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“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima

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OS FANTASMAS DE VÊNUS
Roberto Schima
rschima@ig.com.br
I Seus olhos acompanharam o indicador de lava
Era um penhasco desprovido de vegetação,
cinzelado pelo vento marítimo e pelas chuvas, cujo
formato fazia lembrar uma mão fechada com o dedo
indicador apontado para o alto, para o céu.
Antigamente, era conhecido como Morro do Pico;
até o dia em que alguém, dotado de bom senso,
rebatizou-o com o muito apropriado nome de Dedo
de Deus. Havia sido formado, como todo o resto da
ilha e do arquipélago, por processos vulcânicos
muito e muito tempo atrás. Emergira das
profundezas, cercado pela fervura do mar e vapores
sulfurosos numa época em que homem algum
habitava a Terra. Agora, era frio e escarpado, tendo
diante de si o oceano esmeralda. E abrigava, além de
ninhos de gaivotas, arbustos e corais, as esperanças
de um menino.
Quase todas as tardes, já perto do
finalzinho, ele ia até lá, escalava e escalava, até
alcançar o topo do Dedo a mais de trezentos metros
de altura. Ofegante, enchia os pulmões com as
rajadas de vento oriundas do mar e, de olhos
pregados no horizonte, ficara à espera de um sonho,
sonho este que rolava rente às águas, de mansinho,
até alcançá-lo com um toque diáfano e, naqueles
momentos, perene. Então, cerrando os olhos, pedia
em silêncio que seu desejo mais íntimo fosse
atendido. Era um chamado, um apelo, uma prece.
Afinal de contas, não fora o próprio Criador quem
lhe indicara o caminho? O Dedo de Deus apontava
para lá, para o destino futuro... para as estrelas.
“Siga o caminho”, parecia dizer; e ele implorava:
“Como?” Gritava bem alto até; todavia, Ele não
respondia, e os únicos sons que o menino escutava
eram o uivar do vento no penhasco e o bater das
ondas nos recifes. Então, retornava para casa sem
querer conversar com o irmão, com ninguém.
Mas um dia, a resposta chegou.
O vento respondeu.
As ondas responderam.
O caminho para as estrelas se abriu.
Saiu correndo de casa pelas trilhas entre os
arbustos até alcançar a praia.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
fossilizada e viram a primeira estrelinha brilhar no zênite
com a chegada do crepúsculo.
Sorriu.
Por dentro, alguém chorava.
II
As ondas arrebentavam uma após a outra sobre o
rochedo. Formava-se um turbilhão de espuma que se
espalhava pelo ar como uma névoa esbranquiçada para
logo depois sumir e ser substituído por outro e mais outro
sem cessar jamais. O mar era de um azul escuro e
tenebroso, e ora subia e descia de nível, revelando uma
moldura viva de cracas, mexilhões, algas, caramujos e
ouriços. Às vezes, podia-se também ver alguns
caranguejos pretos caminhando pelas reentrâncias de
basalto, aparentemente indiferentes à grosseria das águas.
Entardecia e a maré estava subindo.
- Mais um mergulho – sugeriu o menino para o
seu irmão gêmeo, ambos deitados sobre o rochedo sem se
darem conta dos borrifos de espuma a umedecer seus
corpos feito orvalho. – Só mais um, Miguel.
- Daqui a pouco eu preciso arrumar minhas
coisas, Pedrinho, você sabe disso.
- Por isso mesmo. Vai saber quando é que você
poderá mergulhar de novo. Você e suas idéias... droga.
- Está bem, Pedrinho – respondeu Miguel,
fitando o irmão, e era como se olhasse para um espelho. –
Não vamos brigar de novo.
Miguel pôs-se de pé sobre a superfície irregular.
Os raios do poente iluminaram o corpo mirrado da cor de
bronze e os cabelos pretos encaracolados. E, com todo o
vigor de seus treze anos, atirou-se feito peixe para as
cocorocas, lagostas e sargentos que o aguardavam lá
embaixo. A água explodiu à sua volta e ele desapareceu
sob mais uma das ondas que se aproximava.
As últimas palavras do irmão tiraram de
Pedrinho o pouco que restava de alegria diante da
perspectiva do último mergulho juntos. Avistou o mano
emergir alguns metros adiante e dar umas braçadas em
direção ao sopé do penhasco. Balançou a cabeça numa
censura muda. Nisso eram diferentes. Miguel gostava de
se arriscar, sempre fora assim, mais arrojado e destemido.
No fundo, Pedrinho sabia que o arquipélago era pequeno

demais para o irmão e sua cabeça cheia de sonhos.
Sim, eram irmãos gêmeos, mas possuíam anseios
distintos. Pedrinho era mais pé-no-chão, mais
conformado com o cotidiano do seu mundo, ou
então, sendo mais honesto com o seu ponto de vista,
era uma criatura do seu mundo, amante do mar e das
ilhas que cercavam a ilha principal. Seria um
pescador como seu pai e seu avô antes dele, colhendo
os frutos do mar. Adorava a visão dos peixes, corais
e estrelas-do-mar. Miguel, por seu turno, também
idolatrava as estrelas, todavia, as estrelas do céu.
Desde que se tinha por gente passara horas e horas
após o crepúsculo a olhar para o céu e ver as estrelas
nascerem. Sim, ele queria chegar até lá, tocar seu
sonho com ambas as mãos. De vez em quando um
foguete partia do continente a mais de trezentos
quilômetros de distância e ele ficava acompanhando
o rastro de fogo até sua vista arder e o foguete sumir.
Nada poderia afastá-lo de seu sonho. Pedrinho sabia.
Houve um dia que Pedrinho comparou a si e ao
irmão como imagens diferentes de um mesmo objeto;
ou, então, como se ele fosse o objeto e Miguel, o
reflexo. Pedrinho era a realidade; Miguel, o sonho.
Eram muito unidos e se amavam; entretanto, agora
Miguel conseguira uma bolsa de estudos na Escola
Preparatória de Astronautas do Cone Sul e, no
mínimo pelos próximos dez anos, não tornariam a se
ver.
Pedrinho afastou-se da margem, tomou
impulso e correu para o mar, abençoando o abraço
gelado das ondas a arrancarem o calor que,
subitamente, irrompera em suas faces. Alcançou o
irmão e apostou corrida com ele durante a volta ao
rochedo. Miguel ganhou fácil, como de costume.
Algum tempo depois, estavam retornando
para casa, caminhando pela praia e deixando
pegadas na areia branca e fina como sal que a
escuridão pouco a pouco engolia.
- Não vai até o alto do penhasco? – indagou
Pedrinho.
- Não dá tempo.
- E também não precisa mais disso.
Miguel concordou com um aceno de cabeça.
Observou o cume do Dedo de Deus tocar o ventre de
uma nuvem baixa. Continuava a indicar sua meta.
Respondeu:
- Não, não preciso. Não é mais imaginação.
É real agora.
- Pode ser, mas eu sempre serei a realidade
e você, o sonho. Vou sentir sua falta, seu boboca.
- Também sentirei a sua, seu jeca-tatu.
Deram um abraço apertado de dois irmãos
que se amavam. E Pedrinho conseguiu, dessa
maneira, ocultar as lágrimas teimosas. O som da
rebentação parecia vir de longe. Os últimos raios
dourados acabaram por perecer. Retomaram o resto
do caminho abraçados. Subitamente, Pedrinho
estacou e ergueu o braço para o céu.
- Lá está uma de suas estrelas.
- Não é uma estrela, Pedrinho, é um
planeta.
- Planeta? Qual?
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
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- Vênus.
- Vênus – repetiu o menino, a fim de gravar o
nome na memória.
E o astro errante cintilou de uma distância
inimaginável para os dois irmãos, sozinhos naquela praia
arenosa, no arquipélago vulcânico.
III
Foi como renascer para um mundo
completamente novo.
Miguel passara a vida toda em meio à paisagem
agreste da ilha e ilhotas adjacentes. Ao longo dos
dezesseis quilômetros quadrados da ilha principal, a
vegetação formada por macegas, cactáceas, arbustos e
pequenos bosques fora intensamente explorada.
Caminhara pela série de planaltos, morros e penhascos,
apreciando sobretudo o verde decorrente das chuvas, após
a longa estiagem. Percorrera todo o litoral recortado em
companhia do mano Pedrinho, assinalando as ilhotas
esburacadas e despidas de vegetação, esculturas estranhas
da natureza a evocarem cenários lunares. Brincara nas
ruínas dos velhos fortes portugueses e seus canhões de
ferro fundido erigidos séculos atrás, quando a ilha fora
cobiçada por invasores holandeses, franceses e piratas.
Nada por suas praias. Mergulhara no universo líquido do
mar, admirando a riqueza da vida subaquática,
imaginando então que riquezas não conteria um universo
infinitamente maior sobre sua cabeça, nas vastas alturas
do espaço exterior.
Agora, a corveta da Marinha, que mensalmente
abastecia a ilha de toda sorte de materiais, iria levá-lo até
o continente e deixá-lo mais próximo das estrelas.
O porto ainda se encontrava em obras fazia vinte
anos devido à falta de verbas e um acordo que fosse aceito
pelos anglos, os responsáveis quanto ao planejamento e
construção. Estes queriam vantagens adicionais, além da
fortuna cobrada, como uma faixa do território para
exploração exclusiva da pesca, turismo e monopólio na
dessanilização da água do mar, o que não era aceito pelos
habitantes. Desse modo, Miguel iria de barca até o navio
ancorado em mar aberto.
A população da ilha era pequena, rural e mal
atingia duas mil pessoas. A impressão que se tinha era a
de que todas elas estavam lá para se despedir. Muita gente
se aglomerava na praia e colinas próximas; gente que mal
conhecia, o orgulho estampado nas feições rudes e alegres.
Uma infinidade de cumprimentos e sorrisos. Parecia que
um pedacinho de cada um iria com ele até o cosmos.
- Seu boboca... Seu boboca... – repetia Pedrinho
sem cessar.
- Meu filho... Meu filhinho... – repetia a mãe
num compasso.
O pai, trajando sua melhor roupa, aquela que
tirava do armário somente em raras ocasiões como um
batizado ou casamento, estava lá, mudo de emoção. Tocou
os ombros do filho com suas mãos ossudas e calejadas, a
pele curtida de sol e água.
- Vai com Deus, Miguelzinho. Toma, leva isso.
- O que é?
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- São Nicolau, o padroeiro das crianças. É
para te proteger aonde quer que vá.
Miguel agradeceu e colocou a medalhinha
no pescoço. Abraçou o velho, sentindo o cheiro
familiar de peixe, apesar da roupa.
Inúmeros toques, incontáveis abraços,
infinitos acenos de mão. A professora Candinha, os
amigos da escola, vizinhos, tios e primos, os avós,
todo mundo estava lá. O governador do arquipélago
em pessoa e o pároco da Capela do Pontal vieram
cumprimentá-lo. Nunca lhe passou pela cabeça ser
tão importante, nem tão amado.
Os pensamentos rodopiavam dentro da
cabeça. Foi somente quando a barca se afastou da
orla e rumava para a corveta, transformando seus
pais e irmão em minúsculas formigas, que se deu
conta de estar se despedindo de tudo o quanto
aprendera a amar na vida. Estreitou os olhos miúdos
de um azul vivo e cristalino feito as águas que o
rodeavam. Ignorou o fustigar do vento nos cabelos
encaracolados. Sentiu medo pelo que estava por vir;
o desconhecido real e imenso como um fantasma.
Sentiu a dor da despedida disfarçada nos sorrisos dos
pais e na sinceridade do olhar de Pedrinho, pálpebras
a tremer. De certa forma, considerou, traíra a todos
e, sobretudo, ao irmão gêmeo.
Entretanto, o mundo novo foi uma sucessão
de eventos, uma avalanche a cobrir seu remorso, suas
memórias, sua saudade em sedimentos cada vez mais
espessos.
A Escola Preparatória de Astronautas do
Cone Sul, em Natal, forneceu o alicerce:
Matemática, Física, Astronomia, Computação. Lá
observou lançamentos de foguetes tão próximo
quanto podia. Os foguetes, a exemplo do Dedo de
Deus, também apontavam para o alto, para o seu
destino. Depois, mudou-se para o Rio de Janeiro,
onde se especializou em circuitos hiperintegrados.
Finalmente, aos vinte e dois anos, realizou seu
primeiro vôo espacial num foguete anglo-latino.
Imaginou se o irmão estaria vendo a nave partir
numa esteira de chamas. Os anglos gostaram de seu
serviço e o contrataram. Em poucos anos, ele alçou
degraus mais elevados até seus pés verem-se livres
da gravidade terrestre. Tornou-se um cidadão das
estrelas que adorava.
IV
A pescaria havia sido satisfatória e o barco
balançava num ritmo pesado em meio à solidão do
oceano. Ondas crespas batiam no costado. O motor
roncava nas entranhas de metal e madeira.
Pedro, homem feito, observava o pôr-do-sol,
sentado num dos caixotes na popa da embarcação.
Os outros marujos não o perturbavam, conheciam
seu jeito, e não seria difícil saber no que ele estaria
pensando.
“Seu boboca miserável...”
O céu era de um azul límpido e sem traços
de nuvens.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
Estava frio.
Gaivotas seguiam o barco na esperança de
comida fácil.
Há anos, um sentimento de vazio o dominava.
Metade de seu ser fora arrancada e nem mesmo a esposa e
os filhos conseguiram preencher. Aplacar sim; preencher,
ocupar o lugar, não. Nos anos posteriores à partida de
Miguel, este entrara em contato algumas vezes; ocasiões
que se tornaram cada vez mais espaçadas à medida em
que progredia nos estudos.
Agora, nas mãos de Pedro, uma mensagem. O
irmão iria se mudar para uma estação orbital ao redor de
Vênus.
Sim, lá estava ele, o planeta, nascendo a leste.
Continuava a lembrar uma estrela. E Miguel encontrava-
se a caminho de lá.
“Vênus, Vênus, Vênus...
“Traga-me um fragmento dele, bobalhão.
“Deus te ajude, mano.”
Amaldiçoou o corpo celeste e seus fantasmas que
passaram a invadir seus sonhos a partir de então.
Amassou a mensagem e atirou-a para o alto. Uma gaivota,
julgando se tratar de um pedaço de peixe, apanhou a bola
de papel no ar. Chacoalhou o bico em seguida, contrafeita.
Pedro abaixou a vista. Notou os contornos
familiares da ilha.
O barco navegou decidido até o porto recém-
concluído. Navios estrangeiros ancorados na baía
despendiam rolos de fumaça. Com a ocupação das praias
por hordas de turistas, a tartaruga-verde fora extinta.
Tubarões abandonaram seus refúgios nas cavernas
submarinas. Polvos, moréias, raias e budiões foram
afetados pelos despejos químicos da usina dessalinizadora.
Preços do progresso, disseram. Apesar disso, o
arquipélago persistia em permanecer belo. A usina acabou
com os problemas causados pela estiagem e, se permitiu o
fluxo maior de pessoas de fora, também livrou da seca os
canaviais, as plantações de milho e os rebanhos de cabras
e bovinos. O aproveitamento da energia solar, dos ventos e
das ondas aposentou os geradores termelétricos. As
concessões aos anglos não foram tantas quanto desejavam.
Sim, era um bom lugar para se viver.
“Menos para Miguel...”
Vênus roçava sua nuca.
Estava lá.
Miguel deveria amá-lo.
Pedro o odiava.
Vênus
V
- Vênus, Vênus, Vênus... estou farto!
- Se... Senhor?
- Nada, Bill. Discutia com os meus botões.Você
já leu isto? – perguntou o homem mais velho, sacudindo a
folha de papel. Chamava-se John Herbert Miller e era o
prefeito da cidade-espacial Afrodite, nome que gerara
inúmeras piadas e em nada contribuíra para amenizar seu
péssimo humor. – Leu?
- Sim, senhor. Perdemos contato.

- Mas com todos eles? Diabos! – Socou a
mesa. O relatório em sua mão se partiu em dois. –
Todos eles?
