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A C onstrução S ocial da S ubcidadania


Para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica

n
Este livro pretende ser uma alternativa V)
VI
rt>.
teórica às questões centrais da reflexão </>
sobre a singularidade de sociedades 0
c
N
periféricas como a brasileira, abordando 01
os temas da subcidadania, da naturali­
zação da desigualdade e da singulari­
dade do processo de m odernização
entre nós. O objetivo é elaborar uma
concepção teórica alternativa, tanto em
relação às abordagens personalistas,
patrimomalistas e "híbridistas" destes
fenômenos, quanto em relação às per­
cepções conjunturais e pragmáticas que
mmmetrx
perdem o vínculo com qualquer realidade
mais ampla e totalizadora.

Ce-uo de tsii>309 bspecis zado» 3 2 3 .6


S729c
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200 i
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U I/ tà g
Biblioteca
A lnlcrpa.luc.ii) do Brasil já se cons- Faculdade Uruda de Vitoria
rimiu em gênero próprio na nossa
ciência stxial. No curso da década de
1970, durante os unos duros do rc
gime militar , o seu tema dominante
foi o estudo das rai/.cs do autorita­
rismo político no pais, sob a moti­
vação diíicci de que a compreensão
do» nossos males lería como que o
dom de exorcizá-los. Com a rede-
mocratização do país e a conquista
das liberdades civis e publicas, a
expectativa de que a democracia
tivesse, afinal, encontrado as suas
p o ssib ilid ad es de realiza vá o.
frustrou-se, verificando-se que a
sociedade permanecia tao injusta
quanio antes
Como reação a e.ssc desencanto,
as interpretações do brasil, que
vinham conhecendo tendência
ii especialização, revisitando siste­ A C O N S T R U Ç Ã O S O C IA L DA S U B C ID A D A N IA
mática e a profu ndada mente o»
P ara um a so cio lo g ia p olítica da
clássicos do ensuismo brasileiro,
re.tproxinium-se da forma pela m o d e rn id a d e p eriférica
qual o uuLoriturismo toi investigado
A postura acadêmica cedia lugar,
mais uma vez, a da inttlngtttfyti, em
seu papel dê intervenção .sobre a
vida social, retornando-se também
o ângulo nucro histórico e da .socio­
logia histórica comparada. Novo,
apenas o objeto - que deixava u
dimensão política do autoritarismo
para enfatizar os temas da injustiça,
das desigualdades sociais, sobretudo
o da cidadania.
Um dos principais responsáveis
pela recuperação da perspectiva
da iitUii/garr^h no nosso ensaismo.
do que já testemunhavam os seus
importantes 0 tf/nktHtb» t oproíis!mti\
Biblioteca
Faculdade Unida de Vitória
Jessé Souza

A C O N S T R U Ç Ã O S O C IA L DA S U B C ID A D A N IA
P a ra u m a so cio lo g ia p o lítica da
m o d e rn id a d e p e rifé rica I

I a reimpressão

Belo Horizonte Rio de Janeiro


Editora UFMG IUPERJ
2006
Copyright C: 2 0 0 3 lty Editora IJFM G
€ 2U 06 - 1' reimpressão
F.sio livro u o |urtc tit Ir. n ã o pode ser rep rod u zid o por qualquer m eio sem au torização
esenta do Ed itor

S729c Souza, Jessé


A construção social da subcÍLlaclama: para uma sociologia
política da modernidade periférica { fesse Souza. Belo Horizonte
Fxlitnca ÜFMC5; Rio de Janeiro : ILTH RJ, 2003. (Coleção Origem)

2 0 7 p.

Inclui; Kclsrcucias
ISRNr 85-7041 384 X

1 Sociologia política 2 Cidadania 1. Titulo

C D D : 3 2 3 .6
C D U : 3 1 6 .3 3 4 .3

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Sanea Bárbara, Maria Helena Dat tnitwei hie Silva Kit ><ic) atx-iro 1 1UI'LR|) é a unidade de
Mcgale, ISaili >Sérgio Lacerda Beirii\ Wándct Pós-Graduação cm Sociologia c Cieiitia
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Diretoria iliièruo 2U05 2007)
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Llirecoe de Pesquisas: .Maio»Faria Figueiredo
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Diretora de Divulgação Ctenoíca:
Maria Regina Soares de Lima
Secretário-Gcral: Fchou 1.uiz Vieira de Melo
A g r a d e c im e n t o s

(Justam de agradecer a Luiz Wcmeck Vianna,


Charles Taylor, Hauke Brunkhorat, VVoltgang Knõbl e
Adalberto Cardoso, os esrimulus e criticas feitas
a versões anteriores deste trabalho.

Agradeço também a bA P R R J, pelo financiamento da


pesquisa teórica e empírica da qual este livro faz parte, c ao
IU P E R I, pela ajuda na publicação.
S u m á r io

iNTttOlHJÇÀO ........................................................................................... 1 1

PARTH 1 A R E C O N S T R U Ç Ã O DA ID E O L O G IA
ESPO N TÂ N EA D O C A P IT A L IS M O ....................19

Cu-ÍILLO 1 - A HERMENÊUTICA DO ESPAÇO


SOCIAL PARA CHARLES TA YLO R........................ 23
Contradições da modernidade central c periférica......... 34

CATrivto II - PIERRE BOURDLEU


E A RECONSTRUÇÃO DA
SOCIOLOGIA C R IT IC A ............................................. 41
Dominação pessoal c impessoal....................................... 47
•Aespecificidade da dominação social no capitalismo.... 51
A luta de classes na modernidade tardia..................... 38

Capiti.™ III TAYLOR E BO U RD JFIJ


OU O DIFÍCIL CASAMENTO KNTRF
MORALIDADE E P O D E R ............................................63
Reconhecimento c luta de classes no ceturo
e na periferia......................................................... .............. 66
A articulação da hierarquia opaca do mundo social
naturalizado........................................................................ 79
A ideologia espontânea do capitalismo tardio ............... 85

PARTH 2 A C O N S T IT U IÇ Ã O I)A
M O D K R N 1D A D E P E R IF É R IC A ......................... 91

A singularidade tia “nova periferia"..................................9 3


In tro d u ç ã o
A constituição do poder pessoal:
patriarcalismo c escravidão............................................... 101
A constituição do poder pessoal:
o dependente formalmentc “livre"...................................121
Do poder pessoal ao poder impessoal...........................129
A Revolução de 1930 e a formulação de um projeto
modemizador autônomo c nacional ............................ 145

PARTE 3 A C O N ST R U Ç Ã O SO C IA L A discussão acerca da singularidade de uma enorme periferia de


D A S irB C ID A D A K T A ................................................ 151 sociedades que se formam ou que se transformam fundamentalmcntc
a partir ela expansão planetária do capitalismo moderno c um desses
A - O processo de modernização periférica c a temas relegados ao limbo da reflexão sociológica. M esm o se pensar­
constituição de uma “rale” estrutural .......................153 mos em autores que se dedicam, na dimensão internacional, com
B - A “Ideologia Espontânea” do Capitalismo Tardio sucesso e repercussão a tematizar os termos dessa singularidade, com o
e a construção social da desigualdade........................164 uo caso de Samuel Huntington ou Shtnuel Eisenstadr, notamos uma
C - A especificidade da desigualdade periférica............178
singular desproporção entre a análise das “grandes culturas mundiais
Notas ............................................................................ 189 e os subcontinentes, com o a America Latina, constituídos direia-
m ente, pelo menos enquanto sociedades complexas, pela própria
RmauãNCJAs .................... , .................. .............................. 203 dinâmica da expansão ocidental.
Enquanto o estudo das “grandes culturas ou religiões mundiais’7,
com o índia, China, c mundo islâmico, seguem a senda aberta por
Max VVeber que inaugura, no âmbito da sociologia comparada, a
perspectiva da consideração da "lógica interna” {Eigtngesetzlichkfit)
de cada uma dessas sociedades ou civilizações específicas, o estudo
da América Latina, ou seja, o tema “pós weberiano” de percebermos
a dinâmica própria das sociedades constituídas a partir da expansão
do racionalismo ocidental, além de comparativamente superficial c
apressado, é relegado a clichês da sociologia do personalismo e do
patrimoníalismo. Isto fica particularmente evidente cm Huntington,
no qual a vacilante descrição acerca da singularidade da “civilização
latino-americana”, m ostra para que clichês e generalizações culturais
cssencialisras servem: se prestar com o explicações a d bac com o justi­
ficação de realinhamentos conjunturais na arena da política interna­
cional. 1O caso de hisenstadt. mais sofisticado teoricam ente do que
H untington e talvez o mais profícuo sociólogo comparativo pós-
weberiano, é ainda mais paradigmático. Enquanto sua análise das
12 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL D A SUBCIDADANIA. ..
Introdução- 13

grandes culturas asiáticas clássicas c do Islã é inovadora c estimulante, Um pressuposto implícito dessa estratégia analítica cra o faro de
sua atenção à America Latina c passageira c superficial repetindo que se mantmlu a noção cfapista da sociologia tradici< mal da moderni­
antigos paradigmas.1 zação na medida cm que .sc assumia que as sociedades não-oddcntai.s
ou periféricas ou bem repetiam os passos das sociedades ocidentais
Mas nem sempre a situação toi esta. Houve tempos em que o
centrais através de símiles da res olução protestante — o caso do Japão c
tema da “modernização” das sociedades periféricas como se desen ■
o mais eloquente nesse contexu/’ — ou estariam condenadas a uma
volvem as sociedades? — ocupou o centro do debate internacional c
egjde do prc-m(Klcnásmo. Apenas a repetição do processo contingente
estimulou dccisivamcntc o avanço das ciências sociais como um rodo,
de “modernização espontânea” ocidental garanti ria o passaporte para
especialmente da sociologia e da ciência política .5O boom de estudos
relações modernas na economia, polírica c cultura. Um a boa parte da
sobre as sociedades subdesenvolvidas e periféricas em geral data do
sociologia culturalista c instituci ona lista que se escreveu c ainda se
imediato pós-guerra e acompanha o esforço norte-americano de escreve sobre as sociedades periféricas estava c ainda é marcada explicita
reorganização política do “mundo livre”.jD ato de criação política
ou implicitamente por essa pressuposição/
da teoria da modernização — a partir de um discurso de Truman em
A produção acadcmiça periférica também sempre sc pautou pelos
19494 — j e ccrf(, modo parece ter determinado seu desenvolvimento
mesmos modelos teóricos. N o âmbito da sociologia latino-americana
c abrangido, crcsccntementc, rambém os estudos comparativos, prin-
e, especialmcntc importante para nossos fins, tio âmbito da sociologia
cipalmcntc os de ciência política, cm geral. Seguindo um quadro
brasileira, o paradigma dominante no século XX também encadeia
carcgorial, que supunha uma oposição dc tipo simples cnn e tradição
as noções complementares de personalismo, tãroiüsmue patrimonia-
c modernidade, c.src último pólo foi cada vez mais associado ao exempk >
lismo dc modo a fundamentar a idéia dc uma sociedade pte-modema/
concreto da sociedade contemporânea americana. A partir dc estudos
As mazelas sociais dc países periféricos com o o Brasil, com o a
que sc inspiravam nas contribuições seminais dcTocqucvillc c VVchcr, desigualdade c sua naturalização, massiva marginalização de setores
desde que cuidadosa mente depurados do seu conteúdo ambíguo c expressivos da população c difiaildadcs de consolidação de uma
crítico tanto em relação à democracia americana quanto cm relação ordem democrática c dc mercado competitiva c eficiente, seriam
ao estatuto da modernidade cm geral, ésses estudos foram crcsccntc- explicáveis a partir dessa expansão pré-moderna de modelos lámilisficos
mente assumindo um conteúdo apologético e triunfalista.5 para Todas as esferas sociais. Inspirado por um paradigma explicativo
Uma das pressuposições mais importantes dessa teoria era a semelhante àqueie do ctdturc andpersonality\ dominante 11a sociologia
crença congênita no que estamos chamando de essencialismo cultural, e antropologia americanas da primeira metade do século XX," parte-se
supostamente influenciada pela tese weberiana acerca do papel dc uma perspectiva culturaÜsta sem adequada vinculação com a
central da ética protestante com o parteira do inundo moderno. eficácia de instituições fundamentais. em que a “cultura” é percebida
Com o a “revolução de consciências” do protestantismo ascético foi como uma entidade homogênea, rotalizame e auto-referida. .Seria
percebido como um momento peculiarmente importante na explica­ por conta dessa soberania do passado sobre o presente que nos confron­
ção deste autor acerca do desenvolvimento singular do ocidente, a tamos com solidariedade» verticais baseadas no favor, sulxidadama para
sociologia comparativa ncowcbcriana foi marcada pela procura de a maior parre da população e abismo material e valorativo entre as
“substitutos da ética protestante" para identificar tanto cxs processos classes e as raças que compõem nossa sociedade.
dc modernização com chances dc sucesso quanto os fadados ao Além dc serem presa de um “culturalismo csscncialista”, essas
fracasso na hipótese contrária. análises reproduzem uma forma de subjctivismo sociológico em que
14 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA S U B C IO A D A N IA .. . Introdução- 15

as interações face a face e a intencionalidade dos sujeiios parecem sc os quais, no entanto, permanecem indeterminados, como se tratassem
constituir, com o no paradigma da relação fàvor/protcção, a referência de duas realidades paralelas, c, apesar da dominãncia silenciosa da
última da análise. I)c certo modo. a perspectiva dóxica e naturalizada variável personalista neste ripo dc abordagem, a questão central da
da nossa percepção cotidiana é generalizada e abstraída conccitual- articulação e da dominãncia relativa de cada um desses princípios
mente até ganhar aparência dc explicação objetiva da realidade. Na jamais c explicitamente formulada ou resolvida. Como nas versões
realidade, essas análises replicam, na dimensão conceituai, os precon­ tradicionais do paradigma do personalismo, o poder dc convencimento
ceitos, prenoções e explicações a d hoc que os imperativos pragmáticos e o preenchimento das lacunas do argumento e garantido pelo parale­
da vida cotidiana e do senso comum nos impinge. lismo com os preconceitos do senso comum dessas sociedades.10
Em países com o o Brasil, onde a institucionalização em larga Uma crítica interna, com base nas contradições teóricas que
escala das ciências sociais se dá a partir da década dc 1970, refletindo habitam este tipo dc tradição científica, foi precisam ente o objeto dc
a tendência mundial da disseminação dos modelos da divisão do um outro livro anterior a c.src.u Neste volume, no entanto, meu
conhecim ento, a fragmentação dos esquemas explicativos tendem a
desafio não é uma m era dcscaostniçào, mas sim tentar construir uma
perder sua relação com qualquer realidade mais ampla. Este faro, hijxitcse alternam a a esta tradição, cuja crítica cm detalhe não posso
associado a propagação paralela de teorias de médio alcance, que
refazer aqui. N o âmbito da reconstrução, que me interessa levar a
renunciam a esclarecer ou temarizar seus próprios pressupostos e
cabo neste livro, g<istaria dc procurar me afastar dos pressupostos do
escolhas categoriais, tende a inibir a reflexão acerca dc realidades
“esscncialismo.culturaltsta”, sem, no entanto, abrir mão de uma pers-
que não tenham vinculo imediato com realidades pragmáticas e
pcctiva que conte mole O acesso a realidades culturais c simbólicas E
conjunturais. Por mais bem-sucedidos e interessantes que sejam
é precisamente nesse contexto que acho importante incorporar as
vários desses esforços, que recuperam contextos c sentidos históricos
reflexões dc Charles 'laylor,acerca da singularidade que as questões
c ajudam a mapear empiricamente dados relevantes acerca da realidade,
culturais, morais c simbólicas, em sentido amplo, assumem no mundo
eles não contribuem para renovar a compreensão mais totalizadora
moderno. Aqui mc interessa, antes de tudo, seu ponto de partida
acerca dos princípios estruturantes básicos que perfazem a singulari­
dade da modernidade periférica, dado que seu horizonte categori.il comunitarista com o uma hermenêutica do espaço social a partir da
rejeita, de plano, qualquer preocupação com esta dimensão mais sua crítica ao “naturalismo", que perpassa tanto a prática científica
abstrata da reflexão teórica. O mais das vezes, o paradigma personalista quanto a vida cotidiana, como meio de articular precisamente a confi­
c patrimonialista, cm suas vertentes tradicionais ou contemporâneas e guração valor,uiva implícita ao racionaiismo ocidental que dá ensejo,
“híbridas", permanece com o a referência implícita da maior parte como veremos, a um tipo específico dc hierarquia social e urna tam­
deste ripo de análise. bém singular noção de reconhecimento social baseada nela. Sua critica
Mesmo as tentativas mais recentes de construção de um para­ à concepção tendendalmente reiíicada dc Estado c mercado enquanto
digma do “hibridismo”, como uma reação ao inegável dinamismo grandezas sistêmicas, como vemos em Jürgen Habermas por exemplo,
modcrnizantc dc várias sociedades periféricas, com o a brasileira parece-me certeira c dc importância decisiva para uma compreensão
por exem plo,s na realidade, não abandonam o campo categorial do mais adequada do processo dc expansão do racionaiismo ocidental
paradigma personalista, familista c patrimonialista, Em suas versões do centro para a periferia, o qual se realiza pela exportação dessas
mais bem-sucedidas, essas reorizações postulam a convivência de dois instituições enquanto “artefatos prontos” no sentido weberiano
princípios de estruturação social: um personalista e um individualista, do term o ;11
16 - A CO NSTRUÇÃO SO CIAL D A SU BCTD AD AN IA... Introdução- 17

Com o o ponto dc partida wcbcriano, no entanto, por ser presa da década de 6 0 do século passado, seu pressuposto fundamental dc
das categorias da “íilosoiía da consciência" que o forçava a jnrrccbcr perceber a relação entre o centro e a periferia do sistema mundial
no sujeito ator a fonte dc rodo sentido c moralidade,1’ c incapaz de com o uma oposição anunòmica entre um núcleo tradicional e pré-
perceber, em toda a sua dimensão, a extensão do horizonte valorati inodemo e outro núcleo moderno, continuam vivas em roupagens
vo, moral c simbólico presente nessas configurações institucionais novas c híbridas. Ksse estado de coisas nos mostra que a superação
exportadas do centro para a periferia com o “artefatos prontos”, a dc um paradigma teórico, ainda quando este é obviamente inadequado
reconstrução tavioriana vai ser fundamental para o desenvolvimento e insuficiente, não pode ser “decretada” mas exige a construção
do meu argumento neste livro. Juntamente com a sociologia de Pierre explícita de um paradigma alternativo que explique as questões cen­
Ifourdícu,creio encontrar, nesses dois autores, uma complementaridade trais do antigo paradigma de forma mais convincente dando conta
fundamental de modo a unir a percepção de configurações valorati vas das falhas e silêncios do modelo anterior.
implícitas e intransparentes à consciência cotidiana e ancoradas de K este desafio que gostaria de enfrentar neste livro. ê instam* de
modo opaco c inarticuladi >à eficácia de algumas instimições do mundo tentar demonstrar com o a naturalização tia desigualdade social de
moderno como mercado c Estado, com a percepção de signos sociais países periféricos dc modernização recente com o o brasil pode ser
visíveis que permitam mostrar o íntimo vinculo entre uma hierarquia mais adequadamente percebida com o consequência, não a pam r dt
valorati va, que se rraveste dc universal e neutra, com a produção de uma suposta herança pre-moderna e personalista, mas prccisauieute
uma desigualdade social que tende a se naturalizar tanto no centro do lato contrário, ou seja, como resultante de um efetivo processo dc
quanto na periferia do sistema. A articulação da perspectiva desses modernização de grandes proporções que toma o pais paulatiiramentc
dois clássicos contemporâneos permite, a meus olhos, uma refor­ a partir de inícios do século XIX. -Nesse sentido, meu argumento
mulação muito mais sofisticada e útil do tema clássico marxista da implica que nossa desigualdade e sua naturalização aa vida cotidiana
“ideologia espontânea do capitalismo” seja no contexto central, seja c moderna, posto que vuKulada a cíicacia de valores e instituições
no periférico; modernas com base em sua bem-sucedida importação “de tora para
Minha esperança é a de que o estudo das sociedades periféricas dentro”-. Assim, ao contrario de ser personalista, ela retira sua eficá­
volte a ser articulado a questões universais c que possa contribuir cia da “impessoalidade" típica dos valores c instimições modernas. É
para o esclarecimento dc desafios que afligem rodos os tipos conrin isso que a faz tão opaca e de rao difícil percepção na vida cotidiana.
gentes c imperfeitos dc sociedade humana. Esta obra pretende ser A importância de uma mudança de paradigma nesse campo não
uma modesta contribuição para este desiderato. Estou convencido tem apenas repercussões teóricas. A atual ausência crônica de pers­
que o estudo da naturalização da desigualdade periférica, levando a pectivas de futuro cm países periféricos como o Brasil tem a ver com
formas perversas de subeidadania e de marginalização nessas socieda­ a obsolescência dos antigos projetos políticos que se baseavam nas
des. também podem ajudar a iluminar circunstâncias similares nos análises tradicionais criticadas anteriormente.,A tendência de se crer
países centrais, ainda que a virulência desses fenômenos seja, sem dú­ no poder lêtichista do crescimento econôm ico, dc se estabelecer
vida, comparativamente menor do que nas sociedades periféricas. clivagens regionais entre partes modernas e tradicionais denrro do
Apesar das teorias sobre a modernização, que acompanham o país ou ainda as cruzadas populistas contra a corrupção se legitimam
esforço dc reorganização política comandado pelos EUA do assim a parur desse mesmo caldo dc idéias e servem com o máscara ideo­
chamado “mundo livre” do segundo pós-guerra, terem perdido, por lógica contra a articulação teórica e política dos conflitos específicos
bons motivos, o indisputado presrigio que desfrutavam até meados dc classe na periferia. Essa c a tese que pretendo defender neste livro.
P a rte 1

A RECONSTRUÇÃO DA IDEOLOGIA ESPONTÂNEA


DO CAPITALISMO
Para que possamos desenvolver uma compreensão alternativa
da modernidade periférica àquela já criticada, que opõe antagonis-
ricamentc os póltis moderno e pré-moderno partindo de oposiçoes
binárias reciprocamcme cxclu dentes que se multiplicam indefinida­
mente, torna-se necessário partir de uma visão alternativa e critica da
própria modernidade central. Reconstruir uma concepção alternativa
da modernidade periférica envolve, logo de início, ter como ponto de
partida interpretações que enfatizem a ambiguidade constitucional
da experiência ocidental. Dois autores, na minha opinião, concorre­
ram dedsivamenic com uma contribuição sofisticada c instigante
para uma análise crítica da modernidade ocidental nas últimas décadas:
Charles Taylor e Pieire Bourdieu. A contribuição destes autores não
mc parece apenas fundamenta] para uma compreensão adequada da
modernidade central. C om o espero mostrar com mais clareza, a
seguir, eles são indispensáveis, ainda que com modificações impor­
tantes nos seus respectivos pontos de partida teóricos, para uma aná­
lise alrcmariva da modernidade periférica.
Pretendo encaminhar a minha argumentação, nesta primeira
parte do livro, cm tres passos: I uma exposição da empreitada
rayloriana c a discussão dos aspectos que me interessam retirar da
mesma; 2 - uma exposição da visão teórica peculiar de Bourdieu mc
concentrando nos aspectos que pretendo utilizar produtivamenté para
meas próprios fins e, finalmente; 3 - uma discussão dos aspectos
negativos e positivos de cada uma das duas perspectivas, procurando
reconstrui-las produrivámente com vistas ao esclarecimento tia questão
reórica que tenho em mente: o esclarecimento das precondiçòcs
sociais da naturalização da desigualdade cm países periféricos com o
o Brasil,
C a p ít u lo I
A h e r m e n ê u t ic a d o e s p a ç o s o c ia l p a ra
C h a r le s T a y lo r

C om o veremos mais adiante, tanto para Taylor quanto para


Bourdicu a crítica ao intclcctualisrno significa compreender a experi-
éneia humana cm sep sentido mais amplo como radicalmente contex-
tualbada e siruada. Km Taylor, essa contcxftjalização implica, antes de
tudo, um esforço dc interpretação c de rcsigniíicação. Nas condições
da vida moderna, por razões que ficarão mais claras mais tarde, esse
esforço equivale a “remar contra a maré”/ O que Taylor chama dc
“naturalismo 7' é a tendência moderna, operanie tanto no senso co­
mum da vida cotidiana quanto na forma de praticar filosofia ou ciên­
cia dominantes, de desvincular a ação c a experiência humana da
moldura coutcxtual que lhe confere realidade c çomprccnsibtüdade,
Para Taylor existe uma relação interna entre o atomismo — a
perspectiva que encara o indivíduo com o a fonte dc todo sentido —
e o naturalismo, t prccisamcnre porque o indivíduo c percebido
como “solto no mundo" e descontexmalizado que sc torna possível
esta espécie de “ideologia espontânea” do capitalismo que é o natura­
lismo. O naturalismo sc mostra tanto na dimensão da vida cotidiana,
quando as pessoas se mostram incapazes dc articular os próprios
valorcs-guia que orientam suas escolhas existenciais c políticas, como
mostrado exempla rmenre no estudo empírico sobre a classe média
americana levada a cabo por R obert Bcllah e sua equipe,1 quanto 11a
dimensão cientílica, seja dc m odo menos sofisticado nas assim
chamadas teorias dc escolha racional, seja em teorias mais sofistica­
das com o na assimilação mitigada que liirgcn Habcrmas íãz da
teoria .sistêmica.
2 4 - A CONSTRl/CÃO SO CIAL DA SU6C1DAÜAN1A... Parte 1 - 2 5

