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Rosyane Trotta
UNIRIO
1Pesquisa realizada com o auxílio do edital INOVA 2017, da Diretoria de Inovação Tecnológica, Social e Cultural da
UNIRIO.
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apontando de modo contínuo que essa imbecil que eu era! Agora eles
faixa geográfica e étnica da população tem estabeleceram uma nova classificação
desse tipo, e eu hoje estou entre
estatísticas de genocídio. E o genocídio, aqueles que têm valor inferior a zero.
como mostra Buenaventura de Souza Eu bem que mereci isso! (BRECHT,
Santos, costuma vir acompanhado “Terror e Miséria no Terceiro Reich”)
historicamente do epistemicídio: eliminam-
se tanto os povos quanto seus Embora o mundo ocidental tenha conferido
conhecimentos e práticas sociais ao holocausto que dizimou seis milhões de
(SANTOS, 1995: 328), tanto os corpos judeus o status de maior tragédia histórica
quanto sua subjetividade. Comprovada a da modernidade, a dizimação cotidiana
inexistência biológica da categoria de raça, com base na valoração do humano se
revela-se sua construção: verifica como produção contínua e
incontável de vítimas, sem guerra. O
Porém, mesmo não tendo o conceito elemento heterogêneo recebe “marcas de
de raças nenhum embasamento abjeção” (RISCADO, 2018) e, nesse
biológico, ele continua a ser utilizado, processo, a ciência confere objetividade à
enquanto construção social, como
forma de privilegiar e diferenciar normatização. (Importante considerar que a
culturas, línguas, crenças e grupos definição de homogeneidade não se define
diferentes, os quais, na maioria das por uma suposta maioria que, pela
vezes, têm também interesses expressão quantitativa, argumenta sua
econômicos muito diferentes (...).
(PENA, 2005, p. 336) prioridade; a noção de minoria também se
constitui pela construção ideológica da
Nos movimentos sociais contemporâneos, homogeneidade.)
especialmente os que se referem a etnia e
a gênero, as diferenças recusam a inclusão Michel Foucault, em “A arqueologia do
pela assimilação da semelhança e marcam saber”, diferencia saber e ciência. A
sua “desidentificação” (BUTLER, 2013). Os ciência, localizada no campo do saber, age
diversos movimentos da heterogeneidade sobre ele, “estrutura alguns de seus
se encontram na crítica à violência operada objetos, sistematiza algumas de suas
pela produção de homogeneidade e na enunciações, formaliza alguns de seus
afirmação de que, negados o saber, a conceitos e de suas estratégias”
cultura, o corpo, está se negando o direito (FOUCAULT, 2008: 207). O estudo sobre a
à humanidade. A judia Judith, personagem ciência, pelo viés foucaultiano, consiste na
de Brecht, só percebe esta operação análise das práticas discursivas que a
quando se torna seu alvo: originam e das relações entre elas, para
identificar as regularidades dos discursos
Nestes últimos tempos eu tenho científicos – e, por meio das recorrências,
pensado muito numa coisa que há identificar sua historicidade. A episteme
alguns anos você repetia sempre: que interroga a ciência, tomando-a como
havia indivíduos de valor e outros de
menor valor, e que, em caso de prática histórica que se constitui como
diabetes, uns teriam direito à insulina, produção de enunciados.
outros não... E eu concordava, de
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das classes socialmente privilegiadas, olha infância. A tetralogia foi criada através de
para fora. Grupos da periferia são, eles um processo de pesquisa que incluiu
próprios, a alteridade. debates e colaborações de diretores,
dramaturgos, pesquisadores, grupos,
coletivos e instituições. A cada espetáculo,
GRUPO ATIRO o grupo dedica um longo mergulho em
Início 2016 busca de uma dramaturgia própria,
Atores André Sousa, Bárbara Assis, buscando a correspondência entre tema e
Gabriel Affonso, Gabriel linguagem. O quadro “Família”, por
Horsth, João Paulo Rodrigues,
exemplo, tem atuação de três homens
Kamyla Galdeano, Marcos
negros amarrados entre si por cordas e
Diniz, Marllon Araújo, Matheus
Affonso, Paulo Victor Lino, cuja situação – a mãe sai do presídio e
Romário Mello, Sol Targino volta para casa onde moram seus dois
(12) filhos – se revela lentamente, em metáforas
Direção Wallace Lino e meias palavras, enquanto assistimos,
Abrigo Centro de Artes da Maré dentro do círculo formado pelas cadeiras
(CAM) e Redes de do público, a imagens de tensionamento da
Desenvolvimento da Maré corda nesses corpos atados. O espectador
Histórico Depois de um ano de oficina, ainda está em busca de um sentido que
criação e circulação do parece difuso quando o texto lança um
espetáculo “Vai”, baseado na dardo de humor crítico: “Depois passou
memória dos atores sobre a
uma mulher branca (risos; para uma
vinda de suas famílias do
pessoa branca da plateia) Ai, desculpa! Eu
Nordeste para o Rio de
Janeiro, o grupo estreia com não tenho problema com gente branca,
“Família”, primeiro quadro da inclusive tenho parentes na família que são
tetralogia “Agora sei o chão brancos.” Aos poucos, o texto ganha
que piso”. Em 2017, apresenta sentido direto:
o segundo quadro, “Obedeça”.