O assessor caminhou nervosamente de um
lado para o outro. Encontrava-se tão estupefato
quanto o prefeito. Parou diante de um globo
alaranjado representando o planeta, ao redor do qual
girava uma maquete da cidade-espacial. Era um dos
raros objetos de decoração no interior da ampla sala
da prefeitura. De trás de sua mesa fartamente
aparelhada de circuitos eletrônicos, computador,
sistema de comunicações, vídeo-fax e câmeras
tridimensionais, o prefeito Miller coordenava as
atividades de toda a Afrodite e seus quatro mil
habitantes. No momento, pareceu ao assessor não
controlar coisa alguma. Confirmou mais uma vez:
- Sim, senhor, perdemos contato com todos
eles a partir da semana passada.
O prefeito Miller cofiou seu bigode,
erguendo-se da cadeira. Da mesma forma que o
assessor e os demais anglos da cidade, tinha estatura
acima de um metro e oitenta. Aproximou-se de uma
das telas e a ligou. Imediatamente, teve uma visão da
cidade e seu horizonte anelar.
- Os cientistas não encontram qualquer
justificativa, Bill? Tempestades magnéticas? Tufões?
- Nada que explique o que houve em tão
grande escala.
- Sei... E eles estão cientes de que a
existência desta colônia flutuante está diretamente
ligada ao Projeto Vênus e que o fracasso deste
representará o fim de Afrodite e, por extensão, de
seus empregos?
“E do nosso”, pensou William Anderson, o
assessor. Limitou-se a responder:
- Sim, senhor. Mas eles estão
providenciando uma equipe de manutenção para
investigar.
- Gente do Latintown? – perguntou,
observando os edifícios mais modestos na periferia
da cidade-espacial.
- Isso mesmo, prefeito.
- Ótimo. Está na hora desses nanicos
fazerem jus à nossa hospedagem.
William Anderson procurou sorrir;
entretanto, intimamente rezou para que não houvesse
qualquer escuta na sala. O último comentário do
prefeito Miller seria um prato cheio para a oposição.
VI
Latintown se encontrava em polvorosa.
Técnicos, cientistas, operários e serviçais corriam de
um lado para o outro, discutindo e especulando a
respeito do que houvera naquele globo ofuscante
sobre suas cabeças. Brancos, negros, mulatos,
pardos, asiáticos tagarelavam numa linguagem
comum ou misturando dialetos de seus respectivos
países de origem. Coçavam a cabeça, davam de
ombros, apoiavam o queixo na palma da mão.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
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Afinal, o que teria acontecido nas camadas superiores da
atmosfera venusiana?
Com certeza, a situação em Anglotown não
deveria ser diferente, todavia, fosse qual fosse a razão dos
problemas, os latinos sabiam que seriam
responsabilizados. Por precaução, a fábrica e a indústria
de Afrodite aceleraram o ritmo de produção e novos
turnos de trabalho foram criados num esquema de
emergência.
Num dos hangares, a nave que levaria a equipe
de manutenção recém-escalada estava sendo abastecida.
Não muito longe dali, numa das dependências
dos laboratórios da indústria, uma mulher de testa
franzida revia os muitos dados pertinentes ao planeta
batizado com o nome da antiga deusa do amor. Ao seu
redor havia uma infinidade de tubos de ensaio,
centrifugadeiras, incubadoras, frascos de diferentes
formatos, computadores e terminais. Sua pele era cor de
jambo, olhos castanhos e cabelos crespos de um preto
luzidio. Traços belos e comuns de um povo gerado num
longo processo de miscigenação. Encontrava-se aflita.
Fora apanhada desprevenida e tentava, na meia hora que
tinha antes da partida, absorver o máximo de informações.
A tela do terminal iluminava o rosto preocupado. Exibia:
Distância média do Sol: 108,27 milhões de km
Período de revolução: 225 dias terrestres
Velocidade: 35 km/s
Órbita: praticamente circular, 3º24` sobre a eclíptica
Período de rotação: 243 dias terrestres (em relação às
estrelas, sentido retrógrado em relação a outros planetas
do sistema)
Diâmetro equatorial: cerca de 12.100 km
Magnitude máxima de brilho: -4,4
Abedo: cerca de 0,60
Densidade média: 4,95 g/cm³
Massa relativa: 0,815
Distância da Terra:
Conjunção inferior: 40 milhões km
Conjunção superior: 260 milhões km
Período sinódico: 584 dias terrestres
Ela leu todos os números com ar de tédio.
Repentinamente, a porta se abriu às suas costas.
- Você é Beatriz?
- Sou – respondeu.
- Meu nome é Miguel. Iremos juntos. Mandaram-
me saber se já está pronta.
- Quase.
Miguel se aproximou, curioso. Observou a
imagem computadorizada na tela, reconhecendo-a de
imediato. Cores quentes predominavam na cena.
- O Gula Mons... É um pico de 3.000 metros de
altura em Eistla Regio Ocidental.
- Você conhece?
- Também andei fazendo minhas pesquisas por
conta própria. Vê essas fissuras? – apontou. – Possuem
centenas de quilômetros. Fraturas geológicas inundadas de
lava. Aliás, vulcões gigantes, derrames de lava e
terremotos é o que não faltam por lá, pelo planeta inteiro.
- Incentivador... É geólogo?
- Não. Cuido de circuitos hiperintegrados.
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- Eu sou bióloga. Que diabos vou fazer lá?
- Cuidar de suas filhas – disse, virando o
rosto para os frascos cheios de um líquido verde. –
Vamos?
Beatriz confirmou. Retirou o disco com
dados sobre Vênus e o colocou numa valise que tinha
a seus pés, onde havia um computador independente.
Pretendia saber mais sobre a Estrela Matutina
durante o caminho e enquanto durasse o trabalho.
A porta do laboratório voltou a abrir-se.
- Bia, está pronta? Oh, desculpe, não sabia
que estava com... que estava ocupada.
- Espere, Tomás – pediu a mulher ao vê-lo
fazer menção de sair. – Já estamos de saída. Ele
também irá.
- Então, vamos. O pessoal no hangar está
meio maluco de tão agitado. – Tomás virou-se sem
esperar pelos dois.
Caminharam apressadamente pelos
corredores do edifício, cruzando com cientistas
atarantados. Fitaram os três indisfarçadamente, não
invejando a missão que os aguardava. Havia
apreensão naqueles olhares.
Tomás comentou:
- Deve ser falha mecânica.
- De todos eles?
- Falaram de tempestade magnética, Bia.
Miguel meneou a cabeça, quase se chocando
com uma serviçal que lustrava o piso de um dos
corredores. Retrucou:
- Não há campo magnético significativo em
Vênus. Nem tem um cinturão de partículas
carregadas como na Terra.
Tomás não respondeu de imediato. Remoeu
os pensamentos. Aquele estranho tinha uma certa
razão. Não, tinha mais do que uma certa razão.
Entretanto, reparara nas pessoas por que passava,
notava seus gestos contidos, as vozes que se calavam
à sua passagem. Não, ele não queria ser contrariado
por mais errado que estivesse. Torceu os lábios.
Falou:
- Seja como for, não deve ser coisa tão grave
para só mandarem nós três. Acho que resolveremos
logo. Achando o defeito de um, creio que valerá aos
demais.
- Duvido muito – disse Miguel.
Beatriz, vendo a expressão contrariada do
amigo, tocou-o no braço. Ele tentou sorrir e o
resultado não foi melhor do que uma careta.
- Será tranquilo, Tomás – falou a bióloga
num tom apaziguador. – Não é mesmo... Miguel?
Este limitou-se a sorrir. Levou uma das
mãos até a altura do peito, procurou e tocou na
medalhinha de São Nicolau. Pensou no pai. Fazia
muito tempo que não mandava notícias para a
família. Recordou-se do irmão, da mãe, da ilha.
“Não, boboca. Péssima hora para se pensar nisso. “
Foi em vão. No hangar e, posteriormente, dentro da
espaçonave, sua mente voltou-se para o arquipélago
havia muito distante no tempo, tanto quanto na
lonjura.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
São Nicolau... Não era mais uma criança, ao
menos por fora. Mas se pudesse protegê-lo, proteger a
todos, esperava que o santo o fizesse.
VII
Observado da distância em que a nave se
encontrava, e crescendo no campo visual da tela, Vênus
surgia sereno, alaranjado, num quarto minguante,
silencioso no pano de fundo do espaço. Havia um toque de
majestade naquela esfera de dimensões tão semalhantes às
da Terra. Uma fúria avassaladora sob a aura de aparente
tranquilidade. Era um mundo poderoso, inquietantemente
bonito e destruidor. A espessa atmosfera era como uma
máscara de beleza, ocultando sua verdadeira face, que não
deixava de ser igualmente atraente à sua maneira.
Todavia...
Miguel, diante do painel do computador, deu
algumas instruções. Em seguida, um conjunto de radares a
bordo do veículo trabalhou rapidamente, ignorando o
manto de nuvens; e os sensores compuseram ponto a
ponto a imagem real do planeta, sem aquela cobertura.
Era um rosto calcinado, rubro, riscado por falhas na
crosta. Imensos vulcões pululavam na superfície, jorrando
rios de lava, inundando velhas crateras meteóricas,
formando cordilheiras, destruindo outras paulatinamente.
Um mundo em permanente mutação.
Vênus possuía dois platôs de dimensões
continentais, Ishtar e Aphrodite. E era este último que
dominava a paisagem naquele momento.
- Veja – disse o especialista em computadores e
circuitos hiperintegrados. – Aqui é Alpha Regis. Nesta
região foram descobertos domos de que medem mais de
vinte quilômetros de diâmetro. – Digitou novas ordens à
máquina, coordenadas surgiram na tela, e o computador
ampliou aquela região.
- São como bolhas de sabão sobrepostas umas às
outras – murmurou Beatriz.
Tomás concordou.
- Parecem artificiais, como redomas de concreto.
- Pena que não estejamos sobre Ishtar – disse
Miguel. – Os maiores vulcões de Vênus estão lá. Tem
também umas rochas fraturadas bastante curiosas, como
teias de aranha esculpidas na terra, estendendo-se por
várias dezenas de quilômetros.
`Tomás meneou a cabeça, fascinado. Era um
homem mirrado de quarenta anos, embora aparentasse
menos, seja por sua timidez, seja por seu rosto de traços
juvenis. Comentou:
- Estranho que, em tempos passados, tenha sido
considerado um irmão gêmeo da Terra. Como dois
gêmeos podem ser tão diferentes?
Miguel voltou-se para ele como se este houvesse
lhe dado um beliscão. “Sim. Gêmeos podem ser tão
distintos interiormente quanto semelhantes por fora”,
refletiu. Voltou a pensar em Pedro e no que deixara para
trás.
- O que houve?
- Nada, Beatriz.
Vênus estava lá, porém, ao mesmo tempo não
estava mais.

Miguel tentou se concentrar, entretanto,
pensamentos vieram aos borbotões.
“Eu não alcancei propriamente as estrelas
como pretendia, a menos que me refira à estrela
d’Alva. E ela não é um sol. Não foram momentos tão
grandiosos, conforme supunha em criança. Mesmo
mergulhado no éter, trabalho é trabalho. Hora
marcada para começar e encerrar. Uma certa rotina.
Uma carência de emoções. Ainda amo os confins do
Universo, amo sim. Ainda sou apaixonado pelas
galáxias, quasares e cometas. Todavia, algo se
perdeu durante a passagem para a adolescência, para
o mundo dos homens.”
E o que mais o atingira fora a certeza de
que, por mais perto que estivesse dos astros, jamais
os alcançaria de verdade. Não da forma como
sonhara. Não tocaria estrelas, planetas e asteróides.
Sempre existiria uma barreira, seria sempre
prisioneiro numa gaiola de vidro, fibras, polímeros e
ligas metálicas. Seja de uma nave, de uma cidade-
espacial ou de um traje hermeticamente selado.
Haveria sempre um obstáculo claustrofóbico entre ele
e o seu sonho.
“A liberdade tão sonhada na imensidão do
éter não existe, a não ser dentro de mim e em meus
devaneios infantis.”
Ao menos agora sairia um pouco da rotina
da cidade-espacial. Um sentimento indefinido
formigava sob sua pele, semelhante ao apelo
obedecido ainda na juventude. O Dedo de Deus e os
foguetes apontavam para lá, para a luz prateada no
céu vespertino e matinal, para...
- Vênus... – balbuciou.
Vênus possuía um período de rotação
extremamente longo, maior do que o seu ano,
levando mais de duzentos e quarenta dias terrestres
para dar uma volta sobre si próprio. Todavia, girava
num sentido retrógrado, comparando-se aos demais
planetas, de modo que, visto do alto do hemisfério
norte, rodaria de acordo com os ponteiros do relógio.
Já o seu sentido de revolução ao redor do Sol
acompanhava o de seus irmãos planetários, anti-
horário. Os dois movimentos combinados faziam
com que entre um amanhecer e outro no segundo
planeta tivesse o intervalo de 118 dias terrestres. E se
fosse possível a alguém apreciar a aurora na
superfície, livre do manto eterno de nuvens, ficaria
confuso ao perceber que o Sol nasceria a oeste, e não
a leste, conforme ocorria na Terra.
- Felizmente, não necessitamos descer ao
planeta para confirmar – disse a bióloga.
Alguns exploradores ousados bem que
tentaram e pagaram caro por isso.
Beatriz, Tomás e Miguel iriam permanecer
na alta atmosfera, cujas nuvens percorriam Vênus
em apenas quatro dias. E, apesar de estarem se
dirigindo para o lado escuro do planeta, não
sentiriam por muito tempo a ausência da claridade
solar. Por sinal, sequer o lado escuro era
completamente imerso nas trevas. Uma
luminosidade acinzentada predominava como
reflexos da luz do Sol sobre a Terra, incidindo na
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
7
face escura da Lua. Só que não havia outro corpo celeste
orbitando ao redor de Vênus. Nos tempos pioneiros da
Astronomia, certas pessoas argumentavam que se tratava
de luzes de cidades venusianas. Recentemente, atribuíram
aos constantes relâmpagos ou à acentuada refração da luz
na atmosfera oriunda do hemisfério voltado para o Sol.
Alguns não estavam plenamente convencidos de uma
hipótese ou de outra.
O planeta foi crescendo e crescendo.
O Sol desapareceu num horizonte circular.
A espaçonave principiou a sacolejar minutos
depois.
- Atingimos a camada superior da atmosfera –
advertiu o piloto. – Coloquem seus trajes.
Os três se levantaram imediatamente e foram
para outro compartimento.
Um som áspero vinha do lado de fora. Lembrava
garras arranhando e arranhando uma velha porta de
madeira.
- Ainda acredita que será tranquilo? – indagou
Miguel para Beatriz.
- Si... si... sim – gaguejou ela com os solavancos
cada vez mais acentuados.
Vestiram os trajes de astronauta, verificaram seus
equipamentos e ficaram aguardando um novo sinal.
O radar esquadrinhava as camadas superiores de
Vênus à procura de um contato.
A respiração de Beatriz acelerou.
Mal sabia ela que estava completamente
enganada.
VIII
A cidade de Nossa Senhora dos Remédios
originara-se no século XVIII de um pequeno núcleo de
casebres, rodeado pelos bosques da ilha; construções
rústicas e grosseiras, protegidas pela fortaleza de mesmo
nome. Tardou séculos a crescer. Desenvolveu-se
principalmente nos últimos anos com a inauguração do
porto, o funcionamento da usina dessalinizadora e a
eletricidade captada do Sol, das ondas e dos ventos
marítimos. A população praticamente dobrou nos últimos
vinte anos. Não se surpreenderia, pois, verificar que a
maioria dos prédios era de construção recente; nem
tampouco notar no contraste de casas modernas, dotadas
das últimas novidades tecnológicas, lado a lado com casas
de pedra e argamassa dos tempos do Brasil Colônia.
Não obstante todo o progresso, os habitantes
originais viviam em condições precárias, como os seus
antepassados. Não possuíam as condições financeiras
daquela gente das grandes cidades do continente, e muito
menos dos estrangeiros que agora infestavam a ilha em
caráter permanente. Também as embarcações primitivas
dos pescadores não podiam competir com os grandes
pesqueiros e eram obrigadas a ir cada vez para mais longe
no mar.