Hm relação a este último autor, o qual é ccrramcntc um dos seus que c certo ou errado, melhor ou pior, superior ou inferior, a partir
interlocutores privilegiados — c apesar de semelhanças marcantes no cie parâmetros que se impõem independenremente de nosso desejo c
diagnóstico das “patologias da modernidade" entre os dois autores vontade.
laylor ccrum euic não admitiría a possibilidade da separarão A força vinculantc dessas avaliações c tal que pensamos nelas
entre sistema f m undo da vida efetuada por Habermas. Essas duas como imuições instintivas c naturais por contraste a reações morais
dimensões refletem meramente horizontes de significação distintos, que sabemos advir da socialização e da educação formal. N o entanto,
^ . c devem ser analisadas enqqapm tais Desse modo, os imperativos essas incuiçõcs podem ser articuladas cm “razões" (aeanrnt) que
sistêmicos não se confrontam com as. identidades individuais com o explicam o “porquê", o fundamento mesmo da sensação dc que
algo externo. Ao contrário, eles são componentes desta mesma iden­ devemos respeitá-las. Uma reação moral c, portanto, a afirmação
tidade e são pn>du/idos c adquirem eficácia predsamenre pi >r conta de uma ontologia dada c contigente do humano. O alvo dc Taylor no
custo,
■■■»•••*' ■ to m a ­ livn >é articular a ontologia moral que está por trás das nossas inruições
ram autônomos, e o desafio, ao inves de naturalizá-los eomo faz. a — nós, ocidentais c modernos seja do centro ou da periferia. A
perspectiva sistêmica, e prccisamcnte reviticá-los. moralidade possui objetividade portanto.
Instituições com o Estado c mercado, assim com o as demais A nossa identidade, diz laylor, é formada pelas identificações c
práticas sociais e culturais, já possuem implícita e inarticuladamcntc escolhas providas por este pano de fundo valorativo seja por afinidade,
uma interpretação acerca do que é bom. do que é valorável perseguir, seja por oposição a cias. A idéia central aqui C a dc que apenas
do valor diferencial dos seres humanos etc. A hermenêutica tayloriana formulamos sentido para nossas vidas com base na relação que
tem como alvo principal precisamente tornar es.se pano de fiindo estabelecemos com as avaliações lòrtcs que formam a referência
implícito articulávcl c consciente. E isto que leva Taylor a defender o última da condução da vida do sujeito moderno/Um indivíduo sem
referência a esse pano de fundo seria um caso patológico. Identidade
hulismu mcfotlotógico,1 Só pode se pleitear uma análise tia economia
é sempre uma matéria que tem a ver com “redes dc inrerlocução”
ou do direito como se eles tossem “neutros", <»u pensar nos indivíduos
{m bsofm tirlot:utim ) que pressupõem um pano de fundo comum para
com o última m tio da explicação sociológica, na medida cm que esse
que exista comunicação e até a originalidade humana possível que c
pano de fundo social e moral permanece não remarizado.
aquela que sc mantém no horizonte das visões compartilhadas.4
A articulação da “topografia moral" implícita c específica à
A topografia moral específica ao Ocidente possui dois epmpo-
cultura ocidentalc o fio condutor do livro mais importante de Taylor:
nenres principais: o p r i n c i p io da imcriorui.uk, que se subdivide cm
o The aources o ft b e s e lf * A motivação subjacente a essa gigantesca
dois outros princípios ao mesmo tempo complementares e contradi­
empreitada c a dc que as fontes morais ou os “bens constitutivos” tórios, como veremos a seguir; e o principio da afirmação da vida
de uma cultura precisam ser articulados dc modo a poderem ser cotidiana.. Vale a pena reconstruir, ainda que esquematicamcncc, o
utilizados com o motivação efetiva para o comportamento concreto. caminho da argumentação dc Taylor acerca deste ponto, fiel a seu
Dc modo a mapear ésse terreno pouco explorado. Xtylor se propõe a ponto de partida culiuralisra, Taylor tende a ver a transição para a
investigar a origem de certas inniiçõcs morais as quais ele chama, modernidade menos como um processo abstran >dc racionalização c
seguindo Harry Frankfurter, de “avaliações forteS" (stnrnjjevttlwUmis). diferenciação, mas, antes dc tudo, com o uma “gigantesca mudança
São essas avaliações forres que possibilitam a discriminação entre o
26 -A CO NSTRUÇÃO SOC1AI OA SU BCIDADAN IA... Parte 1 - 2 7

dc consciência”, no sentido dc uma radical reconstrução da topogra­ Aqui sc inaugura toda uma família de “fontes morais que
fia moral dessa cultura, A especificidade do ocidente moderno sc passam a ser formadoras da culiura ocidental com o um todo. É
deixa ver a partir dc uma contraposição com a Antiguidade clássica, que a passagem para uma condição superior passa a ser marcada pelo
Platão c uma ligura central nesse contexto. Ele c o sistcmadzador acesso á interioridade. Pela interioridade somos capazes de chegar ao
da idéia funda mental para a concepção moral do Ocidente, qual superior.7O im o veremos, rodas as lentes morais da cultura ocidental
pressupõem esse caminho. Para Tavlor, .Agostinho foi também o
seja a idéia dc qtie o cu é visio com o ameaçado pelo desejo (cm si
inventor do prccogito, 11a medida cm que a certeza advém da coin ­
insaciável) devendo, portanto, ser subordinado c regido pela razão.*
cidência entre conhecedor e coisa conhecida, quando sc rrara de se
O cristianismo adorou a perspectiva platônica da dominância da
discutir sobre a m inha existência. O pouta» dc vista da primeira
razão sobre as paixões na medida em que a santidade c o caminho
pessoa pode, assim, se ancorar cm um primeiro passo confiável para
para a salvação passaram a ser expressas nos termos da pureza
a busca da verdade.
platônica.
Um ourro asjxrcto importante parece-me o fato de que, alem de
Ao mesmo tempo. Santo Agostinho, ao se apropriar da tradição tornar o ponto de Vista da primeira pessoa fundamental para nossa
platônica, engendra uma novidade radical que vai ser fundamental busca da verdade, Agostinho constrói toda um a hierarquia valorattm
para a especificidade do Ocidente: a noção dc interioridade. O com base nesse fato. A partir de agora passa a existir um abismo insu­
conhecimento não c uma luz exterior lá fora, uma revelação portanto, perável entre os seres capazes de raciocínio c os que carecem dessa
como era para Platão, mas c algo interior cm nós mesmas, sendo faculdade. N ão so o inerte se diferencia do que vive, mas, entre os
ames uma criação que uma revelação. Agostinho muda o foco dc que vivem, passa a exisur uma diferença qualitativa entre os seres
atenção dos objetos conhecidos em favor da própria atividade do que vivem c têm consciência de que vivem cm relação ao simples vivente
conhecer. Voltar-se para essa atividade c voltar-se a si mesmo, é adotar riste aspecto também é fundamental para a reconstrução da relação
uma posição reflexiva. Com o cm todas as grandes revoluções morais entre a eficácia das idéias c a noção de reconhecimento com o fonte
dn Ocidente, também o princípio da subjetividade é inicialmente de auio-estima socialmente compartilhada.
religioso. Agostinho dá o passo para a interioridade. porque este é Tendo demonstrado ao seu interlocutor que ele existe, ou mais,
um passo para a verdade divina. É isto que tom a a dimensão da que ele vive, mais ainda, que ele tem inteligência,* então é possível
primeira pessoa irresistível. Ela está associada a uma passagem para traçar uma hierarquia entre essas dimensões. O vivente ê superior ao
o interior como um passo para o mais alto, para o “superior”.6 mero existente, c o ser inteligente é superior ao vivente. O funda­
Foi essa vinculaçào com a necessidade religiosamente motivada mento da hierarquia é que o ulterior possui o anterior dentro dc si
mesmo. A continuação dessa hierarquia vai permitir colocar a razao
que tornou a linguagem da interioridade irresistível. O vínculo entre
como superior aos senridos, já que c o superior que julga o inferior.
as idéias dominantes no Ocidente c a sua eficácia é percebido —
uma óbvia correspondência com Max Weber — com o um processo Assim, alem da hierarquia entre as diversas espécies vivas confe­
interno à racionalização religii «sa ocidental. Desse modo, as concepções rindo aos humanos um sentimento de especialidade e superioridade
responsável, cm grande medida, pelas atração que este ripo de idéias
de bem articuladas idcacionalmente são vinculadas a “interesses
exerce, abre-se também entre os próprios seres humanos o espaço
ideais” específicos a partir do “prêmio” cspecificamcntc religioso da
para se pensar e se legitimar hierarquias, segundo a capacidade dife­
salvação. Isso explica, a meu ver, o lugar paradigmático de Santo
rencial dc cada qual dc comportamento “racional” de acordo com os
Agostinho na empresa rayloriana.
28 -A construcAo SOCIAL da subcidadania... Parte 1 - 2 9

mesmos parâmetros. Discutiremos sobre isso mais tarde; Ks.se aspecto dignidade do agente enquanto ser racional. Como bem mostra Taylor,
é fundamental para nossos propósitos, posto que pretendemos demons­ Descartes, (talvez prccisamcntc por ser um pensador de época em
trar como a genealogia tayiorinna pode ser usada para esclarecer um transição) transpõe as virtudes da ética aristocrática da glória e da
lema secundarrado por lâvlor: que é vincular n teoria do reconheci­ fama da Antiguidade clássica, algo que se conquistava no espaço pú­
mento social a uma teoria das distinções sociais revelando seu potencial blico. na agora, nas campanhas militares, para o interior da mente,
legitimador de diferenças. engendrando uma forma quahrarivamente nova de produção de nossa
Um outro ponto de discordância em relação a Platão espelha a própria auto-esrima. A fonte da noção de auto-estima c de dignidade
peculiaridade de Agostinho enquanto pensador cristão: a vontade não não c mais algo "para os oumxs”, mas serve, ao c<intrário, para manter
é apenas vista com o dependente do conhecimento, mas .sim como nosso próprio senso de valor aos ikxvsos próprios olhos.
uma faculdade independente.0Desse modo. a perléição moral não c A internaiizaçao da iâculdadc da cognição corresponde a uma
apenas o resultado de um olhar treinado em relação à ordem imanente íntcrnalização da fonte da moralidade como bem percebe Taylor. A
do cosmos, mas de uma adcsã<i pessoal ao bem, um compromisso por crica de aristocratas baseada em força, firmeza, resolução c controle
inteiro da vontade, marcando o lugar central dessa faculdade humana no é internalizada e aburguesada como fonte moral por excelência para
Ocidente. A vonude pode ser portanto má vontade, uma vontade radi- o ser humano comum. E c a torça do autovalor que estimula e leva o
calmcnte perversa. Nesse sentido, ela tem que ser curada pela "graça”. novo sujeito a conquistar seus medos e desejos vulgares em direção a
Descartes c, como se defweende de forma óbvia, pmfundamenrc transformação da realidade á sua volta. Dignidade c auto-estima, um
influenciado por Agostinho, Noentanto, temos cm Descartes um corte tema que Kanr aperfeiçoará mais tarde, já tem aqui um lugar central
radical: ele. ao contrário de Agostinho, situa as fontes da moralidade c c percebido como o m otor para o compromisso continuado com a
dentro de nós mesmos, O que parece estar por trás dessa mudança para virtude.11
lãytor c a concepção mecanicista e não-teológica do universo (Calileu) e A imagem cartcsiana da agência humana correspondia a uma
que implica repensar de oumo modo também a antropologia, 'hida uma rremenda revolução que estava acontecendo efetivamente nessa época
nova representação da realidade tem que ser construída. Com o a noção (começo do século X V II). Essas mudanças apontavam, antes de tudo,
de idéia muda d<>seu sentido ónheo para tornar-se um conteúdo intrap- para a entronização da disciplina corno lei primeira da organização
stquico, elas deixam de ser algo que remos de "adiar” para tornarem-se social em vários campos: primeiro no campo militar, mas tamhcm na
algo que construímos. Essa construção rem que ser feita agora como um administração civil c na econom ia. O novo lugar da disciplina
observador externo a faria, afastando-se de todas as sensações c confu­ implicou o crescente apelo da visão da agencia humana como moldávcl
sões e transformando a clareza no principal requisito Lia perspectiva por meio da ação metódica e disciplinada. A visão do sujeito cm
desengajada, indo aquilo que mistura mente e matéria deve ser Descartes com o “descontcxtualizado” [disengaged) correspondia á
afastado, especial mente as paixões que iludem c obscureccm. O modelo noção do sujeito que instrumentaliza a si mesmo em nome de uma
do domínio racional assume a forma do controle instrumental.111 <irientaçãf >já antecipadamente decidida cm nome de algum fim extern*>.
E nes.se terreno que temos aqui. além de unia nova antropologia, Essa visão cartcsiana do sujeito rem» idelável é transformada por
uma nova concepçãt >da virtude c uma nova concepção da "dignidade” Lnçk;c na base de uma teoria política sistemática. Locke introduz o
humana. Sc o controle racional é uma questão da mente dominar tema da vontade.1- A mente tem o poder de suspender e dirigir desejos
adeqúadamentc um mundo desencantado da matéria, então a noção c sentimentos c, portanto, o poder de não só se remodelar de acordo
de superioridade da boa vida tem que advir do próprio senso de com princípios escolhidos alhcatoriamente, mas também do hábito c
30 - A CO NSTRUÇÃO SO ClA l DA SU BCID A O A N IA ... Parte 1 - 31

da autoridade local. O controle racional pela vontade conduz a uma a hierarquia social a tal ponto que agora as esferas práticas do rrabalho
nova e radical maneira de auto-objetificação. Bodemos nos “recriar”, c da família, prccisamcntc aquelas esferas nas quais iodos, sem exceção,
recriando nossos hábitos c norm as.A om os criaturas de relações participam, passam a definir o lugar das atividades sujxrriorcs e mais
contingentes. B esse novo ripo de desengajamento radical que propicia importantes. Ao mesmo tempo, ocorre um desprestígio das atividades
a idéia da criação “ex-nihilo” que Taylor chama de “sclf pontual” ou contemplativas c aristocráticas anteriores. A sacralizaçáo do trabalho,
“neutro”. E claro que isso exige o “treinamento” em práticas sociais especialmente do trabalho manual c simples, de origem luterana c
e institucionais disciplinadoras c não apenas o aprendizado por meio depois genericamente protestante, ilusira a transformação histórica
de “teorias”. de grandes proporções para roda uma redefinição da hierarquia
Essa nova forma de perceber o sclf c seus novos poderes engendra social que é o nosso fio condutor nesLe icxto.
também uma nova concepção do bem c uma nova localização das Taylor percebe que as bases sociais para uma revolução de
fontes da moralidade. Ao novo sclf pontual corresponde um ideal de tamanhas consequências devem-se à motivação religiosa do espírito
auto-rcsponsabil idade o qual, juntamente com as noções de liberdade reformador. Ao rejeitar a idéia do sagrado mediado, os protestantes
c razão que o acompanham, possibilitam um novo sentido de “digni­ rejeitaram também toda a hierarquia social ligada a ela, Este é o
dade”. 1' Passar a viver de acordo com esse ideal — algo contra o que fato decisivo aqui. .Como as gradações üa maior ou menor sacralidadc
não podemos reagir na medida em que permeia rodas as práticas de cenas funções é a base da hierarquia (religiosa) das sociedades
sociais modernas — é se transformar e se pensar com o se fôssemos tradicionais, desvalorizar a hierarquia baseada nesta ordem c retirar
desde sempre “sclvcs pontuais”, assim com o sempre tivemos dois os fundamentos da hierarquia social com o um todo, tanto da esfera
braços c duas pernas, diz Taylor. Essa concepção hisrõricft.ç contin­ religiosa em sentido estrito quanto das outras esferas sob sua influencia.
gente se “naturaliza". As “idéias” st tornam “práticas sociais” e se Desse modo, abre-se espaço para uma nova c revolucionária (dado
naturalizam na medida . in que se 'esquecem” de suas raízes. seu potencial equalizador e igualitário) noção de hierarquia social
Essas idéias germinadas durante séculos de razão calculadora ç. que passa a ter por base o sclf pontual rayloriano, ou seja, uma
distanciada e da vontade como auto-responsabilidade, que somadas concepção contingente c historicamente específica de ser humano,
remetem ao conceito central de Taylor de self pontual, não lograram presidido pela noção de calculabilidade, raciocínio prospcctivo,
dominai a vida prática dos homens até a grande revolução tia reforma autocontrole e trabalho produtivo como os fundamentos implícitos,
pn itcstume. Aqui <iutn >dentre os muitos pontos em comum entre Taylor tam o da sua auto-estima quanro do seu reconhecimento social.
e Max Weber. Para os dois pensadores a reforma foi a parteira tanto Os suportes sociais dessa nova concepção de mundo, para Taylor,
da singularidade cultural quanto moral do Ocidente. A revolução pro­ são as classes burguesas da Inglaterra, EUA c trança, disseminando-se
testante realiza na prática, no espaço do senso comum c da vida depois pelas classes subordinadas destes países e depois por outros,
cotidiana a nova noção de virtude ocidental. Dai que, para Taylor, a c<>m desvios e singularidades importantes .15A concepção do trabalho
noção de sclf pontual tenha que ser acrescida da idéia de “vida dentro desse contexto vai enfatizar não o que se faz, mas como se faz
cotidiana ' para a compreensão da configuração moral que nos o trabalho (Deus ama advérbios). O vínculo social adequado às
domina hoje .14 relações interpessoais vai ser do tipo contratual (e por extensão a
O rema da vida cotidiana-está cm oposição a concepção da democracia liberal contratual com o ripo de governo). Em linguagem
Antiguidade clássica que exaltava a vida contemplativa por oposição política, essa nova visão de mundo vai ser consagrada sob a lòrma de
à vida prática. A revolução de que fala Taylor é aquela que redefine direitos subjetivos e, de acordo com a tendência igualitária, definidos
32 -A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SU BG D A D A N 1A .. . Parte 1 - 33

univcrsalmenrc, A nova “dignidade” vai designar, portanto, a pos­ cspccialmcnte no romantismo alemão, sua elaboração mais consistente
sibilidade de igualdade tornada eficaz, por exemplo, nos direitos e duradoura. O contexto dc concorrência com a noção de dignidade
individuais potencialmente universalizáveis... Ao invés da “honra” do sclf pontuai tem a ver com o fato de que o caminho para o acesso a
pré-moderna, que pressupõe distinção e privilégio, a dignidade fonte da moralidade — e aproveito da distinção weberiana entre
pressupõe um reconhecim ento universal entre iguais,1* ’ caminho e o bem da salvação que cie utilizou para a comparação
K ant talvez tenha sido o pensador que melhor articulou esta das grandes religiões mundiais — é o mesmo nos dois casos, ou seja,
noção de dignidade que estamos tratando. Além de localizar na implica a virada a inferioridade c à subjeüvaçâo comum a rodas as
vontade humana racional a base da moralidade, ele enfatiza ipm formas modernas dc dotação dc sentido e moralidade.
Jacto sua especial dignidade. E o fato de sermos seres racionais que Apesar do caminho ser o mesmo — o que para Taylor apenas
nos garantiría uma “dignidade única”.1 Essa dignidade é construída aprofunda a rivalidade entre as duas configurações o "hem m< irai”
precisamente contra a noção de natureza. Sc a natureza obedece leis. é antinôm icoe não podería scr mais diverso. O expressivismo repre­
são apenas os seres racionais que obedecem princípios. E c por conta senta a volta dos modelos orgânicos e biológicos de crescimento por
desse novo starus, por conta dessa nova fome de auto-estima, diga­ oposição aos modelos )á então dominantes da associação mecânica.
mos assim, advinda do fato dc estarmos incomparavelmente acima Mas, ao contrário dos modelos clássicos, como a idéia aristotélica da
de tudo o mais na natureza, que a lei moral comanda nosso respeito natureza realizando seu potencial, essa mesma idéia já é internalizada
(Acb/unjf). Enquanto rodas as coisas tem seu preço, apenas os agen­ por I lerder, talvez o autor mais importante neste contexto para Taylor.
tes racionais possuem dignidade, apenas esses últimos, portanto, são E é precisamente por scr internalizada e única referindo-se, portanto,
fins em si mesmos. a uma realidade original e particular, que a normaüvídadc que daí sc
Mas esta não c a única fonte, da moralidade moderna para Taylor. abstrai é aquela que exi|;e que “sc deve viver dc acordo com essa
Ioda sua genealogia da hierarquia valorariva do Ocidente, que csia mesma originalidade”.1* ,
umbilicalmcntc ligada a um diagnóstico da modernidade que enfatiza, * fiara que esse contexto adquira torça normativa, ou seja, seja
além de suas conquistas, suas contradições e perigos, esta ancorada percebido como obrigatória e vineulante pelas pessoas que vivem sob
cm uma ambiguidade e contradição central constituída pela opo­ sua égide, é necessário a revolução histórica que permite renomear
sição entre a concepção..uastxumcuul C pontual do sclf ç a configu as paixões em .sentimentos. Ao invés dc conceber a natureza inrcrria
racão expressiyista do mesmo. O expressivismo é concebido pela como um campo de pulsóes inoontroláveis c perigosas, o que equivale
família dc concepções de mundo baseadas na noção dc natureza a denominação negativa das paixões, descobre-se ao contrário um
com o fonre interna de significado e moralidade. A idéia central, campo fundamental que passa a ser percebido com o a fusão do
por oposição ao tema da dignidade do sclf racional e pontual, é a da sensual e sentimental com o cspirinial, em que é o aspecto sensual e
originalidade dc cada pessoa, aqui o tema é a “voz” particular dc sentimental que passa a ter a proeminência. A experiência c a ex­
cada um, enquanto tal única c inconfundível. pressão das “pnifundezas interiores” passa a ter também um conteúdo
Taylor percebe vários pensadores c movimentos com o anteces­ normativo. A novidade radical cm jo g o é que a compreensão do que
sores dessa nova perspectiva. M ontaignc, Rousseau c os moralistas é certo ou errado passa a scr perccbidi >não apenas como um assunto
escoceses são percebidos com o pioneiros de uma nova noção de que requer reflexão distanciada c cálculo instrumental, mas também
fonte moral concorrente a do sclf pontual que tem no romantismo, e até especialmentc como algo ancorado nos nossos sentimentos.
Moralidade passa a ter de certo modo uma voz interna / 9
34 -A CO N STRUCÀ0 SO CIAL DA SU BCID A D A N IA ... Parte 1 - 3 5

hssa realidade inexiste antes de Mia articulação e não devemos As formas de reconhecimento são duas: uma univcrsalizante,
esperar por modelos externas pan» ela. A noção de símbolo do roman­ caracterizada pelo princípio da dignidade; e outra parti cu lar izante,
tismo exprime precisa mente essa expressão do único c indizívcl. Ao caracterizada pelo princípio da autenticidade. Reconhecimento, por
invés da mímeses ou da alegoria, o símbolo significa tanto a perfeita estar ligado as formas dc atribuição dc respeito e auto-estima, é
interpenetração de forma e conteúdo, como tamlxfm a criação de um percebido com o vinculado às questões da formação tia identidade
sentido que inexisria antes da sua manifestação simbólica. K isso que individual e colcriva. Essa relação c cxeinplarmcnre qualificada na
torna o poder de auto-arriculaçáo expressiva tão importante e revolu­ passagem, de resto sobejamente citada pelos estudiosos da questão,
cionário. (. > ncewio às "prulmuic-aas do self" só e [MM mwnl ao sug*H» que reproduzo abaixo:
1 Lanado depoderes expressivos. Ajiesar tias duas lornias dc iurerion-
dade impiicarem ambas w m radicalização do wbfeõvismo. das são A tese é a dc que a nossa identidade é em parte formada pelo
também rivais esc excluem rrmmamcnie enquanto ripas pugoa, apesar reconhecimento ou pela ausência deste. Muito frequentemente,
da MgM empírica ser o eompn>uu.vso c a inrnrpfltltmyiii bxetvci nos casos dc falso reconhecimento (misrccognition) por parte dos
uma fwrnw de maneira comequenu: é abdicar da ouua. O sufeiro outros, uma pessoa ou um grupo de pessoas pode sofrer um pre­
moderno que reconhece as duas bmWti está, portnrrro, consututiv*- juízo real. uma distorção etetiva, na medida em que os ouiros
nicHtteein tensão M projetem nc.lt: uma imagem desvalorizada eredtitora dc si mesmos.
Não reconhecimento c falso reconhecimento podem infligir mal,
podem ser unia forma de opressão, aprisionando alguém cm uma
forma dc vida redutora, distorcidae fklsa... Kessa perspectiva, não
reconhecimento não significa apenas ausência do devido respeito.
Ide pode infligir feridas graves a alguém, atingindo as suas vítimas
C o n tra d iç õ e s da m o d e rn id a d e ce n tra l e p e rifé rica <.<mi uma muriladora auto imagem dqircciadva. O reconhecí inento
devido não é apenas uma cortesia que devemos às pessoas, h uma
necessidade humana vital.11

Em vários rexros lançados depois do A s fontes do self ‘làvlor pro­


Existem duas fontes aatinómicas e especificamente modernas
cura aplicar o resultado de suas investigações naquele livro à situação
de reconhecimento: o ideal dc dignidade c o ideal dc autenticidade.
política da modernidade tardia, lã nr o cm The ethics o f atithmticity
As duas formas se deixam ver por oposição às formas típicas das
quanto em seu artigo no livro coletivo M uhkulturnlism — seus textos
sociedades liicrárquicas. Enquanto nestas o princípio da honra c fun­
talvez mais influentes depois de A s fimtes do s e l f — Taylor procura
damental, c honra significa sempre que alguns a possuem e outros
demonstrar como as categorias centrais dc sua reconstruçái >genealógica
não, a noção moderna de "dignidade" implica no uso igualitário c
levada a cabo em As fontes do s e lf podem ser percebidas com o as
universal que confere a dignidade específica a todo ser humano c
categorias centrais dos dilemas c contradições da modernidade tardia
cidadão moderno. Enquanto apenas alguns tem honra, todos possuem
nas dimensões existencial, social e polírica. O lema do reconhecimento,
dignidade.
ou seja, o tema das precondições sociais necessárias à atribuição de
respeito c auto-estima é transformado no more central tanto para a O ideal dc autenticidade, que nasce, como vimos, partindo da
produção de solidariedade quanto para a pereejição dos conflitos nova significação conferida a<i que Taylor chamava no As fontes do self dc
específicos do mundo contemporâneo. "expressivismó" a partir do século XV1TT, é ainda mais radiealmcntc
36 -A construção social da subcidaüania. .. Parte 1 - 37

moderno que o princípio da dignidade. Isso não apenas no sentido chamar, na falta de uma denom inação mais feliz, de dimensão
de que o ideal de autenticidade se consolida mais rardiamente — nas existencial do ideal da autenticidade, rem a ver com sua crescente
vanguardas artísticas a partir de fins do século X V III c com o força trivialização, à medida que o pano dc fundo dia lógico e comunitário,
viva e efetiva na sociedade apenas na segunda metade do século XX, que lhe dá profundidade e coerência, sc perde cm favor de uma
como na fíow ergeneration da década de 60 — mas também em um perspectiva auto-rctcrida que Taylor chama algumas vezes de quick
sentido mais profundo na medida em que apenas o ideal da autentici­ Jix (solução rápida c superficial).23
dade elimina de plano a definição da identidade com base cm papéis O primeiro aspecto c tcmatizaLio prioritariamente cm multicul­
sociais já dados. A. definição da identidade, partindo do ideal de tural inn, enquanto o segundo c prioritariamente tematizado em Rtbies
autenticidade implica precisamenre uma reação tanto cm relação à ofau th m tia ty . Quanto ao primeiro aspecto, desde que fique dam que
pressão por conformidade social, quanto cm relação a uma atitude nós somos formados através do reconhecimento ou tia sua ausência c
instrumental cm relação a si mesmo. que reconhecimento tem uma base cultural, comunitária e linguística,
A questão central para Tavlar, cm relação ás .xtjcicdaclcs indus­ então torna-sc im ediatam ente compreensível que a proteção dc
triais avançadas, reicrc.-sc. antes dc Lutiu, ao klcal dc autenticidade minorias c culturas minoritárias passa a ser um objetivo político
e apenas sceundariuncuic ao ideal da dignidade. Isso tem a ver incontornávcl. A assimilação a uma cultura hegemônica com a
com o pressuposto dc que as democracias norte-americanas e euro­ consequente Imagem dc inferioridade que é inculcada em relação
péias ocidentais tenarn solucionado as desigualdades sociais mais aos grupos subjugados é uma violência contra a qual Taylor opõe a
noção de Gadamer de “fusão dc horizontes”. Compreender uma outra
virulcntas c efetivameme, a partir da consolidação do welfart State,
cultura implica uma abertura cm relação a da que equivale, cm alguma
garantido um patamar dc igualdade real entre os diversos grupos
medida, a uma transformação, ainda que parcial, dos parâmetros de
sociais. Veremos, mais adiante, quando estudarmos Bourdieu c sua
julgamentos da própria cultura hegemônica .24
crítica á “ideologia da igualdade dc oportunidades” c os recentes
estudos sobre uma nova marginalização nas sociedades afluentes, Com relação ao segundo aspecto, o ponto principal parccc ser a
que essa tese só pode ser aceita com importantes mitigações, cum contradição entre a lógica do ideai dc autenticidade, que exige uma
g ra n o salis, por assim dizer, revelação expressiva da originalidade dc cada qual cujo ineditismo,
na medida em que sc refere apenas àquela pessoa c sua singularidade,
De qualquer modo, ainda que apenas tcndcncialmente, este parece e ameaçado pda lógica d* >qitickjix, que implica o conm >le instrumental
ser o pressuposto da análise rayloriana nesse campo. Assim sendo, e a elalxiração dc padrões preexistentes e heterõnomos.25 Voltaremos a
problem ático parccc ser, para ele, .uites de tudo, o cam po dc essa contradição mais tarde.
questões que se abre a partir do ideal dc autenticidade. Com o
UI) fato é que a contradição central para as sociedades avançadas
Taylor segue Hcrder na jxmccpçSo de um campo duplo para o tema da
é percebida, tanto no aspecto existencial quanto coletivo, com o foca­
autenticidade, ou seja, da pode se aplicar tanto a indivíduos quanto a
lizada no âmbito do ideal da autenticidade.^As razões para isso já
coletividades,22 ele temariza essa questão cm dois momentos: 1 - o
foram expostas anteriormente” c embora eu não esteja convencido
aspecto coletivo que tem a ver com uma “política da diferença", ou que o ideal da dignidade seja um ponto tão pacífico no âmbito das
seja, trata-se aqui do respeito a identidade única dc um certo grupo sociedades afluentes, mesmo antes do amai desmonte do Estado dc
social, normaimente minoritário pelo menos cm termos dc poder bem-estar, é inegável que existe um abismo monumental entre a insri-
relativo, e que rem que se proteger contra a assimilação por uma rucionalização deste princípio nas sociedades centrais jxir oposição
identidade majoritária ou dominante; 2 - o aspecto que poderiamos às periféricas.
38 -A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA S U B d D A D A N tA .. . Parte 1 - 39

