João Pessoa
2017
CAUIM FERREIRA DAS NEVES SANTOS
JOÃO PESSOA
2017
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal da Paraíba.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Narbal de Marsillac
________________________________________
Prof. Dr. Abrahão Andrade
________________________________________
Prof. Dr. Bartolomeu Leite
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 58
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho tem como objetivo fazer uma análise tópico-retórica do debate
travado entre Jurgüen Habermas e Richard Rorty. Mais precisamente, sobre o universalismo-
kantiano de Habermas, cuja verdade incondicional se contrasta com o contextualismo forte de
Rorty, a fim de revelar os tópoi que justificam suas concepções éticas e políticas decorrentes.
Sem pretender fazer uma análise definitiva do debate, escolhemos o livro Filosofia,
Racionalidade, Democracia: Os Debates Rorty & Habermas (2005), organizado pelo
professor José Crisóstomo de Souza, o qual reúne alguns dos principais textos que constituem
o debate entre os dois filósofos. Quanto à análise retórica e tópica dos argumentos dos dois
autores, utilizaremos principalmente o Tratado da Argumentação (2002), de Chaïm Perelman.
Outros textos serão acrescentados como acessórios sempre que necessário.
Ainda que tenhamos como “problema” a ser investigado o debate entre Rorty e
Habermas, o foco deste trabalho é a relevância da retórica na argumentação, não apenas para
verificar de que forma um argumento pode se tornar mais forte que o argumento contrário,
mas, sobretudo para aproximar as diferenças, principalmente quando dois argumentos se
chocam, o que ocorrerá no debate entre os dois pensadores quando se referirem à questão da
verdade, concepções aparentemente inconciliáveis.
Escolhemos especificamente esse debate por dois motivos: primeiro, por se tratar
de dois dos mais importantes filósofos contemporâneos que põem em relevo o velho debate
entre as duas formas de racionalidade que lutam no cenário histórico da filosofia: uma
preocupada em preservar o logos em oposição à doxa; a verdade em oposição à retórica, e a
outra em resgatar os endoxa 1em oposição a um logos apodítico2. Habermas é neste caso um
herdeiro desta primeira concepção, ainda que radicalmente modificada, pois o pensador
alemão pretende preservar uma “verdade pós-metafísica”, situada nas viradas linguística e
pragmática, influência do pragmatismo americano. Enquanto Rorty se aproxima fortemente
1
Os endoxa, “são, por outro lado, opiniões ‘geralmente aceitas’ aquelas que todo mundo admite, ou a maioria
das pessoas, ou os filósofos – em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes”
(ARISTÓTELES, Tópicos & Dos Argumentos Sofísticos, 1987, p.5).
2
De apodeixis, que significa demonstração ou comprovação. “O raciocínio é uma ‘demonstração’ quando as
premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém
originariamente de premissas primeiras e verdadeiras [...] são ‘verdadeiras’ e ‘primeiras’ aquelas coisas nas quais
acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não seja elas próprias” (ARISTOTELES, Tópicos & Dos
Argumentos Sofísticos, 1987, p.5).
11
da retórica, por sua posição fortemente contextualista, abandona toda pretensão incondicional
de verdade que Habermas ainda quer preservar.
Assim o trabalho consiste em quatro partes básicas. Na primeira parte, faremos
uma breve retrospectiva da retórica. Na segunda parte, entraremos no debate dos dois
filósofos, sendo este capítulo dedicado a Habermas, que será dividida na análise retórica da
sua filosofia teórica concernente à verdade incondicional do filósofo, e a sua relação na sua
filosofia prática (ética e política). Na terceira parte, faremos o mesmo que fizemos com
Habermas, mas desta vez com seu interlocutor, Rorty, aplicaremos a análise dos topoi no que
concerne ao seu contextualismo forte, que entra em choque com a perspectiva incondicional
da verdade em Habermas, e também da sua filosofia prática.
Antes de fazer uso de alguma definição do que seja a retórica é importante
assinalar o seu caráter regressivo, que foge a qualquer definição unívoca e irrevogável.
(PERELMAN, 1999, p.135). Como bem caracterizou Aristóteles (1959, p.23, grifo nosso),
buscando “não persuadir, mas em discernir os meios de persuadir a propósito de cada
questão” a retórica lida sempre com diferentes perspectivas sobre qualquer assunto, porquanto
que não é concebível à própria retórica de se enquadrar definitivamente sobre um único
ângulo. É também por estar intimamente ligada ao uso pragmático da linguagem, que a
retórica não pode ter uma definição atemporal e universal, pois o uso pragmático da
linguagem é sempre contingente e contextualizado.
12
1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-CONCEITUAL
Esse capítulo consiste em introduzir brevemente o panorama histórico em que a
retórica se insere, alguns de seus conceitos básicos e como ao longo da história a retórica foi
perdendo espaço para a concepção de uma racionalidade apodítica3. Passaremos um pouco
sobre três períodos essenciais: a antiguidade, a modernidade até chegarmos à idade
contemporânea, na qual a retórica terá papel fundamental na execução deste trabalho.
3
Racionalidade apodítica é aquela baseada nas provas apodíticas, no modelo demonstrativo e coercitivo, que
parte sempre de premissas consideradas necessárias. É contra este modelo que Perelman pretende reabilitar a
retórica: “A publicação de um tratado consagrado à argumentação e sua vinculação a uma velha tradição, a
retórica e da dialética gregas, constituem uma ruptura com a concepção da razão e do raciocínio, oriunda de
Descartes, que marcou com seu cunho a filosofia ocidental dos três últimos séculos”. “[...] Foi ele que, fazendo
da evidencia a marca da razão, não quis considerar racionais senão as demonstrações que, a partir de idéias
claras e distintas, estendiam, mercê de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas”
(PERELMAN, 2002, p. 1, grifo nosso).
13
aquele que tem a capacidade espantosa de utilizar as palavras para ensinar qualquer ofício4. A
sofística era, portanto, uma arte de ensinar e não uma ciência.
No período de Péricles, considerado o auge da democracia ateniense, fazia parte
desta cultura o uso constante da palavra e da argumentação. Eram os próprios cidadãos que
deveriam se defender nos tribunais. Como professores, mediante um pagamento, os sofistas
ensinavam aos cidadãos a arte de usar a palavra para persuadir o júri. A crítica que se faz aos
sofistas vem de dois grupos: os aristocratas e o grupo ligado a Sócrates.
A aristocracia ateniense, que preconizavam que a areté da época - a cidadania,
não se desenvolve nem se ensina, pois é dada por natureza, temia os sofistas, porque estes
estrangeiros ensinando outros cidadãos a argumentar, ameaçavam seu domínio político.
Os socráticos tinham os sofistas como adversários, porque eles consideravam que
seus ensinamentos se utilizavam somente de opiniões (dóxai), que poderiam ser manipuladas
tanto para defender como para refutar, sem se preocupar com a verdade (alétheia), imutável e
universal.
No entanto, como eram viajantes e estrangeiros, os sofistas tinham vantagens em
relação aos atenienses, devido ao contato com a crise pela qual a filosofia passava fora de
Atenas. A crise entre o ser, proveniente de Parmênides de Eléia e o devir de Heráclito da
Jônia. Além disso, aqueles que vinham da Jônia tiveram contato com a arte de narrar os
acontecimentos sem fabular: a história, que nascia junto à filosofia. Através da História de
Heródoto, os sofistas percebem que os diferentes povos narrados variavam quanto às noções
morais e jurídicas.5
Sobre os sofistas, além dos diálogos de Platão, principal adversário dos sofistas,
deles só restaram fragmentos ao menos de dois importantes sofistas: Protágoras e Górgias.
Górgias é considerado um dos fundadores do discurso epidítico, gênero de
discurso público em que se faz um louvor ou uma censura a fatos ocorridos no presente. A
partir do discurso epidítico, Górgias desenvolve um tipo de retórica cuja eloquência é
carregada de figuras de palavras, como o ritmo, e de pensamento, como a metáfora. É a partir
de Górgias que a retórica ganha um aspecto mais estético e literário, que fará a retórica ser
confundida com o mero uso ornamentado das palavras para provocar o pathos dos ouvintes
(REBOUL, 2004, p.4).
4
SOUZA CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. Editora
Companhia das Letras, 2002. p. 160.
5
Idem.p. 163.
14
O outro grande sofista foi Protágoras, que ficou imortalizado por Platão, por ser
aquele que operava com o uso das antilogias, argumentos contrários ou favoráveis a um
mesmo tema (dissoi logoi). 6Talvez daí venha o reconhecimento por ter sido o fundador da
erística, uso da retórica que se faz com o objetivo de vencer o adversário (REBOUL, 2004,
p.7). Também foi Platão que atribuiu a Protágoras o princípio: “O homem é a medida de todas
as coisas; das que são, que elas são, e das que não são, que elas não são”.
Os sofistas perceberam através dos pensadores eleatas a relação entre pensamento,
linguagem e realidade de um modo novo. Na língua grega o verbo ser significa também
existir, assim, ao dizer que algo é, estamos dizendo também que algo existe. Ou seja, para os
eleatas, “pensar e dizer são a mesma coisa” (CHAUI, 2011, p. 174). Mas, ao revelar a
ambiguidade do verbo ser, e a separação entre linguagem, pensamento e realidade, Górgias
rompe com a identidade necessária entre pensar, dizer e ser. Esta ruptura provocará na
filosofia a revisão do conceito de aletheia (CHAUI, 2011, p.175).