Pedro residia com seus pais, a esposa e cinco
filhos numa dessas velhas casas de pedra, mais próxima
da praia do que do Palácio do Governo no centro da
cidade.
8
O dia estava claro, apenas algumas nuvens
flutuavam no céu.
O gramado crescia verde e exuberante ao
redor dos vários chafarizes. Dobrava-se ao vento com
a mesma lentidão das mechas brancas nas alturas.
Da janela do quarto maior, para além das
cortinas de linho, avistava-se o mar e os reflexos do
Sol naquelas águas cor de esmeralda. Uma das
ilhotas vulcânicas projetava-se das águas com seus
entalhes característicos. Algumas canoas e botes
singravam a superfície mansa do mar. Um vento
refrescante trazia alívio àquela atmosfera
enclausurada.
Pedro e sua família rodeavam a cama de
casal, semblantes entristecidos contrastando com a
beleza exibida pela janela.
- Conseguiu? – perguntou a mãe num
sussurro.
Pedro relutou em responder, o olhar fixo no
rosto tranquilo do pai sobre o travesseiro de penas.
- Não.
A mãe desabou sobre a cadeira, a madeira
rangeu. Parecia que iria chorar, mas não chorou.
Apanhou a mão enrugada do marido, pouco mais do
que pele envolvendo os ossos, e protegeu-a com a sua
como se, dessa maneira, pudesse também confinar a
vida que se esvaía gradualmente daquele corpo. Os
netos e as netas se remexiam, tentando compreender
o que estava sucedendo, mas com receio de fazer
perguntas naquele silêncio pesado de respirações
contidas.
A esposa de Pedro segurou-lhe a mão e
tentou confortá-lo com o calor de seu toque.
- Fui até a Base Aérea – murmurou Pedro
para si e para todos. – Deixaram-me falar através do
videotransmissor com a cidade-espacial. – Balançou
a cabeça, impotente. – Ele não estava lá. Não entendi
direito. Demorava muito entre uma resposta e outra
por causa da distância, e os militares estavam
impacientes. Miguel saiu para um serviço de
emergência em Vênus e tardaria a voltar. Não
quiseram colocar-me em contato com ele. Eu tentei...
bem que tentei... droga. Por que ele tinha de sair?
Por que nunca voltou para nós?
A velha ergueu o olhar. Havia pureza
naquelas faces entrecortadas de rugas, murchas e
ressecadas por décadas de sol. Os cabelos grisalhos
estavam amarrados no alto da nuca num coque tão
antigo quanto adequado àquela casa. Falou:
- Ele fez sua escolha. Se não tivesse ido,
jamais saberia como seria. Ele precisava saber.
- Mas faz tanto tempo, mãe! – respondeu
Pedro, mais alto do que pretendia.
O velho na cama fez tremer as pálpebras,
atraindo a atenção de todos. Balbuciou alguma coisa;
porém, conservou os olhos fechados e logo retornou
à serenidade de antes. Era como se sonhasse. Os
cabelos ralos haviam sido cuidadosamente
penteados pela esposa. Vestia uma camisa branca e
limpa, e uma bermuda de algodão da mesma
tonalidade.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
- Desculpe – pediu Pedro. – Ele deveria ter
voltado ao menos uma vez. Deveria ter escrito mais,
videofonado mais. Ele tem o número do videotransmissor
dos Strauss – disse, referindo-se ao casal de austríacos
residentes a uma centena de metros dali. – Bem que
poderia ter dado recados.
- Ele não teve tempo.
- Não, mãe. Tempo sempre existe quando a gente
quer. O que não existe é a vontade, ou simplesmente a
lembrança. Acho que ele se esqueceu de nós.
- Pedro – cutucou a esposa.
O pescador cruzou o umbral.
- Aonde você vai? – inquiriu a mãe.
Pedro respondeu sem se voltar:
- Até a Capela do Pontal chamar o padre, mãe. –
Retomou o caminho até desaparecer.
A velha senhora teve forças para sorrir para a
nora e os netos. Ficou a zelar pelo esposo, protegendo-o
com a ternura das mãos.
- É tão parecido com o pai, esse menino.
O neto caçula riu também.
Durante a tarde, as nuvens encobriram o céu,
escurecendo-o. Relâmpagos ofuscaram a penumbra, e a
chuva caiu pesada sobre a areia ressequida. Combinava
tão bem com o velório quanto a noite combinava com os
segredos fugidios do mar.
IX
A bruma corria pela janela, vinda de todas as
direções, de acordo com a vontade dos ventos. Sua
coloração variava de vez em quando, ora laranja, ora
esbranquiçada, ora em diferentes tonalidades de cinza.
Somente sua voz era a mesma; aquele uivar contínuo, sem
consolo, de alguém desesperadamente só no oceano a
chamar, chamar e chamar. E ninguém respondia, à
exceção dos trovões a rasgarem o céu numa fúria
espremida.
Vênus era assim.
Como alguém poderia se sentir seguro nessa
situação? Ao redor e sob seus pés, quilômetros abaixo,
nuvens corrosivas de ácido sulfúrico concentrado estavam
como que ansiosas por transformar seu corpo num carvão
desidratado. Mais abaixo, na superfície de crateras e rios
de lava, a triturante pressão atmosférica de dióxido de
carbono, pronta a transformá-lo numa coisa amorfa feito
ameba, caso aquela temperatura hedionda de quinhentos
graus Celsius fizesse a gentileza de deixar sobrar alguma
coisa além de partículas minerais. Não, ser gentil não era
o seu propósito. Por outro lado, quilômetros acima
imperava a escuridão do espaço, o frio da eternidade, a
ausência de pressão que adoraria fazer seu sangue ferver e
seu corpo inchar e explodir feito um balão de gás.
Seu rosto esboçou um sorriso e ele roçou a ponta
dos dedos no vidro da janela. Era frio ao toque, embora
não tanto quanto a temperatura glacial lá fora. O nevoeiro
respondeu ao afago na sua peculiar maneira, uivando.
Relâmpagos faiscaram nuvens adentro.
Como uma pessoa no poder de suas faculdades
mentais poderia se sentir bem desse jeito?

“Eu poderia, acredito que sim. Faz-me
lembrar Fernando de Noronha ao entardecer... há
quantos anos? Minha nossa, no mês que vem
completará dezessete anos. Dezessete anos... Não
pensei que fosse tanto assim. Poderia ter sido ontem
até, ontem.
“A massa de ar trazia a neblina feito um
cobertor sobre o oceano e eu, do alto do Dedo de
Deus, ficava só, de vez em quando com Pedrinho,
esperando por ela. O vento assobiava em nossos
ouvidos e fazia nossa pele ficar toda arrepiada. E a
neblina chegava e chegava, absorvendo tudo do
campo de visão: o céu, o oceano, as praias e o
penhasco. Chegava e chegava. Então, eu esticava
meus braços para os lados, fechava os olhos até
sentir o contato úmido e gelado daquelas nuvens
rastejantes. A escuridão avançava depressa e,
naqueles breves momentos, imaginava-me voando
sobre o oceano feito gaivota, envolto pela bruma.
Sentia-me flutuar até poder atravessar a estratosfera
e alcançar as estrelas, isso, as estrelas. E aqui estou.
Ah, Pedrinho, você não curtia tanto a brincadeira
como eu. Como poderia? O céu não o seduziu como
fez comigo. Você obedeceu aos encantos das sereias
e, à sua maneira, faço votos que tenha alcançado
seus sonhos.
“Sim, eu poderia me sentir bem aqui, não
fosse pelos...”
- Sonhando acordado de novo, Miguel?
O homem se assustou e desviou o olhar do
mundo lá de fora e de seu passado para o outro
tripulante. Pestanejou. Tendo em vista as atuais
circunstâncias em que se encontrava, preferiria haver
prosseguido com suas memórias. Não respondeu em
seguida. Sequer tinha percebido que o companheiro
subira dos depósitos de fitoplâncton. Este se
encontrava agora sentado ao lado do
videotransmissor e brincava com um tudo de ensaio
cheio daquele líquido verde, razão de ser do Projeto
Vênus.
- E então? – insistiu o outro.
- Mais ou menos, Tomás.
- Em que estava pensando?
- Em casa... Lá na Terra – respondeu
Miguel, depois de algum tempo, sem sair de perto da
janela.
- Um bom lugar para se estar... em casa –
concordou Tomás. – Longe deste planeta desgraçado.
Longe do que quer que esteja acontecendo aqui.
Nasci em Porto Alegre, sabia? É um bom lugar...
chimarrão... churrasco... essa coisa toda. Casa...
Miguel murmurou em confirmação, braços
cruzados, o ombro direito apoiado na parede da
cabina, na junção desta com uma das janelas. Não
era mais o garoto bronzeado e cheio de vida que
deixara a ilha de Fernando de Noronha havia tanto
tempo. Os anos tinham lhe dado algumas marcas. Os
cabelos encaracolados ganharam alguns fios de
prata, a pele desbotara e os músculos não eram mais
tão rijos. Deu alguns passos pelo passadiço,
acompanhando os contornos da janela panorâmica
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
9
com a mão. Parou aproximadamente no centro da enorme
placa de vidro.
As nuvens venusianas turbilhonavam sem parar,
mudando de forma e tonalidade, fazendo pilhéria aos
olhos humanos. Ora assumiam contornos cacheados como
cúmulos, ora surgiam em rápidas pinceladas como cirros,
mas o que predominava era aquele manto espesso entre o
translúcido e o opaco de um estrato sem fim.
Ventos fortes, muito além da velha Escala de
Beaufort, castigavam o veículo. Ele seguiu velozmente
pela atmosfera superior na longa noite venusiana, de oeste
para leste, em conformidade com a rotação do planeta.
“Sinto falta de uma brecha entre a bruma”,
refletiu Miguel. “Não existem estrelas no céu deste
mundo.”
O vendaval gemeu. Som áspero e contínuo.
Trovões ribombavam sem cessar.
Tornou a fitar o companheiro.
- Será que irão demorar?
- Quem? A cidade-espacial?
- É.
Tomás consultou o relógio.
- Falamos com eles há... há cerca de uma hora. A
telemetria já definiu aproximadamente a nossa posição e
trajetória futura. A essa altura, devem ter lançado uma
nave de resgate.
Miguel assentiu. Sabia disso tudo tanto quanto
Tomás, contudo, fazia bem ouvir a voz do outro tanto
quanto a sua própria. Amava o silêncio de seu alojamento
em Afrodite, mas a quietude peculiar que estavam
vivendo, exceto pelos trovões e o uivar lá de fora, era
aterrorizante. Observou as olheiras do companheiro, no
rosto de adolescente, apesar da idade, sua palidez, o corpo
mal nutrido, as mãos trêmulas na medida em que girava o
tubo de ensaio por entre os dedos. Não deveria estar em
melhor situação do que ele. Não eram mais estranhos um
para o outro. Não chegavam a ser propriamente amigos;
todavia, a conjuntura demolira tal barreira rapidamente.
- E quanto a Bia?
- O que tem ela, Tomás?
- Iremos levá-la?
Miguel pensou em Beatriz, a bióloga com
especialização em engenharia genética. Mal tivera tempo
de conhecê-la. Agora, achava-se morta num dos
compartimentos do pavimento inferior. Aparentava ser
uma boa mulher, muito inteligente, boa conversa; Vênus,
porém, também o era e, ainda por cima, uma mulher
ciumenta, e castigara o atrevimento de Bia por vir de tão
longe a fim de terraformizá-la.
- Não – disse Miguel -, a menos que você queira
ir até lá embaixo novamente e cortar as duas pernas dela.
Não há meio de retirar aquele tambor de cima.
Tomás engoliu em seco. Sua garganta ficou
apertada. Fazia anos que conhecia a mulher, desde os
tempos em que eram estudantes.
- Desculpe, Tomás. Não devia ter dito isso.
- Tem razão, não devia. De qualquer jeito, é
verdade. E teremos sorte se a nave conseguir atracar
conosco.
Uma rajada ascendente fez com que o dirigível
sacolejasse. Painéis luminosos piscaram. Ouviram-se
rangidos de metal contra metal de algum lugar entre a
10
infinidade de tubulações que compunham a unidade
automatizada de fertilização. Também chegaram
ruídos estridentes vindos da fuselagem, do esqueleto
de treliça de alumínio da aeronave. Bombas
hidráulicas entraram em ação. As empenagens
horizontais e verticais da cauda ficaram tensas.
Computadores fizeram cálculos à velocidade da luz,
procurando compensar, estabilizar o monstro de
hidrogênio. O lastro continuou em seu lugar. Cabos
de atracação tremulavam a esmo. Não havia
luminosidade suficiente no interior habitável do
dirigível e uma porção significativa dela era
proporcionada pelos relâmpagos e os fracos raios
solares que conseguiam penetrar na estratosfera
venusiana, refratados e refletidos um bilhão de vezes
desde o outro hemisfério. Tampouco o interior do
aparelho havia sido projetado a fim de oferecer
conforto a residentes humanos em caráter
prolongado. O leme estava fora de controle. Os
motores de vante e de ré encontravam-se
inoperantes. Poderia se manter na mesma altitude
por Deus sabe lá quanto tempo; todavia, a direção
bombordo ou estibordo encontrava-se a cargo do
tempo. Os circuitos destinados à semeadura também
estavam inativos – foram os primeiros a ser postos
fora de circulação.
X - Tem que ser o suficiente.
CIDADE-ESPACIAL: Afrodite (YAM-31/92-000-SC)
POPULAÇÃO: 4.013 habitantes (anglos: 502 /
latinos: 3.511)
PREFEITO: John Herbert Miller
CONSTITUIÇÃO: 04 módulos habitacionais, 01
fábrica de dirigíveis, 03 estaleiros, 01 usina solar,
01 espaçoporto, 01 indústria de fitoplâncton
FINALIDADE: Executar Projeto Vênus
PROJETO VÊNUS: Terraformização do segundo
planeta
DURAÇÃO ESTIMADA: 300 anos terrestres
TEMPO TRANSCORRIDO: 43 anos terrestres
FASES:
1) Construção de Afrodite
2) Afrodite em operação
3) Lançamento de dirigíveis
4) Semeadura
5) Concluir processo de terraformização
6) Colonização
FASE ATUAL: Fase 4 (temporariamente inoperante)
COMUNICADO: “Prefeito Miller. Informar
Congresso Anglo-Asiático s/ andamento Projeto
Vênus. Prioridade máxima. Remessa de provisões
suspensa até segunda ordem.”
RELATÓRIO YAM-31/92-000-SC/01: “Equipe de
manutenção enviada ao dirigível PV-208 há 75
horas. Reporte de avarias incompleto. Comunicação
precária. Reparos em ritmo acelerado. Prazo de
normalidade estimado: uma semana. Socilitamos
reconsiderar suspensão de provisões para devido
cumprimento do projeto.”
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
O prefeito Miller, acomodado atrás de sua mesa,
fitava o rosto do assessor. Tentou em vão ler seus
pensamentos. Para alguém tão jovem, William Anderson
conseguia ser bem dissimulado. Era uma qualidade útil
dentro da política; todavia, no momento era um
transtorno.
- O que você acha, Bill? Irão engolir essa?
- Um tanto sucinto, senhor – respondeu o
assessor, devolvendo o relatório.
- Não foi isso o que perguntei.
William, de testa franzida, sentado à frente de
seu superior, apoiou a mão sobre o queixo afilado, como
se temesse que este caísse a qualquer momento. Seu terno
de seda, assim como o do prefeito, era muito confortável e
brilhava sob as luzes artificiais. Entretanto, agora a
vestimenta dava a sensação de sufocá-lo. Embora as
paredes fossem à prova de som, ele podia perceber o
burburinho dominante em todos os escalões de
Anglotown, e os comunicados ao prefeito devidamente
driblados por um pequeno exército de secretárias e
seguranças. Respondeu finalmente:
- Bom, senhor, não tenho certeza. Já está sendo
difícil o Congresso aceitar a falha em nosso sistema de
videocomunicação.
- Deixo isso a seu cargo, Bill. Creio que dará
resultado. Envie o relatório.
- Mas o prazo de uma semana...
