por seu ativismo so-
outros livros e centenas de poemas e cial, foi duramente criticado por cató-
artigos. Sua temática vai da espiritu- licos e não católicos.
alidade monástica aos direitos civis, Durante seus últimos anos,
não violência e da corrida armamen- dedicou-se a religiões asiáticas, par-
tista nuclear. ticularmente o Zen-Budismo. Duran-
Nasceu em Prades, França, em te uma viagem para a conferência www.ihu.unisinos.br
31 de janeiro de 1915. Depois de uma Leste-Oeste sobre Diálogo Monástico
juventude de indisciplina, Merton foi Merton morreu, em Bangkok, em 10
convertido ao catolicismo romano. de dezembro de 1968, vítima de um
Em 1941, entrou na Abadia de Geth- choque elétrico acidental. A data mar-
semani, uma comunidade de monges cou o vigésimo sétimo aniversário de
pertencentes à Ordem Cisterciense da sua entrada para Gethsemani. O livro
Estrita Observância (trapistas). Os 27 Merton na intimidade - Sua Vida em
anos que passou no Gethsemani trou- Seus Diários (Rio de Janeiro: Fisus,
xe mudanças profundas na sua auto- 2001) é uma seleção extraída dos
Merton é considerado o autor ca- compreensão. Esta conversão perma- vários volumes do diário de Thomas
tólico norte-americano mais influente nente impeliu para a arena política, Merton, autor de livros famosos como
do século XX. Sua autobiografia, The onde se tornou, de acordo com Daniel A Montanha dos Sete Patamares (São
Seven Storey Mountain (Harcourt; Berrigan, a consciência do movimento Paulo: Itatiaia, 1998) e Novas semen-
1998), já vendeu mais de um milhão pacifista da década de 1960. Ainda foi tes de contemplação (Rio de Janeiro:
de cópias e foi traduzida para mais de defensor do movimento não violento Fisus, 1999).

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 5


O legado de Teresa e Merton –
Tema de Capa

Por uma conexão entre o amor


humano e o espiritual
O teólogo Faustino Teixeira expõe os nexos entre os dois místicos, para quem o amor
ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor
de Deus

Por Márcia Junges e Andriolli Costa

Q
uais são os nexos que unem uma irmã sação, no entanto, é sempre fruto do instante,
religiosa carmelita do século XVI com pontual, “e essa experiência interior guarda o
um monge trapista que viveu qua- segredo essencial de uma retomada da expe-
tro séculos mais tarde? Quais motivos levam riência no mundo pontuada por olhar singular,
a celebrar neste 2015 que se aproxima, tanto de quem viveu a experiência radical da humil-
o aniversário dos 500 anos de Teresa de Ávila dade e do despojamento”.
quanto o centenário de Thomas Merton? Para Teixeira trabalha ainda a corporalidade na
o teólogo Faustino Teixeira, a relação é eviden- obra de Teresa de Jesus, e os modos como
te. Ambos se inserem numa tradição de Mística esta entra com vigor na dinâmica amorosa
Nupcial – aquela cujo tema central é o do amor, com o Mistério sempre maior. “Teresa reto-
que se insere no coração mesmo da divindade – mava sempre essa ideia da receptividade do
na qual Teresa como também São João da Cruz Mistério através do suporte humano: ‘Deve-se
são os ápices, e Merton, uma atualização no buscar o criador por intermédio das criaturas’
século XX. (Vida, 22,8). Não sem razão, sua paixão imen-
Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, sa pela “sacratíssima humanidade” de Jesus.
Faustino Teixeira aponta a força e a centralida- Na verdade, não há como excluir o corpo da
de do amor na experiência contemplativa como experiência espiritual: corpo e espírito oram
a principal aproximação entre ambos. “Teresa simultaneamente”.
vai assinalar os dois fundamentais imperativos Faustino Teixeira é professor do Programa
da união mística: o amor a Deus e ao próximo. de Pós-Graduação em Ciência da Religião da
A união com o Mistério maior estará para ela Universidade Federal de Juiz de Fora – PPCIR-
garantida quando estes dois amores forem atu- -UFJF, pesquisador do CNPq e consultor do
ados com carinho e delicadeza.” Para Santa Te- ISER-Assessoria. É pós-doutor em Teologia pela
www.ihu.unisinos.br

resa “o amor ao próximo nunca desabrochará Pontifícia Universidade Gregoriana. Entre suas
perfeitamente se não brotar da raiz do amor de publicações, encontram-se Teologia e pluralis-
Deus”. De mesmo modo, Merton defendia que mo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti
a vida no amor “constitui o ápice de seu itinerá- Editora, 2012); Catolicismo plural: dinâmicas
rio espiritual e contemplativo”. contemporâneas (Petrópolis: Vozes, 2009); Ecu-
“Nesse caminho espiritual a oração ganha menismo e diálogo inter-religioso (Aparecida
um lugar de centralidade, enquanto momento do Norte: Santuário, 2008); Nas teias da delica-
especial e garantido para a arrumação da casa deza: Itinerários místicos (São Paulo: Paulinas,
interior, de unificação da vida”, aponta o teó- 2006); No limiar do mistério. Mística e religião
logo, chamando atenção para a relação funda- (São Paulo: Paulinas, 2004); e Os caminhos da
mental entre a interioridade e a ação. “O ver- mística (São Paulo: Paulinas, 2012).
dadeiro encontro com Deus ou o Mistério não Recentemente publicou, em co-autoria com
isola o sujeito do mundo e do tempo. Ocorre Renata Menezes, Religiões em Movimento. O
em geral um momento de concentração espi- Censo de 2010 (Petrópolis: Vozes, 2013).
ritual, de quietude, de solidão”, relata. A sen- Confira a entrevista.

6 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


IHU On-Line – Que nexos aproxi- firma no “prolongamento da experi- cisterciense, e alcança seu ponto cul-

Tema de Capa
mam as trajetórias místicas de Teresa ência metafísica em termos de inten- minante, em riqueza simbólica e dou-
de Ávila1e de Thomas Merton2? sidade experiencial”. Ela expressa o trinal, com São João da Cruz6 e Teresa
Faustino Teixeira – A mística substantivo esforço do espírito huma- de Ávila. Mas podemos acrescentar aí
cristã ocidental trilhou caminhos sin- no, no roteiro do logos, de penetrar também a experiência cisterciense de
gulares. Por um lado, temos uma tra- “no domínio do translógico”. O seu Thomas Merton.
dição que privilegiou mais o caminho itinerário bebe do dinâmico encontro Não teria dúvida em apontar
especulativo, do conhecimento. Trata- entre cristianismo e platonismo. Por como nexo mais importante que vin-
-se, como mostrou Henrique Cláudio outro, temos a chamada “mística nup- cula os dois grandes místicos, a força
de Lima Vaz3, de uma mística que se cial” (Brautmystik), que floresce no e centralidade do amor na experi-
cristianismo – desde Orígines4 – com ência contemplativa. Isto era chave
1 Teresa de Ávila (1515-1582): freira car-
a interpretação alegórica do Cântico para Teresa, e também para Thomas
melita espanhola nascida em Ávila, Cas- dos Cânticos. Ela atravessa a mística Merton. Em suas Moradas, Teresa vai
tela, famosa reformadora da ordem das medieval, com a presença importante assinalar os dois fundamentais im-
Carmelitas. Canonizada por Gregório XV
(1622), é festejada na Espanha em 27 de
de Bernardo de Claraval5 e a mística perativos da união mística: o amor
agosto, e no resto do mundo em 15 de a Deus e ao próximo. A união com o
outubro. Foi a primeira mulher a receber Mistério maior estará para ela garan-
o título de doutora da igreja, por decre- sa, com Marcelo Fernandes de Aquino, na
to de Paulo VI (1970). Entre seus livros edição 186, de 26-06-06, disponível em
tida quando estes dois amores forem
citam-se Libro de su vida (1601), Libro de http://bit.ly/ihuon186; Vaz e a filoso- atuados com carinho e delicadeza.
lasfundaciones (1610), Camino de laper- fia da natureza, com Armando Lopes de Dizia: “Quanto mais adiantadas es-
fección (1583) e Castillo interior ou Li- Oliveira, na edição 187, de 03-07-06,
bro de lassiete moradas (1588). Escreveu disponível em http://bit.ly/ihuon187.
tiverdes no amor ao próximo, tanto
também poemas, dos quais restam 31 de- Veja também os artigos intitulados O mais o estareis no amor de Deus”. E
les, e enorme correspondência, com 458 comunitarismo cristão e a refundação depois complementa afirmando que
cartas autenticadas. Sobre Teresa, confi- de uma ética transcendental, na edição
ra Teresa – A Santa Apaixonada (Rio de 185, de 19-06-06, disponível em http://
“o amor ao próximo nunca desabro-
Janeiro: Objetiva, 2005), de autoria de bit.ly/ihuon185, e Um diálogo cristão chará perfeitamente em nós se não
Rosa Amanda Strausz; Obras completas com o marxismo crítico. A contribuição brotar da raiz do amor de Deus”. As-
(São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Teresa de Henrique de Lima Vaz, na edição 189,
de Jesus – “Livro da vida” (4ª ed., São de 31-07-06, disponível em http://bit.
sim também em Merton, a vida no
Paulo: Ed. Paulus, 1983). (Nota da IHU ly/ihuon189, ambos de autoria do Prof. amor constitui o ápice de seu itine-
On-Line) Dr. Juarez Guimarães. Inspirada no pen- rário espiritual e contemplativo. Di-
2 Thomas Merton (1915-1968): monge samento de Lima Vaz, a IHU On-Line
católico cisterciense trapista, pioneiro 197, de 25-09-2006, trouxe como tema
zia numa de suas obras, A vida silen-
no ecumenismo no diálogo com o budis- de capa A política em tempos de niilis- ciosa (Petrópolis: Vozes, 2002), que
mo e tradições do Oriente. O livro Mer- mo ético, disponível para download em o modo de ser “espiritual” da vida
ton na intimidade – Sua Vida em Seus http://bit.ly/ihuon197a. Padre Vaz e o
Diários (Rio de Janeiro: Fisus, 2001), é diálogo com a modernidade foi o tema
monástica envolve a encarnação no
uma seleção extraída dos vários volumes abordado por Marcelo Perine em uma con- tempo, nas alegrias, dores, perigos
do diário de Thomas Merton, autor de li- ferência em 22-05-2007, no Simpósio In- e lutas que pontuam a dinâmica da
vros famosos como A Montanha dos Sete ternacional O futuro da Autonomia. Uma
Patamares (São Paulo: Itatiaia, 1998) e sociedade de indivíduos? Leia, também, a
criação. É justamente por estarem
Novas sementes de contemplação (Rio de edição 374 da IHU On-Line sobre o lega- “absortos em Deus” que os santos
Janeiro: Fisus, 1999). O livro foi editado do filosófico vaziano, de 26-09-2011, em voltavam-se com todo o seu em-
por Patrick Hart, também monge e cola- http://bit.ly/ihuon374. O Cadernos IHU
borador de Merton. Na matéria de capa em sua 42ª edição também teve um tema
da edição 133 da IHU On-Line, de 21-03- dedicado ao pensador, intitulado Ética e
2005, publicamos um artigo de Ernesto Intersubjetividade: a filosofia do agir hu-
Cardenal, discípulo de Merton, que fala mano segundo Lima Vaz, de autoria de res e religiosas. Uma das mais famosas foi
sobre sua relação com o monge. (Nota da Antonio Marcos Alves da Silva. Acesse pelo a ordem dos cavaleiros templários. (Nota
IHU On-Line) link http://bit.ly/cadihu42. (Nota da IHU da IHU On-Line)
3 Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921– On-Line) 6 João de Yepes ou São João da Cruz
2002): filósofo e padre jesuíta, autor 4 Orígenes de Alexandria ou Orígenes, (1542-1591): ingressou na Ordem dos www.ihu.unisinos.br
de importante obra filosófica. A revista o Cristão (185-253): foi um teólogo, fi- Carmelitas aos 21 anos de idade, em
Síntese número 102, jan.-ab. 2005, p. lósofo neoplatônico patrístico e um dos 1563, quando recebe o nome de Frei
5-24, publica o artigo Um Depoimen- Padres gregos. Um dos mais distintos pu- João de São Matias, em Medina del Cam-
to sobre o Padre Vaz, de Paulo Eduardo pilos de Amônio de Alexandria, Orígenes po. Em setembro de 1567 encontra-se
Arantes, professor do Departamento de foi um prolífico escritor cristão, de gran- com Santa Teresa de Jesus, que lhe fala
Filosofia da USP, que merece ser lido e de erudição, ligado à Escola Catequética sobre o projeto de estender a Reforma
consultado com atenção. A IHU On-Line de Alexandria. (Nota da IHU On-Line) da Ordem Carmelita também aos padres.
número 19, de 27-05-2002, disponível em 5Bernardo de Claraval(1090-1153): co- Aceitou o desafio e trocou o nome para
http://bit.ly/ihuon19, dedicou sua ma- nhecido também como São Bernardo, João da Cruz. No dia 28 de novembro de
téria de capa à vida e à obra de Lima era oriundo de uma família nobre de 1568, juntamente com Frei Antônio de
Vaz, com o título Sábio, humanista e Fontaine-les-Dijon, perto de Dijon, na JesúsHeredia, inicia a Reforma. No dia
cristão. Sobre ele também pode ser Borgonha, França. Aos 22 anos foi estudar 25 de janeiro de 1675 foi beatificado por
consultado na IHU On-Line nº 140, de teologia no mosteiro de Cister. Em 1115 Clemente X. Foi canonizado em 27 de de-
09-05-2005, um artigo em que comenta fundou a abadia de Claraval, sendo o seu zembro de 1726 e declarado Doutor da
a obra de Teilhard de Chardin, disponí- primeiro abade. Fundou 163 mosteiros Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi
vel em http://bit.ly/ihuon140. A edição em vários países da Europa. Durante sua proclamado “Patrono dos Poetas Espa-
142, de 23-05-2005, publicou a editoria vida monástica demonstrava grande fé nhóis”. Sua festa é comemorada no dia
Memória em homenagem a Lima Vaz, dis- em Deus serviu à igreja católica apoian- 14 de dezembro. Sobre São João da Cruz,
ponível para download em http://bit.ly/ do as autoridades eclesiásticas acima das confira As obras completas de São João
ihuon142. Confira ainda a entrevista Vaz: pretensões dos monarcas. Em função dis- da Cruz (Petrópolis: Vozes, 2002). (Nota
intérprete de uma civilização arreligio- to favoreceu a criação de ordens milita- da IHU On-Line)

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 7


penho e vitalidade para ver, amar e nos Estados Unidos e Inglaterra, bem Nova Guiné, e aquele seu relato ma-
Tema de Capa
apreciar as coisas criadas. como de suas viagens pela Europa. ravilhoso sobre o início de sua expe-
Em meio a um rico percurso cultural e dição: “Imagine-se o leitor repentina-
IHU On-Line – Em 2015 celebra- político ele vive o chamado à conver- mente sozinho, em meio a todo o seu
mos os 100 anos do nascimento de são. Para esse momento de luz teve equipamento, em uma praia tropical
Merton e 500 anos do nascimento grande importância a presença de um perto de uma aldeia nativa, enquan-
de Santa Teresa. Em que sentido suas monge, o Doutor Brahmachari8, com to a lancha ou o escaler que o trouxe
trajetórias e seu “diálogo” com o Mis- o qual selou um caminho de amizade vai-se afastando no mar até sumir de
tério inspiram a contemporaneida- e confidência. E isto se deu em razão vista”. E aí o antropólogo se vê sozi-
de e a crise epocal na qual estamos de uma convergência especial: os nho no alojamento, tendo então que
mergulhados? dois procuravam um “gênero de vida empreender juntos aos “outros” o seu
Faustino Teixeira – Sem dúvida, que tivesse Deus como centro”. Para trabalho etnográfico.
o ano de 2015 estará adornado com Merton, foi certeiro o conselho rece- Com Merton aconteceu algo se-
estas duas lindas celebrações. Será a bido do monge: “Existem belíssimos melhante: veio desafiado a viver a sua
ocasião propícia para pensar com cal- livros místicos escritos pelos cristãos. experiência monacal em radical aber-
ma na crise epocal que nos envolve e Você devia ler as Confissões de Santo tura ao mundo da diferença. E o curio-
preocupa. Já dizia Lima Vaz que toda Agostinho e A Imitação de Cristo9”. O so nisso tudo é que, à medida que
nossa revolução antropocêntrica, monge que vem de longe aconselha avançava em sua unificação interior,
que se desdobra agora nos descasos ao Merton buscador ceifar no âmbito na vida meditativa, mais dilatava o ca-
do Antropoceno,7 produziu uma “dis- da mística cristã o caminho de profun- minho de sua abertura aos universos
solução da inteligência espiritual”. didade. Estava aberta a senha para o novos, e em particular ao budismo. O
Isso é muito grave e merece a nossa seu itinerário espiritual, que será des- diálogo e abertura a esta tradição foi
atenção. O grande legado de Teresa dobrado em sua experiência na Trapa. um dos principais interesses intelec-
e Merton é uma convocação ao mun- tuais e espirituais de Merton, que foi
do interior, ao desapego, à desacele- IHU On-Line – Em que medida ganhando terreno na sua vida, sendo
ração, de forma a afinar os sentidos Thomas Merton foi um ativista do coroado na sua peregrinação asiática
para poder captar o canto da criação. espírito, um argonauta explorando a de 1968. No contato com os monges
Em página de seu diário, em outubro alma cristã, uma ponte entre o Leste asiáticos pôde perceber a riqueza da
de 1965, Merton dizia: “Não venho à e o Oeste? vida contemplativa, para além da cir-
solidão para ‘atingir os pícaros da con- Faustino Teixeira – Muito boa cunscrição cristã: “São especialistas
templação’, mas para descobrir pe- essa referência a Merton como um ar- em meditação e contemplação. Isto
nosamente, para mim mesmo e para gonauta do espírito. Isso me faz lem- é o que mais me atrai. Não se pode
meus irmãos, a verdadeira dimensão brar a aventura antropológica de Ma- calcular o valor do contato direto com
escatológica de nosso chamado”. A linowski10 nas ilhas mais afastadas da gente que, na realidade, trabalhou a
solidão para ele devia ser sempre so- vida inteira treinando a mente e se li-
nora, com a disponibilidade de tudo 8 MahanambrataBrahmachari (1904-
bertando da paixão e da ilusão”. A ex-
abarcar, ela é simplesmente “a pleni- 1999): monge hindu, iogue da ordem periência e contato com gente dessas
tude do amor que não rejeita nada e Mahauddharan. Filósofo, escritor e mes- grandes tradições asiáticas favoreceu
tre religioso. Enviado para representar o
ninguém, que se abre para Todos em grupo MahanamSampradaya nos Estados
um aprendizado novo para Merton,
Tudo” (em página de seu diário, de 14 Unidos, obteve o doutorado em Teologia de que na abertura dialogal se firma
de abril de 1966). Vaishnava na Universidade de Chicago. uma maravilhosa oportunidade de
Lá teve diversas discussões com Thomas
Merton, e o incitou – para a surpresa de
aprendizado sobre as potencialidades
IHU On-Line – A montanha dos Merton – a explorar sua própria tradição e da própria tradição cristã.
sete patamares (Petrópolis: Vozes, espiritualidade cristã ao invés de apren-
der mais sobre o hinduísmo. (Nota da IHU
2005) fez de Merton o monge mais IHU On-Line – Qual é o grande
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On-Line)
famoso do mundo. O que esse livro 9 Imitação de Cristo: obra da literatura legado místico de Teresa de Ávila e
tem de especial? devocional publicada no século XV por como se pode descrevê-lo?
Tomás de Kempis. (Nota da IHU On-Line)
Faustino Teixeira – É a obra que 10 BronisławKasper Malinowski (1884–
Faustino Teixeira – Vejo como
traça o primeiro itinerário espiritual 1942): antropólogo polaco considerado legado essa íntima conexão entre o
de Merton e sua experiência de con- um dos fundadores da moderna antro- amor espiritual e o amor humano.
pologia social, também conhecida como
versão. Não há quem leia esse livro a escola funcionalista. Suas grandes in-
Não se trata, em hipótese alguma, de
sem se apaixonar. O caminho ali tra- fluências incluíam James Frazer e Ernst caminhos separados, como se hou-
çado é de uma beleza singular. Fala Mach. Segundo o antropólogo Ernest Gell- vesse duas vias paralelas e desvincu-
ner, Malinowski tomou uma posição ori-
de seu nascimento nos Pirineus fran- ginal em relação aos conflitos de ideias
ceses, na presença acolhedora e ar- do seu tempo. Ele não repudiou o nacio- buição de Malinowski à antropologia foi
tística de seus pais; de sua formação nalismo, uma das ideologias nascentes e o desenvolvimento de um novo método
marcantes do século XIX, mas fusionou de investigação de campo, cuja origem
o romantismo com o positivismo de uma remonta à sua intensa experiência de
7 Antropoceno: termo usado por alguns nova maneira, tornando possível inves- pesquisa na Austrália, inicialmente, com
cientistas para descrever o período mais tigar as velhas comunidades, porém, ao o povo Mailu (1915) e, posteriormente,
recente na história do Planeta Terra. mesmo tempo, recusando conferir au- com os nativos das Ilhas Trobriand (1915-
(Nota da IHU On-Line). toridade ao passado. A principal contri- 1917). (Nota da IHU On-Line)

8 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


ladas. Não, diz Teresa com toda a con- insistem em mostrar que o verdadeiro lheu para abrir o primeiro capítulo de

Tema de Capa
vicção, a experiência de Deus passa encontro com Deus ou o Mistério não seu livro:Thérèsemonamour(Fayard,
pelo caminho dos outros e das obras. isola o sujeito do mundo e do tempo. 2008). É um tema que trabalho com
Ela é enfática nesse ponto: “A oração Ocorre em geral um momento de con- afinco nas minhas aulas sobre Teresa
serve para chegar aqui, filhas minhas. centração espiritual, de quietude, de de Ávila, a presença e participação
Eis a finalidade deste matrimônio es- solidão, de aprofundamento pessoal do corpo em sua experiência místi-
piritual: que dele nasçam obras, sem- e destaque, mas sempre passageiro ca. A corporalidade entra com vigor
pre obras” (VII M, 4,6). Amor a Deus e pontual, e essa experiência interior nessa dinâmica amorosa com o Mis-
e amor ao próximo, é o que pede o guarda o segredo essencial de uma tério sempre maior. Teresa retomava
Senhor, diz Teresa com serenidade retomada da experiência no mundo sempre essa ideia da receptividade do
exemplar. pontuada por olhar singular, de quem Mistério através do suporte humano:
Nesse caminho espiritual a viveu a experiência radical da humil- “Deve-se buscar o criador por inter-
oração ganha um lugar de centra- dade e do despojamento. Como diz médio das criaturas” (Vida, 22,8). Não
lidade, enquanto momento espe- o grande estudioso de João da Cruz, sem razão, sua paixão imensa pela
cial e garantido para a arrumação Jean Baruzzi12, “são as coisas mesmas “sacratíssima humanidade” de Jesus.
da casa interior, de unificação da que, repudiadas no início com a ne- Na verdade, não há como excluir o
vida. É o momento em que água gação da noite, voltam a ser absor- corpo da experiência espiritual: cor-
do rio deixa-se habitar pela água do vidas na alma, descobertas em Deus po e espírito oram simultaneamente.
céu, a ponto de confundirem-se num e apaixonadamente amadas em sua Como assinala Michel de Certeau15,
bailado de grandeza indizível. Adver- grandeza”. torna-se quase impossível dizer se o
tindo, porém, aqueles que acabam trabalho espiritual é fruto do corpo
se fechando no mundo da oração, IHU On-Line – No Livro da Vida, ou do espírito. O que ocorre é que os
Teresa indica que o essencial da vida Teresa de Ávila diz que não somos dois participam da experiência com
espiritual não se encerra “nessas ex- anjos, já que temos um corpo. A par- a mesma intensidade (SullaMistica,
terioridades”. Nada mais distante da tir dessa perspectiva, e pensando Morcelliana, 2010).
vida espiritual autêntica do que ficar ainda na escultura de Bernini,13 como Para exemplificar isso, Certeau
“encapotado” na oração. Ela assinala podemos compreender a relação en- faz recurso a uma narrativa da tradi-
para as companheiras: “Não, irmãs, tre a mística e o êxtase? ção cristã, que trata de monges dos
não é assim! O Senhor quer obras. Se Faustino Teixeira – Gosto imen- primeiros tempos da igreja, em mea-
vês uma enferma a quem podes dar samente dessa citação de Teresa no
algum alívio, não tenhas receio de Livro da Vida: “Não somos anjos, pois
perder a tua devoção e compadece-te temos um corpo” (Vida, 22,10). Foi a Roland Barthes, é uma das mais respei-
tadas intelectuais da atualidade. Seus
dela. E se lhe sobrevém alguma dor, expressão que Julia Kristeva14 esco- pensamentos envolvem teoria literária,
doa-te como se a sentisses em ti. Se semiologia, filosofia e psicologia. Escre-
for preciso, faze jejum para lhe dar de veu também quatro romances. Entre suas
135, de 05-05-2005, em http://bit.ly/ obras estão: As Novas Doenças da Alma,
comer” (V M 3,11). ihuon135 e Teilhard de Chardin, Saint- Estrangeiros para nós mesmos e O Velho
Exupéry, publicada na edição 142, de e os Lobos. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line – Em que medida 23-05-2005, em http://bit.ly/ihuon142, 15 Michel de Certeau (1925-1986): inte-
ambas com Waldecy Tenório. Na edição lectual jesuíta francês. Foi ordenado na
se pode falar de um sentimento de 143, de 30-05-2005, George Coyne con- Companhia de Jesus em 1956. Em 1954
plenitude e de união com o mundo e cedeu a entrevista Teilhard e a teoria da tornou-se um dos fundadores da revista
Deus a partir de sua vivência mística? evolução, disponível para download em Christus, na qual esteve envolvido duran-
http://bit.ly/ihuon143. Leia também a te boa parte de sua vida. Lecionou em vá-
Faustino Teixeira – Os grandes edição 45 edição do Caderno IHU Ideias rias universidades, entre as quais Gene-
místicos como João da Cruz, Teresa de A realidade quântica como base da visão bra, San Diego e Paris. Escreveu diversas
Ávila, Thomas Merton e Teilhard de de Teilhard de Chardin e uma nova con- obras, dentre as quais La Fable mystique:
cepção da evolução biológica, disponível XVIème et XVIIèmesiècle (Paris: Galli-
Chardin,11 para citar apenas alguns,
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em http://bit.ly/1l6IWAC; a edição 78 do mard, 1982); Histoire et psychanalyse
Cadernos de Teologia Pública, As implica- entre science et fiction (Paris: Gallimard,
ções da evolução científica para a semân- 1987); La prise de parole. Etautresécrits
11 Pierre Teilhard de Chardin (1881- tica da fé cristã, disponível em http:// politiques (Paris: Seuil, 1994). Em portu-
1955): paleontólogo, teólogo, filósofo bit.ly/1pvlEG2; e a edição 22 do Cader- guês, citamos A escrita da história (Rio
e jesuíta que rompeu fronteiras entre a nos de Teologia Pública, Terra Habitável: de Janeiro: Forense Universitária, 1982)
ciência e a fé com sua teoria evolucio- um desafio para a teologia e a espiritua- e A invenção do cotidiano (Petrópolis: Vo-
nista. O cinquentenário de sua morte lidade cristãs, disponível em http://bit. zes, 1998). Sobre Certeau, confira as en-
foi lembrado no Simpósio Internacional ly/1pvlJJL. (Nota da IHU On-Line) trevistas Michel de Certeau ou a erotiza-
Terra Habitável: um desafio para a hu- 12 Jean Baruzzi: autor de Saint- ção da história, concedida por Elisabeth
manidade, promovido pelo IHU em 2005. Jean de La Croixetleproblème de Roudinesco, e As heterologias de Michel
Sobre ele, leia a edição 140 da IHU On- l’expériencemystique. (Nota da IHU On- de Certeau, concedida por Dain Borges,
Line, de 09-05-2005, Teilhard de Char- Line) ambas à edição 186 da IHU On-Line de
din: cientista e místico, disponível em 13 Gian Lorenzo Bernini (1598 – 1680): 26-06-2006, disponível em http://bit.ly/
http://bit.ly/ihuon140. Veja também Artista reconhecido do barroco italiano, ihuon186. As mesmas entrevistas podem
a edição 304, de 17-08-2009, O futuro distinguido como escultor e arquiteto. ser conferidas na edição 14 dos Cadernos
que advém. A evolução e a fé cristã se- (Nota da IHU On-Line) IHU em formação, intitulado Jesuítas.
gundo Teilhard de Chardin, em http:// 14 Julia Kristeva (1941): psicanalista Sua identidade e sua contribuição para
bit.ly/ihuon304. Confira, ainda, as en- búlgara, professora de Linguística na o mundo moderno, disponível para do-
trevistas Chardin revela a cumplicidade Universidade de Paris e autora de mais wnload em http://bit.ly/ihuem14. (Nota
entre o espírito e a matéria, na edição de trinta livros consagrados. Aluna de da IHU On-Line)

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 9


dos do III e IV séculos. Durante a noite mística de Teresa abre caminhos para fala da dificuldade de escrever sobre
Tema de Capa
mantinham-se de pé, em posição de a transcendência, para o Mistério. assuntos que versam sobre a oração,
espera. Altivos como as árvores, as Em que aspectos esse canto das coi- e em seguida, no primeiro capítulo
mãos elevadas ao céu e o rosto volta- sas desdobra uma vida mais radical das Primeiras Moradas, fala em “de-
do para o horizonte de onde nasceria ou mesmo irradiadora do Mistério? satino”, pois o convite que se apre-
o sol. Por toda a noite, seus corpos Faustino Teixeira – Toda a mística senta é no mínimo estranho: convidar
aguardavam o alçar da manhã. Essa de Teresa vem pontuada pela dinâmi- alguém a entrar “numa sala onde já
era a sua oração, desprovida de pa- ca do despojamento e da gratuidade. se encontra” (IM 1,5). A linguagem
lavras, ou melhor, as palavras vinham Sem essa chave fica difícil entender e é pobre para expressar o que se vive
traduzidas naquele corpo em espera. penetrar na morada da sua vida espi- “por experiência”, mas o místico, em
Estavam simplesmente ali… Ao raiar ritual. E o caminho para se trabalhar seu desaforo, não deixa de falar so-
do dia, quando os primeiros raios sola- essa gratuidade é o que passa pela bre o impacto de uma “visita” que o
res banhavam a palma de suas mãos, oração. Ela é esse “trato de amizade desconcerta.
podiam então encerrar a atividade e com Deus”, que vai polindo o sujei-
repousar. Tudo isso, um trabalho con- to, deslocando de si o centro de re- IHU On-Line – Em que essa
jugado do corpo com o espírito. ferência fundamental e favorecendo impossibilidade do dizer instiga
Quanto ao êxtase, Teresa trata a dinâmica de uma transparência e uma outra compreensão sobre a
desta questão com muita acuidade disponibilidade que marcam o cerne transcendência?
no Livro da Vida. O corpo, tomado da espiritualidade. Em linha de sin- Faustino Teixeira – A transcen-
pela presença do Senhor, envolvido tonia com Agostinho, Teresa insiste dência, como diz João da Cruz, é sem-
pelo sentimento de sua viva presença, em dizer que “tudo vem de Deus”, e pre uma “ilha estranha”, estranha a
reverbera de emoção e ternura: “De que é ele, com suas artimanhas, que todos os que participam da aventu-
maneira alguma podia duvidar de que possibilita essa introdução do sujeito ra humana. Não há como acessar o
o Senhor estivesse dentro de mim ou no centro da Morada (VM 1,11-12). A
seu Mistério a não ser consciente
que eu estivesse toda mergulhada presença junto ao Mistério, quando
das sombras que envolvem qualquer
nele” (Vida 10, 1). Diante desta pre- se pensa menos e se contempla mais,
intelecção. Pseudo-DionísioAeropa-
sença, o corpo e a alma desfalecem: o suscita a unificação da vida, que por
gita17, no final do século V, dizia que
fôlego esvanece; os olhos se fecham e sua vez joga o sujeito novamente
“quanto mais olhamos para cima,
quase nada se vê; os sentidos perdem no tempo para um acordo diferente
mais os discursos se contraem pela
a sua função e a fala se torna difícil. A com ele. É o momento da irradiação
contemplação das coisas inteligí-
pessoa vem tomada pelo sentimento nas obras, quando cessa a dicotomia
veis”. Nicolau de Cusa18 (1401-1464),
“de estar junto de Deus” e o que se entre oração e ação. Como diz com
nos albores da modernidade, reitera-
passa é um “um não-entender enten- acerto Teresa no Caminho da Perfei-
ção: “Marta e Maria caminham jun- va que o único caminho possível ao
dendo”. Mas Teresa tinha consciência
tas” (CP 31,5). intelecto para o acesso ao Mistério
viva de que o êxtase que a tomava não
maior, era dar-se conta de sua igno-
era o mais decisivo e o mais importan-
te. Não gostava, definitivamente, de IHU On-Line – Qual é a impor- rância, colocando-se na sombra. O
viver uma tal experiência, sobretudo tância de Teresa de Ávila reconhecer que conseguimos acessar do Misté-
em público: ficava envergonhada e os limites da linguagem para nomear rio, diz Cusano, são parcas alusões,
angustiada. Em linha de semelhan- ou narrar o Indizível?
17 Pseudo-Dionísio [Dionísio o areopagi-
ça com os malamatis sufis16, preferia Faustino Teixeira – Interessan- ta]: nome dado ao autor de uma série de
guardar esse “abandono a Deus” para te observar os prólogos das obras de escritos que exerceram grande influência
a intimidade com ele. A vida espiritu- grandes místicos como João da Cruz sobre o pensamento medieval. Acreditou-
-se por muito tempo que o autor desses
al, dizia, deve estar sempre adornada e Teresa de Ávila. No caso de João da escritos foi discípulo de São Paulo. Hoje
Cruz, na abertura de seu Cântico Es-
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pela humildade e pela gratuidade. se considera que as obras de referência


Nesse sentido, o êxtase público podia piritual, ele aborda o que há de “ine- foram redigidas no final do século IV ou
começos do V sob a influência neoplatô-
enfraquecer esse dado e provocar a narrável” nos gemidos que pontuam nica e especialmente a base de fragmen-
atração indevida, deslocando a aten- as expressões amorosas da inteligên- tos de Proclo. Por tal motivo costuma-se
ção para o que deveria ser o verdadei- cia mística. Quando a alma está infla- chamar a seu autor o Pseudo-Dionísio, e
às vezes Dionísio, o místico. (Nota da IHU
ro horizonte da experiência: nada de mada em seu amor, ela não consegue On-Line)
bom procede do sujeito, mas de Deus dizer senão “dislates”. Daí se recorrer 18 Nicolau de Cusa (1401-1464): teólogo
(Vida, 31,14). a “estranhas figuras e semelhanças” alemão. Secundou a ação dos papas na
Alemanha. Estudou na Universidade de
para expressar o vivido. Mas o fun- Heidelberg, foco do nominalismo, e na
IHU On-Line – Para além da ca- damental, diz João da Cruz, para en- de Pádua, onde aprendeu Matemática,
tegoria da racionalidade, do logos, a tender essa linguagem, é deixar-se Direito e Astronomia. Ordenado padre,
teve parte notável no concílio de Basileia
habitar pela inteligência do amor, que (1432). A seguir, foi legado pontifício,
16 Malamatiyya ou Malamatins: grupo de forma mais aguda que o saber tra- cardeal, bispo. Viveu seus últimos anos
místico muçulmano ativo no século IX. dicional favorece o saboreio do que ali na Itália. As obras fundamentais de Nico-
Eles acreditavam no valor da culpa, lau de Cusa são três: De doctaignorantia,
da piedade e da estima. (Nota da IHU se mostra como essencial. Igualmente De conjecturis, Apologia doctaeignoran-
On-Line) Teresa, no prólogo de suas Moradas, tiae. (Nota da IHU On-Line)

10 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


mediante sua captação velada “nas 1941 e 1968, sendo os três últimos de cada um. E indagou: “Se ao me-

Tema de Capa
estrelas, nas cores e em todas as coi- como eremita. Durante esse período nos todos eles pudessem ver-se uns
sas”. Também João da Cruz em sua final de sua vida, viveu uma intensa aos outros deste modo, sempre. Não
poesia dizia que quanto mais alto experiência espiritual marcada pela haveria mais Guerra, nem ódio, nem
se ousa, tanto menos se entende. O atenção e escuta da natureza. Ao mo- crueldade, nem ganância… Suponho
Mistério transcende toda Ciência, e mento singular chamou de “trabalho que o grande problema é que cairía-
escapa a todo saber gestado em Sala- de cela”, cujo objetivo maior era evi- mos todos de joelhos, adorando-nos
manca! Sim, essa impossibilidade de tar que os sons do tempo, que a voz uns aos outros”.
dizer abertamente sobre o Mistério de Deus e de sua presença na nature-
convoca à humildade e à kenosis, ou za pudessem se dispersar. O seu con-
seja, a um procedimento indagativo tato mais íntimo com tudo o que ali Leia Mais...
diverso, marcado pela presença de viveu facultou-lhe perceber a presen-
• A presença de um mestre: Daisetz T.
uma sede que não se sacia (epekta- ça de um “ponto cego e suave”, que é Suzuki. Artigo publicado na edição
sis), e isto se traduz por abertura in- também um ponto que habita o mais 458 da IHU On-Line, 10-11-2014, em
definida e disponibilidade de capta- íntimo do ser humano. http://bit.ly/ihuon458;
ção das originais e novidadeiras teias Na natureza ele pode ser ob- • A mística nos rastros do cotidiano.
de um Mistério sempre maior. servado nos primeiros momentos da Entrevista publicada na edição 435
da IHU On-Line, 16-12-2013, em
manhã, com os primeiros pios dos http://bit.ly/ihuon435;
IHU On-Line – Em que aspectos pássaros, revelando a pureza virginal • Por toda parte, o segredo de Deus.
as Moradas de Teresa de Ávila reve- da aurora. Num céu “ainda desprovi- Entrevista publicada na edição
lam o Mistério eterno da união com do de luz real”, quando a noite vai len- 407 da IHU On-Line, 05-11-2012;
Deus? tamente se despedindo para o acon- http://bit.ly/ihuon407;
• O pluralismo religioso no coração da
Faustino Teixeira – As Moradas chego da manhã, esse tempo nobre teologia. Entrevista publicada na edi-
de Teresa revelam o momento de sua pode ser vivenciado: “É um momento ção 398 da IHU On-Line, 13-08-2012,
maturidade espiritual, integrando de temor reverente e de inexprimível em http://bit.ly/ihuon398;
a tríade essencial de sua perspecti- inocência, quando o Pai, em perfeito • Mística: experiência que integra ani-
va mística, junto com os livros: Vida silêncio, lhes abre os olhos”; é tam- ma (feminilidade) e animus (masculi-
nidade). Entrevista publicada na edi-
e Caminho de Perfeição (São Paulo: bém a ocasião mais maravilhosa do ção 385 da IHU On-Line, 19-12-2011,
Paulus, 2014). É a obra de Teresa que dia, “em que a criação em sua inocên- em http://bit.ly/ihuon385;
resume magistralmente sua teologia cia pede licença para ‘ser’ de novo”. É • O Jesus de Pagola. Entrevista publica-
espiritual. Ali estão presentes os pas- um momento que guarda um “segre- da na edição 336 da IHU On-Line, 06-
sos essenciais do caminho de acesso do inefável”, que exala a presença do 07-2010; em http://bit.ly/ihuon336;
• Teologia Pluralista e Teologia da Re-
ao Mistério de Deus, e que revelam Mistério e indica o traço mais nobre velação. Entrevista especial publica-
também o mistério do humano. São que habita o mais íntimo de cada um da no sítio do IHU em 04-07-2010,
sete passos ou sete Moradas que tra- de nós. em http://bit.ly/ihu040710;
çam o itinerário do humano para o Também no centro do humano, • Perfil – Faustino Teixeira. Publicado
mais íntimo de seu ser, onde habita diz Merton, existe um “ponto vir- na edição 314 da IHU On-Line, 09-
11-2009, em http://bit.ly/ihuon314;
o braseiro de onde irradiam as mais gem”, um ponto vazio, de “absoluta • O budismo e o “silêncio sobre Deus”.
ricas fragrâncias do Mistério que ao pobreza”, intocado ainda por qual- Entrevista publicada na edição 308
mesmo tempo nos envolve e escapa. quer dinâmica de maldade ou ilu- da IHU On-Line, 14-09-2009, em
Ali, no mais profundo de nós mesmos, são. Trata-se de um ponto-centelha, http://bit.ly/ihuon308;
ocorre o que há de mais delicado e de “pura verdade”, que “pertence • Bento XVI e Barack Obama: novas
perspectivas de diálogo com o islã. Ar-
gratuito na vida do humano. Os pas- inteiramente a Deus”. Merton quis tigo publicado nas Notícias do Dia, 06-
sos apresentados são também, na indicar com ele o caminho essencial 06-2009, em http://bit.ly/ihu060609;
verdade, os passos fundamentais de perseguido pela experiência mística:
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• Jesus de Nazaré: um fascínio dura-
dilatação do coração para que possa de acessar novamente, através da douro. Artigo publicado na edição
acolher o Mistério do Outro. humildade e do despojamento, esse 248 da IHU On-Line, 17-12-2007, em
http://bit.ly/ihuon248;
pontinho de nada, que é a razão es- • Uma reflexão sobre o pluralismo
IHU On-Line – Gostaria de condida do humano e que fornece religioso a partir de Aparecida. En-
acrescentar algum aspecto não a chave essencial de uma dinâmica trevista publicada na edição 244
questionado? alternativa para os caminhos da his- da IHU On-Line, 20-06-2007, em
Faustino Teixeira – Gostaria, sim, tória. Merton relata uma experiência http://bit.ly/ihuon224;
• “Rûmî é o poeta da dança da Unida-
de falar de um dos traços mais boni- que teve em Louisville, na esquina de de”. Entrevista publicada na edição
tos da mística de Thomas Merton, que Fourth e Walnut, bem no centro do 222 da IHU On-Line, 04-06-2007, em
trata do “ponto virgem”. Um tema que bairro comercial. Ali, em meio a toda http://bit.ly/ihuon222;
o místico trabalhou num de seus livros aquela gente, se deu conta de que • Teologia da Libertação: a contribuição
mais ricos: Reflexões de um especta- sua solidão não lhe pertencia. Foi mais original da América Latina para
o mundo. Entrevista publicada na edi-
dor culpado, 1966 (Petrópolis: Vozes, subitamente despertado pela “secre- ção 214 da IHU On-Line, 02-04-2007,
1970). Merton viveu 27 anos no Mos- ta beleza de seus corações”, tocado em http://www.bit.ly/ihuon214.
teiro de Getsêmani, entre os anos de pelo ponto suave da profundidade

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A conexão mística de Teresa de
Tema de Capa

Ávila e Thomas Merton


Distantes quatro séculos um do outro, Teresa de Ávila e Thomas Merton unem-se pela
experiência mística, explica Marco Vannini

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: Ivan Lazzarotto

A
o pensar nas aproximações entre Tere- há três séculos, “o misticismo não está mais
sa de Ávila e Thomas Merton é preciso, escondido, e não pode se esconder, a partir
obviamente, considerar que uma das do momento que responde às mais profun-
personagens viveu no século XVI, na época das exigências e expectativas do homem”. E
da Contra-Reforma, e o outro, no século XX, complementa: “Permanece, por assim dizer,
onde passou por uma formação internacional. subterrâneo, excluído dos canais acadêmicos
Entretanto, o que nos interessa é aquilo que e dos círculos de poder, eclesiástico e civil,
os aproxima, a experiência mística. “Vemos mas este eclipse tem também um aspecto po-
que a diferença das suas personalidades (Te- sitivo, porque assim o misticismo ganha nova-
resa de Ávila e Thomas Merton) e das ligações mente a própria universalidade, liberando-se
que os unia a qualquer pessoa ao seu tempo de toda a confusão dogmática”.
e à sua cultura, não atinge o essencial da sua Marco Vannini é um dos maiores estudio-
experiência e da mensagem que podem nos sos italianos da mística especulativa. Além
comunicar. A sua experiência comum é, de de ter editado Mestre Eckhart e muitos ou-
fato, aquela da interioridade mais profunda, tros místicos, ele é autor de inúmeros estu-
aquele “local místico” que é a essência do ser dos, tais como La morte dell’anima. Dalla
humano em geral”, explica Marco Vannini, em mistica alla psicologia (Ed. Le Lettere, 2004);
entrevista por e-mail à IHU On-Line. Storia della mistica occidentale (Ed. Monda-
Diante do contexto do século XXI, Vannini dori, 2005); Mistica e filosofia (Ed. Le Lettere,
chama atenção para o fato de que vivemos 2007);  La mistica delle grande religioni (Ed.
em um mundo de excessiva exposição. “MarK Le Lettere, 2010); Prego Dio che mi liberi da
Zuckerberg faz prognóstico de um ‘mundo Dio (Ed. Bompiani, 2010), dentre outros. Em
pós-privacidade’, onde não existe mais o es- português, foi traduzida a sua Introdução à
paço privado, porque tudo é do conhecimen- mística (Edições Loyola, 2005).
to de todos. Isso é terrível, porque significa Este ano Marco Vannini lançou os livros
de fato cancelar o espaço da intimidade, da Introduzione a Eckhart. Profilo e testi (Le Let-
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interioridade, da reflexão, da meditação – e tere: Firenze, 2014), Indagine sulla vita eterna
obviamente, de um relacionamento profundo (Mondadori: Milano 2014). No ano passado
com o Absoluto”, argumenta. “Não maravilha lançou Lessico Místico. Le parole della sagge-
porém que tanta difusão de comunicação, de zza (Le Lettere: Firenze, 2013), Oltre il Cristia-
relações, corresponda em uma perda de es- nesimo. Da Eckhart a Le Saux1 (Bompiani: Mi-
sência e, por consequência, uma infelicidade lão, 2013) e, juntamente com Corrado Augias,
igualmente grande e generalizada”, avalia. Inchiesta su Maria. La storia vera della fan-
Por fim, o pesquisador sustenta que, ciulla che divenne mito2 (Rizzoli: Milão, 2013).
1
apesar da derrota sofrida pelo misticismo Confira a entrevista.
2

1 Leia resenha sobre a obra em http://bit.ly/1DFzRNf. (Nota da IHU On-Line)


2 Nota: Sobre o livro pode ser lida, entre outras, no portal do IHU, a resenha do teólogo VIto Mancuso sob o título ‘Ave Maria laica” em
http://bit.ly/1yXQgJZ. (Nota da IHU On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


IHU On-Line – O que as expe- podem nos comunicar. A sua experi- místico fundamental do Ocidente, O

Tema de Capa
riências místicas de Santa Teresa ência comum é, de fato, aquela da Banquete de Platão (Lisboa: Edições
de Ávila e Thomas Merton têm a interioridade mais profunda, aquele 70, 2007), a sacerdotisa Diotima ex-
dizer aos homens e mulheres da “local místico” que é a essência do plica a Sócrates4 que o amor nasce
contemporaneidade? ser humano em geral, sem conhecer sempre com o desejo de um corpo
Marco Vannini – Creio que a ex- o que se perdeu na “região da desi- bonito, mas quando o amor é maior,
periência espiritual, mística, seja sim gualdade” (régio dissimilitudinis) da se transforma em desejo pela beleza
diferenciada no tempo, pela cultura, memória agostiniana. da alma, e depois, degrau por de-
pelas características dos solteiros etc., A mensagem deles é impor- grau, se eleva até o desejo pela bele-
e que essas diferenças têm importân- tante para homens e mulheres con- za de si próprio, ou do Bem. Assim, o
cia, desde o momento que estamos temporâneos exatamente porque poeta Dante Alighieri5 reconhece que
profundamente colocados na dimen- não vivemos em um tempo onde a o amor que sentiu pela jovem Beatriz
são do tempo, pois é difícil calar-se interioridade é obscurecida e quase é da mesma natureza que o “amor
na mentalidade de séculos e culturas cancelada pela exterioridade, ou, por que move o sol e as outras estrelas”
passadas – mas, no entanto, acredito assim dizer em termos mais filosófi- que primeiramente aquece o peito
que a experiência mística tenha carac- cos, a essência é obscurecida e qua- de amor.
terísticas de universalidade tais que se cancelada pelas relações. O nosso Existe uma conexão íntima entre
se pode cruzar a fronteira entre essas mundo é de fato um mundo de re- o amor humano, no seu sentido mais
diferenças. lações, de conexões: não por acaso, comum, exatamente de amor por
Porém, enquanto a mística con- MarK Zuckerberg faz prognóstico de uma criatura, e o amor espiritual, ou
cerne a essência da alma, aquilo que um “mundo pós-privacidade”, onde místico. Mas é necessário exercitar
os místicos alemães medievais cha- não existe mais o espaço privado, o discernimento já que por um lado
mavam de “fundo da alma” (Grund porque tudo é do conhecimento de o amor por uma criatura é amor por
der Seele), essa atinge o que tem de todos, as redes sociais colocam todos si mesmo, como percebia sutilmente
mais universal para o ser humano, em comunicação com todos e, para Mestre Eckhart6, e neste sentido tal
igual para todos, além de todas as di- citar com slogan publicitário, “viver
ferenças de lugar, tempo, cultura, etc. é comunicar”. Isso é terrível, porque que marcaram o século XX, disponível
É evidente que também duas significa de fato cancelar o espaço da em http://bit.ly/v0aMxT; 313, de 03-11-
personalidades como Santa Teresa de 2009, Filosofia, mística e espiritualida-
intimidade, da interioridade, da re- de. Simone Weil, cem anos, disponível
Ávila e Thomas Merton tenham sido flexão, da meditação – e obviamente, em http://bit.ly/w374lt. (Nota da IHU
diferentes entre si em muitos aspec- de um relacionamento profundo com On-Line)
tos: no restante seria um absurdo 4 Sócrates (470 a.C.–399 a.C.): filósofo
o Absoluto. Não maravilha porém ateniense e um dos mais importantes
pensar que uma mulher educada na que tanta difusão de comunicação, ícones da tradição filosófica ocidental.
Espanha do século XVI, na época da de relações, corresponda em uma Sócrates não valorizava os prazeres dos
sentidos, todavia escalava o belo entre
Contra-Reforma, coincida psicologi- perda de essência e, por consequ- as maiores virtudes, junto ao bom e ao
camente com um homem do século ência, uma infelicidade igualmente justo. Dedicava-se ao parto das ideias
XX, que passou por várias experiên- grande e generalizada.
(Maiêutica) dos cidadãos de Atenas. O
julgamento e a execução de Sócrates são
cias em uma formação internacional. eventos centrais da obra de Platão (Apo-
É óbvio, por exemplo, que Teresa via a IHU On-Line – Como analisa o logia e Críton). (Nota da IHU On-Line)
heresia protestante como um ataque legado de ambos os místicos a partir
5 Dante Alighieri (1265-1321): escritor
italiano. Estudou Teologia e Filosofia,
à verdadeira fé católica, tão perigosa da conexão íntima entre o amor espi- sendo profundo conhecedor dos clássicos
como os turcos; como por outro lado ritual e o amor humano? latinos e dos filósofos escolásticos.  Per-
é óbvio que Thomas Merton, que foi Marco Vannini – O amor como
tenceu ao Partido Guelfo, lutou na Ba-
talha de Campaldino contra os Gibelinos
do catolicismo ao anglicanismo, tenha desejo do Bem nasce sempre e se e, por volta de 1300, iniciou a carreira
visto nas mais diversas formas de fé –
www.ihu.unisinos.br
alimenta da beleza, e a primeira be- diplomática. Em 1302, foi preso por cau-
mesmo nas do Extremo Oriente – di- leza que atinge os olhos e o coração
sa das suas atividades políticas. Iniciou-
-se então a segunda etapa da sua vida:
ferentes vias para alcançar um único é aquela da criatura. Naquilo que o exílio definitivo, pois não aceitou as
objetivo, e tenha sido um apoiador Simone Weil3 considerava o texto anistias de 1311 e 1315. Afastado de Flo-
ativo do ecumenismo e da paz entre rença, viveu em Verona e em Lunigiana.
Sua principal obra é A Divina Comédia.
os povos. 3 Simone Weil (1909-1943): filósofa cris- Sobre Dante, confira a entrevista Divina
No entanto, nós contemporâne- tã francesa. Centrou seus pensamentos Comédia. A relação entre poesia e Deus.
os, quando lemos as páginas destes sobre um aspecto que preocupa a socie- Edição 301, de 20-07-2009, disponível
dade até os dias de hoje: o tormento da em http://bit.ly/LHKaXb, concedida por
dois grandes nomes do passado, re- injustiça. Vítima da tuberculose, recu- Massimo Pampaloni à IHU On-Line. (Nota
moto e recente, os sentimos muito sou-se a se alimentar, para compartilhar da IHU On-Line)
próximos. Por quê? Porque, de fato, o sofrimento de seus irmãos franceses 6 Mestre Eckhart (1260-1327): nasceu
que haviam permanecido na França e em Hochheim, na Turíngia. Ingressando
vemos que a diferença das suas per- viviam os dissabores da Segunda Guerra no convento dos dominicanos de Erfurt,
sonalidades e das ligações que os unia Mundial. Sobre Weil, confira as edições estudou em Estrasburgo e em Colônia.
a qualquer pessoa ao seu tempo e à 84, de 17-11-2003, Simone Weil Palavra Tornou-se mestre em Teologia e ensinou
Viva, disponível em http://bit.ly/tZS- em Paris. Em sua obra, está muito pre-
sua cultura, não atinge o essencial da CDr; 168, de 12-12-2005, Hannah Arendt, sente a unidade entre Deus e o homem,
sua experiência e da mensagem que Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres entre o que consideramos sobrenatural e