Nesse sentido, embora a problemática relativa ao expressivismo identificar os mecanismos operantes, de forma opaca e implícita, na
c ao ideal da autenticidade se imponha também de forma importante distinção social entre classes e grupos sociais distintos em sociedades
cm relação as sociedades periféricas — de um modo peculiar que determinadas. Ela pode nos ajudar a identificar os “operadores simbó­
gostaria de retrabalhar no final da terceira e última parte deste livro licos'’ que permitam a cada um de nós na vida cotidiana hicrarquizar e
— , o conjunto de temáticas associado à questão da dignidade adquire classificar as pessoas como mais ou menos, como dignas de nosso
uma centralidade insofismável para este ripo de sociedade. Nesse apreço ou de nosso desprezo. Pode também nos esclarecer de que
contexto, nos interessa, antes de tudo, as repercussões da discussão modo disfarçado ç intransparente instituições aparentemente neutras
acerca dos princípios que regulam a nossa atribuição de respeito, implicam, na verdade, na imposição subliminar de critérios particula.-
nsta.se contingentes com ?.eiis beneficiários e vitimas muito concretas
deferência ou, cm uma palavra, a atribuição de "reconhecim ento
Para esse desiderato a contribuição de ( lharles Tayior é decisiva. Para
social” com o base na noção moderna de cidadania jurídica c política;
além de qu.dqucr outro pensador moderno, Tuvlor possibilita, a partir
Essa temática pode nos esclarecer acerca das razões pelas quais em
de sua genealogia tia hierarquia valorativa da modernidade rardia, con-
algumas sociedades periféricas, com o a brasileira, que nos interessa
lérir sentido c relevância moral a aspectos “naturalizados” da realidade
»‘)ui como ilustração da tese que defendo neste livro, torna-se possível
social seja na dimensão da vida cotidiana, seja cspccialmente na
num contexto formai mente democrático, aberto c pluralista, a consti­ dimensão institucional cuja eficácia depende precisamente de sua apa­
tuição de cidadãos de primeira ç de segunda classe.
rente neutralidade.
Nos interessa esperiaimente construir um agranúacaqu c torne N oynranto. por outro lado, parece-me que seu tratamento do
visjvel.aquilo queJàyJoE.na tentativa de sty.-u.ir o rcspcirs^no sentido
jurídico,, ou seja, o resj>eiro pelo direito alheio na acepção de uão mador das distinções sociais implícitas na temática do recouheei
infringir ou invadir o espaço do outro, do tipo de respeito que ç|ç nim m Isso náo significa obviamente dizer quc l avlor não perceba o
chama de “atitudinaL”. potencial discnminador dessas distinções, o que fica sobejamente
claro na sua análise do multiculturalismo. Alas precisamente sua ênfase
O modo mesmo como andamos, nos movemos, gesticulamos e no tema da autenticidade significa também sua aceitação, pelo menos
falamos c formado desde os primein >smomentos pela nossa cons­ tcndcndal, da ideologia "tia igualdade de oportunidades” que comanda
ciência de que nós aparecemos para os outros, que nós estamos no o oum» pólo do tema do rca ínhccimento, que é o am junto de questões
espaço pühlio»e que esse espaço c potendalmente perpassado por que têm a ver com a dignidade. Nesse campt», talvez o m.us significativo;
respeito ou desprezo, [x>r orgulho ou vergonha - para a análise da naturalização da desigualdade que assola a maioria dos-
países periféricos, sua análise, ainda que fundamental como ponto de
interessa-me tentar construir uni quadro de referencia conceituai partida, precisa ser cqtpplcméi itada por outras perspectivas mais sensí­
cjue nos permita ir além da descrição fcnomcnológica tias situações veis ± força misrificatk »ra de princípios aparentemente universais. Essa é
que espelham respeito ou a falta dele, especialmcntc no seu sentido a razão principal pela qual considero indispensável tentar traçar uma
itinidinal , infra e ultra jurídico, tentando por a nu o ancoramcnro complementaridade entre sua perspectiva c a de Pierre Bourdicu.
institucional que lhe confere boa parte de sua opacidade e eficácia,
permitindo que nossa vida cotidiana seja perpassada por distinções,
hierarquias e princípios classificamrios náo percebidos enquanto tais/
A localização c explicitação desses princípios pode nos ajudar a
C a p ítu lo II
P ie rre B o u rd íe u e a r e c o n s tr u ç ã o
d a s o c io lo g ia c rític a

Ò impacto mais marcante da singlllar c brilhante sociologia dc


Picrrc Bourdíeu sobre o leitor contemporâneo se deve, aos meus
olhos, ao desmascaramcnto sistemático da “ideologia da igualdade
de oportunidades" enquanto pedra angular di>processo de dominação
simbólica ripia» das sociedades avançadas do capitalismo tardio^ Nesse
desiderato, Bourdíeu caminha praticameutc sozinho, já que a imensa
maioria das perspectivas — e eu m c refiro aqui especialmcnte às
perspectivas críticas e radicais — acerca da sociedade contemporânea
partem do pressuposto tia superação tendcucial da luta de classes clássica
do capitalismo.
1 O melhor do talento invesrigativo de Bourdíeu c dedicado
precisamente a desvelar e revelar as formas opacas e distorcidas
nas quais a lura dc classes e enrre frações de classes assumem na
modernidade tardia, Essa estratégia dc desilusionismo rem como lio
condutor desconstfuir as máscaras que constituem a base da domi­
nação c da opressão social no sentido mais amplo e que garantem sua

n unubclaataçau arruda c repetida várias vezes por Bourdíeu. “Como


as sociedades conrinuamcntc sc pagam com .1 moeda iàlsa dos sçus

Essa esn arégia desilusionista tem sua contrapartida numa recons­


trução epistemológica que Bourdíeu leva a cabo contra duas das mais
importantes opções teóricas nas ciências sociais contemporâneas que
ele denomina dc phjèpvismo e subieüvjsmo, Na França, essas posições
foram ocupadas paradigmaticamcnte por Lévi-Strauss c Jcan-Paul
Sartre respectivamcntc, mas seu alcance c muito maior e envolve o
extraordinário impacto do esirumialismo nas ciências sociais, por
42 - A CO NSTRUÇÃO SOCTAI DA SU&CIDADAN1A... Parte 1 - 4 3

um lado, c as diversas -versões da feHaiiieoulugiâi da ctnometodologia visto que só ela permite perceber a estratégia concreta dos atores em
c das teorias da escolha racional, por outro. relação à regra.
A crítica principal ao estniairalismo refere-se ao engano de parrir A crítica cm relação ao subjetivismo assume íormas variadas
da ilusão da autonomia de dado código simbólico às expensas das dependendo da versão teórica cm jogo. Na versão da ctnometodologia
condições sociais que definem seu uso oportuno. Bourdieu apl ica essa o que c criticado c a sua imersão (ingênua) na realidade cotidiana,
critica tantt»à antropologia quanto á soei» ilogia (mandsui) estruturalista. com o esta é vivida im edutamente pelos agentes, não refletindo,
Hm relação á primeira, a crítica <lirigc-sc a tuna concepção de relações portanto, sobre as condições de jxxssibilidadc deste conhecimento.
de parentesco percebidas como se fossem quase que complctamcnte Este tipo de abordagem estaria condenada a apenas “descrever" a
autônomas de determinantes econômicas, esquecendo que. na prática, realidade cotidiana como vivida c percebida pelos agentes. Sua critica
o uso oiicial e inofidal do código está condicionado ao afcrixnento a versão da teoria da escolha racional, é ainda mais interessante c
de vantagens materiais e simbólicas. Em relação au segundo, que conmndcnte. O ator racional alternaria duas características contra­
pãrte de uma “sociologia sem sujeito”, cm que os agentes históricos ditórias: por um lado, a pressuposição de uma consciência “sem
são reduzidos a suportes da estrutura c percebidos como "autômatos” incrcia” que cria o mundo “cx nihilo” a cada instante, c, por outro, a
com vida própria, o que se esquece na perspectiva objetivante do assunção diametralmcntc oposta de um “determinismo intelectual”
estruturalismo é a dialética entre estruturas objetivas e estruturas que se separaria apenas no iraseado do determinismo objerivista da
incorporadas no sujeito .1 reação mecânica. O que é excluído do argumento do ator racional é
É predsamenre esta última relação que para Bourdieu não deve o condicionamento social e econômico do próprio sujeito econômico,
ser compreendida sob um modelo que ignora a ação prática ao apelar e.specialmcnrc no que se refere à formação de suas “preferências”.
para um modelo de determinação mecânica. Para ele, exisre efetiva­ Seria esse condicionamento, que se constitui tanto consciente quanto
mente um sistema de sanções e prêmios inscritos objcüvamente que inconscientemente por meio das condições de existência, assim como
permite ± estrutura estruturar, cm grande medida, a experiência pelos encorajamentos e censuras explícitas, que permite o “esqueci­
prática. jN ã o obstante, nesse caso, c decisivo perceber as estratégias mento da aquisição" (a gênesis implica a amnésia da gênesis) c a
• tios atores cm relação a essas determinações. Estas não podem ser ilusão de que se trata de qualidades inatas.
pressupostas por uma lógica sistêmica considerada independente. A resposta de Bourdieu ao dilema do objetivismo,.'subjetivismo.
Paca Bourdieu, O terreno da “esnatégia” por excelência c u d a com suâs unilateralidadcs complementares, c dada a partir da suges­
dimensão temporal. Atinai e pelo controle do tonpo.que se pixlc tão de uma relação articulada entte estrutura, habitus e práticas. Destes,
retardar ou apressar uma resposta ou reação, retirando-se deste modo o termo mais importante e que marca boa parte da originalidade do
vantagem (ou prejuízos ) não prescritos na concepção “legalista” da pensamento bourdiesiano c a noção de luhnus. ( ) conceito de habitus
visão objetivante. Ao mesmo tempo e por outro lado, existe na verda­ permite sair da prisão do realismo da estrutura na medida em que se
de uma grande influencia da "regra" sobre a prática que advem dos apresenta como a forma pela qual a “necessidade" exterior pude i£x
mesmo motivos estratégicos aventados anteriormente. É que, seguir introjetada, mais que isso, “encarnada” e. “incorporada" pelos agentes.
a regra, ou melhor, dar a “impressão” de se estar seguindo a regra, O habitus seria um sistema de estrontras cognitivas e moriv
equivale a maximizar vantagens na medida em que o grupo recom­ ou seja, um sistema de disposições duráveis ínculcadas desde a mais
pensa melhor as ações aparentemente motivadas pelo respeito às tenra ia ffo cia que pré molda possibilidades e impossibilidade*,
regras .10 fundamental, portanto, é manter o fõco dirigido à prática, oportunidades c proibições, liberdades e limites de acordo com as
44 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA SUBCJDADAN1A...
Parte 1 - 4 5

condições objetivas. Nesse sentido, as disposições do habitus são cm homem por oposição à mulher, são diferenças instituídas que tendem
certa medida “pré-adaptadas” às suas demandas. a sc transformar cm distinções naturais. As instituições, desse
modo, precisam estar objetiíicadas não apenas cm coisas e lógicas
h por coma dessas características apontadas anteriormente que
de funcionam ento que transcendam os agentes, nus têm também
Bourdicu chama o habitus de uma “virtude feita necessidade”.9Fruto
que estar representadas nos “corpos” c cm disposições dc com por­
de dada condição econômica c social, o habitus implica a inscrição
dessas prceondições, espccialmcntc às relativas is experiências infantis, tamento durável.
que passam a scr traduzidas no sujeito com o um conjunto de
estruturas perccprivas c avaliativas servindo com o uma espécie de já que as praticas cotidianas são automancas e impessoais hviste tuna
filtro para todas as outras experiências ulteriores. O habitus sem , unidade dc senridn compartilhada, que transcende indivíduos e grupos
portanto, um esquema de conduta c comportamento que passa a específicos, que e precisamente onde Bourdicu ve a possibilidade da
gerar práticas individuais e coletivas.* Nesse sentido, o que parece, 1insrituiçãt>de um sc nsi >c*imuut com» ><1cteitt*ela lurm< inização entre
para a perspectiva do realismo das estruturas, scr a ação independente o sentido objetivo c o sentido prático levada a cabo pelo habitus. A
destas, seria, na realidade, assegurada (tela presença ativa desse depo­ partir daí, ternosã possibilidade de um todo mutuamente inreligívêl
sitário de experiências anteriores, que inscreve cm cada organismo consrantemente reforçado por práticas individuais c coletivas. A
^

sob a forma de esquemas de percepção, pensamento e ação, a garantia comunidade consciente pressupõe uma comunidade inconsciente, ’
U A C t*

da “correção” dc práticas no decorrer do tempo. H csrc princípio de ou seja, um conjunto não rcmatizado dc competências linguísticas e
continuidade e reprodução que o objetivismo percebe sem poder dar culturais que permite não só a comunicação consciente, mas o f uncio­
conta dc sua gênese. namento semi-automático e irrefletido da vida cotidiana.
ísendo o produto dc um conjunto de rcgularidadcs objetivas, c> Além da sua dimensão corpórea, naturalizada e inconsciente
habitus tende a gerar toda uma serie dc comportamentos “razoáveis” (embora não no sentido psicanalítieo)^) lubim s tem uma carac­
e de “senso comum” que são possíveis dentro dos limites dessas terística incrcial conservadora, uma espécie dc “esquema dc auto-
regularidadcs. O habtms é r» passado tornado presente, a história proteçáo”/ O habitus, esse “principio não escolhido dc rodas as
tornada corp oe portanto “naturalizada” e “esquecida” de sua própria escolhas”,* umdc xconferu um peso maior às experiências mais antigas
gênese w rccisam cntc por ser uma espécie dc história naturalizada estimulando, desse modo, sua própria constância, É nesse contexto que
numa espontaneidade sem consciência, o habitus c o elemento que Bourdicu se refere as inúmeras estratégias que servem para evitar con­
confere às práticas sua relativa autonomia cm relação às determinações tato com qualquer conteúdo que possa implicar risco a evse princípio,
externas do presente imediato. Por scr espontaneidade sem cons­ como as chamadas “más companhias”, livros não recomendáveis etc.
ciência ou vontade, o habitus não se confunde nem com a necessidade A meu ver, o grande aporte crítico da teoria do habitus é precisa­
mecânica, nçm com a liberdade reflexiva dos sujeitos das teorias mente a ênfase n<>aspecto “corporal* e automático tio comportamento
racionalistasl social. O que para grande parte da tradição sociológica c “interna­
A própria reprodução institucional só é possível dada a existência liza ção de valores”, o que evoca tcndcncialmentc uma leitura mais
dessas disposições ajustadas a uma finalidade, revivendo c revigorando racionalista que enfatiza o aspecto mais consciente c refletido da
a letra morta depositada nessas instituições. K 9 habitus que produz reprodução valoratíva c normativa da sociedade, para Bourdicu a
A “mágica .sodaF que faz. com que pessoas- se tornem instituições ênfase seria, ao contrário. 110 o «ndieionamento pre-reflexivo.auco^_
feijas dc carne. Nesse sentido, o filho mais velho c herdeiro, o mático, emotivo, çsponiâxico. cm uma palavra “inscrito no corpo
46 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA S U 8 C JD A D A M A ... Parte 1 - 4 7

de nossas ações, disposições e escolhas. Os nossos corpos são, nesse cairijx) de forças de tuna luerajpquia não expressa - entre sexos, classes
sentido, na sua forma, dimensão, apresentação etc., a mais tangível ou grupos de idade contribuindo decisivamente para a naturalização
manifestação social de nós mesmos. Nossos hábitos alimentares da desigualdade em todas as suas dimensões.
moldam nossa figura, enquanto nossa cultura e socialização pre- É precisamente com base na sua crítica às tradições intelecrua-
formam iodas as nossas manifestações expressivas cm gestos, escolha listas das ciências sociais que Bourdieu é induzido a criar um aparato
de vestuário, corte de cabelo, forma de andar c talar, transformando conceituai alternativo, que tem no conceito de lubitus sua categoria
o conjunto de nossas expressões visíveis em sinais sociais. H com central c mais inovadora, que permire “rcsignifkar" o esquecido e o
base nesses sinais visíveis que classificamos as pessoas e os grupos naturalizado, que não são passíveis de ser apreendidos pela sociologia
sociais c lhe atribuímos prestígio ou desprezo. de tradição intelectualista, Ú esse aparato também, como veremos
Bourdieu consegue com isso, a meu ver, uma vantagem inesti­ em breve, que permite a Bourdieu perceber dominação c desigualdade
mável cm relação aos paradigmas (dominantes nas ciências sociais) onde outros percebem harmonia e pacificação social. É isso que o faz.
intclccrualistas c racionalistas. Assim, “crença" para ele não c iun fundamental para qualquer análise, seja das sociedades centrais ou
estado de espírito ou um conteúdo incrapsíquico, mas sim uma periféricas, interessada cm desvelar c reconstruir realidades petrificadas
crença “corporiliçada^. tomada carne c osso, u nu crença “prática'' e naturalizadas.v&las será apenas na aplicação dessas categorias para a
portanto, uma evidência pré-verbal e imediata que ê o pressuposto análise de sociedades concretas que poderemos tanto comprovar sua
do senso prático na vida cotidiana» Essa corporação ou incorporação lorça quanto perceber suas deficiências que também são graves como
de sentidos, significados e esquemas avaliarivos dá-se desde a mais veremos logo a seguir.
tenra infância onde se aprende a treinar o corpo com o “reservatório
de valores”.6Bounlicu localiza, portanto, primariamente nesses valores
“tornados corpos”, fruto da persuasão invisível de uma pedagogia
implícita que pode inscrever e naturalizar toda uma cosmologia, pre­
cisamente por estarem além da percepção consciente e se mostrarem D o m in a çã o p esso a l e im p e sso a l
apenas cm detalhes tidos come>insignificantes, arm o detalhes de com­
portamento físico, maneiras de falar, andar e se portar, a base de sua
sociologia. Esses detalhes, aparentemente insignificantes, apontam,
no entanto, para características essenciais do comportamento social. Bourdieu parte do pressuposto de que toda sociedade constrói
mecanismos mascaradores das relações de dominação que são opc-
Desse modo, o corpo funciona como uma espécie de “operador
rantes em todas as dimensões sociais. Seja entre as classes, entre os
analógico” das hierarquias prevalcccntcs no mundo soaal. Assim, a
sexos, ou entre grupos de idade, todas as sociedades, modernas ou
oposição homcm/mulhcr c manifestada em posturas, gestos, formas
pré-modernas produzem mecanismos específicos de “d fô so u h ca
de sentar, andar, na forma direta de ver do homem que se contrapõe
inenlu" que permitem, ao retratar a percepção da realidade imediata,
a reserva feminina, por exemplo. Hssa manifestação se dá em hábitos
que as relações sociais de dominação ganhem autonomia própria ao
aparentemente inexpressivos como a forma de comer, que no homem
“aparecerem” como naturais e útdiscuúvcis./Toda sociedade, portanto,
se dá com toda a boca, de garfo cheio, enquanto na mulher a conten­
seja pré-moderna ou moderna, rende a naturalizar relações sociais
ção indica reserva ou di.vsimulaçã<», já que, como observa Bourdieu, as
que são contingentes e constituídas socialmetite.
virtudes dos dominados são sempre ambíguas. O corpo é, enfim, o
48 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBCIDADAN 1A.., Parte 1 - 4 9

A forma que essa iílusio assunie, no entanto, c histórica c mutável. pré-nu wJcmas, como os Kabyla, esse mascaramcnto se dá pela ncgaçãii
Bourdieu Lende a chamar esse eieiLo encobridor e mascar ador de do seu conteúdo (também) econômico. Nas sociedades modernas, ao
“capital simbólico ”.8Capital simbólico seria a forma especifica assu­ contrário, c a raiz. econômica da distinção social que sc n>rna invisível.
mida cm cada sociedade pelo mascaramcnt© do efeito econômico, o Nas .sociedades pré-modernas, existe uma linha de continuidade entre
qual, em sociedades pré-modernas, como a dos Kabyla que ele estudou as relaçócs dc troca mais ou menos simétricas da troca ritual dc
na Argélia, assume a máscara de uma "ética da honra"Vrara Hourdicu, presentes até a assimetria das relações mais claras dc dependência.
cs.se encobrimento é necessário sob a forma de relações pessoais em Essa linha de continuidade é dada pela relação econômica mascarada
sociedades em que a economia ainda não logrou se diferenciar das 50b o véu cncobridor de relações morais.
outras esferas sociais/ I listoricamente, foram os gregos c romanos É esse vcu mascarador t|ue permite aquilo que Bourdieu chama
os primeiros a fazer essa distinção entre direitos pessoais c reais c dc “mais-valia simbólica ”,10no sentido em que relações aparente­
entre obrigações morais e contrato. Entre os Kabyla. no entanto, mente simétricas permitem a reprodução dc trocas assimétricas
onde essa distinção inexiste. o capital simbólico equivale a uma espécie legitimando, dessa form a, uma relação arbitrária. Esse tipo de
dc auto-ilusáo compartilhada por toda a sociedade, uma espécie de obtenção dc ganho assimétrico é típico de uma sociedade pré-capita­
má-fé coletiva como diz Bourdieu citando Sartre.v lista que não permite a reprodução de uma dominação impessoal e
Uma consequência extremamente interessante da quebra da ilusão quase automática através da lógica do mercado dc trabalho. E é pre-
criada pelo capitai simbólico é o aparecimento da noção de “'trabalho” cisamcnrc por que a sociedade prc-capitalista não pode contar com a
como separada da noção de mera “atividade”. No contexto operacional violência implacável mas mascarada de mecanismos objetivos, o que
da l(>gica da honra não há como separar trabalho produtivo de trabalho permite dispensar os dominantes das custosas estraLégias dc reprodução
improdutivo. A consciência desta separação iria atingir o âmago das condições de possibilidade da dominação, que ela se vê obrigada a
mesmo do mecanismo de repressão e encobrimento que permite um tipo dc relação social em que a violência física mais brutal e a
que a mesma funcione. O “descobrimento” do trabalho pressupõe relação pessoal mais “gentil”, humana e carregada dc sentimentali­
o desencantamento da natureza e sua redução â dimensão econô­ dade c emoções (cm resposta, por exemplo, a “presentes” generosos
mica. A “atividade” cessa de ser vista como um “tributo" pago à que obviamente criam obrigações do mesmo tamanho) podem
sociedade, para ser percebido como um objetivo dcmarcadamenrc conviver am biguam ente .11 Quanto mais diíicil for o exercício da
econômico. dominação direta mais e mais prcasar-sc-ia dc formas mascaradas dc
Capital simbólico é, nes.se sentido, capital negado e travestido. dominação.
Hlc só c percebido como legítimo quando desconhecido enquanto Do ponto de vista dos dominantes- ju exercício dessa forma de
capital. Tara Bourdieu, o capital simbólico, juntamente com o capital dominação é extremamente custosa. Bourdieu alerta para o perigo
religioso, parece ser a única forma possível de acumulação quando o de se considerar o aspecto material da ambiguidade como único
capital econômico c ncgadoJ.Opir.il simbólico parece sitrnificar .ü decisivo sendo o elemento não-marerial considerado um cpitcnòmeno.
capital, ou melhor, uma espécie de crédito social a..* sentido mais A conversão do capital jamais é automática e implica sempre doação
amplo, que logra rr.msrnutai-.se c não revelar suas ongens arbitrarias constante e pessoal também do dominador.yO custo é pessoal em
l>csse modo, capital simbólico pressupõe mascaramcnto c opacidade tempo, esforço e oLmgaçócs/km um sentido importante, inclusive, a
com relação às suas origens e lunaonanieuio prático, Nas sociedades obediência dos próprios “superiores” as normas do grupo tem que
50 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA S U B O D A D A N IA . .. Parte 1 - 5 1

scr exemplar de modo a garantir, na ausência de um imaginário social estruturante em lugar do capital social, ou seja, o conjunto de relações
que se aucopcrpetua, a reprodução das relações de dominação pessoais. de conhecimento c reconhecimento que se constituem com base no
Rourdicu avança, nesse sentido, a interessante tese segundo a pcitencimemo a um grupo específico.14 Embora o capital social seja
rambem aqui decisivo para a sorte de carreiras individuais, a sociedade
tom grau de õbjcúfkação do capital.1* Na falta desta objctificação, moderna não fundamenta mais seu funcionamento prioritariamente a
a dominação tende a assumir a forma pessoa). Na presença dela, por partir dele.
exemplo, sob a forma de mercado auto-regulado, sistema educacional
autônomo, aparato legal diferenciado etc., a dominação tende a assumrr
a toruu impessoal. o que implica a opacidade e o auromarismo típicos A especificidade da dominação social no capitalismo
dos mecanismos que estão alcra da compreensão e do poder dos
indivíduos; O que caracteriza o exercício do capital simbólico nos
dois contextos (pessoal e impessoal) c o mascarainentodas prccondi- Uma exemplar e sob vários aspectos brilhante e original análise
ções econômicas para o exercício de qualquer forma dc dominação. da sociedade contemporânea c levada a cabo por Bourdicu no seu
Desse modo, o abandono d» dicotonnn ec<*n<uriic»viaiu>-ecooouuto e talvez mais conhecido trabalho, o Distincttcn. Embora o livro seja um
a poru de entrada principal nos segredos da dominação social -*’ Esse estudo teórico-cmpírico sobre a estrutura dc classes da sociedade
passo é necessário para que sc perceba como práticas aparentemente contemporânea francesa e. muito cspccialmente, do padrão dc domi­
desinteressadas podem scr vistas corno práticas econômicas de rnaxi- nação simbólica que a possibilita, o mesmo também pode scr com­
mização dc ganhos materiais e simbólicos. preendido com o uma teoria geral do mecanismo peculiar assumido
pela dominação dc classes no capitalismo maduro ou avançado.
N o que roca a especificidade da dominação no capitalismo
avançado, Bourdicu acompanha a tese marxiana da “ideologia jV iis aspei-çns parccem-me fundamentais para a compreensão
espontânea n capitalismo logra desenvolver c dc certa maneira da originalidade da reflexão dc Bourdicu nesse ponto, para aiem da já
“seeretar” uma forma dc dominação que não apenas não SC mostra discutida ccntralidade da categoria d<>habitus no seu ponto de partida
epistemológico. Esses dois aspectos são, primyiro. a nova relação
enquanto tal mas que também, ao mesmo tempo, exime os domina­
entre os jflvcrsos “capitais" m cuULcxto do capitalismo maduro, c,
dores do custoso trabalho de reprodução das relações de dominação.
^çgundo, em parte com o consequência do primeiro aspecto, o lugar
A ideologia mais bem-sucedida c precisa mente aquela que não precisa
central da categoria do “gostp”, do julgamento estético como principal
de palavras c que sc mantém a partir do .silencio cúmplice de sistemas
forma, especilicamcntc moderna, de produzir distinções entre indi­
auto-rcgulados que produzem, sob a máscara da igualdade lònnal e da
víduos c classes. Quanto ao primeiro aspccro, temos em Bourdiai
ideologia do talento meritúcrárico, a “sociodicéia dos próprios privi­
uma reversão radical da interpretação dom inante acerca das pre-
légios’” das classes dominantes.
condições c efeitos de uma transform ação estrutural inrrínseca
A. impessoalidade da dominação capitalista também jxide ser ao capitalism o com o um todo, mas apenas visível cm todas as
percebida por m m da trona d» »s capitais em Bourdicu Nas sociedades suas virtualidadcs no capitalism o maduro ou tardio: a crescente
modernas são os capitais econômico c cultural que assumem o papel importância w inocam om iea do “conlirrirncnti)"
52 - A CO N SIRU ÇÃO SO CIAL DA SUBCIDADANIA.. . Parte 1 - 53