William Anderson comprimiu os lábios
reprimindo o palavrão.
- A equipe está há três dias na aeronave, senhor,
e não conseguiu coisa alguma além de perder um de seus
membros e emitir pedidos caóticos de socorro.
- Estou ciente disso, assessor. Providencie uma
nova equipe de abordagem, mais numerosa desta vez e
que aborde mais de um dirigível. Envie-os após o retorno
da nave de resgate. E quero que inclua anglos para chefiá-
los. É uma situação delicada, Bill. – E mudando de
assunto, num tom casual indagou: - Efetuou os depósitos
para Paul Shinohara?
O assessor ergueu as sobrancelhas. Recompôs-se
rapidamente.
- Sim, senhor. Também transferi as importâncias
relativas a Ferdinand Lindsay, Diana Benson e Cristopher
Horn Isherwood.
- Ótimo. Excelente! E quanto às faturas?
- Em ordem, prefeito. Mas sobre as novas
remessas de material...
- O que é que tem?
- A suspensão das provisões não influenciará os
fornecedores?
- Não enquanto continuarem a ser bem pagos.
São questões distintas, William. Certo?
O prefeito John Herbert Miller raramente
chamava o assessor assim. Este sentiu a advertência,
evitando prosseguir no assunto. O superior, então,
recostou-se mais confortavelmente, entrelaçou os dedos e
deu a conversa por encerrada.
William Anderson meneou a cabeça. – Sim,
senhor. – Levantou-se e foi andando rumo à sua sala. Um

pensamento incomodou-o e ele interrompeu os
passos. – Prefeito Miller...
- O que é?
- E se o Congresso enviar um auditor?
- Já pensei nisso. Ele levará meses para
chegar, não é?
O assessor confirmou num aceno.
- Isso é bem mais do que uma semana, Bill.
- Sim, senhor. – E Bill desapareceu por uma
passagem lateral.
O prefeito Miller continuou a olhar para lá
muito tempo depois da partida de seu subordinado.
Digitou uma das teclas em sua mesa.
- E então? – perguntou.
Uma voz sintética brotou no receptor em seu
ouvido:
- Muito nervoso. Batimentos cardíacos
acelerados. Respiração controlada com esforço.
Avaliação preliminar: confiável, mas com cautela.
- Prossiga com as análises – ordenou o
prefeito, recostando-se mais confortavelmente.
XI
Tomás insistia em brincar com o tudo de
vidro e a coisa verde dentro dele.
Miguel, finalmente, saiu de perto da janela
e foi para junto do outro, posicionando-se do outro
lado da mesa embutida. Relâmpagos faiscaram às
suas costas, entre duas nuvens em colisão. O
dirigível sacudiu outra vez.
- Mais uma tempestade, Miguel?
- Acho que sim. A essa altura não ajuda em
nada. Como é que estão? – perguntou, apontando o
recipiente cilíndrico.
Tomás estalou os lábios e deu de ombros.
- Devem estar bem. A cor ainda é a mesma.
Não sou biólogo, não entendo de algas
microscópicas. Cuido apenas da parte mecânica. –
Balançou a cabeça e fez uma careta. – Quando isso é
possível. Na última vez que conversei com a Bia, ela
me disse que a reprodução prosseguia em proporção
geométrica, assim como a fotossíntese. Os
reservatórios de nutrientes também estão bem
abastecidos, pelo que pude ver lá embaixo. Só a
semeadora não funciona e não consigo achar uma
explicação.
Miguel levantou os olhos e encarou Tomás.
Havia medo neles. Os cabelos em sua nuca se
eriçaram.
- Não é só isso que está sem explicação –
disse.
- Sei o que quer dizer – murmurou Tomás,
perscrutando ao redor da pequena cabina. Painéis,
tubulações, muitas sombras, algumas luzes piscando,
ranger de metais. – Ao menos a fotossíntese
continua.
- Graças a Deus por isso.
- Francamente, eu esperava mais dEle –
retrucou Tomás.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
11
Miguel não respondeu. O pavor afugentara a
timidez de Tomás e a substituíra por uma insolência
vazia. Miguel entendia esse sentimento perfeitamente.
Era verdade... Sobre a fotossíntese. Quando o
sistema de ar começou a falhar, teriam perecido sufocados
em poucas horas não fosse a habilidade de Tomás em
mecânica e de Miguel em circuitos hiperintegrados.
Adaptaram a produção de oxigênio aos condutores de ar,
permitindo que respirassem. As algas produziam o
precioso gás e absorviam o dióxido de carbono que eles
eliminavam. Foi muita sorte, não obstante os queixumes
de Tomás e mesmo de Miguel. No interior do dirigível, de
todos eles, o oxigênio era a bem da verdade um produto
secundário. A finalidade básica dos dirigíveis consistia na
reprodução acelerada de algas microscópicas para
posterior eliminação do fitoplâncton excedente na
atmosfera. Eram incubadeiras flutuantes a perambular
pelo planeta, plantando, germinando, esperando brotar. Só
que não estavam cumprindo o determinado. Quanto aos
ajustes que os dois homens providenciaram, tudo havia
sido improvisado. Não poderia dar certo indefinidamente,
o equilíbrio estava longe de ser perfeito.
O dirigível PV-208 chacoalhou novamente, à
deriva. Sons estridentes tornaram a partir da carcaça de
alumínio da fuselagem, reverberaram nos balões menores
de hidrogênio que compunham as entranhas do corpo
principal, totalizando dez mil metros cúbicos do gás.
Relâmpagos brilhavam lá fora, imensas fagulhas trazendo
por segundos uma luz fantasmagórica para o interior da
cabina, principalmente em direção à proa, onde existia
uma fileira de janelas panorâmicas de três metros de
altura. A bruma revolvia-se em espirais afuniladas,
envolvendo o gigantesco veículo num abraço, como se este
não fosse mais do que um inseto barrigudo.
Em Vênus, dióxido de enxofre emergia da
atmosfera inferior, trazido pelas correntes de ar
ascendentes. Sobrevoava a camada de nuvens e se
combinava com moléculas de água sob os efeitos da luz
ultravioleta do Sol. Transformavam-se, então, em ácido
sulfúrico que chovia pelo segundo planeta sem nunca
tocar a superfície escaldante.
Miguel segurou firme com as duas mãos nas
bordas da mesa como se, de um momento para o outro,
pudesse ser projetado pela cabina. Tinha olhos azuis como
o mar, mas de um azul embaçado, apagado pelos anos. E
eram caídos, dando-lhe sempre a expressão tristonha. Não
precisava disso para aparentar tristeza.
“Semear Vênus com algas... grande idéia”,
refletiu, sem um mínimo de entusiasmo. “Desenvolver
geneticamente algas capazes de resistirem às condições da
atmosfera superior venusiana, reproduzir e fotossintetizar
num ritmo elevando antes de mergulharem no inferno
mais abaixo. Quanto tempo disseram os pesquisadores
anglos? Duzentos?... Trezentos anos até o ar se tornar
respirável? Belo cenário: muito oxigênio, chuvas
resfriando a superfície, diminuição do gás carbônico,
pressão barométrica caindo, ácido partindo-se em água e
sulfatos, ou qualquer droga semelhante. Uma nova Terra,
uma nova esperança para a humanidade que estava
conseguindo transformar a Terra num novo Vênus.
“Gostaria de compreender melhor a nós mesmos,
nossos anseios e objetivos. Haverá um objetivo traçado
12
para a espécie humana? Somos feito câncer a se
alastrar sobre a Terra. Durante dezenas de milhares
de anos caminhamos, coletamos, caçamos e
alteramos a configuração do nosso planeta. Então,
voltamos nossos olhos para o céu até termos em
mãos os instrumentos capazes de nos levar às
estrelas. E estamos indo lá, espalhando tudo o que de
bom e mau produzimos, todas as nossas virtudes e
mesquinharias. Merecemos o espaço? Mal soubemos
cuidar de nossa morada. Porém, prosseguimos em
frente, sempre em frente, aventureiros e indomáveis,
pois somos assim, dizem que faz parte de nossa
natureza. A natureza nos criou, ela que nos agüente.
Maravilhosa filosofia. Achamos que nada poderá nos
deter... Ingenuidade. Mal conhecemos o Sistema
Solar e já estamos diante de forças que não apenas se
opõem à nossa chegada como agem ativamente para
mandar-nos embora daqui.
“Ah, Pedrinho, meu amado irmão, talvez
você estivesse certo no final das contas, talvez eu
devesse ter me contentado com o universo líquido
dos oceanos, com as estrelas... do mar e algas
marinhas. Talvez devesse ter ficado nos escolhos de
Fernando de Noronha a nutrir-me dos sonhos.”
O dirigível foi sacudido por mais algum
tempo até se estabilizar.
Miguel e Tomás, cada qual a seu modo,
relembraram os acontecimentos dos últimos dias,
desejando ter o poder de mudar o destino.
XII
Devido à velocidade dos ventos, à pane no
sistema de navegação dos dirigíveis automatizados e
a não obediência aos comandos de controle remoto
que deveriam funcionar em caso de situações como
essa, a nave que trouxe a equipe de manutenção
necessitou realizar manobras arriscadas na
estratosfera de Vênus. Entre as milhares de
aeronaves destinadas a sobrevoar e semear o planeta
a diferentes latitudes, a PV-208, na altura do
equador, foi a primeira a ser localizada pelo radar.
As primeiras tentativas de atracação malograram,
não obstante os esforços dos tripulantes. Somente na
quarta tentativa os três membros da equipe foram
introduzidos na cabina e deixados à sua própria
sorte.
A primeira providência que tomaram foi
com relação à atmosfera interna e à temperatura para
que pudessem dispensar os trajes de astronauta e
trabalhar com inteira liberdade.
Tomás consultou um dos painéis.
Encontravam-se os três na área de embarque da
aeronave.
- A atmosfera está OK – informou a Beatriz
e Miguel pelo rádio. Esgueu o vidro de seu capacete
e inalou o ar vagarosamente. Fez um sinal de
“positivo” com o polegar.
Retiraram seus trajes, familiarizando-se de
imediato com os muitos ruídos do ambiente. Usavam
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
uma malha cinza por baixo, vestimenta de praxe dos
cosmonautas de Afrodite.
O termômetro indicava 10ºC. Um tanto frio;
todavia, sem comparação com a temperatura polar
reinante lá fora.
- Está tão escuro... – murmurou Beatriz para o
mecânico, observando as fortes sombras que envolviam o
corredor formado de painéis. Do outro lado, uma porta
dava acesso à cabina do dirigível. O sussurro da bióloga
produziu inúmeros ecos no interior da estrutura. Foram se
espalhando e amortecendo, absorvidos pelas paredes. –
Maravilhoso, estava precisando disso.
“Disso... disso... isso... so...”
Miguel consultou outros painéis. Indicadores
luminosos azuis, amarelos e verdes brilharam. Suas rugas
se pronunciaram.
- Isso é o melhor que podemos fazer por
enquanto. Veja essa lâmpada – retirou-a do soquete. –
Queimada. Aquelas ali também. Essa está boa.
- Por que queimaram?
- Não sei, Beatriz. Deveriam estar intactas.
Caminharam através da passagem. Seus passos
produziam ecos sobre ecos. O encanamento no alto
formava um intrincado conjunto; uma parcela
significativa era invisível na escuridão. Havia uma
lugubridade imperando naquele lugar. Todos eles
sentiram imediatamente, ao abrirem a porta. Não eram
bem-vindos ali, pressentiram isso nos ossos, embora não
pudessem expor em palavras. Eram estranhos invadindo
um refúgio que não lhes pertencia. Todas as peças
estavam geladas ao toque. A cabina era pequena e o teto
baixo encontrava-se a meio metro de suas cabeças. Havia
mais luz do que no corredor, proporcionada pelas janelas
panorâmicas na proa e por lâmpadas ainda escassas,
várias delas apagadas. Filamentos queimados.
Relâmpagos brilharam por segundos, exibindo o rolar das
nuvens cor de enxofre. O recinto era uma casa
abandonada, exceto pela ausência de morcegos e uma
camada de poeira.
- Que cheiro... – Tomás torceu o nariz.
- O que poderá ser? Você sabe, Beatriz? Lembra-
me alguma coisa, não sei dizer.
A mulher sorriu, tentou pelo menos. Não possuía
muitas respostas, mas essa ela sabia. Proporcionou-lhe um
sentimento de segurança que a tranqüilizou um pouco.
- É o fitoplâncton. Tem sempre um odor de
maresia.
Miguel confirmou com a cabeça.
- Sim, é isso. Recordo-me agora.
Nas horas que se seguiram, fizeram um
reconhecimento geral da cabina e demais partes do
dirigível cujo acesso fosse possível, o que incluiu os
depósitos de algas microscópicas, os reservatórios de
nutrientes, sala dos motores, compartimento de lastro,
corredores, sistemas de encanamentos, seção hidráulica,
setor de computação, despensa para o pessoal temporário.
Vasculharam tudo, não encontrando coisa alguma de
anormal, exceto que os motores não funcionavam, o
sistema semeador não dava sinais de vida e algumas
lâmpadas queimadas. Posteriormente, cada qual foi cuidar
do setor que lhe cabia, verificando ponto a ponto da área
defeituosa. O trabalho contribuiu para a descontração de

todos e desviar suas mentes a respeito de onde
estavam. Uma inquietação insólita persistia a cada
canto do veículo. Beatriz descobriu não haver
qualquer problema com as algas; estavam bem e
sendo regularmente alimentadas com os nutrientes.
Todavia, o excedente não era borrifado nas nuvens, e
isso, a médio prazo, poderia representar uma
superpopulação e escassez de alimento. Não
conseguiu descobrir a razão do defeito. Miguel e
Tomás tampouco tiveram melhores resultados nos
exames que fizeram dos circuitos direcionais e
sistemas eletromecânicos. Tudo ia bem, só que não
funcionava. Levaram horas e mais horas e essa foi a
melhor conclusão a que chegou a equipe de
manutenção.
Foi durante a madrugada – de acordo com a
convenção terrestre de vinte e quatro horas adotada
na cidade-espacial.
Os três membros procuravam dormir nos
terríveis colchonetes e cobertores que Tomás
apanhara na despensa. Os rumores da intempérie
alimentaram a insônia voluntária, mas o cansaço
fora maior.
Ressonavam.
Que ocasião mais apropriada haveria para
os fenômenos se manifestarem?
Por algum motivo ignorado, a bióloga foi o
alvo preferido. Acordou repentinamente de um
sonho prontamente esquecido.
- Que frio... – gemeu. Abraçou as pernas. A
pele estava gelada. Sentia as juntas entorpecidas.
Esfregou-se com força. Buscou pela manta. – Onde
está?
O vendaval zumbia áspero através dos
relevos do dirigível. O clarão difuso de um
relâmpago chegou até o interior da cabina.
Beatriz ficou confusa. Não reconheceu as
formas por entre o sombreado predominante.
Escureceu novamente.
A manta havia sumido. Tateou na
escuridão, sentindo a superfície lisa do piso, paredes,
grades, computadores. Paulatinamente, sua visão se
acostumou e pôde perceber algumas das luzes nos
painéis de instrumentos.
- Miguel – chamou baixinho.
“Miguel... Miguel... guel... el...”
- Tomás.
“Tomás... Tomás... más... ás...”
Xingou os ecos. Dormira entre os dois
homens; entretanto, não conseguiu encontra-los. Os
dedos perscrutaram em volta, e nada. Sussurrou o
nome deles outra vez, indagando-se depois do porquê
de haver sussurrado. Chamou-os mais alto, tentando
ignorar os ecos. Ainda sem resposta. Praguejou.
Desejou estar em seu quarto em Afrodite, nos braços
do namorado, ou nos laboratórios da indústria. Não
tinha vocação para aventureira.
O vento uivava. Assemelhava-se a vozes
humanas.
Metais estalavam.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
13
Um zumbido contínuo partia de máquinas ocultas
na obscuridade.