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 13


amor não tem nada de espiritual, é
“Vemos que a sua Carta à Marcella, tinha razão ao
Tema de Capa
exatamente o contrário. Percebe- escrever que quem ama o corpo ama
mos facilmente se o amor por uma
criatura é amor por si próprio pelo diferença das suas o prazer, quem ama o prazer ama o
dinheiro, mas quem ama o dinhei-
fato de que neste caso o amor é o
desejo de posse, a criatura serve a personalidades e ro é fatalmente injusto, inimigo dos
deuses e dos homens. O verdadeiro
qualquer coisa, o amor tem um “por- templo de Deus é o intelecto, o es-
quê”, enquanto o amor verdadeiro é das ligações que pírito, e consequentemente é preci-
somente o desejo do bem pelo ou- so fugir do corpo, na sua dimensão
tro, “sem porquê”, como repetem os unia a qualquer carnal, o quanto for possível, para
incessantemente os místicos. Mas se unir Àquele que é de fato o inte-
o amor espiritual não é necessaria- pessoa ao seu lecto, o espírito. E não precisamos
mente desencarnado: pelo contrário, lembrar o quanto o apóstolo Paulo9
pode encontrar êxito natural na inti- tempo e à sua insistiu sobre o conflito entre a carne
midade física com a pessoa amada, e o espírito, que tem entre si desejos
sem lascívia, sem desejo de posse.
Assim a mística medieval Margherita
cultura, não atinge contrários.
A mim parece que a síntese mais
Porete7 – uma mulher que dedicou
o seu trabalho, o Espelho das almas
o essencial da sua equilibrada seja àquela expressa por
Mestre Eckhart, que diz que o espíri-
simples (Rio de Janeiro: Vozes, 2008),
ao amor espiritual – escreve que a
experiência”
lógica durante a Idade Média. (Nota da
alma destacada perfeitamente pode IHU On-Line)
conceder à natureza, sem nenhum da tradição eclesiástica comum que
9 Paulo de Tarso (3 – 66 d. C.): nasci-
do em Tarso, na Cilícia, hoje Turquia,
remorso, aquilo que a natureza reconhece o casamento e a união con- era originariamente chamado de Saulo.
necessita. jugal como um sacramento. Entretanto, é mais conhecido como São
É preciso ressaltar que neste âm- Paulo, o Apóstolo. É considerado por
muitos cristãos como o mais importante
bito a mística não se difere em nada IHU On-Line – Tendo em con- discípulo de Jesus e, depois de Jesus, a
sideração suas trajetórias místicas figura mais importante no desenvolvi-
mento do Cristianismo nascente. Paulo
o que achamos ser natural. É um pensa- em suas diferenças e também pro- de Tarso é um apóstolo diferente dos
mento holístico. Para Eckhart, devemos ximidades, qual é o espaço do cor- demais. Primeiro porque, ao contrário
reconhecer Deus em nós, mas este cami- po na experiência mística, com o dos outros, Paulo não conheceu Jesus
nho não é fácil. O homem deve se “exer- pessoalmente. Antes de sua conversão,
citar nas obras, que são seus frutos”, transcendente? se dedicava à perseguição dos primeiros
mas, ao mesmo tempo, “deve aprender Marco Vannini – Não existe dú- discípulos de Jesus na região de Jerusa-
a ser livre mesmo em meio às nossas vida de que o ser humano seja feito lém. Em uma dessas missões, quando se
obras”. Eckhart morreu em 1327. Em 27 dirigia a Damasco, teve uma visão de Je-
de março de 1329, foi dado ao público de corpo, alma e espírito, e que o sus envolto numa grande luz e ficou cego.
a bula In agro dominico, através da qual corpo seja o elemento principal, pri- A visão foi recuperada após três dias por
o Papa João XXII condenou vinte e oito mário, aquele que aparece primeiro, Ananias, que o batizou como cristão. A
proposições do Mestre Eckhart. Das vinte partir deste encontro, Paulo começou a
e oito, dezessete foram consideradas he- enquanto somente mais tarde emer- pregar o Cristianismo. Ele era um homem
réticas e onze, escabrosas e temerárias. ge e se forma a alma e mais tarde culto, frequentou uma escola em Jerusa-
Entre estas, estava a de que nos trans- ainda, quando aparece, o espírito. lém, fez carreira no Templo (era fariseu),
formamos em Deus. Mas esta condena- onde foi sacerdote. Era educado em duas
ção papal justifica-se, na medida que as Sob este perfil, portanto, não pode- culturas: a grega e a judaica. Paulo fez
ideias de Eckhart tinham uma dimensão mos ignorar a corporeidade e é er- muito pela difusão do Cristianismo en-
revolucionária. Elas foram acolhidas pe- rada a mística que desconhece a sua tre os gentios e é considerado uma das
las camadas populares e burguesas, que principais fontes da doutrina da Igreja.
interpretavam o apelo eckhartiano à in- realidade e importância. Dito isso, As suas Epístolas formam uma seção fun-
www.ihu.unisinos.br

terioridade da fé e à união divina como porém, é preciso também reconhe- damental do Novo Testamento. Afirma-se
uma rebelião implícita à exterioridade cer com honestidade a verdade da que ele foi quem verdadeiramente trans-
“farisaica” de uma hierarquia e de um formou o cristianismo numa nova reli-
clero moralmente decadente. Sua he- antinomia, clássica e cristã juntas, gião, superando a anterior condição de
rança influenciou, entre outros, signifi- entre corpo de um lado e espírito de seita do Judaísmo. A IHU On-Line 175,
cativamente, a Martinho Lutero. Sobre o outro, pelo qual o pagão Porfírio,8 na de 10-04-2006, dedicou sua capa ao tema
tema Místicas, conferir tema de capa da Paulo de Tarso e a contemporaneidade,
IHU On-Line, edição 133. (Nota da IHU disponível em http://bit.ly/ihuon175,
On-Line) 8 Porfírio (c.232-c.304): filósofo neopla- assim como a edição 286, de 22-12-2008,
7 Marguerite Porete (1250-1310): foi tônico e um dos mais importantes discí- Paulo de Tarso: a sua relevância atual,
uma mística francesa e autora de O Espe- pulos de Plotino, responsável por orga- disponível emhttp://bit.ly/1o5Sq3R.
lho das Almas Simples, uma obra de espi- nizar e publicar 54 tratados do mestre Também são dedicadas ao religioso a edi-
ritualidade cristã sobre as relações com o na obra As Enéadas, composta por seis ção 32 dos Cadernos IHU Em Formação,
Amor Divino. Ela foi queimada na foguei- livros. Escreveu ainda uma biografia de Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a
ra por heresia, em Paris, em 1310 depois Plotino (A Vida de Plotino) e comentários um novo sentido de realidade, disponí-
de um longo julgamento, depois de se às obras de Platão e Aristóteles. Seu livro vel em http://bit.ly/ihuem32, e a edição
recusar a retirar o seu livro de circulação Introductio in Praedicamenta foi tradu- 55 dos Cadernos Teologia Pública, São
ou se retratar seus pontos de vista. O li- zido para o latim por Boécio e transfor- Paulo contra as mulheres? Afirmação e
vro é citado como um dos principais tex- mou-se num texto padrão nas escolas e declínio da mulher cristã no século I, dis-
tos da heresia medieval do Espírito Livre. universidades medievais, possibilitando ponível em http://bit.ly/ihuteo55. (Nota
(Nota da IHU On-Line) desenvolvimentos na filosofia, teologia e da IHU On-Line)

14 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


to não pode ser perfeito se antes dis- como falou Plotino11. O místico adver- do a Igreja, temendo os êxitos daqui-

Tema de Capa
so o corpo e a alma não forem perfei- te sempre a primazia deste relaciona- lo que chamava “quietude”, conde-
tos. A perfeição aqui significa plena mento pessoal com Deus em relação a nou Molinos13, Fénelon14, Madame
consciência, e com isso é preciso cui- todas as formas comunitárias, e isso o Guyon15, etc., executando de fato
dar do corpo, conhecer o corpo, não coloca também em possível contraste a remoção do misticismo do tecido
desprezá-lo ou ignorá-lo, para que com a autoridade religiosa. vivo da sociedade. A partir deste mo-
se possa ter também cuidado e co- Isso, porém, não significa que mento – e ainda hoje – místico signi-
nhecimento da alma e, a partir des- o místico esteja errado ou contra a fica para a opinião pública algo de ex-
sa, finalmente, se possa fazer surgir Igreja. Pensemos por exemplo em cepcional, extraordinário, mas longe
aquele espírito que é tão rico de São João da Cruz12, de quem ninguém da sã normalidade humana. Significa
conhecimento de corpo e de alma. pode negar a fidelidade à sua Ordem então irracional, visionário, que se
Neste propósito, quero lembrar tam- e à Igreja, mas que em toda a sua assemelha ao paranormal ou de cer-
bém a grande figura de Hildegarda de obra não gasta uma palavra sobre os ta forma com o espiritismo. De fato a
Bingen10, que dedicou amplo espaço sacramentos. Do contrário, é preciso ciência da alma foi, desde então, per-
ao conhecimento do corpo, com- perceber que essa liberdade, essa au- dida pela Igreja, e originou a psicolo-
preendendo também a sexualidade, tonomia do místico o tornou muitas gia: hoje temos uma ciência da alma
a saúde, a medicina, sem ouvir que vezes capaz de criticar nos confron- mutilada, que ignora o espírito e o
isso fosse um contraste com o cuida- tos da própria Igreja com resultados espiritual, relegando-o na névoa do
do com a alma e o espírito. de reforma religiosa destinados a dar indefinido, se não do patológico. Aos
frutos duradouros no tempo. que diziam que muitos os atribuíam
IHU On-Line – Por que razão a a uma veia mística, Wittgenstein16
mística desassossega e incomoda IHU On-Line – Em que medida
tanto o poder eclesial? a experiência mística segue sendo
13 Miguel de Molinos (1628-1696): místi-
Marco Vannini – O misticismo incompreendida ou reduzida em sua co espanhol, criador de uma corrente re-
seguidamente atrapalha o poder ecle- importância ontológica e espiritual ligiosa denominada de Quietismo. (Nota
siástico, acima de tudo porque é con- em nossos dias? da IHU On-Line)
14 François Fénelon (1651-1715): pseu-
victo de que o relacionamento entre Marco Vannini – A experiência dônimo de François de Salignac de La Mo-
a alma e Deus acontece sem media- mística sofre ainda hoje a exclusão the-Fénelon, teólogo católico apostólico
ções, sem nada que se interponha, iniciada no final do século XVII, quan- romano, poeta e escritor francês, cujas
ideias liberais sobre política e educação,
sendo tanto Deus como a alma uma esbarravam contra o “statu quo” da Igre-
única coisa. Por isso é convicta de que 11 Plotino (205-270): filósofo egípcio, ja e do Estado dessa época. Pertenceu à
o relacionamento entre a alma e Deus discípulo de Amônio Sacas e mestre de Academia Francesa de Letras. (Nota da
Porfírio, que nos legou seus ensinamen- IHU On-Line)
não aconteça em espaços externos, tos em seis livros de nove capítulos cada, 15 Jeanne-Marie Bouvier de la Motte-
em formas litúrgicas determinadas chamados de As Enéadas. Acompanhou Guyon também conhecida como Madame
de qualquer maneira, mas, ao invés, uma expedição à Pérsia, onde tomou Guyon (1648-1717): foi uma mística fran-
contato com a filosofia persa e indiana. cesa e uma das principais defensoras do
seja somente no profundo da alma, Regressou à Alexandria e, aos 40 anos, quietismo. Foi considerada herética pela
em um relacionamento “do só x só”, estabeleceu-se em Roma. Desenvolveu Igreja Católica Romana e presa de 1695-
as doutrinas aprendidas de Amônio numa 1703 após a publicação de um livro sobre
escola de filosofia com seleto gupo de o tema, Short and Easy Method of Prayer.
alunos. Pretendia fundar uma cidade (Nota da IHU On-Line)
10 Hildegarda de Bingen (1098-1179): chamada Platonópolis, baseada nos ensi- 16 Ludwig Wittgenstein (1889-1951):
mística, filósofa, compositora e escritora namentos da República de Platão. Plotino filósofo austríaco, considerado um dos
alemã, abadessa de Rupertsberg em Bin- dividia o universo em três hipóstases: o maiores do século XX, tendo contribuido
gen. Hildegarda foi autora de várias obras Uno, o Nous (ou mente) e a alma. (Nota com diversas inovações nos campos da
musicais de temática religiosa incluindo da IHU On-Line) lógica, filosofia da linguagem, episte-
Ordo Virtutis, uma espécie de ópera que 12 João de Yepes ou São João da Cruz mologia, dentre outros campos. A maior
relata um diálogo de um grupo de freiras (1542-1591): ingressou na Ordem dos parte de seus escritos foi publicada pos- www.ihu.unisinos.br
com o Diabo. Escreveu ainda dois dos úni- Carmelitas aos 21 anos de idade, em tumamente, mas seu primeiro livro foi
cos livros de medicina escritos na Europa 1563, quando recebe o nome de Frei publicado em vida: Tractatus Logico-Phi-
no século XII, onde demonstrou um conhe- João de São Matias, em Medina del Cam- losophicus, em 1921. Os primeiros tra-
cimento notável de plantas medicinais. po. Em setembro de 1567 encontra-se balhos de Wittgenstein foram marcados
Hildegarda alegava ter visões inspiradas com Santa Teresa de Jesus, que lhe fala pelas idéias de Arthur Schopenhauer, as-
por Deus, que o próprio a incentivou a es- sobre o projeto de estender a Reforma sim como pelos novos sistemas de lógica
crever em livros. Após quatro tentativas da Ordem Carmelita também aos padres. idealizados por Bertrand Russel e Gottllob
de canonização, Hildegarda permanece Aceitou o desafio e trocou o nome para Frege. Quando oTractatusfoi publicado,
apenas beatificada.Leia também, Hilde- João da Cruz. No dia 28 de novembro de influenciou profundamente o Círculo de
gard de Bingen, mística medieval e santa 1568, juntamente com Frei Antônio de Viena e seu positivismo lógico (ou empi-
doutora da Igreja, disponível em http:// Jesús Heredia, inicia a Reforma. No dia rismo lógico). Confira na edição 308 da
bit.ly/1wElySG; Hildegard de Bingen e a 25 de janeiro de 1675 foi beatificado por IHU On-Line, de 14-09-2009, a entrevista
igualdade homem-mulher, disponível em Clemente X. Foi canonizado em 27 de de- O silêncio e a experiência do inefável em
http://bit.ly/1GL2Hbc; Hildegard de Bin- zembro de 1726 e declarado Doutor da Wittgenstein, com Luigi Perissinotto, dis-
gen: os bastidores de uma promoção tar- Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi ponível em http://bit.ly/ihuon308. Leia,
dia, disponível em http://bit.ly/1zrjHBL; proclamado “Patrono dos Poetas Espa- também, a entrevista A religiosidade
Hildegard de Bingen: futura Doutora da nhóis”. Sua festa é comemorada no dia mística em Wittgenstein, concedida por
Igreja, disponível http://bit.ly/13thKKs; 14 de dezembro. Sobre São João da Cruz, Paulo Margutti, concedida à revista IHU
O ser humano sinfônico de Hildegard de confira As obras completas de São João On-Line 362, de 23-05-2011, disponível
Bingen, http://bit.ly/1IWQB2z. (Nota da da Cruz (Petrópolis: Vozes, 2002). (Nota em http://bit.ly/ihuon362. (Nota da IHU
IHU On-Line) da IHU On-Line) On-Line)

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 15


respondia amargamente que sim, era
“Não maravilha Marco Vannini – O “nada” de
Tema de Capa
assim, mas que pensavam que era Mestre Eckhart e de São João da Cruz
uma veia de loucura.
O misticismo voltará a ser con- porém que não está relacionado com o niilismo
da cultura contemporânea, pelo con-
templado na sua importância onto-
lógica e espiritual quando recuperar tanta difusão de trário, se pode dizer que seja o opos-
to, ao menos é um nada purificador,
o seu significado primário, aquele de
ser o conhecimento da alma. É possí- comunicação, um vazio que gera pureza, liberdade
(estar vazio “de” equivale a estar li-
vel que isso inicie, ou esteja já inician-
do, na medida em que se mostra a de relações, vre “de”) e no qual reflete uma imen-
sa luz. A acusação de niilismo voltada
fraqueza, a insuficiência das mil e uma
psicologias do nosso tempo. corresponda em para o cristianismo se justifica quan-
do se entende o cristianismo por te-
IHU On-Line – Como podemos uma perda de ologia, que depois do Iluminismo19
caiu sob golpes da ciência, da crítica
compreender a relação entre a mís-
tica e a experiência do nada e do ani- essência e, por histórica, da filologia, deixando um
vazio que – este sim – pode horrori-
quilamento do eu e da alma? O que
isso significa?
Marco Vannini – Experiência
consequência, zar o homem contemporâneo. É evi-
dente que o anúncio nietzschiano da
do nada, aniquilação de si, morte da
alma, são todas expressões substan-
uma infelicidade” “morte de Deus” choca aqueles que
depositaram neste Deus suas espe-
cialmente equivalentes, com as quais ranças, e esses correm o risco de cair
se indica a atividade de purificação coloca a questão do niilismo do qual num niilismo que assusta, mas não
da inteligência que se libera do con- atinge aqueles para os quais o Deus-
é acusado o cristianismo pelas filoso-
dicionamento espaço-temporal, da Outro já estava morto, junto ao ego
dependência das circunstâncias – ou fias de Feuerbach17 e Nietzsche18, por
que o gera e sustenta. Para esses,
daquilo que em termos filosóficos se exemplo? ao contrário, a “morte de Deus” é o
define como determinismo. É uma ta- nascimento do espírito, com a alegria
refa possível somente quando a inteli- 17 Ludwig Feuerbach (1804-1872): filó-
sofo alemão, reconhecido pela influência infinita que isso leva consigo. “Aqui-
gência está totalmente envolvida com que seu pensamento exerce sobre Karl lo que para os homens não livres é
o Absoluto, porque somente assim Marx. Abandona os estudos de Teologia horror é uma imensa felicidade para
estará apta a reconhecer o relativo e para tornar-se aluno de Hegel, durante
dois anos, em Berlim. De acordo com sua
de se liberar e, portanto, é uma tarefa filosofia, a religião é uma forma de alie- de Estudos Filosofias da diferença –
não psicológica mas religiosa, a partir nação que projeta os conceitos do ideal Pré-evento do XI Simpósio Internacional
humano em um ser supremo. É autor de A IHU: O (des)governo biopolítico da vida
do momento que o Absoluto no qual essência do cristianismo (2ª ed. São Pau- humana. Na edição 330 da revista IHU
a inteligência se envolve é o Bem Ab- lo: Papirus, 1997). (Nota da IHU On-Line) On-Line, de 24-05-2010, leia a entre-
soluto, último termo da aspiração do 18 Friedrich Nietzsche (1844-1900): fi- vista Nietzsche, o pensamento trágico
lósofo alemão, conhecido por seus con- e a afirmação da totalidade da existên-
homem – ou aquilo que comumente ceitos além-do-homem, transvaloração cia, concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo
se chama Deus. Não um Deus finito, dos valores, niilismo, vontade de poder Giacoia e disponível para download
determinado nas formas, porém: este e eterno retorno. Entre suas obras fi- em http://bit.ly/nqUxGO. Na edição
guram como as mais importantes Assim 388, de 09-04-2012, leia a entrevista O
corresponde somente às exigências falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: amor fati como resposta à tirania do
apropriativas do sujeito e varia conti- Civilização Brasileira, 1998), O anticris- sentido, com Danilo Bilate, disponível
nuamente de acordo com o variar des- to (Lisboa: Guimarães, 1916) e A gene- em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU
alogia da moral (5. ed. São Paulo: Cen- On-Line)
tas exigências. Eis a razão pela qual os tauro, 2004). Escreveu até 1888, quan- 19 Iluminismo [Aufklärung]: em portu-
místicos chamam Deus “Nada”, exata-
www.ihu.unisinos.br

do foi acometido por um colapso nervo- guês, Esclarecimento, ou ainda, mais


mente para negar toda determinação so que nunca o abandonou até o dia de corretamente, Iluminismo – movimento
sua morte. A Nietzsche foi dedicado o intelectual surgido na segunda metade
finita, e com isso Mestre Eckhart for- tema de capa da edição número 127 da do século XVIII (o chamado “século das
mula a oração: “Rezo a Deus para que IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado luzes”) que enfatizava a razão e a ciên-
me liberte de Deus” – oração aparen- Nietzsche: filósofo do martelo e do cre- cia como formas de explicar o universo.
púsculo, disponível para download em Foi um dos movimentos impulsionadores
temente paradoxal, mas verdadeira http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos do capitalismo e da sociedade moder-
uma vez que de um lado devemos nos Cadernos IHU em formação é intitu- na. Obteve grande dinâmica nos países
liberar daquele Deus-ídolo que encar- lada O pensamento de Friedrich Niet- protestantes e lenta porém gradual in-
zsche, e pode ser acessada em http:// fluência nos países católicos. O nome
na todo o nosso eu psicológico, mas bit.ly/HdcqOB. Confira, também, a se explica porque os filósofos da época
de outro é preciso voltar-se para Deus entrevista concedida por Ernildo Stein acreditavam estar iluminando as mentes
porque age no desprendimento do à edição 328 da revista IHU On-Line, das pessoas. É, de certo modo, um pen-
de 10-05-2010, disponível em http:// samento herdeiro da tradição do Renas-
egoísmo que com as próprias forças é bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo cimento e do Humanismo por defender
impossível realizar. radical de Nietzsche não pode ser mi- a valorização do Homem e da Razão. Os
nimizado, na qual discute ideias de sua iluministas acreditavam que a Razão se-
conferência A crítica de Heidegger ao ria a explicação para todas as coisas no
IHU On-Line – A partir desse biologismo de Nietzsche e a questão da universo, e se contrapunham à fé. (Nota
estado de aniquilamento, como se biopolítica, parte integrante do Ciclo da IHU On-Line)

16 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


os homens livres”, escreveu Meister
“A meu ver, o ram somente como uma forma de

Tema de Capa
Eckhart. sentimento bizarra, nos limites do

IHU On-Line – Em que aspec- misticismo é, patológico, e portanto não influente


para a cultura filosófica. Era esta a
tos a mística resiste como uma “via
mestra do filosofar, que é o distan- como se diz, atitude típica do velho positivismo,
porém muito difuso também nos
ciamento, o platônico exercitar-se a
morrer”? platonicamente nossos tempos, todas vezes que se
pensa na esfera religiosa somente
Marco Vannini – Apesar da
derrota sofrida pelo misticismo há o verdadeiro como uma esfera de sentimento, e
não também de racionalidade. Por
três séculos (como dito anterior-
mente), o misticismo não está mais filosofar” outro lado, também alguns místicos
não reconhecem o valor da filosofia
escondido, e não pode se esconder, que, ao invés, durante o caminho da
a partir do momento que responde inteligência para a verdade, é feita
às mais profundas exigências e ex- literária – é um escrever livros sobre “em honra a Deus”, como dizia Wit-
pectativas do homem. Permanece, outros livros – sem nenhuma inci- tgenstein. Neste caso, porém, devo
por assim dizer, subterrâneo, ex- dência na vida, ou sem que se tenha dizer que a meu ver não se trata
cluído dos canais acadêmicos e dos mais algo a fazer com a sensatez, a de misticismo no sentido original,
círculos de poder, eclesiástico e ci- sabedoria (a sophia grega). Não é clássico, do próprio termo, e infeliz-
vil, mas este eclipse tem também por acaso que o já falecido professor mente é uma atitude deste gênero,
um aspecto positivo, porque assim Pierre Hadot20 sustentava que a filo- muito difusa, que contribui para de-
o misticismo ganha novamente a sofia clássica não teve como seguido- sacreditar o misticismo e o colocar
própria universalidade, liberando-se res nem as universidades medievais, em contraste com a filosofia.
de toda a confusão dogmática. Exa- onde o clero era colocado nas insti- Na essência mais verdadeira,
tamente porque colocado à mar- tuições eclesiásticas, nem na univer- concluindo, misticismo e filosofia são
gem das autoridades religiosas, o sidade moderna, onde os docentes a mesma coisa. Não por acaso nos
misticismo recuperou o seu sentido são funcionários públicos, mas teve dias atuais muitos estudiosos tendem
original, aquele de ser “exercício de como único seguidor o misticismo. a considerar essencialmente um filós-
morte”, separado de tudo – mesmo De fato o misticismo somente man- ofo, Mestre Eckhart, o qual se definia
das formas religiosas onde qualquer teve a liberdade de inteligência, não tradicionalmente um místico.
místico nasce e cresce – para ser o submetida a nenhuma autoridade
caminho do só para o só, um cami- e, junto, ficou o caminho de toda a
nho realizado “in interiore homine”, vida e não somente as atividades Leia mais...
sem nenhuma mediação. Então, no culturais. • “Ninguém nunca viu a Deus”. Para a
momento em que as confissões re- Quando essas tensões existem mística a verdade é sempre interior.
ligiosas acusam a culpa da criatura Entrevista com Marco Vannini publi-
é um sinal – a meu ver – de que o
contemporânea, que fragmentou as cada na Edição 435, da revista IHU
misticismo ou a filosofia, ou ambos, On-Line, 15-12-2014, em http://bit.
velhas teologias e dogmas, se redes-
não são aquilo que devem ser, ou ly/1wncstx;
cobre essa via mestre de pensamen-
seja, não são verdadeiramente filo- • “A experiência do espírito vai muito
to e de vida, que atravessa qualquer além das distinções espaço-tempo-
sofia e misticismo. Habitualmente,
mutação cultural sem nem a tocar. rais e de gênero”. Entrevista com
acontece quando alguns filósofos
Marco Vannini publicada na Edição
IHU On-Line – Quais são as ten- que são além de acadêmicos não 385 da revista IHU On-Line, 19-12- www.ihu.unisinos.br
sões que se dão a partir do diálogo reconhecem o valor especulativo 2011, em http://bit.ly/IHY3nA;
do misticismo e com isso o conside- • Bento XVI, o último papa de Nietzs-
entre a filosofia e a mística?
che. Artigo de Marco Vannini publi-
Marco Vannini – A meu ver, o cado nas Notícias do Dia, no sítio
20 Pierre Hadot: filósofo francês, é um
misticismo é, como se diz, platonica- dos coautores do livro Dicionário de ética do IHU, 13-02-2013, em http://bit.
mente o verdadeiro filosofar e, com e Filosofia Moral. São Leopoldo: Unisinos, ly/1cqzl2u;
isso, por si só as tensões entre o mi- 2003. Suas pesquisas concentraram-se • A renúncia e o drama da relação fé e
primeiramente nas relações entre hele- história. Entrevista com Marco Van-
sticismo e a filosofia não devem sub- nismo e cristianismo,em seguida, na mís-
nini publicada nas Notícias do Dia no
sistir. Se existem – como certamente tica neoplatônica e na filosofia da época
sítio do IHU, 10-03-2013, em http://
helenística. Elas se orientam atualmente
existiram e ainda existem – é porque para uma descrição geral do fenômeno bit.ly/18uGhQj;
a filosofia não é mais um gênero de espiritual que a filosofia representa. Em • O silêncio da alma: por que o Oci-
vida, não é mais aquela que foi na português pode ser lido o livro de sua au- dente esqueceu os seus místicos.
toria O que é a filosofia antiga? (São Pau- Entrevista com Marco Vannini repro-
sua origem na Grécia, mas se tran- lo: Loyola, 1999). Para uma resenha da
duzida nas Notícias do Dia do sítio
sformou em uma atividade unica- obra confira a revista Síntese 75(1996),
do IHU, 31-03-2013, em http://bit.
p. 547-551. A resenha do original francês
mente intelectual, que se explica em é de Henrique C. de Lima Vaz. (Nota da ly/19syp0m.
gênero, somente com uma produção IHU On-Line)

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 17


Santa Teresa e a revolução
Tema de Capa

espiritual feminina
Giselle Gómez apresentauma leitura da mística de Teresa de Jesus pelo olhar
feminino, capaz de transformar a experiência de religiosidade de todos os gêneros

Por Márcia Junges e João Vitor Santos / Tradução: André Langer

“T
eresa de Ávila viveu a ousadia processo de passar da dependência à liberda-
de ir além dos espaços assinala- de, que se constrói através da superação de
dos às mulheres, atrevendo-se a condicionamentos psicológicos, sociais, cultu-
converter-se em mestra de espiritualidade.” rais e religiosos. Teresa viveu este processo”,
É dessa Santa Teresa que Giselle Gómez fala complementa.
em entrevista concedida por e-mail à IHU On- Por fim, a história que apresenta fala de
-Line. Giselle revela a face revolucionária da uma militante que não se restringe a ensinar
mística, que subverte toda a lógica hierárquica que a mulher tem um lugar de adoração e que
– seja dentro ou fora da igreja – de uma épo- podem sim alcançar o que os homens bus-
ca. Porém, traz à tona ainda a Teresa feminis- cam. Giselle ainda mexe no sentimento dos
ta. É ela quem revela que do lugar da mulher varões, mostrando que todos – de todos os
também se pode alcançar Deus. Que Ele está gêneros – precisam viver um pouco da místi-
presente desde a divina vocação da mulher de ca de Teresa de Ávila. “A pessoa é chamada a
gerar a prole até as tarefas menos nobres que viver este mesmo processo de transformação
lhe cabem, como limpar o chão que os varões e identificação com Cristo, que supõe mudan-
e toda a família pisam. ças radicais e que implica passar da morte à
A entrevista ainda ilumina um conceito vida, até chegar a perceber tudo o que acon-
de mística para facilitar o entendimento des- tece ao modo de Deus”, sustenta.
sa relação da história de vida de Teresa. “A Giselle Gómez é integrante Companhia de
mística é uma experiência que ultrapassa a Santa Teresa de Jesus. Nasceu na Nicarágua
lógica do fenômeno porque está intimamente e estudou Psicologia e Teologia. Atualmente
relacionada com a lentidão do tempo. O fenô- vive em Roma e faz parte da Equipe Geral da
meno é algo rápido, se dá como de repente; Congregação, que é responsável pela área de
a experiência faz parte de um tempo lento e formação. Também acompanha o caminho
cotidiano”, explica a entrevistada. “Posso afir- dos leigos no Movimento Teresiano Apostó-
mar que pronunciar a palavra ‘mulher’ com lico – MTA e faz parte da Comissão Geral da
consciência profunda de nossa própria iden- Família Teresiana de Henrique de Osso.
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tidade supõe uma aprendizagem unida ao Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido isso. A mística é uma experiência contemplamos e o que nossas mãos
se pode falar de um renascimento da que ultrapassa a lógica do fenôme- apalparam” (1 Jo 1,1).
consciência da mulher a partir do le- no porque está intimamente rela- Em segundo lugar, constatar que
gado místico de Teresa de Ávila? cionada com a lentidão do tempo. O nós, as mulheres, por um lado, tive-
Giselle Gómez – Em primeiro fenômeno é algo rápido, se dá como mos que reproduzir o sistema para
lugar, o que entendemos por místi- de repente; a experiência faz par- sobreviver e, por outro, aprendemos
ca? Às vezes, imaginamos que con- te de um tempo lento e cotidiano. a resistir e a realizar desejos trans-
siste nos fenômenos plasmados em São João expressa isso maravilho- cendentes. À medida que fomos nos
tantas obras artísticas. Mas não é samente bem: “O que ouvimos, o fortalecendo em nosso sentido de
assim; a mística é muito mais do que que vimos com nossos olhos, o que autonomia e autoidentidade, nossa

18 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


maneira de nos situarmos impacta de convento indicado por eles, ela decide nas, andando fora da clausura, con-

Tema de Capa
maneira positiva a nós mesmas e os por si mesma entrar em um caminho tra a ordem do Concílio de Trento e
outros. que a levaria a descobrir o melhor prelados, ensinando como mestra,
Dito isto, posso afirmar que dela mesma e a implicar-se nos movi- contra o que São Paulo ensinou or-
pronunciar a palavra “mulher” com mentos históricos da realidade de seu denando que as mulheres não ensi-
consciência profunda de nossa pró- tempo. nassem”. Poderia ter desistido, no
pria identidade supõe uma aprendi- Já sendo monja, adentra na ex- entanto, segue em frente e sente-se
zagem unida ao processo de passar periência profunda da espiritualida- confirmada pelo Senhor que lhe diz:
da dependência à liberdade, que se de. Hoje, isso nos parece que não é “Diga-lhes que não se guiem por
constrói através da superação de con- tão difícil, mas não foi assim. A orto- apenas uma parte da Escritura; que
dicionamentos psicológicos, sociais, doxia vigente permitia e aconselhava olhem outras, e vejam se poderão
culturais e religiosos. Teresa viveu este as orações vocais. Atrever-se a encon- porventura atar-me as mãos”.
processo. Ela foi capaz de ouvir a si trar Deus no profundo era um perigo.
mesma, de aprender a confrontar-se Suspeitava-se de quem defendia que IHU On-Line – Teresa é reconhe-
com aquilo que supõe a mudança e Deus poderia revelar-se à pessoa sem cida por seu papel como reformado-
de ir construindo outra maneira de necessidade de uma mediação eclesi- ra e fundadora de conventos. Como
ser mulher, até chegar a sustentar ástica. A leitura da Sagrada Escritura esse “novo estilo de vida” dos mos-
afirmações com relação ao papel das era patrimônio dos eruditos. Era proi- teiros se relaciona com a mística e a
mulheres que, por serem considera- bido traduzi-la para a língua do povo. espiritualidade de Teresa?
das inadequadas, foram censuradas Acreditava-se que o contato com a Pa- Giselle Gómez – Teresa quer que
em vários de seus escritos. lavra prejudicava as mulheres e os ig- suas irmãs acreditem verdadeiramen-
Quando a consciência de uma norantes. Portanto, ter “oração men- te que não estão “ocas por dentro”,
mulher renasce, como aconteceu tal” era um atrevimento. Mais ainda, que são mulheres habitadas por Deus.
com Teresa, influi nas pessoas que a ensinar a outros este caminho. Teresa Nisso consiste a formosura e a digni-
cercam, gera uma ação coletiva, uma converte-se em mestra de espirituali- dade da pessoa. Sua maneira de viver
onda expansiva que brota de uma dade, mas não apenas para suas mon- nos novos conventos vai conduzindo
fonte interior, de um centro espiritu- jas. Muitos de seus confessores con- as irmãs a fazer a experiência desta
al que recria a vida. Espelhar-nos nela verteram-se em seus discípulos. De verdade até que Deus fique impres-
nos convida a renascer. Não se trata fato, delatam-na à Inquisição, porque so em suas entranhas. Para isso, elas
de imitá-la, mas de descobrir a pos- se atrevia a chamar o seu confessor têm que se dispor a entrar em si mes-
sibilidade de nos compreendermos de “filho”. Isso era considerado uma mas, passear por seu castelo interior
através da sua vida e da sua palavra. inversão da ordem natural, porque se no qual há muitas moradas situadas
E, ainda, despertar as nossas próprias acreditava que todo homem clérigo não de maneira linear, mas antes em
potencialidades para forjar histórias era superior a uma mulher, por ser forma de espiral. É um itinerário es-
criativas, autoliberadas e libertadoras. homem e pelo poder sagrado. Quem piritual que supõe, como a palavra
E dali tornar possível um mundo mais era ela para atrever-se a semelhante entranha, um caminho dinâmico que
humano e mais divino. Mas, diga-se coisa! implica o conhecimento pessoal e o
de passagem, isto é válido também Em um dado momento da sua conhecimento de Deus, em Jesus de
para os homens, embora você tenha vida, sente a necessidade, junto com Nazaré, até familiarizar-se com sua
me perguntado somente sobre o re- outras, de voltar às raízes do Carme- maneira de ser e de agir de forma
nascimento da consciência da mulher. lo. Não se sente satisfeita em um que se dá um processo de transfor-
convento de mais de 100 monjas, no mação n’Ele.
IHU On-line – Em que medida qual as relações não podem ser pro- Para utilizar uma de suas com-
ela rompe padrões e “desobedece” a fundas, em um clima que dificulta a parações, trata-se do processo do
ortodoxia esperada das mulheres de ajuda mútua para viver as exigências bicho da seda, que se envolve nele
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sua época, seja dentro da sua família, da fé. Em meio a uma oposição mui- mesmo em um casulo feito com os
quando responde ao seu pai, e den- to forte, funda um pequeno mos- seus próprios fios de seda e chega a
tro da própria Igreja, quando trans- teiro no qual se possa realizar esse converter-se em borboleta. A pessoa
gride as normas estabelecidas? sonho. Uma vez validada a sua insti- é chamada a viver este mesmo pro-
Giselle Gómez – Teresa fez mui- tuição, Teresa segue fazendo funda- cesso de transformação e identifica-
tas opções que implicaram em sair ções em todo o território espanhol. ção com Cristo, que supõe mudanças
do estabelecido. Poderia dizer muitas Sai do âmbito do privado desafian- radicais e que implica passar da morte
coisas. Esta pergunta dá para fazer do o lugar assinalado às mulheres, à vida, até chegar a perceber tudo o
uma tese, mas ressalto algumas coisas visita as suas monjas, acompanha- que acontece ao modo de Deus. Todo
por seu especial significado: -as, forma-as... Seu estilo de vida este caminho do verme convertido
Sendo jovem, como você bem provoca a crítica das autoridades da em borboleta aponta para sair da
diz, desobedece ao seu pai quando vai Igreja, tanto que dela se diz que era autorreferencialidade para a entrega
para o convento. Em uma sociedade “mulher irrequieta e andarilha, de- gratuita. A vida nova expressada na
na qual as mulheres tinham que acei- sobediente e contumaz, que a título borboleta indica que a pessoa viveu
tar o marido indicado pelos pais ou o de devoção inventava más doutri- um processo de cura transformadora,

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 19


impulsionada e sustentada por Aque- A espiritualidade de Teresa pas- Teresa permanece em fidelida-
Tema de Capa
le que habita na morada principal, e sa pela ética. Ela nos recorda que no de criativa em meio a um clima de
que a animava a viver para servir. centro da experiência mística está suspeitas até poder dizer no leito de
a consciência de ser família huma- morte: “Dou-vos muitas graças por
IHU On-Line – Para além dos na e que, como dirá o seu discípulo me haverdes feito filha de vossa Igre-
êxtases, cujo grande expoente está João da Cruz, “à tarde te examinarão ja e que acabe eu nela. Enfim, Senhor,
imortalizado pela estátua de Berni- no amor”. “Ser deveras espirituais”, sou filha da Igreja”. Muitas vezes es-
ni, qual é a contribuição de Teresa como ela mesma diz, supõe um pro- piritualizamos esta frase e lhe damos
de Ávila para a dimensão cotidiana cesso de libertação do egocentrismo um significado reduzido, como se a
da fé e da obra? Qual é a novidade e sair da autorreferencialidade para fidelidade de Teresa tivesse sido as-
da trajetória mística de Teresa de assumir, a partir de Deus, uma atitude sentir a tudo acriticamente em nome
Ávila? de responsabilidade social, de com- da fé, também entendida de manei-
Giselle Gómez – Na história de paixão para com todos os seres huma- ra simplista. Nada mais distante de
Teresa pode-se palpar que Deus ir- nos e a criação. seu posicionamento. Teresa era uma
rompe no humano de múltiplas ma- Sua maneira de viver a mística na mulher “espiritual” com tudo o que
neiras. Ela nos ajuda a redescobrir vida, a dimensão cotidiana da fé, como isso implicava no século XVI. Viveu a
outras dimensões da espiritualidade você diz, conecta-se com a nossa sede ousadia de ir além dos espaços assi-
que foram emudecidas e que apon- de algo mais, com a necessidade pro- nalados às mulheres, atrevendo-se a
tam para uma mudança na maneira funda de encontrar respostas para as converter-se em mestra de espiritua-
de compreender a vida e de situar-se perguntas mais autênticas da vida e lidade, em escritora e fundadora, em
na história. Podemos descobri-lo em para o sentido da existência humana. líder de um movimento de reforma
sua simbologia que ela chama de Com o desejo, não sempre explícito, de mulheres e de varões. Teve uma
“comparações grosseiras”, porque de tocar o Mistério que habita toda a profunda capacidade de assumir o
sua experiência ultrapassa a eloqu- realidade. Por isso nos convida a en- risco que supunha o fato de que a
ência de suas palavras. Por isso é trar no mais profundo de nosso ser e consideravam contaminada pelo fe-
capaz de dizer, no auge da sua expe- a partir dali acolher a profundidade nômeno do “iluminismo”. Conseguiu
riência espiritual, que a razão de ser da vida e a responsabilidade histórica captar o poder da palavra para pro-
da união profunda com Deus (experi- que supõe. duzir processos de transformação em
ência do casamento espiritual) é que pessoas e instituições. Suas cartas
nasçam obras. IHU On-Line – Em que medida são um eloquente testemunho deste
Por isso dirá também, de maneira Teresa abre um novo caminho na convencimento.
mais coloquial, essa frase tão conheci- Igreja em crise? Por isso, espelhar-se nela pode
da: “também entre os puncheros1 se Giselle Gómez – Em Teresa nos ser uma janela para o que você chama
encontra o Senhor”. Neste sentido, o encontramos com uma mulher que de “um novo caminho em uma Igreja
mundo doméstico, esse espaço tradi- sabe situar-se e tomar postura em em crise”. Provavelmente, se vivesse
cionalmente designado às mulheres, meio à turbulenta Igreja de seu tem- hoje não faria exatamente o mesmo
converte-se em uma fonte importante po. Ela oferece sua palavra movendo- que fez no século XVI. Mas também
para sua expressão simbólica da expe- -se em um delgado fio entre obediên- hoje seria uma mulher de atitudes
riência de Deus. cia e transgressão e aprende a resistir em nosso mundo e em nossa Igreja.
Encontrar Deus entre os pun- com a carga de sentido que esta pa- Teria em pouco sua vida, ou seja, as
cheros implica também que Marta e lavra tem hoje (Processo de criação. consequências que significaria dar a
Maria, que tradicionalmente foram Criar e recriar, transformar a situação,
separadas pela dicotomia ação-con- participar ativamente do processo, do poder, rompendo com as concepções
templação, andarão juntas. Esta ex- como disse Foucault2). clássicas do termo. Para Foucault, o po-
der não somente reprime, mas também
pressão converte-se no grito de Teresa
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produz efeitos de saber, constituindo


para reconciliar o que significam estas 2 Michel Foucault (1926-1984): filósofo verdades, práticas e subjetividades. Em
duas mulheres no itinerário espiritu- francês. Suas obras, desde a História da várias edições, a IHU On-Line dedicou
Loucura até a História da sexualidade (a matéria de capa a Foucault: edição 119,
al, como vislumbrando o que séculos qual não pôde completar devido a sua de 18-10-2004, disponível em http://bit.
depois afirmaria a teologia feminina: morte) situam-se dentro de uma filoso- ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006,
que as duas figuras não são dicotômi- fia do conhecimento. Suas teorias sobre disponível em http://bit.ly/ihuon203;
o saber, o poder e o sujeito romperam edição 364, de 06-06-2011, intitulada
cas, mas protótipos de dois estilos de com as concepções modernas destes ter- ‘História da loucura’ e o discurso racio-
comunidades na Igreja. Para Teresa, mos, motivo pelo qual é considerado por nal em debate, disponível em http://
estas duas mulheres são ícones inse- certos autores, contrariando a própria bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)
opinião de si mesmo, um pós-moderno. governo biopolítico da vida humana, de
paráveis que ultrapassam qualquer Seus primeiros trabalhos (História da 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/
dualismo e se convertem em transpa- Loucura, O Nascimento da Clínica, As ihuon343, e edição 344, Biopolitica, es-
rência de uma mesma realidade: uma Palavras e as Coisas, A Arqueologia do tado de exceção e vida nua. Um debate,
Saber) seguem uma linha estruturalista, disponível em http://bit.ly/ihuon344.
vida integrada no amor. o que não impede que seja considerado Confira ainda a ediçãonº 13 dos Cadernos
geralmente como um pós-estruturalista IHU em formação, disponível em http://
devido a obras posteriores, como Vigiar bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. Sua
1 Puncheros: panelas onde se cozinha. e Punir e A História da Sexualidade. contribuição para a educação, a política
(Nota da entrevistada) Foucault trata principalmente do tema e a ética. (Nota da IHU On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


entender uma só verdade das muitas a igualdade das pessoas. Diante de na qual é possível viver a ternura e

Tema de Capa
que Deus lhe revelava. Diria aos que Deus todas são iguais. o carinho, a companhia e a solidão,
governam o mundo e a Igreja que não Por isso, não admite iletradas, a cumplicidade e as alianças para
é possível consentir as coisas hoje criadas nem escravas. Também não tornar possível o sonho de Deus na
consentidas, como ela mesma escre- aceita maneiras de tratar que indi- história.
ve no Livro da Vida (São Paulo: Cia das quem um status superior. Nunca mais Teresa também nos fala de um
Letras/Penguin Books, 2010). usará o título de “Dona”. Impressiona modo de viver a liderança e o reco-
constatar que, nesta nova etapa, dei- nhecimento da autoridade de cada
IHU On-Line – Como se dava a xará de ser Teresa de Cepeda y Ahu- mulher. A cultura patriarcal de seu
instauração por Teresa de Ávila de mada e se converterá em Teresa de tempo (e também a nossa em muitas
comunidades de mulheres pobres, Jesus. Também suas companheiras ocasiões) negava a autoridade legíti-
orantes e iguais, em uma socieda- mudam seus sobrenomes civis. Entre ma às mulheres, já que só pertencia
de hierarquizada e preconceituosa elas, o importante era a dignidade de aos varões. Esta maneira de pensar
como aquela de seu tempo? serem filhas de Deus. Por isso pode era passada por osmose à mentali-
Giselle Gómez – Já antes lhe di- dizer que em seus conventos “...todas dade feminina e obstaculizava muito
zia que em um dado momento da sua hão de ser amigas, todas hão de se o reconhecimento da autoridade em
vida ela sente a necessidade, junto amar, todas hão de se querer, todas cada mulher. Teresa favorece espaços
com outras mulheres, de voltar às hão de se ajudar...”. nos quais as mulheres aprendem a re-
raízes do Carmelo. Não se sente satis- conhecer-se autoridade mutuamente.
feita em um convento superpovoado IHU On-Line – Quais são as Isto continua sendo um desafio para
que dificultava a autenticidade e a principais inspirações que sua tra- nós, reconhecer-nos mutuamente a
profundidade nas relações, que não jetória oferece para as mulheres da autoridade.
propiciava a ajuda e o acompanha- contemporaneidade? Você pergunta sobre o que Tere-
mento mútuos fundamentais para Giselle Gómez – Poderíamos
sa oferece às mulheres atuais. À exce-
uma vida de fé e que se baseava em resumi-las em algumas afirmações
ção deste último tema, sobre a auto-
um modelo hierárquico, estamental3, simples:
ridade feminina, tudo o que eu disse
que estabelecia diferenças entre ricas Teresa nos convida a conhecer
é aplicável também aos varões. Inclu-
a nossa riqueza interior, o que ela,
e pobres, nobres e plebeias, assim sive, com alguns matizes, este último
como já disse, chama de “formosura e
como na sociedade da época. ponto também é válido para vocês,
dignidade” da pessoa. Somos habita-
Teresa de Jesus tinha origens ju- porque também representa um desa-
das pelo Deus da vida. Nunca estamos
daico-conversas, com tudo o que isso fio o reconhecimento da autoridade
sozinhas. Mas para descobrir esta ver-
significava de exclusão na Espanha de das mulheres.
dade, faz-se necessário a solidão. Esse
seu tempo. Algumas das primeiras
espaço no qual nos encontramos com
monjas de seu novo convento, São IHU On-Line – E qual é o seu
o que realmente somos.
José, assim como ela, formavam parte principal legado e atualidade em um
Teresa nos desafia a honrar o va-
da linhagem dos conversos. Sabiam o tempo como o nosso, marcado pelo
lor da convivência, da comunidade,
que implicavam os pleitos para a ob- retorno ao sagrado e pela radicaliza-
da construção conjunta, da mútua
tenção dos certificados de fidalguia ção do ateísmo, por outro lado?
credibilidade, da cumplicidade para
para poderem ser aceitos honrosa- tornar possíveis os sonhos e fortale- Giselle Gómez – Sua certeza de
mente na sociedade. Em 1574, foi in- cer-nos nas dificuldades que temos que tudo está habitado, as pessoas, a
troduzido o “Estatuto de Limpeza de que enfrentar. realidade, a vida. Tudo está povoado
Sangue”, que dificultava a inserção na Quem faz parte da Igreja, ela in- de presença. E por isso sua convicção
sociedade e na Igreja daqueles que ti- centiva a tomar postura em meio às de que Deus convida a todos, não
vessem sangue impuro por descende- dificuldades atuais e a buscar estra- importa se o sabem ou não. Todas as
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rem de judeus ou muçulmanos. tégias alternativas. Ela assumiu com pessoas têm sede de vida, de sentido,
Ela nunca falou de sua linhagem coragem críticas e julgamentos, teceu de encontro... Nessa sede está Deus,
judaica, mas estava empenhada em relações de cumplicidade, convenceu quer o saibamos ou não. Ela o sabe,
conseguir a igualdade, mesmo que os seus confessores para que não co- por isso convida a entrar, a peregri-
fosse dentro dos muros do seu con- locassem obstáculos ao que ela expe- nar para o interior. Muitas pessoas
vento. Ali não havia criadas, nem ile- rimentava como desejo de Deus. O em nosso mundo sentem este dese-
tradas, nem escravas. Nos novos con- que isso significa para nós hoje? jo, embora não saibam ou não acre-
ventos jamais se pedirá o Estatuto de Outro ponto importante é sua ditem que Deus o colocou nelas. À
Limpeza de Sangue. Para Teresa não maneira de se relacionar com os va- medida que entram, encontram algo,
contam nem a limpeza de sangue nem rões e de viver a liderança com eles. alguém... uma voz interior que impele
a fidalguia, nem era necessário provar Às vezes é discípula e em muitas a escolher a vida.
outras vezes é mestra, filha e mãe; Seu legado está plasmado em
3 Estamental: caracterizado pelo perío- consulta e aconselha; é irmã e ami- suas obras e em suas cartas. Ter tido a
do medieval, é um sistema semiaberto,
diferente do sistema de castas. (Nota IHU ga. Ela promove uma nova maneira ousadia de escrever, preservou a sua
On-Line) de relação entre varões e mulheres, memória e a sua mensagem.