lá Karl Marx percebia a enorme importância do saber aplicado a sociais e econômicas de seu funcionamento O capiul cuitural,*ou
produção. Km vários sentidos, o conhecimento úul e especializado melhor, as prccondições sociais fiara a constituição c transferencia de
necessário á reprodução de mercado e Rstado foi um dos principais capiul cultural, são, neste contexto, mais opacas e invisíveis do que
condicionanres estmcurais da superação dos critéricxs adscririvos de as prccondi.çõcs que se aplicam ao capital econòmicò.’"
sangue c família em favor do “talento” individual de quem possuía a Saber e conhecimento, em suas múltiplas variações fenomênicas,
efetiva competência de exercer funções fundamentais da sociedade assumem cm Bourdicu a forma de um "capiraJ culrural' relativamente
nioderm por meio da incorporação de saber c conhecimento útil. De independente do capital econômico e dividindo com este o potencial
resto, como veremos em detalhe mais tarde, boa parte da ideologia de estruturar a sociedade como um iodo c determinar o peso relativo
meritocrática do individualismo como visão de mundo retira sua plau- das classes sociais c suas frações cm lura por recursos escassos.
sibilidade precisamente dessa possibilidade do indivíduo se classificar Assim, na leitura de Bourdicu, precisamente o elemento percebido
social mente mediante seu próprio esforço pela incorporação do por todos com o o aspecto mais visível e relevante do processo de
saber e do conhecimento. democratização das sociedades avançadas depois da Segunda Guerra
N o entanto, seria apenas depois da Segunda Guerra Mundial Mundial apresenta a contra face nada inocente de, através de seu
que a importância do .saber e do conhecimento passa a ser percebida modo de operação específico ao naturalizar relações sociais contin-
em todas as suas virtualidadcs. É a partir dessa época que remos uma ; gentes, estabelecer um novo padrão, ainda mais sutil e sofisticado
onda de análises acerca dos trabalhadi ires qualificados, os wbite collav que os anteriores, de dominação simbólica mascaradora de relações
e os gerentes como uma nova clas-sc entre proprietários c trabalhadores de desigualdade.
manuais. Daniel Bell declara, no seu The comín/f o f thepost-industrial Nesse caminho, Bourdicu procura constituir o que ele chama de
society , ls que propriedade c conhecim ento haviam se tornado os -economia dos bens culturais", cuja lógica específica ele almeja
fundamentos da estratificação social das sociedades avançadas ocidentais. descobrir. Para esse de&iderato faz-se necessário primeiramente
Também T labcxmas aponta a superação do paradigma marxista do deslocar a ênfase da cultura do seu conteúdo normativo que impregna
valor-trabalho dada a nova relação entre « inheeimento e produtividade o sentido cotidiano do termo, em favor de sua utilização pragmática,
capitalista.16 ou seja, como prática da vida cotidiana, envolvendo também nossas
O que apenas Pierre Bourdicu percebeu, no entanto, e isso já escolhas práticas mais banais c cotidianas como os gostos elementares
bastaria para colocá-lo entre os grandes pensadores da teoria social e os sabores de comida. K aqui que entra em cena o ygundo aspecto
crítica, foi que o novo lugar estrutural de conhecimento C saber, central da sua argumentação que mencionamos antcriormenle, ou seja,
inaugura também uma nova fôrma, ainda mais opaca e intranspareme,. a temática do “gosto”, ou melhor da competência estética, com o ele­
de dominação ideológica no contexto do capitalismo avançado. Ao mento generativo das distinções sociais no capitalismo avançado. A
contrário de um TaJcotl Parsons, por exemplo, em que o desempe­ competência estética como percebida por Bounlieu é uma contrapo­
nho individual baseado na incorporação de conhecimento passa a sição a definição “idealista” de estética como propugnada por Kant.
ser compreendido com o a base de uma sociedade democrática c Foi Kant que tornou famosa as distinções entre um gosto refletido vs
meritocrática ,'7 lentos em bourdicu a hipótese inversa de que saber gosto sensível, entre wobljfefàlíen c Gíwmst, entre o belo e o agradável,
c conhecimento passam a ser a base de uma •ideologia espontânea" í*ara Kant essa faculdade é uma “dádiva” que alguns possuem e outros
do capitalismo de iwivo ripo, criando c legitimando desigualdades iní­ não. " o ataque de Bourdicu a este ponto de vista se concentra em
quas e ]------- irrn tn ãõ esconder sistematicamente as prc-condições mostrar o quanto esse “gosto” c sorialmentc construído e demonstrar
54 - A CjONSTRUCAO S O U A i. DA S U B C ID A D A M A ... Parte 1 - 5 5

a íntima relação entre gosto c classe social 4T ) que Kanr chamava de dessa moderna aristocracia da cultura -1 — negando, portanto, sua
faculdade do gosto c o que Bourdicu chamará de competência estética. origem social (educação c família).
com* O critério hicrarquizador básico aqui é o capital cultural definido
bi nação cnnc tempo escolar e origem familiar. A observação científica, a >m<»a soma do capital educacional c a origem Iàmiliac Bara Bourdicu,
como a que o próprio Bourdieu usa abundantemente cm seu trabalho, ocfcim de opacidade desse princípio legitimador da liierarquia entre as
demonstra que os gostos c necessidades culturais estão cm relação classes a partir do gosto fimdamenta-se na oposição entre a alma,
direta com a socialização familiar c o grau de escolaridade. O “gosto”, com o reino da interioridade c, portanto, da profundidade e do
longe de ser uma qualidade inata come>pressupunha KanL seja aquele sagrado, e o corpo, sendo a “alma” p locas do burguês em oposição
que sc refere às escolhas cotidianas, seja aquele que .se refere às escolhas ao c o r p o çomo o lo ais do rraííaJhador c do homem vulgaju O leitor
pode observar desde já que Bourdicu, na verdade, transpõe, para a
“artísticas”, corresponde a uma hierarquia social dos consumidores o
luta de dasses, emlxira deform a innrticulada ç, portanto, incapaz dc
que o predispõe admiravelmente a servir como "marca de classe".20
produzii seus efeitos de esclarecimento teórico, o aspecto essencial
Bourdicu percebe, nesse sentido, o “encontro” seja de uma obra de
da genealogia valorar iva desenvolvida por luyU ir, como m ostraram »
arte com seu consumidor, seja entre dois amantes, não com o o
no capitulo seguinte.
mistério do amor à primeira vista, mas com o efeito da decodiíkação
dc um processo de socialização específico^ Desse modo, cada classe O processo primário dc inrrojcçáo "naturalizada” desse critério
social ou fração dc classe teria uma “c s r é tk a j A classe trabalhadora, legitimador dc desigualdades sc dá na escola e na família, não só em
por exemplo, o pano de fundo a partir do qual rodas as outras classes relação ao que se ensina explicitamcntc, mas antes dc tudo a partir
sc diferenciariam, é caracterizada por uma relação de continuidade das práticas implícitas que essas instituições demandam. O que Bourdicu
entre arte c vida, o que implicaria a subordinação da forma em relação tem cm mente é a formação do habitus percebido, com o vimos
à função em todas as dimensões do gosto. anticriormentc, como um aprendizado não-intencional dc disposições,
inclinações e esquemas avaiiativos que são “in corporados" c natu­
O princípio da distinção, porranto, sc constitui posirivamcncc ralizados permitindo ao seu possuidor perceber e classificar, sem
contra sua mistura com as funções práticas da reprodução material mediação consciente e reflexiva, os signos opacos da cultura legítima.
por um lado, assim com o por oposição à mistura ou confusão dos A disposição fundamental da cultura legítima para Bourdicu é a
juízos csrcfico e moral típico da classe trabalhadora. Km outras disposição estcticafO ponto principal aqui é a criação dc uma pri­
palavras e mais abstratamcnie, o principio da distinção, o elemento mazia da forma sobre'o conteúdo, ou seja, da alxirdagcm da arte —
classificado» por excelência para Bourdicu, define-se * partir de assim como da “arte da vida" que se forma a partir do mesmo prin­
ucua rclaçao de subiunação das necessidades humanas primárias, cipio2* — enquanto pura forma. Segundo Kant, a aitc que precisa dc
subiuiução essa percebida com o a fonte de rodo refinamento social charme, e emoção para produzir prazer c bárbara. A cstcrica da classe
e dc roda csülização da vida, Boudicu percebe seu itinerário como trabalhadora, ao subordinar a forma à função, seria o exemplo típico
uma espécie dc “psicoanálise social" ou "socioanálise” na medida cm dessa noção de barbárie. A aritude esteÜLZanrc, ao contrário, rejeita a
que o “gosto” é a área por excelência onde sc manifesta a “negação subordinação da arte às lunções da vida Q que transforma essa atitude
do social”j[Como o gosto sc mostra como uma conjunção enrre razão estética em uma visão de inundo c cm um “estilo dc vida” é que ela é
e sensibilidade, ou seja, como o apanágio da personalidade completa, caracterizada pela suspensão ou remoção da necessidade econômica
d c serve magisrralmcntc aodesiderato de “aparecer” com o uma qua­ c, portanto, pela distinção objetiva e .subjetiva cm relação aos grupos
lidade inata — a marca de toda aristocracia para Bourdicu inclusive sociais sujeito a esses determinismos.
56 - A cons m uçÃo s o c t a i o a s u b c t d a d a n i a . .. Parte 1 - 5 7

Essa “estética”, portanto, e aqui reside a base do argumento de A noção fundamental que permite ligar esse conjunto disperso
H<mrdieu acerca da dcsconstrução d(>julgamento estético, está ligada dc disposições com estrutura* que definem c prcjulgam situações
à situação econômica de liberdade cm relação à necessidade o que concretas é a noção dc habitas,' Retornada e rc interpretada profunda-
permite precisamente a facilidade, a naturalidade c a suspensão exis­ mente por Bourdicu, conforme visto anteriormente, o habitus vai
tencial em relação às demandas do mundo material. Assim sendo, a permitir redefinir de modo inovador a idéia de classe social c o peiten-
disposição estética se revela com o apenas compreensível a partir de cimcnto a ela. O habitus se define como tuna forma pné-retlexiva de
uma situação econômica de alirmação de poder sobre a necessidade introjeção e inscrição corporal de disposições que condicionam um estilo
de vida c uma visão de mundo específica. Desse m odo, o habitus
e, consequentemente, implicando implicitamente urna reivindicação
com partilhado confere sentido a noção dc “habitus de classe” por
dc superioridade legitima em relação àqueles que se encontram sob o
associar objetivam ente, para além dc qualquer acordo consciente,
aguilhão dessas necessidades e urgências. lV sse modo, o privilégio
pessoas cm uma mesma siiuaçáo dc classe. Assim. cfi**sc «ieixa de
econômico pode .se rravrsrtr dc cstcuoo separando <> gosto premido
ser percebrdn a partir dc pn ipned-adcs ou dc crdcçõrs de propriedades
pela necessidade e definido com o vulgar d o gosto da liberdade
para ser defimd* com o fundamento de “práticas sociais” similares,
definido com o “•puro" e ''desinteressado”. Assim, o principio “mais que pcm útcm esnatégus comuns c u ín seq u aiu as compartilhadas
olasuricador" pode aparecer com o o “mais natural’*. mesmo na ausência de acordm comcrentes r refletidos.■O pertenci-
Kssc ponto explica também porque a ideologia do gosto natural é mento à classe explica por que os indivíduos não sc movem dc modo
tao eficazJÈ. que na medida cm que cia sc impõe quase que casualmcntc arbitrário no espaçcnsvcial. Concrctamente, partindo da inclusão do
na dimensão da vida cotidiana, “naturalizando” diferenças reais, as quais conceito de campo sorta 1 com lógicas homólogas específicas, temos
possuindo um fundo socioeconômico aparecem como diferenças de que o conjunto dc fatores envolvidos em rodas as áreas da prática
natureza. C om o Bourdicu ironiza com muita perspicácia: a cultura deve ser referido à lógica específica de cada campo dc modo a deter­
rrandbrma-sc em natureza mais uma ve*.,. Na competição entre os minar a relação entre classe e prática. É a lógica específica dc cada
campo que define quais são as disposições operantes c importantes
grupos privilegiados, inclusive, a vantagem c daqueles que possuem
nesse mercado, permitindo determinar a hierarquia dos agentes nesse
o modo mais insensível e invisível dc aquisição. Por conta disso
campo, com base no ripo específico de capital que ele pode mobilizar.
senioridade, no acesso à classe dom inante, conta com o decisivo.-H
O gostq para bourdicu funciona com o senso dc distinção por
* Isso se explica pelo faro dc que o efeito do “modo dc aquisição7’
excelência precisamente por separar e unir, constituindo, portanto,
do gosto marca todas as escolhas cotidianas, desde a arte e a cultura
solidariedades c preconceitos de forma universal — tudo é gosto!
legítima ate o gosto por móveis, roupas c comidas. O senso dc per- a partir dc fios invisíveis e opacos, b dessa idcia central que se com*
rcncimcnto a um mundo de perfeição, harmonia e beleza, transposto o rui a ideologia espontânea da burguesia na alta modernidade-, que
de forma tanto mais perfeita quanto mais inconsciente, irrelletida e permite «sum ir uma aparência de universalismo e de competição
“sem-esforço", é o que confere solidariedade imediata c intuitiva, em iguô‘fedr de condições, dc onde a burguesia sempre retirou sita
provocada pelas camadas mais profundas do habilus, lôrjando simpatias legitimidade explicita, preuxamente sob a assunção implícita de uma
e aversões, fantasias c fobias, apoios c reprovações. Kssa unidade e distinção natural ao modo portanto dc qualquer aristocracia pné-
solidariedade profunda sc dá “corpo a corpo”, com o o ritmo dc uma moderna tomada efeuva r powrvrf por meios especificametiLc
música, dispensando palavras e pensamento conceituai.24 modernos c de singular opa enfade.
58 - A CONSTRUÇÃO SO CIA L D A S U S C ilM U A M A .. . Parte 1 - 5 9

A luta de classes na modernidade tardia ramo o conhecimento dos vinhos, das comidas exóticas c da jardinagem.
O que é alirmado com essa aquisição é a pretensão a uma cerra noção de
''personalidade”, uma qualidade da pessoa,26 que se manifesta na
A lura dc rtasses c das frações de cUs.sc na modernidade tardia apropriação de um objeto dc qualidade.
assume, para Hourdicu, a tnrma de Ktta cuJturai pcU hegemonia u
As frações dc classe intelectuais, ou seja, as classes mareadas pela
parrir da definição de cuimra considerada legitima. A jura social c,
predominância do capital cultural cm relação ao capital econômico,
antes dc nulo, a luta pelo poder de definir nos seus próprios termos,
precisam, para produzir distinção, se contentar com formas exclusivas
ou seja. nos termos da classe ou fração hegemônica, os esquemas
de apropriação na falta do capital economicü. Assim, intelectuais e
çlassificarórios, em grande parte inconscii iitcs e írreíleddos, que ira
artistas desenvolvem uma predileção por estratégias dc grande risco
sen ir como orientação de comportamento a toda?as ciasses sociais
e, por uso mesmo, dc grandes possibilidades de “lucro distintivo”.
sob se.u iu eo .25 Como vimos, a forma de capital simbólico específica
Estratégias com o recuperação de com portamentos ou produtos
d<»capitalismo avançado traduz-se na naturalização de diferenças reais
culturais antes considerados “Kitscli”, a redefinição do que c artístico
em distinções que tornam íniransparente o seu “modo dc aquisição”,
ou de vanguarda, são alguns exemplos. Nessas lutas por distinção
ou seja, permitem sua percepção na dimensão da vida cotidiana como
entre as frações da classe dominante náo estão em jo g o apenas
características inatas de seus possuidores.- A “distinção” aparece como interesses rt-tiqqmicos q y s ramhcm psicológicos, isto c, atitudes
uma diferença “merecida”, correta e |usta já que supostamente se
últimas em relação à vid a^ esse sentido, o que parece estar envolvido
basearia nos talentos inatos de seus possuidores;
é a definição da “pessoa inteira”, ou seja, uma forma muito sublimada
() senso de distinção e uma faculdade das classes dominantes. dc defesa de interesses,
Ele se define de forma peculiar a partir do peso relativo dos capitais
No âmbito das classes dominadas temos duas atitudes distintas
cspccialmente dos capitais econômico e cultural — que os indiví­
características da pequena burguesia c da classe trabalhadora. O que
duos e frações dc classe possuem, assim como pela sua trajetória
caracteriza a pequena burguesia c,a “Lxia vontade culniral”, o que
social que define o “modo dc aquisição” e, jx>r consequência, estru-
espelha sua ansiedade por inclusão e aceitação. l’or isso mesmo o
mra o niodo de se relacionar com cada um dos capitais. A oposição
pequeno burguês é o típico consumidor do ““Kit.sch”, pela referência
mais importante entre as diversas frações da classe dominante é aquela
deste à cultura legítima. O que mostra que a cultura legítima não c
existente entre as frações que incorporam paradigmaricamcntc o
feita para eles é o fato de que ela deixa dc ser legítima tão logo seja
capital econômico ou o capital culturab Bourdieu expõe, com base
apropriada por essa fração. O pequeno burguês, por sua rigidez c
nesse raciocínio, as relações implícitas e opacas entre consumo
ansiedade, não percebe o jogo da cultura com o um jogo. h isso,
cultural e estilo de vida como forma de garantir privilégios, reconhe­
precisamente, que o impede de exercer a naturalidade, a familiaridade
cimento social c auio-estima.
c o exercício da distância distintivos daqueles que se percebem como
Possuir um castelo, nesse sentido, não é apenas uma questão de fezedí ires da cultura. A boa yontade cultura^ essa espécie dc <ibediència
dinheiro. Ao contrário, essa aquisição quase sempre está associada a servil a tudo que é legitimo, é uui apanágio, necessário da necessidade
uma forma dc estar em contato com a vida aristocrática e todas as dç mobilidade ascendente que c o alfa e ómega da personalidade
suas funções e privilégios específicos. A significação profunda da pequeno burguesa, t, essa perspectiva que molda sua moralidade e
vida aristocrática remete a um estilo dc vida indiferente à passagem sua relação com o mundo: rigoroso ascetismo nas frações asceixieniex
do tempo, que se expressa no cultivo de coisas dc longo aprendizado c rigor repressivo nas lfaçocs decaderm-s da pequena burguesia.
60 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA SUBCÍDADAN1A.. . Parte 1 - 6 1

Mais interessante, no entanto, inclusive para o uso que faremos . Qualquer “pretensão” cm cultura, linguagem ou vestimenta passa ;
ila teoria hourdiesiana para nossos próprios propósitos mais adiante, a ser suspeita dc “burguesa”, ou seja, aceitação servil do padrão
é sua concepção da classe trabalhadora, O ponto de partida de dominante, ou “feminino” o que toca na virtude básica da classe
Bourdicu nesta questão não é livre de ambiguidades. Primeira­ trabalhadora, a qual seria de certo modo também o fundamento da
mente porque a concepção de mundo, ou melhor, o “habitus” da sua solidariedade grupai, na medida em que c expressão da coragem
classe trabalhadora é uma categoria residual para Bourdicu na medida de seus membros: a virilidade.<l( Esse realismo implica, ao fim c ao
em que o mesmo é dciinido negativamenic, por oposição ãs frações cabo, que a classe trabalhadora sc vc através dos olhos da classe domi­
burguesas. Kssa característica '‘reativa” do habinis da classe dominada nante, isto c, reduzida à sua força de trabalho, pior. à pura atividade
por excelência no capitalismo faz com que o próprio Bourdicu repita, muscular.
nos seus termos, a alternância típica das abordagens de esquerda em Bourdicu percebe claramentc os “efeitos” da dependência objetiva
relação a classe trabalhadora que ele mesmo critica.2* da auto-estima das classes dominadas seja cm relação ao mercado por
Allnalj o lato da classe trabalhadora não participar da luta por meio do salário c do srarus (xupacional, seja por meio da ação do
distinção, prccisamcntc a luta que instaura a iUusio do jogo social, um sistema educacional que reproduz, ao seu modo, as hierarquias
jogo apenas manrido porque se acredita nele, a credencia a uma certa sociais.21 N o entanto, e aqui a ausência dc uma concepção objetiva
“autenticidade” de escolhas e comportamentos apenas possível aos de moralidade como a reconstruída por lavlor, como vimos anterior­
ont siders cm geral. No entantq, a perspectiva dominante da análise mente, mostra-sc em toda a sua importância, sc ele pode falar dos
hourdiesiana é aquela i]ue enfatiza a vulnerabilidade e a dependência “etêiios” ele pouco ou nada pode dizer dc suas “causas c da gênese
da classe trabalhadora em relação à cultura legitima. A classe traba­ específica dessas concepções de mundo hierarquizadoras que se fazem
lhadora c obrigada a fazer da “necessidade”, ou seja» da dependência notar apenas .por seus efeitos através da eficácia dc certas instituições
inexorável a um padrão mínimo de consumo e de estilo de vida ditado fundamentais. Mas esse c o p<wito que pretendo abordar cm detalhe no
pela privação c ausência de meios, uma viriudç. Unia virtude que se próximo capítulo, que trata da união das perspectivas dos dois autores
define como adaptação a realidade com sua consequente aeeitaçSò, analisados ate aqui.
ínternalizaçâo e in-corporação da necessidade 4 qual, pnralelamcntc
ao lato de que é imposta, passa a ser também “querida” e “desejada”.
Kssa necessidade é a basç do emaordinário/hvalismo” das dassçs
trabalhadoras nas
■ ^ ■ a g iT ip iiiin ii
quais a experiência
u m n i i i . 1 u in « n m „
mi f ,
imediata c percebida como a
unica existente, o que implica o literal fechamento do horizonte dj»
possível: nãoexisre outra Imgnagcm, om m csrilode vida, outra tõrma
dc iclitçao lanuhar. ' Esse realismo é a base, por exemplo, da redução
dc rodas as práticas ou objetos à sua função técnica. Em certo sentido,
também, esse realismo é aplicado à própria autopcrocpçáo dos traba­
lhadores, 11a medida em que virilidade e força tísica, expressão de
uma dominação social que os reduz a corpos c lórça de trabalho
animal, passa a ser a marca visível dc todas as escolhas: nos esportes,
na comida, na roupa, nas diversões etc.
C a p ítu lo III
T a ylo r e B ou rd ieu ou o d ifícil c a sa m e n to
e n tre m o ra lid a d e e p o d e r

Alguns comentários iniciais são importantes para evitar mal­


entendidos. N ão tenho nenhuma ambição, aqui, de enar uma teoria
nova a partir do diálogo com esses autores. Eles ohviamcntc são, em
aspectos importantes, muito diferentes entre si c até inconciliáveis.
Minha ambição c meramente utilizar <>poder elucidativo e dcsvclador
de ambas as teorias para iluminar um caso concreto: a experiência da
naturalização da desigualdade cm sociedades periféricas com o a
brasileira. Também não acho, por outro lado, que os autores que
usamos para esclarecer problemas concretos ou mesmo para construir
perspectivas teóricas alternativas tenham que partir necessariamente
de uma moldura teórica semelhante para que possamos usá-los
produtivamente. Isso não é verdade cm nenhum dos casos que
consigo me lembrar dc uso frutífero de tradições distintas de pensa­
mento. Os casos de karl Mar.x e Max Weber ou dc Karl Mane e
Sigmund Hrcud são ilustrativos a este respeito. Estes autores, todos
muito diferentes entre sí, lograram a partir da sua combinação cons­
tituir não só correntes inteiras de pensamento mstigante e inovador
no decorrer de todo o século XX, mas também possibilitaram a
proposição de novas questões não contempladas dentro da moldura
teórica dc suas próprias perspectivas originais.
O que é importante c decisivo no uso dc autores diferentes é a
existência dc cumplemcmaiKiades que permita tanto o uso dos mesmos
a contextos que provavelmente surpreenderíam os próprios aurores,
quanto o aprofundamento dc qucstócs que somente o uso de ambos
permitiría. E prccisamcntc este o caso, a meus olhos, da relação
enrre 'láylor e Bourdieu As respectivas teorias destes autores apre­
sentam não só complemcntaridadcs importantes, no sentido de que
64 - A CONSTRUÇÃO SOCJAL DA SUBC1DADANIA... Parte 1 - 65

suas diferenças se combinam de forma produtiva, como veremos a de partida semelhante d( >s dois auLorcs não é um aspecto contingente,
seguir, mas também similaridades não menos fundamentais de pontos secundário ou superficial. Ele representa, ao contrário, o âmago
de partida c de pressupostos teóricos que torna o seu uso combinado mesmo da novidade radical destes autores no debate contemporâneo.
ainda mais interessante e recomendável. Todo o esforço crítico dc ambos é dirigido à crítica das concepções
G «mecemos com as semelhanças. O próprio Taylor, cm seu texto filosóficas ou sociológicas que abstraem indevidamente do compo­
nente radicalmente situado c contcxtual da ação humana.
’tò Jo lb w a ru le, oferece uma interessante visão da aproximação entre
as duas perspectivas que pretendo conjugar. Taylor, na realidade, Em Tavlor, essa empreitada assume a forma de uma tentativa de
aproxima Bourdicu e Wittgenstcin lendo em vista luu aspecto funda­ resignificar c articular o contexto rmo reiiun/adoquc, na realidade,
mental de sua própria teoria que é a tentativa de romper e superar a guia c orienta toda ação humana embora não tenhamos consciência
concepção mentalista da experiência social Essa concepção menta- dele na vida cotidiana. Sua luta contra o que ele chama de "naturalismo”,
lista c representada pelo dualismo mente/corpo. ou seja, pela idéia de dirigc-sc prccisamcnte contra a ilusão do sentido (ou da falta de
que a mente é uma entidade distinta do corpo, embora de algum sentido) imediato c implica na necessidade dc reconstruir a prática
modo “habite” o corpo como um “fantasma dentro de uma máquina”.1 não articulada, que comanda nossa vida cotidiana, e articular a
Desde Descartes essa concepção tornou-se algo como a doutrina hierarquia de valores escondida c opaca que preside nosso com ­
portamento, daí sua empreitada de nomear c reconstruir as fontes
oficia] sobre a relação mcntc/corpo. Para Taylor, tanto Wittgenstcin
da nossa noção dc sclf. R g a Bourdicu, o mesmo íaio torna urgente
quanto Bourdicu lograram desenvolver concepções que ajudam a
uma dcsconxtrução da guuáct/ÍMiw xocml. ou seja, como em Taylor,
perceber essa relação fundamental dc um outro modo. Taylor diz
uma recotísirução do sentido imediato visto como pniduto de eonso-
“se Vyjirgcnsrcin nos ajudou a quebrar a servidão filosófica do inte-
lidações acrírieas de situações cie dominação e opressão. Também
lectualismo, Bourdicu começou a explorar como a ciência social deve
para Bourdicu essa empreitada envolve uma ruptura com o inte-
ser refeita, desde que livre dc seu ponto de partida distorcidoV
leetualismo e com o mentalismo. O que para outros sociólogos c
Aqui, o inimigo comum c a tendência racionalista e inielectualis-
“internalização de valores”, que enfatiza o asf>ecto mais consciente c
ta, dominante seja na filosofia, seja nas ciências sociais/Enquanto a
refletido da reprodução valorativa e normativa da sociedade, para
tradição intelectualista nesses dois campos do conhecimento tende a
Bourdicu a êníásc seria, ao contrário, no condicionamento prc-reílexivo,
perceber a compreensão de tuna regra social, por exemplo, como
automático, emotivo, espontâneo, cm uma palavra “inscrito no corpo”
um processo que se consuma no nível das representações c do
dc nossas ações, disposições c escolhas.
pensamento, abstraindo seu componente c<irpórco c c<intexrual, tanto
O conceito dc babitux. como somos, ao contrário da tradição
Wittgenstcin quanto Bourdicu enfatizam o elemento da "prática”,.
raciona lista c intelcctualuaiue, permite enfatizar todo o conjunto de
Obedecer a uma regra c, ames dc tude >, uma prática aprendida e disposições culturais e institucionais que sc inscrevem no corpo c
não um conhecimento. A “prática” pode ser arriculávcl, ou seja, da que se expressam na linguagem corporal de cada um de nós transfor­
pode explicitar razões c explicações para o seu “ser deste modo e não mando, por assim dizer, escolhas valorativas culturais c institucionais
de qualquer outro” quando desafiada a isto, mas, na maior parte das cm carne e osso. F-«r ponrq Hr p-mida eomntyi marca dc maneira
vezes, esse paii< >dc fundo, inartieulady permanece implícito, coman­ indelével a forma como os dois autores percebem o aíazcr dc uma
dando siienciosamenrc nossa atividade prática c abrangendo muito ciência crítica: a recusa do “dado”, da experiência imediata, cuja
mais que a moldura das nossas representações conscientes. Esse ponto opacidade nos confunde cognirivamcntee nos torna impotentes moral
66 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL D A SUBCIDADAN1A... Parte 1 - 6 7

c politicamente. O desafio se torna ainda maior na medida cm que, e única, para a dimensão social, abrangendo, deste modo, todo um
não apenas o senso comum da experiência cotidiana e paralisantc, conjunto de minorias sociais com “diferenças” especificas cm relação
mas também a imensa maioria do que passa por ciência nus nossos ao padrão dominante (o padrão liberal qual se travesfe de universal) c
dias c que retira sua força c plausibilidade precisamente de sua con- que deveriam também ser respeitadas enquanto cal./O reconheci­
riguidade com o senso comum o que as exime de explicitar seus mento da diferença — essa conquista cultural do século X IX já que
pressupostos. antes as pessoas não eram percebidas como possivelmente rão distintas
Sem dúvida, malgrado esse ponto de partida comum, os dois entre si* — implica poder pleitear uma reivindicação de “autenticidade”,
aurores desenvolvem perspectivas teóricas que tomam caminhos muito a qual, juntamente com o tema universalizante e homogencizante
diferentes fiuidamentado-se em visões de mundo que se tornam em da dignidade, constituiría o “excepcionalismo moral ocidental” c
aspectos essenciais antinòmicas como veremos cm detalhe a seguir. perpassaria todo indivíduo ou sociedade modernay
'No entanto, mesmo essas divergências centrais são cspccialmente ^ lo d o indivíduo ou sociedade moderna ocidental estaria consti-
interessantes na medida em que elas mc parecem complementares. A tucionalmcntc em conflito, j>ela potencial rivalidade entre essas duas
ênfase unilateral de cada um dos aurores cm certas dimensões, nomea­ concepções, dado que a nossa hierarquia moral subjacente c que
damente a ênfase tayloriana na reconstrução do pano de fundo moral comanda nosso comportamcnro e orientação no mundo assim o
de nossas ações c a ênfase bourdksiana na dimensão da luta por poder exige. Taylor, inclusive, considera que as democracias modernas
relativo de pessoas e grupos, parece-mc compensar deficiências recí­ deveríam ser avaliadas a partir da forma como elas tratam as minorias.
procas dessas teorias conferindo uma força peculiar à sua articulação Uma enorme literatura acerca deste debate se constituiu rapidamente, e
combinada,|São essas as razões que me animam a procurar, prcci- vários autores, diretamente influenciados jw>r Taylor. passaram a pensar
samente nesses dois autores, uma concepção alternativa não só da os conflitos jKilíticos da modernidade tardia a partir da noção de
modernidade central, mas também e cspccialmente da modernidade respeito á diferença e da reivindicação de autenticidade.5
periférica. Embora pretenda utilizar o tema rayloriano do expressivismo no
contexto da minha discussão, neste capítulo, mais tarde, para os meus
próprios fins, o meu interesse na sua obra se concentra primariamente
na temática da “dignidade e menos na questão da reivindicação de
"autenticidade”. Inreressa-mc desvelar o potencial conslituidor c legi-
R e co n h e cim e n to e luta de cla s s e s no cen tro timador de “distinções sociais", ou seja, diferenças sociais tornadas
e na periferia naturais c legitimas, sob o véu mascarador da pretensa igualdade c
universalidade que habita a noção de dignidade. Não só pelo fato
óbvio de que para alguém nascido na periferia o tenta tia inadequada
institucionalização das garantias fundamentais do cidadão se impõe
Roa parte da enorme influência dos escritos de Charles Taylor na como fundamental, mas também e. cspccialmente, porque a discus­
úlrima década tem a ver com sua intervenção no debate sobre o mul- são tayloriana deste ponto mc parece uma revolução de grandes pro­
ticulhirali.smo. Taylor realizou uma interessante c polemica junção do porções no âmbito das ciências sociais.
tema do expressivismo, como desenvolvido no Sottnes o ftb c self\ ou O que torna a reflexão tayloriana de interesse para as ciências
seja, como possibilidade de expressão de uma individualidade original sociais, a meu ver, é que sua reconstrução da “historia das idéias não
Parte 1 - 69
68 - A corwíiRuçÃo social oa subctdadania...