Inesperadamente, um relâmpago explodiu logo
acima de sua cabeça e ela gritou. Pôde ver, então, na
poderosa claridade que se formou, que se encontrava na
extremidade oposta a seus companheiros e onde deveria
também estar. Pôs-se de pé num salto. Algo gelado,
anormalmente gelado, tocara seu calcanhar. A trovoada
deixou-a tonta. Oscilou. Se não se apoiasse numa grade,
teria perdido o equilíbrio.
- Tomás! Miguel! – chamou a toda voz.
As trevas voltaram mais fortes. Sacudidelas
violentas tomaram conta da aeronave. Pequenas bolas de
fogo dançaram diante de seus olhos. Miguel e Tomás não
davam sinais de vida. E isso foi o que mais a deixou
apavorada. O que teria acontecido a eles? Por que não se
mexiam? Cambaleou às cegas na direção em que os vira
até tropeçar em algo macio e cair sobre eles. Só então
acordaram, a tempo de ouvi-la emitir seus últimos apelos
histéricos antes de cair em prantos.
A partir de então, ruídos não identificados foram
ouvidos em diferentes ocasiões pelos três. Ora lembravam
o rasgar de tecido, ora davam a impressão de passos ou
batidas de um coração invisível.
O dirigível era como uma fábrica às escuras com
suas tubulações, seus ecos distantes, o odor de mofo, a
umidade nos pavimentos inferiores. As luminárias nunca
eram o suficiente para clarear os recintos, os corredores,
os equipamentos, os andares. Havia sombras demais no
PV-208, silêncio demais, sussurros demais, barulhos
demais.
Tomás acreditou ter visto uma forma, um vulto
luminoso, vigiando-o do algo das treliças de alumínio que
envolviam os balões de hidrogênio. Aplicava argamassa
numa onexão de encanamentos, quando, pelo canto do
olho esquerdo, sua atenção fora atraída para uma luz
tênue a alguns metros acima do nível em que se
encontrava. Por pouco não perdeu o equilíbrio da viga
onde sentara numa queda perigosa através do emaranhado
de tubos e traves. A luz ascendeu por entre os contornos
mal delineados na penumbra e pareceu penetrar num dos
balões até então às escuras.
Miguel estava substituindo um circuito
hiperintegrado do videotransmissor e julgou escutar vozes
partindo do aparelho, um burburinho ininteligível que foi
crescendo de volume até se transformar num coro de
lamúrias. Imagens confusas surgiram na tela. Ele estava
habituado a interferências, porém, o que iria interferir
com um instrumento quando este se encontrava desligado
e parcialmente incompleto?
No segundo dia, Miguel surgiu, trêmulo, do
corredor que ligava a cabina à área de embarque.
- Os nossos trajes... desapareceram.
- Como, Miguel?
- Diga-me você, Tomás. Não voltamos para lá
desde nossa chegada.
- Não entendo...
Beatriz, sem fitar nenhum dos dois, falou por
entre os dentes. Deu forma palpável às suas suspeitas e
temores primitivos herdados desde os períodos das
cavernas:
- Fantasma...
14
Nem o mecânico e nem o engenheiro
tiveram oportunidade de contestar. Um rumor grave,
ignorado como um dos ruídos do maquinário,
cresceu de intensidade e se transformou numa
gargalhada inumana.
Noites e dias insones povoados por
pesadelos reais; alucinações visuais, acústicas,
olfativas, táteis. Oceanos de chamas. Ventos glaciais.
Vidros a trincar. Painéis a enlouquecer. Crianças a
rir ou chorar. O que era falso? O que era verdadeiro?
O sacolejar do dirigível foi verdadeiro.
O tambor que não deveria se desprender por
maior que fosse a intempérie, desprendeu-se de fato.
A agonia da bióloga jamais seria esquecida
pelos dois tripulantes.
O falecimento da única mulher da equipe
foi real.
O medo era feito o sereno depositado nas
folhas durante um anoitecer de outono; todavia, ao
contrário dele, não se evaporava diante do
amanhecer. Fortalecia-se. Gotícula a gotícula
penetrando nos poros, unindo-se, crescendo,
ganhando forças num terreno há muito familiar até
se converter num rio tempestuoso, arrancando com
força fragmentos de rocha da montanha chamada
alma.
XIII
Existia somente uma escuridão sem fim
para onde quer que sua vista se voltasse. E fazia frio,
mais do que frio. O corpo entorpecido não podia se
mover: petrificara-se. Os pensamentos perdiam-se
num milhar de perguntas. Onde estava? Que trevas
eram aquelas? O que foi feito da luz? Por que não se
mexia? Quis gritar. O maxilar estava duro feito aço.
Desesperado, concentrou toda sua energia nos
pulmões, garganta, lábios e músculos enrijecidos das
faces. Sim, sentiu, iria conseguir. Mais, mais e mais.
Gritou! Se pudesse se fitar num espelho, teria visto
seus olhos se arregalarem de horror. Dera o maior
berro de sua vida... e não ouvira som algum.
Enquanto imaginava por quanto tempo
permaneceria assim – anos? Décadas? Séculos?
Milênios? A eternidade? -, o negror uniforme foi
quebrado por um ponto de luz. Era um filete
impossível vindo das margens do nada. Foi
aumentando de tamanho e intensidade.
Algo sussurrou em seu cérebro sobre aquela
esfera de fogo.
Era Vênus.
Um mar de chamas avermelhadas.
Subitamente, a situação se inverteu. As
trevas cederam terreno à claridade ofuscante que
ocupou tudo à sua volta. O frio refugiou-se no limbo,
ao passo que um calor agradável cresceu e cresceu
até se tornar um inferno intolerável de dor.
O corpo gelado pôde se mover. Contorceu-
se. Estava queimando em carne viva. Odor de carne
carbonizada. Luz cegante. Dor... DOR!
Vênus o estava matando.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
Gritou.
E o grito foi ouvido desta vez.
Todos os tripulantes do barco escutaram.
Despertaram de seus leitos. Corações descompassados.
Um suor frio descendo pela espinha.
- O que foi, Pedro? – gritaram. – O que deu em
você, homem?
- Nada, nada – respondeu Pedro, ofegante. A
boca estava amarga. Comprimiu as pálpebras sob a luz da
lanterna. – Um pesadelo... foi só um pesadelo.
Resmungos partiram dos cantos escuros. Corpos
se remexendo, querendo voltar a dormir. Ruídos ásperos
de tecido contra madeira. Minutos depois, a quietude
retornou à embarcação.
O barco era embalado pelas ondas.
Pedro tateou. Ficou de pé. Dirigiu-se até a
escotilha mais próxima e olhou para o mar sob a noite
sem Lua. Infinitos pontos de vida brilhavam nas cristas e
vales em permanente mobilidade. Velhos parceiros de
Pedro, os protozoários luminescentes faziam lembrar
chamas de velas vistas à distância. Nessa noite em
particular, com a faixa da Via Láctea cruzando a abóbada
feito um cinturão de pedras preciosas, o plâncton fê-lo
pensar em constelações, numa maré de estrelas movendo-
se sem vontade sobre as ondas do espaço. Eram como
reflexos dos astros no céu. Ou seriam, estes, imagens dos
protozoários marinhos? Não importava. Pedro amava o
mundo em que vivia: a generosidade das águas, os
microorganismos de luz, e o próprio céu noturno bordado
de luzes. Quase compreendeu a paixão de Miguel.
“Não precisaria ter ido para tão longe à procura
de estrelas, mano. Elas estão aí, no vai-e-vem das ondas,
guiando lobos-do-mar e cardumes de sardinhas. Se não
estivesse o tempo todo olhando para o alto, teria admirado
as estrelas bem debaixo do seu nariz.”
Inspirou o penetrante ar marinho.
Seus olhos passaram do mar para o céu. Sentiu o
corpo estremecer. Teve a impressão de que uma dor
lancinante brotara do coração. Vênus estava lá. Sabia ser
ele, só podia ser. A intensa cintilação azul-prateada
indicava estar na fase crescente. Queria devora-lo. Seus
fantasmas se agitavam nos nichos obscuros do sono,
aguardando por ele.
Regressou para o leito, porém de lá, conforme o
balançar do barco, ele podia ver a estrela d’Alva.
Relembrou o pesadelo de há pouco. Continuava a detestar
aquele mundo longínquo.
“O que tem feito com meu irmão, miserável?”
Custou muito a pegar no sono, amedrontado.
Ficou a ouvir o ranger do cordame pelo convés.
Lembrava gargalhadas.
XIV
Vênus recebia o dobro da radiação solar em
comparação com a Terra, mas a refletia intensamente.
Mais da metade retornava ao espaço, o que fazia dele o
terceiro astro mais brilhante no céu do terceiro planeta.
Entretanto, somente a porção restante era suficiente para
aquecer a superfície ao rubro, auxiliada por um poderoso
efeito estufa; um represamento de calor a persistir mesmo

durante as noites venusianas, de modo que a
temperatura superficial tanto do lado noturno quanto
do diurno eram praticamente iguais.
Que paisagem tão distinta daquelas
construídas pela imaginação do homem desde que
Galileu observou suas fases em 1610!
Em 1918, o químico sueco Arrhenius
vislumbrava um mundo úmido e quente; vastos
pântanos semelhantes aos da aurora da vida na
Terra, com a vegetação se desenvolvendo em ritmo
acelerado sobre crescentes depósitos de carvão e
turfa.
Anos depois, cientistas afirmaram ser o
planeta um imenso Saara castigado por ventos
raivosos, envoltos por nuvens gigantescas de poeira e
decorado por uma sucessão interminável de dunas de
areia.
Um visionário chegara a propor que Vênus
havia sido um cometa arrancado de Júpiter há mais
de três milênios.
A descoberta do dióxido de carbono em
abundância através de estudos espectroscópicos no
início da década de 30 acabou dando origem a duas
novas teorias. Em ambos os casos, acreditavam
existir um vasto oceano envolvendo o astro. Só que,
num deles, a composição seria de um mar de
petróleo borbulhando de gás natural. A outra teoria
antevia um mar de água carbonatada, efervescendo
no quebrar das ondas.
Foi a partir da segunda metade da década de
50 que a verdadeira face de Vênus começou a se
revelar, confirmada posteriormente pelos satélites em
órbita e outros que se atreveram a penetrar no manto
nebuloso.
Já na década de 60, especulava-se sobre a
terraformização do planeta, criando-se colônias de
algas por entre as nuvens. Mas somente um século
depois os primeiros estudos visando tal possibilidade
principiaram a ser postos em prática, levando-se em
conta o crescente aumento de temperatura da Terra
provocado pelos poluentes, o derretimento gradual
das calotas polares e o esfacelamento da camada de
ozônio. Se a vida estava em perigo, os homens
buscavam por uma garantia de sobrevivência às
futuras gerações. Um gesto nobre e complacente,
justificavam. Alguns protestavam, alegando ser mais
sábio e econômico investir na salvação da Terra,
desativar as fábricas e os veículos, banir os aerossóis,
conter o crescimento populacional, salvar a vida
selvagem. Não foram ouvidos. As megacorporações,
como o Congresso Anglo-Asiático, controlavam o
mundo, e possuíam muitos interesses envolvidos.
Tinham os olhos no futuro; todavia, não tolerariam
alterações no seu presente.
XV
O amanhecer chegara às altas camadas de
nuvens corrosivas sem que percebessem. Na
realidade, isso era uma imprecisão causada pela
perspectiva. Fora o estrato sem fim, arrastando o PV-
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
15
208 a uma velocidade em torno de 350 km/h, que
alcançara os primeiros raios solares diretamente
incidentes. Dezenas de quilômetros abaixo, o corpo celeste
chamado pelos antigos gregos de Héspero ou Phósphoros
continuava a rodopiar numa lentidão de angústia, numa
escuridão de cerca de dois meses terrestres.
- Conheci Bia na Base Espacial do Rio de Janeiro
– falou Tomás meio que para si. – Ela era de lá. Seu
primeiro nome é Ana, sabia? Era a garota mais inteligente
da turma de calouros. Não tinha uma beleza exuberante,
curvas salientes, mas também não era o tipo de pessoa a
passar despercebida.
- Sei o que quer dizer. – Miguel procurou pensar
naquele rosto moreno, envolto pelos cabelos crespos numa
combinação de delicadeza e rusticidade. Ela possuíra um
sorriso muito bonito. Mas o rosto do cadáver insistia em
se sobrepor a ele.
Trovões fizeram a fuselagem estremecer. Sons
reverberaram.
O gaúcho prosseguiu:
- Fizemos o nível básico juntos, em Bonsucesso.
Por pouco ela não estudou engenharia mecânica comigo.
Matemática não era o seu forte, assim como Química não
era o meu. Se ela tivesse seguido a mesma carreira que a
minha, não estaria morta agora. Poderia ter ficado na
cidade-espacial ou na Terra. O destino é muito gozado,
sabe? Fiquei anos sem ter contato com ela, e, de todos os
lugares no mundo, foi justamente fora dele, no espaço, que
a reencontrei.
O outro homem ia perguntar algo, quando sua
atenção foi desviada.
Do outro lado da cabina, em frente a uma das
janelas panorâmicas, mais um painel principiou a
enlouquecer. Suas teclas luminosas começaram a piscar a
esmo, mostradores exibiram dígitos que nada
significavam e um odor de queimado infiltrou-se nas
narinas dos dois. Miguel correu para lá, seguido de perto
por Tomás.
- O controle ambiental já era – murmurou o
primeiro. Coçou a barba por fazer, sentindo-se
imensamente mais velho do que os trinta anos que a
natureza lhe dava.
- Quanto tempo até ficarmos congelados?
- Minutos... Uma hora com sorte, creio.
Tomás estalou os lábios.
- Se ao menos o sistema de lastro estivesse
operacional, poderíamos reduzir o volume de hidrogênio
de um dos balões e descer até a temperatura circundante
se tornar mais amena.
- Surpreende-me que consiga pensar nessas
coisas. Não há como calcular ou fazer. Você subiria lá
novamente? Não, vamos ficar aqui quietinhos, esperando
pela nave.
O vento uivava lá fora, em toda parte, no planeta
inteiro, com a energia de um brado interminável.
- Maldita ventania. É de deixar qualquer um
doido!
- Calma.
Tomás perdeu a paciência, nervos esgotados.
Estava à beira de uma estafa.
- Calma? Como calma? Explique para mim:
milhares de dirigíveis programados e lançados aqui.
16
Como é que, em pouco tempo, um a um foi ficando
defeituoso sem motivo? Milhares deles! Foge a
qualquer estatística. E, é claro, três latinos trouxas
foram enviados de cobaia pela companhia para
“analisar o problema”. Agora, Beatriz está lá
embaixo... Instrumentos entram em pane sem razão.
Quer que eu fique calmo? Diga-me um só motivo.
O interior do tubo de ensaio estava repleto
de bolhas provocadas pela agitação do mecânico.
Gotas de suor porejavam de sua testa, apesar do frio
iminente.
Miguel o encarou. Disse:
- Se não ficarmos calmos, morreremos.
- Sei... melhor morrermos sossegados do
que tendo chiliques – retrucou Tomás, cheio de
sarcasmo e afastando a mão que Miguel pousara em
seu ombro. Voltou para perto do videotransmissor. –
Alô, nave de resgate! Alô, nave de resgate! Fala
Tomás Pereira, da Semeadora PV-208. Dispositivo
térmico inoperante. Apressem-se!
Ambos os homens observaram a tela clarear
e um rosto tomar forma. Entretanto, havia muita
interferência, não permitindo definir os traços da
pessoa. Sua voz também soou incompreensível. O
vídeo então se apagou sem que Tomás tivesse tocado
na tecla. Miguel não precisou ler a mente deste para
saber. “Estamos sem comunicação também”.
Retornou para perto da janela. Voltou a pensar em
sua juventude. O nevoeiro. Os rochedos escarpados.
O Dedo de Deus. As noites em que, deitado sobre a
relva, observava as constelações e sonhava conhece-
las de perto. E havia a estrela do Pastor, a primeira a
surgir depois do crepúsculo, tão brilhante, fria e
silenciosa. “Vista por dentro não é assim tão
brilhante, nem tão fria, tampouco silenciosa”, pensou
com amargura.
O vento uivou mais forte, rente à janela
panorâmica: névoa alaranjada, formas difusas,
perenes. Descargas elétricas ramificaram-se por
entre a bruma.