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A poesia das carícias
Tema de Capa

Luciana Barbosa expõe as relações entre mística, poesia e erotismo em Teresa de


Ávila, a quem descreve como mulher apaixonada, ardentemente enamorada de Deus

Por Márcia Junges e Andriolli Costa

M
ística e poesia possuem uma proxi- que a Santa é representada de modo pro-
midade inegável. Ambas tratam de vocativo, ao ser transpassada pela flecha de
um tipo de mistério, buscam o ine- fogo de um anjo. Estas experiências inspira-
fável e o Absoluto ou, nas palavras da pesqui- vam seus escritos que, por vezes, foram tidos
sadora Luciana Ignachiti Barbosa, expressam como obra do demônio, e não de Deus, es-
“o que está mais recôndito nos sentimentos pecialmente na era da Inquisição. É a mística
e pensamentos do homem”, atravessando de das carícias, onde o derradeiro matrimônio
mãos dadas os limites da lógica e da razão. espiritual é feito com Deus.
Neste sentido, ainda que não se considere Mesmo hoje, o sacral e o sexual, o reli-
apropriadamente uma escritora, a poesia é gioso e o afetivo parecem excluir-se mutua-
ponto chave na obra de Teresa de Ávila. mente. “Teresa nunca teve vergonha de dizer
Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, o seu amor com expressões humanas, pois
Barbosa, que estuda a poética na obra da já afirmara mais de uma vez que ‘um só é o
santa católica, afirma que é possível distin- amor’”, relata a estudiosa. Teresa não recusa
guir dois tipos de inspiração em sua obra: seu corpo nem seus prazeres corporais. Ao
a de dimensão humana – da ordem da ale- contrário, os assume ao Senhor. “Que goze o
gria, da festa, da paródia – e a de dimen- corpo, pois obedece o que quer a alma.”
são divina. Nesta última, Teresa narra suas Luciana Ignachiti Barbosa possui gradua-
situações de profundo encontro de amor ção em Psicologia pelo Centro de Ensino Su-
com Deus, vivenciado em êxtases sublimes, perior de Juiz de Fora, com especialização e
e “narra em suas poesias a experiência de mestrado em Ciência da Religião pela Univer-
transformar essa realidade humana em di- sidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente é
vina e a divina que deseja estar mais próxi- doutoranda em Ciência da Religião na mesma
ma da humana”. universidade, onde trabalha a poesia das pa-
Os êxtases de Teresa são famosos em sua lavras de Santa Teresa de Ávila sob orientação
biografia, evocando imagens que beiram o de Faustino Teixeira.
erotismo – como na escultura de Bernini, em Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Quais são os ne- Luciana Barbosa – É importante para além dos olhos e da mente, ela
xos fundamentais entre a fusão de salientar que sentimentos místicos e vai expressar o que está mais recôn-
mística e poesia em Teresa de Ávila1? sentimentos poéticos têm muito em dito nos sentimentos e pensamentos
comum, pois a poesia vai expressar do homem, atravessa esse umbral
1 Teresa de Ávila (1515-1582): freira car- um tipo de mistério, o oculto que está entre a lógica e a razão que a místi-
melita espanhola nascida em Ávila, Cas- ca também transpõe. Diz Martin del
tela, famosa reformadora da ordem das
Carmelitas. Canonizada por Gregório XV veu também poemas, dos quais restam 31 Blanco2 no livro Teresa de Jesus. Escri-
(1622), é festejada na Espanha em 27 de deles, e enorme correspondência, com tora y poetisa (Burgos: Monte Carme-
agosto, e no resto do mundo em 15 de 458 cartas autenticadas. Sobre Teresa,
outubro. Foi a primeira mulher a receber confira Teresa – A Santa Apaixonada (Rio lo, 2001): “Assim o confirma a vida e
o título de doutora da igreja, por decre- de Janeiro: Objetiva, 2005), de autoria a história de tantos místicos que têm
to de Paulo VI (1970). Entre seus livros de Rosa Amanda Strausz; Obras comple-
citam-se Libro de su vida (1601), Libro tas (São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Te-
de las fundaciones (1610), Camino de la resa de Jesus – “Livro da vida” (4ª ed., 2 Maurício Martin Del Blanco: professor
perfección (1583) e Castillo interior ou São Paulo: Ed. Paulus, 1983). (Nota da da Facultad Teología del Norte de Es-
Libro de las siete moradas (1588). Escre- IHU On-Line) paña. (Nota da IHU On-Line)

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compartilhado suas celebrações inte- ou apontar certo numen3 poético, po- Amor

Tema de Capa
riores profundas com Deus através de rém ele não pode criá-lo. Em suas Meditações sobre os
belos versos e de poemas íntimos”. Cantares (Carmelo do Coração Imacu-
É digno de se notar que quase IHU On-Line – Como a Mística lado de Maria, 1970), Teresa trata de
todos os poetas de primeira linha da das carícias se mescla com a poesia forma mais profunda o que entende
língua castelhana foram místicos co- na obra dessa santa? como amor. Baseia-se em trechos do
nhecidos, o que mostra a intrínseca Luciana Barbosa – A respeito Cântico dos Cânticos, e os aprofunda
relação entre poesia e mística, são da Mística das Carícias, Faustino Tei- em seu entendimento. Assim, dirá
os elementos humanos e divinos que xeira4 vai dizer em seu texto Mística: referindo-se à passagem: “Beije-me
vêm sempre unidos no poeta e no Experiência que integra Anima e Ani- com o beijo de sua boca” que essa é
místico. Dessa forma o poeta embe- mus5 que “assim como João da Cruz, uma graça tão grande, que a alma mal
leza o que vulgarmente poderia estar Teresa é uma ‘mística das carícias’, pode suportar estar assim tão próxi-
escondido, obscuro, impossível de ser da proximidade amorosa e do envol- ma de seu Senhor. Tendo a certeza de
atrativo, e que aos seus olhos toca o vimento corporal”. Ela chamará esse que ele a ama.
sentimento. E sobre esse comungar de envolvimento de “atividades íntimas” Nesse desposório espiritual a
poetas e místicos continua del Blanco: e, em suas poesias, ela se apresentará vontade só pode querer o amor. E não
“O poeta faz, de alguma maneira, a irrompendo em palavras de ternura, é qualquer amor, ou melhor dizendo,
experiência mística do que vive, sente exclamações impossíveis de reprimir não se trata de amar quanto baste. Na
e gosta, para poder logo comunicá-la “oh! Vida de minha vida!” ou “Oh! verdade, trata-se de amar a mais do
em poesia. E o místico tem vivenciado Sustento que me sustentas!”. que sobra, como diz padre Antônio
a realidade que está interiorizada e Em seu livro Castelo interior ou Vieira6 em seus Sermões: “Porque o
pode comunicar essa vivência mística moradas (São Paulo: Paulus, 1997), amor acredita-se no supérfluo: quem
de forma mais poética”. Teresa fez a distinção de sete moradas ama pouco contenta-se com o que
Podem-se distinguir dois tipos de neste Castelo que é a alma. Descreve basta, quem ama muito contenta-se
inspiração poética em Teresa, a inspi- fatos e acontecimentos pertencentes com o que sobeja, e quem ama mais
ração da dimensão humana e outra a cada uma das travessias. Conclui que muito, nem com o que basta,
de dimensão divina. Na dimensão hu-
expondo a sétima morada, onde, efe- nem com o que sobeja se contenta:
mana ela compunha poesias para co-
tivamente, acontece o matrimônio ainda sobe mais acima, ainda passa
locar alegria e festa na vida monótona
espiritual da alma com Deus. O matri- mais adiante”.
dos mosteiros, nas rigorosas discipli-
mônio espiritual é diferente da união, E foi nisso que Teresa mais se es-
nas que ali havia. Teresa sempre trazia
visto que essa já acontecia nas outras forçou: passar adiante, amar mais que
um toque de humor, compunha paró-
moradas da alma. Tal matrimônio só o possível, vivificar em extremo toda
dias para dar mais leveza às rigorosas
pode acontecer na última morada, na graça que recebia do encontro com
tradições monásticas. No âmbito da
mais íntima sala da alma, pois é lá que
dimensão divina, ela vai narrar as situ- 6 Antônio Vieira (1608-1697): padre je-
está o Divino Rei, Deus, na metáfora
ações de profundo encontro de amor suíta, diplomata e escritor português.
de Teresa, como um diamante que Desenvolveu expressiva atividade missio-
com Deus, de vivenciar esse amor, es- nária entre os indígenas do Brasil procu-
só irradia luz e amor. E a graça maior
ses êxtases sublimes, e narra em suas rando combater a sua escravidão pelos
aqui será o desejo de Deus de despo- senhores de engenho. Em 1641 voltou a
poesias a experiência de transformar Portugal onde exerceu funções políticas
essa realidade humana em divina e a sar tão pequenina alma, de mostrar o como conselheiro da Corte e embaixador
divina que deseja estar mais próxima seu amor a ela; Deus “(...) A tal pon- de D. João IV, principalmente no que se www.ihu.unisinos.br
referia às invasões holandesas do Brasil.
da humana. to quis se unir com uma criatura, que Retornou ao Brasil em 1652, tendo es-
A monja, no entanto, não se con- não quer mais apartar-se dela”. Desse tado no Maranhão, onde fez acusações
modo, a paz que esse amor irradia é aos senhores de engenho escravocratas
sidera poeta. No Livro da Vida vai dei- na defesa da liberdade dos índios. Foi
xar claro que, apesar de fazer versos tanta que, uma vez que a alma entra expulso do país, juntamente com outros
nessa morada, ela não mais o perde. jesuítas. Voltou ao Brasil em 1681. Entre
muito sentidos, isso não a transforma suas obras estão: Sermões, composto
em uma escritora. Diz–nos: “Sei de por 16 volumes que foram escritos entre
3 Numen: termo latino para “divindade” 1699 e 1748; História do Futuro (1718);
uma pessoa que, sem ser poeta, lhe ou “presença divina”. É usado por soció- Cartas (1735-1746), em três volumes;
acontecia improvisar estrofes muito logos para se referir à ideia de poder má- Defesa perante o tribunal do Santo Ofí-
gico que reside em um objeto ou ideia. cio (1957), composto por dois volumes.
expressivas, declarando seu penar. (Nota da IHU On-Line) Confira a edição 244 da IHU On-Line,
Não as fazia com o intelecto, mas para 4 Faustino Teixeira: professor do Progra- de 19-11-2007, Antônio Vieira. Impe-
ma de Pós-Graduação em Ciência da Reli- rador da língua portuguesa, disponível
mais regozijar-se da glória que tão gião, da Universidade Federal de Juiz de em http://bit.ly/ihuon244. Leia Vieira.
saborosa pena lhe causava”. Mesmo Fora – PPCIR-UFJF. (Nota da IHU On-Line) Um Indiana Jones das missões. Entrevis-
5 Ver a edição 385 da IHU On-Line, de ta especial com José Eduardo Franco,
ela não se considerando poeta, ela de 19-12-2014, em http://bit.ly/ihuon385. disponível em http://bit.ly/1uSNC1Q.
fato o é. O estado místico pode avivar (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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Deus. Recitando junto com a esposa consideram a persistência deste mito Luciana Barbosa – Teresa de Je-
Tema de Capa
do Cantares, desabafa: “Enquanto e a incompatibilidade do sagrado e do sus vai se utilizar de símbolos para ul-
escrevo isso, Rei meu, não estou fora sexual, e entre o religioso e o corpó- trapassar os limites que a linguagem
dessa santa loucura celestial que me reo, em nossa cultura ocidental, como apresenta às expressões místicas.
fazeis favor por vossa bondade e mi- uma crise de fundo”. Estes unirão a imagem à realidade
sericórdia, tão desprovida de méritos Teresa nunca teve vergonha de significada. Há no símbolo uma pre-
como sou. Permita agora, eu vos supli- dizer o seu amor com expressões hu- sença daquilo que se quer significar,
co, que fiquem loucos de vosso amor manas, pois já afirmara mais de uma que nos remete a um sentido oculto.
todos aqueles com os quais eu tratar, vez que “um só é o amor”; daí que Em sua narrativa ela pretende, atra-
ou concedei que doravante com nin- melindres não eram condizentes com vés de aproximações, comparações,
guém mais trate”. a força com que esse amor era expres- alegorias, poder introduzir o leitor no
so. Teresa não recusa seu corpo nem que ela vivencia profundamente em
IHU On-Line – Qual o lugar do seus prazeres corporais. Da mesma sua experiência de comunhão com o
erotismo em seus escritos? forma que não recusa suas dores, Amado. Enquanto as comparações e
Luciana Barbosa – Ernesto Car- com real objetividade já havia escri- alegorias são expressões do enten-
denal7 poetisa sobre o erotismo: to às suas filhas: “não somos anjos, dimento racional, o símbolo será o
“Disseram a Gioconda Belli8, naquele mas temos um corpo”. Afinal tudo é melhor representante possível para
bar, que ela poderia entreter-me com de Deus e, se o corpo pode passar por descrever uma realidade que não se
erotismo, e diziam que poderia en- tais momentos de prazer, só o faz por- pode exprimir.
treter-me bastante. Eu me calei. Hoje que Deus o permite: “E quer o Senhor Desta forma o símbolo represen-
pensei que há um erotismo sem os algumas vezes, como digo, que goze tará uma realidade para além daquela
sentidos, para muito poucos, nele eu o corpo, pois obedece o que quer a material e imediata (como os usados
sou especialista”. O Erotismo da fala por Teresa: castelo, sol, água, ouro,
alma”.
dos místicos sempre foi algo a deixar etc.). Ela insiste em dizer que tais
Assim, o que alguns críticos de
sem jeito muitos teólogos e estudio- símbolos são apenas comparações
Teresa podem não ter observado é
sos. Dessa forma, ao que parece, con- e não correspondem perfeitamente
que, para ela, o que o corpo podia
tinua a grande dificuldade de se juntar à realidade simbolizada, porém não
expressar com seus arroubos, mes-
religiosidade a expressões de amor fí- possui outra linguagem que seja mais
mo com o simbolismo erótico que
sico. Otger Steggink9 afirma que: “Em apropriada. Diz-nos Mircea Eliade10 a
era característico, era mais uma ex-
nossa cultura Ocidental, o sacral e o
pressão do amor de Deus, não a prin-
sexual, o religioso e o afetivo parecem 10 Mircea Eliade (1907-1986): escritor e
cipal, nem a mais importante. Dessa filósofo romeno, uma das maiores auto-
excluir-se mutuamente. Este mito oci- ridades no estudo das religiões. Estudou
forma, o corpo de Teresa se torna
dental está na relação estreita com a a linguagem dos símbolos, usada em to-
palco, palco de uma união mística. Os das as religiões, para chegar às origens,
concepção do sagrado como separa- que se situariam sempre no sagrado. Em
que estavam ao seu redor poderiam
do, e do religioso como puramente 1928 obteve seu mestrado em Filosofia na
presenciar os efeitos de tal encon- Universidade de Bucareste. Estudou sâns-
espiritual, incorpóreo. Vários autores
tro: o corpo inerte como que morto, crito e filosofia hindu na Universidade
de Calcutá (1928-1931) e morou em um
7 Ernesto Cardenal: monge trapista nica- a exaustão física semelhante a que ashram em Rishikesh, ao pé do Himalaia,
raguense, escritor e discípulo de Thomas procede da explosão orgástica, as fa- na Índia. Em 1933, voltou à Universidade
Merton. Ernesto Cardenal foi ministro de Bucareste e obteve o doutorado com
da Cultura da Nicarágua no governo da culdades em desarmonia, o intelecto o tema Yoga: Essai sur les Origines de lqa
Frente Sandinista de Libertação Nacional com dificuldade de agir, os suspiros, Mystique Indiène. Em 1945, lecionou na
(FSLN). Hoje, está rompido com a enti- École de Hautes Études, na Sorbonne, e,
as lágrimas... tudo representado no
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dade. Citamos, entre as publicações de em 1956, foi professor de História das


Cardenal, Evangelio de Solentiname (Sa- corpo, mas quem esteve em núpcias Religiões na Universidade de Chicago, Es-
lamanca: Sígueme, 1975); La Revolución tados Unidos. Foi também honoris causa
Perdida (Madrid: Editorial Trotta, 2003);
verdadeiramente fora a alma. O gozo em numerosas universidades de todo o
Im Herzen der Revolution (Wuppertal: aqui se representa no corpo, não mundo, além de premiado em 1977 pela
Peter Hammer Verlag, 2004); Antología Academia Francesa com a Legião de Hon-
poética (Rosario: HomoSapiens Edicio-
nasce dele. Pretender restringir uma ra. Sua interpretação essencial para as
nes, 2004); Catulo y Marcial (Santiago experiência mística gozosa a um esta- culturas religiosas e a análise de experi-
de Chile: Ediciones Tácitas Ltda, 2004). do de pura excitação física, que tem ência mítica caracterizavam suas obras.
Cardenal nos enviou um texto sobre sua Em Eliade, o conceito de hierofania cor-
direção espiritual com Thomas Merton, seu desaguar em uma expressão reli- responde às manifestações do sagrado,
publicada na edição 133 da IHU On-Line, giosa, é reduzir a um estado mínimo desde aquelas mais elementares, como,
de 21-03-2005. Acesse pelo link http:// por exemplo, sua manifestação num ob-
bit.ly/ihuon133. (Nota do IHU On-Line) o seu significado. jeto qualquer, em uma pedra ou uma ár-
8 Gioconda Belli (1948): escritora, ro- vore, até a sua forma suprema, que, para
mancista e poetisa da Nicarágua. (Nota um cristão, seria a manifestação de Deus
do IHU On-Line) IHU On-Line – Como os limites no homem Jesus Cristo, residindo aí um
9 Otger Steggink: padre da ordem dos da linguagem se apresentam e abrem ato misterioso: a manifestação de algo
carmelitas descalços, autor de diversas divino em objetos que fazem parte de
obras sobre Santa Teresa. (Nota da IHU
espaço para outras expressões do nosso mundo material, “profano”. (Nota
On-Line) inefável na mística de Teresa? da IHU On-Line)

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respeito dos símbolos: “um símbolo de Salcedo11, que os apresenta ao frei pelos caminhos da experiência conti-

Tema de Capa
revela sempre, qualquer que seja o Gaspar Daza12. Os dois ao analisarem da nas palavras.
contexto, a unidade fundamental de os textos chegam à conclusão de que Assim, a trajetória de sua obra
diversas regiões do real, pois a ima- suas experiências não são de Deus, sempre foi marcada por fortes emba-
gem como tal – enquanto feixe de mas sim do demônio, o que aumenta tes em relação a seus confessores, por
significação – que é verdadeira, e não os já angustiosos questionamentos de mais de uma vez suas obras foram lan-
apenas uma de suas significações, ou Teresa a respeito de sua vivência mís- çadas ao fogo, mas, pela intensa dedi-
um de seus planos de referência”. tica; diz-nos a respeito deste parecer: cação das monjas e outros confesso-
Teresa escrevia frequentemen- “causou-me isso tanto temor e pesar, res seus amigos, essas obras sempre
te em estado de oração ou êxtase, que não sabia o que fazer de mim: puderam ser resgatadas, em cópias
profundamente inspirada, dizia que tudo era chorar”. Mais tarde um outro ou com a própria Teresa reescrevendo
as palavras lhe eram ditadas pelo Se- confessor, Diogo de Cetina13, conse- o texto. Um fato é que as poesias de
nhor, que a fazia escrever com mais gue aplacar um pouco essa angústia Teresa não foram muito pesquisadas,
facilidade e clareza. Será então neste afirmando-lhe que essa experiência depois do livro do padre Ángel Custó-
estado psicológico que surge o símbo- era divina e a incentivando a continu- dio Vega14 de 1972, La Poesia de Santa
lo, não é ela quem os cria, mas sim o ar escrevendo. Teresa, as pesquisas se mantiveram
Senhor no centro de sua alma. Sendo Como podemos ver então, seus no mesmo patamar, até os estudos de
assim, a exatidão do que ela escreve escritos foram recebidos com grande Tomás Álvarez, editados no livro Estu-
não é mais determinada pelo enten- desconfiança por parte do ambiente dos Teresianos, de 2000.
dimento, mas sim pelas experiências teologal, que, em uma época de fo-
das realidades interiores da alma. gueiras e inquisições, lia com olhos IHU On-Line – Em que aspectos
O leitor mergulha nesse texto de de censura qualquer exclamação de Teresa funde ideias de outros místi-
forma a comungar com a sua realida- encontro com o divino, em especial cos, como São João da Cruz, ao men-
de interior. Por isso a poesia serve tão vindos de uma mulher... O próprio Li- cionar o “rapto místico”? O que essa
bem a Teresa, para que as palavras flu- vro da Vida foi recolhido pela Inquisi- expressão quer dizer?
am para além do intelecto daquele que ção para um parecer, sendo absolvido Luciana Barbosa – Para Tere-
a lê e tire dele o que de experiência mais tarde. sa, “Rapto Místico” é o mesmo que
ele possa trazer, experiência de suas Mas o texto que talvez tenha dei- “arroubamento ou êxtases” diz-nos:
vivências interiores da alma. É como xado mais em desconforto seus con- “(...) arroubamento, êxtases, ou rap-
uma adesão íntima e irresistível a um fessores foi sua interpretação sobre to, tudo é um em meu parecer”. Seu
todo aparentemente incompreensí- “O Cântico dos Cânticos” escrito nos conceito se deriva do texto paulino na
vel, mas que o poeta místico tenta, anos 60/70 do século XVI. Esse texto Segunda Carta aos Coríntios 12,2-4,
com fervor, transmitir. tem uma história bem acidentada. “Se a alma está ou não unida ao cor-
Os poetas acreditam e se valem Seus confessores ordenaram-na que po, enquanto isso lhe acontece, não
de metáforas, pois compreendem que o lançasse ao fogo, o que Teresa faz sei dizer. Pelo menos não posso jurar
a linguagem é uma coisa viva, que em obediência, porém ele foi copiado que esteja nele, nem tão pouco que
precisa de tempo para revelar-se, que várias vezes antes disso. está o corpo sem alma”.
precisa do esforço do leitor para fazer O motivo dessa história acidenta- O nascimento da amizade en-
germinar o sentido. Teresa retira suas da vem justamente do poder poético tre Teresa e João da Cruz foi um feliz
metáforas do mundo natural, dos nos- e simbólico de erotismo do Cântico encontro entre dois enamorados de
sos sentidos, das estruturas sociais às dos Cânticos, acreditava-se que uma Deus, há uma recíproca influência
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quais estava sujeita, e liga-as a reali- mulher não poderia ter entendido seu entre os dois amigos, que os fazem
dades psicológicas e espirituais de conteúdo místico. Mas Teresa enten- escrever poemas com o mesmo tipo
uma forma tal que consigamos trilhar deu muito bem essas núpcias, na ver- de inspiração, como por exemplo o
com ela o caminho. dade ela experienciava o que o texto poema “Vivo sem Viver em Mim”, que
transmitia, daí conseguir levar o leitor eles escrevem quase que ao mesmo
IHU On-Line – Como as obras de tempo, cada um em sua cela.
11 Francisco de Salcedo: homem casa-
Teresa foram recebidas a partir dessa do que era modelo de virtude, citado nas Não se pode, também, não levar
mescla de mística, poesia e erotismo? obras completas de Santa Teresa. (Nota em consideração as diferenças psico-
da IHU On-Line)
Luciana Barbosa – Desde o co- 12 Mestre Gaspar Daza: padre de Ávila,
lógicas do homem e da mulher. A mís-
meço, quando começa a escrever suas morto em 1592, citado no Livro da Vida tica Teresa d’Ávila é diferente de João
de Teresa de Ávila. Doutor tido como da Cruz, ela é ativa, propensa às ativi-
formas de experiência mística, seus muito virtuoso. Afirmou que Teresa era
textos são recebidos com ceticismo e vítima dos enganos do demônio. (Nota da
IHU On-Line) 14 Ángel Custódio Vega (1894-1972): es-
alto grau de desconfiança. Teresa os 13 Diogo de Cetina: confessor jesuíta de critor, humanista e frade espanhol. (Nota
mostra primeiro ao amigo Francisco S. Teresa. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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dades, é comunicativa, com relações que na verdade os arroubos místicos não lhes dá mais importância que ao
Tema de Capa
sociais, ela é uma mística do diálogo, não deixavam de ser consequência, e silêncio ou a rebelião dos sentimen-
da comunicação. São João da Cruz é não condição, do contato com Deus. tos. Não é que privilegie as reverbe-
um místico mais contemplativo, essa Teresa de Jesus era uma grande rações corporais do prazer de Deus,
sua natureza se reflete em seus poe- mulher apaixonada, ardentemente mas tão pouco as deprecia”. O corpo,
mas. O fato é que os dois são poetas. enamorada de Deus e possuidora da para Teresa, se torna uma extensão de
Ela uma poetisa que encontra coorde- força que essa relação a dotava. Por sua experiência mística; será nele que
nadas diferentes de João da Cruz, este ser mulher, e se expressar como espo- a demonstração do que é vivenciado
quase sempre partindo do humano sa, não passou despercebida em seu com Deus pode se apresentar.
e do cósmico, e Teresa do social e do século aos olhos da Inquisição, e mais
encontro. tarde aos olhos da psicanálise, que IHU On-Line – Em que senti-
entendeu que Teresa afirmava viver do se pode dizer que a poesia e a
IHU On-Line – Psicanaliticamen- com Deus o desejo e o amor que gos- mística de Teresa são universais e
te, como podem ser compreendidos taria de viver com os homens. contemporâneas?
os êxtases vividos por Teresa de Ávi- Não se entrará aqui nas ques- Luciana Barbosa – A contem-
la, como aquele representado pela tões, desde há muito discutidas por poraneidade da poesia mística se dá
escultura de Bernini? psicanalistas, da possível patogenia justamente no encontro do leitor de
Luciana Barbosa – Uma leitura do estado de Teresa. O que se torna qualquer época com o texto, com as
superficial da obra de Teresa de Jesus oportuno observar é como uma subli- palavras apresentadas através da ex-
pode levar ao equívoco de se pensar mação amorosa pode estar presente periência. Teresa de Jesus realiza sua
que Teresa desejava que suas compa- e de que forma ela a representou no obra em diálogo. Primeiro um diálogo
nheiras do Carmelo compartilhassem corpo. No Congresso Teresiano de consigo mesma, pois seus escritos são
seus êxtases, ou que as incitava a isso. 1982, o psicanalista Antoine Vergote16 recordações de suas vivências sociais,
Nada mais errôneo para se dizer. Que trouxe uma questão interessante a místicas e emocionais. Depois con-
ela era uma incitadora nata, disso respeito da sublimação no amor. versa com seus possíveis leitores, pri-
não há dúvida. Contudo, em nenhum Sublimação, em termos psicana- meiro, seus censores e confessores,
de seus escritos há alguma exorta- líticos, é uma transformação dos ins- depois seus filhos e filhas do Carmelo.
ção para que suas irmãs carmelitas, tintos sexuais. Assim, a característica Sua proximidade com as pessoas faz
a quem eram destinados seus livros, da sublimação é, mesmo sem explici- com que seus escritos soem como se
se esmerassem na busca de êxtases tar o caráter sexual da ação, manter estivesse falando em família, de forma
ou arroubos místicos. Pelo contrário, o seu prazer. Todavia, o que o autor confidencial e próxima. Por isso eles
estava sempre a exortar sobre a hu- defende é que Teresa pôde transfor- são fonte de inspiração até os dias de
mildade que se deve ter, e como essas mar esse prazer. Ela não recusa o pra- hoje, a autora fala de seu coração para
graças de Deus não são o ponto prin- zer que esse corpo pode dar, nem o o coração do leitor. Conhecedora que
cipal de seu amor. transforma em contemplação. Amor era das dores e dificuldades humanas,
Teresa de Jesus é conhecida, e humildade, obediência e resignação foca seus esforços em apresentar um
muito, por suas experiências de êx- estão presentes tanto no corpo quan- Deus de puro amor, que deseja o en-
tases, transes e levitações. Depois de to na alma de Teresa. contro com essa alma em sofrimento
ter uma de suas visões, narrada no Ela mesma não dava tanta im- e a quer em si.
“Livro da Vida”, imortalizada pelo es- portância a esses momentos de ar- Ao fazerem suas comunicações,
cultor italiano Bernini15, na qual um roubos. Narrava-os, mas o verdadei- os místicos não querem que nos re-
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anjo traspassa seu coração com uma ro gozo não estava na narração, pois
flecha de fogo, é que a curiosidade editemos em suas experiências, mas
muitas vezes reclamava de ter que es-
sobre seus estados especiais se acen- sim provocar e suscitar a nossa, e,
crever tendo tantos trabalhos a fazer.
tuou, ainda mais quando uma santa assim, acompanhá-los em suas ex-
Também não estava o prazer no mo-
é representada com tamanho deleite pressões. Dessa forma, ao ler Teresa
mento do êxtase em si, o verdadeiro
em sua imagem. cria-se o carisma teresiano do leitor, o
gozo estava na presença de Deus, que
No entanto, quando se entra que em sua leitura o impacta, abrin-
também era dada de outras formas.
em contato com os textos de Teresa, do-o à sua palavra e a tornando sua.
Diz-nos Vergote: “A Teresa, por exem-
reconhece-se quão vasta e profunda é O carisma teresiano se pauta em que
plo, não lhe dá vergonha reconhecer
sua visão de mundo e de religiosida- centremos nossa vida na relação in-
os prazeres e dores corporais, mas
de, que não se pode deixar de pensar terpessoal com Deus e com os outros.
16 Antoine Vergote (1921-2013): padre Para Teresa a base de toda a graça é a
15 Gian Lorenzo Bernini (1598-1680): católico, filósofo, psicólogo e psicanalis- amizade. Deus ama a todos, mas nem
artista reconhecido do barroco italiano, ta belga. Foi professor emérito da Uni-
distinguido como escultor e arquiteto. versidade Católica da Lovaina. (Nota da
todos correspondem a esse amor, por
(Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) isso não se tornam amigos de Deus.

26 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


Assim a mística propõe entrar no acima, é digno de se notar que qua- Luciana Barbosa – Gostaria de

Tema de Capa
segredo de Deus, na intimidade mais se todos os poetas de primeira linha finalizar com uma poesia de Teresa in-
íntima. Perfurar a realidade, e a con- da língua castelhana foram místicos titulada “Sobre aquelas palavras: Meu
sequência disso é aceitar o amor com conhecidos. Para ilustrar a importân- Amado é meu e eu sou dele”. Esta está
que esse Deus lhe brinda, desnudar- cia de seus escritos gostaria de tra- contida no livro Obras Completas de
-se, consentir em ser essa criatura zer aqui alguns exemplos de falas de Teresa de Jesus de Tomás Álvarez, edi-
amada, reconhecer esse amor ao pró- vários autores que se encontram no ção em português. Acredito ser uma
ximo, e daí se esforçar por transmitir dicionário de Santa Teresa de Jesus, poesia que traduz muito do que foi
isso ao outro, pois em sua viagem sob o vocábulo Algumas Avaliações dito acima sobre a vivência amorosa e
mais profunda de encontro com Deus, Sobre o Estilo Literário Teresiano diz- mística de Teresa com Deus.
o místico se encontra com o outro, e -nos: “Teresa é para os artistas, como
com o mundo não podendo se furtar é Cervantes, uma lição perpétua: mais
mais de falar-lhe desse amor com a lição, quanto ao estilo, do que Cervan-
Sobre Aquelas Palavras:
linguagem possível da experiência. tes. Em Cervantes temos o estilo “fei-
Meu Amado é meu e eu sou Dele
to” e em Teresa vemos como vai “se
IHU On-Line – Qual o lugar Entreguei-me toda, e assim
fazendo” (Azorín18); “Por uma única
dos escritos de Teresa na literatura
página de Santa Teresa podem dar- Os corações se hão trocado:
histórica?
-se infinitos célebres livros de nossa Meu Amado é para mim,
Luciana Barbosa – A importân-
literatura e das admiráveis.Não há no E eu sou para meu Amado.
cia histórica dos escritos de Teresa é
tão relevante que faz o autor Dáma- mundo prosa nem verso que bastem
so Alonso17 em seu livro “Poesia Es- para igualar, nem ainda de longe se Quando o doce Caçador
panhola” escrever: “O fato de que as comparem a qualquer dos capítulos
Me atingiu com sua seta,
duas grandes espiritualidades (Teresa da Vida” (Menéndez Pelayo19), e para
Nos meigos braços do Amor
e João da Cruz) se tenham dedicado finalizar o que nos diz Schack: “Por
Minh’alma aninhou-se, quieta.
a essa humilde tarefa de adaptação uma única página de (seus assombro-
sos escritos) daria eu com gosto todos E a vida em outra, seleta,
obrigaria a considerar o fenômeno
espanhol de conversão da literatura os discursos pronunciados por nossos Totalmente se há trocado:
profana a plano religioso com mais acadêmicos e parlamentares”. Meu Amado é para mim,
atenção do que até aqui se tem feito. E eu sou para meu Amado
Esperemos que alguém escreva uma IHU On-Line – Gostaria de
história da literatura espanhola ao acrescentar algum aspecto não Era aquela seta eleita
divino”. questionado?
Ervada em sucos de amor,
As obras poéticas dos místicos e
18 Azorín [José Augusto Trinidad Mar- E minha alma ficou feita
romancistas espanhóis dão o formato tínez Ruiz] (1873-1967): novelista espa- Uma com seu Criador.
do que se chamou “A idade de Ouro nhol, ensaista, dramaturgo e crítico lite-
da Poesia Espanhola”. Como foi dito rário. (Nota da IHU On-Line) Já não quero eu outro amor,
19 Marcelino Menéndez Pelayo (1856-
1912): político e erudito espanhol, con- Que a Deus me tenho entregado:
17 Dámaso Alonso (1898-1990): poeta, sagrado por seu trabalho de crítica li- Meu Amado é para mim,
filólogo e crítico literário espanhol. (Nota terária, história da literatura e filologia
da IHU On-Line) hispânica. (Nota da IHU On-Line) E eu sou para meu Amado
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EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 27
A beleza e a incompreensão de
Tema de Capa

uma vida contagiosa


Cristiana Dobner discute a trajetória espiritual de Teresa de Ávila e os reflexos de seus
ensinamentos às religiosas na contemporaneidade

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: Ivan Pedro Lazzarotto

A
incompreensão e a intensa espiritua- as obras de Teresa, o que sempre estimula a
lidade dos místicos nem sempre são dedicação absoluta; a necessidade de um dis-
percebidas por seus contemporâneos. cernimento preciso e comprovado e a entre-
É preciso que a poeira do tempo se assente ga de si a um guia espiritual ressoam como
para que se compreenda e respeite as dife- convites inacianos. A Humanidade de Cristo
renças e o despertar de Deus. “Precisamos permeia os escritos de ambos etransborda de
lembrar que nem todas as pessoas, as mu- suas vidas”, argumenta.
lheres em específico, são chamadas a ‘se unir “Os fenômenos místicos, superabundan-
com Deus seguindo o mesmo caminho. No tes na vida de Teresa, são seus peculiares e
final das contas é o Espírito que desperta o não imitáveis. (...)Teresa se questionava cons-
desejo e Ele sabe como tocar diferentemente tantemente: Senhor, o que quer de mim? De-
cada pessoa que a Ele se abrir’”, explica Cris- vemos permanecer sempre nessa questão,
tiana Dobner em entrevista por e-mail à IHU habitar a Palavra e se deixar conduzir. A pre-
On-Line. sença de Deus na vida de Teresa foi tangível
“Todavia, Teresa se torna emblemática da mesma forma que é tangível a sua respos-
para as mulheres de agora sob muitos perfis: ta: uma dinâmica de amizade, tecida de lou-
a sua capacidade de reação de uma maneira vor e adoração”, encerra Cristiana Dobner.
particular reta e dominada somente por ho- Cristiana Dobner é irmã carmelita des-
mens; a sua tenacidade frente às dificuldades calça, escritora, estudiosa e pesquisadora da
impostas pelas instituições, sejam eclesiásti- teologia. É tradutora de textos do alemão, in-
cas, sejam municipais para erguer monasté- glês, francês, espanhol, holandês, hebraico e
rios pobres, sem rendimentos”, complemen- russo. Além disso, colabora com várias revis-
ta. Para a entrevistada, a espiritualidade de tas e jornais no mundo. Ela vive no mosteiro
Loyola reverbera nos escritos de Teresa de de Santa Maria del Monte Carmelo, na locali-
Ávila. “São espiritualidades irmãs, muito pró- dade de Barzio, na província de Lecco, Itália.
ximas. O ‘magis’ de Inácio ressoa em todas Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Em que sentido contro com os outros. Teresa tinha espaço de outros em detrimento do
se pode dizer que Teresa de Jesus era recebido um dom particular, coloca- interlocutor.
uma humanista? do a serviço do seu testemunho de Esse aspecto, porém, não perma-
Cristiana Dobner – Sob tantas dedicação à Igreja: o dom de pessoa, nece isolado, mas se coloca de acor-
perspectivas a pergunta pode rece- como definem os espanhóis. Tam- do com o carisma recebido: a oração,
ber várias respostas, e considerarei bém se pode chamar de empatia, a em conformidade como abertura de
algumas de acordo com a argumen- capacidade de ouvir outras pesso- louvor e de intercessão para todos,
tação da própria Teresa, mulher ra- as, ou seja, a certeza do acolhimen- com uma postura de profundo encon-
dicada na história e profundamente to que Teresa infundia, na ausência tro com o seu grande e único Amigo,
humana. Demonstra por toda a sua absoluta do medo do confronto e do qual se ramificavam todas as suas
vida sempre aberta e disposta ao en- das garantias a serem dadas pelo amizades, o Senhor Jesus. Não em

28 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


uma abstração teológica ou com um
“Sou muito capaz de orações vocais e incapaz de

Tema de Capa
apelo moral, mas no âmbito da vida uma oração silenciosa e articulada;
de Teresa, encarnada, com Jesus Cris-
to, feito carne. Uma vida vivida com
devota de Santo a sua capacidade de agregar e con-
duzir grupos de mulheres; a sua ha-
a Humanidade de Cristo, o Deus Ho-
mem por amor. Deste encontro nasce
Agostinho: bilidade de escrever em uma época
onde a mulher era analfabeta e era
e jorra toda a sua humanidade, por-
que sabe oferecer às pessoas a res-
primeiro porque banida da arte de escrever; o seu
comportamento firme, digno, astuto
posta aos grandes questionamentos o monastério no e bem humorado, com quem devesse
controlar os seus escritos. Porém, o
que conduzem a sua existência, diri-
gindo-a plenamente na história para qual entrei para que mais atraía e fascinava a religiosa
a única Beleza eterna: o amor Trino. era a sua capacidade de acolher a ir-
vida religiosa era rupção de Deus e indicar aos demais
IHU On-Line – Quais foram as como proceder com discernimento
principais intuições e modificações da sua Ordem, e para caminhar (andar! verbo que Te-
da reforma empreendida por Teresa resa tem afeição) nos caminhos de
de Ávila na ordem carmelita? Como a depois porque ele Deus.
comunidade recebeu tais mudanças?
Cristiana Dobner – A grande no- era um pecador” IHU On-Line – Quais eram as
vidade é constituída pela oração, in- principais obras de ascetas que inspi-
serida no interior da Regra Carmelita raram Teresa de Ávila em sua conver-
e fundou, com meios escassos e can- são e vida monástica?
que não a previa. Dois pontos: uma
sativos, 17 monastérios. As suas filhas Cristiana Dobner – Deixo que a
pela manhã e outra à noite, onde a
começaram a se expandir por... contá- própria palavra de Teresa responda,
carmelita que seguia Teresa na sua in-
gio... Quando alcançavam um país ou no Livro da Vida fala que o seu pai
tuição redescobria sua profunda iden-
uma localidade, o estilo de vida “te- tinha muitos livros de boa leitura:
tidade: se deixar transformar pelo Es-
resiano” atraía e se transformava em “Meu pai amava muito a leitura de
pírito e “estar”, como Elias,1 de fronte
semente fecunda de vida. bons livros, e ele tinha muitos livros
ao Vulto de Deus em intercessão obla-
tiva para todos. em uma linguagem vernácula porque
IHU On-Line – Em vida, Teresa de também seus filhos os leriam”. Parti-
Teresa quis também que se con-
Ávila era incompreendida por suas cularmente amava muito “a leitura
siderasse atentamente a clausura,
companheiras de convento. Qual é a de bons livros”. Nas suas Constitui-
não como um recinto – corria então
recepção e a importância de sua tra- ções deixa também uma lista de livros
um provérbio “a mulher e a galinha
jetória espiritual entre as religiosas que podem ser encontrados nos con-
até a casa vizinha!” – ou como um
contemporâneas? ventos: “A Priora busca bons livros,
lugar segregado, mas como a condi-
Cristiana Dobner – Precisamos especialmente aqueles dos monges
ção que consentia à vida quotidiana
lembrar que nem todas as pessoas, cartuchos,Flos Sanctorum, Contemp-
de uma carmelita de se expressar
as mulheres em específico, são cha- tus mundi, Oratório dos religiosos, os
melhor: no silêncio e na solidão. A
madas a se unir com Deus seguindo o livros de P. Luigi di Granada2 e de Pie-
comunhão amorosa no caminho de
mesmo caminho. No final das contas tro di Alcantara3”.
união com Deus é, de fato, solicitada.
é o Espírito que desperta o desejo e Na sua época eram lidos preva-
A comunidade de onde Teresa provi-
Ele sabe como tocar diferentemente
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nha e com a qual compartilhou a vida lentemente livros de devoção, dentre
cada pessoa que a Ele se abrir. To- os quais a Imitação de Cristo, a Vida
monástica contemplada e aderida em
davia, Teresa se torna emblemática Cristã do cartucho Ludovico di Sas-
partes, em partes não aceitou: na ple-
para as mulheres de agora sob mui- sonia, e as obras de Ugo di Balma4,
na liberdade.
tos perfis: a sua capacidade de rea-
ção de uma maneira particular reta 2 Fray Luis de Granada (1504-1588): foi
IHU On-Line – Como se deu a um teólogo espanhol e sacerdote. (Nota
e dominada somente por homens; a
expansão da ordem carmelita para da IHU On-Line)
sua tenacidade frente às dificuldades 3 Pedro de Alcântara ou Juan Garavita
outros locais a partir dessa reforma? (1499-1562): era um padre espanhol da
impostas pelas instituições, sejam
Cristiana Dobner – Na Espanha Ordem dos Frades Menores. A partir de
eclesiásticas, sejam municipais para sua reforma introduzida na família fran-
foi Teresa quem preparou o terreno
erguer monastérios pobres, sem ren- ciscana originou o ramo dos “descalços”.
Foi proclamado santo em 1669 pelo papa
1 Elias: é um personagem bíblico, um dimentos; a oração que desejava ser Clemente IX. (Nota da IHU On-Line)
profeta e um taumaturgo que viveu no praticada por mulheres quando do 4 Hugh de Balma, também conhecido
reino de Israel3 durante o reinado de como Ugo de Balma ou Hugh de Dorche:
Acab (século IX a.C.). (Nota da IHU
contrário a sociedade machista acre- foi um teólogo franciscano conhecido
On-Line) ditava que a mulher fosse somente pela obra De Theologia Mystica and De

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 29


cartucho de Meyriat, Santa Brígida5 e
“Precisamos por esse com diligência pensando na
Tema de Capa
Santa Gertrudes6. Em 1559 a famosa vida e na morte de nosso Senhor e ao
edição de livros proibidos pelo In-
quisidor Fernando de Valdés7 turvou
lembrar que nem quanto devemos: o resto virá quando
Ele desejar!
muito Teresa, “Quando foi proibida a
leitura de muitos livros em vernácu-
todas as pessoas, Aqueles que amam dessa for-
ma são de grande utilidade porque
lo lamentei muito porque alguns me as mulheres em tomam para si todas as angústias e
recriavam, e não pude ler porque os deixam que os outros se beneficiem
permitidos estavam em latim”. específico, são sem dor e sofrimento. Seus amigos
se tornam de imediato perfeitos, por-
IHU On-Line – Diz-se que muitas chamadas a ‘se que acima de tudo, acreditem, ou se
dessas obras inspiradoras para Tere- rompe a amizade – a menos que a
sa inspiraram, igualmente, Inácio de unir com Deus amizade seja muito íntima – ou então
Loyola8a formular os Exercícios Espi-
rituais. Mais tarde, Teresa teve como seguindo o mesmo que eles obtenham, como Santa Mô-
nica11 e Santo Agostinho, a graça de
confessor o padre jesuíta Francisco
de Borja9, que reassegurou a divina caminho” caminhar na mesma estrada e chegar
juntos ao Senhor. Deus está em todo
inspiração dos pensamentos da reli- lugar. Mas onde está o rei está a sua
giosa. A partir desses elementos, há corte. Por isso, onde está Deus, está o
mula a dedicação absoluta; a neces-
alguma proximidade entre a espiri-
sidade de um discernimento preciso céu. Saibam sempre que onde se en-
tualidade inaciana e a de Teresa de
e comprovado e a entrega de si a um contra a Majestade Divina está toda a
Ávila?
guia espiritual ressoa como convites sua glória.
Cristiana Dobner – São espiri-
inacianos. A Humanidade de Cristo Lembrem o que falou Santo Agos-
tualidades irmãs, muito próximas. O
permeia os escritos de ambos e trans- tinho, que depois de ter procurado
“magis” de Inácio ressoa em todas as
borda de suas vidas. Deus em muitos lugares o encontrou
obras de Teresa, o que sempre esti-
finalmente dentro de si. Então, acre-
Triplici Via. O trabalho foi atribuído a São IHU On-Line – Qual foi o impac- ditam que seja de pouca importância
Boaventura na Modernidade e no fim da to da leitura de Santo Agostinho10 em para uma alma sujeita a distrações
Idade Média. Entretanto, esta atribuição
a Boaventura foi firmemente rejeitada e sua formação e conversão? compreender essa verdade e conhe-
atribuída a Ugo pelos editores da edição Cristiana Dobner – Teresa escre- cer que para falar com o seu Pai ce-
crítica da obra de Boaventura, os francis-
canos de Quarrachi, em 1895. (Nota da ve: “Perguntemos às criaturas, como lestial e se alegrar de sua companhia
IHU On-Line) ensina Santo Agostinho – acredito nas não há necessidade de subir ao céu,
5 Brígida de Kildare ou Brígida da Irlan-
da: conhecida na Irlanda como Naomh Meditações ou nas Confissões – de nem de levantar a voz? Por mais baixo
Bhríde, foi uma religiosa católica irlande- Quem são feitos, e nos vejamos a par- que se fale, Ele, que está sempre mui-
sa, freira, abadessa, e fundadora de di-
versos conventos. É considerada uma das tir de estar lá como tolos, perdendo to próximo, nos escuta sempre. E para
santas padroeiras da Irlanda, juntamente o tempo em atender aquilo que nos procurá-lo não precisamos de asas
com São Patrício e São Columba. Seu dia
é comemorado em 1º de fevereiro, o pri-
foi dado uma vez. Pode ser que desde porque basta que fiquemos sozinhos
meiro dia da primavera, que é tradicional o princípio o Senhor não volte a nos e o contemplemos em nós mesmos.
na Irlanda. (Nota da IHU On-Line)
6 Santa Gertrudes de Helfta ou Santa
favorecer, não somente em um ano, E ainda assustado com a condescen-
Gertrudes a Grande: foi uma benediti- nem sequer em muitos. Eles desco- dência de tal Convidado, nos fale hu-
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na, mística e teóloga alemã. Nasceu em


6 de janeiro de 1256 e julga-se que terá
nhecem o porquê, e nós não deve- mildemente como Pai, possa contar
sido na aldeia de Helft, em Eisleben, na mos procurar entender, não existindo as dores que sofre, possa pedir o re-
Alta Saxônia, na Alemanha. (Nota da IHU
On-Line)
motivos. Conhecendo que devemos médio, reconhecendo-se indigna de
7 Fernando de Valdés Salas (1483-1568): servi-lo pelo caminho dos manda- ser chamada sua filha. Naquele tem-
foi um influente e poderoso político es- mentos e dos conselhos, caminhemos po me deram as Confissões de Santo
panhol durante o século XVI. Inquisidor
Geral e Presidente do Conselho Real de Agostinho, e acredito que pela provi-
Castela. (Nota da IHU On-Line) 10 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, dência divina, porque não somente
8 Inácio de Loyola (1491-1556): funda- 354-430): bispo, escritor, teólogo, filósofo,
dor da Companhia de Jesus, a Ordem dos foi uma das figuras mais importantes no de-
Jesuítas, cuja missão é o serviço da fé, a senvolvimento do cristianismo no Ociden- 11 Santa Mônica (331–387): é a mãe de
promoção da justiça, o diálogo inter-re- te. Ele foi influenciado pelo neoplatonismo Santo Agostinho de Hipona e uma santa
ligioso e cultural. (Nota da IHU On-Line) de Plotino e criou os conceitos de pecado cristã. Esta santa nasceu em 331 d.C.,
9 São Francisco de Borja: bisneto do original e guerra justa. Confira a entrevista em Tagaste, mas há controvérsias acer-
papa Alexandre VI e de Fernando II de concedida por Luiz Astorga à edição 421 da ca dessa data. Foi, segundo as tradições
Aragão, era aristocrata espanhol. Foi go- IHU On-Line, de 04-06-2013, intitulada A católicas, criada por uma escrava que
vernador da Catalunha até que, em 1546, disputatio de Santo Tomás de Aquino: uma cuidava dos filhos dos senhores e dela re-
larga tudo para ingressar na Companhia síntese dupla, disponível em http://bit.ly/ cebeu “educação e rígidos ensinamentos
de Jesus. (Nota da IHU On-Line) ihuon421. (Nota da IHU On-Line) religiosos”. (Nota da IHU On-Line)

30 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


não o havia procurado, mas também
“Os fenômenos xar transformar, perder o nosso egoís-

Tema de Capa
nem sabia da sua existência. mo e sermos abertos ao Espírito que
Sou muito devota de Santo Agos-
tinho: primeiro porque o monastério
místicos, nos ensina a olhar o bem ao próximo,
do que preferir ao nosso próprio bem.
no qual entrei para vida religiosa era
da sua Ordem, e depois porque ele
superabundantes IHU On-Line – Quais são os tra-
era um pecador. Os santos que foram na vida de ços fundamentais do misticismo de
Teresa de Ávila e em que ele segue
pecadores e que Deus chamou ao seu
serviço me consolavam muito, parecia Teresa, são seus inspirando a vida religiosa de suas
seguidoras em nossos dias?
que encontrava neles um apoio, na
confiança de que o Senhor me perdo- peculiares e não Cristiana Dobner – Teresa cativa
asse como os havia perdoado. Porém, porque não escreve um livro de teoria
repito, me desolava muito o fato de imitáveis” ou de uma vaga espiritualidade, mas
que esses, chamados por Deus uma narra a vida no Espírito. Quanto nela
ocorreu de forma misteriosa. Hoje
vez, não o haviam mais abandonado,
os maus acontecimentos, longe dos quem a segue deseja se deixar fasci-
enquanto eu havia sido chamada por
quais sentia imediatamente amar a nar pelo que foi vivido assim longe de
inúmeras vezes, e isso me afligia. Mas
Deus. Sentia de amá-Lo, me parece: tudo quanto é virtual ou comercial na
tomava novamente coragem, pensan-
mas não compreendia ainda como nossa sociedade. É um impulso gratui-
do no amor que Eles me traziam, por-
eu deveria, no que consistia amá-Lo to de um mundo comprometido com
que jamais duvidei da sua misericór-
verdadeiramente.” a medida de ganhos, de eficiência.
dia, embora de mim mesma, e muitas
Os fenômenos místicos, supera-
vezes.
IHU On-Line – A visão de Jesus bundantes na vida de Teresa, são seus
Iniciando a leitura das “Confis-
marcou profundamente toda a traje- peculiares e não imitáveis. Quanto ao
sões de Santo Agostinho”, me pare-
tória de Teresa e motivou sua dispo- invés deixou a todos nós “e o desejo
cia ver ali a minha vida, e me acon-
sição a imitar a vida e os sofrimentos de ver Deus, de procurá-Lo porque
selho muito com este glorioso santo. não temos experimentado procurar.
Quando alcancei a sua conversão e li do Crucificado. Qual é o sentido des-
Não para nos inclinarmos a um ale-
a voz que ouvi no jardim, tive a níti- sa entrega e o que esse ato diz à hu-
gramento que feche em si, mas para
da impressão de que estava ouvindo manidade de nosso tempo?
nos lançarmos em uma estrada que
puramente eu, e por um longo tem- Cristiana Dobner – O desejo se
Teresa chama “o verdadeiro caminho
po permaneci em prantos com a alma baseia na semelhança, ou seja, em se-
para o céu”, aquela da oração atra-
enormemente perturbada. Luta. Oh, a guir a vida de Jesus para podê-Lo imi-
vessando a nossa história no interior
liberdade que me fazia dona de mim tar o mais próximo possível. A huma-
da história da humanidade e transfor-
mesma! Surpreendo-me por ter so- nidade atual não deve perder de vista mando aquelas forças escondidas que
brevivido a tanta angústia! Bendito o próprio Jesus Cristo, do contrário modificamos.
seja Aquele que me mantém viva para cai em uma vã devoção que leva para Teresa se questionava constante-
me fazer sair da morte funesta! fora da estrada. Não aquele Jesus que mente: Senhor, o que quer de mim?
Parece que a minha alma recebia desenhamos na nossa imaginação ou Devemos permanecer sempre nessa
de Deus grandes forças. Certamente sensibilidade, mas aquele transmitido questão, habitar a Palavra e se dei-
ele escutava os meus gemidos e teve pelo Evangelho, aquele que quando xar conduzir. A presença de Deus na www.ihu.unisinos.br
piedade de minhas lágrimas. pessoa viva caminhou sobre a terra da vida de Teresa foi tangível da mesma
Comecei a sentir crescer em mim Palestina. Significa então reconhecer forma que é tangível a sua resposta:
o desejo de estar cada vez mais com que pedras vivem no grande mistério uma dinâmica de amizade, tecida de
Ele e de tirar dos meus olhos todos da salvação oferecido a todos, se dei- louvor e adoração.

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EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 31
“Em seu eu volta a acontecer o
Tema de Capa

Gênesis” – A interioridade em
Santa Teresa
O teólogo espanhol Secundino Castro Sánchez reflete sobre a cristologia de Teresa de
Ávila, relacionando Jesus – em sua corporeidade – como lugar definitivo de revelação
e agradecimento de Deus

Por Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução: André Langer

D
urante quase toda sua vida como pes- É a partir desta corporeidade que se ex-
quisador, o teólogo Secundino Cas- plica a cristologia da Santa, que “por instinto
tro Sánchez tem se debruçado sobre sobrenatural, centra toda a sua cristologia na
Teresa de Ávila e sua cristologia. Desta refle- humanidade de Cristo, como lugar definitivo
xão, ele destaca a interioridade como ponto de revelação e agradecimento de Deus”. A
fundamental para compreender a mística da humanidade de Jesus é tida por ela como a
santa católica, fundadora da Ordem dos Car- revelação definitiva. “Não sei se seria muito
melitas Descalços. É na percepção da Bíblia atrevimento afirmar que ela preferiria falar
no interior do ser que se produzem experiên- do ser humano criado à imagem de Cristo,
cias de criação e de paraíso. “Em seu eu volta melhor do que à imagem de Deus, como ensi-
a acontecer o Gênesis”, sintetiza. “Para ela, o na o Gênesis”, levanta.
recolhimento da mística universal converte-se Secundino Castro Sánchez é professor de
em imersão nas Escrituras, onde seu eu fica Exegese e Teologia espiritual na Universidad-
absorto e preso aos seus imensos símbolos.” PontificiaComillas, de Madri. Foi vice-diretor
Em entrevista concedida por e-mail à da Faculdade de Teologia na mesma univer-
IHU On-Line, o pesquisador aborda a relação sidade e diretor da Revista de Espiritualidad
mística e católica das experiências do divino durante muitos anos. Atualmente é diretor do
relatadas por Santa Teresa em seus escritos, departamento da Sagrada Escritura. É autor,
com grande foco nas corporeidades. “A mís- entre outros livros, de Evangelio de Juan –
tica de Teresa nos revela um Deus profun- Comprensión exegético-existencial (Biblioteca
damente afetado pelo humano, ferido pelo TeologíaComillas, 2001) e El Sorprendente-
amor das criaturas. A encarnação, de alguma Jesús De Marcos (Biblioteca TeologíaComillas,
www.ihu.unisinos.br

maneira, tocou os fundamentos de Deus”, 2008).


problematiza. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos desbordada. A nota mais relevante primeiro vai percorrer e depois Je-
compreender a mística de Santa Te- da sua mística refere-se à percepção sus o fará. Entende seu eu como o
resa sem fenômenos místicos? interior da Bíblia. Em seu eu volta a jardim do Cântico dos Cânticos onde
Secundino Castro Sánchez – Os acontecer o Gênesis. Produzem-se se celebram os encontros entre os
fenômenos na mística não são mais experiências de criação e de paraí- amantes. Possivelmente foi esta
que a expressão de algo que acon- so. Sobretudo, Teresa se sente como uma das primeiras percepções. Des-
tece no encontro do eu humano uma nova criação de Deus, uma es- de logo, é indubitável que a primeira
com o tu de Deus em intensidade pécie de Terra Santa que Javé por descoberta mística foi Jesus.