é um íiin cm .si Sua estratégia c compreender a gênese ou arqueologia reformado, mas, também, com a generalização e universalização dc
das concepções de bem e de como essas evoluíram c adquiriram uma forma especifica dc “ser humano", que antes era apanágio dc
eficácia social, hste ponto c crucial. Não interessa a Tavlor uma mera alguns virtuosos religiosos. A revolução protestante ascética trans­
lustoria das idéias, mas como c por que estas lograram tomar os forma em um fenômeno de massa o que antes apenas existia em
corações c as mentes das pessoas comuns. Daí sua empresa ser socio- monastérins “fora do mundo”, ou seja, urna concepção dc personali­
logicamcnrc relevante, Ele se interessa, portanto, cm primeiro lugar, dade racionalizada pela autodisciplina c o autocontrole.
pela eficácia tias idéias e não por seu conteúdo. Este último só é Na leitura weberiana Jes.se processo— Max YVebcr, que exerceu
importante na medida em que explica as razões da sua aceitação óbvia influência sobre Tayior nesse particular— , essa transformação
coletiva. também implica uma “reificaçáo da vida”6em rodas as suas dimen­
sões. Em Wcber, o protestantismo ascético é uma espécie dc “medi­
Viesse sentido, é fundamental explicar o ancoramento institucional
ação evancsccnte”7 entre o mundo religioso c secular. A religião per­
das idéias que viríam a marcar a especificidade do Ocidente moderno,
de seu lugar paradigmático na condução normativa da sociedade como
dado que é partir desse ancoramento que concepções de mundo, que
um rodo precisamente ao sc “realizar” como realidade efetiva. O
.mtes sõ existiam na cabeça de pensadores isolados, logra efetividade
“paradoxo das consequências’* aqui assume a forma de uma mensagem
social também para o grande mimero/fexistem dois momentos na
religiosa, aplicada com uma disciplina e consequência sem igual na
lógica de exposição do As juntes tio s e lf que marcam diferenças
história humana, que acaba transformando o mundo profano fnnda-
importantes desse ancoramento institucional. O primeiro se dá no
inentalmcntc no sentido da institucionalização dc uma concepção dc
rírt hwrttrqm# qúe marca a especificidade ocidental
mundo secular que dispensaria a legitimação religiosa.
latu senat, ou srjn. n vinculo entre as idéia» dominantes notieidwntc
— o controle das paixões e afetos por uma razão agora percebida Este é o sentido da metáfora da “w iln m nuliirr no final da
ética protestante. O manto do santo, que ainda escolhe a direção a
corno interiorizada , sendo suatilkãaa.percebida cumo um p ro
dar à sua própria vida, transforma-se, para nós homens e mulheres
cesso interno-à raunnalit açãr* religiosa ocidental. O ancoramento
modernos nascidos nas novas condições institucionais, em uma casa
institucional sc da na medida em que as hierarquias morais articuladas
da servidão que constrange a todos de lòrma inelutável. Este é tam­
idcacic >naImcntc são vinculadas a "interesses ideais" específicos a partir
bém «> núcleo da tese da “perda de scntuli >” e da ‘♦perda da liberdade”
do “prêmio" espcdficamcntc religioso da salvação. Lsso explica, como
como prccondiçócs não escolhidas do mundo moderno no contexto
vimos, o lugar paradigmático de Sant» >Agostinho na empresa tayloriana.
do ambíguo diagnóstico da época weberiano. t> novr* aparam insti­
Um segundo momento do ancoramento institucional dessa hi­ tucional coercitivo e disciplinado! do mundo mudemô, aotes de tudo
erarquia moral, que constitui a modernidade ocidentalstrictu sensu, representado pelo complexo iuruudopoi m açado t Estado, é perce­
sc dá no contexto de irnw tramformação provocada pdaTCVOhição bido couio úicorporandn um principio formal de adequação mcu^-fini
piuLcsUiite .c que llãylui; chama dc "aíiimaçãu da vida cotidiana”.
Essa transformação é fundamental porque ela ao mesmo tempo con­ tanto Parsons quanto Habermas irão perceber, também, ainda que
tínua c radicaliza o momento anterior dc uma forma pcculiao A trans- dc forma modificada a partir do conceito de sistema, a ação conjunta
valorização propiciada pela revolução protestante tem a ver*não só desse complexo institucional e pleitear uma lógica normativamenre
com a afirmação do valor do trabalho ordinário c secular como a neutra como fiindamcnfo de seu funcionamento.
base do reconhecimento social e da auto-esrima individual, a partir da
redefinição do caminht >e do bem supremo da salvação n<>cristianismo
70 - A OONSIRUÇÃO SOCIAL DA SURCTOADANIA... Parte 1 - 71

Para Pavlor, ao contrario,; esse ripo dc interpretarão equivale a e é por isso que sua luta contra o naturalismo, que recobre tanto a
duplicar, na dimensão conceituai, a “naturalização” que a ideologia prática cientifica c filosófica quanto a prática cotidiana de Lodos nós,
espontânea do capitalismo produz a partir da eficácia c do modo parcce-me tão decisiva c revolucionária no âmbito das cicncias sociais.
de iuncionamento de suas instituições fundamentais. A estratégia Como veremos, ela permite colocar a questão do subdesenvolvimento
genealógica de Taylor, uma estratégia, nesse sentido, virtualmente periférico e da modernização dessas sociedades cm outros termos
paralela aos grandes “genealógicos” da modernidade com o Freud, que o paradigma ctapista e da oposição simples entre rradicional-
Nietzsche e Marx, pretende precisamente recapturar um acesso moderno ainda «perante sob roupagens e máscaras diversas. Afinal,
simbólico c valorativo que retira a neutralidadec a ingenuidade dessas a “morre” dc um paradigma teórica não pode apenas ser “decretada”,
instituições fundamentais que determinam nosso comportamento como no caso da teoria da modernização,10que continua dominando a
social em todas as suas dimensões. Nessa reconstrução, o que vem a imaginação sociológica acerca destas questões tanto no centro quanto
baila c o “retomo do reprimido", ou seja, do sentido normativo, na periferia. A superação dc um paradigma teórico (o qual nunca é
contigente, culniralmcntc constituído e de modo algum neutro que apenas teórico na medida em que forma a visão dc mundo das elites
habita o núcleo mesmo de funcionamento dessas instituições. políticas e intelectuais circunscrevendo seu horizonte dc ação) não se­
Mesmo cm autores que se empenharam cm descobrir a lógica da apenas pela inadequação, ainda que óbvia, dc seus pressupostos.
normativa e simbólica imanente á “ideologia espontânea”' do capita­ Kla só se deixa superar pela construção explícita dc um paradigma
lismo, a começar pelo maior dentre eles, K.arl Maix. o que temos é alternativo que explique as questões centrais do anrigo paradigma de
uma análise da moríologia estrutural da dinâmica da produção e da forma mais convincente dando conta das falhas e silêncios do modelo
circulação de mercadorias no capitalismo levando a ilusão da troca anterior.
justa do mercado. Mas inexisre uma reconstrução da hierarquia valo- Mas não acho que esse ponto seja somente importante para a
rativa contigente que divide os seres humanos cm mais c menos, em análise de sociedades periféricas. Acho que a reconstrução da lógica
classificados e desclassificados, cm bem pagos e mal pagos, cuja opa valoraúva opaca que comanda a “klwrlwgwCTpomãne»” do capitalismo
cidade é apenas reduplicada, mas não constituída, pelo corte entre tardio c um passo fundamental para a análise das sociedades modernas
produção e circulação das mercadorias. Também cm Georg Siiiimel, cm geral — sejam centrais ou periféricas — , na medida cm que
a quem devemos uma análise pcrcucicnte e abrangente da forma dc permite dcsoonsmiir não apenas a naturalização da desigualdade
sociabilidade específica à “economia monetária”, o que temos é um periférica, mas também a eficiente “ilusão da igualdade dc oportu­
estudo dos "efeitos" da generalização da lógica do mercado a todas nidades”, ou seja, a base da legitimação da dominação política das
as esferas sociais.’ Simmcl analisa, com o brilhantismo c agudeza sociedades industriais avançadas. Esse é um ponto, com o veremos,
que lhe é peculiar, de que modo a universalização da mediação do caro a Piem: Kourdieu, No entanto, como também espero que fique
dinheiro de certa maneira "esquematiza”, no sentido kantiano do ciam na discussão a seguir, o ponto dc partida dc Bourdicu é unilateral
termo, todas as nossas percepções, emoções e relações sociais no c necessita dc uma base valorativa objetiva e ancorada institucional­
novo contexto. Mas, também nele, inexisre um tratamento sistemático mente com o acredito ser possível reconstruir a parrir da contribuição
do componente valorativo opaco e implícito contingente que é atua­ tayloriana.
lizado pelo mercado. :A rc-significação da lógica implícita e contingente, que preside
Não consigo me lembrar de nenhum autor clássico ou contem­ a aifão de mercado c Estado krvada a cabo por Taylor, é um passo
porâneo que tenha chegado tão longe quanto Taylor nesse desiderato, fundamental para esse projeto/Abre-se, ilevse modo, nos meus olhos,
72 - A CONSIKUÇÃO SOCIAL DA SUBCTDADAMA... Parte 1 - 73

iodo um conjunto dc questões que permanecia numa espécie de limitação natural da existência, como a lei de gravidade, por exemplo,
limbo na percepção científica. A genealogia rayloriana permite contra a qual nada podemos fazer.li
“re-culturalizar”, “Tc-significar” e, a partir disso, “rc-construir” e Recapitulemos, ainda que brevemente, as linhas centrais da
“re-socializar” uma hierarquia implícita j.í natural rada pela opacidade reconstrução tavioriana da hierarquia valorativa implícita na formação
da forma dc atuação dessas i nstituições.*' Iãylor consegue isso na do sclf pontual: controle da razão sobre emoções e pulsões irracionais,
medida cm que leva sua visão do ser humano enquanto um self-in- interiorização progressiva de todas as fontes dc moralidade e significado
terpntir\g animal11à radicalidude. Noàrnago mesmo do projeto layloriano e entro mzação concomitante das virtudes do autocontrole, auto-respon-
reside a convicção de que a realidade humana é estruturada c sabilidade, vontade livre c descí intextualizada e libcrdadotoncebida como
constituída por camadas de significado .12 Nesse sentido, o desafio auto-rcmodelação em relação a fms hcterònomos. hsse conjunto •
do pensamento crítico — e neste particular, com o vimos, o desidera- articulado c referido mutuamente dc virtudes passa a ser, com seu
ro de Tavlor é inteiramenre con.sonante com o dc Bourdieu c crescente ancoramcnto institucional, o alfa c ómega da atribuição
rc-significar as camadas de sentido que foram “naturalizadas*’ pela de respeito c dc reconhecimento social, por um lado, e pressuposto
prática social, ou seja, reduzidas à opacidade e à intranspairnda/ objetivo da própria auto-estima individual, por outro. No seu con­
A gênese do seít pomuafem Tavlor é passível de ser interpretada junto, essas precondiçõcs constituem a “dignidade” específica da
corno a pré-história das práticas sociais disciplinadoras, das quais o agência racional, ou seja. passa a .scr o fundamento da percepção
mercado e o Estado são as mais importantes, fruto dc. escolhas diferencial dc cada qual como digno ou não de valor a partir dessa
culturais contingentes c que, dc forma implícita c innansparente, pré-comprcensão social produzida por meios intersubjerivos e de visões
mas de nenhum modo neutra, impõe tanto um modelo singular de compartilhadas.
comportamento humano definido como exemplar quanto uma hie­ Kssas visões intersubjefivas, no entanto, são “inarticuladas” no
rarquia que decide acerca do valor diferencial dos seres humanos. F, sentido rayloriano do termo, ou seja, das não aparecem cxplicita-
este modelo implícito e singular que irá, crcsccntcmctne, a partir do mente à consciência enquanto tais. Só as cxpcrienciamos por meio
seu ancoramcnto institucional, premiar cm termos de prestigio dos seus ''eleitos” no nosso comportamento eletivo, que c comandado
relativo, salário e status ocupacional os indivíduos e classes que dele pela hierarquia valorativa implícita a essas visões de mundo, cujas
mais se aproximam e castigar os desviantes.
fontes, não obstante, são intransparcntcs c obscuras para nós. Uma
As gerações qucjinasccm sob j egide das práticas disciplinadoras interessantíssima comprovação empírica desta tese é o trabalho dc
consolidadas institucionalmcntc, e.ssc modelo contingente assume a Robert Bcilah e sua equipe em Ilaln is o ftb c h cart.u Kellah e equipe
forma uaturaluada dc uma realidade auto-evidente que dispensa justi­ chegam a conclusão que os americanos de classe media possuem
ficação. Responder aos imperativos empíricos de Estado e mercado “duas linguagens”, uma explícita e articulada do individualismo pos­
passa a scr tão óbvio quanto respirar ou andar. Não conhecemos sessivo c instrumental c outra, valorativa c densa, que se manifestaria
nenhuma outra forma dc scr c desde a mais tenra infância fomos nas entrelinhas e falhas da linguagem anterior incapaz de articular,
leitos e conrinuamcnre remodelados c aperfeiçoados para atender a por seus próprios meios, vínculos aíêüvos c solidariedade social.
estes imperativos. K essa realidade que permite e confere credibilidade
Essa reconstrução explícita do ancoramcnto institucional da
às concepções científicas que desconhecem à lógica normativa contin­
hierarquia valorativa subjacente ao racionalismo c ao individualismo
gente desses “subsistemas". Ela assume a forma dc qualquer outra
ocidental não é feita pelo próprio lhyfor.Ele fala vagamentv dc
74 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA 5UBCIDADAN1A. ., Parte 1 - 7 5

“práticas institucionais disciplinadoras” como pnxluto/produroras do lutas de minorias raciais, culturais e de orientação sexual apenas tor­
seli pontual moderno.15Considero, no entanto, que esse passo é funda­ naram essa evidência ainda mais transparente.
mental para um uso mais frutífero e mais abrangente de sua genealogia Apesar dos problemas associados à passagem da dimensão
da hierarquia va [orativa subjacente ao capitalismo c ao racionalismo individual e privada do rema da autenticidade à sua dimensão polí­
ocidentais. tica c pública,1®o esforço de Iaylor cm perceber hegelianamente a
Ate agora a enorme influência de Tavlor no debate contcmporâ dimensão da aurenricidade com o aprofundamento e superação da
neo tem se concentrado na temática do multiculniralismo. £ isso, em dimensão universahzantc e homogeneizante da dignidade parccc-mc
grande parte, por iniciativa do próprio autor, interessado cm intervir uma contribuição decisiva para a compreensão desta nova dimensão
cm debates políticos conjunturais de seu próprio país e de outras política das sociedades meidernas sejam centrais ou periféricas, L’or
sociedades avançadas! Assim, dentre as fontes morais reconstruídas pUtroJad», ruj entanto, crproblemaric.o nesta escolha parece-me residir
na sua genealogia do ocidente, com o as fontes últimas do reconheci­ tanto no aspeexç>rconct>quanto nn p<ilínco. leorn amei ireda RTipboi
mento social e da auto-estima individual, ou seja, a “dignidade” do mima concepção muito rasa de reconhecimento por dignidade que
ageme racional no sentido do self pontual e a “autenticidade” da Tavlor termina por definir residualmente em relação à noção mais
expressão da originalidade c particularidade de cada qual, a proemi- rica e multifacctada de reconhecimento por autenticidade, fóhnca-
nênda teórica c política fica decididamente com a última, Eu vejo mente, como uma consequência do aspecto teórico referido anterior-
dois problemas associados a esta escolha. Por um lado, c sem dúvida mencc, Tavlor parece partir da assunção de uma igualdade efetiva,
extremamente interessante o uso que Tavlor láz da noção de autenti­ pelo menos tcndcncial. nas sociedades avançadas do Estado do bem-
estar social, cujo conflito central agora seria marcado pelas demandas
cidade. também como uma dimensão pública, do que ele chama no
de reconhecimento da diferença. Tanto é assim que ele mesmo define
As fontes do self de expressivismo. A partir do final do século X V III. as
como novo critério de avaliação do potencial democrático das socie­
pessoas com eçam a perceber que as diferenças entre os seres
dades liberais o modo como estas tratam as minorias.JV
humanos podem ser significativas o bastante para legitimar um
modo próprio e original de ser,1* instituindo uma fonte de rcconhcci- X mesma tendência se verifica cm autores diretamente influen­
menro social independente da demanda por igualdade e dirciros ciados por Ttvlor como Nancy Fraser, por exemplo. Frj&rt monta
ui li versalizávei s. engenhosamente um quadro do que ela considera a nova constelação
política do conrcxto "pós-socialista”, a partir do dualismo entre
Significativamente, a Iritma. tayJoriana, permite ,dar conta da
demandas por redistribuição — igualdade no acesso a bens e serviços
mudança histórica importante nas lutas sociais dos países avançados,
— e demandas por reconhecimento da diferença específica de grupos
que efetivamenfe, dur.mtc todo o século XIX e primeira metade do
sociais minoritários. O remédio a injustiças no primeiro campo seriam
XX, havia se concentrado nas demandas crescentes por igualdade c
reestruturações econômicas de algtim modo. O remédio a injustiças
expansão da cidadania no sentido da expansão c consolidação do
no segundo campo seria, ao contrário, alguma forma de mudança
princípio da “dignidade”. A partir da segunda metade do século XX,
cultural ou simbólica de consensos espúrios c excludentes. O pro­
no entanto, as demandas em favor de uma “política da diferença”,17
blema com esse modelo é análogo ao detectado anteriormenre. Apesar
ou melhor, de demandas em favor do respeito a diferenças específicas
de Fraser não só reconhecer, mas também enfatizar, o lato de que as
cm relação a um padrão culniral dominante, do qual o movimento demandas jx>r redistribuição também terem um núcleo cultural c sim­
feminista c o melhor e o politicamente mais bem-sucedido exemplo, bólico, ela parece não perceber, pelo menos com toda a desejável
tende a ganhar procminència. Nas últimas décadas do século XX. as consequência, que c apenas pela ação de conscnsi »s culturais opacos c
76 ■A CONSTRUÇÃO s o e r AL DA SUBCIDADAN1A... Parte 1 - 7 7

intransparentes que c possível a existência c legitimidade do acesso catcgona que se aplica tanto á noção de dignidade — pressuposto
desigual a bens c serviços: tanto do respeito socialmente construído que confere íòrça c obriga­
toriedade à “idéia” de igualdade quanto da eficácia da norma jurídica
O remedio para a injustiça, consequentemente, c redistribuiçâo e da igualdade perante a lei — quanto a noção de autenticidade c respeito
não reconhecimento. Transcender a exploração de classe requer a dríerrnça Além disso, dignidade c autenticidade são princípios
rcesminirar a economia política de tal modo a alterar a distribui também complementares c não apenas antagônicos. Taylor também
çío dassísticados custos c benefícios sociais... a ultima coisa de <j«e
certamente não imagina — nem Fraser que as lutas pela desi­
se necessita édo reconhecimento da sua diferença, iVlo contrário,
gualdade econômica tenham simplesmente cedido lugar às lutas por
o único modo de remediar a injustiça é acabar com o proletariado
enquanto classe.^ respeito à diferença. Ele tem perfeita consciência que nos dois casos
trata-se de consensos valorativos contingentes fruto de relações de
dominação também contingentes. No entanto, talvez premido por
Reconhrcimmm para Ha e apenas reconbccimcrtm da diferença
compreensíveis necessidades de intervenção cm debates conjunturais,
noxenridodo prmdpw» da autenticidade, t ia não contempla a hipó­
apenas o ultimo aspecto tem merecido sua atenção concentrada.
tese de que a desigualdade entre classes também esteja Isaseada cm
priuapk» que envolvei» rccoulicciiiieiito. ou melhor, no com» cm •Desse modo, se Taylor é talvez, o teórico contemporâneo que
pauta, juo-rccõiiliecniientc). Ou .seja, princípios quc adquirem eficácia tem mais a dizer acerca da hierarquia valoraüva opaca c intraasparente,
a partir de regras opacas c aparcutementc impessoais, que de forma que comanda nossa vida cotidiana em todas as .suas dimensões, ele não
subpolítica c subliminar, condena i classes sociais inteiras ao não vincula sua reflexão nessa dimensão genealógica fundamental .1 uma
reconhecimento social c a baixa auro estima e. a partir disso. 3 jçgi- teoria da ação social no sentido weberiano do termo, ou seja, à relação
timação de um acesso diferencial a bens e serviços escassos. Nesse entre classes c grupos sociais em luta por recursos escassos c onde
sentido, a sua assunção de que também a desigualdade no acesso a interpretação significa imediatamente legitimação do acesso privile­
bens c serviços c. permeada eulruralmcntc parece-me inócua, na giado a esses recursos. Ele não vincula^portanio. sua genealogia da
medida etn que esses padrões culturais não são explicitados e per­ hierarquia valorariva do Ocidente a uma teoria da distinção social no
manecem, de algum modo, como tuna mera petição de princípios. sentido bourdicusiano do termo.
Essa explicitação, no entanto, seria fundamental para definir a real Esse passo parece-me, tm entanto, fundamental para O aprovritaL
articulação entre os consensos valorativíxs implícitos c operantes em meiifQ de toda a riqueoa do seu próprio ponto de partida genealógico
um caso c no outro. Como eles se relacionam? Quais são os elementos cjx>tçncialmaué descoiistruidor da “ídcologu csponrànea do capita­
comuns ou distintos em cada um dos consensos? Eles se interpenctram ? lismo tardio . Acredito também que esse projeto de vincular o projeto
Existem vínculos preponderantes de dominação ou de autonomia na tavloriano a uma teoria da distinção social exigccufaorar a dimensão
relação entre esses dois universos simbólicos? Como o consenso
valorativo por trás da desigualdade de fundo econômico jamais é ciiuenLõ por autenticidade, pelo menos do modo como ele propõe. K
explicitado, apesar de afirmado, não temos a menor condição de isto não porque acredite que um estudioso da periferia tenha que
responder nenhuma dessas questões seguindo o esquema proposto privilegiar o aspecto da igualdade — pelo óbvio abismo que separa
por Fraser. sociedades centrais c periféricas neste particular — cm relação ao
Sem dúvida, esse não c caso de Taylor. Reconhecimento, para complexo temático do respeito à diferença. Como uma sociedade
de, com o consenso contingente c cnlmralmenle produzido, é uma
7 ti -A CONSTTUJÇÃO SO CIAL DA SUBCIDADAN1A... Parte 1 - 7 9

desigual, multicultural c preconceituosa em todas as dimensões, o ma A a rtic u la çã o da h ie ra rq u ia o p a ca d o m u n d o social


sociedade periférica com o a brasileira, possui, também, os dois n a tu ra liza d o
aspcctps com o desafios simultâneos e inexoráveis.
A cscollia sc dá, em primeiro lu g a r jc l» meu convencimento de
que a articulação, no sentido tayloriano do termo, tio consenso valo­
rarivo c ailtur,tl implícito no reconhecimento a partir do tema da Para avançarmos na nossa discussão e tornar a reconstrução filo­
dignidade, rem vinculações ainda mais profundas cum o rema do sófica tayloriana utilizável para a análise empírica c sociológica em
respeito à diferença do que é normalmente admitido Em outras toda a sua riqueza, é necessário demonstrar de que modo a hierar­
■ - ■■■■■'. ■■ ■ ■■■■■■■'.o a subliminares que estão * i.v.o, quia valorativa subjacente a lógica de funcionamento c reprodução
de instituições fundamentais do mundo moderno se vincula e se
também leginmar a desigualdade entre homens c mulheres, ou enrre expressa cm signos sociais visíveis. A investigação do seu modo de
brancos e negros. H essa reconstrução que gostaria de tentar, a “aparecimento" é fundamental, na medida em que c csre dado que
seguir, partindo do rema do ancoramento institucional da hierarquia pode esclarecer tanto a eficácia de uma estrutura implícita e invisível
valorari va reconstruída por Tavior. enquanto tal, como também seu efeiro de “encobrimento" específi­
Em segunda lugar, apesar do enorme avanço social das sociedades co. o que permite perceber seu funcionamento ideológico como
do bem-estar na superação dos conflitos sociais mais virulentos, não mecanismo mascarador c legitimador dc relações desiguais.
estou convencido de que os patamares dc igualdade eletiva nessas RccapituJemos em linhas gerais o fio condutor do nosso argu­
sociedades sejam os desejáveis c creio também, com Pierre Bourdieu, mento até aqui. A rcconsfruçã»>tayloriana é fundamental para nossos
que apenas a ação de mecanismos sutis c tniransparcntes de domi­ propósitos uma vez que permite um acesso simbólico e cultural a
nação conseguem legirimar a perpetuação de dcsigu-tidades miquas csmituras reificadas que sc apresentam como valorativa e normativa­
também nestas sociedades. H a ação desses mesmos mecanismos,
mente neutras incorporando princípios gerais c abstratos de eficiência.
acredito, que permite naturalizar e consequentemente legitimar, tam­
Essa reconstrução implica também um modo completamente novo
bém nas sociedades periféricas, níveis abismais de desigualdade e
dc perceber a influência dc fatores culturais e .simbólicos. Ao contrá­
injustiça social.
rio de uma concepção csscncialista de cultura que a percebe como
< 'Considerar as sociedades centrais e periféricas como modernas, tuna entidade holística e indiferenciada, n exemplo das investigações
portanto, significa perceber que os princípios fundamentais de que supõem uma herança cultural secular pré-moderna para as socie­
organização social são — ao contrário das teorias tradicionais c
dades periféricas, como sc as mesmas fossem infernas a eficácia de
contemporâneas da modernização em todas as suas variações, inclusive
instimiçócs do peso estruturante dc mercado e Estado, temos aqui
as uda sociologia do hibridismo" tão ern voga — os mesmos, nos dois
um modelo de análise que permite perceber com o escolhas culturais
casos, ainda que com resultados e consequências distintas do ponto
e valorativas contingentes adquirem eficácia singular precisamente
de vista econômico, social c político, para cada um desses tipos dc
sociedade. ao sc travestirem. nos seus efeitos, dc princípios neutros, universais c
mcritocráticos
'•ínipcra-sc com isso também aquela forma de sociologia que
pressupõe a existência dc valores c instituições com o grandezas
80 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL [>A SUBCIOAOAN1A... Parte 1 - 81