Algures, chegou aos seus ouvidos o som de
uma batida, depois outra e mais outra. “Deus, de
novo não!”, pensou. Tomás também percebeu e
aguçou os ouvidos. Aparentava vir de lá de baixo, do
depósito de fitoplâncton.
Um calafrio percorreu toda a superfície do
corpo do ilhéu antes de atingir sua nuca. Tomás
deixou cair o tubo de sua mão e ele se espatifou pelo
piso, espalhando fragmentos de vidro e o líquido
esverdeado. Mirou os dedos como se não fossem
seus, depois a passagem para o pavimento inferior.
Sentiu os joelhos amolecerem e indagou para
Miguel:
- Be... Beatriz... Será que está viva?
- Não, ela não está viva. Nós dois vimos a
luz sumir de seus olhos. Vimos sua pele mudar de
cor... Ela não pode estar viva.
- Mas estes barulhos... Eu vou lá ver. –
Tomás pôs-se de pé. Suas juntas davam a sensação
de terem virado gelatina.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
Miguel, por seu turno, não se sentia melhor do
que o outro. Havia contusões nas suas costas e pernas.
Sentia-se exausto.
- Vou lá ver – repetiu Tomás.
- Não.
- Por quê? Podemos estar enganados. Ela pode
estar necessitando de auxílio.
As batidas continuavam, ritmadas, monótonas,
metal contra metal.
Novo calafrio.
Miguel visualizou o rosto de Bia, congelado
numa expressão de horror. Era como se tivesse querido
gritar sem poder, como se tivesse visto algo que a matasse
de medo antes da queda do tambor. Seu consciente
recusava-se a admitir isso. Era uma sensação análoga à de
se caminhar tarde da noite pela mata e ouvir galhos secos
estalarem ou imaginar estar sendo observado na
escuridão. A razão era contrária ao pressentimento,
porém, todas as evidências apontavam, seu íntimo
sussurrava... Não estavam sós no dirigível.
- Por quê? – gritou Tomás, já no topo da escada.
- Porque... tenho medo de ficar sozinho.
- O que você quer...
As batidas desapareceram.
Tomás não concluiu a frase. Recuou e,
instintivamente, foi para junto do engenheiro, ambos
fitando aquela abertura à espera de novos ruídos, passos
subindo os degraus. Nada aconteceu.
- Precisamos sair daqui, Miguel.
- Precisamos, mas não temos como até a nave
chegar.
- Se chegar.
- Se chegar – confirmou Miguel, tenso.
- O frio está aumentando.
Miguel assentiu. Colocou sua manta sobre os
ombros e entregou a de Tomás. Se ao menos os trajes de
astronauta não se tivessem volatizado.
Subitamente, os dois foram atraídos para as
janelas. Em meio à névoa e os relâmpagos, surgiu uma
forma escura, uma sombra que foi crescendo e crescendo,
aumentando de densidade até encobrir quase todo o campo
de visão e o alvorecer na atmosfera superior de Vênus.
- Deus, o que será isssss...
- Minha Nossa Senhora!
XVI
Morfologicamente, a nave de resgate
assemelhava-se muito a um bacteriófago: uma “cabeça”
enorme onde ficava a tripulação cujos contornos eram os
de um poliedro convexo de faces retangulares, unidas
pelos lados maiores até formarem um prisma hexagonal
sem as bases; no lugar destas, faces triangulares se
projetavam para fora, compartilhando de um mesmo
vértice. Possuía ainda uma cauda cilíndrica de onde
sobressaíam três pares de pernas articuladas como as de
um inseto. Penetrava nas camadas menos densas da
atmosfera, uma neblina uniforme de partículas
minúsculas.
Os tripulantes estavam muito nervosos. Eram
todos latinos e não poderia ser diferente. Um anglo teria

muita dificuldade em se locomover no interior de
teto baixo da nave. Como os demais habitantes de
Afrodite, tinham acompanhado todos os passos da
expedição malfadada através dos aparelhos de
comunicação, quando isso era possível. Agora,
estavam indo para lá e, talvez, enfrentariam o
mesmo tipo de problema que aqueles três
enfrentaram e estão enfrentando. A perda de todos os
dirigíveis indicava um distúrbio de ordem global,
provavelmente de origem eletromagnética. Se a
perturbação afetasse a nave, teriam um destino
infinitamente pior do que os três lá embaixo, posto
que não possuíam um flutuador de hidrogênio.
- Ei, sargento! – chamou o operador de
radar.
- O que é?
- Estou obtendo leituras esquisitas.
- Do dirigível?
- Sim, senhor. Só que estou captando um
eco a mais.
- Como assim?
- Apareceu de repente, senhor. Olhe –
apontou.
O radar mostrava dois sinais idênticos, um
deles se aproximando rapidamente do outro.
XVII
Fragrâncias exóticas revolviam o ar.
Orquídeas, cipós, samambaias, árvores em
miniatura.
Uma cascata escorria do teto vítreo como
uma cortina.
John Herbert Miller sentia-se no céu.
- Ahhh... – ronronou de satisfação.
Vapores perfumados brotavam da banheira
e saturavam a atmosfera úmida de sua suíte
privativa. Plantas tropicais oriundas da Amazônia
decoravam o lugar, dando um clima bucólico e
selvagem. Ele próprio escolhera as espécies vegetais
numa das expedições que fizera à floresta há coisa de
dois anos. Se quisesse, poderia ouvir rugidos,
serpentes rastejando, insetos cricilando, macacos,
onças e aves. Porém, não sentia vontade no
momento. Apenas o gorgolejo da cascata acariciava
seus ouvidos. Ladrilhos decorados emolduravam a
banheira e terminavam num tapete espesso de musgo
castanho-avermelhado. Como era bom saber viver.
Acariciou a folhagem.
Sim, a Amazônia finalmente era uma
propriedade dos anglos. Levara tempo, mas o
Congresso adquirira 73% do território, onde
instalara suas indústrias e refinarias. Os principais
políticos locais tinham seus nomes na folha de
pagamento secreta da companhia e, ainda que no
papel a região constasse como sendo parte do Brasil,
era agora mais uma fatia do império econômico
anglo-asiático.
O prefeito Miller inspirou. Sentiu-se um
grande caçador. Jatos d’água massageavam seu
corpo submerso.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
17
“Com o tempo, devoraremos todos os nanicos”,
meditou.
O preconceito racial e cultural era considerado
crime grave pela Organização Planetária e fora
praticamente erradicado da humanidade, mas existiam as
exceções, ainda que camufladas. O prefeito Miller era
uma dessas.
“Sim, englobaremos tudo. Resolverei essa
dificuldade no planeta e, após o meu mandato, retornarei
à Terra. Necessito de uma mudança, de vôo maiores.
Quem sabe a presidência...”
Suas mãos brincavam sob a água quente. Sentia-
se completamente relaxado. Refletiu sobre seu último
diálogo com o assessor. Havia um ditado em sua terra que
dizia para não carregar todos os ovos num único cesto e
ele o estava seguindo à risca.
- Paul Shinohara... Ferdinand Lindsay... Diana
Benson... Cristopher Horn Isherwood... – murmurou de
olhos cerrados. Dezenas de gotas cintilavam em seu rosto.
– Boa idéia...
Criara quatro contas bancárias em nomes fictícios
desde que iniciara suas operações concomitantemente ao
mandato na prefeitura de Afrodite. Uma precaução
necessária, caso investigassem seus bens e os rendimentos
obtidos com as várias transações financeiras envolvendo
políticos e empresários. Na última dessas transações,
conseguira lucrar um milhão de dólares. Fora uma compra
superfaturada de ligas metálicas para as fuselagens dos
dirigíveis e ampliação dos estaleiros. A mercadoria valia
“x”. Os fornecedores queriam 50% a mais dessa quantia.
A prefeitura pagou “2x”. A diferença fora dividida entre
quatro correntistas insuspeitos de bancos distintos na
Terra. Tudo muito limpo e matematicamente correto.
Uma voz brotou por entre a vegetação:
- Prefeito Miller?
- O que é, Bill? – perguntou o prefeito,
reconhecendo a voz.
- Desculpe interrompe-lo, senhor. A nave de
resgate está prestes a alcançar o dirigível.
John Herbert Miller espreguiçou-se. Vapores
turbilhonaram.
- E daí? Não preciso saber do que acontece lá
embaixo passo a passo. Quero apenas os resultados finais.
- Sim, senhor. Bem... – a voz hesitou – temos um
problema.
- Mais um? Qual é, rapaz?
- Acho melhor o senhor vir ao gabinete.
- Não pode esperar? Não sabe resolver sozinho?
- Penso que não, prefeito.
Contrariado, o prefeito Miller pôs-se de pé na
banheira.
- Está certo, Bill. Mas é bom que seja algo
urgente.
A voz por trás de umas samambaias fez uma
ligeira pausa. Então, William Anderson respondeu:
- E é, senhor prefeito.
XVIII
Uma lenda muito antiga dizia que, certa vez, em
1680, um galeão partira de Amsterdã com destino às
18
Índias Orientais Holandesas. Era comandado por um
inescrupuloso marinheiro chamado Van der Decken.
Orgulhoso, prometera retornar de posse de uma
fortuna fosse qual fosse o preço. Todavia, nas
proximidades do Cabo da Boa Esperança, deparara-
se com uma feroz tempestade, vindo esta a rasgar-lhe
a vela e inutilizar-lhe o leme. Semanas se passaram
sem que o tempo melhorasse. Irado, sob o clamor dos
trovões e açoitado por gigantescas ondas, Van der
Decken erguera o punho cerrado contra o céu e
desafiara o Todo Poderoso, gritando que nem Deus
ou o demônio iriam faze-lo temer ou desviar de seu
rumo, nem que tivesse de navegar até o Dia do Juízo
Final. Fora então que o Anjo do Senhor surgira e
ordenara ao ousado aventureiro que navegasse a
esmo pela eternidade, até uma trombeta anunciar o
Fim do Mundo. Desde então, diversos marinheiros
relataram seus encontros com o navio fantasma a
surgir e desaparecer silenciosamente do nevoeiro,
pelos séculos afora.
Tomás relembrou a lenda num piscar de
olhos, ao ver aquele monstro crescer à sua frente.
Fora narrada por seu avô materno, sob o alpendre da
casa que este tinha à beira-mar, numa tarde que
prometia ser lúgubre – e fora, ficando para sempre
em sua memória feito ferro em brasa.
- Minha Nossa Senhora! – repetiu,
incrédulo.
O dirigível-fantasma emergiu da bruma sem
emitir som algum. Por breves instantes, pareceu que
iria chocar-se contra o PV-208 e os dois homens
recuaram um passo instintivamente. Todavia, o
gigante misterioso não o fez. Emparelhou, e eles
puderam admirar o corpo rígido em forma de
charuto. Havia sinais de corrosão por todo o
invólucro azulado, principalmente no cone de
amarração. Viram a insígnia do Projeto Vênus
estampada na fuselagem: um círculo sobre uma
pequena cruz e, dentro daquele, antigos símbolos
meteorológicos dispostos na vertical, representando
trovoada, nuvem estrato e chuva contínua,
características da atmosfera do planeta. Do lado
direito, a sigla da aeronave.
Miguel tentou copiar com o dedo, sobre sua
respiração condensada no vidro da janela
panorâmica:
Não conseguiu distinguir o número.
O motor de vante tinha sumido e alguns
cabos pendiam na popa da cabina. Assim como
Vênus observado do espaço, a aeronave era uma
figura majestosa, não obstante os maus tratos
sofridos. Ao contrário da nau comandada por Van
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
der Decken, o dirigível perambulava sozinho. Entretanto –
e os dois homens sentiram o arrepio tomar conta de seus
corpos – se era assim, por que é que todas as luzes
estavam acesas, e um brilho pálido emergia das janelas,
difundindo-se no nevoeiro? Fiapos de nuvens amareladas
acariciavam o imenso elipsóide de hidrogênio, então, uma
corrente de ar ascendente mudou sua direção. O monstro
sobrevoou o PV-208, fugindo do campo visual. E foi
assim, de repente, vindo das lendas do passado, que ele
mergulhou na bruma e desapareceu através dos mares
gasosos de Vênus.
Miguel e Tomás recuperaram a respiração.
- Conseguiu identifica-lo?
- Não sei, Miguel... as nuvens. Acredito que era o
514.
- O 514? O que estará fazendo nesta latitude?
Tomás deu de ombros, especulando consigo sobre
milhares de dirigíveis errando pela vastidão da
estratosfera. O avô certamente apreciaria.
- Conseguiu ver alguém a bordo? – insistiu
Miguel.
- Nós somos a equipe de manutenção. Esqueceu?
Se havia alguém...
- Mas aquelas luzes...
As batidas recomeçaram.
Pancada e pancada e pancada e pancada.
Vinham de lá de baixo... não, vinham de mais
abaixo ainda, do casco, de fora para dentro do dirigível.
Miguel correu e digitou instruções a um dos poucos
computadores em funcionamento.
- O que está tentando fazer?
- Tentando ligar uma das câmeras externas.
Quero ver o que está acontecendo lá fora.
- O que acha que é?
- Sei lá. Pronto, acho que consegui.
O visor exibiu o casco de popa, diretamente
abaixo das centenas de tambores de algas. Viram as
tubulações de ejeção, encarregadas de pulverizar o planeta
com o caldo esverdeado, agora inativas. Descobriram
então a fonte das batidas: um dos tubos se rompera e,
ligado ao dirigível por por um dos cabos de força, batia
contra a nau sob a força da ventania. Não era apenas isso,
porém.
- O que é aquele nuvem escura?
Miguel franziu a testa.
- Não sei, Tomás. Está envolvendo a extremidade
do tubo. Não me pergunte por que ela não se dispersa
junto com o resto do nevoeiro. Eu não sei.
- É estranha. Não te parece sólida? Muda de
aspecto, mas continua grudada àquele cano. E o cano bate
contra... Ei! Não deveria estar batendo assim. Veja!
Aquele tubo lá também está solto e não se comporta da
mesma maneira.
Miguel mordiscou o lábio inferior. Murmurou:
- Também não há nenhuma nuvem escura nesse
aí.
- É.
- Será... – O semblante do engenheiro de
circuitos hiperintegrados se iluminou. Um palpite bastante
improvável, mas se fosse verdade... – Depressa, Tomás,
pode fazer funcionar um dos ductos semeadores?

- Não, você viu, estão emperrados. Não
encontrei o motivo.
- Não me interessam as algas. Poderia
improvisar uma ligação com o oxigênio?
- Ficou maluco? Quer cometer suicídio?
- É só uma idéia.
- Que idéia?
- Não temos tempo. Pode fazer?
- Posso. Mas teria de descer até o depósito e
eu...
Beatriz.
Miguel sentiu o pavor do mecânico.
- Iremos juntos, Tomás.
- Está bem, está bem. Mas veja lá o que está
fazendo.
Trabalharam em ritmo acelerado, cada qual
evitando mirar o corpo da bióloga e ignorar os
rangidos e as batidas que ecoavam pelo interior do
dirigível feito sino. Tomás improvisou uma válvula
para que o suprimento de oxigênio produzido pelas
algas saísse diretamente pelo orifício antes ocupado
pelo tubo danificado e também alimentasse o interior
do aparelho. Não era muito, mas havia ar suficiente
para respirarem e seria apenas por poucos instantes.
Retornaram à cabina apressadamente. A nuvem
negra continuava lá na extremidade do tubo,
desafiando os ventos.
- Lembra-me um enxame de vespas – disse
Tomás, baixinho.
Miguel não prestou atenção. Ficou
observando a tela, hesitando, prometendo a si
próprio que, se saísse dessa com vida, abandonaria a
estação orbital e voltaria para a Terra, para o chão
firme de material vulcânico de Fernando de
Noronha, para a família, para o marulho do
Atlântico a nina-lo na canoa. Sim, ele retornaria,
transformar-se-ia num pescador, se necessário fosse.
Ele iria... para casa. Digitou uma ordem ao
computador. Rezou.