32 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


A partir dessa primeira aparição Fenômenos místicos ta literatura barroca e ainda atual a

Tema de Capa
foi se elaborando tudo. Depois Tere- Os fenômenos místicos nos dei- envolveram.
sa se compreendeu como o jardim xam entrever, por outro lado, um Deus Mas se algo aparece chamativo
do Gênesis, como dissemos, onde os cheio de sensibilidade. É verdade que e impressionante aqui são Deus e o
quatro rios se confundem com expe- também aparece o Deus “tremendo”, homem abertos à relação. Deus que
riências relacionais (oração). Para ela, que fica profundamente filtrado pela sai ao encontro de sua criatura que
o recolhimento da mística universal figura de Jesus, que Teresa percebe busca como amante ludibriado, que
converte-se em imersão nas Escritu- profundamente humano (V 37,6). Não reclama o amor dolorido. É talvez o
ras, onde seu eu fica absorto e preso esqueçamos o tema tão teresiano da mais essencial da mística de Teresa.
aos seus imensos símbolos. sagrada Humanidade. A mística de Deus mendigando amor e o homem
O coração que se transfigura no Teresa nos revela um Deus profunda- gemendo pelo mesmo galanteio. Os
Gênesis, no Cântico dos Cânticos, no mente afetado pelo humano. Ferido fenômenos místicos das Moradas vão
Cenáculo e na Terra Prometida trans- pelo amor das criaturas (V 37,8). A en- nessa mesma direção.
forma-se, por sua vez, na Terra Santa carnação, de alguma maneira, tocou Em um dos seus livros, as Medi-
que Jesus irá percorrer. E ali aconte- os fundamentos de Deus. tações sobre o Cântico dos Cânticos,
cerá a cura do cego de nascença, do A espiritualidade teresiana des- Teresa apresenta alguns graus de ora-
paralítico da piscina, aparecerá o poço vestida dos fenômenos místicos é ção, como recolhimento, quietude e
da Samaritana e a Festa das Tendas. uma experiência profunda da fé cris- união sem fenômenos místicos. Nessa
Textos citados expressamente por Te- tã, católica. Tenhamos em conta que obra encontra-se em parte a respos-
resa. Todas estas realidades são cono- os estádios supremos de sua feno- ta a esta pergunta, ao mesmo tempo
tações das vivências que estão inun- que nos convida a fazer outro tanto
menologia têm lugar em momentos
dando a alma. Trata-se da percepção com toda a sua mística.
litúrgicos. A mística de Santa Teresa
de Jesus ressuscitado como funda- inscreve-se assim no essencial do cris-
mento do ser (V 40,5), que ele, no IHU On-Line – Como se caracte-
tianismo: a Ceia. Enquanto o conceito
contato com sua pessoa, transfigura. riza a experiência transcendental em
de mística em geral possui antes uma
Nesta concepção bíblica da mís- Santa Teresa?
contextura neoplatônica, em Teresa
tica realiza-se a história da salvação, Secundino Castro Sánchez – An-
não é assim. Por isso, não se pode en-
mas de forma tão pormenorizada que tes da sua entrada na mística Teresa
globá-la na ideia geral de mística. Al-
fica difícil resumir aqui. Basta saber captou a transcendência sem esses fe-
guém disse que com ela, pela primeira
que na Autobiografia há uma “com- nômenos que a caracterizam. Pode-se
vez, a mística foi cristã.
preensão” de todo o credo cristão, afirmar que o transcendente é con-
Às vezes, a fenomenologia mís-
e nas Moradas experimentam-se as gênito na Santa de Ávila. Já em sua
tica pode encobrir esta experiência
grandes passagens de João e aspectos infância percebe uma realidade mui-
bíblica e evangélica que é o mais es-
centrais da mística de Paulo1. to diferente daquela que nos dão os
sencial dela. Talvez aqui resida a expli-
sentidos.
cação para o fato de que a comunidade
1 Paulo de Tarso (3–66 d.C.): nascido em Seu despertar à consciência coin-
Tarso, na Cilícia, hoje Turquia, era origi- católica se sinta tão bem refletida em
nariamente chamado de Saulo. Entretan- cide com a percepção de algo que ela
Teresa. Soube lê-la e compreendê-la
to, é mais conhecido como São Paulo, o compreende como o destino do ser
Apóstolo. É considerado por muitos cris- para além dessa fenomenologia de aberto a uma felicidade sem limites, e
tãos como o mais importante discípulo de êxtase na qual a iconografia e cer-
Jesus e, depois de Jesus, a figura mais que só acredita poder encontrar nes-
importante no desenvolvimento do Cris- se espaço.
www.ihu.unisinos.br
tianismo nascente. Paulo de Tarso é um formam uma seção fundamental do Novo
apóstolo diferente dos demais. Primeiro Testamento. Afirma-se que ele foi quem É verdade que isso está em co-
porque, ao contrário dos outros, Paulo verdadeiramente transformou o cristia- nexão com a fé recebida, mas nela
não conheceu Jesus pessoalmente. Antes nismo numa nova religião, superando a
de sua conversão, se dedicava à persegui- anterior condição de seita do Judaísmo. A essa fé é acolhida em dimensões de
ção dos primeiros discípulos de Jesus na IHU On-Line 175, de 10-04-2006, dedicou tensões tais que obscurece qualquer
região de Jerusalém. Em uma dessas mis- sua capa ao tema Paulo de Tarso e a con-
sões, quando se dirigia a Damasco, teve temporaneidade, disponível em http:// outro propósito. Por isso, é preciso re-
uma visão de Jesus envolto numa grande bit.ly/ihuon175, assim como a edição conhecer em seu eu, em seu ser, ape-
luz e ficou cego. A visão foi recuperada 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua
após três dias por Ananias, que o batizou relevância atual, disponível emhttp:// nas amanhecido à reflexão uma rei-
como cristão. A partir deste encontro, bit.ly/1o5Sq3R. Também são dedicadas vindicação de infinitude, que nestes
Paulo começou a pregar o Cristianismo. ao religioso a edição 32 dos Cadernos
Ele era um homem culto, frequentou IHU em formação, Paulo de Tarso desafia momentos implica a fuga do que ela
uma escola em Jerusalém, fez carreira a Igreja de hoje a um novo sentido de observa como transitório. É sua pri-
no Templo (era fariseu), onde foi sacer- realidade, disponível em http://bit.ly/
dote. Era educado em duas culturas: a ihuem32, e a edição 55 dos Cadernos Te- meira percepção da transcendência.
grega e a judaica. Paulo fez muito pela ologia Pública, São Paulo contra as mu- Junto com este primeiro lampejo,
difusão do Cristianismo entre os gentios lheres? Afirmação e declínio da mulher
e é considerado uma das principais fontes cristã no século I, disponível em http://
devemos situar a vacuidade do real,
da doutrina da Igreja. As suas Epístolas bit.ly/ihuteo55. (Nota da IHU On-Line) que se mostra para ela como pura ilu-

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 33


são. Em um primeiro momento tudo
“É indubitável que se experimenta aberto e disposto
Tema de Capa
é uma imensa mentira para ela. As à recepção; é a cidade encantada, a
coisas e as pessoas não respondem
ao que parecem anunciar. Estaríamos
que a primeira nova Jerusalém.
No livro das Moradas tudo se re-
em uma sensação prévia à concepção
agostiniana do mundo, que mais tar-
descoberta mística duz à análise desse reduto, cheio de
profundezas, mas sempre unitário,
de também Teresa atingirá: as coisas
como anúncio e reivindicação do au-
foi Jesus” que primeiro recebe o nome de caste-
lo, como imagem prévia para revestir-
tor da beleza. -se em seguida de figuras bíblicas, que
A experiência transcendental ela utiliza para enaltecer essa realida-
da mística teresiana no campo da
mostra-se também em seu horror à de que deve ser incorruptível, porque
subjetividade e da consciência?
própria liberdade. Daí sua fuga à vida se lhe reclama como sujeito último de
Secundino Castro Sánchez – Um
religiosa, onde as decisões de cada responsabilidade e origem de qual-
dos lugares onde se mostra essa sub-
momento ficam blindadas por leis quer movimento que nascia fora. Esse
jetividade muito remarcada é, sem
inexoráveis. eu está esculpido no Cristo ressuscita-
dúvida, no Livro daVida. Os teresia-
Outra característica da trans- do (V 40,5). Daí sua transcendência,
nistas colocaram de manifesto que a
cendência deste tempo refere-se à singularidade e ponto central do uni-
autobiografia espiritual não era muito
percepção de Deus como realidade verso, raiz da interioridade e do ser.
comum na tradição cristã. Nestas aná-
suprema e única, Mistério insondável, Aí a configuração do viver cristão
lises do eu desnudo diante de Deus,
mas figura agora sem contornos. fundamenta sua autoridade teresia-
Teresa de Jesus mostra-se verdadei-
na, que ela entende como derivação
IHU On-Line – Michel de Certeau2 ra mestra; seria preciso remontar a
da presença de Deus, mas que em
aborda a característica inovadora da Agostinho4, onde parece que ela se
última instância remete a esse pon-
mística teresiana no campo da afir- inspira, para encontrar algo dessa
to. Não poucas vezes o eu entrará em
mação da subjetividade, algo pio- qualidade.
conflito com o comunitário, a Igreja, e
neiro que, segundo o autor, antecipa Azorín5 reconheceu que os gran-
Teresa não descansará enquanto não
Descartes3. Como analisa a inovação des analistas do eu comparados com
encontrar uma resposta.
Teresa são crianças inexperientes (Los
2 Michel de Certeau (1925-1986): inte- clásicos redivivos, Madrid, 1958, p. 40- IHU On-Line – Teresa foi decla-
lectual jesuíta francês. Foi ordenado na 41). Ela situa nesse ponto a responsa- rada Doutora da Igreja por Paulo VI6,
Companhia de Jesus em 1956. Em 1954
tornou-se um dos fundadores da revista
bilidade pessoal, ineludível frente ao em 1970. Quais foram suas principais
Christus, na qual esteve envolvido duran- mundo e frente a Deus. O eu é esse contribuições para o magistério da
te boa parte de sua vida. Lecionou em vá- reduto, núcleo, profundidade, centro
rias universidades, entre as quais Gene- Igreja?
bra, San Diego e Paris. Escreveu diversas da alma, onde parece que a pessoa Secundino Castro Sánchez –
obras, dentre as quais La Fable mystique: se enfia. Esse eu é o lugar onde se
XVIème et XVIIèmesiècle (Paris: Galli- Comecemos com algumas palavras
mard, 1982); Histoire et psychanalyse celebra o encontro, mais que lugar, do próprio Papa na homilia da missa
entre science et fiction (Paris: Gallimard, o sujeito que se coloca frente ao tu, do Doutorado: “A doutrina de Teresa
1987); La prise de parole. Etautresécrits
politiques (Paris: Seuil, 1994). Em portu- d’Ávila brilha pelos carismas da ver-
guês, citamos A escrita da história (Rio pirou os seus contemporâneos e gerações
de Janeiro: Forense Universitária, 1982) de filósofos. Na opinião de alguns comen- dade, da fidelidade à fé católica, da
e A invenção do cotidiano (Petrópolis: Vo- tadores, ele iniciou a formação daquilo utilidade para a formação das almas.
zes, 1998). Sobre Certeau, confira as en- a que hoje se chama de racionalismo
trevistas Michel de Certeau ou a erotiza- continental (supostamente em oposição
E poderíamos ressaltar de modo par-
www.ihu.unisinos.br

ção da história, concedida por Elisabeth à escola que predominava nas ilhas bri- ticular outro carisma, o da sabedo-
Roudinesco, e As heterologias de Michel tânicas, o empirismo), posição filosófica ria, que nos faz pensar no aspecto
de Certeau, concedida por Dain Borges, dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota
ambas à edição 186 da IHU On-Line de da IHU On-Line) mais atraente e ao mesmo tempo
26-06-2006, disponível em http://bit.ly/ 4 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, mais misterioso do doutorado de
ihuon186. As mesmas entrevistas podem 354-430): bispo, escritor, teólogo, filóso-
ser conferidas na edição 14 dos Cadernos fo, foi uma das figuras mais importantes Santa Teresa, ou seja, no influxo da
IHU em formação, intitulado Jesuítas. no desenvolvimento do cristianismo no
Sua identidade e sua contribuição para Ocidente. Ele foi influenciado pelo neo-
o mundo moderno, disponível para do- platonismo de Plotino e criou os concei- 6 Papa Paulo VI: nascido Giovanni Bat-
wnload em http://bit.ly/ihuem14. (Nota tos de pecado original e guerra justa. tista Enrico Antonio Maria Montini, Paulo
da IHU On-Line) Confira a entrevista concedida por Luiz VI foi o Sumo Pontífice da Igreja Católica
3 René Descartes (1596-1650): filósofo, fí- Astorga à edição 421 da IHU On-Line, Apostólica de 21 de junho de 1963 até
sico e matemático francês. Notabilizou-se de 04-06-2013, intitulada A disputatio 1978, ano de sua morte. Sucedeu ao Papa
sobretudo pelo seu trabalho revolucio- de Santo Tomás de Aquino: uma sínte- João XXIII, que convocou o Concílio Vati-
nário da Filosofia, tendo também sido se dupla, disponível em http://bit.ly/ cano II, e decidiu continuar os trabalhos
famoso por ser o inventor do sistema de ihuon421. (Nota da IHU On-Line) do predecessor. Promoveu melhorias nas
coordenadas cartesiano, que influenciou 5 Azorín [José Augusto Trinidad Martí- relações ecumênicas com os Ortodoxos,
o desenvolvimento do cálculo moderno. nez Ruiz] (1873-1967): novelista espa- Anglicanos e Protestantes, o que resultou
Descartes, por vezes chamado o fundador nhol, ensaísta, dramaturgo e crítico lite- em diversos encontros e acordos históri-
da filosofia e matemática modernas, ins- rário. (Nota da IHU On-Line) cos. (Nota da IHU On-Line)

34 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


inspiração divina nesta prodigiosa
“Alguém disse que para nuestrarelaciónconDios, em Es-

Tema de Capa
e mística escritora”. O Papa, mais critos de Teología, III. Madrid, 1967,
que declará-la Doutora, reconhece-a
como tal. Disse: “Acabamos de confe-
com Santa Teresa, p. 56).
O cristocentrismoteresiano quer
rir, ou melhor, reconhecemos o título
de Doutora da Igreja a Santa Teresa
pela primeira vez, dizer que sua compreensão do mes-
mo Deus é cristológica, que toda sua
de Jesus”.
A principal razão se encontra-
a mística foi cristã” espiritualidade tem estrutura encar-
natória, que a oração é experiência
ria em seu magistério dos caminhos de Cristo, que desemboca na Trinda-
do Espírito, que veio exercendo no de, mas sem que nunca desapareça a
para além de Jesus” (Fundamentos de
passado e que segue sendo atual em marca cristológica. Cristologiateresia-
Cristologia, I. Madrid, 2005, p. 635). O
nossos dias. Ressalta, sobretudo, os na quer dizer também que seu pró-
texto reconhece que Teresa tem uma
misteriosos itinerários interiores até prio eu encontra-se constituído em
cristologia e que considera a humani-
alcançar as mais altas cúpulas da Cristo. Não sei se seria muito atrevi-
dade de Jesus como lugar definitivo
união com Deus. É mestra no campo mento afirmar que ela preferiria falar
de revelação.
espiritual porque possui uma altís- do ser humano criado à imagem de
Por outro lado, Teresa estaria to-
sima experiência de Deus e goza de Cristo, melhor do que à imagem de
uma capacidade especial para en- talmente de acordo com as seguintes
palavras de K. Rahner8: “Ele é (Jesus Deus, como ensina o Gênesis.
sinar aos outros os modos para ad- Só ela conseguiu que a mística
quiri-la. Teresa tem uma experiência homem), também em sua humanida-
de, a realidade criada que nos repre- se unisse perfeitamente à cristologia.
singular dos dogmas, por isso seus Graças à sua “compreensão” de Cris-
ensinamentos gozam de uma autori- senta no ato da nossa religião, de ma-
neira que sem o ato orientado à sua to, de acordo com determinado autor,
dade especial. a mística conseguiu ser inteiramente
Paulo VI alude também à ingen- humanidade e dirigido (implícita ou
explicitamente) por meio dela, o ato cristã. Ela mesma quis que seus dois
te informação apresentada à Santa
religioso fundamental orientado para principais livros, Livro da Vida e Mo-
Sé para a concessão do título de Dou-
Deus não atinge sua meta” (Eterna radas, fossem lidos cristologicamen-
tora da Igreja, dando a entender que
significación de lahumanidad de Jesús te, escrevendo para isto dois capítulos
excede as exigências requeridas.
hermenêuticos inteiramente cristoló-
Resumindo, podemos dizer que a
8 Karl Rahner (1904-2004): importante gicos, um para cada obra (V 22; 6M 7).
raiz última do seu doutorado refe- teólogo católico do século XX. Ingres-
re-se à grandíssima experiência de sou na Companhia de Jesus em 1922.
IHU On-Line – Qual é a atualida-
Doutorou-se em Filosofia e em Teolo-
Deus, de que desfrutou e que sou- gia. Foi perito do Concílio Vaticano II e de teresiana em relação à oração?
be transmitir como caminho para professor na Universidade de Münster. A
sua obra teológica compõe-se de mais Secundino Castro Sánchez – O
os outros. Por isso o título “Mãe de 4 mil títulos. Suas obras principais mais significativo de Teresa neste
dos espirituais” (MaterSpiritualium), são: Geist in Welt (O Espírito no mun-
do), 1939, HörerdesWortes (Ouvinte da ponto refere-se à intersubjetividade.
que consta na sua estátua na basílica
Palavra), 1941, SchrifftenzurTheologie Para ela, a oração não é algo abstrato;
vaticana, e que o Papa recordava em (Escritos de Teologia). Em 2004, cele-
bramos seu centenário de nascimento e é relação de amizade. A partir desta
sua homilia.
a Unisinos dedicou à sua memória o Sim- consideração, eu ressaltaria o huma-
pósio Internacional O Lugar da Teologia
nismo oracional. Orar é relacionar-se
IHU On-Line – Como podemos na Universidade do século XXI. VejaKarl
Rahner. A busca de Deus a partir da con- com um amigo. Também deveríamos
compreender o cristocentrismo da temporaneidade, edição 446 da IHU On- reclamar aqui o aspecto cristológico,
www.ihu.unisinos.br
espiritualidade em Teresa d’Ávila? Line, de 16-06-2014, nossa edição mais
Secundino Castro Sánchez – recente sobre o assunto. Há dez anos, a já assinalado. Mas não é menos signi-
edição número 102 da IHU On-Line, de ficativa a presença litúrgica, isto é, a
Permito-me começar com as palavras 24-05-2004, dedicou a matéria de capa à
do teólogo dos nossos dias, Olegario memória de seu centenário, em http:// relação que Teresa postula para o ato
bit.ly/maOB5H. Neste meio tempo, aedi- oracional encontra-a também nas ce-
González de Cardedal7: “Santa Teresa ção 297, de 15-06-2009, Karl Rahner e a
de Jesus, por instinto sobrenatural, ruptura do Vaticano II, também retomou lebrações da liturgia cristã.
o tema e está disponível para downlo- Creio que também é de muita
centra toda a sua cristologia na huma- ad em http://bit.ly/o2e8cX. Além de
nidade de Cristo, como lugar definitivo diversos artigos sobre o pensamento do atualidade a compreensão da oração
de revelação e agradecimento a Deus, teólogo ao longo do tempo, destacamos como força para a realização pessoal
também o Cadernos Teologia Pública n°
que não tem que ser transcendido 5, Conceito e Missão da Teologia em Karl e o encontro com o outro. Não esque-
para uma essência divina que estaria Rahner, do Prof. Erico Hammes, disponí- çamos que ela entende que a oração
vel em http://bit.ly/18XbPcU. Em 2014
aIHU On-Line publicou a edição 446 in- deve estar intimamente relacionada
7 Olegario González de Cardedal (1934): titulada Karl Rahner. A busca de Deus a com a vida, com as atitudes. Deve ser
sacerdote e teólogo católico espanhol. partir da contemporaneidade, disponível
Doutor em teologia pela Universidade de em http://bit.ly/112CjfG. (Nota da IHU
continuamente discernida e são as
Munique. (Nota da IHU On-Line) On-Line) obras que a realizam. Este ponto lhe

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 35


confere, além disso, grande atualida-
“Azorín controu a verdade em sua leitura.
Tema de Capa
de, pois hoje não se concebe nada Por isso, assinalaria esse aspecto do
sem que sua execução não se justifi-
que sem a correspondente avaliação.
reconheceu que os impacto ou da surpresa, que, nor-
malmente, produzem seus livros,
O estilo da oração teresiana adapta-
-se facilmente a qualquer grupo ou
grandes analistas sobretudo o Livro da Vida e o das
Moradas. Neles percebe-se como
tipo de pessoas. Sua metodologia é do eu comparados um halo que subjuga, certa inspira-
sumamente simples, ao mesmo tem- ção religiosa, como nos recordava
po está solidamente fundamentada. com Teresa Paulo VI.
Por sua estrutura bíblico-cristológica
pode chegar a qualquer âmbito do são crianças IHU On-Line – Seria possível con-
cristão.
inexperientes” figurar em poucas palavras a silhueta
de Teresa no conjunto da história da
IHU On-Line – Por outro lado,
espiritualidade?
como Teresa d’Ávila destaca a digni-
Secundino Castro Sánchez – Pa-
dade e o lugar da mulher na Igreja? talidade que não reconhece nada de
rece como se Teresa tivesse sido gera-
Secundino Castro Sánchez – Ela bom que provenha da mulher. Pode-se
da desde o princípio do cristianismo;
viveu em um tempo em que o lugar observar também um juízo muito se-
vero contra a situação da mulher ca- começasse a vislumbrar-se na Idade
da mulher na Igreja não tinha ne-
nhum destaque. Basta ler a literatura sada com respeito ao marido. Na vida Média, fosse fruto inconfundível do
do momento para aperceber-se dis- religiosa feminina ela via a possibilida- século XVI espanhol e anunciasse uma
so. A grande maioria era analfabeta. de de libertar-se dessa escravidão. religiosidade futura, baseada em uma
Teresa, desde muito jovem, foi uma experiência singular de Cristo, onde a
voraz leitora e, até de acordo com al- IHU On-Line – Quais são as con- mística fica inteiramente configurada
gum testemunho, já escritora. Isto lhe tribuições fundamentais de Teresa por Ele, obtendo assim que esta fosse
permitiu, quando chegou o momen- para o contexto espiritual da pós- inteiramente cristã.
to, ler não poucos livros de tema reli- -modernidade, em que convivem um Sofreu influxos de todas as cor-
gioso. Assim começou a construir-se retorno ao sagrado e um fundamen- rentes do século XVI espanhol: de
sua personalidade neste campo, que talismo ateu? franciscanos, jesuítas, dominicanos,
foi crescendo no trato com teólogos Secundino Castro Sánchez – São João d’Ávila e São João da Cruz. Di-
de renome e acompanhantes espiri- Como é sabido, o conceito de mo- reta ou indiretamente encontram-se
tuais, com os quais confrontava sua dernidade refere-se a uma realidade nela marcas dos principais movi-
graças místicas. Às vezes, sentiu-se muito ampla na qual se enquadra a mentos de espiritualidade da época:
obrigada a tomar posturas arriscadas ideia do sagrado. Já a palavra “sa- savonarolismo,10erasmismo,11 protes-
e a emitir juízos muito severos con- grado”, no neutro, é algo que seria, tantismo, espiritualidade do recolhi-
tra os próprios tribunais da Inquisi- para Teresa, muito difícil de assumir mento e Inquisição.
ção, que chegou a confiscar o Livro e inclusive de entender. Para ela, o
da Vida. Como a decisão do alto tri- religioso, chamemo-lo assim, é, em Faleceu aos 51 anos, asfixiada numa câ-
primeiro lugar, algo pessoal, um Tu mara de gás no campo de concentração
bunal demorava, temeu o pior. Mas de Auschwitz, na Polônia. Foi profes-
sua surpresa foi maiúscula quando (com maiúscula). Por isso, penso sora de Filosofia, discípula de Edmund
chegou aos seus ouvidos que o in- que sua contribuição nesta amálga- Husserl. Para conhecer mais sobre seu
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pensamento, consulte a edição 168 da


quisidor maior não o entregava por- ma ou magma de coisas consistiria revista IHU On-Line, de 12-12-2005, sob o
que o lia para o seu próprio proveito em dar um rosto à transcendência. título Hannah Arendt, Simone Weil e Edi-
th Stein. Três mulheres que marcaram o
espiritual. Por outro lado, o amplo espectro da século XX. (Nota da IHU On-Line)
Desde esta autoridade, Teresa experiência teresiana e suas múlti- 10 Girolamo Savonarola (1452-1498):
também conhecido como Jerônimo Sa-
deixa a entender as possibilidades da plas modalidades poderiam contri- vonarola ou Hieronymous Savonarola,
mulher, para as quais, além disso, rei- buir para enriquecer esse âmbito do foi um padre dominicano e, por curto
período, governou Florença. Reformador
vindica sua independência, enquanto religioso e inclusive garanti-lo um dominicano, era um intelectual muito
se queixa de que os censores de seus pouco mais. talentoso e devotado a seus estudos, em
especial à filosofia e à medicina. O sa-
livros são todos homens. Seus escri- Para o ateísmo, pode servir de vonarolismo se refere ao período de sua
tos, sua trajetória e sua Reforma são impacto. Basta recordar o caso de governança. (Nota da IHU On-Line)
Edith Stein9, filósofa ateia, que en- 11 Erasmo de Rotterdam (1466-1536):
uma alegação a favor das possibilida- teólgo e humanista neerlandês, conheci-
des da mulher na Igreja. No Caminho do como Erasmo de Roterdã. Seu princi-
9 Edith Stein (1891-1942): religiosa ale- pal livro foi Elogio da loucura.Erasmismo
da Perfeição pode-se observar uma mã, a última de onze irmãos de uma fa- se refere ao período de sua governança.
crítica muito sibilina contra essa men- mília judia que professava o Judaísmo. (Nota da IHU On-Line)

36 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


O deslocamento celestial do

Tema de Capa
Deus de Teresa de Ávila
Frei Betto aborda a contribuição dos estudos de Teresa de Ávila para a compreensão
de um Deus que não é baseado na meritocracia e na prática das virtudes morais

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

A
mística, assim como a arte, tem o po- a Terra, do crer para o viver, caminho retrata-
der de ser transcendente. Assim surge do na experiência bíblica de Jó. Para Teresa,
uma conexão possível entre a Mona- Deus é o seu caso de amor”, destaca. “Teresa
lisa, de Da Vinci, e os estudos de Teresa de tem muito a nos dizer nessa sociedade conec-
Ávila. “Muitos perguntam o que a Mona Lisa/ tada por redes sociais, de excessiva exposição
Gioconda de Leonardo da Vinci tem de tão es- e objetivação do ser humano, na qual parece
pecial. Ora, é a primeira vez que um pintor de não terem lugar a subjetividade, o silêncio, o
talento dá um “close” em um rosto anônimo. cultivo da vida interior, a autoestima fortale-
(...) Da Vinci reflete a emergência da moder- cida pela solidão”, complementa.
nidade, o advento do “eu”. Isso Teresa fez na Frei Betto nasceu em Belo Horizonte, Mi-
espiritualidade: deslocou Deus das esferas ce- nas Gerais. Estudou Jornalismo, Antropologia,
lestiais, como objeto de adoração, para cen- Filosofia e Teologia. É frade dominicano, foi
trá-lo no coração humano, como experiência preso durante a ditadura militar e escreveu
amorosa”, explica Frei Betto, em entrevista o livro Batismo de Sangue (Rio de Janeiro:
por e-mail à IHU On-Line. Rocco, 1982), que depois foi adaptado para
Cheio de metáforas entre ciência e fé, o o cinema com o mesmo título. Esta obra lhe
entrevistado diz que a grande novidade que rendeu, em 1982, o Jabuti, principal prêmio
Teresa de Ávila realizou, à sua época, foi ter literário brasileiro. É autor de dezenas de li-
percorrido o caminho inverso ao de Copérni- vros, entre eles Aldeia do Silêncio (Rocco: Rio
co, o qual havia deslocado o eixo da Terra para de Janeiro, 2013).
o Sol. “Ela (Teresa) deslocou Deus do Céu para Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido a “Cântico espiritual”. No entanto, não ciência. Diria, na linha de Jung2, que
experiência mística de Teresa de Ávi- há propriamente uma perda da cons- no místico o inconsciente transborda
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la ultrapassa os limites da consciên- na consciência. Há uma adequação
cia e dos sentidos? entre o nosso eu e o Eu interior, e a
Matias, em Medina del Campo. Em setem-
Frei Betto – A experiência místi- bro de 1567 encontra-se com Santa Teresa sensação amorosa “suspende” senti-
ca se compara à paixão humana – há de Jesus, que lhe fala sobre o projeto de dos e razão.
estender a Reforma da Ordem Carmelita
uma “suspensão” da razão e dos sen- também aos padres. Aceitou o desafio e
tidos, como Teresa descreve em seus trocou o nome para João da Cruz. No dia IHU On-Line – Como Teresa res-
textos, sobretudo no Livro da Vida 28 de novembro de 1568, juntamente com ponde ao desafio de converter em
Frei Antônio de JesúsHeredia, inicia a Re-
(São Paulo: PenguinClassics – Compa- forma. No dia 25 de janeiro de 1675 foi palavras a sua experiência mística?
nhia das Letras, 2010), sua autobio- beatificado por Clemente X. Foi canoniza- Frei Betto – Teresa, ao con-
do em 27 de dezembro de 1726 e declara- trário da maioria das mulheres de
grafia, e João da Cruz1 relata em seu do Doutor da Igreja em 1926 por Pio XI. Em
1952 foi proclamado “Patrono dos Poetas
Espanhóis”. Sua festa é comemorada no 2 Carl Gustav Jung (1875-1961): psiquiatra
1 João de Yepes ou São João da Cruz dia 14 de dezembro. Sobre São João da suíço. Colega de Freud, estudou medicina
(1542-1591): ingressou na Ordem dos Car- Cruz, confira As obras completas de São e elaborou estudos no campo da psicolo-
melitas aos 21 anos de idade, em 1563, João da Cruz (Petrópolis: Vozes, 2002). gia, discutindo os conceitos de introversão
quando recebe o nome de Frei João de São (Nota da IHU On-Line) e extroversão. (Nota da IHU On-Line)

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seu tempo, foi alfabetizada ainda trá-lo no coração humano, como ex- IHU On-Line – A partir da ex-
Tema de Capa
menina e era de família afeiçoa- periência amorosa. periência mística dessa santa, como
da aos livros. O gosto pela leitura podemos compreender seu passeio
suscitou nela o talento de escrito- IHU On-Line – Quais são os ele- pelos castelos da alma?
ra. Ao romper com o Carmelo 3 tra- mentos fundamentais da simbologia Frei Betto – O esquema é mui-
dicional e iniciar suas Fundações, de Teresa de Ávila? to simples e encontrado em todas as
passou a escrever, de modo a ins- Frei Betto – Ela adotou símbolos escolas místicas, de diferentes con-
truir suas monjas no “caminho da próprios do período medieval: caste- cepções religiosas ou filosóficas: pri-
perfeição”. lo, moradas, céu, véu, amor perfeito, meiro, purificar os sentidos (ascese);
alma, etc.
segundo, esvaziar a mente (medita-
IHU On-Line – Teresa de Ávila,
ção); terceiro, dilatar o espírito (ilumi-
ao falar de Deus, fala de “experiên- IHU On-Line – Em que aspectos
nação ou êxtase). Cada uma dessas fa-
cia”, “gozo da alma”, que é diferente essa simbologia funde as tradições
ses envolve muitas etapas. O processo
de “só pensar e crer nele”. Como ela islâmica, sufi e católica?
Frei Betto – Ao ler Teresa e a é lento, progressivo e retroativo, e
interpretava a experiência mística de
Deus? mística islâmica, em especial a sufi5, ainda que se alcance a união mística
Frei Betto – Muitos perguntam fica-se com a impressão de diálogo há que, em seguida, entrar “no de-
o que a Mona Lisa/Gioconda de Le- entre os dois textos. Porém, não te- serto”, como quem inicia novamente
onardo Da Vinci4 tem de tão espe- nho condições de afirmar que Teresa todo o caminho.
cial. Ora, é a primeira vez que um sofreu influência islâmica ou mesmo
pintor de talento dá um “close” em budista. Como bom mineiro, descon- IHU On-Line – Reconhecendo
um rosto anônimo. Até então os pin- fio que sim. Mas, inteligente como uma possível filiação de Teresa à tra-
tores retratavam autoridades (reis e era, e ameaçada pela Inquisição6, ela dição mística islâmica, como se dá a
príncipes, papas e cardeais) e quase se resguardou. Como não acompanho releitura desses elementos por parte
sempre com a ambientação de fun- as recentes pesquisas sobre as fontes da sua mística? Qual é a “novidade”
do (domicílio ou natureza) ocupando da literatura de Teresa, mais não pos- de Teresa?
espaço bem maior que a figura hu- so afirmar. Frei Betto – A novidade é ela ter
mana. Da Vinci reflete a emergência feito o caminho inverso ao de Copér-
da modernidade, o advento do “eu”. nico7: enquanto este deslocou o eixo
Isso Teresa fez na espiritualidade: da Terra para o Sol, do geocentrismo
deslocou Deus das esferas celestiais, para o heliocentrismo, ela deslocou
5 Sufi Shadhili: ordem sufi fundada por
como objeto de adoração, para cen- Abu-l-Hassan ash-Shadhili no Norte da Deus do Céu para a Terra, do crer para
África. Leia também Sufismo: uma mís-
tica que busca o equilíbrio, disponível
o viver, caminho retratado na experi-
em http://bit.ly/1yXVJjV. (Nota da IHU ência bíblica de Jó. Para Teresa, Deus
3 Ordem do Carmo (ou Ordem dos Car- On-Line) é o seu caso de amor.
melitas): originalmente chamada Ordem 6 Inquisição:é um grupo de instituições
dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem dentro do sistema jurídico da Igreja Ca-
Maria do Monte Carmelo, é uma ordem tólica Romana, cujo objetivo é comba- IHU On-Line – Qual foi a “re-
religiosa católica que surgiu no final do ter a heresia. Começou no século XII na
século XI, na região do Monte Carmelo França para combater a propagação do cepção” da mística de Teresa em seu
(uma cadeia de colinas, próxima à atual sectarismo religioso, em particular, em tempo? E hoje, como é recebido o
cidade de Haifa, antiga Porfíria, no atual relação aos cátaros e valdenses. A partir
Estado de Israel). A palavra “Carmelo” da década de 1250, os inquisidores eram
seu legado?
significa jardim. Conta a tradição que o geralmente escolhidos entre os membros Frei Betto – Teresa foi tida como
profeta Elias se estabeleceu numa gruta, da Ordem Dominicana para substituir a “bruxa”, perseguida pelo núncio apos-
em pleno Monte Carmelo, seguindo uma prática anterior de utilizar o clero local
www.ihu.unisinos.br

vida eremítica de oração e silêncio. Nele, como juízes.O termo Inquisição Medieval
e no seu modo de vida, se inspiraram os cobre os tribunais ao longo do século XIV. 7 Nicolau Copérnico (1473-1543): astrô-
primeiros religiosos da Ordem. (Nota da No final da Idade Média e início do Renas- nomo e matemático polonês, governador
IHU On-Line) cimento, o conceito e o alcance da In- e administrador, jurista, astrólogo e mé-
4 Leonardo da Vinci (1452–1519): polí- quisição foi significativamente ampliado dico. Desenvolveu a teoria heliocêntrica
mata italiano, uma das figuras mais im- em resposta à Reforma Protestante e à para o sistema solar, que colocou o Sol
portantes do Renascimento naquele país, Contrarreforma Católica. O seu âmbito como o centro do sistema solar, contra-
que se destacou como cientista, mate- geográfico foi expandido para outros pa- riando a então vigente teoria geocêntrica
mático, engenheiro, inventor, anatomis- íses europeus, resultando na Inquisição – o geocentrismo (que considerava a Ter-
ta, pintor, escultor, arquiteto, botânico, Espanhola e Portuguesa. A instituição da ra como o centro). Essa teoria é conside-
poeta e músico. É ainda conhecido como Inquisição persistiu até o início do sécu- rada uma das mais importantes descober-
o precursor da aviação e da balística. lo XIX (exceto dentro dos Estados Ponti- tas de todos os tempos, sendo o ponto de
Leonardo frequentemente foi descrito fícios), após as guerras napoleônicas na partida da astronomia moderna. A teoria
como o arquétipo do homem do Renasci- Europa e depois das guerras hispano- copernicana influenciou vários outros as-
mento, alguém cuja curiosidade insaciá- americanas de independência na Améri- pectos da ciência e do desenvolvimento
vel era igualada apenas pela sua capaci- ca. A instituição sobreviveu como parte da humanidade, permitindo a emancipa-
dade de invenção. É considerado um dos da Cúria Romana, mas recebeu um novo ção da cosmologia em relação à teologia.
maiores pintores de todos os tempos, e nome em 1904, de “Suprema Sagrada O IHU promoveu de 03-08 a 16-11-2005 o
como possivelmente a pessoa dotada de Congregação do Santo Ofício”. Em 1965, ciclo de estudos Desafios da Física para o
talentos mais diversos a ter vivido. (Nota tornou-se a Congregação para a Doutrina Século XXI: uma aventura de Copérnico a
da IHU On-Line) da Fé. (Nota da IHU On-Line) Einstein. (Nota da IHU On-Line)

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tólico na Espanha, que a qualificou de Deus de Teresa não se relaciona co- tino11, o autor anônimo de “A nuvem

Tema de Capa
monja desobediente, vista com descon- nosco baseado na meritocracia, na do não saber” (há outra tradução no
fiança pela Inquisição. Graças a seus culpa, na prática das virtudes morais. Brasil intitulada “A nuvem do des-
confessores e teólogos, escapou de É o Deus amoroso de Jesus (a quem conhecido”) e outros tantos autores
condenações. Hoje, o legado de Teresa ele chamava de Abba que, em ara-
que vivenciaram a mística. E meditar
extrapola as fronteiras da Igreja Cató- maico, significa Meu pai muito que-
lica. Talvez seja a santa mais estudada todos os dias, ao menos meia hora,
rido) que nos convida a manter com
por psicanalistas e filósofos. Sobre ela ele uma relação de amor apaixonado, propondo-se a livrar-se da dependên-
há uma infinidade de obras de arte: fil- como Oseias com sua mulher Gomer. cia dos sentidos e da razão, deixando
mes, peças de teatro, romances, etc. Ela É dessa intensidade amorosa que bro- aflorar o espírito amoroso.
chega a ser um fenômeno midiático. ta a fidelidade à palavra divina.

IHU On-Line – Em que sentido IHU On-Line – Em nosso contex-


Leia mais...
a trajetória de Santa Teresa de Ávila to epocal, qual é o papel e o valor da • “Reabilite Giordano Bruno”: o pedido
inspira as mulheres da contempora- mística? de Frei Betto ao papa. Entrevista com
neidade no cultivo de sua espirituali- Frei Betto – Respondo com uma Frei Betto publicada no sítio do IHU,
dade e, também, de rever seu papel afirmação de impacto: todo droga- nas Notícias do Dia, de 14-04-2014,
dentro da Igreja? do, todo dependente químico, é um em http://bit.ly/132j474;
Frei Betto – Não disponho de da- místico em potencial. É alguém que
• A Igreja em Cuba. Entrevista com
dos para avaliar corretamente esse al- descobriu uma verdade: a felicidade
Frei Betto publicada no sítio do IHU,
cance. Mas sei que as obras de Teresa está dentro de nós, jamais fora. Se
continuam a atrair vocações contem- nas Notícias do Dia, de 29-02-2008,
você tem um filho viciado em drogas
plativas. Há pouco, uma atriz de teatro e dá a ele R$ 1 milhão para iniciar um em http://bit.ly/1zJ4uLF;
da Polônia ingressou no Carmelo de São empreendimento, certamente ele vai • Necrocombustíveis. Artigo de Frei
José, em Ávila. Aqui no Brasil, o Carmelo torrar o dinheiro na compra de dro- Betto publicado no sítio do IHU, nas
de Bananeiras, na Paraíba, está cheio de gas. A diferença é que seu filho entra Notícias doDia, de 27-07-2007, dis-
jovens, a maioria nordestinas. pela porta do absurdo para atingir ponível em http://bit.ly/1G9ydBh;
É óbvio que Teresa exerce forte in- uma mudança do estado de consci- • Batismo de Sangue. Entrevista com
fluência na teologia feminista e na rei- ência, enquanto o místico entra pela
Frei Betto publicada no sítio do IHU,
vindicação de permitir à mulher aceder, porta do Absoluto. Sem medo de me
como o homem, a todos os graus de nas Notícias do Dia, de 13-04-2007,
equivocar, acredito, com Jung, que
hierarquia na Igreja. Ela foi proclamada ninguém é mais feliz que os místicos. disponível em http://bit.ly/1ufABxY.
“doutora da Igreja” pelo papa Paulo VI8
e isso abriu horizontes e esperanças. IHU On-Line – Gostaria de
acrescentar algum aspecto não da sua morte: os Irmãozinhos de Jesus.
Foi assassinado por assaltantes, em 1916.
IHU On-Line – Qual é a atualida- questionado? Foi beatificado pelo Papa Bento XVI em
de de Teresa na sociedade de hoje? Frei Betto – Se alguém deseja novembro de 2005. Sobre Foucauld,
Em que pontos a mística teresiana confira Contribuições da espiritualidade
abraçar a via da experiência mística, de Charles de Foucauld em contexto de
nos questiona atualmente? deve ler Teresa, João da Cruz, Thomas pluralismo cultural e religioso, entre-
Frei Betto – Teresa tem muito a nos Merton9, Charles de Foucauld10, Plo- vista com Edson Damian publicada na
Edição 269 da revistaIHU On-Line, de
dizer nessa sociedade conectada por 18-08-2008, disponível em http://bit.ly/
redes sociais, de excessiva exposição e 9 Thomas Merton (1915-1968): monge IPfX7U; Na plena luz de Charles de Fou-
objetivação do ser humano, na qual pa- católico cisterciense trapista, pioneiro cauld, artigo de Bruno Forte publicado www.ihu.unisinos.br
no ecumenismo no diálogo com o budis- nas Notícias do Dia, de 08-06-2011, no sí-
rece não terem lugar a subjetividade, o mo e tradições do Oriente. O livro Mer- tio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
silêncio, o cultivo da vida interior, a au- ton na intimidade – Sua Vida em Seus disponível em http://bit.ly/1hdG5oT.
Diários (Rio de Janeiro: Fisus, 2001) é (Nota da IHU On-Line)
toestima fortalecida pela solidão. uma seleção extraída dos vários volumes 11 Plotino (205-270): filósofo egípcio,
Teresa nos questiona na concep- do diário de Thomas Merton, autor de li- discípulo de Amônio Sacas e mestre de
ção que temos de Deus e do amor. O vros famosos como A Montanha dos Sete Porfírio, que nos legou seus ensinamen-
Patamares (São Paulo: Itatiaia, 1998) e tos em seis livros de nove capítulos cada,
Novas sementes de contemplação (Rio de chamados de As Enéadas. Acompanhou
8 Papa Paulo VI: nascido Giovanni Bat- Janeiro: Fisus, 1999). O livro foi editado uma expedição à Pérsia, onde tomou
tista Enrico Antonio Maria Montini, Paulo por Patrick Hart, também monge e cola- contato com a filosofia persa e indiana.
VI foi o Sumo Pontífice da Igreja Católica borador de Merton. Na matéria de capa Regressou à Alexandria e, aos 40 anos,
Apostólica de 21 de junho de 1963 até da edição 133 da IHU On-Line, de 21-03- estabeleceu-se em Roma. Desenvolveu
1978, ano de sua morte. Sucedeu ao Papa 2005, publicamos um artigo de Ernesto as doutrinas aprendidas de Amônio numa
João XXIII, que convocou o Concílio Vati- Cardenal, discípulo de Merton, que fala escola de filosofia com seleto grupo de
cano II, e decidiu continuar os trabalhos sobre sua relação com o monge. (Nota da alunos. Pretendia fundar uma cidade
do predecessor. Promoveu melhorias nas IHU On-Line) chamada Platonópolis, baseada nos ensi-
relações ecumênicas com os Ortodoxos, 10 Charles Eugéne de Foucauld (1858- namentos da República de Platão. Plotino
Anglicanos e Protestantes, o que resultou 1916): ordenado sacerdote em 1901, ti- dividia o universo em três hipóstases: o
em diversos encontros e acordos históri- nha a intenção de criar uma nova ordem Uno, o Nous (ou mente) e a alma. (Nota
cos. (Nota da IHU On-Line) religiosa, o que sucedeu apenas depois da IHU On-Line)

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A liberdade da experiência no
Tema de Capa

encontro com Deus


Lúcia Pedrosa-Pádua, teóloga, professora e pesquisadora, explica como Teresa de
Ávila desenvolveu uma espiritualidade baseada na exploração do espaço interior

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

P
ara os místicos, o reencontro com Deus mais profundos. É um manancial tão grande que
não está no destino final, mas no caminho é possível reler seus livros – doutrinais e históri-
a percorrer, na experiência. Ao abrir o Ano cos – uma e outra vez, sempre descobrindo coi-
Jubilar Teresiano, o Papa Francisco, em carta en- sas novas e fazendo novas leituras com as novas
viada ao Bispo de Ávila, convidou os cristãos a gerações”, argumenta Lúcia. “Teresa aprendeu a
“aprender a ser peregrino na escola da santa an- ter esperança sem amordaçar as pessoas em jul-
darilha”, lembrando Santa Teresa de Ávila. “(Na gamentos e exigências”, frisa.
época de Teresa de Ávila) Aflorou e se desenvol- Lúcia Pedrosa-Pádua é professora de Teolo-
veu uma poderosa espiritualidade que buscou gia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
explorar o espaço interior como porta de entrada Janeiro – PUC-Rio. Graduou-se em Teologia pela
da experiência de Deus. Não que a interioridade FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia,
fosse isolada de outros aspectos, como o litúrgi- em Belo Horizonte, e doutorou-se pela PUC-Rio.
co, o ético, o estético e o interpessoal, ao contrá- É bacharel em Ciências Econômicas pela Univer-
rio, a verdadeira mística integra todos estes espa- sidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Estudou
ços, o místico encontra Deus em tudo”, sustenta no Centro Internacional de Estudos Teresianos e
Lúcia Pedrosa-Pádua, em entrevista por e-mail à São Joanistas de Ávila (Espanha) e fez estudos de
IHU On-Line. pós-doutorado na Pontifícia Universidade Gre-
“Resumindo, vai-se formando um movimento goriana – PUG, em Roma, Itália. É organizadora,
que busca uma espiritualidade subjetiva e vital, com Mônica Baptista Campos, do livro Santa Te-
que sustenta e é sustentado por iniciativas con- resa: mística para o nosso tempo (PUC-Rio/Refle-
cretas das ordens religiosas, por livros que des- xão, 2011). Dentre suas outras obras, destacamos
crevem experiências pessoais e propõem sérios O humano e o fenômeno religioso (Ed. PUC-Rio,
caminhos de oração, por uma teologia que utiliza 2010), Juventude, Religião e Ética: reflexões teo-
novos conceitos”, explica a entrevistada. “A expe- lógico-práticas sobre a pesquisa “Perfil da Juven-
riência teresiana sempre será instigante porque é tude na PUC-Rio” – org. (Ed. PUC-Rio, 2010). É
uma grande janela através da qual vislumbramos professora responsável pelo Grupo Moradas de
as possibilidades humanas em sua comunicação Estudos Místicos (PUC-Rio) e membro do Círculo
com Deus”, complementa. do Rio e da Comissão Assessora Permanente do
Desobediente e instigante, Teresa de Ávi- Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB.
la desconheceu o lugar que se esperava que as Dedica-se também ao trabalho pastoral e à for-
www.ihu.unisinos.br

mulheres ocupassem à sua época. “Na grande mação teológica de leigos e leigas através do Cen-
janela das obras de Santa Teresa, vemos varieda- tro de Espiritualidade TeresianaAtaendi, da Insti-
de de experiências de oração, rica fenomenolo- tuiçãoTeresiana (www.ataendi.com.br).
gia, defesas teológicas, efeitos éticos da oração Confira a entrevista.
que atingem ora níveis mais externos, ora níveis

IHU On-Line – Como podemos tória por cinco séculos. Isto já é muita seu nascimento. Sua herança é forte
recuperar o pensamento de Santa Te- coisa. Numa sociedade em que as re- e consistente, suas obras nunca deixa-
resa, atualmente, no V centenário de lações tendem a ser mais superficiais ram de ser traduzidas nestes séculos
nascimento de Santa Teresa? e pragmáticas, constatamos que Te- em dezenas de idiomas e sua leitura
Lúcia Pedrosa-Pádua – Diria que resa é uma “celebridade” com longa segue sendo inspiradora e sedutora.
Teresa de Ávila foi uma mulher capaz sobrevivência. Em outubro de 2015, De fato, o tempo foi amigo de Teresa.
de permanecer viva e influente na his- comemoram-se quinhentos anos de Ao longo deste tempo, a admiração

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por esta mulher se universalizou e vimentos espirituais conflitantes. Para com Deus e do perdão, a valorização

Tema de Capa
adquiriu importância inter-religiosa, Teresa, com seu excepcional sentido do amor e do dom da sabedoria. Deri-
podemos dizer, se inter-religionalizou. de realidade esperançada, eram tem- vados desta busca de interioridade, en-
Do ponto de vista eclesial, Papa pos “recios”, difíceis. O mundo que ela contramos o cultivo da oração e o forte
Francisco abriu o Ano Jubilar Teresia- percebia “ardia em fogo”, como defi- impulso às altas esferas da vida mística.
no. Em sua Carta ao Bispo de Ávila1, ne no seu Caminho de Perfeição. Por Essa tensão em direção à interioridade
Francisco valorizou Teresa em seu isso eram necessários “amigos fortes é característica também de Lutero e de
dinamismo. Convidou cada cristão a de Deus para sustentar os fracos”. Evi- Erasmo de Roterdã. Busca-se a vivência
“aprender a ser peregrino na escola dentemente, Teresa se considerava no pessoal de Deus. Apesar das diferenças,
da santa andarilha” e, com Santa Te- grupo dos fortes. é possível encontrar este encontro en-
resa, percorrer os caminhos do nos- tre eles e Teresa.
so tempo. Hoje, pode ser símbolo IHU On-Line – Como compreen- E o ambiente de reformas? Ele
de uma Igreja convocada a ser Igreja der o florescimento da mística nesse foi vigoroso na primeira metade do
“em saída”, missionária, destemida, tempo em que viveu Teresa e tam- século. Envolvia iniciativas importan-
humilde e que se põe a serviço das bém Inácio de Loyola4, Lutero e Eras- tes da Igreja oficial, das ordens religio-
necessidades dos irmãos, superando mo de Roterdã5? sas, de intelectuais nas Universidades
a autorreferência. Lúcia Pedrosa-Pádua – De fato, e da imprensa, que teve neste tempo
houve, desde fins do século XV até a enorme desenvolvimento, e mesmo
IHU On-Line – Quem foi a figura primeira metade do século XVI, duas dos reis, pois a reforma da Igreja fa-
histórica de Teresa de Ávila? Poderia dinâmicas importantes que se reforça- zia parte de uma política de fortaleci-
relacionar sua trajetória com o “sé- ram. Por um lado, uma busca de Deus. mento e unificação espanhola. Havia
culo de ouro espanhol”, no qual ela Por outro, um ambiente de reforma assim um movimento reformista sus-
viveu? espiritual. Ambas caracterizaram não tentado por vários pilares.
Lúcia Pedrosa-Pádua – Teresa apenas a Espanha, mas outros países As ordens religiosas observan-
não é a-histórica. Nem sua vida inte- europeus. tes, em especial a franciscana, a be-
rior pode ser desvinculada da história. Aflorou e se desenvolveu uma neditina e a dominicana, são o lugar
Ela é filha de seu tempo. Um tempo poderosa espiritualidade que buscou concreto a partir do qual esta reforma
que oferecia sonhos, embora os cami- explorar o espaço interior como porta se realiza. Nestas ordens, acentua-se
nhos não fossem nada democráticos. de entrada da experiência de Deus. Não a comunicação religiosa com Deus,
É tempo de uma Espanha poderosa, que a interioridade fosse isolada de ou- principalmente interior, o valor da po-
em termos econômicos e políticos, tros aspectos, como o litúrgico, o ético, breza e da austeridade é fortalecido,
que é unificada e se insere na Euro- o estético e o interpessoal, ao contrário, criticam-se os desvios. Neste ambien-
pa, vence guerras, expande-se através a verdadeira mística integra todos estes te surge o grande movimento reno-
da conquista da América – as Índias. espaços, o místico encontra Deus em vador que significou a Companhia de
Surgem manifestações culturais extra- tudo. Mas, naquele momento, havia Jesus, com Inácio de Loyola (+1556).
ordinárias, especialmente de caráter um cansaço da espiritualidade baseada Mas o decisivo é que a refor-
filosófico e literário. Mas, na mesma em atos exteriores, orações vocais este- ma é destinada a todos, não apenas
proporção, foi um século também de reotipadas, devoções... Houve uma ver- às ordens religiosas. Atinge nobres
sombras para os que não eram “fidal- dadeira migração em direção ao centro e o povo simples. Eremitérios, casas
gos”, para as mulheres, para os po- do humano para encontrar-se com sin- de oração e de retiro são erguidos.
bres, para os habitantes das “Índias”, ceridade com Deus e sua Palavra. Uma Surgem métodos oracionais para
para a Igreja, com seus procedimen- espiritualidade em espírito e verdade, todos os cristãos que o desejem.
tos inquisitoriais e, mais tarde, com a que oferecesse o consolo da união Caminhos de oração são claramen-
disciplinarização decorrente do Con- te formulados, as obras de Santo
cílio de Trento2. Tempo incerto, com go alemão, considerado o pai espiritual
Inácio de Loyola são seguidas pelas
fissuras na cristandade provocada da Reforma Protestante. Foi o autor da obras do grupo franciscano de Fran- www.ihu.unisinos.br
pela reforma de Lutero3 e muitos mo- primeira tradução da Bíblia para o ale- cisco de Osuna6, Bernabé de Palma7
mão. Além da qualidade da tradução, foi
amplamente divulgada em decorrência
1 Ávila: é um município da Espanha na da sua difusão por meio da imprensa, 6 Francisco de Osuna (1492 ou 1497-1540):
província de Ávila, comunidade autóno- desenvolvida por Gutemberg em 1453. foi um frade espanhol e autor de algumas
ma de Castela e Leão. Dom Jesus García Sobre Lutero, confira a edição 280 da IHU das obras mais influentes sobre a espiritua-
Burillo é o atual Bispo de Ávila. A carta On-Line, de 03-11-2008, intitulada Re- lidade naquela nação no século XVI. O seu
enviada pelo Papa Francisco pode ser lin- formador da Teologia, da igreja e criador livro O Alfabeto Espiritual Terceiro exerceu
da no link http://bit.ly/1vHl9uS. (Nota da língua alemã. O material está dispo- grande influência sobre Santa Teresa de Je-
da IHU On-Line) nível para download em http://bit.ly/ sus. É considerada uma obra-prima do mis-
2 Concílio de Trento: realizado de 1545 ihuon280. (Nota da IHU On-Line) ticismo franciscano. Sua premissa do livro
a 1563, foi o 19º concílio ecumênico. Foi 4 Inácio de Loyola (1491-1556): funda- é que a amizade e a comunhão com Deus
convocado pelo Papa Paulo III para asse- dor da Companhia de Jesus, a Ordem dos é possível nesta vida através da limpeza da
gurar a unidade da fé (sagrada escritura Jesuítas, cuja missão é o serviço da fé, a própria consciência, entrando no coração e
histórica) e a disciplina eclesiástica, no promoção da justiça, o diálogo inter-re- descansando em amoroso silêncio e, em se-
contexto da Reforma da Igreja Católica e ligioso e cultural. (Nota da IHU On-Line) guida, elevando-se acima do coração para
a reação à divisão então vivida na Euro- 5 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): te- Deus. (Nota da IHU On-Line)
pa devido à Reforma Protestante, razão ólogo e humanista neerlandês, conhecido 7 Bernabé de Palma (1469-1532): Irmão
pela qual é denominado como Concílio da como Erasmo de Roterdã. Seu principal franciscano, místico e escritor. Nasceu
Contra-Reforma. (Nota da IHU On-Line) livro foi Elogio da loucura. (Nota da IHU em Palma delRío, na província de Córdo-
3 Martinho Lutero (1483-1546): teólo- On-Line) ba, na Espanha. (Nota da IHU On-Line)

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e Bernardino de Laredo8, estes últi- Na primeira metade do século, As cartas de Santa Teresa fazem ver
Tema de Capa
mos muito importantes para Teresa houve um movimento que tendia à algo deste reconhecimento.
de Jesus. harmonia entre os espirituais e os teó- Por outro lado, de fato, Teresa
As Universidades, por sua vez, logos. Mas o segundo momento é bem rompeu com o estereótipo submisso
empreendem um esforço de renova- diferente. Entra novo rei (Felipe II9, e piedoso esperado das mulheres. As
ção do método do ensino teológico 1557); é promulgado o Índice (1559) e próprias representações de escritora,
em importantes centros, como Sala- o Concílio de Trento é finalizado (1563), catedrática e andarilha, presentes na
manca, Valencia e Alcalá. Isto é mui- trazendo várias medidas disciplinares pintura, escultura e gravuras da época,
to importante, pois a teologia nestas e declarações dogmáticas frente aos revelam a subversão do papel da mu-
Universidades buscaram ser não esco- luteranos. Surge o antagonismo entre lher que Teresa de Jesus representou.
lasticistas, buscaram novos recursos teólogos e espirituais e a posição in- Em consequência, não lhe falta-
filológicos e históricos. Em Alcalá, por quisitorial será em desfavor destes úl- ram censuras, críticas, desconfianças
exemplo, é promovida a primeira edi- timos. Inicia-se outra etapa na teologia e mesmo ódio. Sua ação de registrar
ção da Bíblia Poliglota, evidentemente e espiritualidade do século XVI. sua experiência, exercer o magistério
com vida curta depois de Trento. Vejam que curioso: a vida de San- teológico-espiritual e fundar conven-
Livros de espiritualidade impor- ta Teresa inicia na primeira metade do tos mexeu com o grupo de teólogos e
tantes são editados, através de uma século, em 1515, e vai até 1582. Ela se com a Igreja oficial. O grande teresia-
imprensa que se desenvolve de for- alimenta, em sua juventude, de uma nistaPe. Tomás Álvarez10 recolheu vá-
ma impressionante. Para termos uma abertura e mesmo incentivo oficial à rios exemplos desta rejeição a Santa
ideia, de 1530 a 1559 são editados, nas oração pessoal, vigentes. Por outro Teresa, que podem ser encontrados
gráficas castelhanas, mais de 198 títu- lado, a redação dos livros, as funda- em seu Diccionario de Santa Teresa
los de livros de espiritualidade! Nestes ções e a edição de sua obra aconte- (Burgos: Editorial Monte Carmelo,
livros, o tema da experiência do mis- cem quando o boom editorial vive seu 2000). Mencionarei alguns exemplos
tério de Deus vivo é comum, assim os ocaso e se fortalece um movimento significativos e bem testificados.
leitores passam a ter estes livros como antimístico. Isto concede à pessoa e Chegaram até nós as palavras de
ajuda na oração e, mais importante, às obras de Santa Teresa um caráter um insigne dominicano, Bartolomeu
meios para saciar suas buscas espiri- profético e audaz. de Medina11, catedrático de Prima
tuais. A jovem Teresa recebeu de seu Tudo isto me faz refletir sobre a de teologia da Universidade de Sala-
tio, numa pequena cidade no interior importância de se discernir os “sinais manca, através de um então discípulo
de Castela, o livro Terceiro Abecedário dos tempos” que devem ser apoiados seu. Testemunhou este discípulo que
(Brasília: Editora FFB, 2010), de Francis- e suportados, no sentido de dar su- o grande teólogo, antes de conhecer
co de Osuña que, como sabemos pela porte. A “busca de Deus” foi, em um Teresa e tornar-se seu grande amigo e
sua própria vida, foi determinante para primeiro momento, articulada com lo- admirador, reprovou sua presença em
sua oração. cais de acompanhamento da oração, Salamanca para fundar um convento.
Resumindo, vai-se formando livros, teologia e iniciativas eclesiais. Dissera publicamente de sua cátedra
um movimento que busca uma espi- Juntos, movimento espontâneo e re- que “um tal ir de lugar em lugar é pró-
ritualidade subjetiva e vital, que sus- forma, ajudaram a germinar vidas ad- prio de mulheres à toa” e que estas
tenta e é sustentado por iniciativas miráveis que projetaram beleza e luz “melhor fariam se ficassem em suas
concretas das ordens religiosas, por até os dias de hoje. casas fiando e rezando”.
livros que descrevem experiências O também dominicano João
pessoais e propõem sérios caminhos IHU On-Line – Como os poderes de Salinas, que já havia alertado seu
de oração, por uma teologia que utili- eclesiais instituídos daquele tempo companheiro de ordem e teólogo Do-
za novos conceitos. Bem diferente de interpretaram a ousadia e a novidade mingo Báñez12, amigo da Santa, que
uma espiritualidade objetiva, baseada de Teresa de Ávila? “não se deve confiar em virtude de
em obras externas, na oração vocal Lúcia Pedrosa-Pádua – A rede mulheres”, ao conhecer Teresa volta a
e fixada em livros edificados sobre a de relações de Teresa de Jesus é rica dizer-lhe que “esperava aproximar-se
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autoridade. e grande, inclui muitos amigos, co-