Platão e Aristóteles deram tanta importância aos sofistas, especialmente Górgias,
não por serem “mentirosos” ou charlatões, mas porque eles evidenciaram a fragilidade ou a
força que tinha a ambiguidade do discurso feito pela filosofia até então. A preocupação de
Platão com os sofistas se deve também à redução que estes fizeram da filosofia aos juízos de
valor, reduzindo a lógica à retórica (PERELMAN,1999, p.78).
A palavra rethoriké, algo como “discurso” ou “discursividade”, só aparece pela
primeira vez nos textos de Platão, o que fortalece a tese de que esta palavra foi provavelmente
criada por ele7. Mas se no Górgias, Platão apresenta a retórica como uma “arte” enganosa
para persuadir ignorantes, no Fedro, Platão a flexibiliza, pois não basta conhecer a verdade, é
preciso transmiti-la pela adesão do interlocutor, o que só é possível por uma retórica que fosse
digna dos deuses (PERELMAN, 1999, p.208). Crendo que através da dialética, isto é, através
do diálogo, entre perguntas e objeções das provas apresentadas, a adesão do interlocutor a
esses argumentos fez Platão crer que a dialética fosse um método capaz de assegurar a
6
Dissoi Logoi (δισσοὶ λόγοι "argumentos contrastantes") é um exercício retórico de autoria e data desconhecidas.
Pretende-se ajudar um indivíduo a obter uma compreensão mais profunda de um problema, forçando-os a
considerá-lo sob o ângulo de seu oponente, o que pode servir para fortalecer seu argumento ou ajudar os
debatedores a alcançar um compromisso. DISSOI Logoi. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível
em: https://en.wikipedia.org/wiki/Dissoi_logoi Acesso em: 21/11/2017.
7
Segundo Schiappa, inexiste este termo antes de Platão, que o teria inventado aplicando a técnica da
dissociação/distinguo em que tenta separar o que ele mesmo fazia, a filosofia, daquilo que os sofistas
faziam, retórica. Ver: SCHIAPPA, Edward. Protagoras and Logos. A study in greek philosophy and
rhetoric. South Carolina. University of South Carolina Press, 1991, p.55.
15
apreensão da verdade, em vez da opinião. Esta ilusão o fez identificar a dialética com a lógica,
ilusão que permaneceu na filosofia por séculos (idem, p.73).
A interpretação de Platão da retórica dos sofistas, ao opor uma verdade
incorruptível a opiniões baseadas na aparência, feitas para persuadir interlocutores ignorantes,
tornou-se uma imagem que influenciou a visão sobre a retórica e que a fez declinar por muito
tempo na filosofia (PERELMAN, 2005, p.7). É somente com Aristóteles que na antiguidade a
retórica será resgatada dos ataques feitos por Platão.
No seu Organon, Aristóteles dedica uma parte dos escritos aos raciocínios
analíticos (Analíticos anteriores e Analíticos posteriores) voltados aos silogismos
demonstrativos, que partem de premissas evidentes, necessárias e indubitáveis. Aristóteles
dedicou aos raciocínios voltados à retórica, aos silogismos dialéticos, que partem de
premissas prováveis (endoxa), a Retórica ou Arte da Retórica, contendo um método
relacionado a assuntos práticos; os Tópicos, conjunto de textos lógicos dedicados aos
argumentos que parte das opiniões comuns, geralmente aceitas; e por fim, Dos Argumentos
Sofísticos, sobre argumentos falaciosos utilizados em debates dialéticos.
Sabe-se que a ordem das obras de Aristóteles não foi dada por ele, e só mais tarde
foi catalogada, o que talvez justifique a primazia pelos raciocínios analíticos, que aparecem
antes dos dialéticos e retóricos. Essa supervalorização dos analíticos em detrimento dos
dialéticos e retóricos é uma das causas pelas quais a retórica ainda que preservada pelo
Estagirita tenha caído no esquecimento por muito tempo.
Aristóteles sistematiza a retórica, dando-lhe um caráter mais sério e teórico e
menos instrumental como era considerado pelos sofistas. Ele não apresenta a retórica como
uma técnica para vencer, ou dominar, mas para que aquele que conheça a retórica possa se
defender do mal uso da própria retórica. Pois, diferente de Platão, para quem a retórica tinha
sempre um uso pejorativo, ainda que no Fedro sua concepção tenha sido flexibilizada,
Aristóteles sabe que a retórica pode ser usada tanto para o bem como para o mal (REBOUL,
2004 p.23).
16
de no concernente a uma dada questão, descobrir o que é próprio de
persuadir. (ARISTÓTELES, 1959, p.23-24).
A retórica não é mais a mera persuasão para obter a adesão de ignorantes, mas
pressupondo que quando se trata de casos práticos ou de casos sob o qual não são possíveis
fazer uso da demonstração, nem de premissas necessárias – nesses casos é preciso encontrar o
que é persuasivo em cada caso. Aristóteles percebe que a retórica se encontra entre a
arbitrariedade total, atribuída aos sofistas e o absolutismo de Platão: o campo das opiniões
razoáveis (endoxa). Desse modo, a retórica é útil no momento em que a demonstração se
torna impotente para comunicar a verdade, pois não basta convencer, é preciso persuadir da
verdade:
Acresce que, em presença de certos ouvintes, mesmo que estejamos de posse
da mais rigorosa ciência, seria difícil extrair desta, provas convincentes para
nossos discursos. Porque o discurso inspirado pela ciência pertence ao
ensino; discurso impossível aqui, dada a necessidade de tirar de argumentos
comuns as provas e os raciocínios, como dissemos igualmente nos Tópicos.
(ARISTOTELES, 1959, p. 22).
8
MARSILLAC, Narbal. VIRAGEM RETÓRICA, VIRAGEM PRAGMÁTICA E SUPERAÇÃO DA
METAFÍSICA. Aufklärung. Revista de Filosofia, v. 1, n. 2, 2014, p. 166.
9
TOULMIN, S. Racionalidade e Razoabilidade. In: Retórica e Comunicação.
Trad. Fernando Martinho. Lisboa: Ed. Asa, 1994, p.21.
10
Idem, p.26.
19
Desta forma, a retórica, através do uso da linguagem, compõe o nosso mundo,
pois não há nada que não se constitua anteriormente de modo discursivo. Por ser um
fenômeno linguístico, a retórica compõe aquilo que comumente se chama de “realidade”.
Pode-se mesmo dizer que, a História só passa a existir com o surgimento da linguagem. Como
bem sintetizou João Maurício Adeodato, através da perspectiva retórica de Ottmar Balweg:
O mais difícil de fazer entender, talvez por não se encaixar no uso comum
da palavra, é o primeiro sentido da retórica, o material, ou, como se prefere aqui,
existencial. Significa considerar que tudo aquilo que se chama de “realidade”, a
sucessão de eventos únicos e irrepetíveis no fluxo do tempo, consiste em um
fenômeno linguístico cuja apreensão é retórica. A retórica material não quer dizer
apenas que o conhecimento do mundo é intermediado pelo aparato cognoscitivo do
ser humano, como sugeriu Kant, ou mesmo intermediado pela linguagem, como
quer a linguística mais tradicional. Significa dizer que a própria realidade é
constituída pela retórica, pois toda percepção se dá na linguagem. A retórica
material constrói a relação do ser humano com o meio ambiente por meio de um
conjunto de relatos que constitui a própria existência humana; o conceito quer
expressar que a própria pergunta sobre alguma “realidade ôntica” por trás da
linguagem não tem qualquer sentido, pois o ser humano é linguisticamente fechado
em si mesmo, em um universo de signos, sem acesso a qualquer “objeto” para além
dessa circunstância. (ADEODATO, João Maurício, 2013, p.12, grifo nosso).
21
A análise tópica remonta aos Tópicos (1987) de Aristóteles, texto que compõe o
Organon: “[...] São estes, por conseguinte, os meios pelos quais se efetuam os raciocínios; os
tópicos, ou lugares para cuja observância são úteis os argumentos mencionados acima são os
seguintes”. (ARISTÓTELES, 1987, p.22, grifo nosso).
Nos Tópicos, junto com a Retórica (2005) e as Refutações Sofisticas (1987),
Aristóteles resgata mais uma vez um tipo de pensamento desenvolvido pelos sofistas e
abandonada por Platão. Aristóteles explica os tópoi na Retórica:
Falamos de Tópoi em relação aos raciocínios dialéticos e retórico. Os tópoi referem-
se indistintamente a diferentes objetos jurídicos, físicos, políticos e a muitos outros
de espécie diferente, como por exemplo, o topos do mais e do menos: partindo-se
dele, pode-se obter um silogismo ou um entimema [...]. (VIEHWEG, 1979, p. 26).
16
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. (trad. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Brasília: Editora
Universidade de Brasília e Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 24.
22
Nos Tópicos, Aristóteles divide os lugares, em lugares-comuns, os mais gerais
que podem ser usados em qualquer contexto e os lugares específicos, utilizados em contextos
peculiares.
As escolhas feitas na argumentação são geralmente justificadas por valores
abstratos, que Perelman denominou lugares do preferível. “Esses lugares expressam o
consenso generalíssimo sobre o meio de estabelecer o valor de uma coisa” (REBOUL, 1998,
p.166, grifo nosso). Dois exemplos comuns de lugares do preferível são os lugares de
quantidade, no qual se afirma a superioridade de alguma coisa em razão de sua quantidade e
os lugares de qualidade, em razão de sua qualidade.17
A análise tópico-retórica acaba evidenciando o caráter restrito, contingente e
histórico dos argumentos tidos como evidentes. Assim, nosso trabalho utilizará deste
procedimento para analisar os argumentos de Habermas e Rorty.
17
OLBRECHTS-TYTECA, Lucie; PERELMAN, Chaim. Tratado da argumentação: a nova retórica. São
Paulo, 2002, p.97-101.