Imediatamente, um jato esbranquiçado foi
emitido pelo orifício do casco, correspondente ao
vapor d’água em condensação a sair junto com o
oxigênio. O jato atingiu a nuvenzinha escura numa
das extremidades do tubo rompido.
Instantaneamente, a nuvem encolheu, recuou e foi
tragada pela tempestade. As batidas terminaram e o
tubo rompido ficou se movendo a esmo, girando e
girando, balançando como o outro tubo que também
se soltara.
- Fosse o que fosse – disse Miguel -, foi
embora.
- Qual o seu palpite sobre aquilo?
- Mais tarde. Eu...
O PV-208 tornou a ser atingido por
solavancos. Mais fortes que os anteriores, os homens
foram jogados de um lado a outro do exíguo
compartimento. Miguel chocou o joelho numa das
cadeiras de fibra de vidro e caiu, gemendo por entre
os dentes. Rolou até perder o fôlego e conseguir
alcançar uma grade nas proximidades da proa, onde
se agarrou. Tomás foi mais afortunado e abraçou-se
a uma pilastra, de onde ficou observando impotente o
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
19
esforço do companheiro. Subitamente, arregalhou os
olhos.
- Olha lá! Olha lá, Miguel! – apontou para as
janelas.
Miguel tentou virar a cabeça. Estava colado à
grade de metal, dedos crispados, joelhos latejando de dor,
principalmente o que sofrera a última pancada. O corpo
tremia e ele fez nova prece a fim de que a estrutura
suportasse o furacão. Finalmente, viu aquilo e suas
esperanças se esvaneceram.
Milhares de formas escuras rodeavam a aeronave.
Não possuíam um formato definido, não passavam de
manchas de tamanhos variados, as maiores com talvez
meio metro de diâmetro e, as menores, tendo dois ou três
centímetros. Poderia também ser mero efeito de
perspectiva, estando as menores mais distantes da
Semeadora PV-208. Fosse como fosse, analogamente à
mancha do tubo desprendido, elas ignoravam os efeitos
das massas atmosféricas do planeta. As batidas
retornaram, vinham de todas as direções, ecoando e
ecoando pelo dirigível. Vigas estalaram. Tubulações
rangeram. Um dos tambores do depósito se desprendeu
num estrondo. Miguel e Tomás sentiram o odor nauseante
do líquido, um cheiro de maresia concentrada, subindo de
lá de baixo. Do teto chegou um chiado abafado, indicando
quer um dos balões de hidrogênio havia se rompido.
Todos os instrumentos remanescentes principiaram a
falhar, inclusive a fraca luminosidade interna. Um fedor
de queimado misturou-se à maresia. A última lâmpada se
apagou. Agora, a penumbra dominava a cabina,
amortecida pelos relâmpagos e a claridade mortiça de
Vênus. A aeronave continuava a sacolejar. O vendaval
uivava enlouquecido, ensurdecedor; uma infinidade de
lamentos oriundos das camadas mais profundas.
Trovoadas. O gás continuava a vazar, não tardariam a
perder altitude. Tomás e Miguel não iriam morrer de frio,
ou sufocados, afinal de contas. O mundo mais próximo da
visão cristã do inferno os aguardava quilômetros abaixo.
As batidas prosseguiram.
Todos os sons.
O lamuriar dos ventos. Gritavam.
O mau cheiro.
Os rangidos da aeronave.
A queda.
Miguel pensou em milhares de coisas: no oceano
que jamais veria novamente, nos pais, no irmão Pedro,
nos amigos da cidade-espacial, nas viagens que fizera à
Lua, nas mulheres que amara. Tomás, igualmente,
repassou sua vida: a infância em Porto Alegre, o rio
Guaíba, o treinamento no espaçoporto do Rio de Janeiro, o
estágio em Dublin e Washington, o primeiro vôo espacial.
Tudo isso e muito mais para, então, encontrar o fim num
planeta que sequer cuidaria de preservar seus ossos. E sem
poder dizer adeus pelo videotransmissor ou deixar uma
mensagem escrita. Muito triste. “Um homem nunca
deveria morrer assim, sem dizer adeus, sem deixar seu
epitáfio. Seremos mais um enigma perante o
desconhecido, mais um mito espacial a ser contado nas
docas... Deus, tenho medo de morrer!”, pensou Miguel.
De súbito, uma sombra gigantesca cobriu as
janelas panorâmicas, as manchas e o nevoeiro.
- Outro dirigível? – berrou Tomás.
20
- Não sei, não consigo ver... não... Não
acredito! É a nave de resgate!
- O – o quê? – gaguejou o mecânico, sem
confiar nos ouvidos.
- É a Vortex, Tomás. Estamos salvos!
Eles choraram ao sentir serem rebocados até
as camadas mais tênues. Clareou novamente. As
manchas haviam partido e as janelas exibiram as
imensas pernas articuladas de metal e cerâmica da
Vortex envolvendo a cabina. Respiraram com
dificuldade na atmosfera já rarefeita em oxigênio e,
embevecidos pela nova oportunidade, andaram
tropegamente até a escotilha.
XIX
O prefeito John Herbert Miller estava diante
da tela em seu gabinete. Tinha uma visão parcial da
cidade anelar, do espaço e do segundo planeta. Suas
feições aparentavam indiferença, mas o modo como
torcia uma das pontas do bigode denunciava que, por
dentro, seu sangue fervia. Ainda não havia indícios
da nave de resgate desde a última transmissão,
devido à enorme distância que a separava de
Afrodite. Seus pensamentos estavam tão convulsivos
quanto a superfície crestada da Estrela Matutina.
Cofiou os cabelos.
- Como descobriram nosso truque com a
videocomunicação?
- Não sei, senhor – respondeu William
Anderson, não mais preocupado em disfarçar seu
nervosismo. Alguém restaurara o sistema de
transmissão e mais, enviara ao Congresso Anglo-
Asiático relatórios pormenorizados a respeito do
incidente, revelando a total gravidade do problema
bem como o insucesso da equipe enviada ao planeta.
– O quê faremos?
- É a mim que você pergunta? – vociferou o
prefeito. – Isso é trabalho seu!
O assessor repassava os olhos dos próprios
pés para o globo e a maquete da cidade-espacial.
- Foi alguém da oposição, tem de ser.
O prefeito começou a caminhar pela sala,
seguindo os contornos das paredes; as mãos às costas
batiam uma na outra ritmadamente. Literalmente,
espumava de raiva. Perfumes exalavam de seu corpo,
inundando o recinto.
William Anderson continuou de pé diante
da tela, indiferente à beleza do cenário exibido.
- Quem foi não interessa no momento –
disse o prefeito Miller, posicionando-se atrás de sua
mesa. – O Congresso agora sabe que dentro de uma
semana o fitoplâncton estará irrecuperável, e os
custos de operação dos dirigíveis estourarão em cem
vezes o orçamento disponível... Duvido que em um
semestre conseguíssemos fazer um décimo deles
ficar operante. Esperava poder ganhar tempo,
recuperar uma parte e acelerar a produção de novos
dirigíveis. Mas agora... o que eu faço? Diga-me,
Bill?
William Anderson respirou fundo.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
- O Congresso liberou o envio das provisões,
prefeito.
- Ah, pelo menos algo de positivo, mas que cara é
essa?
- Eles também fizeram um novo comunicado,
senhor.
O governante de Afrodite estreitou os olhos. As
rugas cortaram suas faces como golpes de navalha.
- Qual? – indagou, sombrio.
O assessor custou a responder, temendo a reação
do outro.
- Destituíram o senhor temporariamente do
cargo, bem como o vice-prefeito Clarke, e nomearam um
dos cientistas até a chegada do auditor.
- Desgraçados! Filhos-de-uma-mãe! Que cientista
é esse? Poderemos compra-lo?
Em outras circunstâncias, o assessor teria ficado
apavorado com a pergunta expressa tão abertamente. Isso
já não importava mais.
- Não creio que seja possível, senhor.
- Por quê? Quem é ele?
William Anderson encarou o seu superior. Os
músculos de seu maxilar enrijeceram. Revelou:
- O nome dele é Dr. Juan Fernandez de Almeida
Gomes.
Se ele tivesse esmurrado o prefeito, o efeito teria
sido muito semelhante.
- Como? UM NANICO?! – berrou Miller, fora de
controle. – O Congresso designou um latino para ocupar o
meu lugar?
- E eles sabem sobre “isso” também, senhor
prefeito – completou o assessor. Em seguida, avistou a
estrelinha que se afastava do planeta. – Lá está a Vortex.
Devo enviar a segunda equipe, senhor? Senhor?
O prefeito Miller custou a responder, absorto que
se encontrava. Por fim, balbuciou:
- Pergunte a esse tal de Gomes.
Momentos depois do assessor sair, John Herbert
Miller voltou à sua mesa e digitou a tecla.
- O que me informa?
A voz sintética cochichou dentro de seu ouvido
outra vez:
- Ele está à beira da histeria. Avaliação: não tão
confiável quanto a estimativa anterior. Possibilidade de
traição dentro dos parâmetros aceitáveis.
- Muito obrigado... Pena que não foi tão esperto a
ponto de identificar o maldito traidor. Quem é o traidor? –
vociferou para as paredes. – Quem é o traidor?
Uma estatueta de louça espatifou-se contra a
parede oposta à mesa.
No implante em seu ouvido, a voz artificial
sussurrou:
- Nem todos os anglos pensam como o senhor,
prefeito Miller. Na verdade, muitos não pensam conforme
o senhor. Aliás, William Anderson até omitiu uma última
e mais importante informação, de tão amedrontado: a
Organização Planetária sabe a respeito das contas
bancárias...
- O quê? Como...
A voz soltou uma gargalhada ensurdecedora.
- Você!

XX
Salvos na nave de resgate, Miguel e Tomás
ficaram observando o dirigível PV-208 ser tragado
por um redemoinho venusiano até as camadas
inferiores, nas névoas de ácido sulfúrico concentrado
e o inferno inacreditável da superfície. Era um velho
mamute mergulhando num poço de asfalto e,
moribundo, agitava sua tromba em todas as direções,
impotente. Foi girando e diminuindo de tamanho
lentamente até se transformar num vulto, numa
penumbra e desaparecer para sempre.
- Adeus, Bia – murmurou Tomás com
profundo pesar. Quase não conseguiu pronunciar as
palavras. Havia um nó em sua garganta. Tocou
lentamente a tela. O gesto poderia significar tanto
uma carícia, quanto uma tentativa infrutífera de
recuperar a aeronave. Os traços juvenis tinham
desaparecido. Agora, aparentava os seus quarenta
anos e sentia-se um homem muito cansado. –
Adeus...
Miguel voltou a pousar a mão no ombro do
companheiro e, desta vez, este não recusou, rendeu-
se ao abraço do outro. Tomás em tempo algum
comentara algo, mas Miguel sabia. Apesar dos
disfarces, das evasivas, do modo de agir distante,
Miguel sabia. Tomás amara Beatriz. E, de ambos, foi
o que menos se alegrou por continuar vivo, apesar de
tudo.
As brumas eternas de Vênus se abriram
como se fossem dotadas de vida. Os véus
intercalavam matizes laranja, esbranquiçado e cinza.
E rasgaram-se todos à passagem da Vortex. O
vendaval, embora possante, tornara-se tênue.
Trovões chegavam aos ouvidos de uma longa
distância, abafados feito ondas do mar no interior de
uma concha. O negror do céu recebeu o bacteriófago
gigante com o cintilar límpido das estrelas e ele as
recebeu com afeto, devolvendo seus reflexos um
milhão de vezes ampliados.
Miguel divisou uma estrela muito brilhante
de tonalidade azul-esverdeada. Era o objeto mais
luminoso depois do Sol. Ao seu lado, tinha outra
menor de cor amarelada. Já as vira uma infinidade
de vezes e nunca aqueles dois fachos de luz o
comoveram tanto como agora. Eram tão estrelas
quanto Vênus. A Terra e a Lua. Seu lar. Suspirou.
Reconheceu a constelação de Órion ao fundo e as
Três Marias. Delineou mais algumas até seus olhos
se prenderem a uma outra “estrelinha”, que foi
crescendo paulatinamente até adquirir os contornos
artificiais da cidade-espacial.
- Não resolvemos coisa alguma, Miguel.
- O prefeito “Afrodisíaco” que resolva. Isso
tem alguma importância?
- Nenhuma, Miguel, nenhuma mesmo.
Os olhos azuis desbotados piscaram.
Reconheceram naquele homem mirrado mais que um
colega, mais que um companheiro. Reconheceram
um amigo.
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
21
- Então descanse, Tomás, merecemos isso. A
companhia e os anglos que se danem. Enviem anglos da
próxima vez. Duvido que se saiam melhores do que nós.
Tomás foi para uma das camas do reservado,
parecia deliciosamente quente e macia. Miguel
permaneceu em frente à tela, observando o planeta ficar
cada vez menor. Avistou clarões numa das pontas
chamadas de cúspides. O lado escuro possuía uma
luminosidade fraca e acinzentada como a luz do Sol
refletindo-se da Terra sobre a Lua. Laivos escuros
surgiram e desapareceram. Um frio repentino subiu-lhe às
faces. O mecânico deitou-se e, cobrindo os olhos com um
dos braços, pareceu adivinhar os pensamentos de Miguel.
Perguntou num fio de voz:
- Sobre o que aconteceu lá... as visões, as
manchas; aconteceu, não? O que provocou a pena nos
aparelhos? Qual o significado daqueles sons?
- Sei tanto quanto você.
- Sabe mais – retrucou, Tomás, sonolento. – Eu
preciso saber.
- Saberá depois – disse Miguel, observando a
respiração profunda do outro. “Quisera poder dormir
também, mas não consigo.”
A Vortex seguiu sobrevoando o hemisfério
iluminado de Héspero.
O planeta inteiro surgiu no campo visual da tela.
Uma esfera alaranjada sem sinais de superfície visível. Na
verdade, não era o planeta propriamente, mas a couraça
de névoa sobre névoa e sobre névoa que o envolvia
completamente. Uma falsa estrela de muitos nomes. Um
falso irmão gêmeo da Terra.
Miguel tornou a suspirar, pensativo.
“O que dirá você, meu amigo, após eu te contar
sobre as minhas suspeitas? Acreditará sem sombra de
dúvida que eu perdi o dom do raciocínio? Não seria
surpresa. Porém, se assim for, pessoa alguma me dará
ouvidos, já que foi você a única outra pessoa que lá esteve,
presenciou os fenômenos e sobreviveu a isso. Você
precisará crer em mim, Tomás, para fazer os outros
acreditarem, para que possamos alerta-los a não enviar
outra equipe aos dirigíveis-fantasmas. Vênus não foi feito
para nós. Vênus pertence a eles.
“É... é isso aí. Imagino que o planeta seja
habitado, não em sua superfície, como acreditavam
antigamente: um mundo dotado de florestas úmidas e
luxuriantes, libélulas gigantes e dinossauros famintos.
Não. Os venusianos vivem na estratosfera. Flutuam por
entre a neblina do planeta. Ou será a própria atmosfera
uma criatura viva? É... Quem sabe se aquelas nuvens
escuras, os relâmpagos e o clarão do lado noturno não
farão parte de um único ser! Atuariam como neurônios de
um cérebro inconcebível, de volume planetário, em
permanente agitação. Eu não sei, devo estar fora de mim.
Ele ou eles são capazes de penetrar em nossa mente, criar
pesadelos, movimentar objetos. Aquelas manchas, sim,
talvez elas sejam uma forma de vida que se camufla no
meio ambiente. Quando eu despejei oxigênio numa delas,
parte se dissolveu e outra fugiu; era um ser gasoso –
parecia gás – e o oxigênio é mortal para todos eles... todas
elas. Por isso destruíram os sistemas de semeadura:
lutavam pela sobrevivência.. O planeta pertence às névoas
escuras, ao cérebro gasoso, ou sei lá o que seja aquilo, não
22
a nós. Talvez dominem a eletricidade ou sejam
dotados de dons que não compreendemos. Terão
consciência? Quem sabe... E o uivar contínuo do
vento, os trovões; pode ser que não seja somente
vento e trovão, mas as vozes daquelas criaturas sem
forma, derramando lágrimas pelos seus mortos, por
aqueles a quem assassinamos. Talvez estivessem
gritando: ‘Por que estão fazendo isso? Não os
queremos aqui! Não nos destruam!’ E ignoramos
seus apelos. Hum... teríamos atendido se os
tivéssemos compreendido? A História diz que não.