Esta nova espiritualidade cami- laboradores e admiradores. Muitos 10 Tomás Álvarez (1923): teólogo, histo-
nha na fronteira entre o ortodoxo e clérigos acompanham com interesse a riador e escritor. (Nota da IHU On-Line)
o heterodoxo. Dele participam cor- redação de seus livros. Provinciais so- 11 Bartolomeu de Medina O.P. (1527-
rentes da oração de recolhimento licitaram a ela o que escrevera. Teresa 1581): foi frade dominicano e teólogo
espanhol. Foi aluno de Francisco de Vitó-
(como Santa Teresa), protestantes, vai sendo reconhecida como “mestra ria na Universidade de Salamanca e mais
erasmistas e iluministas (estes últimos de espirituais”, escritora e fundadora, tarde catedrático de teologia na mesma
chamados pejorativamente de “alum- um reconhecimento raro às mulheres. universidade. É conhecido como o cria-
brados”). Esta multiplicidade de cor- dor da doutrina do probabilismo, segundo
a qual não há um só caminho para fazer
rentes gerará muitas tensões e confli- 9 Filipe II (1527-1598): foi rei de Espa- o bem, mas que deve escolher-se o que
tos, envolvendo o grupo dos teólogos nha, a partir de 1556, e rei de Portugal, mais provavelmente leve ao bem. (Nota
e as atividades inquisitoriais. como Filipe I, a partir de 1580. Foi o pri- da IHU On-Line)
meiro líder mundial a estender seus do- 12 Domingo Bañez em latim Dominico-
mínios sobre uma área direta “onde o sol Bannes (1528-1604): foi um teólogo espa-
jamais se punha”, superando, portanto, nhol, religioso da Ordem dos Frades Pre-
8 Fray Bernardino de Laredo (1482- Ghengis Khan, até então o homem mais gadores. Foi confessor de Santa Teresa de
1540): foi um médico e escritor francis- poderoso de todos os tempos. (Nota da Ávila, ensinou teologia em Alcalá, Valla-
cano místico. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) dolid e Salamanca. (Nota da IHU On-Line)

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de uma mulher”, mas encontrara “um ambiente, dos recursos da razão nesta com o amor de Deus em níveis insus-

Tema de Capa
homem, e daqueles bem barbados”, mesma época. No meio de tudo isto, peitados, de purificações arrasadoras,
referindo-se à tenacidade e capacida- ela não acontece sem uma graça de de conhecimento interno da realidade
de de governo da Madre Teresa. luz e de fidelidade. Em meio aos con- do Deus trino, da percepção de Deus
O próprio Domingo Báñez não flitos, o poder de atração da vida e da em todas as coisas, no cosmos, de
conseguiu dissimular seu preconceito obra de Santa Teresa foi mais forte que transformações éticas que atingem o
contra as mulheres, Teresa entre elas. a rejeição. Porque estavam envolvidas ápice das possibilidades e levam a cria-
Vemos isto claramente em sua Cen- e fundadas na experiência do amor de tura a vencer o medo da morte.
sura ao Livro da Vida, que pode ser Deus e foi vivida com sinceridade. Assim, do mais simples ao mais
encontrada em algumas versões das elevado, que sabiamente faz retornar
Obras Completas de Santa Teresa. Lá, IHU On-Line – Como o testemu- ao mais simples – Deus está entre as
ele diz que, no Livro da Vida, há “mui- nho de Deus dado por Teresa segue panelas! – o leitor também faz o seu
tas revelações e visões, as quais sem- instigando e intrigando a mística e itinerário. Ela mesma convida cada
pre se deve muito temer, especial- nossa relação com a transcendência? um a descobrir a sua forma particular
mente se são de mulheres, que são Lúcia Pedrosa-Pádua – A experi- de oração. Assim, os livros de Teresa
mais fáceis em crer que são de Deus ência teresiana sempre será instigante são também um espelho para nos ver
e colocar nestas visões a santidade”. porque é uma grande janela através da melhor e amar com mais qualidade.
Estes testemunhos de época são qual vislumbramos as possibilidades Há estímulos para o amor.
muitos interessantes. Mostram como humanas em sua comunicação com As experiências teresianas têm
Teresa desconheceu o lugar que se Deus. Isto instiga e continuará instigan- um aspecto profético, o Deus que ela
esperava das mulheres e, além disso, do as gerações. Todo mundo deseja experimenta é libertador. Assim ela
não se intimidou com os preconceitos olhar por esta janela! A própria Tere- o experimenta como pessoa, como
e estereótipos sobre elas. Desconcer- sa não se cansa de admirar como um mulher, como membro de uma comu-
tou as pessoas, foi mal falada e perse- Deus “tão grande e tão sábio” deseja nidade e de uma Igreja. Este Deus a
guida, mas foi adiante. tanto se comunicar com sua criatura. envia continuamente a ações trans-
O caso mais emblemático vem, a Na grande janela das obras de formadoras, sua atitude diante dos
meu ver, do núncio papal, Felipe Sega. Santa Teresa, vemos variedade de ex- acontecimentos nunca é passiva, é
Em suas consultas e cartas sobre a periências de oração, rica fenomeno- ativa e crítica.
Ordem recém-fundada por Teresa de logia, defesas teológicas, efeitos éti- Além disso, há um aspecto sa-
Jesus, ele não se digna a consultá-la, cos da oração que atingem ora níveis piencial. Os escritos são belos e tra-
sequer a mencioná-la. Para ele, Teresa mais externos, ora níveis mais profun- duzem sabedoria de vida, bom senso,
não passava de uma “mulher inquieta dos. É um manancial tão grande que é compreensão humana, caminhos de
e andarilha, desobediente e contu- possível reler seus livros – doutrinais e integração e humanização. Há inte-
maz” e que, além de tudo isto, “inven- históricos – uma e outra vez, sempre resse pelas pessoas, pelos trabalha-
ta más doutrinas..., ensinando como descobrindo coisas novas e fazendo dores, pela saúde, pela comunicação
mestra e indo contra o ensinamento novas leituras com as novas gerações. de qualidade.
de São Paulo, de que as mulheres não Por exemplo, o leitor se encon- Enfim, na experiência teresiana, a
ensinassem”. Na percepção do nún- tra com páginas belas em que Tere- transcendência está revestida de glória
cio, o caminho de Teresa de Jesus ia sa, como pedagoga, ensina a oração e de terra, está presente aos atos mais
na direção contrária dos costumes, da como um trato de amizade com Je- heroicos e aos profundos abismos do
Ordem, do Concílio de Trento e mes- sus, um cultivo de amizade no silên- pecado. Não são possíveis máscaras
mo da Palavra de Deus! cio, na fidelidade à beira do poço, no diante de Deus que traz tudo à luz e
Isto sem falar das atividades inqui- interesse por ele. Desenvolve-se a concede ao humano a grandeza de não
sitoriais. Teresa, em vida, foi acusada capacidade de olhar, vence-se a mu- se envergonhar por ser humano, ao
duas vezes por alumbradismo ou ilu- dez. O leitor é convidado a trazer este contrário, de dizer sim à aventura de
minismo. Após sua morte, houve uma amigo por perto, ao lado, impresso no conhecer e autoconhecer-se em Deus www.ihu.unisinos.br
terceira tentativa de enquadrá-la na coração, dentro de si. Conselhos mui- e de, em meio ao realismo da malda-
mesma heresia. Teresa saiu vencedora to práticos estão presentes em suas de e da destruição que pode provocar,
de todas as acusações. Na segunda, ela obras: o tratamento do tempo, culti- abrir caminhos para o amor.
pessoalmente se defendeu; nas demais, vo da atenção, atitudes fundamentais
que tinham por alvo as suas obras, a for- para a oração – a alegria, a “determi- IHU On-Line – Por que ela é con-
ça e a coerência de sua teologia mística nada determinação”, a liberdade de siderada por alguns comentaristas
se encarregaram de sua defesa. espírito –, atenção aos limites corpo- como “mãe da psicologia”?
Na verdade, a Igreja oficial, pa- rais, cultivo de relações de amizade, Lúcia Pedrosa-Pádua – Conheço
triarcal e antifeminista, tentou várias desenvolvimento da humildade e do junguianos13, lacanianos14 e mesmo
vezes invisibilizar e desqualificar Teresa desapego. E muitos, muitos mais.
de Jesus. A Igreja temeu a grande San- Por outro lado, o leitor se aproxi-
ta e escritora, assim como os profetas ma de experiências que, tais como Te- 13 Carl Gustav Jung (1875-1961): psi-
quiatra suíço. Colega de Freud, estudou
são temidos e silenciados. Mas é isso resa as realizou, o leitor jamais as terá. medicina e elaborou estudos no campo
que faz a história da mística uma his- No entanto, pela experiência da auto- da psicologia, discutindo os conceitos de
tória humana e divina. Ela depende ra, ele entra no mundo incrível das al- introversão e extroversão. (Nota da IHU
On-Line)
das questões colocadas no tempo e tas experiências místicas, do encontro 14 Jacques Lacan (1901-1981): psica-

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freudianos15 que admiram Santa Te- Hoje, mais ou menos superados os ternidade e atenção mútua, comuni-
Tema de Capa
resa e a leem. A psicologia profunda preconceitos contra a mística e contra cação e silêncio, alegria e bom humor,
de Jung tem explorado bastante as a própria Teresa – mais característi- facilitando assim o desenvolvimento
obras teresianas, de forma especial o cos do século passado e mesmo do humano. “Quanto mais santas, mais
Castelo Interior (J. Welch; Vergote16) e anterior – cada vez mais são abertos conversáveis”, escreveu um dia, ino-
há obras consistentes em abordagem caminhos de diálogo da mística com a vando na própria noção de santidade
lacaniana (D. Vasse) e mesmo psica- psicologia na perspectiva da saúde, do de seu tempo, que valorizava de ma-
nalítica (J. Kristeva17; C. Padvalskis). sentido e da luz diante dos desafios neira unilateral o silêncio como sinal
contemporâneos. de santidade.
nalista francês. Realizou uma releitura
Por que é possível esta aproxi-
do trabalho de Freud, mas acabou por mação? Primeiro porque as copiosas IHU On-Line – Como se mesclam
eliminar vários elementos deste autor narrativas das atividades interiores na subjetividade, liberdade e autono-
(descartando os impulsos sexuais e de experiência mística de Teresa fazem
agressividade, por exemplo). Para Lacan, mia em sua vida e obra?
o inconsciente determina a consciência, dela um prato saboroso e farto de Lúcia Pedrosa-Pádua – Teresa é
mas ainda assim constitui apenas uma investigação. uma mulher do renascimento, da des-
estrutura vazia e sem conteúdo. Confira Segundo, e é aí que desejo che- coberta da subjetividade, da valoriza-
a edição 267 da revista IHU On-Line, de
04-08-2008, intitulada A função do pai,
gar, porque há um reconhecimento de ção da experiência. Seu primeiro livro,
hoje. Uma leitura de Lacan, disponível Teresa como profunda conhecedora o Livro da Vida, é escrito em primeira
em http://bit.ly/ihuon267. Sobre Lacan, das potencialidades e misérias do hu- pessoa. Mais interessante para mim,
confira, ainda, as seguintes edições da mano. E, de fato, Teresa é uma explo-
revista IHU On-Line, produzidas tendo atualmente, é perceber os processos
em vista o Colóquio Internacional A éti- radora da alma humana e da vida in-
pelos quais Teresa abre espaços de li-
ca da psicanálise: Lacan estaria justi- terior – nesta aventura ela empregou
ficado em dizer “não cedas de teu de-
berdade e autonomia na relação com
suas melhores energias. O autoconhe-
sejo”? [necèdepassurtondésir]?, reali- Deus, fato que se relaciona com os ca-
cimento é, para ela, “o pão com que
zado em 14 e 15 de agosto de 2009: edi- minhos de liberdade que ela ajuda a
ção 298, de 22-06-2009, intitulada Desejo devemos comer todos os manjares”,
abrir naquela sociedade.
e violência, disponível em http://bit.ly/ básico para avançar nas moradas mais
ihuon298, e edição 303, de 10-08-2009, Vemos no Livro da Vida uma Te-
interiores do próprio castelo.
intitulada A ética da psicanálise. Lacan
Este autoconhecimento se dá de resa que, por exemplo, vai se desape-
estaria justificado em dizer “não cedas
de teu desejo”?,disponível em http:// maneira intersubjetiva, especialmen- gando de uma autoimagem sempre
bit.ly/ihuon303. (Nota da IHU On-Line) te na relação com Deus. Assim sendo, muito positiva diante dos demais e vai
15 Sigmund Freud (1856-1939): neuro-
conhecimento próprio e conhecimen- aprendendo a suportar que falem mal
logista, fundador da psicanálise. Inte- dela. Ela se desvencilha da escravidão
ressou-se, inicialmente, pela histeria e, to de Deus são includentes e inter-
tendo como método a hipnose, estudou -relacionados. Não sendo assim, a de agradar a todos e, assim, cresce em
pessoas que apresentavam esse quadro. experiência de Deus seria alienante. O autonomia e liberdade. É uma etapa
Mais tarde, interessado pelo inconscien- fundamental de sua vida e não seria
te e pelas pulsões, foi influenciado por caminho espiritual é, ao mesmo tem-
Charcot e Leibniz, abandonando a hip- po, um itinerário de encontro consigo possível sem a fortaleza interior gera-
nose em favor da associação livre. Estes mesmo, de retirada de máscaras e de da na oração. Ao final do itinerário de
elementos tornaram-se bases da psica- Teresa, em grande liberdade, ela não
nálise. Freud nos trouxe a ideia de que potencialização do melhor de cada
somos movidos pelo inconsciente. Freud, um. teme a morte e é capaz de oferecer a
suas teorias e o tratamento com seus pa- Aliado a isto, Teresa chegou a vida e o querer viver para servir à co-
cientes foram controversos na Viena do munidade, à Igreja, a Deus. Ela se faz
século XIX, e continuam ainda muito de-
um conhecimento profundo do mal
batidos hoje. A edição 179 da IHU On-Li- presente na história e nas pessoas, “escrava de Deus”.
ne, de 08-05-2006, dedicou-lhe o tema com sua potencialidade, e isto fazia A experiência de olhar para o
de capa sob o título Sigmund Freud. Mes- parte de seu conhecimento realista Jesus dos Evangelhos, libertador
tre da suspeita, disponível em http://
bit.ly/ihuon179. A edição 207, de 04-12- das pessoas. Um dia escreveu: “nada que gera liberdade em seus segui-
2006, tem como tema de capa Freud e te perturbe, nada te espante”. Isto dores, é mediação fundamental. Em
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a religião, disponível em http://bit.ly/ valia para ela e para os demais. Te- seu texto mais feminista, constan-
ihuon207. A edição 16 dos Cadernos IHU
em formação tem como título Quer en-
resa aprendeu a ter esperança sem te apenas na primeira redação do
tender a modernidade? Freud explica, amordaçar as pessoas em julgamen- Caminho de Perfeição, Teresa de-
disponível em http://bit.ly/ihuem16. tos e exigências. E o exemplo é ela nuncia os varões que se fazem juí-
(Nota da IHU On-Line) mesma, “mulher ruim” que foi tra-
16 Antoine Vergote (1921-2013): padre
zes de mulheres, encurralando-as e
católico, filósofo, psicólogo e psicanalis- tada por Deus com muita paciência. considerando-as incapazes, para que
ta belga. Foi professor emérito da Uni- Exclamará: “bendito seja Deus que não possam “dizer em público o que
versidade Católica da Lovaina. (Nota da tanto me esperou”.
IHU On-Line)
choram em silêncio”.
17 Julia Kristeva (1941): psicanalista
Outro aspecto é o caráter tera- Oração-amor, observação, olhar
búlgara, professora de Linguística na pêutico de suas comunidades e pro- crítico, autoconsciência, busca da
Universidade de Paris e autora de mais cessos comunitários. Há um convite a felicidade (Teresa foge de casa duas
de trinta livros consagrados. Aluna de viver com simplicidade e verdade, fra-
Roland Barthes, é uma das mais respei- vezes!), fidelidade a si mesma são al-
tadas intelectuais da atualidade. Seus guns elementos através dos quais Te-
pensamentos envolvem teoria literária, Estrangeiros para nós mesmos e O Velho resa cresce em autonomia e liberdade
semiologia, filosofia e psicologia. Escre- e os Lobos. É autora também de Thérè-
veu também quatro romances. Entre suas semonamour (Paris: Fayard, 2008). (Nota que, por sua vez, geram comunhão e
obras estão: As Novas Doenças da Alma, da IHU On-Line) liberdade.

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IHU On-Line – E como ela conci- quicos”. A que estava se referindo, do símbolo e a narrativa da pessoa

Tema de Capa
lia o amor com essas categorias? exatamente? que se aventura neste castelo formam
Lúcia Pedrosa-Pádua – A liberda- Lúcia Pedrosa-Pádua – Talvez me um verdadeiro tratado de antropo-
de teresiana é gerada no amor, espe- referisse aos condicionamentos psí- logia teológica indutiva. E, mesmo
cialmente o amor de Deus. E leva ao quicos que todos nós temos. Para ava- sem a preocupação teológica, o lei-
amor. Assim, amor e liberdade não se liar uma experiência mística, o núcleo tor pode, através do símbolo, ver a
conciliam externamente, mas intrin- principal do amor de Deus deve ser si mesmo, intuir a presença de Deus
secamente. Amor gera liberdade, li- discernido, e não fundido com o fenô- em seu interior, num dinamismo de
berdade gera amor. Ambos se exigem meno tal como descrito pelo místico. luzes e sombras, e inspirar sua vida
para existirem. Porque a experiência se desenvolve concreta.
O amor é tema central na obra sempre no horizonte cultural, social e Há símbolos arquetípicos, como
teresiana. No livro da Vida, ela mos- psíquico do místico. o “centro” e a metamorfose da bor-
tra como era amada por sua família
boleta, especificamente do bicho-da-
e amigos. Ela se sente “a mais queri- IHU On-Line – Como analisa a
seda; símbolos originais como o jar-
da”, mas não quer que decidam a vida simbologia e a semântica utilizadas
dim (a pessoa) e o jardineiro (Deus),
por ela. Está convencida de que as por Teresa de Jesus em seus escritos
o palmito (símbolo antropológico que
relações verdadeiras libertam de exi- místicos em geral?
gências impossíveis, chantagens, mo- Lúcia Pedrosa-Pádua – O sím- apoia a ideia do centro – o mais sa-
delos que escravizam uns e libertam bolo é a forma mais honesta de falar boroso da pessoa encontra-se no mais
outros. A vida cotidiana e comunitária de Deus. O místico tenta explicar sua íntimo e unido a Deus) ou a abelha
tem seus segredos. experiência, não conseguindo, fala (símbolo da humildade). Os símbolos
Teresa foi atingida pelo amor por símbolos. Ao final se cala. Temos abrem a possibilidade de discursos
de Deus. A experiência do coração vários exemplos nos escritos teresia- diversos, interdisciplinares e inter-re-
transpassado pelo dardo do amor im- nos. O leitor pode conferir o esforço ligiosos, e são inspiração para novos
pressiona, pois traz consigo o grande de linguagem e a beleza gerada pe- olhares das novas gerações.
sentimento de amor, seguido de pun- los símbolos, a imaginar e sentir uma
gente purificação que faz olhar a vida “luz que não conhece noite”, por IHU On-Line – Sob quais aspec-
com outros olhos e desejar o que mais exemplo. tos Teresa teve uma autoconsciência
leva ao amor. Poucos autores da lite- Os símbolos teresianos transmu- expandida de seu “ser mulher”?
ratura falarão da experiência de ser tam, Teresa é muito livre, assim, por Lúcia Pedrosa-Pádua – Acho que
amada por Deus como Santa Teresa. exemplo, a borboleta se transforma já falei um pouco sobre isto. Teresa é
Digno de nota é o seu pequeno em pomba e volta a ser borboleta; um exemplo de expansão da consci-
tratado do amor ao próximo constan- o fogo abre espaço para a água. E o ência feminina e feminista. Por isto é
te no capítulo terceiro das Quintas leitor entende muito bem! Há uma profética.
Moradas, em que ela coloca o amor aventura sensorial. No próximo ano, será publica-
ao próximo, concreto, como a verda- Num recente artigo, dediquei- do um novo livro de minha autoria:
deira união com Deus, mais impor- -me a estudar o símbolo do fogo como Santa Teresa de Jesus. Mística e hu-
tante que a mais elevada experiência símbolo do Espírito. Que variedade e manização, pelas Paulinas. Ali traço
mística. Se Deus é amor, ele gera amor riqueza simbólica: o fogo inicia como um longo itinerário da integração en-
e este amor necessariamente irradia. centelha de amor, a centelha é tam- tre corpo, mente e espírito realizada
bém chispa de conhecimento; há fo- por Teresa. Isto é fundamental para
IHU On-Line – Em que aspectos gueiras de amor, e centelhas como
a verdadeira humanização, e Teresa
essas concepções são inspiradoras que atingem até a sensibilidade física;
o realizou num ambiente fortemente
e desafiadoras para as mulheres da o fogo anuncia, provoca seca e exige a
dualista. Isto mostra a força integra-
contemporaneidade? água. Enfim, Teresa fala mais do Espí-
Lúcia Pedrosa-Pádua – Esta é rito por seus símbolos que uma pneu- dora da mística. www.ihu.unisinos.br
uma boa pergunta. Amor e autonomia matologia conceitual. O mesmo po-
é desafio para todos, para as mulhe- deria ser aplicado à água, símbolo ao
res especialmente. Talvez a grande sa- mesmo tempo da graça de Deus e a Leia mais...
bedoria da vida hoje seja estar alerta da oração. Nesta constelação semân- • ‘’Mãe da psicologia’’? Subjetividade,
para perceber os veios de vida, hoje. tica há fontes, riachos, arroios, mar, liberdade e autonomia em Teresa de
Não adormecer no sono do consu- grandes ondas, aqueduto, noria, água Jesus. Entrevista especial com Lúcia
mo, do individualismo e dos sonhos que sai da areia, nascentes, águas Pedrosa-Pádua publicada nas Entre-
pequenos. Nossas ficções científicas limpas e águas turvas. Vida e morte, vistas do Dia, de 08-01-2012, no sí-
atualmente são distópicas, não esta- esperança. tio do IHU, disponível em http://bit.
riam elas apontando para uma sede Teresa tem a habilidade de falar ly/1yCxhUY;
de utopias? • Teresa de Ávila, mulher “eminen-
sobre o ser humano e sua aventura
temente humana e toda de Deus”.
mística através de símbolos como o Entrevista com Lúcia Pedrosa-Pádua
IHU On-Line – Em outra entre- castelo interior, feito de diamante ou publicada na edição 403 de 24-
vista concedida à IHU On-Line, em de cristal muito puro, habitado por 09-2012, disponível em http://bit.
2012, a senhora menciona que Te- Deus que, como o sol, irradia sua luz ly/1qVuMdY.
resa possuía “condicionamentos psí- pelas moradas do castelo. A descrição

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Contra a patologização
Tema de Capa

psicológica da Mística
O psiquiatra Jesús Sánchez-Caro refuta todas as tentativas de imputar às visões de
Teresa de Ávila uma origem nas doenças mentais

Por Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução: André Langer

M
esmo 500 anos depois, os êxtases patológico, estes nada mais são que “mera
de Teresa de Ávila continuam inspi- caricatura ou remedo do misticismo normal,
rando todo tipo de interpretação. do misticismo dos verdadeiros místicos”. E
Se na época, por vezes, eram tidos por religio- conclui: “uma tentativa patológica desses do-
sos reticentes como intervenções do demô- entes para imitá-los, razão pela qual se ten-
nio, mais tarde, a partir das descobertas da de em geral a não utilizar esta catalogação
medicina e da avaliação de sua autobiografia diagnóstica”.
(o Livro da Vida), começam a ganhar espaço Jesús Sánchez-Caro possui graduação e
versões que imputam às visões da santa cató- doutorado em Medicina e Cirurgia. Especia-
lica um caráter patológico. Ou seja, as expe- lista em Psiquiatria, atualmente é professor
riências místicas seriam fruto de depressão, daUniversidadComplutense de Madrid.É au-
histeria ou distúrbios de sono e alimentares. tor do livro El medico y laintimidad (Madri:
Médico psiquiatra há 40 anos e fascinado Diaz de Santos, 2001) e do ainda no prelo Los
pela vida e mente da mística escritora, Jesús limites de la gloria. El sueño de Teresa de Ávi-
Sánchez-Caro é categórico ao refutar todas la, ao qual foram dedicados três anos de estu-
estas interpretações – que ele acusa de se- do. Nele, defende que a aproximação à Dou-
rem exercícios de pura fantasia. Em entrevis- tora Mística da Igreja, Teresa de Ávila, só pode
ta concedida por e-mail à IHU On-Line, ele ser feita através de uma leitura hermenêutica
ressalta que não existe patologia psiquiátrica de seus escritos. Isto é, tendo em conta na
neste caso. “Nada tem a ver o amor e o ena- interpretação de seus textos não apenas os
moramento de Teresa com a ‘ideia delirante aspectos médicos e científicos, mas também
erotomaníaca’” que aparece em alguns doen- os aspectos psicológicos, filosóficos, religioso-
tes mentais graves. -teológicos, bíblicos, mitológicos, simbólicos e
O psiquiatra reflete que mesmo que exis- metafóricos.
tam casos de delírios místicos ou misticismo Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Em termos psi- curar compreender algumas delas do visões intelectuais, nas quais não in-
quiátricos, como podem ser compre- âmbito da psicologia e da neurobiolo- tervieram nem os sentidos corporais
endidas as experiências místicas de gia do cérebro. nem a imaginação, mas das quais diz
Teresa de Ávila, incluindo suas visões Assim, as visões que diz metafo- ter uma grande convicção sobre sua
e êxtases? ricamente ver com “os olhos da alma”, autenticidade; aqui a ciência não tem
Jesús Sánchez-Caro – As experi- parecem ser, como ela mesma indica, resposta a dar, porque ela nos diz que
ências místicas de Teresa de Ávila de visões imaginárias, frutos de sua ex- é graças à fé como as percebe; “quem
modo algum têm a ver com a patolo- traordinária imaginação criativa e de crê, vê”, se diz no Evangelho de São
gia psiquiátrica; portanto, de forma sua rica fantasia, esclarecendo repe- João (Jo 12, 46).
alguma podem ser compreendidas tidas vezes que nunca viu nem ouviu Por outro lado, não existe ne-
em termos psiquiátricos. Talvez, e só por meio dos sentidos corporais. Mui- nhuma razão científica para tratar de
muito parcialmente, seja possível pro- to mais difícil é a interpretação das explicar o êxtase como um problema

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médico, e isso foi afirmado tradicio-
“Talvez, e só muito estímulo externo), que durou quatro

Tema de Capa
nalmente por prestigiosos médicos e dias, devido a uma meningoencefalite
psiquiatras espanhóis (GregorioMa-
rañón1 – para muitos o médico hu-
parcialmente, seja infecciosa, que foi, muito provavel-
mente, consequência do padecimen-
manista mais importante da Europa
durante o século XX –, Avelino Senra
possível procurar to de uma doença infecciosa crônica
febril, a chamada “febre de Malta”
Varela2, Amador Schüller3, Francisco
Marco Merenciano4, Juan José López
compreender ou brucelose9. Esta doença, que se
manifestou na doente na primavera
Ibor5 – que foi presidente da Asso- algumas das de 1538, é endêmica da província de
ciação Mundial de Psiquiatria –, José Ávila e é transmitida principalmente
MaríaPovedaAriño6...). visões de Teresa pela ingestão de leite de cabra ou de
queijos frescos ou de requeijão feito
IHU On-Line – Até que ponto do âmbito da com este leite. Devemos recordar que
suas experiências místicas podem ser a mãe da Santa tinha rebanhos de ca-
o resultado de algum tipo de desor- psicologia e da bras em Gotarrendura, a apenas 20
dem mental? quilômetros de Ávila, e que esse leite
Jesús Sánchez-Caro – Como se neurobiologia do era, com certeza, consumido no con-
indicou anteriormente, suas expe-
riências místicas não têm absoluta- cérebro” vento onde ela se encontrava (o mos-
teiro da Encarnação).
mente nada a ver com nenhum tipo
de transtorno mental. Em alguns IHU On-Line – Alguns auto-
mera caricatura ou remedo do mis-
doentes mentais graves, sobretudo res chegam inclusive a dizer que
ticismo normal, do misticismo dos
nos psicóticos (pacientes com ideias ela era histérica ou esquizofrênica.
verdadeiros místicos; uma tentativa
delirantes e/ou alucinações, sem Qual é o fundamento deste tipo de
patológica desses doentes para imi-
consciência sobre a sua natureza pa- afirmação?
tá-los, razão pela qual se tende em
tológica), pode-se apreciar, às vezes, Jesús Sánchez-Caro – Em relação
delírios de tipo religioso (cada vez geral a não utilizar esta catalogação
ao diagnóstico de esquizofrenia – tal-
menos frequentemente, já que pre- diagnóstica.
vez a doença mais grave com a qual um
dominam hoje os delírios de tipo pa- psiquiatra possa se encontrar –, não
IHU On-Line – Como pode ser
ranoide), que são classificados por al- conheço nenhum trabalho no qual al-
guns como delírios místicos ou como compreendida a experiência de qua-
guém tenha se “atrevido” a aplicá-lo a
“misticismo patológico”; mas este se morte de Teresa, quando recebeu
Santa Teresa, dado que, como se vem
misticismo nada mais é do que uma a extrema unção e passou quatro
afirmando, não existe nenhuma base
dias “sem respirar”, de acordo com a
para classificar sua vida mística dentro
1 GregorioMarañón(1887-1960): médico, “prova do espelho7”? do âmbito psiquiátrico.
cientista, historiador, escritor e filósofo Jesús Sánchez-Caro – Teresa de
espanhol. (Nota da IHU On-Line) No que se refere ao diagnóstico
2 Avelino Senra Varela (1935): médico Ávila sofreu sem dúvida um estado de de “histeria”, é interessante constatar
oncologista galego. (Nota da IHU On-Line) coma profundo (de grau três na escala
3 Amador Schüller (1921-2010): médico o seguinte: O termo “histeria” não é
e professor universitário espanhol, tam- de Glasgow8 – mínimo de consciência reconhecido atualmente em nenhu-
bém foi reitor da Universidade Complu- –, já que não respondia a nenhum
tense de Madrid e chefe de Medicina do ma das principais classificações das
Hospital Clínico San Carlos. (Nota da IHU doenças psiquiátricas, a norte-ameri-
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On-Line) 7 Na dissertação Libro de la Vida, de
4 Francisco Marco Merenciano: médico Teresa de Jesus – A autobiografia como cana (DSM) e a da Organização Mun-
integrante da Falange Española Tradi- manifestação literária feminina, a auto- dial da Saúde (OMS). Na classificação
cionalista y de las Juntas de Ofensiva ra Dulce Espíndola escreve: “Depois de
Nacional Sindicalista, partido único do um mês em coma profundo, tomaram-na norte-americana (última: DSM-V,
regime franquista e o único permitido por morta. A prova do espelho ao hálito 2013), que sofreu diversas revisões
durante a Guerra Civil espanhola. (Nota o confirmava. Colocaram cera sobre os
da IHU On-Line) olhos, usaram como mortalha um lençol ao longo dos anos, não figura há mais
5 Juan José López Ibor (1908-1991): psi- branco e colocaram luto. Assim esteve de 30 anos; na da OMS há mais de 20
quiatra espanhol, conhecido pelo estudo quase quatro dias. A sepultura foi aberta
de transtornos de vitalidade e de estados em seu convento, mas o pai opunha-se a
anos. É um termo que foi abandonado
de ânimo – como a angústia. (Nota da IHU enterrá-la. E seu instinto foi certeiro: a pela enorme dificuldade, quase total
On-Line) doente despertou delirante, depois, en- impossibilidade, que havia para fa-
6 José MaríaPovedaAriño (1919-1994): tre lágrimas, pediu para confessar-se e
foi professor de psiquiatria da Faculda- comungar”. (Nota da IHU On-Line)
de de Medicina da Universidade Autôno- 8 Escala de coma de Glasgow: esca- 9 Brucelose ou Febre de malta: doença
ma de Madri. Foi subdiretor do Hospital la neurológica inicialmente usada para crônica causada pelas bactérias do gêne-
Psiquiátrico Provincial e fundador da avaliar o nível de consciência depois de ro Brucella, transmitida pelos laticínios
Sociedade Espanhola de Medicina Psicos- trauma encefálico, é atualmente aplica- não pasteurizados ou pelo contato com
somática e Psicoterapia. (Nota da IHU da a diferentes situações. (Nota da IHU animais ou carne infectada. (Nota da IHU
On-Line) On-Line) On-Line)

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 47


zer seu diagnóstico clínico, e porque,
“Nada tem a venciou intensamente não apenas em
Tema de Capa
além de ser um termo muito confu- sua mente, mas também em seu cor-
so, era empregado em sentido de-
preciativo e negativo em relação aos
ver o amor e o po; mas, como já indicava há alguns
anos a insigne escritora Simone de
pacientes.
O diagnóstico de brucelose ou
enamoramento Beauvoir11, “sem ser escrava de seus
nervos nem de seus hormônios”. E
febre de Malta, a principal doença or- de Teresa com a esta escritora acrescentou o seguinte:
gânica que Teresa sofreu, foi realizado “Santa Teresa propõe de forma total-
há alguns anos – após uma exploração ‘ideia delirante mente intelectual o dramático proble-
clínica exaustiva dos sintomas revela- ma da relação entre o indivíduo e o
dos em sua descrição autobiográfica erotomaníaca’ que Ser transcendente; vive como mulher
em o Livro da Vida e em outros escri- uma experiência cujo sentido ultra-
tos – por alguns dos mais eminentes aparece em alguns passa qualquer especificação sexual;
patologistas espanhóis contemporâ-
neos. Concretamente, pelo Dr. Aveli- doentes mentais devemos classificá-la ao lado de São
João da Cruz12”.
no Senra Varela, catedrático de Pato-
logia e Clínica Médica da Universidade graves” Teresa tratou depois de expres-
sar metaforicamente essas expe-
Cádiz, em 1982, e posteriormente re- riências místicas tão profundas. É
afirmado pelo Dr. Amador Schüller Pé- bem conhecido que em um dos seus
rez, catedrático de Patologia e Clínica coerência ao longo de toda a sua vida livros mais poéticos e belos, Concei-
Médica da Universidade Complutense e dando mostras de uma série de vir- tos do amor de Deus, inspirou-se no
de Madri e presidente da Real Acade- tudes nada correntes. Cântico dos Cânticos de Salomão13,
mia Nacional de Medicina, em 2005. Por outro lado, a vida de Teresa tradicionalmente lido pelos judeus e
O reconhecimento de que Teresa de Ávila poderia constituir hoje – pela
padecia da mencionada doença orgâ- grande inteireza que demonstrou 11 Simone de Beauvoir (1908-1986): es-
para enfrentar suas graves e doloro- critora, filósofa existencialista e feminis-
nica grave, que evoluiu deixando-lhe ta francesa. Ligou-se pessoal e intelec-
importantes e dolorosas sequelas sas doenças e os múltiplos e sérios tualmente ao filósofo francês Jean-Paul
problemas que se lhe apresentaram Sartre. Entre seus ensaios críticos cabe
físicas para toda a vida, joga defini- destacar O Segundo Sexo (1949), uma
tivamente por terra toda pretensão ao longo da sua vida (pessoais, fami- profunda análise sobre o papel das mu-
de atribuir a ela o “antigo” e “aban- liares, inquisitoriais, fundacionais e lheres na sociedade; A velhice (1970), so-
bre o processo de envelhecimento, onde
donado” diagnóstico de histeria; a outros) – um exemplo paradigmático teceu críticas apaixonadas sobre a atitu-
mesma conclusão a que já chegaram daquilo que na psicologia moderna se de da sociedade para com os anciãos; e A
cerimônia do adeus (1981), onde evocou
anteriormente – antes que houves- denomina de “resiliência”10: a capaci- a figura de seu companheiro de tantos
se o conhecimento de que teve esta dade das pessoas para enfrentar e su- anos, Sartre. (Nota da IHU On-Line)
12 João de Yepes ou São João da Cruz
doença – com argumentos psicoló- perar as adversidades mais diversas e (1542-1591): ingressou na Ordem dos
gicos e fenomenológicos os presti- inclusive sair fortalecidas delas. Carmelitas aos 21 anos de idade, em
1563, quando recebe o nome de Frei
giosos psiquiatras espanhóis acima João de São Matias, em Medina del Cam-
mencionados. IHU On-Line – O tema do erotis- po. Em setembro de 1567 encontra-se
com Santa Teresa de Jesus, que lhe fala
mo é recorrente nos êxtases de Tere- sobre o projeto de estender a Reforma
IHU On-Line – Em termos gerais, sa de Ávila. Esse tipo de experiência da Ordem Carmelita também aos padres.
como se pode compreender o legado Aceitou o desafio e trocou o nome para
caracteriza alguma patologia men-
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João da Cruz. No dia 28 de novembro de


de Teresa de Ávila sob o prisma da tal? Por quê? 1568, juntamente com Frei Antônio de
sua saúde mental? JesúsHeredia, inicia a Reforma. No dia
Jesús Sánchez-Caro – Estimo 25 de janeiro de 1675 foi beatificado por
Jesús Sánchez-Caro – Teresa de que o único amor, o único amado e o Clemente X. Foi canonizado em 27 de de-
Ávila é sem sombra de dúvida uma zembro de 1726 e declarado Doutor da
único amante ao qual Teresa se dirige Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi
das pessoas mais equilibradas que se apaixonadamente é Deus; era exclu- proclamado “Patrono dos Poetas Espa-
pode encontrar na história da huma- nhóis”. Sua festa é comemorada no dia
sivamente com Ele que ela desejava 14 de dezembro. Sobre São João da Cruz,
nidade. É muito fácil comprovar esta unir sua vontade para sempre. E a confira As obras completas de São João
assertiva, já que deixou uma imensa experiência mística dessa imersão tão da Cruz (Petrópolis: Vozes, 2002). (Nota
da IHU On-Line)
obra escrita na qual isso está atesta- profunda no mundo espiritual e de 13 Cântico dos cânticos ou Cântico de
do; e, mais concretamente, basta ler sua fusão sobrenatural com Ele, a vi- Salomão: Livro do Antigo Testamento,
posterior ao Eclesiastes e anterior ao
suas cerca de 500 cartas, que feliz- livro da Sabedoria, na Bíblia católica e,
mente foram conservadas, nas quais 10 Leia a edição 241 da IHU On-Line, na Bíblia protestante, antes de Isaías. No
Resiliência. Elo e sentido, disponível judaísmo, é um dos cinco rolos da última
se expressa com toda naturalidade e em http://bit.ly/1Gqog2E. (Nota da IHU seção do Tanakh, conhecida como Ketu-
humanidade, revelando uma grande On-Line) vim (“Escritos”). (Nota da IHU On-Line)

48 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


cristãos como uma forma simbólica IHU On-Line – Nesse sentido, Talvez tenha pesado nessa orien-

Tema de Capa
e metafórica de narrar os amores e como é possível entender a reação tação o fato de que sou psiquiatra que
desamores do esposo, Deus, e da de religiosos que conviviam com exerce a psiquiatria clínica há cerca de
esposa, a alma; esta bela inspiração ela, que atribuíam suas experiên- 40 anos, e de que me sinto fascinado
bíblica expressou-se também meta- cias místicas ao Diabo ou inclusive pela vida e mente da mística escritora.
foricamente em numerosos poemas ridicularizavam-nas? Sinceramente, no entanto, penso que
e outros escritos. Jesús Sánchez-Caro – Creio que influiu ao menos em parte na orien-
Portanto, uma vez mais, não esta pergunta deveria ser muito mais tação tão definida desta entrevista
existe patologia psiquiátrica. Nada concreta e, em todo caso, respondida um livro que apresenta a patologia
tem a ver o amor e o enamoramento por um dos muitos especialistas, mes- da Santa na perspectiva do que al-
de Teresa com a “ideia delirante ero- tres espirituais e teólogos especiali- guns especialistas chamam de “psico-
tomaníaca” que aparece em alguns zados na Santa, que conhecem muito -história”14. Esta, de forma geral, pode
doentes mentais graves: a ideia deli- melhor do que eu estes aspectos espi- ser entendida como “o estudo das
rante de que outra pessoa, geralmen- rituais, sobrenaturais e religiosos. motivações psicológicas de aconteci-
te de status superior ou uma pessoa mentos históricos” ou, ainda, como o
IHU On-Line – Desejaria acres- estudo das principais motivações que
famosa, como uma estrela de cinema,
centar algum aspecto que não foi determinaram a biografia, a vocação,
está profundamente apaixonada pelo
perguntado? os escritos e inclusive a patologia de
sujeito; são pacientes em geral de tra-
Jesús Sánchez-Caro – Muito obri- Teresa.
tamento muito difícil (farmacológico e
gado a toda a equipe que participou Este colega se valeu para isso da
psicoterapêutico) e a doença costuma
da elaboração desta interessantíssima psicanálise freudiana e de algumas
alterar negativamente o curso de suas
entrevista, que me deu a oportunida- pinceladas psicopatológicas que pa-
vidas. de para manifestar meu pensamento recem claramente aplicadas ad hoc.
sobre Teresa de Ávila. Depois de me- Usando, para isso, de muita imagina-
IHU On-Line – Em que medida
ditar sobre suas perguntas, ocorrem- ção, mas com muito pouca ou nula
devem ser consideradas as crises de
-me as seguintes observações. base científica, já que continuar qua-
Teresa e as condições históricas do
Todos aqueles que há alguns lificando atualmente Teresa de Ávila
tempo no qual ela viveu (fervor re- anos vêm refletindo e estudando a
ligioso, subordinação feminina e o com um termo diagnóstico tão obso-
vida e a morte de um ser tão genial leto e abandonado como “histeria” e
medo da Inquisição)? e fascinante como Teresa de Ávila já
Jesús Sánchez-Caro – Não enten- tratar de psicanalizá-la retrospectiva-
estão acostumados a se encontrar de mente, depois de quase 500 anos de
do exatamente o que quer significar vez em quando com algum novo diag- seu nascimento, não pode ser – no
a palavra “crise”; estimo que seria nóstico que “maltrata”, mais uma vez, melhor dos casos – mais que um incrí-
preciso adjetivá-la para ver a que se sua já “maltratada patografia”. Por vel exercício de fantasia.
refere concretamente. Mas não cabe isso, talvez, não me surpreendo intei-
a menor dúvida de que, efetivamen- ramente com o fato de que a entrevis- 14 O entrevistado parece se referir
te, para qualificar adequadamente ta que tão amavelmente me enviaram ao livro Historia personal de Santa
Teresa de Jesús, do psiquiatra Francisco
Teresa de Ávila e procurar compreen- para dar sobre ela a minha modesta Alonso-Fernández. O livro se filia na
der melhor seu misticismo, é preciso opinião, considere-a francamente es- psico-história e descreve a Santa como
possuidora de humor depressivo, ao qual
conhecer, entre outras coisas, a épo- corada ou inclinada para o âmbito da se somaria sintomas histéricos. Aponta
ca histórica e o ambiente cultural – o psiquiatria, ou seja, para essa parte ainda, a partir da autobiografia de Teresa, www.ihu.unisinos.br
o sentimento de abatimento, solidão,
Século de Ouro espanhol – que lhe da medicina que estuda as doenças além de transtornos de alimentação e
coube viver. mentais. sono. (Nota da IHU On-Line)

LEIA OS CADERNOS IHU IDEIAS


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EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 49
“Deus é antropocêntrico por ser
Tema de Capa

amor”
Maximiliano Herraiz reflete sobre a importância de convertermos a suprema graça
que nos constitui no desafio de englobar Divino e humano juntos

Por Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução: André Langer

P
ara o pesquisador Maximiliano Herraiz, de vida. Compreender “o que Deus realiza
estudioso da mística de Santa Teresa, em quem o acolhe, que pessoa nova vai nas-
descentra o antropocentrismo cristão- cendo na medida em que se responde a este
-teresiano do eu egoísta, voltando-se para o Deus ‘louco de amor por sua criatura’, um
Deus quecentraem nós sua divina comunica- Deus ‘que anda buscando ter a quem dar’”.
ção. É isto que “nos faz romper com o antro- Maximiliano Herraiz García é padre da
pocentrismo que suicida e nos abre ao que Ordem dos Carmelitas Descalços. Especia-
vivifica: o êxtase supremo, como o êxtase de lista nos estudos dos santos fundadores da
nosso Deus, que se revela a nós ‘saindo de si Ordem, Teresa de Jesus e São João da Cruz,
mesmo’ para fazer-se um de nós, fazendo-nos é escritor de trajetória e reconhecimento
sair de nós para ser amor que se entrega aos internacional. Espanhol de nascimento, vive
outros”. há anos na África, tendo percorrido os cin-
Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, co continentes evangelizando através dos
ele defende que o grande desafio não está místicos carmelitas. Atualmente é profes-
na publicação das obras de Teresa de Jesus, sor da Universidad de la Mística, em Ávila,
mas em trazer leitores para suas obras, intro- Espanha.
duzindo-a na compreensão de sua confissão Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a atualida- Maximiliano Herraiz- A atualida- em ajudar a pessoa de hoje a lê-las,
de e a importância das obras de Tere- de de Teresa de Jesus, como a de toda introduzindo-a na compreensão de
grande testemunha de Deus, é hoje
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sa de Jesus1? sua confissão de vida: o que Deus re-


mais atual que ontem: por sua palavra aliza em quem o acolhe, que pessoa
1 Teresa de Ávila (1515-1582): freira car- sobre Deus experimentado, sobre a nova vai nascendo na medida em que
melita espanhola nascida em Ávila, Cas-
tela, famosa reformadora da ordem das
pessoa que recria permanentemente se responde a este Deus “louco de
Carmelitas. Canonizada por Gregório XV a ação amorosa de Deus. amor por sua criatura”, um Deus “que
(1622), é festejada na Espanha em 27 de
agosto, e no resto do mundo em 15 de anda buscando ter a quem dar”.
outubro. Foi a primeira mulher a receber IHU On-Line – Quais são os maio-
o título de doutora da igreja, por decre- res desafios em editar suas obras?
to de Paulo VI (1970). Entre seus livros IHU On-Line – Por que Moradas
citam-se Libro de su vida (1601), Libro Maximiliano Herraiz- O desafio e O Castelo Interior são consideradas
de lasfundaciones (1610), Camino de la- não está em editar suas Obras, mas
perfección (1583) e Castillo interior ou centrais nos seus escritos?
Libro de lassiete moradas (1588). Escre- Maximiliano Herraiz- Porque a
veu também poemas, dos quais restam 31 de Rosa Amanda Strausz, Obras comple-
deles, e enorme correspondência, com tas (São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Te- escritora Teresa estava na plenitude
458 cartas autenticadas. Sobre Teresa, resa de Jesus – “Livro da vida” (4ª ed. da sua vida humanamente divinizada
confira Teresa – A Santa Apaixonada (Rio São Paulo: Ed. Paulus, 1983). (Nota da
de Janeiro: Objetiva, 2005), de autoria IHU On-Line) e divinamente humanizada e, por-

50 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


tanto, tinha uma visão mais profun- de um coração que busca a verdade, tário que se chega à plenitude do ser:

Tema de Capa
da e humana do caminho que havia um coração que faz amar e de uma “calor e luz dão junto a seu Querido”
percorrido, e, além disso, tinha um verdade que faz viver. A ponte entre (LI 3). Ou seja, que não só recebemos
manejo melhor da pluma: escritora verdade e amor, inteligência e afetivi- a comunicação infinita de nosso Deus,
consumada. dade, adquire em Teresa uma harmo- mas que damos ativamente a Deus,
nia perfeita. Deus mesmo.
IHU On-Line – Como a catego-
ria da liberdade perpassa os escritos IHU On-Line – Em que consis- IHU On-Line – Em que sentido
teresianos? te sua argumentação na disserta- os exercícios espirituais com Teresa
Maximiliano Herraiz- Porque é ção “Teresa de Jesus, em busca de de Jesus e São João da Cruz conti-
o pressuposto e o fim de todo pro- letrados”? nuam inspirando as pessoas em bus-
cesso humano-espiritual. A consigna Maximiliano Herraiz- Justamen- ca de uma transcendência que se dá
que ela nos entregou no caminho da te no que acabo de dizer responden- na imanência?
perfeição é certeza e luminosa: “A do à pergunta anterior. Teresa busca Maximiliano Herraiz- Porque o
verdade-humildade te torna livre para em seu diálogo com os letrados que situam no centro mais íntimo e puro
amar”. Onde não há luz, onde a ver- lhe assegurem que sua experiência do Evangelho, a Boa Nova de Deus:
dade não ilumina os nossos passos está de acordo não com sua “teolo- somos tão filhos de Deus quanto Je-
não há nada, senão vazio e sombras. gia”, mas com a Palavra de Deus e, sus; ele “por natureza” e “nós por
E onde há liberdade, fruto da verda- portanto, com a comunidade “guardiã adoção”. João da Cruz nos disse isso
de, está tudo: o amor verdadeiro e a e garante da Palavra de Deus”, a Igreja
em sua primeira enunciação escrita
liberdade verdadeira. de pertença.
de sua fé cristã. Ele coloca nos lábios
do Pai, no diálogo com o Filho, estas
IHU On-Line – Em que medida IHU On-Line – Quais são os tra-
palavras: “Ao que a ti te amar, meu Fi-
a obra de Teresa de Jesus é uma res- ços fundamentais da teologia e da
lho, / a mim mesmo me daria, / e o
posta ao antropocentrismo que co- antropologia de Teresa de Jesus, con-
amor que eu em ti tenho, / nele mes-
meçava a tomar forma em seu tem- forme sua tese “Solo Dios Basta”?
mo eu o poria”.
po, nos começos da Idade Moderna? Maximiliano Herraiz- Dito sim-
Maximiliano Herraiz- Com toda plesmente: uma teologia e uma an-
IHU On-Line – Qual é o principal
simplicidade e verdade, segundo pen- tropologia “do excesso”. Um Deus que
legado de Teresa de Jesus na atual
so, porque Deus é antropocêntrico, não se cansa de dar, de SE dar, que não
Ordem Carmelita Descalça?
por ser amor. O antropocentrismo faria outra coisa se achasse a quem,
Maximiliano Herraiz- Para todos:
cristão-teresiano é descentramento e uma pessoa, infinita receptividade,
que curemos toda dispersão “reco-
do eu egoísta e centramento agrade- por ser “criada à imagem e seme-
lhendo-nos” no mais íntimo da nossa
cido no Deus que, centrando-se em lhança de Deus”. “Somos capazes de
fé: a relação interpessoal com Deus e
nós, em sua divina comunicação, nos amar como somos amados.” João da
entre nós, que inclui na definição da
faz romper com o antropocentrismo Cruz2 precisa que é no mistério trini-
oração: “tratar de [realizar a] amiza-
que suicida e nos abre ao que vivifica: www.ihu.unisinos.br
2 João de Yepes ou São João da Cruz de, conformando a nossa condição à
o êxtase supremo, como o êxtase de (1542-1591): ingressou na Ordem dos
nosso Deus, que se revela a nós “sain- Carmelitas aos 21 anos de idade, em sua”.
1563, quando recebe o nome de Frei
do de si mesmo” para fazer-se um de João de São Matias, em Medina del Cam-
po. Em setembro de 1567 encontra-se IHU On-Line – Gostaria de
nós, fazendo-nos sair de nós para ser com Santa Teresa de Jesus, que lhe fala acrescentar algum aspecto não
amor que se entrega aos outros. sobre o projeto de estender a Reforma
da Ordem Carmelita também aos padres. questionado?
Aceitou o desafio e trocou o nome para
IHU On-Line – Como se mesclam João da Cruz. No dia 28 de novembro de Maximiliano Herraiz- Mais sobre
1568, juntamente com Frei Antônio de o mesmo: que convertamos a supre-
em sua trajetória a busca pela verda- JesúsHeredia, inicia a Reforma. No dia
de, a dimensão intelectual, reflexiva 25 de janeiro de 1675 foi beatificado por ma graça que nos constitui no desafio
Clemente X. Foi canonizado em 27 de de-
e uma afetividade poderosa? zembro de 1726 e declarado Doutor da único, que tudo engloba: “Divino e
Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi humano juntos”.
Maximiliano Herraiz- Não se proclamado “Patrono dos Poetas Espa-
mesclam, crescem inevitavelmente nhóis”. Sua festa é comemorada no dia
14 de dezembro. Sobre São João da Cruz, da Cruz (Petrópolis: Vozes, 2002). (Nota
unidas. Teresa é a conjugação perfeita confira As obras completas de São João da IHU On-Line)

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 51


A contemplação como resposta
Tema de Capa

em Thomas Merton
Doutor em Ciências da Religião, Sibélius Cefas Pereira apresenta a trajetória do
monge trapista, defendendo que o ato de contemplar – mais que uma fuga do mundo
– aprofunda o sentido do viver