independentes que se contrapõem mutuamente. Instituições passam a um conteúdo intrapsíquíco que sc contrapõe ao corpo com o um
scr grandezas perpassadas por valores c escolhas avaliativas c não “f antasma que habita uma máquina” (ajjhostin thc tm dm ie). Essa con­
pxlcm ser pensadas sem elas. A oposição entre o material c o simbólico cepção pode scr vista como inaugurando a concepção de mundo e
assim como entre marerialismo c idealismo se desvanece c perde o > hierarquia valorariva ocidental cm sentido amplo na medida em que
sentido quando percebemos, como Taylor o faz, que o que está cm passa a definir o caminho d1' salvação especifica mente cristão a par­
tir da herança agostiniana, Kla também parece ser a oposição binária
jogo são apenas diferenças nas formas com o sentido c significado
mais geral c mais abstrata no sentido de que já mencionamos. Afinal,
adquirem materialidade c eficácia. As idéias não se contrapõem a
não só a divisão entre as classes, mas também a oposição entre as
estruturas materiais de forma antagônica pelo simples lato de que
minorias sexuais, raciais c culturais e a culrura dominante vai assu­
essas cstnmiras materiais são perpassadas por idéias c valores que lhe
mir a forma da oposição entre mente e corpo. Entre as classes vai ser
dão. por assim dizer, “sangue c carne ';
*s. . , o capital cultural, o trabalho intelectual e mental das frações burgue­
' Para o selfinterprcton/i anim al que todos somos, ludo é tendenci- sas que irão sc opor ao trabalho muscular, manual e corporal das
almcntc perpassado por sentido e valor, c existem apenas camadas classes trabalhadoras como instância legitimadora do diferencial dc
distintas de significado, que se distinguem pelo grau de articulação/ salário c prestígio relativo.
inarticulação relativo, mas não existe uma oposição absoluta entre o Como fundamento da desigualdade de gêiienx também o homem
sentido c o não-sentido ou entre o valorativcico valorarivamcnte neu­ é percebido como a instância calculadora e racional por oposição â
tro, Seguir na sua radicalidndc esse appixmh uyloriano é jxrscguir a mulher definida corn<»o lugar do afetivo, do emocional c da sensua­
rysignificação dc sentidos e escolhas valorarivas cristalizadas e naiurali- lidade, da corporalidade enfim, numa diferenciação sexual que re­
■; ; ■ ' ■ produz os mesmos termos da oposição entre as classes. O branco e
social, é tornar dc n<>yç>criaçãr>cultural ç<uuingente e precária <>que j.i europeu, do mesmo modo, passa a ser percebido, no contexto da hita
havia se tomado,mais uma vez. natureza e mvtsihihd.uk . N< •entanto, intercultural, com o o índice das virtudes intelectuais e morais
essa missão nãoé fácil nem destituída de armadilhas. Primeira mente, superiores, enquanto o negro é identificado, como as mulheres, com
existe um enorme abismo.entre o nível dc abstração de uma recons- o çoqxiral e o sensual, ou seja, as virtudes ambíguas dos dominados.
m ição da hierarquia valorariva por trás do sclf c do racionalismo ' N o segundo instante da genealogia tayloriana, temos a constitui­
ocidental e a forma efetiva c concreta através da qual essa hierarquia ção do self c do racionalismo ocidental cm sentido estrito. A reforma
adquire eficácia na vida cotidiana dc dada sociedade específica. É protestante é, como jã vimos no capítulo dedicado a reconstrução da
precisamente no espaço desta distância, a meus olhos, que podemos teoria tayloriana, nesse contexto, o elemento decisivo.,'A reforma
inserir a temática da dom inação, ç da produção da dístinçãõ social a aprofunda e radicaliza a orientação intcmjlizadora e intcriorizadora
partir dos princípios gerais que infirmam aquela hierarquia específica. em todas as direções analisadas por TaylorjComo sempre, a compa­
ração com Max VVcbcr c muito elucidativo neste contexto. O apro­
F.m segundo lugar, parece existir uma hierarquia entre os pró­
fundamento c radicalização já mencionados tem a ver, para VVcbcr,
prios princípios que informam o racionalismo ocidental. A meu ver a
por um lado, com a consriniição dc uma personalidade c de uma
oposição mais fundamental e central c aquela entre mente e corjxi,
condução da vida culturalmcntc contingente que transforma a oposi­
cabendo ao primeiro a primazia. Esta é a concepção que Taylor per­
ção entre razão e sentidos ou entre mente e corpo no núcleo mesmo
cebe já em Platão, a qual adquire seu sentido ocidental específico, no
da noção dc virtude c reconhecimento social que estava destinada a
entanto, apenas com a virada agostiniana para o interior abrindo scr entronizada cm rodas as dimensões Ja nova sociedade que se
caminho para a noção ocidental moderna dc mente como locus d c ' . constituía.
1 t flu í*
82 - A C O N S T R U Ç Ã O SO CIAI D A S U R C T D A D A W A ... Parte 1 - 83

O Ocidente, na sua versáo cspcrificamcme moderna, nasce para l :oi, portanto, a radicalização do controle racional sobre, o
Wcbcr prccisamcntc a partir- da constituição de uma noção altamente com ponente vegetauvo e emocional "natural” do hom enrjassim
improvável dc “condução da vida” (Lebensführung) que ira secunda- com o a radicalização do principio da interioridade no sentido da
rizar todos os aspectos uadicionais. emocionais e sentimentais em constituição dc uma instância autocontroladora c autodisdplinadora
nome de um único principio guia, a partir do com|x»rtamento humano internalizada que permitiu a construção dc rodo um complexo insti­
em todas as suas dimensões deveria estar subordinado, fc esta "raciona tucional que depois se autonomizará a partir do efeito dc uma
lização da vida” (T^trrrhrfitiifnnJi-ifienin^' 1— 1«hensá segundo um prin­ lógica de fúncionamento própria! A consequência para Wcbcr desse
cípio tinico — a transformação da realidade externa em nome dc diagnóstico é sua visão do conlplcxo Kstado/mercado como pro­
princípios religiosos — que está por trás da constituição dc todas as duzindo aquilo que Tayior chama de “sejkes pontuais”. O mesmo
criações institucionais que singularizam o Ocidente, dentre estas, üpo dc indivíduo produzido anteriormente com base cm estímulos
acima de rudo, a constituição de mercado competitivo e Estado ideais de fundo religioso, passa agora a ser moldado plastica-
racional centralizado.2'; Esse princípio c culruralmcntc contingente m ente segundo as necessidades dos seus imperativos funcionais
e altamente improvável como o próprio Wcbcr comprova sohcja- pelas práticas disciplinadoras (Estado e mercado a frente). Não e
preciso religião protestante ascética ou sequer seus substitutivos
menre no seu monumental estudo comparativo acerca das grandes
funcionais para que exista sociedade moderna. O protestantismo
religiões mundiais/ünde resquícios mágicos e irracionais dificultou
foi importante apenas para a produção "espontânea” de uma nova
a construção dc uma noção dc personalidade e consequentemente de
visão dc mundo em todas as dimensões.
uma condução da vida racionalizada a partir de um princípio único,
e este c o caso cie todas as culturas e grandes religiões mundiais A partir do instante, no entanto, que o ancoramenio institucional
analisadas no seu estudo comparativo com a exceção do ocidente dessa visão dc mundo se consolida em práticas disciplinadoras que
anglo-saxónico, a íòrça paralisante e conservadora do tradicionali.s- irão abranger todas as dimensões da vida de todos os estratos sociais,
mo impediu qualquer forma de mudança social que, ainda longin­ essa base idcacional inicial torna-se supérilua. Estado c mercado, diz.
quamente, pudesse ser comparável a enorme revolução em todas as Wcbcr no final da ética protestante, produz o tipo dc inéivMuM que
esferas sociais do ocidente moderno. lhe convém: plástico, moldávei, dcxível, disaplmadu. auiocautraLldo,
responsável pocsà próprio, orientado para.o lúluro e para o cálculo
Também Weber, corno Tayior. portanro, percebe as idéias c
prospectivo. Estas são prccisamcntc as qualidades do selt pontual
visões de mundo como anteriores à constituição dc práticas instituci­ para Tayior. Ele é a incorporação de um tipo humano altamente
onais formadas a partir e apenas compreensíveis sob o panode íitndo improvável c contingente que, para o propósito dc dominar e
desse novo contexto simbólico c idcacional.’ transformar o mundo social c natural externo, instrumentalizará a si
.
Dc modo a que a condução da vida c concepção dc vocação que próprio.
mais se adapta ao capitalismo pudesse ser "selecionada”, ou seja, que É prccisamcntc essa heteronomia de tundoanemstadamos pres­
pudesse vingar na competição com outras, tinha ela que j i ter sido supostos da autonomia e na dignidade do agente racional que é o
obviamente construída, c na verdade não por indivíduos isolados, fundamentoda rrínca taylnriana ao .self pontual descontextualizado c
mas sim internalizadas c "portadas”, enquanto uma concepção de solto. Autonomia exige reconstrução narrativa da própria história,
mundo, por grupos dc seres humanos. E esta constituição que é o para Tayior, o que implica sc apropriar precisamentc do contexto
objeto a ser esclarecido.*2 biográfico c social a que sc pcrrence. O self pontual como fundamento
84 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBdDADAMA... Parte 1 - 85

do funcionamento do mercado e do Estado modernos não implica, A ideologia espontânea do capitalismo tardio
paia Taylor, portanto, um airtc com papás sociais definidos de forma
heterônoma. Apenas o ideal da autenticidade reria esse poder. "a Vol­
taremos ao ponto do expressivismo e do ideal da autenticidade mais Pretendo utilizar a riqueza da hermenêutica social tayloriana,
adiante. que pcrtnhc explicitar c rc-significar sentidos e hierarquias de valores
A grande vantagem da hermenêutica social tayloriana em relação cristalizados, para fins bem distintos daqueles que o próprio Taylor
ao diagnóstico webenano neste particular, manifesta-se, a meus olhos, privilcgiou/Aqui não mç interessa a dramatização da oposição prin­
no fato de que, ao contrário da pressuposição weberiana da entronizaçã» > cípio da dignidade vs princípio da autenticidade como o conflito
de um contexto objetivo de ufalia de sentido" a partir do ancoramento paradigmático das sociedades avançadas, por mais interessante e
institucional desta visão de mundo, Tavlor parte iio princípio -de que potencialmente rica essa idéia scia-dntcrcssa-mc. ançoqfl-ário. reik— r
CSSTTKWO-eOtttoXL a distancia entre principio da dignidade r principio da auienncidade
aocxpbcila tios de modo a um ai perceber conu* ambos servem como índice e funda -
princípios que o informam em ultima ímtánou Enquanto Weber mento da distnu,.! <orno enrrr mi­
parte da tese da reificação c coisificaçáo do mundo social que havia
sido criado por princípios morais explícitos caso clássico do para­ O meu interesse e. portanto, tentar chegar ao fundamento da
doxo das consequências que para ele habita todas as formas de ética
questão da desigualdade e de como ela pode ser legitimada c tornada
da convicção — implicando, inclusive, que a falta de sentido que se
invisível pela ideologia espontânea dii capitalismo tardiOj seja ele central
segue a este estado de coisas, condiciona, também, unia falta de
ou pcriíerícõ. Ao contrário de apenas pressupor a existência de con­
liberdade, pelo amesquinhamento das possibilidades de orientação
sensos culturais por trás da distribuição desigual de bens e recursos
alternativa da vida no novo contexto institucional — o tema clássico
escassos, como escreve Frascr, conforme já foi visto, imporia explicitai:
do final da ética protestante — Tavkrr. no conmirHv, esboça uma teom
que consenso é csrc, «piais são seus princípios fundamentais e de que
alternauva que permite um diagnóstico muito distinto. Sc o scnridnr
moda OS. mesmos adquirem maruruiidadc na cada cotidiana e con-
» hierarquia valoraüva quequssa a hahiror as novas práticas imriuiei'-
cTctade.Ujclusnoscnquaiua sigaos sociais visíveis para todos.
on-ais fundamentais do Ocidente encontra-sc apenas uurticulada-e
inaudível, é sempre -possível reviví ficá-la r desnaturalizá-la precisa Tsse passo exige a considcraçãi >de <lutros autores além de Taylor.
mente. se.lugrarmo*'recuperar seu xenmio original e re-aruculá-lo. Enquanto, a partir da reconstrução tayloriana, é possível mostrar como
uma dada e contingente hierarquia valòrãriva permite construir um
horizonte cornum, que, de forma opaca c intransparente, a partir de
sua institucionalização em práticas disciplinadoras, permite vincular
subjctivatnmtc todos os envolvidos no processo de classificação social c
na luta por recursos escassos, o passo seguinte é vincular essa hierar­
quia a signos sociais visíveis que espelhem e materializem essa hie­
rarquia na vida cotidiana. Isso não é leito por Taylor por razões já
discutidas acima. Mas acho que c possível reconstruir os princípios
da dignidade c da autenticidade, enquanto manifestações das duas
86 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA 5UBCÍDADANTA.., Parte 1 - 87

fontes morais cspccificamcntc modernas que se constróem a parrir por Taylor, ajuda a esclarecer precisa mente o calcanhar de Aquiles dc
das oposições razão/oorpo c cxrcrior/intcrior e que logram ancora* todo o argumento dc Bourdieu. Afinal, este autor, ao sc concentrar
mento institucional progressivo na alta modernidade, enquanto lluv- unicamente no aspecto instrumental da disputa por pider relativo
damento mesmo da desigualdade tomada legítima e invisível. entre as classes em luta por recursos escassos, não percebe que csra
mesma lula sc dá cm um contexto intersubjetivamente produzido, o
O autor-chave para esse desiderato, cuja obra permite uma notável
que mantem a sua contingência e com isso a necessidade de seu
relação dc complementaridade com a reflexão ravloríana, c Pierre
aperfeiçoamento critico, mas retira, ao mesmo tempo, o dado arbi*
Bourdieu. A sociologia deste autor parece*me a perspectiva atual
que permite reunir e atualizar, para o estudo dc sociedades modernas trário de mera imposição de poder do mais forte.
contemporâneas, várias das idéias que Wcher, Marx c outros clássicos A teoria d<>reconhecimento, como desenvolvida por Taylor. pode.
utilizaram para a análise dc sociedades tradicionais c da primeira nesse sentidi >. dar c<>ma d(>mecanismo generativo do “conscnso m>r
modernidade, permitindo, como nenhuma outra dc meu conheci­ inativo míiiiipo” compartilhado intersubjcTvamcntç e qnc, na realidade,
mento, uma análise das sociedades contemporâneas sob o ponto dc contcxtualiza e filtra as chances relativas dc monopólio legítimo na
vista da ação social e da luta dc classes no contexto ideológico especí­ distribuição dos recursos escassos pelas diversas classes sociais cm
fico dessa fase da modernidade tardia sob a égide do Wélfare State. disputa em uma dada sociedade, mecanismo este scaimlarizatloc nü<i
devidamente temarizadu por BourdioT.Apt-saV dà sua umtatéfáFJãde,
A união das pcrspccuvas dc Taylor e Bourdieu parece-mc interes­
no" entanto, a contribuição de Bourdieu para uma compreensão da
sante sob vários aspecto^ Ambas as perspectivas me parecem antes dc
forma ideológica específica à modernidade tardia, seja central ou peri­
tudo complementares no sentido dc desenvolverem aspectos que
suprem deficiências importantes unu da outra. Sc falta Taylor férica, parece-me fundamental.
Luna teoria contemporânea da luta dc classes, na medida cm que dc O grande mento da sociologia crítica de Bourdieu parece me
tala do ponto de vista do intelectual norte-americano ou europeu do consubstanciar-se, vale a pena repetir, na destonstrução sastemauca
final do século XX, quando as sociedades centrais, supostamente da ideologia da igualdade que mhmh dc base ao consenso social e
pacificadas intemamenre dos conflitos de classe mais virulentos. políucu das sociedades desenvolvidas do Ocidente. J?ara essas socie­
estariam entrando em uma n<iva fa.se dc rcarticulaçáo das suas lutas dades que hicrarquizam implicitamente o tempo rodo, mas possuem
(Hilíricas,24 temos cm Bourdieu uma sofisticada análise da forma explícito “horror à hierarquia” c que rèm na igualdade seu valor
singularmente opaca e rematada que a dominação ideológica, mas- máximo,2* essa dç$consrrução equivale a uma “ferida narcísica fun­
carando seu caráter de classe, assume na modernidade tardia, damental". Isso porque a ideologia da “hierarquia legítima”, ou
perspectiva de Bourdieu nus permite, acredito eu. ir além dc km seja, aquela marcada pelo desempenho diferencial e meritocracia c,
í (Wft no d< rm n beçhm n to que assume, Jjel/i menos undm m lnm U e> t\mo puruuiLO, sc reportando a “qualidades inatas dos indivíduos”, sc revela
realidad e efetiva a ideolojjia da jumaldade prevalcccnrc nas sociedades como pré-o instruída e pré-traçada por origem e herança lamiliar
ca.ur.ais du Ocidente. Como espero demonstrar, esse ponto de partida como em qualquer sociedade pré-moderna.
parece-me também fundamental, ainda que com modilkaçóes impor­ N o entanto, as sociedades, sejam as avançadas do Ocidente,
tantes no seu insirument.il teórico, para uma an.ili.se da modernidade .sejam as periféricas, não se equivalem. Hxistcm dimensões de desi­
periférica. gualdade e de (não) reconhecimento social que variam c essa variação
Ao mesmo tempo, por outro]ado, a genealogia da hierarquia im­ é central para os objetivos dc uma sociologia comparativa crítica da
plícita que comanda nosso cotidiano, desenvolvida de forma soberana condição periférica. Para que possamos avançar nesse desiderato,
88 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBCIDADANIA... Parte 1 - 89

que seguramente não era o de Bourdicu, faz-se necessário a crítica que permite se pensar em um “nam ier” eutre o refletido c o não-
interna de alguns de .seus pressupostos. Antes de nido, parece-me rcflctído. Afinal, se existe algo que possa ser articulado é porque
criticávci a radical çontcxtualização do seu argumento, im ped in d o existe algo para além 3 o puro habitus ii refletido. J ’or conta disso, a
uma abordagem genética dos princípios o peradores da distinção aus^nclallêssã dimensão na reflexão de Bourdicu faz com que a contra­
social. lissa afiordagcm genética é, no entanto, fundamental pela posição em relação à “grande ilusão” do jogo social só seja possível
dimensão processual que instaura c, a partir dela, do enfoque com ­ reativamente, sem o questionamento das regras do jo g o enquanto
parativo em rermos de variações alternativas. tais. Kssa posição reativa advém da concepção de Bourdicu, pensada
contra o subjerivismo que reduz o espaço social a um espaço de inte­
Um asjxxn; quase não desenvolvido por Bourdicu,. o qual é apenas
rações conjunturais, de que roda a estética e moral (os dois rermos
mencionado cm várias passagens um tanto apressadamente, é a qycsráo
vêm sempre necessariamente juntos) de classe se contrapõe objetiva­
essencial dos
mente a um seu duplo e contrário, mas nunca em relação a um patamar
todo o conji mto de pressupostos P,tra a atribuição relativa de nrcsiíeio
compartilhado de regras comuns.1
cm uma sociedade- Cqtnp Bourdicu nega qualquer autonomia para o
juízo cstctico c por extensão ao julgamento moral, percebido sempnc Esse é o terreno onde as contradições da análise de Bourdicu se
cm amálgama ao anterior, resta apenas o aspecto instrumental da luta mostram mais facilmente. O raciocínio da lógica instrumental, que
imersa na “grande ilusão da vida social” produzida pela crença dos reduz todas as determinações sociais á categoria do poder, mostra-se
sujeitos na validade das regras que os submete.-’* Noeutantu, a fonte aqui em toda sua fragilidade, IS<> limite, toma-se incompreensível
do processo de distinção é pensado por Bourdicu em termos muiro por que algumas esrratégi as st iciais e alguns “blefes” dão ccrtt >e <mm is
semelhantes a forma como Tavlor percebe a hierarquia valorativa, não. Para sairmos da absoluta arbitrariedade nessa dimensão da aná­
também percebida pelo primeiro como basicamente escondida e não- lise toma-se necessário pleitear-se “alguma coisa” para além da mera
refletida, regendo a condução de nossa vida cotidiana c a atribuição illusio do jogo social. Como aponta Axel llon n ct h, a competição dos
de valor relativo que conferimos aos outros. diversos grupo* sociais enuc si só tem senrido se pressupusermos a
lHra 06 dois autores, existe um processo de sublnnaçãt* dos sen­ existência de interpretações conflitantes acerca de um terreno comum
tidos marcada j*ela distância em relação à nossa natureza animal e ás
nossas necessidades primárias, o qual e a pedra de toque de ioda É pela falta dessa dimensão que não fica claro as razões pelas
noção de «ipcnoridade moral ou hdeza estrrica, Essa hierarquia é a quais uma dada classe dirigenre tena supostamente “escolhido" pre-
base da configuração moral do Ocidente, para Taylor, do mesmo cisamcnte tais e quais objetivos e não outros quaisquer. D o mesmo
modo que, para Bourdicu, o habitus que se forma por oposição à mode»nã< >se explica também por que se dão mudanças no “comando”
classe trabalhadora é também um habitus da ordem c do autocontrole do processo social com o, por exemplo, a substituição da aristocracia
dos instintos, de modo a marcar a distância cm relação ao “bárbaro” pre-moderna pela burguesia no alvorecer da modernidade. A análise
pelo ascetismo eletivo (burguês) da regra auto-imposta. concreta de como estes dois pontos de partida teóricos podem servir,
Essa bela idéia do habmrs funcionando como tios invisíveis que combinadamcntc, pat a uma concepção alternativa da modernidade
ligam pessoaspot .solidariedade e identificação e que as separam por periférica, será objeto, logo após a reconstrução histórica do processo
preconceito* o que equivale a uma noção de coordenação de ações exógeno de modernização brasileira, que pretendo utilizar como ilus­
sociais percebida com o inconsciente e cifrada, impede, no entanto, a tração empírica da minha tese teórica, da terceira parte deste livro.
riqueza de im u idéia fundamental para Taylor: a noção de “articulação”
P a rte 2

A CONSTITUIÇÃO DA MODERNIDADE PERIFÉRICA


A sin g u la rid a d e da "n o va p e rife ria "

A discussão na primeira parle deste livro concentrou-se na re­


construção da genealogia c da dinâmica específicas da “ideologia
espontânea do capitalismo”, a partir da lógica de reprodução de suas
instituições fundamentais: mercado comj>etiuvo e Estado racional
centralizado. G>mo vimos, essa lógica é ltindamcntal para a percepção
dos conflitos sociais típicos tanto da modernidade central quanto da
periférica, embora com consequências muito diversas cm um caso e
no (mtro. N<>entanto, o dcsvclamcnri>da lógica da dominação social
opaca subjacente à reprodução de mercado c Estado não dá conta de
todos os desafios para a reconstrução dos mecanismos que naturalizam
relações de desigualdade no centro e na periferia. Sc apenas Kstádo c
mercado agissem sem pcias como instituições estruturantes da dinâ­
mica social, as diferenças entre as sociedades concretas, tanto entre
as sociedades centrais entre si quanto entre as periféricas, seriam
mínimas.
T Sabemos, no entanto, que as sociedades modernas, apesar' de
uma serie de características comuns, que refletem efetivamente a
enorme eficácia social de instituições fundamentais como mercado e
Estado, com todo seu enorme poder consumidor c regulador da vida
social cm todas as suas dimensões, também são diferentes entre si em
medida nada desprezível, Com o explicar isso? Acho que um bom
caminho c fornecido pela noção de "imaginário social”, trabalhada
em um dos textos mais recentes de Charles Taylor acerca da temática
da autocompreensão da modernidade cm suas diversas variações.
Esse c um rema que tem se tornado, nos últimos anos, um
debate candcnte nas ciências sociais.1 Também este aspecto pode e
geraimente é interpretado dentro do contexto limitador das teorias
csscncialistas da cultura que vimos na introdução a este livro. A pers­
pectiva tayloriana, por evitar a oposição essencialista entre “matéria”
c “valores” ao perceber nessa oposição apenas gradações distintas de
z
96 - A CO N St KUÇAO SO CIAL DA S U B O D A D A N !A ... Parte 2 - 97

que, muitas vezes, pela correspondência com a percepção inarticulada modo a ressaltar o potencial revolucionário c transformador da
de preconceitos do senso comum, é precisamente uma das principais primeira — a partir da predominância da religiosidade ética sobre a
razões do seu poder dc convencimento. riiualizaçàp mágica — cm contraposição à tendência conservadora da
Interessante é perceber que, nas sociedades periféricas dc tipo Última.60 qui nos interessa apenas ressaltar que, tanto nas sociedades
novo com o a brasileira, ou seja, naquelas formações sociais que, ao nucleares do ocidente quanto nas grandes civilizações ou culturas
contrário das grandes civilizações ou grandes religiões mundiais do orientais, uma concepção de mundo dc fundo religioso com conside­
Oriente como a hindu e a chinesa, estudadas por Max YVcbcr na sua rável grau dc articulação e abstração regulava e legitimava o contexto
sociologia das religiões, ioram constituídas enquanto sociedndês tradicional nesses grupos de sociedades em todas as suas práticas
complexas apenas a partir do influxo do processo de expansão do institucionais c dimensões da sociabilídade J.Eoi isso que fez com que
raeionalumo ocidental, o tema da “esqucmatiz.ayio adquire umn a dominação inglesa na Índia sc defrontasse com dificuldades consi­
singularidade toda própria. Não fazendo parte daquelas sociedades deradas quase intransponíveis para a consolidação do capitalismo,
como os EUA, Inglaterra, França ou Alemanha que formaram o dificuldades essas muito menores, para Wcbcr, cm uma sociedade
núcleo do racionalísmo ocidental nas .suas múltiplas facetas, rendo não axial assim como a brasileira — como a japonesa.'' Foi essa
recebido, ao contrário, o iníluxo dessas sociedades e de seus agentes mesma influência renitente do passado que levou Eiscnstadt a perceber
de “fora para dentro", essa “nova perdería" e. na verdade, tomada de as continuidades de fundo entre a prática do comunismo chinês
assalto — em processo histórico que veremos em detalhes a seguir contemporâneo com a herança secular confúcionista.*
(xii uma culnira material e simbólica cujo dinamismo e vigor não Em suucdadcs, que estamos chamando dc “nova paifcria”,com o
deixaram muito espaço para compromisso ou rcaçao a brasileira, essa visão dc mundo articulada institucional c simboltc.v
H á que se acrescentar a este fato o dado também fundamental rqçnre cra inexistente. A religião jamais chegou a converter-se em
da diferença entre uma “nova periferia", formada enquanto conjunto uma ttíera motai autouoau no Jbiasú colonial, como veremos mais
de sociedades complexas a partir da expansão ocidental, c uma “vcllia detalhadamente na exposição que sc segue ’ A religiosidade ética,
pcufèlU-éí sob o ponto de vista “neutro" — 11a medida cm que isso c cujos portadores eram os missionários jesuítas, teve eficácia Ioçalizá-
possível — com relação a valor da sua relação ris a vis o ocidente da e transitória nos enclaves dedicados à conversão do gentio, Dc
moderno) resultado de culturas milenares que haviam $ç desenvolvido resto, a çapel^i cra m ero prolongamento do poder do senhor dc terras
em grande medida dc forma paralela ao Ocidente. Essas últimas, c escravos e amesquinhou-.se numa religiosidade mágica de culto lami-
cuja religiosidade ética no sentido dc Max Wcbcr — ou culturas axiais liar aos antepassados.10A legitimação das relações hierárquicas c. desi­
no sentido de Shmuel Eisenstadr* — implicam uma concepção de guais cra conseguida a custo da violência física aberta, no pior dos
mundo dual, ou seja, a existência dc uma esfera moral e simbólica dc casos, ou da violência psíquica c encoberta da cooptaçáo implícita na
fundo religioso autonõma cm relação às esferas profanas, a qual logra relação de dependência pessoal, nos outros casos, como também te­
sc institucionalizar e perpassar rodas as esferas da vida legitimando-as remos ocasião dc discutir com mais vagar a seguir.
c conferindo-lhes estabilidade c permanência. (> “eonw d e fadas” soctologico. que supõe a-existência de uma
I-. ncs.sc sentido que VVcbcr sc impressiona com a inigualável religiosidade catoúca opetante associada a um patrimonialisnv>pt>litico
ausência milenar, 11a sociedade hindu, de qualquer forma expressiva organizado no Rrâsil colonial, n ãoc afienas um cuntra-scnso lustonco.
de transformação social.’’ Aqui não nos interessa diretamente <1tema Ele é também a base para a suposição de um a ern o aiavrsuio persona*
weberiano da comparação entre religiosidade ocidental e oriental, de lista etàmilisia, dominante cm suas infinitas variações hoje cm dia
98 - A CONSTRUÇÃO SOCTAI DA SUBCIUADAN1A... Parte 2 - 99