23
Mas numa outra perspectiva, a força que Habermas ganha através de seu domínio
do pensamento alemão é ao mesmo tempo, sua fraqueza, já que os seus pontos de partida com
os quais ele está comprometido ficam ainda mais claros. Principalmente no nosso tempo, em
que a preponderância das culturas dominantes tem se diluído cada vez mais na multiplicidade
das culturas emergentes. Segundo Santos, em oposição a uma globalização hegemônica, na
qual um “dado fenómeno ou entidade local consegue difundir-se globalmente e, ao fazê-lo,
adquire a capacidade de designar um fenómeno ou uma entidade rival como local”,
revelaram-se outras formas de globalização contra-hegemônicas, que ele chama de
“cosmopolitismo” e o “património comum da humanidade”. Estas formas de globalização são
constituídas de outros paradigmas baseadas nas lutas por igualdade e reconhecimento (política
da diferença) das identidades excluídas pela globalização hegemônica (SANTOS, 2008,
p.194-196).
Nos anos 60, Habermas integra a Escola de Frankfurt como assistente de Theodor
Adorno, um dos fundadores da Teoria Crítica junto com Max Horkheimer. A Teoria Crítica se
tornou uma das principais vertentes filosóficas do século XX, e constitui a primeira fase do
pensamento habermasiano. De modo geral, a Teoria Crítica se caracteriza por quatro aspectos
comuns: a atualização do pensamento marxiano; uma critica da racionalidade técnica e
científica; uma nova interpretação sobre Hegel e uma filosofia como critica da realidade
através de certa auto-reflexão.18
Essa auto-reflexão crítica é uma possibilidade de emancipação para a massa de
indivíduos cuja consciência é profundamente influenciada por uma economia global e
indissociável da política, formada por grandes empresas de comunicação de massa e pela
indústria cultural. Crítica aqui corresponde à negação do positivismo científico que contribui
para a reificação da realidade em “objetos”. Este teor emancipatório da Teoria Critica é
tributário da Aufkärung, cuja influência presidirá o pensamento posterior de Habermas.
Mas com o passar do tempo e o desenvolvimento de sua própria teoria, o filósofo
alemão começa a se distanciar da visão trágica e apocalíptica da Aufkärung - o leitmotiv da
primeira geração da Escola de Frankfurt. Habermas junto com Karl-Otto Apel pretendem
reconstruir a razão apoiando-se numa racionalidade discursiva, baseada tanto na recente
virada linguística, como pela racionalidade pragmática (Peirce, Dewey e Mead), possível de
ser articulada com o idealismo-transcendental.
18
D'Agostini Franca. Analíticos e continentais: guia à filosofia dos últimos trinta anos. São Leopoldo:
Unisinos, 2002. p.480.
24
A reflexão de Habermas é composta em sua maior parte por teóricos e filósofos
alemães. Além dos alemães tradicionais como Kant e Hegel, seu pensamento abrange, desde
Karl Marx, passando por Heidegger, que constitui a primeira fase de seu pensamento, ou
Gadamer, que além de influenciar sua teoria 19 também será alvo de suas críticas.
Mas, se à princípio esses leques de referências alemães representam uma grande
força no ethos da reflexão de Habermas, por outro lado, diante do mundo crescentemente
globalizado em que vivemos, a partir de uma perspectiva multicultural, seu ethos acaba se
enfraquecendo.
Essa tendência preponderantemente germânica lhe valeu críticas, principalmente
no tocante à pretensão universalista de sua teoria. Sobre isso, o filósofo francês Vincent
Descombes, quando se refere a uma das obras mais importantes de Habermas, O Discurso
filosófico da modernidade (2002), diz:
“Habermas claramente ignora que, ‘hegelianizando’ tão decididamente, está
privilegiando uma tradição nacional particular. Um sociólogo teria menos
dificuldades em reconhecer que a consciência filosófica da situação moderna tem
sido expressa de modo diferente em culturas nacionais diversas”. (DECOMBES,
1993, p.48 apud RORTY; DE SOUZA, 2005 p.29)
19
PINZANI, A. Introdução a Habermas. São Paulo: Artmed, 2009.p.80.
20
RORTY, Richard; DE SOUZA, José Crisóstomo. Filosofia, racionalidade, democracia. UNESP, 2005. P.31.
21
Idem, p.20.
25
Os textos de Habermas e Richard Rorty que escolhemos para fazer a análise
tópico-retórica compõem dois diálogos entre ambos, e estão presentes no livro Filosofia,
Racionalidade, Democracia (2005).
Diferentemente deste livro, no qual os textos de cada filósofo estão organizados
em forma de um diálogo, preferimos analisá-los separadamente, pondo os textos de cada autor
em seus respectivos capítulos.
Neste primeiro capítulo destinado a Habermas, analisaremos seus dois textos que
integram o debate: “A volta ao historicismo”, que compõe o primeiro diálogo do livro.
Sempre que acharmos relevante adicionaremos como complemento à nossa análise, citações
dos dois filósofos que não estão presentes nos textos principais.
Como já dissemos anteriormente, neste capítulo, nosso foco reside na tese da
verdade incondicional e universal de Habermas, frequentemente presente em seus textos,
muito embora nem sempre ele faça o uso direto destas expressões.
Habermas irá mostrar como o historicismo culminou no contextualismo, passando
pela Lebenphilosophie de Dilthey, pela renovação do historicismo por Heidegger, que por sua
vez abrirá caminho para o contextualismo de Rorty que ele considera “a versão mais
sofisticada do historicismo atual” (RORTY, 2005, p.54, grifo nosso).23
23
“De acordo com a concepção de Rorty, a função reveladora do mundo tornou-se reflexiva. Estamos agora
cientes como nosso vocabulário serve à função criativa de nos deixar ver situações e problemas de um modo
diferente, e esperamos, de um modo mais conveniente, útil e eficiente. Cabe a nós, animais usuários de
linguagem, produzir novos e melhores vocabulários, mais ou menos como sempre produzimos ferramentas novas
e melhores. Comparado com tom elevado dos heideggereanos, a preocupação neopragmatista com a solução de
problemas tem o efeito libertador de trazer de volta a iniciativa, do céu de um ser meta-histórico, para a terra da
pessoa ordinárias, que devem lidar com os problemas de seu mundo” (RORTY; DE SOUZA, 2005, p.75).
24
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tempo Brasileiro, 2003.
26
Em “A filosofia como Guardadora de Lugar e como Intérprete”, Habermas revela
sua aquiescência às transformações impulsionadas pelas recentes mudanças na reflexão sobre
a própria filosofia. Ele reconhece o recente “desmascaramento” dos “mestres-pensadores”, de
dois grandes filósofos do Iluminismo alemão, que, diga-se de passagem, formam dois pilares
conceituais do próprio projeto emancipatório habermasiano: Hegel, pela “intersubjetividade,
evolucionismo dialético, tendências de alcance normativo configuradas em desenvolvimentos
históricos” e Kant,pela “universalidade, incondicionalidade, formalismo” (RORTY; DE
SOUZA, 2005, p.32, grifo nosso).
Mas é sobre Kant, cujo pilar central sobre o qual reside o projeto de Habermas, a
saber, o da incondicionalidade e universalidade, que ele mesmo irá apontar as fraquezas,
usando-se de uma figura retórica chamada prolepse:25
Hoje, até mesmo Kant vê-se acolhido por essa fatalidade. Se vejo as coisas
corretamente, é a primeira vez que ele se vê tratado como mestre-pensador, isto é,
como mago de um paradigma falso, de cujo domínio intelectual temos que nos
desvencilhar (...) Mas basta lançar um olhar por cima do muro para ver que a
reputação de Kant está ficando mais pálida – e passa, uma vez mais para Nietzsche.
(HABERMAS, 2003. p.16.).
25
A prolepse é um tipo de figura de pensamento que “antecipa o argumento (real ou fictício) do adversário para
voltá-lo contra ele [...]”. “Figuras de pensamento são, em princípio independentes do som, do sentido e da
ordem das palavras: só dizem respeito à relação entre ideias. [...] não se referem a palavras ou à frase, mas ao
discurso como tal; [...] dizem respeito à relação do discurso com seu referente; ou seja, pretendem expressar a
verdade: enquanto a metáfora não é verdadeira nem falsa, a alegoria poderá ser verdadeira ou falsa. Finalmente,
uma figura de pensamento pode ser lida de duas maneiras: no sentido literal e no sentido figurado. Uma
andorinha só não faz verão: a verdade do sentido meteorológico implica a verdade do sentido humano”
(REBOUL, 1998. p.135, grifo nosso).
27
entre si e as ciências de um domínio próprio, do qual se vale para a passar a exercer
funções de dominação. Ao pretender aclarar de uma vez por todas os fundamentos
da ciência [...] a filosofia indica às ciências o seu lugar. Ora, parece que esse papel
de indicador de lugar excedeu as suas forças. [...] Há, portanto, uma conexão entre a
teoria do conhecimento fundamentalista, que confere a filosofia o papel de um
indicador de lugar para as ciências, e um sistema de conceitos ahistóricos [...].
(HABERMAS, 2003. p.18-19).
Mas, diferentemente da primeira geração de Frankfurt, que não via saída para a
aporia da “dialética do esclarecimento”, que culminaria invariavelmente em uma
instrumentalização da racionalidade, Habermas encontra esperanças em outras formas de
razão, constitutivas da esfera pública, na qual uma racionalidade comunicativa pode salvar a
razão dos seus desvios e preservar o projeto da modernidade iluminista (F. D’AGOSTINI,
2003, p. 500-501).