Por Márcia Junges e Andriolli Costa

“M
erton certamente se via mar- assim como seu contemporâneo Martin
cado por uma ambiguidade”, Luther King”.
descreve SibéliusCefas Perei- Nas palavras do próprio Merton, “a vida
ra, doutor em Ciências da Religião. “Por um contemplativa não é nem pode ser uma sim-
lado o desejo imenso de dedicar-se a Deus na ples evasão, uma pura negação, uma fuga do
opção radical da solidão monástica. Por outro, mundo em face dos seus sofrimentos. An-
levava consigo essa ânsia e necessidade de tes de tudo seria uma ilusão essa tentativa.
tornar sua opção uma força de serviço e com- Ninguém pode retirar-se completamente da
paixão ao mundo, o que traria consequências sociedade dos seus companheiros”. Assim,
acentuadas sobre o sentido de se ser monge em uma era de opulência, hiperconsumismo,
no mundo atual.” ambição econômica insaciável e espetacula-
Em entrevista concedida por e-mail à rização da vida, o pesquisador mais uma vez
IHU On-Line, Cefas reflete que, diferente do recorre ao místico trapista. “Tendo a tirar uma
que se apresenta no senso comum, a expe- lição central em Merton, que é o convite para
riência religiosa – sobretudo no contexto da o desapego e o esvaziamento. Penso estar aí
opção monástica – representaria uma fuga um aprendizado que pode vir da experiência
do mundo. Trata-se, para ele, exatamente contemplativa e talvez uma saída enquan-
do contrário. “A experiência contemplativa, to modo de viver para os nossos impasses
a busca de uma vida plena em Deus, apro- civilizatórios.”
funda o sentido do viver, adensa a espes- Sibélius Cefas Pereira é graduado em Te-
sura do tempo.” Sendo um monge contem- ologia e Letras. Mestre em Linguística pela
plativo, recolhido ao diálogo silencioso da UNICAMP e Doutor em Ciência da Religião
oração e da meditação, Merton não se fur- pela Universidade Federal de Juiz de Fora –
tou ao diálogo com o mundo, abrindo sua UFJF. Professor da PUC-Minas em Poços de
alma e coração ao leitor e comprometendo- Caldas, atua na área de Filosofia, em interface
-se com causas sociais. Em um contexto de com outros campos. É autor do livro Thomas
Guerra Fria, corrida armamentista, racismo, Merton: contemplação no tempo e na história
confrontos e lutas, descreve Cefas, “Merton (São Paulo: Paulus, 2014), resultado de tese
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fez parte daquele arco de figuras públicas de doutorado sobre Merton sob a orientação
dos anos 1960 que de alguma forma tradu- de Faustino Teixeira.
ziam os anseios e sonhos da coletividade, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quem foi Thomas sua formação acadêmica e como se


uma seleção extraída dos vários volumes
Merton1? Onde ele nasceu, como foi do diário de Thomas Merton, autor de li-
deu a sua mudança para os EUA?
vros famosos como A Montanha dos Sete Sibélius Cefas Pereira – Thomas
Patamares (São Paulo: Itatiaia, 1998) e Merton nasceu em 31 de Janeiro de
1 Thomas Merton (1915-1968): monge Novas sementes de contemplação (Rio de
católico cisterciense trapista, pioneiro Janeiro: Fisus, 1999). O livro foi editado
no ecumenismo no diálogo com o budis- por Patrick Hart, também monge e cola-
mo e tradições do Oriente. O livro Mer- borador de Merton. Na matéria de capa Cardenal, discípulo de Merton, que fala
ton na intimidade – Sua Vida em Seus da edição 133 da IHU On-Line, de 21-03- sobre sua relação com o monge. (Nota da
Diários (Rio de Janeiro: Fisus, 2001), é 2005, publicamos um artigo de Ernesto IHU On-Line)

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1915, no sul da França. Filho de pais
“Merton é o tipo tumultuado de um jovem que explo-

Tema de Capa
artistas (pintores), ficou órfão ainda rou ao máximo a vida em suas dife-
adolescente. Teve um trajeto incomum
de um garoto cosmopolita, que ainda de companheiro rentes oportunidades, mas que trazia
em si uma inquietação mais profunda
menino vivera na França, Inglaterra e que só encontrou descanso em Deus.
Estados Unidos. Com a morte dos pais, de viagem que Quanto à Ordem Cisterciense, o
passou a ser criado pelos avós nos EUA. próprio Merton em sua obra Águas de
Posteriormente passou por Cambridge, nos fortalece Siloé(Belo Horizonte: Itatiaia, 1957)
mas tem sua trajetória acadêmica liga- traça seu histórico. Nas suas pala-
da, efetivamente, à Universidade de Co- no caminhar e vras, “foi fundada no fim do século XII
lumbia, em Nova York, onde se graduou como uma reforma do monasticismo
na área de humanidades (Letras), fez
seu mestrado com dissertação sobre o
não nos deixa beneditino. O ideal dos fundadores
foi um retorno à perfeita observância
poeta William Blake2 e chegou a se pre-
parar para o doutorado.
esmorecer da integral da Regra de S. Bento4, o que
significa um retorno à vida cenobítica5
Foi um tempo em que atuou bas-
tante no campo cultural, escrevendo
esperança” em toda a sua simplicidade. [...] Sob
São Bernardo de Claraval6, os cister-
e mesmo dirigindo revistas literárias cienses tornaram-se a maior ordem
e acadêmicas no campus. Depois de contemplativa de seu tempo”.
uma busca intensa consumada na foi promover uma renovação e redi- Ressalta Merton a particular vo-
inadiável conversão, ingressou na Igre- mensionamento da vida contempla- cação de São Bernardo para a vida con-
ja Católica em 1938. Três anos depois, tiva no mundo contemporâneo. Em templativa, bem como a ênfase dada
em 1941, entrou para a comunidade Getsêmani viveu por 27 anos, de 1941 desde o início, e que de certa forma
monástica da Abadia Getsêmani, em a 1968, quando morreu tragicamente ficou como marca da Ordem, ao amor,
Kentucky, USA, mosteiro trapista da em um acidente na Tailândia, onde com predileção pelo livro Cântico dos
Ordem Cisterciense da Estrita Obser- pela primeira vez saíra do mosteiro Cânticos7, tomado como a referência
vância (OCSO). Imortalizou essa fase para uma visita ao oriente, em conta-
e experiência de sua vida, revelando to e eventos com lideranças religiosas
ceitos de pecado original e guerra justa.
o grande escritor que se tornaria, em budistas, em especial monges. Confira a entrevista concedida por Luiz
sua conhecida autobiografia A Monta- É importante ressaltar, ainda, Astorga à edição 421 da IHU On-Line,
nha dos Sete Patamares (Petrópolis: que os seus últimos três anos no de 04-06-2013, intitulada A disputatio
de Santo Tomás de Aquino: uma sínte-
Vozes, 2005), publicada em 1948 e mosteiro foram vividos na condição se dupla, disponível em http://bit.ly/
hoje reconhecida como um clássico de eremita numa construção à parte ihuon421. (Nota da IHU On-Line)
da literatura cristã. da moradia central e coletiva, expe- 4 Bento de Núrsia (480-547): monge fun-
Escreverá, ao longo de sua vida dador da Ordem dos Beneditinos, uma
riência inédita na tradição trapista. A das maiores ordens monásticas do mun-
monástica além de seus textos mais maior parte dos seus textos desta sua do. Foi criador da Regra de São Bento,
densos sobre espiritualidade, inú- última fase são inseparáveis desta sua que determinava um conjunto de pre-
meros ensaios sobre temas sociais particular experiência, algo paradoxal, ceitos destinados a regular a vivência de
uma comunidade monástica cristã, regi-
e culturais, diários e cartas e muita pois que, se representou uma radica- da por um abade. (Nota IHU On-Line)
poesia. No conjunto da obra é possí- lidade na forma de viver a experiência 5 Cenobita: monge que leva uma vida
vel recompor um retrato expressivo monástica, representou igualmente retirada, mas em comum com outros
com os mesmos interesses. (Nota da IHU
e cativante de sua vida, marcada por um envolvimento ainda maior com os On-Line)
uma busca intensa de Deus. Sendo desafios sociais daquele momento. 6 Bernardo de Claraval(1090-1153): co-
um monge contemplativo, recolhido nhecido também como São Bernardo,
era oriundo de uma família nobre de
ao diálogo silencioso da oração e da IHU On-Line – Como se deu o Fontaine-les-Dijon, perto de Dijon, na
meditação, não se furtou ao diálogo
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seu ingresso na Ordem dos Trapistas Borgonha, França. Aos 22 anos foi estudar
com o mundo, abrindo sua alma e co- e quais são as características funda- teologia no mosteiro de Cister. Em 1115
fundou a abadia de Claraval, sendo o seu
ração ao leitor. Como mestre espiritu- mentais dessa ordem? primeiro abade. Fundou 163 mosteiros
al que foi, é uma referência incontor- Sibélius Cefas Pereira – Em sua em vários países da Europa. Durante sua
nável nos estudos da espiritualidade autobiografia recupera elementos do vida monástica demonstrava grande fé
cristã e da experiência religiosa num em Deus serviu à igreja católica apoian-
seu trajeto anterior à sua conversão, do as autoridades eclesiásticas acima das
sentido mais geral. Pode-se mesmo ocorrida em 1938, e à sua entrada pretensões dos monarcas. Em função dis-
afirmar que sua decisiva contribuição para a ordem em 1941. Um pouco to favoreceu a criação de ordens milita-
para o cristianismo contemporâneo na moldura das Confissões de Agosti- res e religiosas. Uma das mais famosas foi
a ordem dos cavaleiros templários. (Nota
nho3, o que se percebe aí é o itinerário da IHU On-Line)
7 Cântico dos cânticos ou Cântico de
2 William Blake (1757-1827): foi o pri- Salomão: Livro do Antigo Testamento,
meiro dos grandes poetas Românticos in- 3 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, posterior ao Eclesiastes e anterior ao
gleses, como também pintor, impressor, 354-430): bispo, escritor, teólogo, filó- livro da Sabedoria, na Bíblia católica e,
e um dos maiores gravadores da história sofo foi uma das figuras mais importan- na Bíblia protestante, antes de Isaías. No
inglesa. Foi também pintor, sendo sua tes no desenvolvimento do cristianismo judaísmo, é um dos cinco rolos da última
pintura definida como pintura fantástica. no Ocidente. Ele foi influenciado pelo seção do Tanakh, conhecida como Ketu-
(Nota da IHU On-Line) neoplatonismo de Plotino e criou os con- vim (“Escritos”). (Nota da IHU On-Line)

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bíblica que melhor expressava a união tem tido uma presença significativa pos dos soldados mortos do Vietnã.
Tema de Capa
mística da alma com Deus. Lembra na cena religiosa brasileira, quando Seu túmulo no cemitério da abadia
Merton que a expansão da Ordem através de conferências e retiros tem fica ao lado do abade que lhe negou
trouxe posteriormente um tempo de possibilitado a atualização da espiritu- a permissão para viajar. O que esses
“declínio e a primeira coisa que desa- alidade da trapa em nosso meio. paradoxos nos dão a pensar sobre
pareceu foi o fogo da contemplação”. sua trajetória de vida?
Uma parte expressiva da obra IHU On-Line – O que Merton Sibélius Cefas Pereira – Thomas
abordará a reforma do século XVII, queria dizer ao afirmar que ele esta- Merton é paradoxal em muitos senti-
liderada pelo padre João Armando va vivendo na “barriga de um para- dos. Foi um monge contemplativo e
de Rancé, abade da Grande Trapa, doxo”, a exemplo de Jonas na baleia? eremita e ao mesmo tempo figura pú-
marcada por uma ênfase na “austeri- Sibélius Cefas Pereira – Em 1953 blica, escritor e comprometido com as
dade”. É deste período que se fixa a publicou uma obra intitulada O sig- causas sociais. Um monge católico em
identificação “Ordem de Cistercienses no de Jonas (Jundiaí: Editora Mérito, uma ordem austera e rigorosa e ao
da Estrita Observância” (OCEO) ou 1954). De fato eram notas de seu diá- mesmo tempo uma das figuras mais
“Ordem dos Cistercienses Reforma- rio retratando o cotidiano do mostei- abertas ao diálogo inter-religioso. Re-
dos” (Ordo CisterciensiumReformato- ro e os primeiros anos como monge. A ligioso e místico, mas o depoimento
rum), que ficará mais conhecida pelo nota que abre o livro identifica Jesus, de todos os que o conheceram o retra-
termo “trapistas” – apenas um apeli- como o signo de Jonas, o signo de Sua tam como uma pessoa comum, sem
do, lembra Merton. própria ressurreição. Também reco- trejeitos religiosos e marcado pela
nhece a vida de todo monge como simplicidade, “como o peixe na água”,
Cistercienses marcada por este signo e identifica como se expressou para Cardenal9.
Em outra de suas obras, intitula- particularmente sua vida como “es- Profundamente enraizado na tra-
da Vida Silenciosa (Petrópolis: Vozes, pecialmente marcada por esse gran- dição mística e monástica, leitor dos
2002), recompõe o quadro dos Cis- de signo” e finaliza com esta expres- antigos e latinista, mas ao mesmo tem-
tercienses chamando atenção para são enigmática, que ao entrar para o po sintonizado com o melhor da teolo-
algumas de suas características: sim- mosteiro, se via para o seu destino na gia, da filosofia e da literatura de seu
plicidade e austeridade, renúncia e “barriga de um paradoxo”. tempo, inclusive em suas expressões
caridade como dos primeiros cristãos, Por um lado, se retomarmos a vanguardistas. Também a busca da so-
uma valorização ao desapego e esva- referência bíblica, lembremos que o lidão e do silêncio e ao mesmo tempo
ziamento interior, mais do que práti- tempo que Jonas passou na barriga da esforço de diálogo e comunhão. E por
cas ascéticas exteriores, recolhimen- baleia foi um tempo oportunizado por aí vai. Talvez o que mais cative nele e
to no mosteiro não como fuga e sim Deus para que não mais resistisse ao que encantou a todos seja exatamente
como expressão do amor a Deus e do chamado. De certa forma é o que acon- este Merton plural e multifacetado.
amor entre os irmãos. teceu a Merton. Por outro lado, pode
Dirá, “o único e principal assunto ser entendido no sentido da tradição IHU On-Line – Por que Merton é
do contemplativo é Deus e o amor a teológica que reconhece em Jesus e em considerado o escritor católico norte-
Deus” e, a partir desta experiência, o seus seguidores um sinal de contradição americano mais popular da história?
amor aos homens só cresce e se apro- para o mundo. Merton certamente se Sibélius Cefas Pereira – Merton
funda. Essa relação da contemplação via marcado por uma ambiguidade, por é aquele tipo de pessoa que poderí-
e do amor, tão característica ao pró- um lado o desejo imenso de dedicar-se amos classificar de um escritor nato.
prio Merton, ele já a reconhece como a Deus na opção radical da solidão mo- Escreveu muito, em diferentes estilos,
uma das marcas de São Bernardo. A nástica, mas por outro, sabendo que sobre variados temas e com muita
“ordem” ou obediência aí vivida, deve levava consigo essa ânsia e necessidade qualidade. Textos de espiritualidade
ser entendida mais como um princípio de tornar sua opção uma força de servi- que falavam para o cristão mas que
de orientação do que no sentido es- ço e compaixão ao mundo, o que traria
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treito de regra ou lei. consequências acentuadas sobre o sen- 9 Ernesto Cardenal: monge trapista nica-
Ressalte-se que o único mosteiro tido de ser monge no mundo atual. raguense, escritor e discípulo de Thomas
Merton. Ernesto Cardenal foi ministro
trapista – Ordem Cisterciense da Estri- da Cultura da Nicarágua no governo da
ta Observância (OCEO) – presente no IHU On-Line – O monge que tan- Frente Sandinista de Libertação Nacional
Brasil é o de Nossa Senhora do Novo to pregou contra a guerra retornou (FSLN). Hoje, está rompido com a enti-
dade. Citamos, entre as publicações de
Mundo, em Campo do Tenente, PR, morto aos EUA dentro de um bom- Cardenal, Evangelio de Solentiname (Sa-
cujo abade, Dom Bernardo Bonowit8, bardeiro das Forças Armadas norte- lamanca: Sígueme, 1975); La Revolución
americanas, que trazia de volta cor- Perdida (Madrid: Editorial Trotta, 2003);
ImHerzen der Revolution (Wuppertal:
8 Bernardo Bonowitz: monge trapista da Peter HammerVerlag, 2004); Antología
Ordem dos Cistercienses da Estrita Obser- poética (Rosario: HomoSapiensEdicio-
vância. De família judaica, converteu-se ram massacrados Argélia, concedeu uma nes, 2004); Catulo y Marcial (Santiago
ao Catolicismo na juventude. É mestre entrevista por telefone, acerca do filme de Chile: Ediciones Tácitas Ltda, 2004).
em Teologia pela Weston JesuitSchoolof- Homens e deuses, exibido pelo Instituto Cardenal nos enviou um texto sobre sua
Theology em Massachusetts. Na edição Humanitas Unisinos – IHU em 28-03-2012, direção espiritual com Thomas Merton,
387 da Revista IHU On-Line, de 26-03- intitulada A Igreja feita de homens e publicada na edição 133 da IHU On-Line,
2012, Dom Bernardo Bonowitz, que per- de deuses, e disponível em http://bit. de 21-03-2005. Acesse pelo link http://
tence à mesma Ordem de monges que fo- ly/1A30RlK. (Nota da IHU On-Line) bit.ly/ihuon133. (Nota da IHU On-Line)

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atingia a todos. Por outro lado escre-
“A vida ver mais próximos do Mistério em

Tema de Capa
veu num momento histórico que care- nosso tempo?
cia de vozes. Merton faz parte daque-
le arco de figuras públicas dos anos contemplativa Sibélius Cefas Pereira – Cada
tempo tem a sua agenda, os seus de-
1960 que de alguma forma traduziam
os anseios e sonhos da coletividade, não é nem pode safios. Talvez o nosso seja o da into-
lerância, seja o de uma presença fria
assim como seu contemporâneo Mar- e cruel da violência que permeia a
tin Luther King10. ser uma simples tudo. Seja também o do tráfico e, ain-
da, o do armamento. Alguns desafios
IHU On-Line – Como se inter-re- evasão, uma pura se aprofundam como o do desequilí-
lacionam a contemplação no tempo e brio ambiental, assim como as novas
na história na vivência monástica de negação, uma realidades – virtuais e reais – postas
Merton? num mundo pós-moderno inseguro,
Sibélius Cefas Pereira – Este tem fuga do mundo incerto, desorientado. Continuem ou
sido o meu tema principal de estudo. mudem os desafios, as suas intuições
A pergunta por si só já desconstrói um em face dos seus permanecem válidas em quaisquer
equívoco muito presente num certo dos contextos. Já que, para usar ca-
imaginário social, de que a experiên-
cia religiosa, sobretudo no contexto
sofrimentos” – tegorias mertonianas, o que está em
jogo sempre é a luta entre o falso eu
de uma opção monástica, represen-
taria uma fuga do mundo. E o que
Thomas Merton e o verdadeiro eu; trava-se uma luta
ontológica e existencial entre o ser e
ocorre é exatamente o contrário, a o não ser; entre a alienação, que im-
experiência contemplativa, a busca de tegrada, para suas alegrias ou sofri- pede a contemplação, e a comunhão.
uma vida plena em Deus, aprofunda mentos, nas estruturas econômicas, É preciso lembrar que a renúncia
o sentido do viver, adensa a espes- políticas e sociais do mundo contem- de si mesmo implicada na perspectiva
sura do tempo. Em termos objetivos, porâneo”.Alerta para a responsabilida- contemplativa da busca do encontro
o tempo de Merton é aquele tempo de social e para a necessidade de uma com Deus é uma renúncia de nos-
convulsivo, mas muito rico das déca- voz profética. E acrescenta: “sustento sas ilusões, nosso egoísmo, nossos
das de 1950 e 1960. apegos, e, se passa pelo tempo, ao
que a vida contemplativa do cristão
O contexto era o da Guerra Fria, mesmo tempo o ultrapassa. Pesso-
não é uma vida de abstração, de reces-
da corrida armamentista, da presença almente – dado o tipo de socieda-
so, que o concentre apenas nas essên-
de um racismo cruel, uma era pós-bar- de em que vivemos, marcada pela
cias ideais, nos valores absolutos, na
bárie. E foi, também, no confronto a opulência, pelo hiperconsumismo,
exclusiva eternidade. O cristianismo
este cenário, o tempo da luta pela paz, pela ambição econômica insaciá-
não pode rejeitar a história. Não pode
pelo desarmamento, pelos direitos ci- vel, pela espetacularização da vida
ser uma negação do tempo [...] A liber-
vis e também o tempo da busca con- e pelo desfile de egos gigantescos,
tracultural por uma nova sociedade. dade do cristão contemplativo não é
inclusive nas religiões, dentre tantas
Neste sentido, é encarado por Merton a liberdade em face do tempo, mas a
outras características – tendo a tirar
de forma dialética, é o lugar do encon- liberdade dentro do tempo”.
uma lição central em Merton, que é
tro, mas também do confronto. Afirma É uma perspectiva da contempla-
o convite para o desapego e o esva-
Merton: “A vida contemplativa não ção que convoca para o amor e a com- ziamento, para a simplicidade e para
é nem pode ser uma simples evasão, paixão, para o encontro e a comunhão. o desprendimento. Penso estar aí um
uma pura negação, uma fuga do mun- Não apenas alertou para esta necessi- aprendizado que pode vir da experi-
do em face dos seus sofrimentos, cri- dade como engajou-se efetivamente ência contemplativa e talvez uma sa-
ses, confusões e erros. Antes de tudo nessa luta através de seus textos, foi, ída enquanto modo de viver para os
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seria uma ilusão essa tentativa. Nin- poderíamos afirmar, um ativista social nossos impasses civilizatórios.
guém pode retirar-se completamente impulsionado por sua rica e sólida es-
da sociedade dos seus companheiros”. piritualidade. Para finalizar: trata-se de IHU On-Line – Como se dá a re-
Assim, “a própria comunidade uma perspectiva contemplativa huma- cepção do legado de Merton entre o
monástica está profundamente in- na e existencial, porque inseparável da catolicismo hoje?
própria vida; realista, na medida em Sibélius Cefas Pereira – Penso
10 Martin Luther King (1929-1968): pas- que convoca para uma maturidade es- que no momento presente Merton
tor e ativista político estadunidense. Per- piritual que não nega as lutas; também
tencente à Igreja Batista, tornou-se um começa a alçar um espaço mais com-
dos mais importantes líderes do ativismo uma perspectiva dinâmica, visto que patível com a sua grandeza tanto na
pelos direitos civis (para negros e mulhe- não há modelos prontos nem trajetos condição de escritor como de religio-
res, principalmente) nos Estados Unidos
e no mundo, através de uma campanha predefinidos, a experiência vai se cons- so. No caso do Brasil, por exemplo, re-
de não violência e de amor para com o truindo e se refazendo. conheço pelo menos duas vias e dois
próximo. É a pessoa mais jovem a rece- modos bem distintos na recepção da
ber o Prêmio Nobel da Paz, o que ocorreu
em 1964, pouco antes de seu assassinato. IHU On-Line – Em que sentido obra de Merton. Uma é aquela que
(Nota da IHU On-Line) essa contemplação nos inspira a vi- passou pela apresentação e mesmo

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mediação de religiosos, em especial dentre outros; também no Brasil exis- além de simplesmente estabele-
Tema de Capa
das ordens monásticas, incluindo-se te a atuação forte da Sociedade dos cer comunicação com as pessoas a
aí figuras laicas notórias como, por Amigos Fraternos de Thomas Merton distância. Suas cartas visavam abrir
exemplo, Alceu Amoroso Lima11. (SAFTM), que promove encontros, reti- novos contatos e manter os já exis-
E aqui, é preciso dar um realce ros e estudos sobre Merton. tentes, mantendo um arco invejável
ao papel que Ir. Maria Emmanuel de de interlocutores. Divulgar e receber
Souza e Silva12, OSB, teve na recepção IHU On-Line – Por que os tra- informações, o que não é pouco para
de sua obra no Brasil. Não só pelo fato balhos mais populares de Merton quem está recluso. Divulgar “prévias”
de ter sido a sua principal tradutora não são tomos teológicos den- de seus textos no sentido de receber
para a língua portuguesa, mas por sos, mas seus diários e escritos os primeiros impactos de um círculo
ter se tornado uma amiga de Thomas autobiográficos? mais íntimo de leitores, antes de uma
Merton. O mérito aí, desta primeira Sibélius Cefas Pereira – O itine- publicação mais pública, que, depen-
comunidade receptiva, é inestimável, rarium da vida contemplativa de Mer- dendo do tema e dado a sua posição
inclusive porque, não fora este grupo, ton é inseparável de sua obra textual. de monge contemplativo. E, como
a acessibilidade aos textos de Merton Merton faz parte desse grupo particu- quase sempre os retornos vinham,
pelo público brasileiro talvez tivesse lar de figuras cujas vidas são insepa- com diferenciadas considerações, as
demorado bem mais. ráveis de seus textos, o biográfico e o cartas acabaram por se tornar espaço
No entanto, a recepção aí pode textual se entrelaçando o tempo todo, importante da sua reflexão mais ela-
ter demarcado certa leitura de Mer- tanto em textos assumidamente auto- borada do que viria a se tornar, mais
ton, mais intraeclesial. O que pode biográficos – memórias, diários, cartas dia menos dia, uma nova obra.
ter acarretado um confinamento da e autobiografias propriamente ditas – Em algumas situações, a carta foi
sua figura e obra apenas ao universo quanto em textos, ainda que temáti- o meio por ele escolhido para uma to-
religioso e mais restritamente ao das cos ou ensaísticos, perpassados por mada pública de posição em relação a
ordens monásticas. O que não é o referências nitidamente existenciais. temas polêmicos como as denúncias
caso na sociedade norte-americana, No caso dos diários, por exemplo, contra as guerras ou o engajamento
onde Merton ocupa a posição de uma uma escrita fragmentada e com anota- na luta antirracial. Trata-se, portanto,
figura pública, de um escritor e poeta ções multifacetadas. Se falta ao diário de uma correspondência algo singular,
reconhecido e que sempre teve um a profundidade da escrita reelaborada também ela um testemunho de fé e
universo bastante amplo de leitores. É e enfim concretizada em obra acaba- o testamento de um verdadeiro itine-
este Merton percebido em sua maior da, sobra-lhe a vitalidade da escrita fei-
rarium. Há também meditações, inú-
amplitude que, recentemente, tem ta no calor da hora, no registro pontual
meros ensaios, organização de textos,
chegado a nós. O arco de seus leitores e cotidiano de sua experiência. Nesta
notas de cursos, poesia. Merton re-
tem se ampliado, tanto no horizonte “espontaneidade” do registro em es-
conhecia aí, nesses gêneros textuais,
de uma perspectiva do diálogo inter- boço é que talvez esteja sua maior qua-
sua maior qualidade enquanto escri-
religioso, como no horizonte ainda lidade, pois que no episódico e pontual
tor, mas penso também que é um tipo
maior do diálogo com a sociedade e de um cotidiano pode estar o índice de
de texto que encontra mais eco entre
com a cultura. um sentido maior. Assim, seus diários
os leitores, que possibilita falar a um
A pessoa de Merton e seus livros permitem uma aproximação serena e
círculo mais amplo de pessoas.
possuem uma notável atualidade com digna ao seu trabalho interior que ex-
este campo mais amplo e aberto de plora a experiência da solidão no diá-
IHU On-Line – Gostaria de acres-
uma espiritualidade ou religiosidade logo intenso com a natureza em sua
centar alguns aspectos que não fo-
menos institucionalizada. Tem sido re- exuberante paisagem, permeada pela
ram questionados?
editado, não apenas por editoras reli- leitura da escritura, pela oração, e tam-
Sibélius Cefas Pereira – É preciso
giosas, vem se tornando um tema mais bém pelo trabalho.
ressaltar também que a obra de Mer-
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presente no meio acadêmico com a No caso das cartas, as mesmas


ganharam inúmeros outros matizes ton, embora marcadamente religiosa,
orientação, por exemplo, com Faustino transcende em muito este universo.
Teixeira, na UFJF em Juiz de Fora, e com Dialoga com a cultura de seu tempo
Maria Clara Bingemer13, na PUC-RJ, outros, A experiência de Deus num corpo
de mulher (São Paulo: Loyola, 2002); e em todas as suas expressões: filosofia,
Deus amor: graça que habita em nós (São política, artes em todas as suas expres-
11 Alceu Amoroso Lima (1893-1983): crí- Paulo/Valência: Paulinas/ Siquem, 2003).
tico literário, professor, pensador e líder Confira entrevista concedida na edição sões, em especial com a literatura. No
católico brasileiro. Escrevia sob o pseu- 84 da IHU On-Line, de 17-11-2003, sobre caso da literatura em específico, res-
dônimo de Tristão de Ataíde. (Nota da a filósofa Simone Weil; na edição 103, de salte-se seu insistente reconhecimen-
IHU On-Line) 31-05-2004, sobre o Simpósio Internacio-
12 Maria Emmanuel de Souza e Silva: nal O Lugar da Teologia na Universidade to de que há uma inequívoca conver-
monja do Mosteiro da Virgem de Petró- do Século XXI. Na edição 121, de 01-11- gência entre a experiência religiosa e
polis, da Ordem de São Bento. Amiga 2004, sobre o sentido cristão da morte.
e correspondente de Merton, além da Maria Clara é autora do segundo número
a experiência estética. Para finalizar
sua principal tradutora. (Nota da IHU dos Cadernos Teologia Pública, Teologia diria que Thomas Merton é o tipo de
On-Line) e Espiritualidade. Uma leitura teológico- companheiro de viagem que nos for-
13 Maria Clara Bingemer: teóloga e de- espiritual a partir da realidade do Mo-
cana do Centro de Teologia e Ciências vimento Ecológico e Feminista. (Nota da talece no caminhar e não nos deixa
Humanas da PUC-Rio. É autora de, entre IHU On-Line) esmorecer da esperança.

56 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


A grande compaixão em Merton

Tema de Capa
– Os nexos entre Cristianismo e
Zen-budismo
Norma Ribeiro Nasser Salomão explora as dúvidas e contradições do místico
cisterciense que buscou o orientalismo para encontrar Deus

Por Márcia Junges e Andriolli Costa

E
m 1915 nasce Thomas Merton, monge Fascinado pelo orientalismo desde a vida
trapista da Ordem dos Cistercienses e pré-monástica, é do contato com mestres e
um dos mais recentes expoentes da mís- seguidores desta filosofia que ele se inspira
tica nupcial. Dono de uma produção prolífica para vivenciar esta espiritualidade oriental.
que aproximava Cristianismo e Zen-budismo, o Merton aspirou ao Oriente durante muitos
monge construiu para si uma imagem inquie- anos, esperando encontrar “no retorno para
tante: tal qual Jonas na baleia, Merton vivia na casa o encontro consigo mesmo que, em úl-
barriga de um paradoxo. Ainda que contempla- tima análise, representava o grande salto
dor do silêncio e da interioridade, tornou-se em direção ao seu próprio abismo interior”.
um dos mais conhecidos escritores católicos Como defende a professora, Thomas foi um
dos Estados Unidos. Encontrou no Zen-budis- buscador do diálogo, de si mesmo e de Deus.
mo o caminho para encontrar o próprio Cris- “As suas palavras algumas vezes eram seme-
tianismo e chegou até mesmo a se apaixonar lhantes às de um oriental, mas em seu peito
por uma enfermeira que conheceu em uma es- ele trazia o crucifixo, e o seu breviário em seu
tadia no Hospital. Em todas estas experiências, pensamento.” Merton faleceu em 10 de de-
ressalta-se, Merton buscava a Deus. zembro de 1968, logo depois de sua primeira
“Tanto o Zen-budismo quanto o Cristianis- palestra em Bancoc. Morreu ao sair do banho,
mo apresentam propostas de libertação para ao encostar no fio desencapado de um venti-
o ser humano. Estas colocam na superação do lador defeituoso.
desejo egocêntrico que está relacionado ao Norma Ribeiro Nasser Salomão é psicólo-
apego a realização de uma experiência nova e ga graduada pelo Centro de Ensino Superior
libertadora do sofrimento”, destaca em entre- de Juiz de Fora (CES-JF) e jornalista pela Uni-
vista por e-mail à IHU On-Line a pesquisadora versidade Federal de Juiz de Fora, bem como
Norma Ribeiro Nasser Salomão – que estuda especialista e mestre em Ciência da Religião
as relações de Merton com a filosofia orien- pela mesma universidade. Doutoranda em
tal. “O olhar de Thomas Merton desde sem- Ciência da Religião pelo Programa de Pós- www.ihu.unisinos.br
pre foi sensibilizado pela vida cotidiana, a sua graduação da Universidade Federal de Juiz
via mística foi realizada através da comunhão de Fora, estuda sob orientação de Faustino
com a natureza. O seu contato com o Zen ape- Teixeira a relação de Thomas Merton com o
nas alargou esta perspectiva já existente em Zen-budismo.
seu interior.” Confira a entrevista.

IHU On-Line – Enquanto pa- mo e tradições do Oriente. O livro Mer- Norma R. N. Salomão – A aproxi-
dre católico, como se deu a aproxi- ton na intimidade – Sua Vida em Seus mação de Merton com o Zen-budismo
Diários (Rio de Janeiro: Fisus, 2001) é
mação de Thomas Merton1 com o uma seleção extraída dos vários volumes
Zen-budismo? do diário de Thomas Merton, autor de li- borador de Merton. Na matéria de capa
vros famosos como A Montanha dos Sete da edição 133 da IHU On-Line, de 21-03-
Patamares (São Paulo: Itatiaia, 1998) e 2005, publicamos um artigo de Ernesto
1 Thomas Merton (1915-1968): monge Novas sementes de contemplação (Rio de Cardenal, discípulo de Merton, que fala
católico cisterciense trapista, pioneiro Janeiro: Fisus, 1999). O livro foi editado sobre sua relação com o monge. (Nota da
no ecumenismo no diálogo com o budis- por Patrick Hart, também monge e cola- IHU On-Line)

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 57


ocorreu em três momentos: o período siderado por muitos autores como o são ampliada e capaz de captar esta
Tema de Capa
pré-monástico, o período monástico e grande responsável pela divulgação do “presença” na simplicidade. O olhar
o período asiático. O interesse de Mer- Zen no Ocidente. Este mestre japonês, de Thomas Merton desde sempre
ton pelo Budismo iniciou-se no período autor de vários livros sobre o Zen, foi foi sensibilizado pela vida cotidiana,
pré-monástico, quando ele ainda era de grande importância neste contato. a sua via mística foi realizada através
um jovem estudante de OakhamScho- Trocaram correspondências de 1959 da comunhão com a natureza. O seu
ol, na Inglaterra (1928-1932). Em 1937, até 1965 e tiveram um único encontro contato com o Zen apenas alargou
durante seus estudos na Universidade pessoal que marcou profundamente o esta perspectiva já existente em seu
de Columbia, em Nova York, ele leu trapista pela força de sua presença. interior. Esta espiritualidade oriental
Fins e meios, de Aldous Huxley2, que O terceiro momento de aproxi- também está profundamente imbuí-
o levou a buscar livros sobre a mística mação com o Zen e com o Budismo da do sentido de religiosidade da na-
oriental na biblioteca da Universidade. de maneira geral, especialmente o tureza, não como uma visão român-
Leu inclusive os quatro grandes vo- Tibetano, ocorreu no período asiá- tica, mas em seu aspecto concreto e
lumes do padre jesuíta Wieger3, que tico, quando Merton partiu para o real. No Zen, assim como em Merton,
eram textos orientais traduzidos para Oriente em busca de novos conheci- natureza/despertar são inseparáveis,
o inglês. Até que encontrou o monge mentos e vivências. Em seus estudos estas palavras de seu diário mostram
hindu Brahmachari4, que o induziu a ler sobre o Zen, Merton enfrentou vários o quanto ela [a natureza] era para ele
os livros escritos por místicos cristãos, desafios. Arriscou-se no diálogo inter- a própria presença divina: “[...] aqui
como AsConfissões de Santo Agostinho -religioso pelo viés da experiência na em cima, nas matas, vê-se o Novo
e A imitação de Cristo. qual qualquer comparação entre uma Testamento: quer dizer, o vento vem
A segunda aproximação, voltada religião e outra parece, a princípio, por entre as árvores e você o respira.”
para o Zen-budismo especificamente, absurda. Como elucidou, não é pos- O monge não praticou o Zen em seu
ocorreu no período monástico. Após sível compreender o Zen nos parâ- sentido tradicional ou monástico, mas
oito anos de total dedicação ao Cristia- metros de uma reflexão teológica ou o viveu à sua maneira por sua própria
nismo, Merton tem conhecimento da filosófica ocidental. Como cristão, ele experiência de contemplação.
obra de DaisetsuTeitaro Suzuki5, con- procurou vivenciar esta espiritualida-
de oriental, não se contentando com IHU On-Line – A viagem de Mer-
2 Aldous Huxley (Aldous Leonard Hux- o conhecimento intelectual. Escreveu ton ao subcontinente asiático e ao
ley) (1894-1963): romancista inglês. Vi- dois importantes livros sobre o tema: sudoeste da Ásia, durante a qual ele
veu a maior parte dos anos 1920 na Itália
fascista de Mussolini, que inspirou parte Místicos e Mestres Zen (São Paulo: descreveu uma experiência mística
dos sistemas autoritários retratados em Martins Fontes, 2006 [1961])e Zen e em frente a uma estátua de Buda no
suas obras. Huxley produziu um total de as aves de rapina (São Paulo: Cultrix, Ceilão (agora Sri Lanka), deixou al-
47 livros, dentre os quais a obra-prima
Admirável Mundo Novo (São Paulo: Glo- 2000 [1968]). Entretanto, encontra- guns católicos escandalizados e aju-
bo, 2004), escrita em 1931. Os temas mos também muito material budista dou a aumentar o rumor de que ele
nela abordados remontam grande parte nos sete volumes de seus diários e em
de suas preocupações ideológicas como
planejava deixar o monastério ou a
a liberdade individual em detrimento do vários de seus poemas. igreja. Por outro lado, seu posiciona-
autoritarismo do Estado. (Nota da IHU mento religioso pode ser interpreta-
On-Line) IHU On-Line – Que nexos aproxi-
3 León Wieger (1856-1933): jesuíta fran-
do a partir do diálogo inter-religioso?
cês, médico, teólogo e estudioso da cul- mam esses dois credos e como se deu Por quê?
tura chinesa. (Nota da IHU On-Line) essa simbiose em sua vida e mística? Norma R. N. Salomão – Thomas
4 MahanambrataBrahmachari (1904- Norma R. N. Salomão – Em pri-
1999): monge hindu, iogue da ordem
Merton partiu em sua peregrinação ao
Mahauddharan. Filósofo, escritor e mes- meiro lugar tanto o Zen-budismo continente asiático em busca de novos
tre religioso. Enviado para representar o quanto o Cristianismo apresentam conhecimentos e principalmente com
grupo MahanamSampradaya nos Estados propostas de libertação para o ser
Unidos, obteve o doutorado em Teologia
o objetivo de compartilhar experiên-
humano. Estas colocam na supera- cias com os monges orientais. Entre-
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Vaishnava na Universidade de Chicago.


Lá teve diversas discussões com Thomas ção do desejo egocêntrico que está tanto, para escândalo de alguns cató-
Merton, e o incitou – para a surpresa de relacionado ao apego a realização de
Merton – a explorar sua própria tradição e
licos, ouso dizer que ele foi além do
espiritualidade cristã ao invés de apren- uma experiência nova e libertadora diálogo inter-religioso ao viver a expe-
der mais sobre o hinduísmo. (Nota da IHU do sofrimento. Diferente em se posi- riência mística na Gruta de Gal Vihara,
On-Line) cionar a respeito de Deus, o Zen não
5 DaisetsuTeitaro Suzuki (1870–1966): ao se deparar com as três monumen-
famoso autor japonês de livros sobre Bu- afirma nem nega sua existência, ape- tais estátuas dos Budas esculpidas na
dismo, Zen e JodoShinshu, responsável, nas cala-se quanto a ela. Esse silêncio pedra por homens santos. Apesar de
em grande parte, pela introdução destas não é sinônimo de ateísmo ou falta
filosofias no ocidente. Suzuki também ser uma vivência um tanto paradoxal
foi um prolífico tradutor de literatura de religiosidade, mas antes disso este para um católico trapista, nada indica
chinesa, japonesa e sânscrita. Suzuki “Deus budista” aparece de uma forma que ele tivesse intenção de deixar o
passou vários períodos longos ensinan- alusiva aos olhos de quem tem a vi-
do ou dando palestras em universidades mosteiro ou a igreja; ele foi um cris-
do ocidente e devotou vários anos a seu tão até o final de sua vida. Através da
professorado numa universidade budis- zuki e publicado na edição 458 da revista sensibilidade de místico, sua visão foi
ta japonesa, Otani. Confira o artigo de IHU On-Line, de 10-11-2014, disponível
autora de Faustino Teixeira, intitulado em http://bit.ly/1DFIPtR. (Nota da IHU definitivamente tocada pela espiritua-
A presença de um mestre: Daisetz T. Su- On-Line) lidade budista, a sua percepção foi di-

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latada no instante de sua visita a este interesses eram monásticos e místi- Norma R. N. Salomão – Thomas

Tema de Capa
sítio sagrado da Ásia, que ele chamou cos. Esta impressão bastante positiva Merton nos deixou um imenso legado,
de “jardim zen”. Esta experiência vivi- levou Merton a voltar sua atenção, a sua obra de grande riqueza tem sido
da uma semana antes de sua morte princípio focada no Budismo Mahaya- incansavelmente estudada e fonte de
foi considerada por ele indescritível na, especialmente o Zen, em direção direção espiritual tanto para os religio-
em sua amplitude, mas foi narrada ri- ao Budismo Tibetano. sos quanto para o leitor comum que
camente em seu Diário da Ásia (Belo busca um sentido mais profundo para
Horizonte: Editora Vega, 1978 [1968]). IHU On-Line – Sua oração mais a vida. Como escritor e no exemplo de
famosa começa com “Meu Senhor sua trajetória, vemos um homem mui-
IHU On-Line – Qual foi o impacto Deus, eu não tenho nem ideia para tas vezes com conflitos e contradições,
de seu encontro com o Dalai Lama? onde estou indo”. Como sua humani- mas que viveu a experiência direta de
Norma R. N. Salomão – A pre- dade, suas dúvidas, mas suas buscas Deus no contato com as coisas mais
sença do líder espiritual do Tibete Da- de sentido constante perpassam sua simples da vida cotidiana. Merton foi
lai Lama6, na ocasião um jovem alto trajetória mística? um homem que soube unir a contem-
e forte de 33 anos, provocou grande Norma R. N. Salomão – Justa- plação com a ação. Mesmo com toda
impacto em Thomas Merton. Eles mente no âmago de seu próprio pa- a censura sofrida pela própria Ordem
reuniram-se três vezes na região mon- radoxo e na simplicidade da vida no Cisterciense, ele pregou a favor da paz,
tanhosa de McLeodGanji, um subúrbio mosteiro, com todos os seus conflitos contra o racismo, combateu a Guerra
de Dharamsala, na Índia, onde o gover- é que Thomas Merton viveu a experi- Fria e as injustiças sociais, mas tam-
no tibetano no exílio tem sua sede. Os ência de Deus. Nesta oração vemos o bém não deixou de viver seu amor pela
encontros foram longos e proporciona- signo de um buscador imerso na ima- natureza no Mosteiro de Getshemani.
ram uma experiência rica e fraterna na nência da vida, um místico contem- Este também foi um grande legado – a
qual debateram sobre diversos temas. plativo e ao mesmo tempo totalmen- sua visão não antropocêntrica do mun-
O primeiro realizou-se no dia 4 de no- te implicado na ação social. Merton do, a natureza da qual ele se sentia
vembro de 1968, onde conversaram
viveu com profundidade a sua própria parte. Merton tinha uma visão não du-
sobre religião, filosofia e meditação, e
humanidade, até mesmo o amor in- alista, via nas montanhas, nos animais,
Dalai Lama o aconselhou a estudar a fi-
tenso e conflituoso que se permitiu vi- na exuberância das matas, enfim, em
losofia Madhyamaka7 de Nagarjuna e a
ver três anos antes de sua morte com toda a criação, a voz e os ensinamentos
consultar mestres tibetanos qualifica-
a enfermeira M.11 o fez retomar a sua divinos. Mas que infelizmente 46 anos
dos para unir o estudo à prática.
verdadeira vocação de religioso. após sua morte o ser humano ainda
A segunda audiência com o Dalai
O seu coração já estava possuído não compreendeu que a separação
Lama foi dia 6 de novembro de 1968,
pela centelha divina, como ele afir- entre nós e a natureza é ilusória. E a
onde conversaram sobre epistemolo-
mou em seu diário “[...] me casei com consequência desse equívoco é desas-
gia, meditação e samadhi8. A terceira
audiência foi considerada por Mer- o silêncio da floresta...”, a sua estreita trosa, o ser humano destrói a sua pró-
ton, sob certos aspectos, a melhor ligação com a natureza revelava as- pria casa.
delas; trocaram ideias sobre monas- pectos intrinsicamente relacionados
ticismo e política, conversaram sobre com sua trajetória mística. Esta para IHU On-Line – “Eu estou indo
o funcionamento da mente, prajna9, o monge estava indubitavelmente em para casa, onde eu nunca estive com
sunyata10. Enfim, tornaram-se ami- conexão com o despertar de sua espi- este corpo, neste traje lavável”, escre-
gos, Merton declarou que seus reais ritualidade. Nesta oração, Merton diz veu Merton quando ia de São Fran-
não ter ideia para onde estava indo, cisco ao Oriente, para de lá só voltar
6 Dalai Lama: líder político do Tibete. mas ele seguiu em sua via de manei- morto. Em que sentido essa viagem
Dalai significa “Oceano” em mongol e ra inquestionável, sentia-se chamado representava muito mais do que um
“Lama” é a palavra tibetana para mes- pela voz de Deus, que segundo ele
tre, guru. O título “Oceano de Sabedo-
destino, mas uma escolha, um en-
era um convite a abandonar-se até de contro com seu próprio interior?
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ria” é dado pelo regime mongoliano.
(Nota da IHU On-Line) si mesmo. Na intimidade desta con- Norma R. N. Salomão – Tho-
7 Madhyamaka: refere-se principalmen- vivência ele sabia o que buscava e o
te ao budismo mahayana, fundado por
mas Merton afirmou em setembro
Nagarjuna. De acordo com esta escola de quanto isso era inacessível a qualquer de 1968 na Carta Circular aos Ami-
pensamento, todos os fenômenos são va- palavra ou discurso. gos que a verdadeira viagem na vida
zios de “substância” ou “essência”. (Nota
da IHU On-Line) era interior: “[...] uma questão de
8 Samadhi: última etapa do sistema ioga, IHU On-Line – Quais são as prin- crescimento, aprofundamento e en-
quando se atinge a suspensão e compre- cipais interpelações de Merton aos trega sempre maior à ação criadora
ensão da existência e a comunhão com o seus leitores contemporâneos?
universo. (Nota da IHU On-Line) do amor e da graça em nossos cora-
9 Prajna: termo sânscrito que significa ções”. O monge viveu por muitos anos
sabedoria, o mais elevado conhecimento. 11 Merton abandona a vida monástica a expectativa desse encontro com o
(Nota da IHU On-Line) pouco tempo depois de ser arrebatado
10 Sunyata: vazio, abertura, vácuo no por um caso amoroso com a enfermeira Oriente, um lugar tantas vezes visita-
budismo. Conceito com múltiplos signifi- Margie Smith, de 25 anos. Proibido de do por ele em sua imaginação e von-
cados. Na escola Madhyamaka, dizer que manter contato com ela, Merton recebeu tade até que finalmente ele conseguiu
um objeto é “vazio” significa dizer que permissão de deixar a abadia para uma
ele possui origem dependente. (Nota da viagem ao Extremo Oriente em 1968. realizar em sua peregrinação asiática.
IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) Merton disse que buscava encontrar

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 59


mahakaruna, a grande compaixão. O IHU On-Line – Qual o significa- desde criança Merton estava familia-
Tema de Capa
retorno para casa simbolizava o en- do da montanha na vida de Merton e rizado com a arte, suas preocupações
contro consigo mesmo que, em úl- como a visão de Kanchenjunga foi por e ferramentas. Na sua relação com o
tima análise, representava o grande ele referida em seu Diário da Ásia? desenho, observa-se o jovem Merton,
salto em direção ao seu próprio abis- Norma R. N. Salomão – Merton na faculdade, com seus cartuns sexy
mo interior. Thomas foi um buscador sempre viveu rodeado por monta- e cheios de humor. Depois, com sua
do diálogo, de si mesmo e de Deus. As nhas. Desde a sua infância até o final entrada para o mosteiro, vieram os
suas palavras algumas vezes eram se- de sua vida, ao todo foram sete: Ca- desenhos de bico de pena e pincéis,
melhantes às de um oriental, mas em nigou, The Calvarie, Brooke Hill, The retratando a Virgem Maria, monges,
seu peito ele trazia o crucifixo, e o seu Pasture, MountPurgatory, MountO- crucificação e outros temas piedosos.
breviário em seu pensamento, os “[...] livet e Kanchenjunga. A sua famosa Na década de 1950, marcada pela
mantras cristãos e profundo sentido autobiografia também abarca o mes- vinda do Zen ao Ocidente, o monge
de destino, de estar enfim no meu mo tema, A montanha dos sete pa- iniciou sua admiração pela arte cali-
verdadeiro caminho depois de anos tamares, publicada pela primeira vez gráfica Zen, que, segundo ele, revela-
de espera, inquirição e perambular”. em 1948, em que ele faz uma alusão va uma liberdade não transcendente,
Merton foi para o Oriente beber nas à Divina Comédia de Dante Alighieri12 que faz alusão ao real, ao que não
antigas fontes de tradição monástica, (1265-1321) em suas incursões ao pode ser dito. De fato, esse momento
esta foi a sua escolha, na realidade ele mundo espiritual. Sem dúvida esta apenas consolidará o seu gosto estáti-
continuava a jornada espiritual que foi uma presença marcante na vida co pela arte asiática, pois, no contato
havia abraçado ao entrar para o mos- do místico. Na sua viagem ao Oriente com o amigo de faculdade, o pintor
teiro de Getshemani. ele foi despertado pela visão “impo- americano Ad Reinhardt, essa prefe-
nente e linda” da sétima montanha rência já era manifesta.
IHU On-Line – Por que Merton Kanchenjunga – a Grande Montanha Merton era especialmente encan-
foi silenciado pelos trapistas quando –, sua consciência expandiu-se ao im- tado com a pintura paleolítica das ca-
escreveu sobre a paz durante a Guer- pacto de sua paradoxal beleza numa vernas e também com os ícones bizan-
ra Fria? rica descrição contida em seu Diário tinos e russos. Segundo ele, os pintores
da Ásia: “[...] A total beleza da mon- das cavernas não se preocupavam com
Norma R. N. Salomão – A partir
tanha só aparece quando se concorda a composição, nem com a “beleza”,
da década de 1960, os escritos e pre-
com o paradoxo impossível: ela é e mas sim com a visão direta, pura; no
ocupações de Merton se voltavam
não é. Quando nada mais é preciso di- bisão pintado estava a sua força vital
em direção ao mundo, a temática da
zer, a fumaça das ideias se desvanece singular e peculiar encarnada. Essa vi-
Guerra Fria e os riscos da guerra nu-
e a montanha é VISTA”. Merton queria são pura é associada por ele aos ide-
clear eram temas recorrentes em seus
tirar fotografias da montanha sagrada ogramas orientais que representariam
diários e cartas. Naquela época não
do povo do Himalaia, entretanto ele esta mesma força, que ele considerou
era comum haver posicionamentos
como vida transformada em ato, algo
públicos de religiosos, muito menos encontrou muito mais do que isso. No
inacessível à reflexão e análise.
de monges sobre questões políticas e Zen-budismo a montanha é conside-
Inúmeros foram os seus escritos
sociais, até mesmo falar sobre a paz rada o lugar dos sábios e santos, ao
e poemas alusivos ao Zen. Destaca-se
poderia despertar suspeitas de comu- mesmo tempo ela é o próprio corpo
entre eles a longa sequência de 28 se-
nismo. A Igreja Católica, nessa ocasião, de Buda, assim como para Merton a
ções numeradas, com prólogo e epí-
manifestava seu apoio ao sistema po- montanha foi seu mestre e ao vê-la
logo, meio em prosa, meio em verso,
lítico norte-americano e suas posições “puramente branca” ele ouve uma
que escreveu em Cablestothe Ace, or
em relação ao mundo, daí Merton ter voz que lhe diz: “[...] Há outro lado da
familiar LiturgiesofMisunderstanding.
sofrido a censura dos trapistas. O mon- montanha”. O monge então começava
Considerado um antipoema, nele vê-se
ge passou a viver um período difícil de a olharpelo lado do Oriente.
o discurso de um poeta plenamente
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conflitos internos e com uma necessi- afinado com a narrativa Zen, ao falar
dade cada vez mais forte de se mani- IHU On-Line – Qual foi a impor-
da forma, vazio, perfeição, imperma-
festar contra a guerra e a favor da paz. tância e influência do Zen na arte de
nência – a coincidência da forma mo-
Ele não se conformava com o silêncio Merton?
mentânea e o eterno nada. Seu com-
por parte dos católicos, clérigos e lei- Norma R. N. Salomão – Filho de
promisso era com o silêncio e contra
gos quanto ao perigo de uma guerra um casal de artistas, o pai um neoze-
os excessos, inclusive de interpretação,
iminente e continuava a escrever sobre landês e a mãe uma americana que
tanto na escrita como nos desenhos.
o tema. Em 1966 ele publicou trechos se encontraram pela primeira vez Nessa obra, em uma de suas seções,
de seus diários com o título Reflexões em um estúdio de pintores em Paris, ele fala sobre o nada e a Criação, o
de um Espectador Culpado, onde ma- deserto e o vazio, onde seu lugar era
12 Dante Alighieri (1265-1321): escritor
nifesta sua angústia diante da violência italiano, cuja principal obra é A Divina o nenhum lugar. A partir desse vazio
e da censura, mas principalmente em Comédia. Leia também a edição nº 65 nasce a arte como expressão da visão
suas cartas constata-se a sua revolta dos Cadernos Teologia Pública, O livro direta, sem mediações. Esse parece ser
de Deus na obra de Dante, disponível em
contra o Abade Superior da Ordem por http://bit.ly/ihuteo65. (Nota da IHU o ponto central da arte para Merton e
exigir o seu silêncio. On-Line) nas expressões zen-budistas.

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Baú da IHU On-Line

Tema de Capa
Confira outras edições da IHU On-Line cujo tema de capa aborda assuntos relacionados ao
pensamento místico.

• Delicadezas do Mistério. A mística hoje.IHU On-Line nº 133, de 21-03-2005, disponível emhttp://bit.ly/ihuon133.


• Teilhard de Chardin – Cientista e místico. IHU On-Line nº 140, de 09-05-2005, disponível em http://bit.ly/ihuon140.
• Rûmî. O poeta e místico da dança do Amor e da Unidade. IHU On-Line nº 222, de 04-06-2007, disponível em
http://bit.ly/ihuon222.
• Gerard Manley Hopkins: poeta e místico. Do cotidiano imediato ao plano cósmico.IHU On-Line nº 282, de 17-11-2008,
disponível em http://bit.ly/ihuon282.
• Sabedoria, mística e tradição: religiões chinesas, indianas e africanas. IHU On-Line nº 309, de 28-09-2009, disponível
emhttp://bit.ly/ihuon309.
• Filosofia, mística e espiritualidade. Simone Weil, cem anos. IHU On-Line nº 313, de 03-11-2009, disponível em
http://bit.ly/ihuon313.
• O feminino e o Mistério. A contribuição das mulheres para a Mística.IHU On-Line nº 385, de 19-12-2011, disponível em
http://bit.ly/ihuon385.
• Mística. Força motora para a gratuidade, compaixão, cortesia e hospitalidade.Cadernos IHU em formação nº 31, dis-
ponível em http://bit.ly/ihuem31.
• Mística, estranha e essencial. Secularização e emancipação. IHU On-Line nº 435, de 16-12-2013, disponível em
http://bit.ly/1fjohrc.