Em 2018, estreiam “Anticorpo” (para uma pessoa branca da plateia)
e “Corpo Minado”. Eu quero ver você ter classe com a
Temas Negritude, favela, polícia entrando na sua casa, dando
homoafetividade na cara do seu irmão, destruindo suas
coisas! Eu quero ver você não gritar
tendo que ir reconhecer o corpo do
O Grupo Atiro elaborou o projeto Agora Sei seu filho dentro de um valão. (...) Fé
eu tenho. Eu até sonho todo dia que
o Chão Que Piso, estruturado em quatro
um dia eu vou acordar num mundo
espetáculos independentes (sob os temas melhor, onde eu possa olhar as
sexualidade, família, trabalho e sonho), que pessoas de igual pra igual. Mas aí
tomam como fonte de pesquisa as quando eu acordo, eu percebo que até
a fé foi inventada como um jeito de
memórias e vivências dos atores e das
nos silenciar, porque nossa voz
atrizes para abordar as opressões a que incomoda muito mais que o tiro que
jovens favelados, negros, LGBTQ+, nos mata.
nordestinos, estão expostos desde a
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Entre 2007 e 2017, com a escrita contundente origina de uma definida política
dos projetos e o registro legal fornecido pela governamental. Da gestão petista no
ONG Redes de Desenvolvimento da Maré, o governo federal até as comissões de
grupo foi contemplado por doze editais, para avaliação de projetos, passando pelo
custeio de produção, circulação, pesquisa, Ministério, pela presidência do órgão de
formação e difusão. Os órgãos públicos de cultura, pela direção do setor de artes
cultura – secretarias do município e do estado, cênicas... há uma distância que só uma
FUNARTE e MinC – viabilizaram os projetos diretriz estruturada e formalizada poderia
do grupo. As empresas, públicas ou privadas, transpor para generalizar uma ideologia de
que patrocinam o teatro hegemônico, não fomento, o que não foi o caso. Quando a
tiveram nenhuma influência sobre seus Cia. Marginal recebe o prêmio para realizar
caminhos. seu espetáculo de estreia, outras 52
produções teatrais do estado também são
Fenômeno semelhante se repete, com menor agraciadas – e não há nada em comum
exuberância, em diversos grupos periféricos entre elas. Além disso, a dependência da
do estado. A Cia Código (município de Japeri, política pública por parte dos grupos
Baixada Fluminense, fundada em 2005) teve teatrais não se apresenta como dado novo:
como apoiador mais frequente em seus treze já em 1993, o ator e produtor Chico
anos de existência a Secretaria de Cultura do Pelúcio, do Grupo Galpão, informava, no 3º
Estado, e pontualmente a Petrobrás Encontro Brasileiro de Teatro de Grupo,
Distribuidora e o SESC. O Grupo Bonobando que mais de 60% dos custos de seu grupo
(bairro da Penha, zona norte do Rio de provinham das instituições públicas
Janeiro, fundado em 2014) nasce da (TROTTA, 1995).
residência artística subsidiada por edital da
Secretaria Municipal de Cultura, e, nos anos O que se apresenta como dado
seguintes, é contemplado com dois fomentos historicamente novo é a abertura inédita à
do mesmo órgão, para criação, montagem, produção periférica, com as mesmas
apresentação e, posteriormente, para a exigências a que todos os projetos devem
segunda temporada de seu primeiro se submeter; em outras palavras, não se
espetáculo. As ações do grupo estreante, que privilegiam extratos culturais (a não ser
promove a iniciação e o desenvolvimento aqueles que dominam a escrita de projeto –
técnico e artístico da equipe, a formação de o que, em um país com 50 milhões de
público, a descentralização da produção e da pessoas que não sabem ler e outros tantos
fruição teatral, se viabilizam pelo custeio direto que não sabem escrever, já é por si só uma
da administração pública. E, assim como na seleção3). Também vale notar que, mesmo
Cia Marginal, a diretora do Bonobando, o Prêmio Miriam Muniz, único edital que
Adriana Schneider Alcure, tem formação em mantém continuidade de 2006 a 2015,
antropologia e integra o quadro de docentes
da universidade. 3 Total da soma entre analfabetos e analfabetos
funcionais, segundo dados do Mapa do analfabetismo no
Seria ingênuo deduzir que o fomento do Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP). O estudo não inclui
poder público aos grupos periféricos se pesquisa sobre a escrita.
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