No entanto, após reconhecer as fraquezas de Kant, Habermas não irá abrir mão de
todo do papel incondicional da filosofia indicada por Kant, pois esta incondicionalidade
universal é a base de seu projeto emancipatório de uma razão comunicativa. Ele não pretende
como Rorty, abandonar de todo o papel da filosofia. Se ele abandona junto a Rorty as funções
da filosofia como juíza e de indicadora de lugar da cultura e das ciências, não abandonará seu
papel de “guardiã da racionalidade”:
Em sua impressionante “Crítica da filosofia”, R. Rorty desenvolve argumentos
metafilosóficos que nos levam a duvidar de que a filosofia possa de fato
desempenhar os papéis do indicador de lugar e do juiz que lhe foram atribuídos pelo
mestre-pensador Kant. Contudo, estou menos convencido da conseqüência que
Rorty extrai daí: a afirmação de que a filosofia, com o abandono desses dois
papéis, também deva se livrar da tarefa de um “guardião da racionalidade”. Se
entendo bem, o preço que a filosofia, segundo Rorty, deve pagar por sua recente
modéstia é o abandono da pretensão de razão com que o pensamento filosófico
veio ele próprio ao mundo. Com a morte da filosofia deve acabar também a
convicção de que a força transcendente que associamos à ideia do verdadeiro e do
incondicional seja uma condição necessária para as formas de convivência
humanas. [...] Em face disso, gostaria finalmente de defender a tese de que a
filosofia, mesmo quando se retrai dos papeis problemáticos do indicador de lugar e
do juiz, pode – e deve – conservar sua pretensão de razão nas funções mais
modestas de um guardador de lugar e de um interprete (5). (HABERMAS,
2003. p.19-20).
Pelo teor das palavras utilizadas neste texto, pela profundidade do conteúdo e pela
temática, é provável que o texto de Habermas tenha sido escrito para acadêmicos e para
28
filósofos. Mas ainda que o auditório pareça mais restrito, ainda assim é uma idealização,
pois, por mais que anteriormente esteja definido o alvo de uma argumentação, o que
26
O argumento de essência consiste em explicar um fato ou prevê-lo a partir da essência cuja manifestação é ele.
[...] A essência explica o que um grande número de casos tem em comum: “Todos esses monumentos são do
século XIX, logo [...]”. (REBOUL, 1998, p.176).
27
RORTY, Richard; DE SOUZA, José Crisóstomo. Filosofia, racionalidade, democracia. UNESP, 2005, p.18.
28
“[...] em matéria de retórica, parece-nos preferível definir auditório como o conjunto daqueles que o orador
quer influenciar com sua argumentação. Cada orador pensa de uma forma mais ou menos consciente, naqueles
que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual se dirigem seus discursos” (PERELMAN, 2002, p.22,
grifo nosso).
29
pressupõe sempre uma adaptação às premissas dos interlocutores, sua persuasão não está
garantida, o que faz da aprovação unânime dos argumentos do orador sempre duvidosa e de
certo modo limitada:
É óbvio que o valor dessa unanimidade depende do número e da qualidade dos que a
manifestam, sendo o limite atingido, nessa área, pelo acordo do auditório universal.
Trata-se evidentemente, nesse caso, não de um fato experimentalmente provado,
mas de uma universalidade e de um auditório que o orador imagina, do acordo de
um auditório que deveria ser universal, pois aqueles que não participam dele podem,
por razões legítimas, não ser levados em consideração. Os filósofos sempre
pretendem dirigir-se a um auditório assim, não por esperarem obter o consentimento
efetivo de todos os homens – sabem muito bem que somente uma pequena minoria
terá um dia a oportunidade de conhecer seus escritos -, mas por crerem que todos os
que compreenderem suas razões terão de aderir às suas conclusões[...].
(PERELMAN, 2002, p.35).
30
Embora eu simpatize, no plano político, com os iconoclastas antiplatônicos, minha
simpatia filosófica está com os guardiães da razão - naqueles períodos em que uma
crítica justificada da razão perde a percepção das implicações de sua inevitável
autoreferencialidade -, como é o caso de Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant e
(inclusive) o primeiro Hiedegger (uma vez compreendido desse modo). (RORTY;
DE SOUZA, 2005, p.60, grifo nosso).
29
Ver em nosso trabalho “A análise retórica e a análise tópica”, p.14.
31
míticas, que o budismo, o confucionismo, o hinduísmo e as religiões monoteístas
realizaram na dimensão da razão existencial e moral, a filosofia realizou na
dimensão cognitiva. (...) Sob o olhar abrangente de crentes e filósofos, “o” mundo
adquire contornos diferentes do horizonte de “nosso” mundo vivido. (...) A filosofia
e a religião aprenderam a distinguir o eterno e infinito do finito e transitório; elas
“descobriram” substâncias e ideias imutáveis, que persistem no fluir das
aparências. (...) Isso explica, no caso da metafísica, por que a emancipação
idealista da teoria em relação à práxis foi considera como tendo um efeito
libertador. (...) Naturalmente, só desde sua perspectiva é que as forças míticas
puderam aparecer como forças irracionais (RORTY; DE SOUZA, 2005, p.55, grifo
nosso).
30
“Se as figuras de palavras dizem respeito aos significantes, as de sentido dizem respeito aos significados. [...]
Consistem em empregar um termo (ou vários) com um sentido que não lhe é habitual. O olho escuta... Essa
estranha metáfora de Claudel poderia levar a pensar em “desvio”, transgressão da norma lexical segundo a qual o
olho deve enxergar e não se intrometer no serviço dos vizinhos... Mas, restabelecendo-se o termo próprio, perde-
se o sentido [...]. Em outras palavras, a figura de sentido desempenha papel lexical; não que acrescente palavras
ao léxico, mas enriquece o sentido das palavras” (REBOUL, 1998, p.120).
31
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Martins Fontes, 1998, p.122.
32
Ao fim, Habermas vai concluir como esta trajetória, que vai do mito, irracional ao
logos, racional, é impulsionada por grandes nomes que vão de Sócrates a Maomé. A indicação
não é banal: são as religiões oriundas desses nomes célebres, responsáveis por romper com as
tradições míticas, analogamente ao que a filosofia operou no âmbito cognitivo, através do
Logos e da teoria. O preferível é o Logos, que é racional, contra o mítico, o contingente, que é
irracional.
Os valores que segundo Habermas, tanto a religião quanto a filosofia nos
ensinaram a “descobrir”, são preferências difundidas social e historicamente, que fortalecem
lugares de quantidade: o infinito, o eterno, as ideias imutáveis. O que aqui no caso apresenta
numa hierarquia de valores - superiores, pois, são capazes de superar o finito, que é
transitório, o mundo das aparências. (PERELMAN, 2002, p.97).
Estes lugares de quantidade e de qualidade também estão aqui ordenados através
da técnica argumentativa que Perelman chama de dissociação de noções, ou seja, dissociar
noções que retoricamente podem estar unidas (PERELMAN, 2002, p.467). Neste caso, se
trata da dissociação dos pares filosóficos: infinito – finito; racional – irracional. Por fim,
Habermas considera a separação entre a teoria e a práxis como “emancipadora” cujo efeito é
“libertador”.
Se num primeiro momento esta racionalidade tinha emancipado o homem da
contingência irracional e mítica, seu desenvolvimento não irá demorar a mostrar a face
obscura dessa libertação. Habermas, ele mesmo como um “defensor” da racionalidade irá
antecipar e mesmo concordar com as críticas feitas ao platonismo pelos seus críticos. Ele
sintetiza como o platonismo acabou também engendrando o contrário daquilo que se
propunha e que os filósofos antiplatônicos como Rorty, iriam atacar:
O reverso dessa emancipação por meio da teoria foi a percepção de um novo tipo de
dependência, acarretado pela própria racionalidade [...]. De um ponto de vista
crítico, o regime das forças míticas arbitrárias fora apenas substituído por um
regime de universais necessários e atemporais.[...] Universais persistentes haviam
sido extraídos de particulares evanescentes[...]. (RORTY; DE SOUZA, 2005, p.56,
grifo nosso).
33
2.4. Antiplatonismo e autocontradição performativa
Antes, Habermas havia feito uma digressão assinalando as grandes contribuições
do platonismo, e então irá delinear toda a estratégia dos antiplatônicos, ou seja, daqueles
contra os quais irá se insurgir, mais uma vez destacando a crítica feita por estes, através do
“desmascaramento” da razão platônica:
A substituição dialética das contingências do destino, pelas necessidades lógicas,
foi sentida desde cedo uma estranha ironia; esse desapontamento alimentou uma
desconfiança antiplatônica que emergiu tão cedo quanto o próprio platonismo. A
resposta crítica foi revelar o que o platonismo tinha escondido sob a coberta de suas
falsas abstrações. (RORTY; DE SOUZA, 2005, p.57, grifo nosso).
34
A fim de preservar os pontos de partida de seu próprio pensamento: a
universalidade e a racionalidade, valores comprometidos com o platonismo, Habermas não
hesita em apontar as incoerências de seus adversários. Os críticos do platonismo não
conseguem aniquilar o que pretendiam, pois para que a razão fosse totalmente desmascarada
seria preciso abrir mão da própria razão. Esse argumento é baseado Num lugar de qualidade,
e no tópos de unidade32, em que apenas há um tipo de razão.
É notável o uso metafórico da palavra destruição, como forma de rotular a postura
negativa dos antiplatônicos. A única forma de fazer a crítica a própria razão é fazendo uso
dela mesma, de tal modo que essa tentativa faz com que os antiplatônicos recaiam
invariavelmente no que Habermas chama de autocontradição perfomativa. Mas se a razão não
pode se criticar, não pode igualmente se autocertificar.