Confira outras edições da IHU On-Line cujo tema de capa aborda assuntos relacionados
à religião.
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• Os rumos da Igreja na América Latina a partir de Aparecida. Uma análise do Documento Final da V Conferência.IHU
On-Line nº 224, de 20-06-2007, disponível em http://www.bit.ly/ihuon224.
• Francisco. O santo. IHU On-Line nº238, de 01-10-2007, disponível em http://www.bit.ly/ihuon238.
• Projeto de Ética Mundial. Um debate. IHU On-Line nº 240, de 22-10-2007, disponível em http://www.bit.ly/ihuon240.

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 61


• O novo ateísmo em discussão.IHU On-Line nº245, de 26-11-2007, disponível em http://www.bit.ly/ihuon245.
Tema de Capa
• Jesus e o abraço universal.IHU On-Line nº 248, de 17-12-2007, disponível em http://www.bit.ly/ihuon248.
• Lutero. Reformador da Teologia, da Igreja e criador da língua alemã.IHU On-Line nº 280, de 03-11-2008, disponível em
http://www.bit.ly/ihuon280.
• Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II.IHU On-Line nº 297, de 15-06-2009, disponível em http://www.bit.ly/ihuon297.
• As religiões da profecia: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo.IHU On-Line nº 302, de 03-08-2009, disponível em
http://www.bit.ly/ihuon302.
• O futuro que advém. A evolução e a fé cristã segundo Teilhard de Chardin. IHU On-Line nº 304, de 17-08-2009, dispo-
nível em http://www.bit.ly/ihuon304.
• Novas comunidades católicas: a busca de espaço. IHU On-Line nº 307, de 08-09-2009, disponível em
http://www.bit.ly/ihuon307.
• Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades. IHU On-Line nº 308, de 14-09-2009,
disponível em http://www.bit.ly/ihuon308.
• Para onde vai a Igreja, hoje?IHU On-Line nº 320, de 21-12-2009, disponível em http://www.bit.ly/ihuon320.
• Pentecostalismo no Brasil. Cem anos. IHU On-Line nº 329, de 17-05-2010, disponível em http://www.bit.ly/ihuon329.
• Matteo Ricci no Império do Meio. Sob o signo da amizade.IHU On-Line nº 347, de 18-10-2010, disponível em
http://www.bit.ly/ihuon347.
• Espiritismo: um fenômeno social e religioso.IHU On-Line nº 349, de 01-11-2010, disponível em http://www.bit.ly/ihuon349.
• MateretMagistra, 50 anos: Os desafios do Ensino Social da Igreja hoje.IHU On-Line nº 360, de 09-05-2011, disponível
em http://www.bit.ly/ihuon360.
• O ecumenismo hoje. Uma reflexão teoecológica.IHU On-Line nº 370, de 22-08-2011, disponível em http://www.bit.ly/ihuon370.
• J. B. Libânio. A trajetória de um teólogo brasileiro. Testemunhos. IHU On-Line nº 394, de 28-05-2012, disponível em
http://www.bit.ly/ihuon394.
• A grande transformação do campo religioso brasileiro.IHU On-Line nº 400, de 27-08-2012, disponível em
http://www.bit.ly/ihuon400.
• Concílio Vaticano II. 50 anos depois. IHU On-Line nº 401, de 03-09-2012, disponível em http://www.bit.ly/ihuon401.
• Igreja, Cultura e Sociedade.IHU On-Line nº 403, de 24-09-2012, disponível em http://www.bit.ly/ihuon403.
• Congresso Continental de Teologia. Concílio Vaticano II e Teologia da Libertação em debate. IHU On-Line nº 404, de
05-10-2012, disponível em http://www.bit.ly/ihuon404.
• Religiões e religiosidades, hoje. Significados e especificidades. IHU On-Line nº 407, de 05-11-2012, disponível em
http://www.bit.ly/ihuon407.
• Sementes ao vento: a diáspora das religiões brasileiras no mundo. IHU On-Line nº424, de 24-09-2013, disponível em
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• O Concílio Vaticano II como evento dialógico. Um olhar a partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo. IHU On-Line nº 425, de
01-07-2013, disponível em http://bit.ly/ihuon425.
• Laicidade e secularização. A fratura entre os reinos de Deus e de César. IHU On-Line nº 426, de 02-09-2013, disponível
em http://bit.ly/ihuon426.
• Companhia de Jesus. Da Supressão à Restauração. IHU On-Line nº 458, de 10-11-2014, disponível em
http://bit.ly/1B0uNOv.
www.ihu.unisinos.br

• Karl Rahner. A busca de Deus a partir da contemporaneidade. IHU On-Line nº 446, de 16-06-2014, disponível em
http://bit.ly/1yyoG0I.

LEIA OS CADERNOS TEOLOGIA PÚBLICA


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62 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460
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Destaques
da Semana

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EDIÇÃO 000 | SÃO LEOPOLDO, 00 DE 00 DE 0000 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000 63
Destaques On-Line
Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 08-12-2014 a 16-12-2014, disponíveis nas Entrevistas do Dia
do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

A omissão silenciosa e o avanço COP-20: o desafio é a mudança


da precarização trabalhista: as sistêmica e não a climática
perspectivas do governo Dilma em 2015
Entrevista com Luciano Frontelle,
Entrevista com Giovanni Alves, professor empreendedor social, faz parte do
da Faculdade de Filosofia e Ciências do coletivo de jovens Clímax Brasil
Departamento de Sociologia e Antropologia da Publicado em: 12-12-2014
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Acesse o link http://bit.do/VreN
Filho – Unesp
Segundo Frontelle, “nesta semana saiu um texto
Publicado em: 16-12-2014 rascunho tanto do conjunto das posições dos países
Acesse o link http://bit.ly/1wVoFsS para Lima, quanto um rascunho de negociação para
Paris. Isso já dá um novo ar para as negociações
As dificuldades do próximo governo Dilma e ajuda a entender que caminho os países estão
estão diretamente relacionadas com o cenário tomando”. Entretanto, pontua, “ainda é preciso
internacional, que ainda se recupera das esperar mais um pouco para saber que aspectos
consequências da crise econômica de 2008. Diante do texto vão ficar e quais serão excluídos”. Informa,
da instabilidade externa, a meta do segundo ainda, que as negociações tiveram poucos avanços,
mandato será “crescer o PIB”, já que o crescimento mas os países já chegaram ao consenso acerca de
da economia é a condição necessária para dar estabelecer 2050 como meta para neutralizar as
continuidade à política de aumento progressivo do emissões de gás carbônico, e ainda estão negociando
salário mínimo, à manutenção dos empregos e à metas de earlyaction (ação antecipada), que devem
ampliação das políticas sociais. ser postas em prática até 2020 e 2030.

Relatório da Comissão da Verdade: Mineração na América Latina: um


“Inaugura-se um novo tempo de diagnóstico continental dos estragos
discussão e de debate” ecológicos, econômicos e sociais
Entrevista com Jair Krischke, ativista dos direitos Entrevista com AlírioCaceres Aguirre, professor
humano, fundador do Movimento de Justiça e do Centro de Formación Teológica de
Direitos Humanos do Rio Grande do Sul laPontificiaUniversidadJaveriana de Bogotá
www.ihu.unisinos.br

Publicado em: 15-12-2014 Publicado em: 11-12-2014


Acesse o link http://bit.ly/1BI1i4j Acesse o link http://bit.ly/12xZXk8
“O relatório da Comissão da Verdade ficou “O problema ecológico não é só biológico, técnico
devendo alguma coisa à sociedade brasileira, pois ou político; é um assunto de cultura e, como tal,
não aprofundou alguns temas como deveria ter está inscrito em um paradigma de civilização. Este
aprofundado”, comenta Jair Krischke. Na avaliação paradigma baseia-se na economia de materiais
dele, a operação Condor, por exemplo, “deveria ter (extrair, transformar, comercializar, consumir,
sido melhor avaliada. O relatório diz que não há descartar)”. A reflexão é de AlírioCaceres Aguirre,
elementos suficientes para provar a participação do ecoteólogo, que na semana passada participou
Brasil na operação, mas eu posso falar solenemente do encontro internacional “Iglesias y Minería”, em
desse assunto, porque prestei depoimento à Brasília, debatendo com pesquisadores da América
Comissão da Verdade sobre isso. Documentei a Latina sobre o impacto da mineração no continente.
questão, mostrando que quem criou a operação Aguirre acompanha os conflitos e as implicações
Condor foi o Brasil, sim”. sociais e ambientais da extração de minério na

64 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


América Latina, especialmente na Colômbia, onde O significado político do segundo mandato da

Destaques da Semana
reside, e lembra que a mineração é ancestral no presidente Dilma Rousseff, passada a euforia da
continente. reeleição e diante das primeiras declarações feitas
à imprensa e da escolha da equipe econômica,
é diferente do significado político que teve
imediatamente após as eleições. Essa tese é
defendida pelo economista Guilherme Delgado,
COP-20: tensão de interesses marca a que assinou o Manifesto dos Economistas pelo
Conferência do Clima em Lima Desenvolvimento e pela Inclusão Social. Em
entrevista ao IHU On-Line, concedida por telefone,
Entrevista com Ricardo Baitelo, coordenador de diz estar preocupado com as mudanças anunciadas
Clima e Energia do Greenpeace Brasil e doutor para o próximo ano, a começar pelos ajustes a serem
em Planejamento Integrado de Recursos pela feitos nas políticas sociais.
Poli-USP
Publicado em: 10-12-2014
Acesse o link http://bit.ly/1D8Z967
Marcelino Champagnat. Um
“A principal tensão entre os 190 países que
participam da COP-20 é chegar a um acordo acerca
bicentenário e o desafio de refontizar as
do ano em que as nações irão se comprometer com raízes e buscar o profetismo inicial
as metas de redução de CO²”, diz Ricardo Baitelo,
que representa o Greenpeace na Conferência do Entrevista com Antônio Cechin, formado em
Clima, em Lima, à IHU On-Line, por telefone. Segundo Letras Clássicas e em Direito pela Pontifícia
ele, a tensão para se chegar a um consenso para o Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
cumprimento de metas demonstra que será difícil PUCRS. Pós-graduado no Centro de Economia
estabelecer um acordo para o próximo ano, em Paris. e Humanismo, de Paris, atuou na Sagrada
“Com isso dá para dizer que será bem difícil chegar Congregação dos Ritos.
a um consenso, porque, por um lado, só o Brasil e os Publicado em: 08-12-2014
Estados Unidos querem 2025 como o prazo limite, Acesse o link http://bit.ly/1qAF1Ef
enquanto a Europa quer o prazo para 2030 e a China
e a Índia querem um prazo maior ainda. Então este Tendo em vista o bicentenário Marista a ser
ponto deve ser negociado”. celebrado em 2017, “o grande e fundamental
questionamento como congregação terá que
ser: Evoluímos ou involuímos?”, pontua Antônio
Cechin em entrevista concedida à IHU On-Line por
Constrangido, governo deverá fazer e-mail. Segundo ele, considerando que o “objetivo
central da congregação dos Irmãos Maristas é a
cortes sociais no próximo ano Catequese e a Educação, deveríamos mesmo ‘ser
referência no exercício da missão de evangelizar, por
Entrevista com Guilherme Delgado, doutor meio da educação’”. Lembra que, como Marcellin
em Economia pela Universidade Estadual de Champagnat, fundador do Instituto dos Pequenos
Campinas – Unicamp Irmãos de Maria e das Escolas Irmãos Maristas, “foi
Publicado em: 09-12-2014 um homem de seu tempo, à altura do verdadeiro
Acesse o link http://bit.ly/1vHneac tsunami que provocou a Revolução Francesa”. www.ihu.unisinos.br

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EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 65
Entrevista da Semana
Destaques da Semana

Controle neural e
neuromarketing. Uma
reconfiguração do ser humano
Timothy Lenoir aborda a questão da optogenética nas sociedades tecnocientíficas e
suas relações com o neuromarketing

Por Márcia Junges e João Vitor Santos / Tradução: Isaque Gomes Correa

O
que a neurociência tem a ver com o mar- Timothy Lenoir é professor de História e ca-
keting? A questão serve de guia para o tedrático do Programa de História e Filosofia da
caminho que Timothy Lenoir percorre em Ciência, na Duke University, nos Estados Unidos;
sua reflexão, durante entrevista concedida pesso- autor de A Estratégia da Vida. Teleologia e Mecâ-
almente à IHU On-Line. A partir da ideia de uma nica na Biologia Alemã do século XIX (Dordrecht
técnica de controle neural – a optogenética– des- and Boston: D. Reider, 1982), editado como bro-
taca que é possível realizar intervenções específi- chura pela Universityof Chicago Press, 1989, que
cas em distúrbios e doenças. Ou seja, modifica-se examina o desenvolvimento das teorias não da-
a célula num ponto específico e se tem uma res- rwinianas da evolução, particularmente no con-
posta no tratamento do distúrbio. texto germânico durante o século XIX.
Levando o conceito para outra ideia, o neu- Atualmente pesquisa sobre a introdução
romarketing, o entrevistado demonstra como é de computadores na pesquisa biomédica des-
possível mexer no cerne dos desejos a partir de de início de 1960 até 1990, particularmente o
uma oferta – ou propaganda – de produtos que desenvolvimento de computadores gráficos,
tenham tanto significado para o indivíduo. E o
tecnologia de visualização médica, o desenvol-
suporte para essa relação de consumo é a tec-
vimento da realidade virtual e sua aplicação em
nologia, que funciona como uma esteira em que
cirurgia. Com fundos da Fundação Alfred P. Slo-
o usuário deixa suas marcas e a partir delas são
an, construiu dois projetos web sobre história
oferecidos os produtos que possam lhe desper-
da interação humana por computador e sobre
tar interesse. “Se a mudança das sociedades de
história da bioinformática. Lenoir foi membro da
produção para as sociedades de consumo é a ma-
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neira como pensamos sobre as coisas – ou como Fundação John Simon Guggenheim e por duas
Deleuze nos encoraja para pensarmos sobre elas vezes membro do Instituto de Estudos Avança-
–, então o capitalismo digital é, realmente, o tipo dos em Berlim. Écofundador e editor da série Es-
de mecanismo para se obter o desejado”, explica. crevendo ciência (Writing Science), da Stanford
Na prática, é como os sistemas de monito- University Presse foi nomeado membro eméri-
ramento, por exemplo, usando o Google, seja to [Bing Fellow] por Excelência no Ensino entre
no e-mail ou no buscador, operam e produzem 1998–2001.
mapeamentos comportamentais. “É, basicamen- Em 23-10-2014 esteve na Unisinos, partici-
te, pensar os ‘divíduos’ como bits de informação pando do XIV Simpósio Internacional IHU: Re-
sobre as pessoas. Assim, as informações sobre voluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e
sua saúde, suas preferências pelos vários tipos de sociedades. A modelagem da vida, do conheci-
comida, o que quer que seja, tudo isso é, abso- mento e dos processos produtivos na tecnociên-
lutamente, central nas sociedades de controle e, cia contemporânea, com a conferência Neurofu-
ao mesmo tempo, as sociedades de controle são turos para sociedades de controle.
organizadas pelo mercado”, complementa Lenoir. Confira a entrevista.

66 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


IHU On-Line – Qual é a impor- para o estudo neuromotor, tais como racional. Deleuze e Guattari chamam

Destaques da Semana
tância das ferramentas de optogené- as atividades musculares e coisas do este tipo de emoção como partes ma-
tica1para os estudos de engenharia tipo. A optogenética, porém, vai capa- quínicas da consciência que precedem
“bioneuro” e para os novos estudos citar as pessoas a alcançar funções de a consciência. E o que muitos marque-
de mapeamento cerebral? ordem mais elevada, funções cogniti- teiros, evidentemente, querem fazer é
Timothy Lenoir – A optogenética vas, como a memória e outras. Dessa poder acessar este nível da consciên-
é um conjunto de ferramentas, deri- forma, ela realmente dá início a todo cia. O marketing está tentando fazer
vadas principalmente da engenharia um outro território para investigações com que as pessoas sintam que o pro-
genética, que começou há uma déca- científicas, de fato, detalhadas e tam- duto e as pessoas associadas a ele – a
da. Diz-se que, por volta de 2006, in- bém a novos experimentos. empresa associada a produto – criem
seriram-se basicamente proteínas em Por fim, a importância da op- uma espécie de experiência, estilo de
tipos diferentes de neurônios onde se togenética é que ela pode ser usada vida... Por exemplo, Ralph Lauren, o
pode usar a luz, como a luz azul ou a para propósitos terapêuticos. Está-se projetista de moda: quando compra-
luz amarela, para acender ou desligar começando a usá-la para propósitos mos, quando vemos os seus anúncios,
uma célula. Isto permite que se mos- terapêuticos relacionados ao mal de o que estamos recebendo é um esti-
tre ou veja as interconexões entre di- Parkinson e a algumas outras coisas. A lo de vida por parte do estilista. Não
ferentes neurônios, de forma que se razão é que se descobriu que, ao com- é como se estivéssemos comprando
torna possível olhar os circuitos que preender os neurocircuitos afetados algo que de precisamos, porque não
os neurônios formam, os quais podem pelo mal de Parkinson, pode-se me- está à venda algo necessário. É ape-
ser bastante complicados, pois há lhor controlá-los, ligando e desligando nas um estilo de vida.
muitos deles. Nesse sentido, a razão suas células. Então, é toda uma configuração
por que a optogenética é realmente de afetos o que se está tentando ge-
útil é que ela nos capacita a sermos IHU On-Line – Quais são as im-
rar. E os neuromarqueteiros estão
seletivos devido à engenharia genéti- plicações desse trabalho num con-
tentando usar estas ferramentas para
ca empregada. É possível ser bastante texto mais abrangente considerando
poderem olhar para a forma como os
seletivo com os tipos de neurônios o “neuromarketing3”?
tipos de anúncios e mensagens que
Timothy Lenoir – O neuroma-
nos quais inserimos proteínas. Ser se- eles estão tentando enviar estão afe-
rketing tenta influenciar as emoções
letivo ajuda no controle de ligar e des- tando/influenciando estas partes par-
para obter o tipo de coisa que Deleu-
ligar estes tipos de células jogando-se ticulares dos consumidores.
ze4 (e Guattari5) chama de afeto: não
luz sobre elas. Portanto, este conjunto Eu acho que este trabalho, num
se trata apenas de emoções, mas de
de ferramentas [chamado optogenéti- contexto mais amplo, significa algo
outros tipos de atividades corporais
ca] é útil para capacitar os cientistas muito além do que parece. No começo
que ativam desejos e que não estão,
– neurocientistas – a mapear as cone- do século XX, fim do século XIX, havia
necessariamente, sujeitos ao controle
xões entre os diferentes neurônios e pessoas que começaram com a noção
descobrir qual o tipo de funções com por meio de sinais cerebrais. O trabalho de mercado, de tipos particulares de
que eles se relacionam. está na lista do Instituto de Tecnologia de mercados e clientela. Estes eram, em
Massachusetts (MIT) sobre as tecnologias
Os outros tipos de ferramentas que vão mudar o mundo. (Nota da IHU geral, grandes classes de pessoas. Em
sobre os quais discuti, aqueles usados On-Line) seguida, criou-se algo como nichos de
por [Miguel] Nicolelis2 são mais úteis 3 Neuromarketing: é um campo do ma-
rketing, com estudo focado no comporta-
mercado: sabemos que existem vários
mento do consumidor. O conceito mescla tipos de comunidades que têm a sua
1 Optogenética: são técnicas que combi- princípios do marketing com a ciência.
própria cultura, o seu próprio estilo e,
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nam luz, genética e bioengenharia. Atra- (Nota do IHU On-Line)
vés delas é possível analisar os circuitos 4 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo é claro, é possível vender especifica-
neurais e comportamentos em funciona- francês. Assim como Foucault, foi um dos mente a estas comunidades, a estes
mento em células específicas. O objetivo estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson,
é tratar doenças como Parkinson, Epilep- Nietzsche e Espinosa, poderosas interse- nichos específicos.
sia, Depressão e distúrbios neurais. (Nota ções. Professor da Universidade de Paris Então, hoje, o marketing de nicho
da IHU On-Line) VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias
2 Miguel Nicolelis(1961): médico e cien- como as de devir, acontecimentos, singu- trata do que as pessoas fazem, mas
tista brasileiro. Lidera um grupo de pes- laridades, conceitos que nos impelem a quer-se ir além e ser capaz de atingir
quisadores da área de neurociências na transformar a nós mesmos, incitando-nos
Universidade Duke, nos EUA, que estuda a produzir espaços de criação e de produ- os indivíduos. Está é, pois, a estratégia
as tentativas de integrar o cérebro hu- ção de acontecimentos-outros. (Nota da de milhares de anúncios na internet.
mano com as máquinas (neuropróteses IHU On-Line)
ou interfaces cérebro-máquina). O ob- 5 Félix Guattari (1930-1992): psicanalis- O tipo de coisa que se está fazendo na
jetivo das pesquisas é desenvolver pró- ta francês, pensador, militante, admira- internet é tentar desenvolver perfis
teses neurais para a reabilitação de pa- do por movimentos de esquerda alterna-
cientes que sofrem de paralisia corporal. tivos, autor de um dos livros mais discu- dos indivíduos de forma que se pos-
Atuando na área de fisiologia de órgãos tidos entre os anos 70/80, O Anti-Édipo, sa alimentá-los com informações que
e sistemas, Nicolelis é responsável pela escrito em parceria com o filósofo fran-
descoberta de um sistema que possibilita cês Gilles Deleuze. Guattari visitou várias
vão atraí-los e, realmente, reforçar o
a criação de braços robóticos controlados vezes o Brasil. (Nota da IHU On-Line) mundo deles.

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 67


Por exemplo, não sei se você usa gina, terá de ir nas opções especiais formações sobre sua saúde, suas pre-
Destaques da Semana
o Gmail no dia a dia. Se sim, o Google do programa, em suas opções, etc., ferências pelos vários tipos de comida,
está constantemente vasculhando os e isso exige ficar clicando, páginas e o que quer que seja, tudo isso é, abso-
seus e-mails e encontrando termos páginas, em diferentes opções no in- lutamente, central nas sociedades de
que o descrevem, que você usa, que tuito de obter aquilo que você deseja: controle, e estas, ao mesmo tempo,
sugerem certos tipos de relações. En- desativar tais anúncios, informações. são organizadas pelo mercado.
tão, quando uso o Gmail, ou se uso o Portanto, é uma luta constante. Basicamente, Deleuze teve esta
mecanismo de busca do Google, eles Eventualmente, eles irão fazer o ideia – que, particularmente, acho
acumulam todos os tipos de informa- que você quer e, então, você irá parar bastante interessante – de que o que
ção a meu respeito e sobre os tipos de receber tais tipos de informação. aconteceu é a mudança das econo-
de assuntos que eu procuro. E, onde No entanto, você mesmo não vai ficar mias de produção para as economias
quer que eu esteja navegando na in- feliz que isso tenha acontecido, por- de consumo. E as economias de pro-
ternet, as páginas têm anúncios que que, de repente, agora você se torna dução eram manufatureiras. Fazía-
se relacionam com as coisas de que eu uma pessoa de segunda classe e as mos produtos; hoje projetamos. Hoje,
poderia gostar. E não só isso: o Google espécies de informação que estava re- fazemos o trabalho cognitivo produzir,
faz marketing de nicho para o conte- cebendo eram de níveis muito altos, enviamos projetos para a China a fim
údo também, então ele vai alterar o ou relativamente altos. E, então, vai de serem produzidos – para serem
conteúdo. perceber que não recebe mais ofertas produzidos a partir de um projeto, de-
Assim, você lê um jornal e o que de produtos realmente interessantes, sign que é feito aqui, digamos, no Bra-
estes mecanismos fazem, cada vez ou cupons de desconto em vários ti- sil, ou em outros lugares. E é este tipo
mais, é alterar o tipo de histórias que pos de coisas que você gostaria de ter, de coisa que Deleuze tinha em mente.
você vai ler dependendo do seu histó- ou mesmo viagens grátis para lugares, Então, penso que a força motriz
rico, dependendo das histórias de que dicas do site TripAdvisor6, ou coisas de todo este movimento é o mercado.
você gosta. Tem-se então uma socie- deste tipo. De repente, também, o E os mercados para ele se tornaram o
dade de controle. Se isso não for uma seu mundo digital se parece um tanto engenho de controle. E, como pode-
sociedade de controle, então eu não diferente. mos ver nos exemplos que dei quando
sei o que é. Esta é a ideia basicamente. E, portanto, estes elementos po- falávamos sobre a internet e outros
E é aqui onde eu vejo um contex- dem evoluir, podem evoluir para uma
tipos de coisas que recebemos en-
to mais amplo para este tipo de traba- espécie de sociedade de classe/casta.
quanto navegamos, o mercado está,
lho, no sentido de que eles estão nos fundamentalmente, direcionando e
IHU On-Line – Nesse sentido,
fornecendo coisas que queremos e controlando este tipo de modulação.
o senhor quer dizer uma sociedade
que gostamos. Assim, é possível com- Portanto, não se tem uma sociedade
panóptica?
preender por que os marqueteiros de controle sem tecnociência. E não
Timothy Lenoir – Sim, exatamente.
iriam querer fazer este tipo de coisa, se pode ter a tecnociência sem estas
mas eles querem encorajá-lo a fazer coisas de que estamos falando: elas se
IHU On-Line – A partir dessas
outros tipos de coisas também. Eles reforçam mutualmente.
considerações e da perspectiva da
igualmente conhecem todos os tipos filosofia de Gilles Deleuze, como ana-
de coisas a respeito de sua saúde. Por IHU On-Line – Numa época de
lisa as sociedades de controle com o
exemplo, podem saber sobre a sua aprofundamento da tecnociência? característica tecnocientífica, como
saúde a partir das pesquisas que você Timothy Lenoir – Acho que o percebe a modelagem da vida a par-
faz [no Google]; eles sabem como tir do controle da subjetividade das
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que eu estava tentando dizer sobre


você está ou quais problemas você esta questão é que a tecnociência populações?
tem. E este tipo de informação inicia organiza-se, fundamentalmente, em Timothy Lenoir – Eis uma per-
uma nova direção no sentido das coi- torno da ciência da informação. Ela gunta difícil. Estamos falando da vida
sas às quais você é novo. se organiza em torno da computação, como a conhecemos, certo? É óbvio
Eu acho, então, que, de um lado, em torno destes tipos de alta tecnolo- que os tipos de comunidade que exis-
este contexto parece como sendo de gia computacional. E as sociedades de tiam ao redor da família, do trabalho,
liberdade, mas não é. Quero dizer, controle são sociedades de divíduos, se desfizeram porque instituições
você é livre para escolher as coisas no dizer de Deleuze. É, basicamente, como a família, a escola, e outras, se
que deseja. E se você se queixa, se pensar os divíduos como bits de infor- modelaram em outros sentidos. A fa-
você reclama, se diz ao Facebook que mação sobre as pessoas. Assim, as in- mília, como a conhecemos, ou como
não quer ver estes anúncios ou que as pessoas a conheciam uma geração
não quer esta ou aquela informação 6 TripAdvisor: portal de internet que (ou duas) atrás, mudou completamen-
funciona como sistema de buscador, reu-
na tentativa de mudar a política do nindo informações para viagens de turis-
te. Acho, portanto, que as sociedades
que você vem recebendo em sua pá- mo. (Nota IHU On-Line) de controle têm muito mais a ver com

68 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


pessoas solteiras juntando-se em manos surgiram a partir de outras for- ticular, o interessante é que o sistema

Destaques da Semana
grupos e, em seguida, movendo-se mas hominídeas. O seu argumento é operacional tem outros amigos com
em outras direções. que a linguagem, o razoamento sim- os quais ele se conecta e que são ou-
O sentimento relativo à comuni- bólico e o uso do pensamento via sím- tros sistemas. Eles estão coletivamen-
dade não é o mesmo. Embora todas bolos constituíram o ponto-chave de te ficando, cada vez mais, inteligentes
estas tecnologias da comunicação inflexão. Com isso ele traça a evolução e, simplesmente, decidem que não
tratem, supostamente, de agregar, e o tamanho cerebral, bem como os necessitam mais dos seres humanos.
de aproximar as pessoas, de pô-las diferentes tipos de coisas culturais Então, eles debandam. As pessoas,
em comunicação, em certos sentidos que começam a surgir. Ele, portanto, então, se perguntam: “O que aconte-
elas, de fato, não parecem fazer o que trata a linguagem como um tipo de ceu?” Elas não se preocupam com a
desejam. São diferentes formas de parasita que não é algo produzido singularidade.
aproximação e comunicação. pelo humano; é algo que, na reali- E, sim, somos ciborgues. E acho
dade, coevolui com os humanos e os que estamos, mais e mais, ficando
IHU On-Line – Em 2008, em outra coconstrói. assim. E, por causa da ideia de socie-
entrevista concedida pessoalmente Nesse sentido, sempre fomos ci- dade de controle e da relação da tec-
à revista IHU On-Line, o senhor afir- borgues; a nossa tecnologia, os seres nociência com ela, não vejo como isto
mou que, de algum modo, sempre humanos e a tecnologia coevoluindo pode ser diferente.
fomos ciborgues. No entanto, o que juntos é o que forma o começo. Eu, de
muda num cenário cujo protagonis- fato, penso que somos ciborgues. Que- IHU On-Line – Tomando em con-
mo da tecnociência só aumenta? ro dizer, não vejo como podemos pen- sideração a questão dos ciborgues e,
Timothy Lenoir – Eu acho que sar de nós mesmos como não sendo por conseguinte, da temática do pós-
esta afirmação é ainda mais correta, coevoluídos junto das nossas máqui- humanismo e do tecno-humanismo,
hoje, do que quando a fiz há alguns nas, e cada vez mais querer pegá-las como compreende o posicionamen-
anos. Na época, quando falei que e internalizá-las para fazer delas ex- to antropocêntrico assumido pela
“sempre fomos ciborgues”, quis dizer tensões de nossos corpos – ou de nós humanidade?
que quando pensamos sobre o huma- mesmos. Timothy Lenoir – Acho que sim,
no, pensamos que ele coevolui com a Você já assistiu ao filme Her (Ela, acho que temos um posicionamento
tecnologia. Muitas pessoas realmente Spike Jonze, 2013)? Ele foi lançado há, deste tipo assumido pela humanida-
interessantes que se reportam a De- mais ou menos, um ano e meio. A his- de. Embora haja um movimento filo-
leuze – por exemplo, Bernard Stigler7 tória fala sobre um cara que se apai- sófico muito forte como aquele de on-
e outros – têm esta noção, e que assi- xona pelo sistema operacional [de seu tologias orientadas aos objetos, que
no embaixo, de que o humano coevo- computador]. Ele fica muito [apaixo- quer se ver livre desta visão de todas
lui com a tecnologia. E a minha ênfase nado]; ambos mantêm esta relação as coisas a partir do ponto de vista hu-
particular vai sobre a tecnologia da e “ela” está aprendendo. É um novo mano. Quer dizer, não como objetos
informação. sistema operacional que tem todos os para nós, mas como objetos no pró-
Há um biólogo e antropólogo tipos de características inteligentes; prio direito deles de ser. Então, como
evolucionista fantástico chamado aos poucos vai adquirindo mais inte- lidar com isso?
[Terrence W.] Deacon8. Ele tem um li- ligência e acaba querendo ajudá-lo. O Acho que esta tarefa não é nada
vro chamado SymbolicSpecies[Espécie filme se desenvolve de uma maneira fácil. Além de eu ser uma espécie de
simbólica] que discute quando os hu- muito interessante. entusiasta ciborgue, sou também
Não gosto de contar o fim do fil- um construtor social – e eu acredito
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7 Bernard Stigler (1952): filósofo fran- me, mas a história padrão para este que nós, basicamente, construímos
cês, que também tem sua obra influen- tipo de coisa é que, quando começa- o mundo. Penso também que esta é
ciada por autores como Nietzsche, Va-
léry, Heidegger e Derrida, entre outros. mos a nos aproximar demais dos sis- uma daquelas coisas importantes que
Entre seus temas centrais estão tecno- temas artificiais, que quando eles se vêm acontecendo na tecnociência
logia, consumismo, capitalismo de con-
sumo, convergência tecnológica, entre dão conta de que não precisam mais contemporânea.
outros. (Nota IHU On-Line) de nós, tornam-se realmente esqui- Hoje a tecnologia é fundamental.
8 Terrence W. Deacon: antropólogo
americano, Ph.D. em Antropologia Bioló- zofrênicos, tornam-se, na realidade, Há tantas e diferentes áreas da ciência
gica, Harvard University, 1984. Lecionou paranoicos: na real, eles se tornam e tecnologia que nós chegamos a con-
em Harvard por oito anos, mudou-se para
a Universidade de Boston, em 1992, e megalomaníacos e se livram da gente. trolar minúsculas partes da matéria,
atualmente é Professor de Antropologia Assim, o filme The Lawnmower Man tendo condições de montá-la, parte
e membro da faculdade de Ciência Cog-
nitiva da Universidade da Califórnia, em (O Passageiro do Futuro, Brett Leo- por parte, por nós mesmos. Portanto,
Berkeley. Seu trabalho combina biologia nard, 1992) poderia ser um exemplo. podemos substituir a natureza com
evolutiva humana e neurociência. O ob-
jetivo é a investigação da evolução da
Há vários outros filmes como este. uma máquina mais precisa, melhor. O
cognição humana. (Nota IHU On-Line) Neste de que estou falando, em par- que estamos falando aqui diz respeito,

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 69


fundamentalmente, a uma visão an- sejo10”, de Deleuze, em que medida pressionando a matéria a avançar em
Destaques da Semana
tropocêntrica. Ela está transformando desejamos ser máquinas e queremos direção a novas configurações, basica-
a natureza em algo que controlamos transformar a natureza em máquina? mente através do capitalismo.
e que podemos usar para nossos pró- Que possíveis cenários se descorti- Queremos transformar a nature-
prios fins. Eu considero este momento nam dessa perspectiva? za numa máquina? Acho que dizemos,
um tanto perigoso. No entanto, consi- Timothy Lenoir – Penso que isto em muitos casos, que não queremos
dero-o também inevitável. está bastante de acordo como que eu e tentamos usar outros tipos de siste-
vinha dizendo. Acho que a noção de De- mas para pensar os sistemas naturais
IHU On-Line – Qual é o espa- leuze de uma máquina de desejo é um como algo que gostaríamos de imitar.
ço para a expressão da autonomia conceito um tanto difícil. Ele abre-se Tudo, porém, que façamos está orga-
do sujeito em um contexto dessa para muitas interpretações, creio eu. nizado em nosso entorno, e o mesmo
ordem? Mas acho que ela – esta noção – vem acontece com os movimentos am-
Timothy Lenoir – Acho que esta de Freud11, com a ideia de id. Há aque- bientalistas: os que conheço e que
é a pergunta principal. Quero dizer, de les tipos de forças psicológicas que parecem interessados neste assunto
certa forma parece que estamos capa- são independentes. E se pensamos no são os que querem somente preser-
citando os sujeitos a serem completa- que Deleuze está dizendo, chamando- var partes da natureza e não têm mais
mente autônomos, livres, a poderem -o de máquina de desejo, vemos se nada a fazer com ela; apenas deixar
escolher as coisas, e assim por diante. tratar de algo muito semelhante aos sê-la.
Porém, penso que estas benesses es- tipos de atitudes que os atuais neu- O que, na prática, os movimen-
tão sendo controladas por forças que rocientistas têm, de que há somente tos ambientalistas querem é adminis-
estão além do nosso controle. matéria, de que não há nada mais trar o meio ambiente para os propósi-
Em outras palavras, penso o capi- além dela. tos humanos, para a vida do planeta.
talismo como uma espécie de força da Há configurações da matéria que É pensar o planeta inteiro como um
natureza. Penso o capitalismo como produzem desejos, que produzem ecossistema onde as partes depen-
uma máquina, no sentido deleuziano algo que pensamos como desejo. Mas, dem uma das outras, e assim por dian-
de máquina. Quando perguntamos “o basicamente, existem estas forças que te. Eu trabalho num instituto, o Center
que há lá fora?”, não há “inteirezas”, estão impelindo o sistema a ir adian- for Environmental ImplicationsofNa-
ou seja, indivíduos que são um todo te... Não existem almas, não existem notechnology, e o principal objetivo aí
completo dentro de seu eu interior. coisas independentes da matéria. Há é ver como podemos controlar os efei-
Não existe isso. O que há são máqui- somente máquinas. E, no centro da tos da nanotecnologia na medida em
nas em todo o caminho. E a matéria coisa toda, há máquinas de desejo que ela é disposta no meio ambiente
em si tem também os seus desejos. e seus possíveis impactos negativos
E são estas as questões que estão na na saúde. Portanto, o nosso principal
dianteira. 10 Máquina de Desejo: para Deleuze,
somos máquinas que expresando desejos.
objetivo é analisar a natureza em par-
Portanto, o capitalismo, a meu Como se estivéssemosagindo movidos por tes cada vez menores, de forma que
ver, é a expressão última disso que eles. Máquinas estas que se acoplam a possamos melhorar a maneira como
outrasproduzindoconexões, infinitas e
estamos falando. Então, não há como emvários sentidos. (Nota IHU On-Line) estas partes trabalham e controlar a
evitá-lo. Esta é uma visão que tenho 11 Sigmund Freud (1856-1939): neuro- forma como funcionam. É tratá-la [a
logista, fundador da psicanálise. Inte-
ao mesclar os pontos de vista de De- ressou-se, inicialmente, pela histeria e, natureza] como uma máquina.
leuze com o de Manuel De Landa9, tendo como método a hipnose, estudou
pessoas que apresentavam esse quadro.
quem tem, penso eu, uma leitura um Mais tarde, interessado pelo inconscien-
IHU On-Line – O capitalismo
www.ihu.unisinos.br

tanto materialista de Deleuze e de sua te e pelas pulsões, foi influenciado por como um sistema econômico é uma
relação com a teoria da complexidade Charcot e Leibniz, abandonando a hip- condição necessária para apoiar um
nose em favor da associação livre. Estes
dinâmica. Gosto desta leitura; acho-a elementos tornaram-se bases da psica- florescimento da sociedade tecno-
bastante poderosa. Não vejo, todavia, nálise. Freud nos trouxe a ideia de que científica. É correto dizer isto?
somos movidos pelo inconsciente. Freud,
nada senão uma autonomia aparente suas teorias e o tratamento com seus pa- Timothy Lenoir – Sim, é o que
para os assimchamados indivíduos. cientes foram controversos na Viena do penso. O que eu acho também inte-
século XIX, e continuam ainda muito de-
batidos hoje. A edição 179 da IHU On-Li- ressante é pensar sobre o capitalis-
IHU On-Line – Tomando em con- ne, de 08-05-2006, dedicou-lhe o tema mo, hoje, em termos do capitalismo
sideração a ideia de “máquina de de- de capa sob o título Sigmund Freud. Mes-
tre da suspeita, disponível em http://
digital12. Quero dizer, quando come-
bit.ly/ihuon179. A edição 207, de 04-12- çamos a fazer os primeiros softwares
9 Manuel De Landa (1952): escritor, ar- 2006, tem como tema de capa Freud e – e estes são apenas um outro tipo de
tista e filósofo mexicano, radicado em a religião, disponível em http://bit.ly/
Nova Iorque. É professor de filosofia con- ihuon207. A edição 16 dos Cadernos IHU
temporânea e ciência na Escola de Pós- em formação tem como título Quer en-
Graduação Europeia na Suíça e professor tender a modernidade? Freud explica, 12 Capitalismo digital: nova leitura sobre
adjunto em arquitetura na Universidade disponível em http://bit.ly/ihuem16. o capitalismo, agora focado na ambiência
de Princeton. (Nota IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) do mundo digital. (Nota IHU On-Line)

70 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


máquina –, tínhamos todos os tipos se-ia fazer o que quisesse. Há, ainda, Ele pensou que haveria algo mais.

Destaques da Semana
de problemas, a saber: eles são mui- alguns lugares em que se pode fazer Havia este tal de intelecto que, de
to fáceis de serem copiados. Então, isso... Mas, cada vez mais, criar algo alguma forma, não está embutido
como monetarizar a sua criação? É o na web é descobrir como moneta- na máquina. Ele depende da máqui-
mesmo com a música: lembremos to- rizá-lo. E estes tipos de neurocapi- na... Há uma relação interessante,
dos os problemas que existiam aqui talismo e todos aqueles diferentes em Descartes, envolvendo mente e
no começo. Lembremos os vídeos, fil- métodos dos quais venho falando a máquina. Creio, porém, que a má-
mes, as pessoas roubando os códigos respeito são formas que nós usamos quina de desejo é uma noção que,
destes produtos e liberando-os gra- para controlar a informação e tentar na verdade, não se relaciona com o
tuitamente, e assim por diante. Por- monetarizá-la. cartesianismo.
tanto, sempre houve algum problema Se a mudança das sociedades de
com a tecnologia digital: mas como produção para as sociedades de con-
monetarizá-lo? Em outras palavras, sumo é a maneira como pensamos so- Leia mais...
isto significa se perguntar sobre como bre as coisas – ou como Deleuze nos
controlar tal tecnologia de forma que encoraja para pensarmos sobre elas –, • “Nós sempre fomos ciborgues. Isso é
da natureza da sociedade humana”.
não se consiga pegá-lo e torná-lo dis- então o capitalismo digital é, realmen- Entrevista com Timothy Lenoir, na
ponível gratuitamente. Esta vem sen- te, o tipo de mecanismo para se obter edição 262 da IHU On-Line, de 16-
do a questão-chave desde então para o desejado. 06-2008, disponível em http://bit.
do/Vrd2.
todas as espécies de tecnologias: o Não acho que a máquina de
• As sociedades de controle e a imi-
controle dos direitos digitais, o con- desejo remonta ao cartesianismo. nência de um “panóptico global”. Co-
trole da produção digital, incluindo Creio que esta é uma outra questão. bertura da conferência Neurofuturos
páginas da web. É claro, Descartes pensou o homem para sociedades de controle, em 23-
10-2014, disponível em http://bit.
Antes era muito fácil levantar-se, como uma máquina, mas apenas ly/1vV1pUN
criar uma página de internet. Poder- em certas partes. Somente o corpo.

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EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 71


A derrocada dos movimentos
Destaques da Semana

sociais na África pós-Apartheid


Tshepo Madlingozi aponta as continuidades entre a governança pré e pós-1994, que
levam os movimentos de um discurso de poder a um discurso de direitos, suplicando
ao Estado que os cumpra

Por Ricardo Machado e Andriolli Costa / Tradução: Gabriel Ferreira

E
m 2014 celebram-se 20 anos do fim do lar, mas direitos de indivíduos suplicando ao
Apartheid, o regime de segregação ra- Estado por serviços tais como prometidos na
cial adotado – oficialmente – de 1948 a Constituição”.
1994 na África do Sul. No entanto, para o soci- Entre 2005 e 2010, TshepoMadlingozi foi
ólogo, advogado e ativista Tshepo Madlingozi, coordenador nacional de advocacia do Khu-
a política que emergiu do novo governo pós- lamani, um grupo de suporte às vítimas do
apartheid ainda apresenta uma série de con- Apartheid. Participante hoje do quadro da
tinuidades com o modo de governança do re- diretoria, ele aponta que a própria Comissão
gime pré-1994. “A legislação ‘pós-Apartheid’ da Verdade que investigou os crimes do re-
não desafia fundamentalmente a natureza gime segregatório foi capaz de reconhecer e
colonial do Estado”, alerta. “Consulta é enten- indenizar apenas 16 mil vítimas – em um país
dida como o Estado dizendo às pessoas o que com 50 milhões de habitantes. “A legislação
foi decidido, participação para além das insti- pós-Apartheid está desmobilizando à medida
tuições organizadas pelo Estado é vista como que individualiza o sofrimento; está despoli-
um desafio direto contra ele e, por sua vez, tizando à medida que transforma a proble-
a brutalidade do Estado contra as atividades mática de 300 anos de Apartheid colonial em
dos movimentos sociais é frequente”. questões de tecnicalidades a serem resolvi-
Em entrevista concedida por e-mail à IHU das por juristas; e retira recursos da constru-
On-Line, Tshepo aponta os modos como a ção de movimentos e atividades de agitação
legislação pós-apartheid promoveu uma mu- popular.”
dança na ação dos movimentos sociais – que Tshepo Madlingozi é mestre em Direito
migrou de uma luta por poder para uma luta e em Sociologia. Professor da Universidade
por Direitos. Ou seja, ao invés de ação com- de Pretória, na África do Sul, é colaborador
bativa direta, os movimentos são incitados a do Centro de Estudos Sociais da Universida-
ir à Justiça, recorrer à Corte, onde, invariavel- de de Lisboa, onde participa do Projeto ALI-
mente, sempre perdem. “Isso significou, ide- CE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas.
ologicamente, que os movimentos sociais se Tshepo é coeditor de Symbols and Substance:
transmutaram de movimentos revolucioná- The Role and Impact of Socio-Economic Rights
www.ihu.unisinos.br

rios em grupos da sociedade civil, implemen- Strategies in South Africa(Cambridge: Univer-


tando um discurso de direitos civis a fim de sity Press, 2012).
obterem seus direitos; não mais poder popu- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como pode ser ca- sa revolução contra o Apartheid, os estavam indo lutar ou reivindicar um
racterizada a mudança na perspectiva movimentos sociais eram animados melhor tratamento por parte daquele
dos movimentos sociais que migra- pela práxis do poder popular. O que regime mau. Ao invés disso, os movi-
ram de um “discurso de poder” para isso significou é que essa foi a primei- mentos decidiram tomar o seus pode-
um “discurso de direitos”? O que isso ra vez na história da África do Sul em res de volta e libertar-se do estado.
significa na prática? que a população negra das áreas ur- Ideologicamente, isso significou
Tshepo Madlingozi – Em meados banas decidiu agir como se o regime que o povo recusava ser interpelado/
da década de 1980, o ápice da nos- do Apartheid não existisse – eles não representado como vítima, mas como

72 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


agentes que podiam pensar e agir. Na e de uma linguagem legalista para rei- De fato, nós, membros do Khulu-

Destaques da Semana
prática, o poder do povo manifestou-se vindicarem por serviços essenciais. mani, somos “más vítimas”, no senti-
através do estabelecimento de suas Pelo fato de que essa Constitui- do de que, diferentemente do tipo de
próprias estruturas de governança, ção existe sobre a base de uma polí- vítima que o processo da justiça tran-
tais como comitês de bairros, cortes tica macroeconômica neoliberal, os sicional na África do Sul, e em todos
do poder popular/revolucionário, direitos socioeconômicos na Consti- os lugares, busca produzir – vítimas
conselhos representativos dos estu- tuição são sempre rebaixados devido que legitimam a transição de elite;
dantes, etc. A era do poder popular à limitação interna da maior parte que saem às ruas todos os anos, em
foi derrotada no final dos anos 1980, desses direitos em “acessar o bem datas especiais, para chorar, contar
quando o regime do Apartheid impôs socioeconômico X dentro dos recur- suas histórias e servir como catar-
uma estratégia de Assalto Total. Mi- sos disponíveis”, significando que os se para o Estado; que simplesmente
lhares de ativistas foram presos, as es- movimentos sempre perdem quando querem reconhecimento e pagamen-
truturas de governança popular foram vão à corte. Vista desse modo, a le- to, isto é, “boas vítimas” –, as vítimas
destruídas e a imprensa revolucioná- gislação pós-Apartheid está desmobi- do Khulumani rejeitam as transições e
ria foi fechada. lizando à medida que individualiza o mostram, comoreza seu slogan, que
Esse período coincidiu com sofrimento; está despolitizando à me- “o passado está no presente”.
aquele durante o qual o Congresso dida que transforma a problemática
Nacional Africano – CNA, o principal de 300 anos de Apartheid colonial em IHU On-Line – Por que a justiça
partido político anti-Apartheid, estava questões de tecnicalidades a serem transnacional, de matriz neolibe-
em um processo de transição de um resolvidas por juristas; e retira recur- ral dos países do hemisfério Norte,
quase-socialismo para um discurso de sos da construção de movimentos e é incapaz de dar conta dos desafios
direitos humanos. Quando o CNA vol- atividades de agitação popular. Além do Sul Global? Que especificidades
tou do exílio, em 1989-1990, os movi- disso, uma vez que a legislação “pós- estão em jogo na realidade da África
mentos sociais foram instruídos a se -Apartheid” não desafia fundamental- do Sul?
fortalecer e apoiar o CNA enquanto mente a natureza colonial do Estado, Tshepo Madlingozi – A justiça
este se “preparava para governar”. ela significa que há uma série de con- transicional é um projeto da moder-
Isso significou, ideologicamente, que tinuidades entre o modo de gover- nidade ocidental destinado a salvar
os movimentos sociais se transmuta- nança do regime pré-1994 e aquele os países no Sul Global que estão
ram de movimentos revolucionários pós-1994: consulta é entendida como “saindo” de conflitos. O objetivo é
em grupos da sociedade civil, imple- o Estado dizendo às pessoas o que foi reconstruir esses países à imagem do
mentando um discurso de direitos decidido (não uma democracia parti- mestre – o Norte Global. Assim como
civis a fim de obterem seus direitos; cipativa), participação para além das se espera que esses países adotem
não mais poder popular, mas direitos instituições organizadas pelo Estado instituições associadas às democra-
de indivíduos suplicando ao Estado (Parlamento, Comitês Distritais), mí- cias liberais ocidentais – ao invés de
por serviços tais como prometidos na dia, universidades, etc., é vista como autodeterminação, esses países são
Constituição. Na prática, isso signifi- um desafio direto contra o Estado e, recolonizados através desse proces-
cou que os “novos” movimentos so- por sua vez, a brutalidade do Estado so. Além disso, os processos da justiça
ciais dos anos 2000 também tiveram contra as atividades dos movimentos transicional visam sempre à liberaliza-
que apelar às ONGs e advogados para sociais é frequente. ção política, um projeto que caminha
terem acesso a seus direitos. junto com a liberalização econômica.
IHU On-Line – De que maneira Como tais, as causas estruturais de
IHU On-Line – De que forma a o Khulumani é resultado, ao mes- conflito nunca são consideradas: pri-
legislação pós-Apartheid disciplinou mo tempo, do processo de transição vação de terra, recursos roubados, www.ihu.unisinos.br
politicamente os movimentos sociais constitucional da África do Sul e do economia desigual e Supremacia
da África do Sul? processo de institucionalização do Branca permanecem intocados.
Tshepo Madlingozi – Em primei- ativismo humano?
ro lugar, “Legislação pós-Apartheid” é Tshepo Madlingozi – O Khuluma- IHU On-Line – Como é o tensio-
uma lei da Constituição Suprema. Essa ni foi criado em 1995 em resposta ao namento entre os Khulumani e as
Constituição age como Deus – ela le- processo da Comissão de Verdade e multinacionais, que deram suporte
gisla sobre o que é certo e o que é er- Reconciliação e, como tal, o Khuluma- ao Apartheid? Esta é a principal razão
rado e inunda toda a vida da África do ni foi possível pelo andamento do pro- de resistência à racionalidade vinda
Sul pós-Apartheid. É uma lei que diz cesso de justiça transicional em mea- do Norte?
que na “nova África do Sul” “não se dos dos anos 1990. Ao mesmo tempo, Tshepo Madlingozi – O Khulu-
lute, mas procurem-se as Cortes” para deve-se ter em mente que os funda- mani não é contra o investimento
obter justiça. Os movimentos são, dores do Khulumani são pessoas que estrangeiro por companhias multina-
portanto, inevitavelmente empurra- já eram ativas antes de 1990, lutando cionais. No entanto, o Khulumani é
dos para cortes de justiça nas quais por seus direitos e pelos direitos dos contra companhias que ajudaram e
eles têm de depender de advogados membros de suas famílias. incentivaram o cometimento de um

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 73


crime contra a humanidade que foi o que têm direito a uma compensação tradores que não foram à Comissão
Destaques da Semana
Apartheid. Essas companhias colhe- de $3 mil! Em nosso banco de dados, de Verdade e Reconciliação. Suspen-
ram benefícios do trabalho barato e nós temos mais de 100 mil membros. demos um projeto que nos proibiria
das leis racialmente discriminatórias. Algumas dessas pessoas ainda têm de chamar de “assassinos” aqueles
A posição do Khulumani é que essas balas em seus corpos, algumas delas assassinos que receberam anistia,
companhias devem ser responsabili- ainda têm cicatrizes psicológicas, elas ganhamos o direito para que as víti-
zadas. Elas devem pagar a reparação ainda não sabem onde estão familia- mas sejam consultadas em casos em
pelo sofrimento que custearam. E, em res que foram forçosamente desapa- que os perpetradores do Apartheid
vários casos, são as mesmas compa- recidos, casas que foram queimadas se candidatassem à liberdade condi-
nhias que estão causando a miséria ainda não foram refeitas, aqueles que cional. Junto com nossos parceiros
na República Democrática do Congo, foram removidos à força de suas ter- no exterior, nós temos expandido a
Palestina, Colúmbia-Britânica e em ras não as tiveram de volta. Não tem lei internacional contra desapareci-
outros países. havido qualquer reconciliação entre mentos forçados e sobre o “direito à
as pessoas brancas e negras e a África verdade”. Nossa maior contribuição
IHU On-Line – Passados 20 anos do Sul ainda é um país de supremacia tem sido ir a diferentes países africa-
do fim do Apartheid, quais são os de- branca. nos e informá-los de que o processo
safios atuais à conquista de direitos de justiça transicional na África do
e reparação de danos às populações IHU On-Line – Quais os princi- Sul tem beneficiado as elites políti-
representadas pelo Khulumani? pais avanços à agenda dos Direitos cas e os beneficiários do Apartheid, e
Tshepo Madlingozi – Apenas 16 Humanos que o Khulumani fez emer- dissuadi-los da adoção de tal processo
mil pessoas foram reconhecidas como gir nesses 20 anos? Qual a grande em outros países. Nossa maior con-
“vítimas” do Apartheid. Isso é insa- contribuição do Sul Global à raciona- quista tem sido mostrar que o “pós-
no! O Apartheid colonial começou lidade de outras partes do planeta? conflito” é possível quando países no
em 1652/1657 e durou, oficialmen- Tshepo Madlingozi – O Khulu- Sul Global adotam processos nativos
te, até 1994. E em um país de mais manitem ganho em diversos casos na de re-harmonização social, baseados
de 50 milhões de pessoas, apenas 16 corte de justiça, incluindo a supressão em epistemologias e modos de ver
mil serem reconhecidas como vítimas da concessão de anistia aos perpe- nãosetentrionais.

Acesse www.ihu.unisinos.br/entrevistas e confira diariamente importantes debates conjunturais


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74 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana

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IHU em
Revista
EDIÇÃO 000 | SÃO LEOPOLDO, 00 DE 00 DE 0000 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000 75
Guia de Leitura
IHU em Revista

Sociedades
TECNOCIENTÍFICAS Texto e Arte: Ricardo Machado

A
revista IHU On-Line, de modo mais Sociedades Tecnocientíficas -, estreamos no
específico, e o sítio do Instituto Medium, uma plataforma digital gratuita
Humanitas Unisinos – IHU apresentam de produção e compartilhamento de
um Guia de Leitura que recupera a produção conteúdos. Acesse nossa versão digital e
realizada em 2014. Além de propor um interativa, com imagens e vídeos, no perfil
fio condutor às questões debatidas - as medium.com/@_ihu.