c .sua variação “hibrídista” cjuc csri na m oda" — seja no horizonte Uma especificidade importante da modernidade periférica —
poriterico, seja na reflexão internacional acerca da pcuiena, que Mipnc da “nova periferia* parece-me precisamente o lato dc que, nestas
a continuidade eterna dc relações pessoais c íanulAúcas mesmo em sociedades, as ~praric*r modernas são antenores às “idéias' modernas.
sociedades periféricas complexas c dinÂnucas uim o a brasileira. Assim, quando mercado e Estado , ainda que dc modo paulatino,
Na verdade, g cultura material c simbólica que existia no KiasH fragmentário e larvar, são importados de fora para dentro com a
europeização da primeira metade do século XIX, inçxisrc o consenso
cokmial era rasteira c pouco articuladas c esta parece-mc a razac»
valorarivo que acompanha o mesmo processo na Europa e na América
profunda para que o maior conhecedor do século XfX o século da
do Norte. Inexistia, por cxempK >, o consenso acerca da necessidade de
europeização — entre nós, Gilberto Frcyrc, tenha afirmado que, nas
homogeneização social c generalização do tipo dc personalidade e de
cidades mais sujeitas ã influência européia, ao fim dos primeiros 30
economia emocional burguesa a todos os estratos sociais, como
anos dc europeização, roda a hierarquia valorativa em todas as
aconteceu em todas a.s sociedades mais importantes da Europa c da
dimensões sociais havia sido posta de cabeça para baixo. J á cm
America do Norte,
1 8 4 0 , como iremos ver, tudo que era associado à era colonial e à
Em rodos os países que lograram homogeneizar um tipo humano
influência portuguesa passa a ser tido como de mau gosto, e tudo que
transclassista, cscc foi um desiderato perseguido dc forma consciente
cra inglês ou francês, ou seja, Ludo que era já burguesamente europeu,
e decidida c náo deixado a uma suposta ação automática do progresso
era tido como dc bom gosto e desejável, J^so sem dúvida não signiíica
econômico] OsjimtF&rrnknmçfir?dos séculos X V III e XIX nos EUA,
que não tenha lutvido nenhuma “csqueinanzação" da influência domi-
lograram levar á fronteira e impor ao sul escravocrata a mesma
name européia no .sentido taylonano. Mas as consequências práticas c
semente moral c ferv eirosamente religiosa das 13 c<ilónias originais.12
teóncas da mesma são profundamente distintas do “conto dçjádas As/ww /.sirx inglesas podem também ser compreendidas como uma
sociológico1’ da eternidade da influência pré-modema entre nós. forma autoritária dc forçar os inadaptados da Revolução Industrial à
Acredito que esre ripo de esquemanzação cspecdiko dc sociedades adoção dos requisitos psieossociais da nova sociedade que se criava.
da “nova perdería’’, como a brasileira, pode ser melhor aimprcendklo Também na França, como mostra cxcmplarmente o livro clássico dc
se a encararmos meni »s como uma “positividade” no sentido da herança Eugen Wcbcr, cujo título Feascants mto Frcnchme» já denota o pn iccsso
pré-modema toda poderosa das teorias da modernização tradicional dc transformação social dc Iroiwigeurização que é o pressuposto da
e do hibridismo contemporâneo, o mais como uma •"neg.uividade”, eficácia social da noção dc cidadania.15
ou seja, como uma ausência dc certas precondiçoes existentes n» Essas “idéias* representam consensos valorativíxs c religiosos
modernidade central. Autores como Max Weber e Charles Tavior, refletidos ç consucnres que acomponlmamp a n ftmsu o processo dc
como vimos, enfatizam a circunstância de que, nas sociedades da consolidação do capitalismo na esferas econômica (mercado compe­
modernidade centralj as idéias são anteriores as práticas institucio­ titivo) c.polítka testado racional centralizado). Náo só a classe supe*-
nais e sociais. Creio que essa idéia c verdadeira, c que esta crença rior, a burguesia, mas lambem os setores populares c subalternos
inspirou estes dois autores a procurarem numa hermenêutica genea­ lograram articular sua visão peculiar a partir de heranças religiosas c
lógica do sentido, já tornado opaco pelas práticas institucionais disci- ailtuiais compaitillvadas. A influência do merodismo na cultura política
plinadoras, as fontes cognitivas e morais subjacentes ao nacionalismo das classes trabalhadoras inglesas, por exem p lo," ou mesmo a
ocidental. necessária intcnializaçãô do rema protestante da revalorização
do trabalho produtivo c manual para que possamos compreender
100 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA SUBCIDAOANIA... Parte 2 - 101

a cxcraordinaria eficácia mobilizadora da teoria do valor-trabalho espécie de hiperecunonucismocm que roda a resolução de conflitos
marxista. A noção de trabalho abstrato mtercambiável só c possível e contradições c esperada de uma ação unilateral do progresso econô­
em um contexto cultural que já havia transformado a ética aristocrí- mico, inclusive de aspectos sociais fundamentais como a generalização
tica do ócio ou do trabalho contemplativo em anáicrna c localizado do ripo humano adequado aos imperativos <lc mercado e Estado,
no trabalho simples, cotidiano c pjoduüvo o fundamento da atribuição aspectos estes que torna possível a expansão do stams intersubjeti-
de valor e reconhecimento social, j vamente reconhecido de cidadão. Voltaremos a este tema adiante.
Hòia c-tí importância. fundamental da existência ptevia «Je um Por enquanto c importante apenas deixar claro a especificidade do
contexto cognitivo <•moral explicito, articulado e autonomo que possa processo de modernização da “nova periferia”, já que tanto a teoria
se contrapor, limitando ou estimulando, a lógica própria dos impem da modernização tradicional quanto os “hibridistas” contemporâneos
rivos hino*miais que emanam de praticas instiLucionais consolidadas. não percebem este faro fundamental.
Na sociologia das grandes religiões mundiais weberiana. o estímulo No entanto, se a “esquematização” da nova realidade institucional
dessa esfera moral aurimoma foi positivo, nas sociedades centrais do moderna na “nova periferia” não possui, por razões históricas e
Ocidente, cm direção a quebra com o iradicionalismo econômico e
estruturais, a mesma eficácia e amplitude do mesmo processo seja na
com hierarquias naturalizadas, cnquaiuoque a eficácia da esfera moral
modernidade central, seja na ‘Velha periferia”, isto, sem dúvida não
5 'fligiosa no Oriente foram limitantes destes efeitos revolucionários.
significa que o contexto.pré vioà modernização, apesar dc compara-
Nas sociedades da "nova periferia', como a brasileira, não existia
rivamente raso c superficial pelas razões aludidas anteriormente, não
nem um nem outro posto que inexistia esfera moral autônoma genera-
possua qualquer eficácia} Ela c por cerro infinitamente menor do que
Irada e consensual de qualquer ripo. Incxistiu, portanto, as limitações
imaginam os teóricos do personalismo dc ontem c de hoje, mas ela,
c barreiras profundas que VVcber percebia no caso da Transplantação
ainda que sobredeterminada por mecanismos modernos e impessoais,
do capitalismo para a índia, por um lado, mas também inexistiu o
dc fato, existe. Acredito eespe-ío demonstrar essa hipótese dc trabalho
potencial generalizador, abrangente e indusivo existente nas sodedades
centrais do Ocidente.. no capítulo imediatamente seguinte, que esta continuidade tenden
ci a! mente se concentrou nos setores “não cunqieizado.s” do singular
processo dc modernização da “nova periferia". E a genese c o desen­
institucionais se impõem sem o lastro ideaTc valorativo que lhe volvimento atual deste processo que veremos a seguir.
permita articulação, rcílexividadc c consciência de longo prazo dos
seus dilemas e contradições, cabe como uma Inva na definição do pm-
cesso de modernização brasileiro enquanto um;l revolução burguesa
encapuzada, como verrmiis rm florestan frrnandes, <>uenquanix>uma
. revolução passiva, curno veremos em VVcrneck Vianna, autores que A c o n s t it u iç ã o do p o d e r p e s s o a l: p a tr ia rc a lis m o
iremos analisar, E que essas praucas institucionais passam a produzir
e e s cra v id ã o
suas consequências estruturais e funcionais de modo molecular,
caiustvdo, mascarado c até ímpcrcepnvd, ás vezes, preasamente
pcLi ausência do componente comparativamcnrc nrais explicito, cons­
ciente c refletido como foi o caso das sociedades ocidentais centrais:
Um argumento fundamental para os defensores da tese do perso­
Esta não é apenas uma diferença de superfície. Ela implica, por nalismo e do culturalismo esseneialista nas suas versões tradicionais e
exemplo, em uma sociedade como a brasileira, a hegemonia de uma contemporâneas é o dc que o Brasil sena uma continuação cultural dc
102 - A C 0 NSIRU ÇÃO SOCIAL OA SU BO O A D A M ÍA ... Parte 2 - 103

Bnrtugal. Afinal dc lá viríam o patrimonialismo transplantado, como abomináveis cometidos em seu nome”. Esta, sob vários aspectos,
etn Raimundo Faoro, ou o homem cordial e familistieamente emotivo nobre figura pública não levou em conta o lato de que, seja na vida
dc Sérgio Buarque. Também em Gilberto Frryie temos a afirmação da individual, seja na vida coletiva, a real superação de traumas c crises
continuidade essencial com Portugal como a base do seu projeto dc identidade se resolve estimulando-se a “lembrança” c não o “esque­
ideológico da singularidade universal do legado luso-brasilein*. O cimento”.17
lugar de Frcyrc nesta problemática c interessante, já que cie é, ao N o entanto, a surpresa maior c não enconu ar, na imensa maioria
mesmo tempo, talvc7. nosso pensador social mais talentoso, inovador dos nossos melhores iutétprctçs .ç. pensadores, sociais, o tema da
c instigantç^ por um lado, c o nosso maior ideólogo c mistificador, escravidão como o tio condutor da análise,.1’1 Sc não estou sendo
por outro.íAcrcdito numa hipótese de trabalho que pretendo discutir injusto, o tema da escravidão só atinge este status na obra de Joaquim
apenas mais tarde, quando traramios da singularidade da constituição Kabuco e do próprio Gilberto Frcyrc. Este aspecto não deixa de ser
da N atíaa Ruilding brasileira, que a tese da continuidade essencial sintomático, afinal rrara-se da única instituição que logrou, cm uma
entre Brasil e Portugal serve para cie como fundamento maior para a nação tão jovem, quase 40 0 anos de longevidade e uma penetração,
proposição de uma “fantasia compensatória”, ls que será transformada ainda que sol» formas peculiares em cada região, que abrangeu toda a
cm ideologia dc Estado a partir dc 1931^ extensão de uma enorme massa territorial. Foram os interesses organi­
camente articulados à escravidão que permitiram a manutenção da
No entanto, ele próprio nos lega, na dimensão mais descritiva
unidade do vasto território brasileiro e foi também a escravidão, como
de seu argumento, importantes pontos de partida para a construção
veremos cm mais adiante, que determinou, inclusive, o modo dc
da hipótese contrária, ou seja, para a construção da rc.sc da singulari»
vida peculiar do homem livre no Brasil.
dade da formação social brasileira ris a vis a metrópole européia! É
Nãp levar cm conta a importância desta instituição na especifi­
precisamente esta singularidade que mc parece ser característica do
cidade e na singularidade* vis a ris a metrópole portuguesa, do ripo
contexto maior que abrange a "nova periferia”, embora com espcci-
Je sociedade que aqui se consumiu, c imaginar que iníluenrias culturais
ficidadcs nacionais importantes. Nesse sentido, o meu uso dc sua
se dão pelo mero transporte de indivíduos, sem levar cm conta o
extensa c*bra será guiado pela tentativa dc Frcyrc centra Frcyrc, ou
contexto social c institucional onde os mesmos sc inserem. Com o
seja. pretendo usar aspectos da sua obra na dimensão descritiva sem
espem dcm< instror. ainda que esquematicamcntc, cm breve, o contrário
necessariamente compartilhar com as generalizações e avaliações que é (» que parece ser verdade, rendo agido as condições sociais c
o próprio Frevre retira deste mesmo material empírico. Pretendo institucionais inéditas no sentido de dotar o comportametiio destes
construir a tese da singularidade da formação social brasileira — indivíduos portugueses, que comandaram o processo de colonização
sempre no sentido dc oposição à tese da continuidade orgânica com nos trópicos, de um sentido novo e peculiar.
Portugal cspecialmcnte peFa ênfase na importância da msrimiçáo
Com o Frcyrc declara nas primeiras páginas dc Casa qrandc &
ila escravidão entre nòs, instituição esta meramente jxmntal c h i s t o r i ­
senzala, cm 1532, data da organização “econômica c civil” do Brasil,
camente Lnuuda em Portugal, como de testo cm toda a Kumpn.u
os portugueses, que já possuíam 100 anos de experiência colonizadora
Existe algo de sinti «maticamente psicanalttia»no “esquecimento” em regiões tropicais, assumiram o desafio de mudar a empreitada
brasileiro cm relação à escravidão. Isto não apenas no conhecido colonizadora comercial e extrativa no sentido mais permanente e
episódio dc Rui Barbosa, ministro c figura pública do maior relevo estável da atividade agrícola. As bases dessa empreitada seriam; no
da República Velha (1 8 8 9 -1 9 3 0 ). que mandou queimar iodos os aspecto econômico, a agnculnn a tia monocultura-tascada no traba-
arquivos relativos á escravidão sob o pretexto dc “esquecer os crimes jho rvrrnru e no aspecto social, a lanulia patriarcal fundada na união
104 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA 5UBCID ADANIA... Parte 2 - 105

dopwm guè. c da mulheríndia. Na política e Ha cuJLura essa sociedade de todo o processo, c é dclc a supremacia militar. N o horizonte do
estaria fundamentada no paruculansmo da família patriarcal-para culturalismo essencialista de Freyre, se esse elemento a ral ponto
Gilberto Frcync. O chefe da família e senhor de terras e escravos era dominante não carregasse cm si próprio os germes da cultura que
autoridade absoluta nos seus domínios, obrigando até “ Kl Rei” a aqui iria sc desenvolver, toda a sua argumentação perderia em plau-
compromissos, dispondo dc altar dentro de casa c exercito particular sibilidadc.
nos seus territórios.'*
Mas o português é predsamente a figura do contetnporizador,
( ) pamarcalismodc que nos diz Ftrvre tem esse sentido de apontar por excelência, e é exatamente nesse traço da predisposição ao com­
para a extraordinária influencia da família como alfa e òmega da promisso que ele sc diferencia do colonizador espanhol e, também,
organização social do Brasil colonial. Dado o caráter mais ritual c especialmente do anglo-saxão nas Américas. É o português o portador
litúrgico do catolicismo português, acrescido no Brasil do elemento da característica mais importante da vida colonial brasileira: o demento
dc dependência política c econômica cm relação ao senhor de terras da “plasticidade”, do homem “sem ideais absolutos nem preconceitos
e escravos, o patri arealismo familiar pode desenvolver-se sem limites inflexíveis”.11 E essa “plasticidade” que ira propiciar a extraordinária
ou resistências materiais ou simbólicas.1,A família patriarcal como influência da cultura negra nos costumes, língua, religião c, cspccial-
que reunia em si toda a sociedade. Não só o elemento dominante, mente. numa forma de sociabilidade entre desiguais que mistura
formado pelo senhor c sua família nuclear, mas também os elementos “cordialidade”, sedução, afeto, inveja, ódio reprimido, ressentimento
“intermediários constituído pelo enorme número dc bastardos c e praricamente todas as nuances extremas da emoção humana.,È
dependentes, alem da base dc escravos domésticas c, na ultima escala exatamente no ponto de encontro do português c do negro que Frcyrc
da hierarquia, os escravos da lavoura. cria o drama social do Brasil colônia. O ponto prublcinárieo C ã
F. precisamente nesse ambiente saturado dc paixões violentas afirmação simultânea de desigualdade despótica, que a relação escravo/
que surge o tema da “ambiguidade” e da "imprecisão” do argumento senhor pnipicia com intimidade c até, em alguns casos, atérividade ç
lreyreano apontado por tantos autores. A questão é real e significativa comunicação entre as raças c çylturas. Nesse ponto, urge a discussão
rclcrindo-.se à forma peculiar cm que uma sociedade singular vinculava do que afinal constituiría a especificidade da escravidão brasileira.
umbilicaJtnenrc despotismo c proximidade, enorme distância social c De onde ela vem, como e por que da sc distinguiria dc outras socie­
intima comunicação. Acompanhemos, antes dc tudo, a forma como dades escravocratas.
Gilberto Frcyrc monta a sua versão do encontro cultural. Esqueçamos, A raiz da ambiguidade, acredito, reside no fato dc que Frcyrc,
|Mir um instante, o índio, cuja influência foi importante mas datada, na realidade, possui duas visões distintas da escravidão brasileira que
tendo sido decisivo no período imediatamente inicial de colonização sc superpõem continuamcntc. K urgente distingui-las e separá-las para
c desbrava mento d<»s sertões,10e nos concentremos nos dois elementos chegarmos ao que pode ser interessante manter, a partir dc suas inte­
principais e mais permanentes do patriarcalismo brasileiro: o portu­ ressantes generalizações, c o que devemos descartar como matéria-
guês e o escravo negro, prima dc uma mitolc>gia nacional ideológica e apagadora das diferenças,
Toda a análise de Casajpwnie & senzala c dependente c deu irrente D fio condutor da argumentação desenvolvida por Gilberto Frcyrc
da opinião singular de Freyrc acerca do poruiguès. F. o português o em Casa /p o n d e &' senzala é caprar a especificidade da formação
elemento principal, sob vários aspectos, do processo sincrérico de social brasileira a partir do ripo particular de colonização portuguesa
colonização brasileira. Antes dc tudo, ele é o elemento dominante nos que .se implantou nessa parte cia América. Como o dado estrutural mais
aspectos da cultura material c simbólica, f. de o motor e idealizador importante dessa singularidade foi a constituição dc tuna sociedade
106 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL OA SU6CTDADANIA... Parte 2 - 107

escravocrata de tipo bastante peculiar, nada mais natural que a forma com preender a contraposição que perpassa a sua obra entre a
específica da escravidão que .se constituiu no Brasil seja a chave dem ocracia racial, ou “social” com o ele preferia, brasileira c a
fundamental para a compreensão da singularidade social e cultural dem ocracia “apenas política" dos norte-americanos. Esse rclati-
brasileira. Acredito, no entanto, que Frevre na realidade possui duas vismo politicamente perigoso o levaria, especialmcntc nas suas obras
visões da sociediide colonial brasileira a partir prccisamente dc duas luso-tropícalisras, a toda espécie dc delírio cuiruralista acerca do
visões que me parecem oonllitantcs acerca da particular forma de moreno e mestiço, e toda sorte dc elogio do autoritarismo político
escravidão que se teria implantado cnnc nós. para a proteção dessa pretensa originalidade luso-tropical. K também
Em Firyrc, a visão solwe a especificidade da escravidão brasileira o tema da mestiçagem que leva Frevre a enfatizar a continuidade
alterna entre uma êniase no tema do sadomasoquismo e uma concen­ entre Porrugal c Brasil. Este seria, afinal, um “gen cultural" herdado
tração no tema da mestiçagem, O tema do sadomasoquismo está dos portugueses.
ligado ao tema da “"escravidão muçulmana'’, A estratégia de domínio, Para uma percepção da linha dc continuidade entre Portug.il e
<jue c a substância do que de irá chamar dc escravidão muçulmana, Brasil, a noção mais importante no argumento frevre ano é a da
permite uma expansão e durabilidade da. conquista inigualáveis, na “plasticidade" do português. Essa plasticidade é desenvolvida cm Casa
medida em que associa o acesso a bens materiais e ideais muito jfran d e & senzala sob a forma de um retrato do caráter nacional
L°.n*:Tct(ó á identificação do dominado com os valores do opressor. p<>migués, caráter esse que traria o dad<»da dualidade e da ambiguidade
A conquista pode assim abdicar da vigilância e do emprego siste­ como seu traço fundamental. Por ser ambíguo, dc uma ambiguidade
mático da violência para a garantia do domínio e passar a contar cultural tão fundamental com o a bi.sscxualidadc da personalidade
humana, o português traria todos as oposições e todos os antagonis­
crcscentcmenre com um dem ento volitivo internalizado e desejado
mos dentro dc si. Essa noção serve, no entanto, dentro tio contexto
pelo próprio oprimido. O Brasil colônia estava cheio de exemplos
do raciocínio frcyreano. para demonstrar um elemento de continui­
desse ripo dc política. Isso permitia não só que fossem usados aqui
dade c de permanência essencial, elemento esse eivado ele próprio dc
capirães-do-mato c fatores negros ou mulatos. Também possibilitava
ambiguidade, Aqui não se trata mais da ambiguidade do português,
a povoação de enormes massas territoriais sem que a dominancia do
mas do próprio argumento dc Frevre. r. que, para demonstrar sua
elemento conquistador fosse posta seriamenre em perigo.
tese da mestiçagem c da comunicação entre culturas, primeiro como
Essa astuciosa estratégia de domínio se, no pólo negativo, implica característica distintiva do português como colonizador e, mais tarde,
subordinação e sistemática reprodução social da baixa auto-estima nos nos seus textos luso-tropicalistas, como contribuição luso-brasileira à
grupos dominados, no pólo positivo, abre uma possibilidade efetiva e civilização, Frevre é obrigado a defender simultaneamente uma
real de diferenciação social e mobilidade social. F a partir desse pólo continuidade sem rapruras e uma interpcnctraçáo renovadora e
positivo que Frcyrc constrói sua te.se da mesuçagem como peculiari­ “democratizante" com outras culturas do elemento dominante por­
dade social brasileira. Essa construção, por sccundarizar o demento tuguês.
dc opressão e subordinação sistemática, c ideológica. Ela efetiva­ A noção de plasticidade se presta marsvdhosamcutc a esta
mente levou Frevre a pleitear uma espécie de “contribuição singu­ prestidigifação teórica É que a plasticidade permite que imaginemos
larmente brasileira à civilização”. Essa idéia tem afinidades profundas o português ao mesmo tempo como uma entidade que se comunica e
com a temática romântica alemã, ao pleitear uma originalidade cultural, que se transforma no contato com o diferente, permanecendo, no
ao limite, incomparável. Apenas com base nessa idéia é que podemos entanto, em sua essência, sempre igual a si mesmo no decorrer do
108 - A CONS1RUÇÃO SOCIAL DA SUBClüADANtA,,, Parte 2 - 109

tempo. O português entra ein contato com o elemcnro nativo c com com paraçãoé um instrumento indispensável. Estou convencido que
o adventicio iormando, em contrajxisição ao colonizador anglo-saxão, a comparação privilegiada por Gilberto Freyrc nesse aspecto seja por
P ° r exemplo, uma nova ligadura, um novo produro social e cultural. referencia ao sul escravocrata norte-americano. Embora várias das
Por outro lado, o elemento português permanece, malgrado rodos citações no texto de Casa g ran d e & senzala tendam a apontar “a mais
esses conratos, sempre igual a si mesmo. O português ê ele c o outro absoluta similaridade, nunca apontando para nenhuma diferenciação”*2
ao mesmo tempo. Èlç c plástico por já possuir denrro de si rodos os entre os dois sistemas, creio que ainda se possa lazer algumas quali­
opostos, Essa espantosa qualidade cultural permite que, ao encontrar ficações interessantes acerca desse tema. Sem dúvida, esse aspecto da
alguma alteridade fora dele, o português possa lançar mão de caracte­ semelhança c insistenremente repetido em Casa g ran d e & senzala:
rísticas .issemclhudas a esse alter na sua própria personalidade, que fundamental é o sistema econômico de produção escravocrata e
possibilita inrerpenetração cultural sem perda da sua “substância” mouocultor <r a organização social palriarcal i< Esses são pontos que
original. aproximam rodas as formas de sociedades escravocratas nas Américas,
Acredito que grande parte da discussão acerca das “contradições seja nos EUA, Hrasil ou Cuba. No entanto, se os pontos essenciais
cm equilíbrio , acerca de todo culto á contradição c à ambiguidade são os mesmos, isso não significa que as diferenças “acessórias” não
cm Freyrc, tenha a ver com a noção visccralmcnte imprecisa e sejam importantes ou até decisivas no estudo comparado de sociedades
escorregadia da "plasticidade" do português. Falta qualquer sentido de um mesmo ripo.
uiuvoco a essa noção de plasticidade, c sabemos o quanto dependemos Acredito, portanto, que devamos examinar essa essência semelhante
de conceitos precisos para a compreensão de uma realidade coniplexa. das grandes sociedades escravocratas das Américas a m g ran o salis.
A polissemia serve pouco à ciência e muito à ideologia, c acredito Afinal, isso equivalería a dizer, em lermos de hoje, que as sociedades
que a noção de plasticidade está na base da operação de transvalori- industriais avançadas dos EUA c da Alemanha Federal são “cssencial-
zaçáo ideológica que animou o esforço de Freyrc, canto cm Casa mente” semelhantes, por exemplo, no modo de produção econômico
g r a n d e z r senzala quanto na sua obra Iuso-tropicalista posterior. (para usar precisamente o mesmo termo de Gilberto Freyrc quando
Gilberto Frcyre almejava inverter o sinal negativo da obra portuguesa aproxima as sociedades escravocratas brasileira e norte-americana).
aqui c alhures, tal ver como meio de reverter a baixa auto-estima do Pouca gente sensata divergiría dessa afirmativa./Ao mesmo tempo,
brasileiro. Esse ponto c fundamental, na medida cm que, como creio também que pouca gente deixaria de admitir que existem
veremos mais adiante na parte 3 deste livro, essa é a ideologia brasileira diferenças “acessórias” entre as sociedades americana e alemã as quais
por excelência, tendo se tomado o vínculo simbólico c explícito entre correspondem a distinções sociologicamente significativas cm relação
os brasileiros de todas as classes, a partir de sua transformação cm a traços estruturais dessas duas sociedades de mesmo ripo Kxistem
doutrina Oficial do Estado arrcgimcntaelor a partir de 1930. Volfa- aspectos de iníluênda histórica que fazem com que essas duas sociedades
re m o ta este ponto na ocasião devidaã “csscncialmcnte semelhantes”, tenltam dilêrenças políticas c culturais em
N ão ç certamente esta versão da escravidão c do encontro cultural nada desprezíveis para o analista,
brasileiro que pretendo aproveitar aqui, Muito pelo contrário, inte­ 'Creio que eram diferenças desse tipo que estavam subjacente ao
ressa-me, prccisamcntc, a versão sobreposta e reprimida que, no argumento freyreano. Em uma conferência realizada na Universidade
entanto, aparece em fragmentos c cm espaços descontínuos de de Stanlòrd, Califórnia, em 1931 (dois anos antes da publicação de
argumentação. E essa visão, sccundarizada pelo próprio Freyrc, C asa gran d e ú~ senzala), onde Ereyre, ao falar da especificidade da
que mc interessa reconstruir. Como cm ioda reconstrução conceituai a escravidão brasileira cm relação à “escravidão noutras áreas (da
110 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA SU BCID AD AN IA... Parte 2 - 111