Na citação acima são apresentas algumas técnicas argumentativas que se ligam.
São baseados em argumentos quase-lógicos, pois pretendem persuadir e convencer, por se
configurarem de modo semelhante a raciocínios lógicos, formais ou matemáticos:
Em todo argumento quase-lógico convém pôr em evidencia, primeiro, o esquema
formal que serve de molde à construção do argumento, depois, as operações de
redução que permitem inserir os dados nesse esquema e visam torná-los
comparáveis, semelhantes, homogêneos. (PERELMAN, 2002, p.219, grifo nosso).
32
“Além dos usos do lugar do único como original e raro, cuja existência é precária e a perda irremediável, pelo
que é contraposto ao que fungível e comum [...]. O único é nesse caso, o que pode servir de norma [...]”.
(PERELAN, 2002, p.104).
33
[...] De hábito, a argumentação se empenhará em mostrar que as teses combatidas levam a uma
incompatibilidade, que nisso se parece com uma contradição, que ela consiste em duas asserções entre as quais
cumpre escolher, a menos que se renuncie a ambas. As teses incompatíveis não o são por razões puramente
formais, como algumas asserções contraditórias. Conquanto em geral haja empenho em apresentá-la como
conforme a razão ou à lógica, ou seja como necessária, a incompatibilidade depende, quer da natureza das
coisas, quer de uma decisão humana” (PERELMAN, 2002, p.222).
34
“Certamente seria permitido estender-se sobre muitos outros casos de incompatibilidade. Gostaríamos de
expor ainda algumas situações particularmente interessantes em que a incompatibilidade não opõe,
35
que tende a mostrar que o ato empregado para atacar uma regra é incompatível com o
princípio que sustenta esse ataque”.
Mas essa crítica de Habermas nos leva a perguntar se não há outros tipos de
racionalidade além daquela que ele propõe, ou porque devemos sempre pensar segundo a
pressuposição platônica, que antepõe o universal ao contingente. Essa pressuposição é uma
tópica, uma preferência, do universal como superior ao contingente.
Contudo, o próprio Habermas não está apenas ciente de que o platonismo foi
desmascarado pelos antiplatônicos, como reconhece também em seu próprio pensamento pós-
metafísico que a estratégia platônica foi ultrapassada. O que nos faz questionar qual é o
interesse de Habermas em se contrapor ao antiplatonismo, que ele mesmo admite, ainda que
não seja de modo tão radical quanto em Rorty, e ao mesmo tempo preservar um certo
platonismo. A resposta mais óbvia é a de que o contextualismo, sendo contrário ao
universalismo – cerne de todo o pensamento habermasiano, põe em risco todo seu projeto
filosófico, de preservar os ideais de uma modernidade iluminista que não acabou e que deve
ser preservada.
A modernidade que Habermas quer preservar de seus ataques (aqui está outro
tópico com o qual Habermas está comprometido), ainda que seja uma modernidade
diferenciada, porque não é mais fundada no paradigma da consciência, mas justificada pelo
uso intersubjetivo da linguagem, ainda traz consigo resquícios da modernidade tradicional
reciprocamente, regras diferentes, mas uma regra a conseqüências resultantes do próprio fato de ter sido ela
afirmada; daremos a esse tipo de incompatibilidades, que se apresenta sobre modalidades diversas, o nome
genérico de autofagia”.(Idem, p.231).
36
(universalidade e incondicionalidade), que Habermas conscientemente preserva para sustentar
seu projeto, por razões éticas. Sobre isso, Michel Aboulafia, numa entrevista com Habermas
narra:
Certa vez perguntei a Habermas qual o aspecto de sua filosofia mais difícil de
defender. Ele não hesitou em responder: seu quase-transcendentalismo. E quando
perguntei por que ele pensava que deveria defendê-lo, sua resposta foi direta: o
Holocausto. Isso, ele quis deixar claro, não devia ser interpretado como um motivo
psicológico. É imperativo que tenhamos algum tipo de fundamento intelectual para
fazer frente ao irracionalismo e à barbárie moral que segue na sua esteira.
(ABOULAFIA, 2002, p.4 apud RORTY; DE SOUZA, 2005, p.32, grifo nosso).
Os motivos pelos quais Habermas sustenta seu projeto filosófico são baseados
num argumento de direção. O argumento de direção consiste em apontar os perigos que
surgiriam se tomarmos certas direções (PERELMAN, 2002, p.321). Segundo Habermas,
partidário do Iluminismo, a ausência de um “fundamento intelectual” nos levaria ao
“irracionalismo” e à “barbárie”, ao “Holocausto”. Quando se argumenta, geralmente se
pretende camuflar todas as alternativas àquela que se quer defender, e quanto mais se
negligencia as outras possibilidades mais difícil se torna desautorizar um argumento, tornando
quase necessário.
Para Habermas, a modernidade não acabou ou deve acabar como pretendem os
antiplatônicos contemporâneos, no qual se incluem os pós-modernos e obviamente os
contextualistas, como Richard Rorty, - mas é antes um projeto inacabado:
As forças religiosas de integração social debilitaram-se em virtude de um processo
de esclarecimento que, na medida em que não foi produzido arbitrariamente,
tampouco pode ser cancelado. É próprio ao esclarecimento a irreversibilidade de
processos de aprendizado que se fundam no fato de que os discernimentos não
podem ser esquecidos a bel-prazer, mas só reprimidos ou corrigidos por
discernimentos melhores. Por isso o esclarecimento só pode compensar seus déficits
mediante um esclarecimento radicalizado; [...]. (HABERMAS, 2002, p. 121).
37
“programar” e “convencer”, entre o que aparece como verdade e o que é verdade,
Rorty toma novamente o curso do deflacionismo. [...] Mas o próprio Rorty aponta
para um dificuldade, que surge do que chama de “uso acautelatório” do predicado
verdade (“p” está bem justificado, mas pode não ser verdadeiro).
Essa característica gramatical não é apenas um indicador de nosso falibilismo, mas
nos lembra de que não devemos confundir o significado paroquial de “‘p’ [que] é
racionalmente aceitável no contexto de justificação dado”, com o significado
descontextualizado de “‘p’ [que] é racionalmente aceitável” (o que quer dizer:
“verdadeiro em geral, não apenas no contexto local e segundo nossos padrões
atuais”). (RORTY; DE SOUZA, 2005, p.78, grifo nosso).
Não é por acaso que Habermas diz que Rorty “despoja as alegações de verdade e
validade”. Se consultarmos dicionários de sinônimos, as palavras mais próximas de despojar
são: roubar, furtar, espoliar, saquear, pilhar, tomar, assaltar, defraudar, esbulhar, retirar,
tirar, usurpar. O uso do verbo despojar para se referir ao uso acautelatório da verdade, figura
como uma imagem violenta que Rorty faz da verdade.
Além disso, segundo Habermas, quando Rorty redescreve a verdade como
utilidade, enfraquece o sentido que para Habermas é fundamental conservar. Se Habermas
adotasse o uso da verdade como utilidade, minaria seu empreendimento de universalidade e
incondicionalidade, recaindo numa incompatibilidade, que seu “sistema” não permitiria sob
pena de enfraquecer sua teoria. Ora, o projeto habermasiano se baseia num lugar de
quantidade (universalidade), que busca “transcender contextos locais”. Ele mais uma vez põe
este lugar em relevo, utilizando-se da dupla hierarquia, colocando no alto a verdade
universal, em oposição à verdade contextual, como se essa ordem fosse necessária, quando, na
verdade não é mais que um tópos:
O argumento de hierarquia dupla muitas vezes está implícito. Com efeito, atrás de
toda hierarquia vemos delinear-se outra hierarquia; esse recurso é natural e ocorre
espontaneamente porque nos damos conta de que é assim que o interlocutor decerto
tentaria sustentar sua afirmação. A ponto de que a meditação sobre as hierarquias
costuma levar à negação de que possa existir hierarquias simples. Cumpre, porém,
precaver-se de acreditar que a hierarquia que o interlocutor utilizaria como
justificação é necessariamente aquela que pensamos. (PERELMAN, 2002, p.384,
grifo nosso).
Ao apontar o nivelamento feito por Rorty, “entre o que aparece como verdade e o
que é verdade”, Habermas nada mais faz que revelar a associação de noções feitas por Rorty.
Noções que para Habermas deveriam estar separadas. Mais uma vez Habermas utilizou-se da
dissociação das noções, mas desta vez de modo mais implícito, visto que ele apenas aponta o
nivelamento de noções que deveriam estar dissociadas:
A técnica de ruptura de ligação consiste, pois, em afirmar que são indevidamente
associados elementos que deveriam ficar separados e independentes. Em
38
contrapartida, a dissociação pressupõe a unidade primitiva dos elementos
confundidos no seio de uma mesma concepção, designados por uma mesma noção.
A dissociação das noções determina um remanejamento mais ou menos profundo
dos dados conceituais que servem de fundamento para a argumentação. Já não se
trata, nesse caso, de cortar os fios que amarram elementos isolados, mas de
modificar a própria estrutura destes. (PERELMAN, 2002, p.468).
No entanto, se a associação das noções feitas por Rorty incorre numa “confusão”
entre o que “é racionalmente aceitável no contexto de justificação dado”, com o significado
descontextualizado de ‘p’ [que] é racionalmente aceitável”, a dissociação que Habermas faz
destas noções não é necessária, pois, simplesmente está baseada numa outra dupla hierarquia,
ou seja, em outra preferência.