Todavia, agora é diferente. Eles precisam crer em
nós, Tomás, precisam. Há vida em Vênus e ela fará
de tudo para se proteger.
“A Natureza não esperaria nada menor que
isso de um de seus filhos.”
A porta se abriu sem ruído. Miguel se
voltou. Do outro lado, um homem corpulento com as
insígnias de sargento acenou para que ele o
acompanhasse. O ilhéu obedeceu e seguiu-o,
deixando Tomás entregue aos seus sonhos e
pesadelos. Entraramna sala de comunicações. O
sargento apontou para uma cadeira diante do
videotransmissor e foi direto ao assunto:
- Sente-se. Há uma mensagem gravada para
você. Afrodite retransmitiu-a da Terra. Diz respeito
à sua família, ao seu pai.
O homem corpulento tinha maneiras
grosseiras, entretanto, seu olhar trazia um
indisfarçável sentimento de compaixão.
XXI
Pedro por pouco não arrebentou o
portãozinho de madeira, tal foi a violência com que
entrou na casa. Três dos cinco filhos brincavam de
bola no quintal e assustaram-se. Por que o pai estaria
tão zangado? Porém, não estava. Ele trazia no rosto
um largo sorriso. Correu para dentro.
- O que foi, Pedro? – perguntou a esposa,
nesse momento estendendo uma roupa no varal. Sua
voz saiu abafada por causa do pregador que
carregava na boca. Largou tudo.
- Mãe! – gritou o pescador. – Mãe!
A velha senhora, deitada na cama de casal,
observava o céu do outro lado da janela. Pensava no
marido, enterrado com sua melhor roupa, a mesma
que usara há muitos anos, quando o outro filho
abandonara o arquipélago. Pensava também no filho
desaparecido. Um soldado da Base Aérea chegara
uma hora atrás, afirmando ter uma mensagem
urgente na memória do videotransmissor para ela ou
alguém da família. Felizmente, Pedro encontrava-se
em terra firme e fora lá o mais depressa possível.
Uma mensagem na Base Aérea só poderia significar
uma coisa: Miguel. Ela fora acometida de um
sentimento de mau agouro e recolhera-se ao seu
leito, a fim de preparar-se para as notícias. Agora,
Pedro retornava.
- Mãe – chamou num tom mais baixo ao vê-
la. Ajoelhou-se e seus rostos se nivelaram. Olharam-
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
se. A mulher conteve a respiração, sem coragem de
perguntar. Mas Pedro sorria... Sorria! Então... – Mãe, ele
está bem. Ele está retornando. Está me compreendendo?
Ele está voltando para ficar conosco para sempre.
As pálpebras dela tremeram.
- Sim, filho. Eu entendi – sussurrou.
As lágrimas caíram sem alarido, mansamente. O
alívio tomou conta do corpo magro, abatido por anos e
anos de espera. A mãe estava permanentemente à espera
do filho, mas a recíproca nem sempre era verdadeira. Os
cabelos brancos, presos por um pente de tartaruga,
deixaram cair algumas madeixas num agradável
desalinho. Havia paz no rosto encarquilhado.
- Meu filho... Meu filhinho. Quanto tempo não
faz, não é, Pedro?
- Sim, mãezinha, um longo tempo. – Pedro
engoliu em seco. Ficara apreensivo ao vê-la ali, deitada.
Lembrara-se do pai. Procurou não pensar na hipótese do
que aconteceria se a mensagem gravada fosse ruim. A
mãe estava bem, sorria. A alegria retornara àquelas
paredes de pedra. – E ele voltará para a gente.
- Quando? – perguntou a esposa logo atrás. Os
filhos também se aproximaram, todos eles.
- Levará ainda quatro meses. É uma longa
viagem e com várias escalas. Mas ele já se encontra a
caminho. Foi muito tempo...
- Ele precisava ir – disse a mãe.
- Assim mesmo, mãe... Acho que se virou bem
por lá.
- “Quando a água bate na bunda, aprende a
nadar.”
- O quê, mãe?
As crianças riram.
A velha senhora sacudiu a cabeça devagar.
- Nada, só uma coisa que minha bisavó Adélia
dizia.
Pedro tentou compreender. Depois, disse:
- Miguel mandou lembranças a todos e não vê a
hora de conhecer a cunhada e os sobrinhos.
A esposa ficou ruborizada.
- Será tão estranho... Dois de você.
O filho caçula puxou-lhe a saia. Perguntou numa
vozinha vacilante: - Eu vô tê dois pai?
A velha riu sobre a cama.
A luz do Sol penetrou mais forte no quarto.
- Não, Renato. Ele é o seu tio Miguel. O viajante
do espaço.
- O que é espaço? Como é?
- É tudo escuro, seu burro – disse a irmã do meio.
- Quieta – ralhou a mãe deles. E, voltando-se
para o caçula. – É como ver o mar de noite. Não é, Pedro?
O pescador concordou com a cabeça, lembrando-
se de uma certa noite passada.
- Eu não teria dito melhor – confessou, ainda
ajoelhado.
A matriarca da família acariciou os volumosos
cabelos pretos de Pedro. Os dedos deslizaram por entre os
cachos com uma delicadeza há muito não demonstrada.
- Meu filho... Meu filhinho.
Pedro ficou sem saber o que responder, ou se a
mãe estaria se dirigindo a ele ou ao irmão a caminho de
casa.

A velha, então, se levantou e foi à cozinha
fritar pastéis de siri.
A esposa de Pedro recolheu a roupa do chão
e prendeu-a no varal.
Ele foi consertar sua rede.
Os meninos e meninas correram de volta
para o quintal. E, enquanto a bola ia de uma mão
para a outra, de um pé para o outro, ficaram
imaginando como seria ter alguém idêntico ao pai
por perto. Tio Miguel era uma figura mítica na
família, uma espécie de herói, quase um deus
inalcançável. No entanto, ele estava vindo para cá,
vindo do céu feito anjo.
Renato, com a mente de quatro anos perdida
em devaneios, perguntou-se como seria ver toda a
ilha de perto das estrelas. Apanhou o foguetinho de
plástico, todo mordido pelo cachorro, e saiu correndo
pela praia, segurando-o alto sobre a cabeça.
XXII
CÓDIGO: MCDS-92.07/004-Astronave “Rizzato”
(Vídeo-Fax 107)
HORÁRIO: 12H52m55s (PM)
REMETENTE: Miguel Cyrino da Silva
DESTINATÁRIO: Pedro Cyrino da Silva
MENSAGEM: “Nem queira saber como o tempo
custa a passar dentro de uma espaçonave. Eu e
Tomás (falei dele antes, lembra?) inventamos mil
atividades: jogos, apostas etc. Tentamos descobrir
defeitos na ‘Rizzato’ que não existem. Aqui, somos
passeiros e não tripulantes. Mas na maioria das
vezes cada um fica meditando no seu canto sobre a
própria vida. Tenho feito muito isso, mano; pesado
muitas coisas. Pensei muito em nosso pai. Para tudo
na vida há uma solução, exceto a morte. Ao menos
isso eu aprendi, vindo para tão distante. Aprendi
bastante, porém, perdi muito também. Eis algo que
acabo de escrever. Acho que exprime melhor o que
sinto:
SONHO DE UM MORADOR URBANO
Surgem as estrelas sobre o mar num sol poente,
pequenos brilhos que parecem me chamar.
Um barco à vela que balança calmamente,
e ondas leves que na praia vêm quebrar.
O oceano que se perde lá na frente,
com seus segredos, seus mistérios sob o mar.
Ele se arrasta como a relva resplandecente,
moldando as águas com o reflexo do luar.
Mas tudo foge num sonho em minha mente:
aquela estrela, aquela praia, aquele mar,
e desperto na cidade novamente,
mas de noite, eu prometo, vou voltar.”
***
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
23
CÓDIGO: CSED-61.02/001-B.A.G.C./BR (Vídeo-Fax
004)
HORARIO: 08H44m13s (AM)
REMETENTE: Pedro Cyrino da Silva
DESTINATARIO: Miguel Cyrino da Silva
MENSAGEM: “Sabe, te odiei algumas vezes. Depois de
ler seus versos, percebo que nem tudo está perdido. Será
bom te rever aqui novamente, saudoso boboca. Todos
aguardam ansiosos. Perdoe-me a brevidade. Pescadores
não ganham tanto quanto astronautas...”
XXIII
Muito mudou a ilha desde 1500, época em que já
figurava nos mapas espanhóis, ainda que, oficialmente, o
arquipélago tenha sido “descoberto” somnte em 1503 por
Gonçalo Coelho. Dom Manuel teria rotulado de feitiçaria
se alguém lhe sussurrasse o que estaria por vir quando
doou a região no ano seguinte ao cristão-novo Fernão de
Loronha. Entretanto, em todos os séculos que se seguiram
às primeiras expedições, nada se comparou aos últimos
anos.
Realmente, dezessete anos fizeram muita
diferença, mais do que os séculos precedentes reunidos.
Miguel custou a assimilar todas as
transformações que ocorreram. As construções. O porto. A
usina dessalinizadora. Os estrangeiros e turistas. Os
navios anglos. Edifícios. O extermínio de espécies nativas.
Uma floresta de antenas parabólicas nos setores ricos. As
centenas de hélices rodopiando no alto de torres coletoras
de energia eólica. As bóias formando fileiras e mais
fileiras na Baía de Santo Antonio, convertendo o vai-e-
vem das ondas em eletricidade. Felizmente, a Baía dos
Golfinhos ainda abrigava esses extraordinários animais.
Ainda havia anêmonas-do-mar entre os rochedos, bancos
de coral, cardumes de frades e cocorocas e outras espécies
que lutavam pela sobrevivência. “Só que, aqui, estão
perdendo”. A ilha também parecia menor, e não somente
por guardar recordações da infância, quando tudo era
enorme e fascinante, mas devido à constante elevação no
nível dos oceanos, provocada pelo efeito estufa. Uma
árvore onde brincara e cujo tronco estivera a vinte metros
da praia, agora não passava de um pedaço de pau podre,
batido pelo mar salgado. Estaria a Terra condenada a se
transformar num novo Vênus? Gelou com o pensamento.
As lembranças dos primeiros anos de vida eram
as mais marcantes para todas as pessoas, não obstante a
maioria delas sequer se dar conta disso. Miguel havia se
esquecido. Todavia, estava lá e retornou a toda potência
de dentro dele ao avistar cada pedaço de terra, cada perfil,
as ruínas dos fortes portugueses, as ilhotas desnudas.
A professora Candinha era uma sexagenária
aposentada.
A Capela do Pontal estava sendo submetida a
uma reforma, porém, conservando os antigos traços.
Visitou o túmulo do pai, uma construção simples
de alvenaria. Retirou a medalha de São Nicolau de dentro
da camisa e chorou feito criança. Seu coração desejou
acreditar que fora o padroeiro das crianças que o salvara.
Lamentou desconhecer a existência de um padroeiro dos
idosos.
24
Reviu a mãe num abraço apertado, e
dezessete anos se converteram num dia, numa
despedida e num breve retorno.
- O que será de seu futuro?
- Ofereceram-me um serviço na Base Aérea,
mãezinha. É um trabalho em terra.
- E quando a saudade do céu chegar?
- Pegarei um bote, sairei à noite e, na
solidão do mar, conversarei com as estrelas.
Ela sorriu.
- Seja bem-vindo, filho meu.
- E Pedro?
- Deve estar no cais, voltando da pesca.
Conheceu os novos parentes e estes
lançaram olhares intrigados uns para os outros.
Observaram aquele estranho sair, caminhar sem
pressa pela praia. Fitaram-no e fitaram-no até ele
contornar um promontório e desaparecer. Os
semblantes prosseguiram inquietos.
Aquele era o irmão gêmeo?
Algo estava errado.
XXIV
A tarde caía rapidamente e os pés sobre a
areia morna deixaram uma pegada após a outra,
devagar. Avançaram em direção à água onde
receberam o afago gelado da espuma. Deliciaram-se
e foram adiante até o mar alcançar a linha da
cintura.
- Como senti falta disso – confessou.
Uma voz atrás dele respondeu:
- Foi muito tempo, não?
- Tempo demais, mano – suspirou Miguel.
Deu meia volta.
Pedro continuava de pé sobre a areia seca.
Era irmão gêmeo de Miguel; entretanto, como
estavam diferentes. Pedro tornara-se um homem
forte, músculos rígidos, pele intensamente bronzeada
e sem rugas, cabelos negros fartos e brilhantes.
Miguel parecia dez anos mais velho, como se
houvesse participado de algum vôo relativístico às
avessas e retornado. Sua pele era pálida e flácida,
faces encovadas, rugas em torno dos olhos, cabelos
enfeitados por mechas grisalhas, algumas cicatrizes e
hematomas pelo corpo. Meditou sobre isso e
adivinhou que o irmão também deveria estar
pensando a respeito.
- Sou a imagem; você, o objeto, Pedrinho.
Ou devo dizer “Dorian Gray”?
Pedro procurou sorrir, entendendo a citação.
- Você é meu irmão. Voltou para casa.
- Sim, tem razão. Estou... em casa.
Caminharam sem trocar palavras pela orla
da praia. O céu estava isento de nuvens e gaivotas
voavam rente ao mar. Uma brisa fresca vinha dos
rochedos escarpados e seguiram para lá, do mesmo
modo que Miguel fizera quando garoto. Deitaram
sobre o rochedo especial de ambos, perto do Dedo de
Deus, e sentiram o borrifar das espumas em seus
rostos. Agora, o pico de mais de trezentos e vinte
“Os Fantasmas de Vênus” - Roberto Schima
metros de altura não parecia apontar para o seu destino.
Continuava a lembrar uma mão com o indicador em riste,
só que, ao invés de apontar para o espaço e dizer “Siga o
caminho”, deu a impressão de oscilar para os lados e
acenar um “não”.
“Uma das finalidades da ciência não é desmentri
a existência de Deus, mas demonstrar que a grandiosidade
de Suas obras é infinitamente maior do que supomos”,
justificou Miguel em pensamento.
- E quanto ao seu amigo? – inquiriu Pedro.
- Tomás?
- Sim.
- Retornou para Porto Alegre, pelo que soube –
respondeu Miguel, ao mesmo tempo em que acompanhava
o vôo de um albatroz.
- O noticiário disse que Afrodite poderá ser
desativada. Duas expedições se perderam em Vênus no
mês passado.
- Verdade? – murmurou Miguel, sem interesse,
ainda de olho na ave, voando cada vez mais alto.
- Falta de verbas, disseram.
Miguel apenas suspirou. Ele e Tomás disseram
tudo o que sabiam ou supunham saber, nos relatórios.
Desde sua volta, não comentou coisa alguma com a
família sobre o ocorrido no dirigível. Queria esquecer.
Queria ser criança novamente.
O albatroz sumiu.
- Vamos – incitou a Pedro, cutucando-o. –
Levante. Vamos apostar corrida até a beira do penhasco.
Não esperou que o irmão respondesse e
mergulhou. Pedro seguiu atrás dele quando Miguel se
encontrava a um terço do caminho. Pedro venceu com boa
vantagem.
Voltaram para casa antes da chegada do
anoitecer.
Miguel evitou por muito tempo sair à noite ou
acompanhar o rastro dos foguetes.
Foram muitos os crepúsculos que se seguiram no
alto do penhasco, à medida que a neblina avançava rente
ao mar feito uma mortalha e o alcançava, encobrindo o
topo. Era como se tornasse parte das nuvens, e, para quem
se encontrasse lá naqueles momentos, daria a sensação de
estar voando acima do oceano, por entre a bruma. Sentir-
se-ia flutuar, romper a atmosfera e alcançar o Infinito,
tornando-se um pedaço do céu. Seria essa a sensação; no
entanto, ano após ano, nessas ocasiões, o cume do Dedo
de Deus permaneceu para sempre... vazio.
FIM