As tecnociências e a Vida, do mistério


modelagem da vida ao mecanismo.
Ecos de um evento
Tecnociência, tecnocultu- Sob o prisma do subtítulo que
ra, sociedade tecnológica, orientou os debates do XIV Sim-
somos constituídos e cons- pósio IHU, A modelagem da vida,
tituidores da técnica. Pelo do conhecimento e dos proces-
menos desde a segunda me- sos produtivos na tecnociência
tade do século XX a técnica contemporânea, a edição 456
deixou de ser somente um da IHU On-Line traçou um amplo
meio para se chegar a deter- panorama sobre o pensamento
minado fim, senão o próprio tecnocientífico. Participam des-
fim da existência das coisas e, muitas vezes, das pesso- ta edição nomes como Nikolas Rose, Jesús Conill, Flavia
as. A tese é sustentada pelo filósofo italiano Umberto Costa, Luis David Castiel, Anna Quintanas Feixas, Alber-
Galimberti em entrevista à edição 457 da Revista IHU to Cupani e Jennifer Prah Ruger, entre outros. Acesse
On-Line. Acesse http://bit.ly/IHUOn456. http://bit.ly/ihuon457.

Efeito colateral tecnocrático. A meritocracia em xeque

Impulsionada por uma dinâmica que suscita maior eficiência em todos os processos, a
sociedade contemporânea hegemonizou mitologias modernas que se mantêm em pleno
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século XXI. Ao analisar historicamente o capitalismo e desconstruir o mito da meritocracia,


Thomas Piketty desafia a narrativa de que o liberalismo poderia resultar em uma sociedade
mais igualitária. É diante deste horizonte, onde, via de regra, o fascínio com o aumento da
renda é confundido com justiça social, que a IHU On-Line apresentou um amplo debate sobre
a desigualdade. Acesse bit.ly/IHUOn449.

2014
EDIÇÃO 436 EDIÇÃO 437 EDIÇÃO 438 EDIÇÃO 439 EDIÇÃO 440 EDIÇÃO 441

76 SÃO LEOPOLDO, 24 DE NOVEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


IHU em Revista
Banalidade do Mal www.youtube.com/ihucomunica
“A experiência de Auschwitz repre-
senta um limiar ético absolutamente
inaudito; uma espécie de falência ou
perempção da ética nas sociedades
ocidentais contemporâneas”, afirma
Oswaldo Giacoia, filósofo, em entrevista
à edição 438 da IHU On-Line. O núme-
ro foi publicado no contexto do Ciclo de
Estudos 50 anos do Golpe Civil-Militar
e da programação da 11ª Páscoa IHU,
que em 2014 debateu o tema do mal na
contemporaneidade, à luz da obra de Assista a conferência O mal radical e a banalidade do
Hannah Arendt – especialmente As Ori- mal do professor Adriano Correia - UFG no link
gens do Totalitarismo e Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a http://youtu.be/YLsut2Tgsc0.
banalidade do mal. Acesse bit.ly/IHUOn438.

Golpe Militar – 1964. Golpe Militar – Brasil, a


Um golpe civil-militar construção interrompida

Diante de um ocidente po- As duas edições da IHU On-


larizado com a Guerra Fria, o -Line sobre o tema da Dita-
Brasil perdeu a chance de ser dura Militar inseriram-se no
uma via alternativa ao capita- contexto do Ciclo de Estudos
lismo e ao comunismo, que 50 anos do Golpe de 64. Im-
dividiu o mundo na segunda pactos, (des)caminhos, pro-
metade do século XX. Assim, cessos, promovido pelo Ins-
uma sofisticada e complexa tituto Humanitas Unisinos
articulação civil-militar, com a - IHU. A partir da obra de Cel-
participação de federações, entidades patronais, partidos so Furtado, Brasil, a Construção Interrompida (Rio
políticos, embaixadores, presidentes, militares e mesmo de Janeiro: Paz e Terra, 1992), repensamos o país
a imprensa, levou o Brasil à escuridão de uma noite com pós-golpe e seus impactos nos dias atuais. Acesse
mais de 20 anos. Acesse bit.ly/IHUOn437. bit.ly/IHUOn439.

Dívida Pública

Se o capitalismo parasitário se amplia, beneficiando não o capital produtivo, mas o


especulativo, a tendência é que os gastos estatais com as dívidas sejam cada vez maiores.
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A dívida pública é, atualmente, um dos principais alimentos do capitalismo, favorecendo
a concentração de renda no setor financeiro e aumentando ainda mais o seu poder, como
constata Maria Lucia Fattorelli na edição 440 da IHU On-Line. Aliás, tal dívida surge com os
militares e ainda sobrevive mais de 30 anos após o regime. Acesse bit.ly/IHUOn440.

EDIÇÃO 442 EDIÇÃO 443 EDIÇÃO 444 EDIÇÃO 445 EDIÇÃO 446 EDIÇÃO 447

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE NOVEMBRO DE 2014 77


IHU em Revista
Mineração Direito ambiental e sustentabilidade
O que liga Belo Monte, a hi- Ligados por uma linha
drelétrica etnocida, a mineração tênue que une desde
nacional e o projeto de desen- um projeto de país ba-
volvimento nacional? Fora a ra- seado no consumo de
cionalidade única de produção larga escala e privile-
e consumo de bens e commo- gia a vida nos centros
dities, o catastrófico impacto urbanos, discutimos a
nas populações locais e indíge- indissociabilidade dos
nas na região Norte do Brasil, direitos da pessoa hu-
contrastada pela riqueza dos mana e dos direitos do
recursos naturais e pela miséria ambiente, na edição
social, marcada por autoritaris- 453 da IHU On-Line. A
mo de Estado, morte e violações aos direitos humanos. inspiração veio do III Congresso Internacional
Frente a este cenário, o Novo Código de Mineração brasi- de Direito Ambiental e Desenvolvimento Susten-
leiro (PL 5.807/2013) está tramitando no Congresso para tável, promovido pelo Instituto Socioambiental
votação, tema que deve ser retomado em 2015. Acesse Dom Helder, ocorrido em setembro de 2014.
bit.ly/IHUOn451. Acesse bit.ly/IHUOn453.

A mineração COP-20 é
em unidades de condição
conservação. necessária para
Como não realização do
comprometer acordo climático
oportunidades de 2015 em
futuras? Paris. Entrevista
Entrevista especial com
especial com Iara Pietricovsky
Joice Ferreira de Oliveira
www.ihu.unisinos.br

“20% de toda a área das unidades de proteção (inte- “A negociação em Lima será um momento para medir a
gral e terra indígena) no Brasil tem algum registro de temperatura das intenções efetivas destes países para
interesse minerário”, informa a pesquisadora. Acesse o que vai ser consagrado como o documento final”,
em http://bit.ly/1BJNTfU. avalia a antropóloga. Acesse em http://bit.ly/1FSRepB.

EDIÇÃO 448 EDIÇÃO 449 EDIÇÃO 450 EDIÇÃO 451 EDIÇÃO 452 EDIÇÃO 453

78 SÃO LEOPOLDO, 24 DE NOVEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


IHU em Revista
Alimentação Desperdício
Tema do XV Simpósio In- Inspirada na edição do XV Simpósio
ternacional IHU, a edição 442 do IHU - Alimento e nutrição no contex-
da IHU On-Line tratou do Ali- to dos Objetivos do Milênio, a edição
mento e nutrição no contex- 452 da IHU On-Line desdobra o tema
to dos Objetivos do Milênio. e debate o desperdício. A perda e o
Frente a um contexto de pre- desperdício de alimentos implicam em
ponderância do agronegócio, enormes impactos sociais, econômicos
o evento e a revista debate- e ambientais, como atestam os pes-
ram as perspectivas na ga- quisadores que participam do debate
rantia às pessoas ao direito travado nas páginas desta edição. Con-
ao alimento e à nutrição nas tribuem para as discussões Altivo de
dimensões sociais, econômi- Almeida Cunha, Paulo Waquil, Alfons
cas, ambientais, culturais e políticas da conjuntura brasi- López Carrete, Patrícia Barbieri, Celso Luiz Moretti, Walter Belik e José
leira. Acesse bit.ly/IHUOn442. Esquinas Alcázar. Acesse bit.ly/IHUOn452.

www.youtube.com/ihucomunica www.youtube.com/ihucomunica
Assista a conferência Assista a conferência Cenário
Desenvolvimento à luz da Nacional da alimentação
sociobiodiversidade para e nutrição na perspectiva
superação da miséria e dos ODMs, de Walter Belik
dos males da fome, de Ta- - Unicamp no link youtu.be/
nia Bacelar Araujo no link BrwANTy-Fvk.
youtu.be/NLwS4TWozek.

Mudança Climática
Por ocasião da divulgação do Relatório sobre Impactos,
Adaptação e Vulnerabilidade às
A complexa Mudanças Climáticas, do Pai-
teia hídrica nel Intergovernamental sobre
que brota do Mudanças Climáticas – IPCC, a
Cerrado está IHU On-Line, edição 443, deba-
ameaçada. teu o modelo desenvolvimen-
Entrevista tista incrementado em países
especial com desenvolvidos e emergentes.
Altair Sales As reflexões buscam desafiar
Barbosa e propor alternativas a racio-
nalidades marcadas por um
tecnicismo crescente. Acesse
www.ihu.unisinos.br
“A questão atual do desaparecimento dos pequenos cursos
d’água, alimentadores dos maiores, é apenas a ponta de bit.ly/IHUOn443.
um ‘iceberg’ que tende a se tornar cada vez mais evidente”,
adverte o antropólogo. Acesse em http://bit.ly/1zo1mst.

EDIÇÃO 454 EDIÇÃO 455 EDIÇÃO 456 EDIÇÃO 457 EDIÇÃO 458 EDIÇÃO 459

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 24 DE NOVEMBRO DE 2014 79


Mística, cinquentenário
IHU em Revista

do Concílio Vaticano II e as
metrópoles abrem o calendário
de eventos do IHU em 2015
Por João Vitor Santos

O
Instituto Humanitas Unisinos – IHU é olhar para a metrópole como um tecido
segue a tradição e começa suas vivo, não somente através de uma perspec-
atividades em 2015 com evento tiva política ou arquitetônica. O cinquente-
relacionado à Páscoa, propondo reflexões nário do XXI Concílio Ecumênico da Igreja
sobre essa data tanto da perspectiva teoló- Católica é o tema do colóquio internacional
gica como expressão sociocultural a partir O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A
do tema Ética, Mística e Transcendência. Já Igreja no contexto das transformações tec-
a partir de 2 abril de 2015, as discussões se nocientíficas e socioculturais da contempo-
voltam para as grandes cidades. É o ciclo raneidade. Iniciando a partir de 19 de maio,
de estudos Metrópoles, Políticas Públicas o evento busca repensar o papel da Igreja
e Tecnologias de Governo – Territórios, go- nessa ebulição de transformações do mun-
vernamento da vida e o comum. A proposta do moderno.

Páscoa como narrativa mística ma de viver a vida em seu sentido partir da especificidade de cada cultu-
O próximo evento de Páscoa do pleno”, completa. ra, como a latino-americana.
IHU ocorre de 11 a 26 de março de A programação de todo o evento O encontro destina-se a pesqui-
2015. O tema é Ética, Mística, Trans- é pensada nessa lógica. Renato desta- sadores, professores e alunos e tam-
cendência. Mas o que esse assun- ca algumas atividades que sustentam bém ao público geral. Os detalhes do
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to tem a ver com a ressurreição de esse objetivo. O passo inicial é dado evento e a programação completa es-
Cristo? Para o teólogo e professor a partir das discussões em torno da tão disponíveis no sítio do IHU. Aces-
Renato Ferreira Machado, um dos vivência de Teresa de Ávila e Thomas sehttp://bit.ly/PasIHU2015.
organizadores, a Páscoa é um mo- Merton, expoentes da mística nupcial
mento místico, pois “a experiência na igreja Católica. Debates sobre a te- A metrópole como tecido vivo
na ressurreição é uma experiência mática ocorrem também a partir da É das grandes cidades que ema-
mística. É o que chamamos de mis- linguagem cinematográfica. Por meio nam as manifestações mais claras da
tério pascal”, completa. Entretanto, da exibição de filmes, será possível co- relação entre sociedade, o ser huma-
o objetivo não é apenas olhar do nhecer e discutir outras experiências no e o seu meio. O ciclo de estudos
ponto de vista teológico, mas sim místicas mais da ordem do humano. Metrópoles, Políticas Públicas e Tec-
trazer essa ideia de experiência mís- Por fim, a audição comentada da Mis- nologias de Governo – Territórios, go-
tica para o humano, como algo que sa Crioula vai trazer a ideia de que a vernamento da vida e o comum quer
faz parte da existência. “É uma for- mística da liturgia pode ser relida a olhar para essa relação e debater de

80 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


modo transdisciplinar, à luz de dife- poles. Inscrições e mais detalhes do Quatro teólogos de renome interna-

IHU em Revista
rentes abordagens teórico-metodo- evento podem ser solicitados através cional virão ao evento: John O’Malley
lógicas, os problemas e as possibilida- do e-mail humanitas@unisinos.br. – Georgetown University – EUA, Gilles
des nas metrópoles contemporâneas. Routhier – UniversitéLaval – Canadá,
O Concílio Vaticano II na
Antropólogo e um dos organi- ChristophTheobald – Centre Sèvres
contemporaneidade
zadores do ciclo, Caio Coelho explica – FacultésJésuites de Paris – França
Em 1961, quando o Papa João
que se quer provocar olhares para e MassimoFaggioli – Universityof St.
XXIII convocou o Concílio Vaticano II,
toda a amplitude das metrópoles. “Se Thomas – EUA.
a Igreja se viu em um momento de
formos usar o exemplo de um prédio, A teóloga Cleusa Andreatta, re-
reflexão. Para muitos, este foi o em-
não é olhar para ele apenas do pon- conhece que “as grandes intuições
brião de uma mudança na Igreja que
to de vista histórico e arquitetônico. do Concílio ainda não foram postas
busca se alinhar àsdiscussões e às
É olhar para ele com a relação das em prática”. No entanto, ressalta que
necessidades da sociedade. Porém,
pessoas que o frequentam ou que há quem sustente que os resultados o evento não quer tomar o resultado
circulam em seu entorno”, comple- ainda não foram totalmente compre- desse processo como uma cartilha –
ta. Parte-se de uma perspectiva da endidos nos dias de hoje. Acrescente escrita na década de 60 – a ser apli-
metrópole como ser vivo, um tecido a isso as transformações tecnocientífi- cada hoje. “É muito mais conceitual. É
pulsante muito mais voltado para as cas e socioculturais que a contempo- colocar a Igreja de hoje de forma mais
relações entre os habitantes deste raneidade impõe a cada dia com mais dialógica com a sociedade. É o espírito
ambiente. rapidez. Esse é o contexto em que se de intuição, os modos de proceder do
Serão nove encontros, que ini- desenvolverá o II Colóquio Interna- Concílio que nos inspirarão a pensar
ciam no dia 2 de abril e seguem até cional do IHU, que vai de 19 a 21 de daqui para frente”, conclui.
9 de junho de 2015. A programação maio, com o tema O Concílio Vaticano O evento é aberto a pesquisado-
completa com as datas de cada um II: 50 anos depois. A Igreja no contexto res e interessados pelo tema. A progra-
dos ciclos está disponível no sítio das transformações tecnocientíficas e mação completa está no sítiodo IHU.
doIHU, em http://bit.ly/IHUMetro- socioculturais da contemporaneidade. Acesse http://bit.ly/50anosconcilio.

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82 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


Entrevista de evento

IHU em Revista
“Vieira era um Indiana Jones
das missões”
Diretor da publicação das obras completas do padre Antônio Vieira, José Eduardo
Franco discute a atualidade e vitalidade do pensamento do jesuíta que, para ele, é
fundamental para compreender a formação do próprio Brasil

Por Andriolli Costa

D
urante os quase 90 anos de sua vida, nhecida como o Quinto Império; uma utopia
o padre Antônio Vieira viveu entre a que podemos classificar de protoecumênica.”
selva e a corte. Muitas são suas face- O professor concedeu entrevista pessoal-
tas conhecidas e complementares: amigos de mente à IHU On-Line durante sua passagem
nobres e conselheiro de reis, aventureiro mis- à Unisinos pela participação no XVI Simpósio
sionário e inimigo da Inquisição, defensor dos Internacional IHU – Companhia de Jesus. Da
índios e opositor dos colonos. Frequentador supressão à restauração. Nela, discute toda
dos palcos mais prestigiados da Europa e dos a atualidade e vitalidade do pensamento do
terrenos mais inóspitos da terra brasilis, Viei- jesuíta português que, para ele, é fundamen-
ra pôde lidar com a experiência humana em tal para compreender a formação do próprio
toda sua diversidade – defende o pesquisa- Brasil.
dor português José Eduardo Franco. E sugere: José Eduardo Franco é historiador, poeta
“Por sua extraordinária e fascinante vida, cos- e ensaísta especializado em História da Cultu-
tumo dizer que Vieira era um Indiana Jones ra. Possui doutorado em História e Civilização
das missões”. pela ÉcoledesHautesÉtudesenSciencesSocia-
Franco é coordenador de um massivo lesde Paris e em Cultura pela Universidade de
projeto editorial português – o mais arrojado Aveiro. Professor do Centro de Literaturas de
das últimas décadas: a publicação das obras Expressão Portuguesa da Universidade de Lis-
completas, inclusive inéditas, do jesuíta por- boa, ele coordena atualmente um vasto pro- www.ihu.unisinos.br
tuguês. São trinta volumes que totalizam qua- jeto de pesquisa, levantamento e edição dos
se 15 mil páginas, lançados entre fevereiro Documentos sobre a História da Expansão
de 2013 e setembro de 2014. Entre escritos Portuguesa, existentes no Arquivo Secreto
epistelográficos, proféticos, sermões e textos do Vaticano. É também membro da comissão
políticos, Vieira cobriu uma vasta gama de coordenadora do projeto da edição crítica da
preocupações que iam desde os sentimentos Obra Completa do Padre Manuel Antunes.
humanos, a religião e o próprio destino da hu- Franco é autor de diversas publicações,
manidade – na obra História do Futuro. das quais destacamos: O Mito dos Jesuítas
“Vieira imaginou um futuro de paz. Um em Portugal, no Brasil, no Oriente e na Euro-
mundo onde os diferentes povos e culturas pa (Lisboa: Gradiva, 2007), Vieira e as mulhe-
pudessem conviver de forma pacífica e har- res: Uma visão barroca do universo feminino
moniosa, com respeito pelos diferentes ritu- (Porto: Campo das Letras, 2007) e Jesuítas e
ais sociais e pelas formas de os estados atua- a Inquisição: cumplicidades e confrontações
rem, se governarem e até exprimirem sua fé”, (Lisboa: Aletheia, 2007).
relata Franco. “Essa é a utopia que ficou co- Confira a entrevista.

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 83


IHU On-Line – Quem foi o Padre
“O marquês de cravatura, a humanização do trabalho
IHU em Revista
Antônio Vieira1e qual a sua impor- escravo... Era um homem aventureiro
tância para as atividades da Compa-
nhia no Brasil? Pombal é, em e corajoso, mas que também, devido à
forma como pregava, conseguia encan-
José Eduardo Franco – Antônio
Vieira, como sabemos, é uma das fi- certa medida, tar e tornar-se amigo da realeza. Vieira
tornou-se pregador do rei Dom João
guras maiores da história literária po-
lítica, cultural e religiosa de Portugal inventor do Brasil” IV, encantou a rainha Cristina da Sué-
cia e foi absolvido pelo papa Clemente
e do Brasil. Ele viveu, praticamente, X, que o isentou dos ataques da Inqui-
metade da vida em Portugal e meta- sição4. Era um homem de palavra tão
de no Brasil; nasceu em Portugal, mas à categoria de “Imperador da Língua sedutora que os grandes reis da épo-
formou-se na Companhia de Jesus no Portuguesa” no livro AMensagem, de ca procuravam seu conselho e ouviam
Brasil. Ele, como homem do século 1934. Para ele, Vieira era mais do que seus sermões. Chegou a ser até mes-
XVII, grande viajante e missionário, um grande escritor, mas um artista mo embaixador de Portugal. Portanto,
viveu entre a selva e a corte. Experi- da língua. Ainda hoje, Vieira é lido e Vieira foi um missionário, mas também
mentou os espaços mais inóspitos, as admirado pela forma bela e artística alguém que se envolveu com a causa e
selvas amazônicas, foi ameaçado de com a qual escreve, continuando a no projeto político português.
morte, de doenças, etc., assim como constituir uma escola do bem falar e Ao mesmo tempo, foi alguém
experimentou como diplomata e con- do bem escrever. Figuras insuspeitas que produziu e se preocupou com
selheiro político os palcos mais pres- como José Saramago3 já confessaram aquilo que era de seu tempo, de sua
tigiados da Europa. Grande defensor que costumavam ler Vieira antes de época, em um período de grande
dos índios, foi também amigo dos reis, escrever seus romances para se ba- conflito entre as potências europeias.
dos papas, dos cardeais, lidando com nhar nas águas cristalinas e puras de Um tempo onde se vivia uma espécie
a experiência humana em toda sua nosso idioma. Saramago, inclusive, di- de proto-Primeira Guerra Mundial.
diversidade e diferentes expressões. zia que nunca a língua portuguesa foi Isto porque as potências modernas e
Isso lhe dava uma dimensão de uni- tão bela como quando foi escrita pelo mundiais, Portugal, Espanha, Holan-
versalidade extraordinária. jesuíta. Eu também gosto de ler Vieira da, Inglaterra e França – que tinham
Ele é importante para Portugal e antes de escrever, porque ele usou a aquela tradição de conflitos e guerras
para o Brasil, primeiramente, por ter língua não apenas com grande perfei- na Europa –, projetaram esses confli-
sido um mestre da língua portuguesa. ção, mas porque sua forma de escre- tos em nível mundial. Assim, holande-
Fernando Pessoa2, inclusive, o elevou ver traduzia pensamentos profundos, ses e portugueses começaram a digla-
complexos e que ainda hoje nos agu- diar-se no Brasil, como os espanhóis
1 Antônio Vieira (1608-1697): padre je- çam a reflexão e a imaginação. Ele fez e outros estados europeus projetaram
suíta, diplomata e escritor português. a língua dizer do pensamento humano os seus conflitos internos na Europa
Desenvolveu expressiva atividade missio- para a África e para o Oriente, etc.
nária entre os indígenas do Brasil procu-
de uma forma complexa e bela.
rando combater a sua escravidão pelos Vieira estava preocupado com
senhores de engenho. Em 1641 voltou a Pensamento o destino da humanidade, e também
Portugal onde exerceu funções políticas Vieira não é importante apenas se preocupava muito com o destino
como conselheiro da Corte e embaixador
de D. João IV principalmente no que se pelo primor no idioma, mas também do Cristianismo devido ao avanço do
referia às invasões holandesas do Brasil. pela atualidade do seu pensamento. Protestantismo. Assim, pensando o
Retornou ao Brasil em 1652, tendo es- Por sua extraordinária e fascinante
tado no Maranhão, onde fez acusações
destino de Portugal, da Europa e do
aos senhores de engenho escravocratas vida, costumo dizer que Vieira era mundo, escreveu uma obra com um
na defesa da liberdade dos índios. Foi um Indiana Jones das missões. Cons- título absolutamente pioneiro para a
expulso do país, juntamente com outros
truindo missões em lugares inóspitos, época: História do Futuro. Nele, pro-
www.ihu.unisinos.br

jesuítas. Voltou ao Brasil em 1681. Entre


suas obras estão: Sermões, composto estando ao lado dos índios contra os pôs uma solução para a humanidade
por 16 volumes que foram escritos entre colonos, defendendo a abolição da es- em perspectiva cristã. Imaginou um
1699 e 1748; História do Futuro (1718);
Cartas (1735-1746), em três volumes; De- futuro de paz, onde a sociedade com-
fesa perante o tribunal do Santo Ofício
(1957), composto por dois volumes. Con- maior autor da heteronímia. (Nota da
fira a edição 244 da IHU On-Line, de 19- IHU On-Line) 4 Em 1667, Antônio Vieira foi privado
11-2007, Antônio Vieira. Imperador da 3 José Saramago (1922-2010): escritor do direito de pregar em público e con-
língua portuguesa, disponível em http:// português, Nobel de Literatura em 1998. denado à prisão domiciliar num colégio
bit.ly/ihuon244. (Nota da IHU On-Line) Conhecido por utilizar-se de frases e pe- da Companhia de Jesus, mas em 1669
2 Fernando Pessoa (1888-1935): escritor ríodos longos, escreveu, entre outros, Os conseguiu um indulto régio com autoriza-
português, considerado um dos maiores Poemas Possíveis (1966); Provavelmente ção para ir em peregrinação a Roma, aos
poetas de língua portuguesa. Atuou no Alegria (1970); Deste Mundo e do Outro túmulos de São Pedro e São Paulo e tra-
jornalismo, na publicidade, no comércio (1971); Teatro: A Noite (1979); Que Farei tar de negócios da Companhia de Jesus.
e, principalmente, na literatura, onde com Este Livro? (1980); Contos: Objecto Permaneceu na Cidade Eterna até 1775.
desdobrou-se em várias outras persona- Quase (1978); Romance: Levantando do Durante esse período, fez amizade com a
lidades conhecidas como heterônimos. A chão (1980); A jangada de pedra (1986); ex-rainha Cristina, da Suécia, então exi-
figura enigmática em que se tornou mo- A caverna (2001); O homem duplicado lada na Itália, tendo sido convidada por
vimenta grande parte dos estudos sobre (2002); Ensaio sobre a lucidez (2004). esta para ser seu capelão, confessor e
sua vida e obra, além do fato de ser o (Nota da IHU On-Line) pregador. (Nota da IHU On-Line)

84 SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 460


partilhasse os valores do evangelho. em servir o bem comum, preocupava-se José Eduardo Franco – Isso tem

IHU em Revista
Um mundo onde os diferentes povos em servir a si próprio, o que gerava um a ver com a história interna da Com-
e culturas pudessem conviver de for- ciclo de corrupção sistemática que era panhia de Jesus no fim do século XVII,
ma pacífica e harmoniosa, com res- a grande doença, a grande chaga que já no final da vida de Vieira. O que se
peito pelos diferentes rituais sociais e impedia que Portugal progredisse. passou foi que a Companhia, ao che-
pelas formas de os estados atuarem, Por isso ele aconselha o rei de Portu- gar em diferentes territórios, enviava
se governarem e até exprimirem sua gal a repensar a forma como nomeia missionários europeus para criar as
fé. Claro, uma fé orientada para Cris- os responsáveis por cargos públicos estruturas eclesiais no local. Entretan-
to, mas com a possibilidade de haver (governadores, administradores, etc.). to, pouco a pouco passou-se a formar
várias especificidades e rituais dife- Dizia que as nomeações não deviam jesuítas nascidos no próprio país. As-
renciados, sempre numa perspectiva ser feitas em razão ao pertencimento a sim, aqueles jesuítas que já eram bra-
integradora. Essa a utopia que ficou determinado grupo ou família, mas em sileiros iniciaram o que eu chamaria
conhecida como o Quinto Império; função do mérito. Para Vieira, os ofí- de uma disputa protonacionalizante,
uma utopia que podemos classificar cios não eram feitos para os homens, em que os nascidos aqui nesta terra
de protoecumênica. mas os homens para os ofícios. É o que buscaram tomar o controle da Com-
Foi ainda um grande defensor chamo de uma filosofia avant lalettre panhia. Havia ainda um entendimen-
dos judeus e, nesse sentido, com- da ação e do empreendedorismo. Em to diferente da forma de lidar com os
bateu e criticou a Inquisição,sendo Vieira a verdadeira fidalguia está na indígenas e colonos. Houve setores
também por isso preso e perseguido ação. Dizer isso no século XVII era ex- da Companhia que ficaram mais com-
por ela. No entanto, consegue, entre traordinário, pois reflete ainda sobre prometidos com a estratégia colonial,
1674 e 1681,um Breve do papa para a importância de nossa ação frente com os bandeirantes, enquanto Vieira
suspender a Inquisição em Portugal. ao imobilismo e à apatia. É uma onto- vinha de uma tradição de resistência
Ao mesmo tempo, Vieira antecipou logia da ação, que dá sentido, valor e a esta ideia de usar os escravos como
reformas que figuras como Marquês substância à vida humana, tentando peças, como mercadoria e não como
de Pombal5 haveriam de implantar só desafiar os homens do seu tempo a se- pessoas. Como Vieira era um huma-
no século seguinte. rem transformadores. Dizia Vieira: “Só nista, com uma formação na linha da
existimos  nos dias  em que  fazemos. matriz renascentista, ele reagiu a essa
Direitos Humanos Nos dias em que não fazemos apenas incidência. Mas então ele já era mui-
O jesuíta é ainda um precursor duramos”. to velho, tinha quase 90 anos, e nem
de uma reflexão que antecipa aspec- Algo que vem do debate moder-
tos patentes na proclamação formal tinha mais tanto poder político na co-
no contra o protestantismo é a ques-
dos Direitos humanos no século se- lônia. Acabou por ser marginalizado,
tão das obras e o debate em torno da
guinte, desenvolvendo sermões extra- embora tenha resistido até o fim. In-
justificação pelas obras ou, ao invés,
ordinários de crítica à forma como se teressante notar que, por fim, o Geral
somente pela graça divina. Ele dizia:
tratavam os escravos, defendendo a da Companhia, na época, acabaria por
“Para falar ao vento bastam palavras,
humanização e respeito dos escravos lhe dar razão. No entanto, a carta final
para falar ao coração são necessárias
– que eram tratados como animais, obras”. O que move os corações são com a sua absolvição chegou quando
não como humanos e cristãos. Vieira as obras, o exemplo, e, portanto, a ele já havia morrido. Vieira acabou
enfrentou os senhores de engenho importância do obrar, realizar, trans- por vencer post-mortem. Essa polê-
e das terras em favor dessa humani- formar. Era isso que dava valor à vida mica mostra que a Companhia, em al-
zação. Por outro lado, em sermões humana. Ele, como homem, foi um guns aspetos, não era uma só, e agia a
como o do Bom Ladrão, igualmente homem da ação. Viveu quase 90 anos, partir de percepções diversas dos pro-
extraordinário, Vieira critica durante quase todo o século XVII e, até mor- blemas. Na minha perspectiva, Vieira
as estruturas de corrupção sistemá- rer, esteve sempre a agir, a transfor- representava uma visão mais ousada www.ihu.unisinos.br
tica as hoje chamadas Estruturas de mar. Aqui uma sintonia com o chama- e humanizante, ainda que ele próprio
Pecado. Este sermão vai defender que do Cristianismo da ação. seja marcado por suas contradições.
era preciso combater uma doença Vieira, embora fosse um idealista
que acometia o império português e IHU On-Line – No Brasil a Com- do ponto de vista teórico, que acredi-
invariavelmente o Brasil e a zona do panhia quebra entre Vieiristas e Ale- tava no poder transformador do evan-
Maranhão: a corrupção. xandristas6, a partir de uma perspec- gelho, era também um realista. Assim,
Quem exercia os cargos de gover- tiva oposta sobre o modo de se tratar ainda que defendesse a liberdade dos
no e administração, ao invés de pensar os escravos. Quais eram os pontos índios – e percebendo que economia
divergentes? da colônia era baseada no trabalho
5 Marquês de Pombal (1699-1782): Se- escravo –, reconhecia que Portugal
bastião José de Carvalho e Melo, nobre 6 Alexandre de Gusmão (1629-1724): je- não poderia ser o primeiro país a abrir
e estadista português. Foi secretário de suíta português. Embarcou com a família
Estado do Reino durante o reinado de D. para o Brasil em 1644. Ingressou no novi- mão desta mão de obra, pois perde-
José I (1750-1777), sendo considerado, ciado da Companhia de Jesus no dia 27 ria vantagem economicamente ante
ainda hoje, uma das figuras mais contro- de outubro de 1646. Fez profissão solene
versas da História Portuguesa. (Nota da no dia 2 de fevereiro de 1664. (Nota da as demais potências. Vieira percebeu
IHU On-Line) IHU On-Line) que não era possível continuar a sus-

EDIÇÃO 460 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE DEZEMBRO DE 2014 85


tentar um projeto político português
“A verdadeira expulsos e propôs o fim da distinção
IHU em Revista
e uma economia coesa no contexto entre cristãos velhos e cristãos novos–
da dinâmica colonial portuguesa sem
contar com o trabalho escravo, mas
fidalguia é ação” uma divisão que ele considerava in-
justa e imprópria para uma sociedade
defendeu a proclamação da liberdade cristã. Os cristãos novos, judeus e mu-
de determinados segmentos de es- çulmanos convertidos ao cristianis-
cravatura. Ele tinha muito afeto pelos tal modo que sabemos que no século mo, não tinham acesso aos mesmos
seus índios e defendeu sua liberdade, XIX, com a vinda da corte do rei Dom privilégios e cargos que os cristãos
pois julgava que eles estavam ligados João VI para o Rio de Janeiro, Portugal velhos. Vieira propôs abolir essa dis-
a esse território, já possuíam seus di- foi a única potência europeia que foi tinção, como também uma reforma
reitos próprios e apresentavam uma capaz, para sobreviver, de deslocar o que humanizasse mais a Inquisição,
condição física diferente dos escravos seu centro de poder para uma colônia a liberdade dos negros, enfim, um
africanos. sua. A Inglaterra não fez isso, a França conjunto de medidas que mais tarde
Ainda assim, defendendo a ma- não fez, nem a Espanha, mas Portugal figuras do Iluminismo como Pombal
nutenção da escravidão africana, pro- sim. vão implantar.
pôs a humanização desse trabalho. Essa solução não é nova, já vinha
É a chamada via do mal menor, que do século XVII. Neste período, o Padre Antissemitismo
é bem tomista. Naquela época, de Antônio Vieira, curiosamente, já havia Pombal já na década de 1750
acordo com a hierarquia de valores, antecipado uma série de medidas – e investe na criação de companhias
se valorizava mais a salvação da alma esta foi uma delas. Este era um sécu- monopolistas, como Vieira havia pro-
do que do corpo. Assim, o fato de se lo de crise, de restauração, de emer- posto; em 1773, vai abolir o termo
trazer os escravos da África fazia com gência dos holandeses como grande de distinção entre cristãos velhos e
que eles pudessem conhecer o evan- potência ameaçando invadir Lisboa... novos e o fim dos atestados de limpe-
gelho, se tornar cristãos e aceder aos Frente a estes desafios, Vieira propôs za de sangue; em 1774, edita o regi-
bens salvíficos dispensados através da que eventualmentese deslocasse a mento pombalino da Inquisição, onde
Igreja. Se a escravidão do corpo pre- capital da metrópole e da corte para incorpora diversas ideias reformistas
servava a salvação da alma, se privile- o Brasil. Isso chegou a acontecer, mas de Vieira. Pombal era também contra
giava a alma. apenas mais tarde, em 1808. Vieira toda a corrente antijudaica, e protege
antecipou em cerca de 150 anos o os judeus. Da mesma forma, Vieira, no
IHU On-Line – De que forma que de fato aconteceria. De tal modo século anterior, defendia que Portugal
acredita que é preciso compreender que, em 1815, o futuro rei Dom João havia cometido um erro histórico: ex-
o Brasil para entender Portugal? VI criou uma estrutura política inédi- pulsar uma elite extraordinariamente
José Eduardo Franco – Para ta: o Reino Unido de Brasil, Portugal empreendedora. Os descobrimentos,
compreendermos Portugal do sécu- e Angola– que englobava ainda outros as viagens marítimas, a expansão por-
lo XIX é absolutamente fundamental estados ultramarinos portugueses, tuguesa, tudo isso teve grande envol-
levarmos em conta a relação com o como Cabo Verde e Angola, na África vimento de judeus, pois eram ligados
Brasil. Aliás, se Portugal se viabilizou e alguns da Ásia. Um território imen- aos processos de construção naval,
na segunda metade do século XVII e so e, se tivesse continuado, seríamos do comércio, etc. Para Vieira, Portu-
depois durante o século XVIII, deve-se uma potência extraordinária. Foi uma gal começou a decair a partir da ex-
ao fato de ter se voltado para o Bra- ideia fantástica, quase utópica, mas pulsão desta elite, e outros impérios
sil. No século XVII, no contexto da ex- foi concretizada durante sete anos até como a Holanda, para onde os judeus
pansão portuguesa, a grande fonte de a independência. foram, começaram a crescer com sua
rendimento de Portugal era o Orien- chegada.
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te, com as especiarias, um pouco dos IHU On-Line – Porque Vieirapo- Vieira defendia que se criassem
seus territórios naÁfrica, mas a partir de ser compreendido como um pre- condições para possibilitar o regresso
da segunda metade do século XVII e cursor de Pombal? dos judeus, pois isso seria fundamen-
XVIII o Brasil foi a grande fonte que José Eduardo Franco –Vieira de- tal para recuperar essa elite empre-
permitiu que Portugal se mantivesse fendeu um conjunto de medidas, no endedora e colocá-la a serviço da re-
um país viável e sustentável, com al- contexto das reformas sociais, polí- cuperação do reino de Portugal. Claro
gum prestígio internacional. No prin- ticas e econômicas, capazes de fazer que na época Vieira foi acusado de ser
cípio o Brasil era um território imenso, com que o império português se tor- amigo dos judeus, e mesmo que o Rei
com alguns recursos – como a madei- nasse viável e fizesse frente à Espanha tenha tentado criar condições para
ra –, mas não era o El Doradoque se e às demais potências emergentes, isso, todo o trabalho foi boicotado
imaginava. Alguns até o desconside- nomeadamente a Inglaterra. Para tan- pela Inquisição. Essas ideias reformis-
ravam. Só mais tarde, com a desco- to, propõe reformas em vários níveis: tas são postas em prática apenas na
berta de ouro e diamantes, o Brasil propôs a criação de companhias mo- segunda metade do século seguinte,
se confirmaria como o território co- nopolistas, propôs a reforma da Inqui- 100 anos depois, pelo Marquês de
lonial mais importante e decisivo. De sição, propôs o regresso dos judeus Pombal. Por isso dizemos que Vieira

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é um precursor de Pombal, o que é fato de falar uma única língua. Esta é a com sua expulsão. Os jesuítas criavam

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extraordinário. grande cerzidura que une o país. Mas uma elite pensante e crítica. Pombal,
porque ele não se desmembrou como entretanto, jamais permitiu que se
IHU On-Line – De que forma o fizeram outros países da América criassem Universidades na colônia,
Pombal ajuda a entender a história espanhola? O Brasil manteve-se uno e enquanto no Peru, no México e na
brasileira e portuguesa? coeso, apesar de alguns poucos con- Argentina, desde o século XVI e XVII
José Eduardo Franco – Pombal, flitos, até a atualidade. Na minha opi- já havia Universidades. No caso do
para Portugal, é importante por ser o nião, para tanto, Pombal foi decisivo. Brasil, não, devido ao chamado pacto
criador do Estado moderno – burocrá- Isto primeiramente porque, em colonial. Um pacto em que era proibi-
tico, centralizado e hipercontrolador, 1757, publicou um diretório para o do abrir mão de setores estratégicos,
com representantes do Estado para Brasil onde impunha, entre outras especialmente para garantir o con-
todo o lado. Da mesma forma ele o medidas, a língua portuguesa como trole da colônia e evitar movimentos
faz no Brasil, acabando, por exemplo, única e obrigatória, proibindo o ensi- autonomistas. Os colégios jesuítas fa-
com o monopólio dos missionários, no dos demais idiomas e punindo com ziam este papel. Não tinham estatuto
que tinham direito temporal e espiri- medidas graves quem os ensinasse. de Universidade, mas formavam eli-
tual sobre os índios, e coloca agentes Na sequência, estava ainda o proces- tes importantes. Formaram Vieira na
do estado para controlar o território. so da expulsão dos jesuítas, em 1759. Bahia, formaram Gregório de Matos,
Era sua preocupação garantir a sobe- O fato de impor uma língua única e etc. Com o fim dos jesuítas e desses
rania total do território que é um dos expulsar os jesuítas foi determinante imensos colégios nas principais cida-
fundamentos da afirmação do Estado para a manutenção da unidade, pois, des, esses polos de formação de elite
moderno, criando uma burocracia, re- como sabemos, os jesuítas missiona- foram desmantelados, o que enfra-
formando e reforçando o exército, es- vam a língua dos índios e ensinavam o queceu o quadro de brasileiros capa-
truturando uma polícia vigilante, etc. idioma geral do Brasil, desenvolvendo zes de traçar panoramas e criar mo-
Também cria o primeiro sistema de quase uma língua própria. Esta rela- vimentos de autonomia. Portanto, se
ensino público estatal. Com a expul- ção, se não fosse talhada, poderia ter os jesuítas tivessem ficado, poderiam
são dos jesuítas, Pombal cria um ensi- gerado maior sentimento de autono- ter facilitado, na virada do século XVIII
no público com uma forma de recruta- mia. Os jesuítas procuraram respei- para o XIX, movimentos de libertação
mento estatal de professores, criando tar e evangelizar em um processo de do território. A política de Pombal
o estatuto e a profissão docente, e é aculturação. Pombal e seus seguido- é absolutamente fundamental para
a primeira vez que se cria em nível res viam isso como perigoso, acusan- compreender o Brasil que conhece-
internacional um sistema público de do os jesuítas de criarem um Estado mos hoje.
ensino – por substituição ao privado dentro do Estado. Pombal considera-
dos jesuítas. Pombal tenta implantar va o ensino da língua indígena como IHU On-Line – De onde surgiu a
ideias e ciências novas, incorporando uma espécie de separatismo, que se- proposta de editar os 30 volumes de
a ciência moderna, o que também é ria perigoso para a unidade do Estado. suas obras completas dirigidas por
importante para o desenvolvimento O fato de Pombal expulsar os jesuítas você e por Pedro Calafate?
de Portugal. Ele também decretou a desestrutura esse processo linguístico José Eduardo Franco – A primei-
abolição da escravidão na metrópole que os jesuítas mantinham. Predo- ra tentativa de publicar a obra com-
e nas colônias da Índia em 1761, ain- minantemente também, ao tirar dos pleta de Vieira foi em 1851. Desde
da que tivesse outros interesses, mas jesuítas e dos missionários o poder então, registrei 15 projetos que se ini-
enfim. Nesse sentido, ele é precursor temporal e espiritual sobre as aldeias, ciaram, mas que não foram até o fim.
da modernidade. em nome do absolutismo ilumina- Apenas o nosso se concretizou. Tendo
Mais especificamente, não po- do, reafirma a razão do estado. Essa em vista sua importância, publicamos www.ihu.unisinos.br
demos entender o Brasil de hoje sem noção fez com que todo o território em Portugal os 30 volumes das obras
entender a importância da política brasileiro fosse estatizado. A língua, completas de Antônio Vieira, com 10
pombalina para a colônia brasileira. a expulsão, a desarticulação do siste- mil exemplares cada. Agora a coleção
Considero que, de certo modo, Pom- ma de diferenciação, a estatização das está sendo publicada no Brasil pelas
bal foi o inventor do Brasil. Isto porque formas de governo e o controle efe- edições Loyola. No século XXI, o ho-
se não fosse sua ação, não teríamos tivo de todo o território permitiram mem que escreveu cartas e sermões
o Brasil como o conhecemos hoje. a criação de uma coesão que evitou no século XVII continua sendo muito
Como, afinal, um país imenso – qua- desmembramentos, revoltas e sepa- lido, e vários destes volumes se tor-
se continental – como é o Brasil, for- rações que aconteceram na América naram bestsellers. Foi o resultado do
mado a partir de um país minúsculo espanhola, criando o Brasil coeso que trabalho de uma equipe de pesquisa-
que é Portugal, consegue manter uma temos hoje. dores em Portugal e no Brasil traba-
coesão? O que une mais um brasilei- Havia ainda outro aspecto impor- lhando simultaneamente durante dois
ro do Rio Grande do Sul com um nor- tante. Os jesuítas possuíam colégios anos, editando mais de 50 mil manus-
destino ou alguém do Amapá? Esta que eram praticamente Universidades critos que se tornaram cerca de 15 mil
coesão passa fundamentalmente pelo e que também foram desmantelados páginas tratadas e editadas, sendo um

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terço de escritos inéditos ou parcial-
“Para Vieira, os são os escritos epistolográficos, suas
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mente inéditos. Um contributo extra- cartas e correspondências, em cinco
ordinário para a cultura portuguesa,
considerado o maior feito editorial da ofícios não eram volumes. O segundo, em 15 volumes,
são os Sermões. Temos também a
história da edição em Portugal desde
o século XV. Isto porque é a primeira feitos para os obra profética em seis volumes, que
é o terceiro tomo, onde se fala do fu-
vez que foi possível preparar a partir
dos originais, traduzir tudo que esta- homens, mas os turo de Portugal e da idealização de
um mundo melhor. Na última parte,
va em outros idiomas, rever, anotar,
atualizar e editar uma obra dessa di- homens para os o quarto tomo, com quatro volumes,
é a obra variada –em que temos os
mensão em tão pouco tempo. Foram
apenas dois anos de pré-edição e edi- ofícios” escritos políticos, os escritos sobre a
Inquisição e sobre os índios. O último
ção para lançar os volumes entre fe- tomo, que é o que muita gente des-
vereiro de 2013 e setembro de 2014. conhecia, é dedicado à poesia e ao
Desde os anos 1990 sonhava em ordenadores, visitando arquivos para teatro de Vieira. Isso era pouco co-
publicar a obra de Vieira, já tendo confrontar documentos, etc. nhecido e, por coincidência, esta obra
participado de outras equipes não li- Lançamos também um apelo na é editada e coordenada por um pro-
deradas por mim que haviam falhado. comunicação social para que quem fessor brasileiro, João Bortolanza, da
Buscamos promover uma liderança tivesse correspondências, cartas e Universidade de Uberlândia, que nos
que evitasse o erro das outras equipes. escritos que pudessem ser de Viei- anos 1990 tinha sido o único especia-
Como eu já estudava Vieira há 20 anos, ra, que nos avisassem, que iríamos lista que encontrei no Brasil que havia
já sabia previamente em quais biblio- lá consultar. Em Portugal há muitos escrito sobre o tema.
tecas estavam seus escritos e onde arquivos privados de famílias nobres. Todos os volumes são interessan-
poderia haver os textos inéditos. Es- Muitos nos telefonaram, cedendo tes, mas eu destacaria os sermões. Te-
colhemos equipes de especialistas em manuscritos e abrindo arquivos, o que mos a ideia de “dar um sermão”, mas
várias universidades brasileiras e por- nos permitiu completar muita corres- não. O sermão de Vieira não é apenas
tuguesas, pondo à frente de cada volu- pondência que não conhecíamos, uma obra de arte, mas ainda conta a
me um especialista da área. Por exem- completar documentos de difícil aces- história, fala de ciência, astronomia,
plo, o professor João Adolfo Hansen so para leitura, etc. Outra dificuldade psicologia, amor, amizade... Fala sobre
ficou à frente do volume de Sermões. foi convencer uma editora de grande a complexidade do ser humano, em
Quem era especialista em Epistologra- circulação, como a Círculo de Leitores sua bondade e maldade extremas. O
fia cuidava do volume correspondente. e Edições Loyola, a publicar 30 volu- sermão do mandato é de leitura obri-
Aqueles que haviam escrito teses so- mes de um autor do século XVII. gatória sobre o amor, o sermão de Nos-
bre o pensamento profético de Vieira Foi uma espécie de construção sa Senhora do Ó é lindíssimo e antecipa
assumiam esses volumes, e assim por democrática da obra de Vieira, em que até mesmo fórmulas matemáticas que
diante. Esses especialistas orientavam todos aqueles que possuíam fontes pu- só no século XIX serão desenvolvidas.
o desenvolvimento da pesquisa do vo- deram oferecê-las para, pela primeira Vieira é um gênio que antecipou muita
lume sob a sua coordenação específi- vez, termos a obra completa de Padre coisa. Por isso os matemáticos, os ló-
cae escreviam a introdução para cada Antônio Vieira. Esta extraordinária edi- gicos, os sociólogos, filósofos e poetas
livro de sua especialidade. ção representa uma verdadeira prima- têm interesse por Vieira.
Juntamos então uma equipe de vera cultural, uma valorização dos clás- No entanto, tudo depende do
cerca de 25 pesquisadores, como la- sicos. Percebe-se que as pessoas têm interesse: quem gosta de correspon-
tinistas, linguistas, revisores de texto, sede dos clássicos e que estes, se fo- dências encontrará em Vieira o diálo-
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arquivistas, historiadores e filósofos, rem bem apresentados e editados, po- go com grandes figuras do século XVII;
na Universidade de Lisboa, que davam dem atrair leitores. Porque o clássico é quem gosta de pensar os valores, a
assistência aos coordenadores dos aquele autor cuja obra nunca perdeu a política e o modo de estar em socie-
diferentes volumes. A equipe trans- atualidade. E a maneira de escrever e dade, encontrará em Vieira grandes
creveu, fez a tradução e atualização pensar de Vieira ainda é atual e ainda apontamentos; para quem quer pen-
do material original, buscou outras nos ensina muita coisa. sar o futuro da humanidade temos
edições para incorporar trechos que a obra profética; se quiser pensar a
faltavam, fez a revisão, anotação e IHU On-Line – Qual você desta- Inquisição e a reforma política, com
pouco a pouco foi surgindo a obra do caria como a obra mais importante? maior ética e responsabilidade, tam-
Vieira. Foi um dos cronogramas mais José Eduardo Franco – Ah, não bém encontrará essa discussão em
exigentes em que já trabalhamos, faça essa pergunta! Naturalmente Vieira, e quem quiser pensar o teatro
pois era preciso publicar três volumes todos os seus textos são extraordi- e a poesia também poderá fazê-lo
a cada dois meses. Trabalhamos dia nários. Vieira é uma escola de saber, nesses volumes. É uma obra caleidos-
e noite, com minha equipe sempre um deleite. Os 30 volumes são orga- cópica e de uma universalidade pouco
acompanhando, ligando para os co- nizados em cinco tomos. O primeiro vulgar daquela época.

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Publicação em destaque
IHU em Revista

A Arte da Ciência e a Ciência da Arte:


uma abordagem a partir de Paul
Feyerabend
Cadernos IHU ideias, em sua 217ª edi-
ção, traz o artigo A Arte da Ciência e a Ciên-
cia da Arte: uma abordagem a partir de Paul
Feyerabend, sob autoria de Hans Georg Fli-
ckinger, filósofo alemão, palestrante do XIV
Simpósio Internacional IHU. A tese da infe-
rioridade das artes quanto à criação do saber
verdadeiro vale apenas para as artes compro-
metidas com o ideal do belo. No momento
em que as artes se rebelam contra esse ideal
e, portanto, contra a tutela exercida pela teo-
ria, elas abrem um campo inédito de experi-
ências. Essa mudança radical atingiu também
as Teorias de arte que, no entanto, ao tentar
impor sua conceituação científica às artes,
passaram a ameaçar estreitar nosso acesso
à experiência estética e suprimir o fascínio
desafiador que dela emana. Reconhecer a ex-
periência estética como campo de produção
autêntica do saber, ou submeter de novo as
artes ao conceito, do qual elas se vêm ten-
tando libertar em processo penoso. Não sur-
preende, portanto, que Feyerabend refletisse
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sobre a relação entre ciência e arte como


áreas de produção do saber, à primeira vista,
incompatíveis. Crítico da Teoria da Ciência e
íntimo conhecedor das ciências teatrais, ele
tinha plena consciência de que, se aceitasse
seguir os critérios da cientificidade, qualquer
produção artística estaria negando a autenti-
cidade da experiência estética.
Esta e outras edições dos Cadernos IHU podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU
ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8213. Você também
pode baixar esta edição gratuitamente em http://bit.ly/1GjHqak.

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Retrovisor

IHU em Revista
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Mística, estranha e essencial. Secularização e emancipação


Edição 435 – Ano XIII – 16-12-2013
Disponível em http://bit.ly/1fjohrc

A edição 435 da IHU On-Line reúne pesquisadores, professores e professoras


de diferentes áreas de conhecimento para discutir o conceito de mística. Michel
de Certeaudescreve mística como estranha e essencial. Já Theodor Adorno e Ger-
shomScholem pensam a mística como uma secularização que representa um avan-
ço emancipatório. É começo para a reflexão que essa edição propôs ainda em 2013.
Contribuem para o debate Faustino Teixeira, José Altran, Luiz Felipe Pondé, Marco
Vannini, Eduardo Guerreiro Losso, Marco Lucchesi, José Carlos Michelazzo, Pablo
Beneito Arias, Maria Cristina Guarnieri, Ricardo Fenati, Bernard McGinn e Carlos
Roberto Drawin.

Filosofia, mística e espiritualidade. Simone Weil, cem anos


Edição 313 – Ano IX – 09-11-2009
Disponível em http://bit.ly/12VElyi

Nessa edição do início de novembro de 2009, a mística é tema mais uma vez
na IHU On-Line. Dessa vez, ainda permeada pela filosofia e a espiritualidade. Isso
através do centenário do nascimento de Simone Weil, escritora, operária e filóso-
fa francesa, que morreu aos 34 anos de idade. Contribuem para a discussão Bar-
tomeuEstelrich, Emmanuel Gabellieri, Giulia Paola di Nicola, AttilioDanese, Maria
Clara Bingemer, Fernando Rey Puente e Miguel Ângelo Guimarães Juliano.

Gerard Manley Hopkins: poeta e místico. Do cotidiano imediato ao


plano cósmico
Edição 282 – Ano VIII – 17-11-2008
www.ihu.unisinos.br
Disponível em http://bit.ly/1snQt1C

Nessa de 2008, a mística está presente mais uma vez na IHU On-Line. O que
conduz o leitor por esse tema é a história e o trabalho de Hopkins. Poeta e místico
inglês, é considerado um dos maiores autores da literatura universal jesuíta. Sua
obra é analisada e discutida por alguns poetas, tradutores e professores de Litera-
tura.Contribuem para a discussão Alípio Correia de Franca Neto, Paulo Henriques
Britto, Claudio Daniel, Aníbal Gil Lopes, Aurora Bernardini, John Milton, Wiliam Al-
ves Biserra, Thomas Burns, Dirceu Villa, Marcus Motta e Thiago Ponce de Moraes.

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Contracapa
Colóquio Internacional IHU

O Instituto Humanitas Unisinos realiza, entre os dias 19 e 21 de maio de 2015, o Coló-


quio Internacional O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto das transfor-
mações tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade. Mais informações em
http://bit.ly/50anosconcilio.

Ciclo de Estudos - Metrópoles


A partir de abril de 2015, o IHU inicia o ciclo de estudos Metrópoles, Políticas Públicas e
Tecnologias de Governo – Territórios, governamento da vida e o comum. Durante dois
meses, o tema será abordado luz de diferentes vertentes teóricas, como o paradigma
da multidão e a (des)governança territorial. Acesse http://bit.ly/IHUMetropoles

Programação de Páscoa

A programação de Páscoa do Instituto Humanitas Unisinos, que ocorre de 11-03-2015 a 26-


03-2015, tem como eixo Ética, Mística, Transcendência – e suas implicações transdisciplinares
no campo da cultura, da ética e da política. Mais informações em http://bit.ly/PasIHU2015.

twitter.com/_ihu bit.ly/ihuon

youtube.com/ihucomunica

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