Quando chama atenção para a assimilação que Rorty faz entre o que “aparece
como verdade” e o que “é verdade”, Habermas está fazendo uso de uma definição
dissociadora da verdade:
A definição é um instrumento da argumentação quase-lógica. É também um
instrumento da dissociação nocional, notadamente todas as vezes que ela pretende
fornecer o sentido verdadeiro, o sentido real da noção, oposto ao seu uso
habitual ou aparente. (PERELMAN, 2002, p.504, grifo nosso).
40
3. OS TÓPOI DO CONTEXTUALISMO FORTE DE RORTY
36
GHIRALDELLI JR, Paulo. Richard Rorty: a filosofia do novo mundo em busca de mundos
novos. Petrópolis: Vozes, 1999. p.21-22.
37
RORTY, Richard; DE SOUZA, José Crisóstomo. Filosofia, racionalidade, democracia. UNESP, 2005.
P.163.
41
“americanizado” é também parte da utopia que Rorty sustentaria para, por exemplo, superar o
fundamentalismo norte-americano surgido nas últimas décadas.
O fato de Rorty ser norte-americano talvez não lhe dê tanta atenção internacional
quanto teria um filósofo europeu, mas sua vantagem de não ser um filósofo europeu talvez
seja a de poder ver a Europa de outra forma que os europeus não poderiam ver. Isso se prova
tanto na sua crítica à filosofia moderna, dominada por pensadores europeus (Descartes, Locke
e Kant) feita em “A filosofia e o espelho da natureza” (1994), quanto a sua crítica ao quase-
transcendentalismo de Habermas:
Lentamente, Rorty vai percebendo que seu antigo projeto baseado no platonismo,
que confunde realidade com justiça, não passa de um engano. Ele começa então a ver que
justiça e realidade não estão necessariamente ligados como se admitiria partindo da
perspectiva platônica, e que é preciso começar por adotar uma estratégia argumentativa da
dissociação dessas duas noções (GHIRALDELLI JR, 1999).
“A técnica de ruptura de ligação consiste, pois, em afirmar que são
indevidamente associados elementos que deveriam ficar separados e independentes”.
(PERELMAN, 2002, p.468, grifo nosso).
A “realidade” contemporânea não está ligada ao âmbito teórico como talvez se
fizesse na antiguidade de Platão. Parafraseando o próprio Rorty, os capitalistas não estão
preocupados com uma fundamentação racional da igualdade, e isso não os fará agir de outra
forma, porque a estratégia retórica moderna não é nada persuasiva. Para atender a essa lacuna,
seria preciso criar um novo vocabulário que atendesse às novas demandas sociais. Com o
abandono do platonismo, cabe à poesia ou à uma forma poética na filosofia o papel de
redescrever mundos que só podem existir baseados numa contingência linguística e não
através do velho vocabulário platônico:
A dificuldade que um filósofo que, como eu, nutre simpatia por esta concepção – um
filósofo que pensa dele próprio que é auxiliar do poeta e não do físico – é a de
38
Walt Whitman, poeta norte-americano.
42
evitar sugerir que tal idéia de alguma forma está certa, que o meu tipo de filosofia
corresponde a maneira como as coisas de facto são. (RORTY, 2007, p.29, grifo
nosso).
Para Rorty, o que está por trás do projeto platônico, que vai da antiguidade até o
Iluminismo, chegando mesmo até as primeiras fases da filosofia analítica, é, segundo o ângulo
da retórica - a escolha pelo tópos da objetividade, em detrimento ao ele entende por
solidariedade, uma postura ética prática. É interessante notar como Rorty caracteriza o tópos
platônico como um “desejo de objetividade”. O que nos faz pensar na influência de
Nietzsche sobre um filósofo de tradição analítica como Rorty:
A vontade de verdade, que ainda nos fará corre não poucos riscos [...] Nós
questionamos o valor dessa vontade. [...] “Como poderia algo nascer do seu oposto?
[...] Devem vir do seio do ser, do intransitório, do deus oculto, da ‘coisa em si’-
nisso, e em nada mais, deve estar sua causa! – Esse modo de julgar constitui o típico
preconceito pelo qual podem ser reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal
espécie de valoração está por trás de todos os seus procedimentos lógicos[...].
(NIETZSCHE, 2005, p.9-10, grifo nosso).
39
RORTY, R. Solidariedade ou objetividade? Novos Estudos CEBRAP, 1987.
40
Filósofo norte-americano.
43
filosofia britânica, que na virada do século XIX para o XX era bastante influenciada pelo
pensamento de Hegel. Seguindo o mesmo caminho do pragmatismo, Rorty pretende se afastar
da querela que considera inútil entre o idealismo e o empirismo, que ele chamou de
representacionismo versus antirrepresentacionismo. Para sair desta aporia, os pragmatistas
apostaram na noção de experiência (GHIRALDELLI JR, 2011).
A noção de experiência pressupõe que o “mundo” não é formado por coisas de
modo isolado, mas através de relações contingentes entre diferentes coisas. Deste modo, a
verdade de um enunciado estaria embasada nesta noção de experiência e jamais de modo
formal. Aqui, a noção de “verdade” estaria inseparável mente relacionada com a vida em suas
relações constantes. Para atualizar o pragmatismo original, Rorty põe no lugar da noção de
experiência a linguagem no centro destas relações. A linguagem como núcleo do pensamento
filosófico chega até Rorty pela filosofia analítica. Mas ao invés de continuar a tarefa da
filosofia analítica tradicional, de encontrar na linguagem elementos atemporais, Rorty toma a
via do “segundo” Wittgenstein, que pensa a linguagem no seu uso cotidiano (GHIRALDELLI
JR, 2011).
Segundo a interpretação de Rorty, o pragmatismo está relacionado ao
contextualismo e ao antiessencialismo, pois abandona o tópos essencialista: das dicotomias
platônicas entre o intrínseco e o extrínseco ou entre a essência e a não-essência. Para o
pragmatismo é inconcebível que algo seja isolado e não relacionado com outra coisa.
“Os pragmatistas assim agem com o objetivo de abandonar a disposição de tomar
‘o conhecer as coisas’ como completamente diferente e oposto de ‘usar as coisas’. A
pretensão de conhecer x é a pretensão de estar apto a fazer com x ou algo a x, pôr x em
relação com outra coisa”. (RORTY, 1991a, p.225-226 apud GHIRALDELLI, 1999, p.32).
O pragmatismo, com o qual Rorty está vinculado, não é somente uma corrente
filosófica, mas pode ser visto através de uma perspectiva retórica como um tópos que Rorty
usa a fim de atingir suas finalidades argumentativas. Assim, não seria exagerado dizer que o
pragmatismo está associado a outros valores, que são também tópoi, como por exemplo, a
preferência pelo valor da ação ao invés do valor do teorético.
44
3.2. A filosofia moderna como metáfora especular
O texto que tornou Rorty famoso internacionalmente foi A Filosofia e o espelho
da natureza (1994), texto que inclusive chamou a atenção de Habermas, o levando a
abandonar toda a tentativa de fundacionismo em seu próprio pensamento teórico41. O livro é
uma espécie de “terapia” crítica (no sentido wittgensteiniano) da epistemologia moderna
protagonizada por Descartes, Locke e Kant, cujo modelo especular dominou a cultura
filosófica mesmo após a virada linguística.
Segundo Rorty, toda tentativa filosófica que se baseia no modelo de representação
seja mental, seja linguística, está presa ao modelo da “mente como um grande espelho,
contendo variadas representações – alguma exatas, outras não – e capaz de ser estudado por
meio de métodos puros, não-empíricos”.(RORTY, 1994, p.27, grifo nosso):
Nossa Essência não era uma doutrina filosófica, mas uma imagem que os homens
letrados encontravam pressuposta por cada página que liam. É especular –
semelhante a um espelho – por duas razões. Primeiro, assume novas formas sem
ser mudada – porém formas intelectuais em vez de sensíveis como fazem os
espelhos materiais. Segundo, os espelhos são feitos de uma substância que é mais
pura, de grão mais puro, mais sutil, mais delicada que a maioria delas. (RORTY,
1994, p.55, grifo nosso).
41
RORTY, Richard; DE SOUZA, José Crisóstomo. Filosofia, racionalidade, democracia. UNESP, 2005.p.16
45
naturais, mas simplesmente como mais uma forma de pensar por metáforas, assim como se
faz na poesia.
Segundo Perelman, a metáfora é uma espécie de “analogia condensada,
resultante da fusão de um elemento do foro com o elemento do tema” (PERELMAN, 2002,
p.453). Na metáfora usada por Rorty o foro é a mente e o tema é o espelho. Se estes dois
elementos forem tratados de maneira simétrica, mais forte será o efeito da metáfora, dando-
lhe a aparência de um dado.
“Portanto, não é surpreendente constatar, quando se examinam as
argumentações por analogia, que, com frequência, o autor não hesita no curso de sua
exposição em servir-se de metáforas derivadas da analogia proposta, habituando assim o
leitor a ver as coisas tais como ele a mostra” (PERELMAN, 2002, p.454).
Na citação acima, Rorty deixa claro quais são suas preferências: as “imagens”
e as “metáforas”, e não as “proposições”, nem as “afirmações”. A perspectiva com a qual
Rorty está comprometido é elocucionária, que valoriza elementos que perpassam as
proposições, em oposição à perspectiva que coloca as proposições como centro da reflexão
filosófica. Mas a preferência de Rorty não deixa claro, de modo necessário, o por quê de sua
perspectiva ser superior a que ele pretende combater, mesmo porque a sua própria perspectiva
pretende atacar qualquer pretensão última na filosofia. Desse modo, na sua perspectiva não há
nada que nos assegure que “são metáforas que determinam a maior parte de nossas
convicções filosóficas”, a não ser suas próprias justificativas.
Não bastasse assimilar aquela filosofia à uma espécie de literatura, Rorty ainda
tenta persuadir de que a metáfora do espelho está superada e que devemos adotar a uma
perspectiva prática da filosofia:
“Se temos uma noção wittgensteiniana de linguagem antes como instrumento do
que como espelho, não iremos procurar por condições necessárias de possibilidade de uma
representação linguística”. (RORTY, 1994, p.24, grifo nosso).
Rorty cita três nomes famosos e influentes na filosofia, como os “mais
importantes filósofos”, dando-lhes um lugar de qualidade, – pois são os “mais importantes”,
que resulta num lugar de quantidade, pela influência que eles têm num grande espaço de
tempo, – o “nosso século”:
É neste cenário que devemos ver a obra dos três filósofos mais importantes de
nosso século – Wittgenstein, Heidegger e Dewey. [...] Cada um dos três, em seu
trabalho ulterior, livrou-se da concepção kantiana da filosofia como fundacional, e
46
empregou seu tempo para prevenir-nos contra aquelas mesmas tentações as quais ele
próprio havia uma vez sucumbido. (RORTY, 1994, p.21, grifo nosso).
Não é por acaso que “os três mais importantes filósofos de nosso século”
compõem o grupo daqueles que concordariam com a proposta do próprio Rorty.
A influência de Wittgenstein sobre a filosofia contemporânea e a utilização de
seu pensamento como ferramenta para amplificar a tese de Rorty, lhe dá duas vantagens,
primeiro a de que Wittgenstein possui atualmente grande prestígio na filosofia e a segunda, de
que o “segundo” Wittgenstein como um filósofo analítico, faz frente contra o
representacionismo presente na própria filosofia analítica:
A filosofia “analítica” é mais uma variante da filosofia kantiana, uma variante
marcada principalmente por pensar em representação como antes linguística que
mental; [...] Pois a filosofia analítica ainda está empenhada na construção de um
quadro permanente e neutro para a inquirição, e portanto para toda a cultura
(RORTY, 1994, p.24).
43“A lógica dos valores, em suas primeiras elaborações, supôs uma nítida distinção dos fins e dos meios, sendo
os fins últimos correspondentes a valores absolutos, mas na prática, existe uma interação entre os objetivos
perseguidos e os meios empregados para realizá-los”. (OLBRECHTS-TYTECA, Lucie; PERELMAN, Chaim.
Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo, 2002, p.311).
47
3.3. Secularismo romântico versus perfeição platônica
Em resposta ao texto de Habermas, cujo título é “A dialética do antiplatônismo”
44
, Richard Rorty, escreve o texto intitulado “Para emancipar a nossa cultura (Por um
secularismo romântico)”, do qual citamos um trecho abaixo:
Concordo inteiramente com sua sugestão 45de que a construção, pelos platônicos, de
um mundo eterno das ideias, por trás do mundo aparente da vida diária, não foi
menos um projeto de salvação e catarse que o plano de vida do monge ou eremita.
Ao menos no Ocidente, a figura daquele que conhece, uma figura que foi
inventada basicamente por Platão, tem sido a forma dominante de vida espiritual
para os intelectuais. Para pôr fim ao platonismo, precisamos oferecer uma forma
alternativa de heroísmo espiritual. Como vejo, a luta entre platônicos e
antiplatônicos é uma luta entre a forma de perfeição espiritual que Platão descreve
uma nova forma, romântica, secular e humanista. (RORTY; DE SOUZA, 2005,
p.86, grifo nosso).
Tanto Habermas como Rorty concordam que o “mundo eterno das ideias” de
Platão é uma “construção” ou uma “invenção”. Dizer que algo foi inventado em vez de
descoberto é uma forma de enfraquecer não apenas a supremacia do projeto platônico, mas
indiretamente o projeto filosófico de Habermas, pois ambos se baseiam numa racionalidade
similar que preserva uma verdade universal. Embora para Habermas nenhuma dessas noções
esteja ancorada em um “mundo das ideias”, mas na sua ideia de pragmática universal46, as
noções de universalidade e verdade incondicional o aproximam de Platão.
Em seguida, Rorty parece fazer uso de uma ironia sutil,quando concorda com a
premissa de Habermas que assimila a vida monástica ao projeto platônico do mundo das
ideias, como uma forma de “salvação”. Pois Habermas, estando próximo do platonismo,
também está comprometido por valores quase religiosos, ou seja, metafísicos. Rorty pretende
contrapor uma alternativa à tópica da perfeição platônica47, uma outra forma de “heroísmo
espiritual”, mas não baseado em religiões, nem na “salvação” baseada em “mundos das
ideias”. A tópica que Rorty quer substituir pela platônica é caracterizada como “romântica”,
“secular” e “humanista”, três adjetivos carregados de significado valorativo.
44Este mesmo texto de Habermas é citado no terceiro subcapítulo do segundo capítulo de nosso presente
trabalho. Os dois textos, tanto o de Habermas como o de Rorty fazem parte do livro Filosofia, racionalidade,
democracia. UNESP, 2005.
45
Rorty se refere a Habermas.
46DE OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. Edições
Loyola, 1996, p.295-296.
47“O Ser perfeito se presta mais do que qualquer outro modelo a essa adaptação porque, por sua própria
qualidade e por essência, ele tem algo de inapreensível, de desconhecido e porque, de outro lado, ele não vale
somente para um tempo e um lugar” (PERELMAN, 2002, p.423, grifo nosso).
48
Com “secular” e “humanismo” Rorty quer se opor ao religioso ou metafísico,
lugares de quantidade em que ele não acredita. Quando Rorty usa o adjetivo “romântico”, é à
corrente literária e filosófica que ele se refere, mas ele faz uso para enfatizar os valores e
lugares imbuídos pelo romantismo que revelam as preferências que perpassam o pensamento
de Rorty e que são seus pontos de partida. Por isso, Rorty não busca valores eternos nem
universais, porque o romantismo dá preferência ao contingente, ou não dá importância a
separação entre o eterno e o temporal.48
Sobre o espírito romântico, Perelman sintetizou brilhantemente:
Assim é que a primazia concedida aos lugares de quantidade e a tentativa de reduzir
a esse ponto de vista todos os outros lugares caracteriza o espírito clássico; o
espírito romântico, argumenta pelo contrário, reduzindo os lugares ao lugares
de qualidade.(RORTY; DE SOUZA, 2005, p.111, grifo nosso).
Como disse em outra citação, Rorty enfatiza que a figura do intelectual engajado,
do poeta e do romancista tomaram o lugar do pregador e do filósofo na formação política e
ética da esfera pública49. Para aumentar a força de seu argumento em defesa de seu
romantismo assumidamente secularizado, Rorty acrescenta à premissa do poeta romântico
Shelley, a premissa do filósofo Protágoras.
São dois argumentos de autoridade, que servem cada um para aumentar o
prestígio do argumento de Rorty. Rorty extrai de Protágoras o valor do que é considerado
humano, que é contingente e imperfeito como referência para nossas ações, mas que é a única
possível, e, portanto, melhor que o ideal platônico de perfeição, inalcançável e por isso inútil,
segundo a ótica pragmatista.
48
“Ele [Shelley] diz que a função do poeta é entrever as sombras gigantescas que o futuro lança sobre o presente.
Seu argumento é que, em vez de procurar influencia do eterno sobre o temporal, ou do incondicionado sobre o
contingente, deveríamos simplesmente esquecer a relação entre a eternidade e o tempo” (RORTY, 2005, p.87).
49
RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Relume Dumará, 1994, p.21.
49
Quando Rorty ataca o ideal de perfeição platônico, indiretamente está criticando a
incondicionalidade exigida pelo projeto de Habermas, como por exemplo, a situação de fala
ideal50. E com a referência ao poeta Shelley, Rorty dá relevo mais uma vez a sua tese de
abandonar as dicotomias platônicas, de procurar no que é contingente o que é eterno, de
procurar no que é humano o que não é humano e fugir da história através da invenção da
noção do incondicionado.
Ou seja, para Rorty, o par entre aparência e realidade deve ser abandonado, pois a
única “realidade” é o aparente: o humano, o histórico e o contingente, e o que for além disso é
ilusório. Assim, bem caracterizou Perelman que “tais filosofias, ditas antimetafísicas,
positivistas, pragmáticas, fenomenológicas ou existencialistas, afirmam que a única realidade
é a das aparências” (PERELMAN,2002, p.475). Aqui, Rorty faz uso da técnica de
argumentação, ligando a aparência à realidade, a qual Perelman denomina processo de
ligação.
“Entendemos por processos de ligação esquema que aproximam elementos
distintos e permite estabelecer entre estes uma solidariedade que visa, seja estrutura-los, seja
valorizá-los positiva ou negativamente um pelo outro. [...] Psicológica ou logicamente, toda
ligação implica uma dissociação e inversamente: a mesma forma que une elementos diversos
num todo estruturado os dissocia do fundo neutro do qual os destaca. As duas técnicas são
complementares e sempre operam conjuntamente; mas a argumentação que promove a
modificação do dado pode enfatizar a ligação ou a dissociação que está favorecendo, sem
explicitar o aspecto complementar que resultará da transformação buscada. Às vezes os dois
aspectos estão simultaneamente presentes na consciência do orador, que se perguntará para
qual deles é melhor chamar a atenção” (PERELMAN, 2005, p.215, grifo nosso).
Os dois exemplos citados, de Shelley e de Protágoras, constituem também os
chamados argumentos pelo exemplo, pois através de casos particulares reforçam uma regra.51
Ainda pode ser encontrado no argumento de Rorty, o modelo, que vai além do argumento
pelo exemplo, pois o modelo reforça um exemplo a ser seguido, em oposição ao anti-modelo,
o exemplo platônico, aquele que deve ser abandonado52. Na visão de Rorty, se nosso mundo
é criado pela linguagem, então é através do reconhecimento da contingência da linguagem
50
DE OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. Edições
Loyola, 1996, p.318.
51
OLBRECHTS-TYTECA, Lucie; PERELMAN, Chaim. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo,
2002, p. 398.
52
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Martins Fontes, 1998, p.181-182.
50
que consequentemente alcançaremos o reconhecimento da contingência da consciência, que
por sua vez nos levará ao progresso intelectual e moral que ele deseja, pois para Rorty é este
reconhecimento que nos liberta dos velhos paradigmas que “mantêm cativa” novas mudanças.
(RORTY, 2007, p.31).
Quando se argumenta o que se quer é promover nossa visão de mundo, fazendo
com que ele pareça melhor modelo a ser seguido, de tal modo que nosso modelo pareça o
correto, ou o verdadeiro, ou o único, dependendo dos termos que usamos para persuadir
nossos interlocutores. É o que Rorty faz, simplesmente invertendo o jogo de valores de
Habermas ou Platão. Ao invés de fazermos esforços intelectuais para descobrirmos elementos
universalmente válidos na linguagem, o que segundo a tópica de Rorty é uma perda de tempo,
deveríamos abrir mão desse jogo e optar pela contingência e pela apelo ao emotivismo.
Curiosamente, a preferencia de Rorty pela contingencia reporta seu argumento a
um processo de ligação de essência. Em toda sua argumentação a contingencia aparece como
um lugar de preferencia que consequentemente torna incompatível uma dissociação do tipo
realidade (durável) – aparência. A preferencia pela contingencia por sua vez justifica a
inseparabilidade que Rorty faz entre verdade e justificação. Magistralmente, Perelman
assinalou o recurso retórico da ligação que implica numa essência, mesmo quando se trata do
contingente: “o recurso à noção de essência permitirá reportar acontecimentos variáveis a
uma estrutura estável, que seria a única a ter importância. A philosophia perennis é um
exemplo clássico disso. O recurso à noção de essência também pode estar implícito e servir
para explicar certas mudanças [...]” (PERELMAN, 2005, 373, grifo nosso).
51
solidariedade em direção à objetividade. A idéia de verdade como algo a ser
buscado por si mesmo, não porque será bom para o próprio indivíduo ou para a
comunidade real ou imaginária de alguém, é o tema central desta tradição (RORTY,
1987, grifo nosso).
Aqui Rorty apresenta mais uma de suas preferências filosóficas, David Hume,
como modelo a ser seguido. A concepção ética de Hume coloca os sentimentos, o irracional
como fundamental para aproximar os seres humanos e não a racionalidade de Kant, que “diz
que estamos incondicionalmente obrigados a ter um senso de comunidade moral com todos
outros agentes racionais. [...] Não estou certo de que sou capaz de identificar um agente
racional se vir um, mas posso distinguir os seres que se parecem bastante comigo para me
fazerem imaginar que posso usar a persuasão em vez da força no meu trato com eles.”
(RORTY, 2005, grifo nosso):
De modo que acho que Habermas põe as coisas do modo errado quando as coloca
em termos de interesse próprio versus obrigação. Ele está seguindo o exemplo de
Platão, que pôs as coisas de modo errado na República, ao dizer que tínhamos de
escolher entre o egoísmo de Trasímaco e a reminiscência da Forma do Bem.
Acho que Hume pôs as coisas de modo certo quando disse que o contraste
interessante é aquele entre pessoa com quem você pode sentir-se à vontade e pessoas
com quem você não pode sentir-se à vontade – ou entre pessoas que você poderia
imaginar ser e pessoas que você simplesmente não poderia imaginar ser. (RORTY;
DE SOUZA, 2005, p.94, grifo nosso).
52
É através das afinidades afetivas que os seres humanos se reconhecem uns nos
outros e que assim os mantêm em conexão e não uma identificação puramente racional em
identificar no outro um “agente racional”. E em consequência dessas afinidades emotivas
podemos usar a estratégia da persuasão para aproximar as pessoas como mais facilidade do
que o uso do convencimento racional. A oposição entre persuadir e convencer sempre volta a
aparecer quando valores universais e particulares entram em choque, entre os filósofos que
buscam a verdade e aqueles mais envolvidos com questões práticas, para os quais a verdade é
secundária. Assim bem assinalou Perelman:
Para quem se preocupa com o resultado, persuadir é mais do que convencer, pois a
convicção não passa da primeira fase que leva à ação. [...] para quem está
preocupado com o caráter racional da adesão, convencer é mais do que persuadir.
[...] Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretender valer só
para um auditório particular 53e chamar convincente àquela que deveria obter a
adesão de todo ser racional. (PERELMAN, 2002, p.30-31, grifo nosso)
Uma das estratégias argumentativas usadas assumidamente por Rorty, que faz
parte do seu “projeto” de esperança social utópica é o que ele chama de redescrição. Ele
define a redescrição como um “método”,geralmente utilizado pelos políticos utópicos e pela
ciência revolucionária54, que consiste em elaborar novos vocabulários mais atraentes que os
vocabulários obsoletos, a fim de produzir uma mudança no comportamento social (RORTY,
2007, p.30). O que ele chama de “meramente justificado” ou a “justificação para nós” seria
um caso dessa redescrição.
53
Segundo Chaïm Perelman, o auditório é “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua
argumentação” (PERELMAN, 2002, p.23).
54
Ciência revolucionária é uma noção criada por Thomas Khun. Representa o momento em que a ciência adota
um novo paradigma.
53
Rorty abre mão do modelo ou da metáfora do espelho, que ele considera
ultrapassado, na qual as coisas se dividem em real e ideal. A noção de verdade, que precisa
ser descoberta, por fazer parte deste vocabulário considerado por ele como inútil e velho deve
ser abandonada em favor da melhor “justificação para nós”, “aqui e agora”.
55
“O procedimento mais característico de identificação completa consiste no uso das definições. Estas, quando
não fazem parte de um sistema formal e pretendem, não obstante, identificar o definiens com o definiendum,
serão consideradas, por nós, argumentação quase-lógica” (PERELMAN, 2002, p. 238, grifo nosso).
54
substituir a noção de “melhor argumento” pela noção do “argumento que funciona melhor
para uma dada audiência”:
Assim, a noção de racionalidade que ainda acho útil não tem muito a ver com a
verdade. Tem mais a ver com noções como curiosidade, persuasão e tolerância.
Penso nessas virtudes morais como as virtudes de uma cultura rica e segura, uma
cultura que se pode dar ao luxo de pensar a si mesma como sendo engajada numa
aventura – engajada num projeto cujo resultado ainda é imprevisível. Em particular,
tal cultura pode empreender o projeto de mudar sua própria identidade por processos
sistemáticos de exclusão, pode encontrar sua identidade precisamente em sua
disposição de ampliar sua imaginação e fundir-se com outros grupos, outras
possibilidades humanas, a fim de formar a sociedade cosmopolita, quase
inimaginável, do futuro. Assim, quero usar o termo “racionalidade” de um modo
que não o conecta com o conhecimento e com a verdade, mas com as virtudes
políticas e morais de sociedades ricas e tolerantes, e com o tipo superior de
audiência que se torna possível nessas sociedades.
(RORTY; DE SOUZA, 2005, p.100, grifo nosso).
A noção de racionalidade de Rorty está ligada aos aspectos emotivos dos seres
humanos, mais do que ao que é considerado tradicionalmente como racional. Seria uma
racionalidade porque precisamos adaptar nosso discurso às diferentes audiências e não à
força, mas devemos nos preocupar com o aspecto de ligação entre aquele que argumenta e o
receptor e este aspecto é de fundo afetivo e não puramente racional: a curiosidade, a
persuasão e a tolerância. É uma racionalidade ligada aos sentimentos e não uma racionalidade
ligada ao uso puro do intelecto.
A filosofia de Rorty se baseia em tópoi de hierarquia concreta: que partem de
valores práticos como a ação, a contingência, o humanismo ou o secularismo. Assim como
podemos encontrar em Habermas, também com Rorty é possível visualizar através de seus
argumentos, lugares e valores vinculados, que constituem argumentos de hierarquia dupla,
sendo os valores preferidos por Rorty os que estão acima:
55
CONCLUSÃO
56
parece ter sido determinante. Fator que o levou a assumir valores mais concretos que abstratos
mais voltados para a ação do que para o intelectualismo. Nesse aspecto, a escolha por valores
românticos assumidos por Rorty como alternativa à tópica platônica, explicam sua preferência
pela primazia do emotivismo em relação à ética. Todos esses lugares pareceram influir
diretamente na sua concepção de verdade, como uma noção menos atraente que uma
justificação que sempre respeita os limites contextuais, o que torna a verdade para ele algo
menos necessário à preservação do projeto Iluminista, cuja relevância também ele reconhece.
A conclusão deste trabalho nos confirmou aquilo que antes apenas havíamos tido
contato de modo mais abstrato e teórico, que a retórica é um elemento inseparável do âmbito
discursivo e que despe toda argumentação de seu caráter aparentemente necessário, tornando
a filosofia menos dogmática.
57
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Arte Retórica. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Ed.
Difusão Européia do Livro, 1959.
_______. Lógica Jurídica: Nova Retórica. Pupi Vergínia K, ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
58
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Martins Fontes, 1998.
59
60