América ■)■ 5>.) dominadas, desde o século XVH, por outros povos •,Hssa característica nova, maometaiu, seria precisamente, portanto,
europeus*,3* indaga-se o autor: o fator responsável pelo caráter mais “benigno” (voltaremos a esse
ponto adiante) da escravidão brasileira nas Américas c cspccialmcnte
l’or que essa diferença? A meu ver por ter sido (o brasileiro J. S.) cm relação à do sul dos EUA . Que fator teria sido esse?
um regime de escravidão (...) ante.s árabe que europeu em seu
niod« i de ser escravocrata. E ninguém ignora que há imensa dis­ E por que tòi assim? Não pelo fato dc os portugueses serem um
tancia entre as duas concepções — a européia, pós-indusirial. e a povo mais cristão do que os ingléscs, os holandeses, os franceses
oriental, pré-industria] de considerar-se o escravo. Numa o ou os espanhóis, a expressão “mais cristãos” significando aqui,
escr avoá Mnipks maquina dr trabalho. Na outra, e pewoa quase eticamente superiores na moral c no comportamento. A verdade
da íãitulKh
seria outra: a forma mem * cruel dc escravidão desenvolvida pelos
portugueses no Brasil parece ter sido o resultado dc seu contato
Resguardados p o ssá m c^ ^ á v m c x a g c ro s nessa contraposição, com os escravocratas maomctanos, conhecidos pela maneira
os lennos da diferença estão postos com a maior clareza possível. famtlwl como iraiavam seus escravos, pelo motivo muito mais
Vale a pena demorar-se neste ponto já que ele é o fio condutor de concrcramentc soeiofngieo do que abstratamente étnico de sua
toda argumentação desta versão frcyreana reprimida da especificidade concepção domestica da escravidão, ter sido diverso da industrial.
Bré-industrial c até anriindustrial, Sabemos que os portugueses,
da escravidão c. consequcntemcnrc, da formação social colonial
apesar de intensamente cristãos — mais do isso até, campeões da
brasileira. Rçnzaqneq de A raújo, no sen livro já clássico sobre
causa do cristianismo contra a causa do Islã imitaramos árabes, os
frcyrc, ao seguir a pista da indistinção entre a escravidão brasileira
mouros, ns maomctanos cm certas técnicas c cm certos costumes,
c norte-americana, termina, inclusive, por inverter o lugar da herança assimilando deles inúmeros valores culturais. A cortoejição maomc-
moura no raciocínio freyrcano. Ele a percebe como um dado do tana da escravidão, como sistema domestico ligado à organização da
"despotismo oriental”,2* quando, na realidade, para Frcyrc, ele é a família, inclusive às atividades domésticas, sem scr docisivamentc
chave explicativa precisamente do elemento inverso, da “confratcmi- dominada por um propósito cconônnot>industrial, foi um dos
/ação”, do componente “familiar", distintivo da escravidão brasileira valores mouros ou maomctanos que os portugueses aplicaram à
nas Américas. Fm \ovo mundo nos trópicos esse pomo é referido com colonização prcdommantcmcmc, mas não cxclusivamcnte cristã,
toda a clareza: do RrasiL3*

Em toda parte, fiquei impressionado pelo tato de que o parentesco ÍJAC puuiuC luudomaiul porque, apenas a partir dele, podcmixs
sociológico entre os sistemas port ugués cmaomci.iiio de escravidão reconstrua o que fiicyte sempre procurou» o elemento tlísrinrivo
parece responsável por certas características do sistema brasileiro. “diferença específica” da sociedade
Caracten.stic.is que nao são encontradas cm nenhuma otur.i região “cssencialrnentr simi­
da América onde existiu a escravidão. (_) fato de que a escravidão, lares das outras sociedades escravocratas do continente. Resta ainda
no Brasil, tòi, cvidcritcmcnrc, menos cruel do que na America perguntar: o que significa txatcm entt a influencia desse elemento
inglesa, c mesim >do que na.s Américas francesa c espanhola, já mc familiar? O esclarecimento desse aspecto c absolutailicnrc central,
parece documentado de forma ídónca.37
posto que ele p <k1c ajudar a compreender não só a instituição da
escravidão brasileira enquanto tal para Gilberto Frcyrc, pelo menos na
sua versão implícita c reprimida, mas a peculiaridade da constituição
112 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA 5 U B C J0 A D A M A ... Parte 2 - 1 1 3

d ° poder pessoal na sociedade colonial brasileira. Sendo uma espécie totalizadora c independente de determinações estruturais, para levar
de instituição total' no Brasil, a forma peculiar da escravidão traria cm conta, antes de tudo, fatores sociológicos estruturais, como. por
consigo a “semente" da forma específica que assumiu o poder pessoal exemplo, a necessidade de povoamento de tão grandes terras por um
c familístico entre nós, Qual seria essa “semente”? Ao se referir a país pequeno c relativamente pouco populoso:
uma conversa sobre o assunto com seu mestre Boas, Freyre nos dá
pista interessante para a questão: Daí a forma de escravidão que os portugueses adotaram no Oriente
k no Brasil ter se desenvolvido mais à maneira áralie que à maneira
Quando, cm 1938, falei ao meu velho professor da Universidade européia; c haver incluído, a seu modo, a própria poligamia, a fim
■Columbia, o grande Iiraixí Boas, sol uvas klcias que tinha a esse rnsprim, de aumentar-sc, por esse meio maomctano, a população.41
ele medisse que as mesmas poderiam servir de base à nova compreensão
e mesmo intciprmçáo da situação brasileira; e que eu devia continuar O tema da família aumentada c, aqui, a chave da especificidade
minhas pesquisas relativas a conexão existente entre a cultura portu­ que Freyre pretende construir, Para ele, essa instituição não estava
guesa c a moura ou maomctana — parncul,irmenre entre seus ligada apenas à mera necessidade funcional c instrumental de aumentar
sistemas de escravidão. Arefumentou aineLa ijtte os tnaotuetatws, omites
o número de escravos. E que a família polígama maomctana tiniu
c motsros, durante muitos séculos tomam stdo superiores aos europeus r
trisrâos em seus metodos de assituiltuíán de culturas africanas u sua
unia característica muito peculiar:
'çm lizafáo (destaque meu ]. S.).1'1 ''
De acordo com os maometanos, bastava ao filho da ligação de
árabe com mulher escrava adotar a fé, <is rituais c os costumes do
O contexto da reportagem dessa conversa com o antigo mestre
seu pai, para se tornar igu.il ao mesmo pai, socialmcntc falando.31
remete a alegria de Freyre de ver suas intuiçóes corroboradas por
Liguras, para ele respeitáveis c acima de qualquer suspeita. A pane da
citação em destaque mostra uma concordância de Boas no aspecto K a .seguir sobre a “versão portuguesa" da aplicação desse princípio
que sempre foi, como vimos, para Frcyre.u aspccLu mais couspícuo cultural:
da forqiaçaq brxsilck^.osincrctismo cultural uma combinação entre
Huropa e África que logrou produzir uma sociedade singular, não Os portugueses assim que se estabeleceram no Brasil começaram a
redutivcl a nenhum dos termos que haviam participado originaimente anexar ao seu sistema de organização agrária de economia e de
família uma djssimulada inqtacão fle poligamia, permitida pela
da sua formação. Importante para uussos propósitos, no entanto, é a
adoção legal, por pai cristão, quando este incluía, em seu testa
circunstância de que c pxecisamente a herança cultur.il moura ata
mento, os filhos naturais, ou ilegítimos, resultantes de mães índias
forma da escravidão que parece ter sidq .o. demento decisivo çla singu­ c também de escravas negras. Filhos que, nesses testamentos, eram
laridade da sociedade cscravt R-rara cokmial c, portann >, da semente da sodalrnente iguais, ou quase iguais, aos filhos legítimos. Aliás, não
forma singular que a dependência pessoal assumiu entre nos, ou seja, raras vezes, os filhos naturais, de oôr, foram mesmo instruídos na
^emento lluc deveria “esquemariAtr”, no sentido tavloriano do Casa Grande pelos frades ou pelos mesmos capelães que educavam
termo, a futura influencia curopcizante modema. burguesa c, nesse a prole legitima, explicando-se assim a ascensão social de alguns
sentido, atmpurtugüca, desses mestiços.0
b interessante notar que Freyre, na construção dessa hipótese
alternativa, tende a secundarizar a reflexão culturalisra percebida como
114 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL OA 5UBCIDADAN1A... Parte 2 - 115

Acredito que o próprio nuclleo da singularidade da escravidão autárquico do domínio senhorial condicionado pela ausência de
brasileira, sempre na sua "versão reprimida”. para Gilberto Freyrc instituições acima do senhor territorial imediato. Uma tal organi­
advem desse taro fundamental de que o filho da escrava africana com zação societária, espcrialmemc quando o dom ínio da classe doroi -
o senhor europeu "podería", ou seja, 4MMw a pmnMtcUtdr real, quer nante c exerckh* pela Via direta da violência armada, não propicia a
^ fone at/sziicduüi ttu wa/is ser aceiro como "europeizado", no caso de constituição de freios sociais nu individuais aos desejos primários de
accuaçáo da fie, do» rituais c dos « m m do pau Talvez esse lato scjiti, agressividade. ixtncupisoéncia ou avidez. As emoções são vividas
não sirva para esclarecer a decantada "democracia racial”, na medida em sua reações extremas, são expressadas diretainentc. e a convivência
tm que o europeu permanecia como o termo absoluiamcntc positivo, de onoçoes a mtririas em curto intervalo de tempo é um fauí natural.
dominante e superior da relação. Mas talvez ajude a esclarecer á
Na dimensão soçiaL as rivalidades enrre vizinhos tomam por
singularidade do ripo de sociedade patriarcal que aqui se constituiu. completo também rodos os seres que se identificam cm linha vertical
Gostaria de tentar uma interpretação alternativa do nosso específico com os respectivos senhores. Nesse sentido, uma espessa rede de
“parriarcalismo", como descrito em Casa (fraude senzala, a partir
intrigas, invejas, ódios e afetos conrradirórios é percebido como
da noção de sadomasoquisrno. Qualquer leitor com paciência sufici­
congênito a esse tipo de organização social. Estamos lidando, no
ente poderia contar às dezenas as referências de Freyrv a relações
caso brasileiro, na verdade, com um conceito lumre de sociedade,
sadomasoquistas seja cm Casa gran de & senzala, seja em Sobrados e onde a ausência dr loxnniiçõe» intermediarias faz com que o demente i
mncamlm, ' seja ainda cm livros como \ordeste. No entanto, esse
iamiltsticn seja seu componente principal Daí que o drama especifico
esforço pode ser também seguido de acordo com um principio antes
dessa forma societária possa ser descrito a parrir de categorias social-
sistemático do qnc tópico, tentando-se perceber, acima de mdo, o
psicológicas cuja gênese aponta para as relações sociais ditas pruuánav
alcance analítico dessa noção para a empreitada hermenêutica que
É precisamcntc como uma sociedade constitutiva c cstruturalment*
Fncyrc se pn»põc. Estou convencido de que a analise desse conceito
sadomasoquista, no sentido de uma patologia social específica, cm
pode ser de alguma ajuda para a compreensão da ambiguidade ou
que a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade c a pervcrsái
imprecisão talvez mais importante no conceito de patriarcalismo de
do prazer transfiinna-.se em objetivo máximo das relações interpessoais,
Gilberto Freyrc: a consideração simultânea de distancia c segregação
que Gilberto Freyrc interpreta a semente csscndal do patriarcalism|>
com proximidade c intimidade.
brasileiro. Freyrc percebe, claramcntc, que a direção dos impulsos
ü final do primeiro capitulo de Casa g ran d e & senzala fornece agressivos c sexuais primários, dependem "cm grande parte de
uma interessante chave explicativa s«icial-psicokigica do patriarcalismo. oportunidade ou chance, isto é, de influências externas sociais. Mais
Este capitulo é um esforço de síntese, que abrange o período de do que predisposição ou de perversão inata.”*’
formação c consolidação do patriarc.ilismo familiar brasileiro que
constitui o período histórico analisado no livro. De cerra fornu, Averdade, porém, é que nós pie, J . Ü.) é que fomos os sadistas; o
Gilberto retira todas as consequências do fato de que ti fam ília é a elemento ativo na corrupção da vida de família; e mulcques c
unidade básica, dada a distância do Estado português e de suas insti­ mulatas o elemento passivo. N.t realidade, nem o branco nem o
tuições, da formação brasileira, e interpreta o drama social da época negro agiram por si, muito menos como raça. ou sob a ação
sob a égide de um conceito psicoanalítico: o de s«d« mi asoquisi no.>' t preponderante do clima, nas relações de sexo e de classe que se
Na construção desse conceito, Freyrc se concentra em condiciona­ desenvolveram entre senhores c escravos no brasil. Evprimiu-se
mentos estritamenre macnissociologicos. Antes de mdo. pdo caráter nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu,
como um Deus todo poderoso, em senhores c escravos. Dele se
116 - A c o n s t r u ç ã o s o c ia l d a s u b c id a ü a n ia . .. Parte 2 - 1 1 7

deriva a exagerada tendência para o sadismo característica do A explicação sociológica para a origem desse “pecado original”
brasileiro, nascido c criado em casa grande, principal mente em do patriarcalisnw brasileiro, para Gilberto Freyrc, exige a consideração
engenho; c a que insritcntcmciuc temos aludido neste ensaio.
da necessidade objetiva de um pequeno país como Portugal solucionar
Imagine-se um país com os meninos armados de taca de ponta!
Pois foi assim o Brasil do tempo da escravidão.**•
o problema de como colonizar terras gigantescas: pela delegação da
tarefa a particulares, antes estimulando do que coibindo o privatismo
e a ânsia de posse. Tara Gilberto, é de fundamental importância para
Ou ainda, ao discorrer sobre a permanência dessa “semente" de
a compreensão da singularidade do personalismo brasileiro a inlluência
sociabilidade patriarcal, mesmo depois de abolida a escravatura:
continuada c marcante dessa semente original. De forma distinta i
que os teóricos cia primeira tase da tscola de Prapkiurtv'' os quais,
Não há brasileirri de classe mais elevada, mesmo depois de nascido
também na mesma década de 30, procuravam com a ajuda do mesmo
c criado depois de ofirialmentc abolida a escravidão, que não se
sinta aparentado do menino Braz. Cubas na maJvadez e no gosto conceito, explicar a ascensão do nazismo partindo de um quadro
dc judi.tr com negros. Aquele mórbido deleite cm ser mau com os catcgorial que pressupunha uma rígida estrutura lúerárquica preexis­
inferiores c com os animais é bem nosso: c de todo o menino tente, onde a obediência acrílica cm relação aos estratos superiores
brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata,J- possuía uma conexão estrutural com o despotismo em relação aos
grupos mais passíveis de cstigmaLizaçao, Gilberto I rcyicvao contrário,
K ainda uma última citação, para não abusar da paciência do enfatiza o elemento personalista.
leitor, c.sfa de Machado de Assis, usado aqui por Freyrc de modo a fc qn r pntriarealismó par.i ele tem a ver com o lato de que não
esclarecer de que maneira os valores do sadomasoquismo social se existe limites á autoridade pessoal do senhor de terras e escravos
transmitia de pai para íilho pelos mecanismos sutis da “educação”. Não existe justiça sujtcrior a ele, como em Portugal era o caso da
justiça da Igreja que decidia em última instância qucrclas seculares,
...uni dia quebrei a cabeça de uma escravo, porque me negara uma não existia também poder policial independente que lhe pudesse
colher de doce de cooo que estava fazendo, c, não contente com o exigir cumprimentos de contrato, como no ca so das dividas impagáveis
malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito
mencionadas por Freyrc, não existia ainda, last but not least, poder
da travessura, lüi dizer a minha mãe que a escrava c que estragara o
doce 'por pirraça”; c eu tinha apenas seis anos. Prudèncio, um moral independente posto que a capela era uma mera extensão da
muleque de casa, era meu cavalo de ti kIos os dias; |ntnha as mãos casa-grande. Sem duvida a sociedade cultural e racialnvmr híbnda
no chão, rcccbu um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu d aqu i nos fala Gilberto não significa de modo algum igualdade entre
trepava-lheilü dorso, com uma varinha na mao. fustiga va-o, dava A* cTtlrifras c 'FáÇffif, Htittre domínio e subordinação sistemática,
lhe mil soltas a utn e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes melhor, e u pior no caso, houve perversão do domínio no conceito
gemendo mas obedecia sem dizer palavra, o u quando muito, limite do xndismo, Nada mais longe de um conceito idtlict» ou rósco
um - 'a i, nhonhòr — ao que eu retorquia — “cala a boca,
de sociedade, boi .sádica a relação do homem português com as
liesta.' , — csamtler <xs chapéus das visitas, deitar rabos de papel a
pessoas graves, puxar |>do rabicho das cabeleiras, d.ir beliscão nos mulheres índias e negras. Hra sádica a relação do senhor com suas
braços das matronas, c outras muitas façanhas deste jaez, eram próprias mulheres brancas, as Ixinecas para reprodução c sexo unilateral
mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também de que nos fala Gilberto/' fcra sádica, íinalmentc, a relação do senhor
expressões de uni espirito robusto, porque meu pai tinha me em com os próprios filhos, os seres que mais sofriam c apanhavam depois
grande admiração; c se às vezes me repreendia, à vista de genca,
dos escravos/ 1
fazia-o por simples formalidade: em pari icular dava-me beijos/1
118 - A CONSTRUÇÃO SOCTAL ÜA SU BC 1D A D A N IA ., . Parte 2 - 1 1 9

(> senhor tic N m t c escravos era um htperindniduo. nãu o com o vértice da hierarquia social sendo ocupado pela figura do
supcr-homcm futurista tiKtzscluaiHt que obedece aos propnos valores patriarca. A cspeqfiçidade do caso brasileiro é representada pela
cjue supostamente cuu, mas o super-lwimcm do passado, o barlxar» > possibilidade (influência maometana para Freyrc) sempre incerta
sem qualquer noção uuerrv.ilirada de limites cm relação aos seus mas real, de identificação do patriarca com seus filhos ilegítimos
impulMM primários, Sc as condições socioeconómicas esjiecíficas ou naturais com escravas ou nativas. A ênfase norte-americana na
ajudam a compreender o carárcr despótico c segregador do patriar- pureza da origem. por exemplo, retirava de plano essa possibilidade.
calismo, o que dizer do elemenro de “proximidade”? Em parte, o No entanto, o pesu do demento “tradicional". ou seja, o conjunLO
próprio conceito de satiiimasoquismo implica “proximidade” e alguma dc regras e costumes que, com o decorrer tio tempo vão sc consolidando
forma de "intimidade . Intimidade do corpo c distancia do espirito, em uma espécie de direito consurtudinário regulando as relações de
sem duvida, nus dc qualquer modo “proximidade". E efetivamente, dependência, com o nos lembra M ax W cbcr n o seu estudo acerca
grande parte da relação entre senhores brancos c escravos negros, do patriarcalism o, c que serve dc lim itação ao arbítrio do patriarca,
conforme já vimos, ,sc realizavam sob essa forma de contato “íntimo”. parece ter sido. no caso brasileiro, reduzido ao m ínim o. Dai a
N o entanto, Freyrc refere-se, simultaneamente, a uma proximidade ênfase no elem ento sadomasoquista cm G ilb erto Freyrc. O maior
confratemizadorá entre portadores dc culturas dominantes c d( imi- isolamento c consequente aiunenn >d<»componente autarquieo de cada
nadas. sistema "casa grande e senzala’ pode aqtu ter sido o demento principal
A extensão da família poligâmica, dc origem moura, entra no A ausência dc limitações externas dc qualquer tipo engendra relações
raciocínio do autor, creio eu, precisamente para explicar esse outro sociais nas quais as inclinações emotivas da pessoa do patriarca joga
tip< >dc “comunicação social’ entre desiguais,42Com o a participação .o papel principal.
no manto protetor paterno depende tia discrição c arbítrio deste último, • Este ponto não mc parece um aspecto isolado ou pitoresco da
todas as modalidades de “pmretorado pessoal” são jxwsívcis. O leque rellexâo frcyreana. Ao contrário, ele dá conta da dinâmica dos princípú «s
de possibilidades vai desde o reconhecimento privilegiado dc filhos estruturantes que dão compreensibiüdadc ao seu conceito dc parriar-
ilegítimos ou naturais cm desfavor dos filhos legítimos, como nos calismo e, portanto, à toda a empresa de Freyrc. A consequência
exemplifica Freyrc cm numerosos casos de divisão de herança, are a política e social dessas tiranias privadas, quando se transmitem da
total negação da responsabilidade paterna nos casos dos pais que estera da família c da atividade sexual para a esfera publica das
vendiam os filhos ilegítimos. A proteção patriarcal e, portanto, relações políticas c «xnais, se tornam evidentes na dialética dc mando-
pcssoahssima, sendo uma extensão da vontade e das inclinações nismo c autoritarismo dc um lado, no Lido das elites mais predsamente,
emocionais do patriarca. c no populismo e mcssianism< >das massas, por outro. Dialética essa que
Interessante é o passo lógico imediatamente posterior, ou seja, a iria, mais tarde, assumir formas múltiplas e mais concretas nas
transformação da dependência pessoal em relação ao patriarca em oposições entre doutores e analfabetos, grupos c classes mais euro­
“familismo". Como sistema, o íãmilismq..tende a instaurar alguma peizadas e as massas ameríndia c africana e assim por diante.
forma de bilatuaiidade, ainda que incipiente e instável, entre favor e D o ponto «k vista do patriarca existe, também, uma série dc
proteção, não só entre o pai e seus dependentes, mas também entre motivos “racionais” para aumentar na maior medida possível seu
famílias difçrcntcs entre si, criando um sistema complexo de alianças c raio de influência por meio da família poligímica. Existe roda uma
rivalidades. Np tipo de sociedade analisado cm Casa gran de & senzala, gama dc funções dc “confiança”, no controle do trabalho e caça dc
o patriarealismo tamilial sc apresenta cm tuna forma praticamente pura. escravos fugidos, além dc serviços “militares” em brigas por limites
120 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL UA SUBCIDADANIA.., Parte 2 - 121

dc terra etc., que seriam melhor exercidas jxir membros da “família nesse sentido, instável, imprevisível c particularisu. É nesse contexto
ampliada do patriarca.; E aqui já temos uma primeira versão da dc pitai dependência dos escravos em relação ao senhor, sem a prote­
ambígua “confraternização” entre raças e culuiras distintas, que a ção que o costume c a tradição garantiam ao elemento dominado cm
família ampliada patriarcal ensejava. Enquanto esse tipo dc serviço outras sociedades tradicionais, possibilitando desse modo, em alguma
de controle e guarda era exercido nos EUA, exclusivamentc por medida pelo menos, f<irmas de constituiçãi i J c auto-estima e reconhe­
brancos, no Hrasil havia predomínio de mestiços.45 Nota-se, desde cimento social independentes da vontade do senhor, é que podemos
compreender a especificidade do ripo de sociedade, baseada no po­
ai, a ambiguidade entre possibilidade real e efetiva de ascensão social
der pessoal, queaiqm se constititiu.
para os mestiços no familismo patriarcal cm troca de identificação
com <xs valores c interesses do opressor. A proicçáí' era discrição do senhor c estava relacionada a outra
característica árabe da sociedade colonial brasileira: a família poligâ-
Além dos motivos econômicos c políticos que favoreciam o mica. Os filhos dos senhores e escravos, desde que assumissem os
familismo patriarcal rural brasileiro, tínhamos também uma inic- valores do “pai”, ou seja, se eles sc identificassem com ele, tinham a
cessante forma religiosa também lamilioi. O «im ponente mágico, possibilidade dc ocupar os postos intermediários em sociedade tão
da proximidade entre o sagrado c o profano, constitutivo de toda marcadamente bípolar. Devia haver inclusive grande concorrência
. • “ P4* * ; ii t n lirirmy, tbi kvado a seu extremo. Havia impressio­ seja entre os filhos ilegítimos, seja entre as candidatas a concubinas
nante familiaridade entre os santos c os homens, cumprindo àqueles, pelo favores c pela proteção do senhor c de sua família. Kxistiam
inclusive, funções práticas dentro da ordem doméstica e familiar prêmios materiais c ideais muito concretos em jogo dc modo a
Nesse contexto, mais importante ainda c que o culto q™ v.mtns se recompensar quem melhor interpretasse c intemalizasse, como sc
fosse sua, a vontade c os desejos do dominador. H é precisamente
confundia cambem com o culto aos antepassados,, conferindo ao
essa assimihção d» viHUadecxlcmvcomo .se fosse própria, assimilação
familismo com o sistema uma base simbólica própria. A família
essa socialmente condicionada e que m au no nascedouro a pfóprn
cra r» mundo e, até em grande medida, jxirramo, « akm-inundo.
auto icprcseiiução do dominado como um ser independente c aurô
Alem da base econômica e jx >lifica “material”, p caroliçismu “fcmilial"4* íuarno, que o conceito dc sadomasoquismo quer significar.
lançava os fundamentos dc uma base imatcrial e simbólica referida às
suas ptóprias necessidades de interpretar o mundo a partir de seu
ponto de vista tópico e local Acredito que o patriarcafismo laimlial
rural «escravocrata para brevre envolvia a definição lífe UH» mstituição
totül, itct mentido de um conjunro articulado no qual as diversos A co n stitu içã o d o p o d e r p e sso a l: o d e p e n d e n te
necessidades ou dim ensõesdo vida .social encontravam uma refe­ fo rm a lm e n te "liv re "
rencia complementar e interdependente
O componente sadomasoquista era constitutivo na medida em
qui inclinações pessoais do patriarca (ou de seus representantes),
Mas o perstmalísmo não sc limitou ao ambiente das relações
com um mínimo de limitações externas materiais ou simbólicas, de­ diretas entre senhor c o escravo. O lugar estrutural, tanto no sentido
cidiam cm última instância sobre a amplitude do núcleo familiar c social quanto econômico, do sistema escravocrata lançou sua sombra
como e a quem e cm que proporção seria distribuído seu favor c para rodas as outras relações sociais. Isso é cspecialmeutc verdade
proteção. O componente de “proximidade”,social entre desiguais para outro estrato «xnal fundamental c numeroso do Brasil colônia —
que Fneyrc cnlatiza ao lado do componente violento e segnegador é, e sob formas modificados, comoveremos, tombem do Brasil moderno
122 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SU BCtO AD AN IA.. , Parte 2 - 123

Huc c o dependente” ou "agregado” íormalmente livre e de reprodução de tais relações são comparáveis e participam do mesmo
qualquer cor,. A situação social do dejiendcnte estava marcado pela universo daquelas que possibilitam <>padrão “muçulmano" de escra­
posição intermediária enrre o senhor proprietário e o escravo obri­ vidão.
gado a trabalhos forçados. Klc era um des possuído formaimeme
Carvalho Franco se interessa, antes de tudo. o que faz seu argu­
livre, cuja unica chance de sobrevivência era ocupar funções nas
mento essencial para a hipótese que pretendo construir no decorrer
franjas do sistema como um todtjJ
deste livro, pelo horizonte prátieo-moral que condiciona a vida c as
Formou-se, anres, uma “rafé" que cresceu e vagou ao longo de relações sociais dos dependentes..O código moral do sertão, o “habitai
quarro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dós natural'' d<>dependente rural por d a estudado, c perpassado pela vio­
processos essenciais a «raràdwk. A agricultura mercantil baseada lência. A violência é endêmica; cotidiana, c aflora a superfície qua.se
na escravidão simultaneamente abria espaço para sua existência c os sempre de furam abrupta com consequências devastadoras para os
deixava sem razão de ser.45 envolvidos. A violência nua c crua não é, portanto, o “outro" da vida
lá vemos aqui as principais características desta "ralé" que é o comunitária, no sentido de ser a sua negação, mas é, ao contrário, de
objeto principal deste livro. Scrc-s humanos a rigor dispensáveis. 11a certa forma, o seu núcleo. Para Carvalho Franco, antes de tudo, a
medida em que não exercem papéis fundamentais para as lunçôcs ubiquidade da violência tem a ver com a inevitável sobreposição de
produtiv as essenciais e que conseguem sobreviver nos interstícios c interesses acarretados pela escassez c pobreza^
nas ocupações marginais da ordem produtiva. Este ripo humano, À pobreza se juntam a instabilidade gerada pela mobilidade social
comí»o do escravo, também espalhou-se por todo o território nacional h<irizoiiul endêmica - único recurso de proteção contra as adversi-
c representava, cm meadox do século XIX, cerca de 2/3. da população dade.s — c a ausência de um eodigo moral de conduta cnsrahzado
nacional.?' O estudo clássico de Maria Sytvia de Carvalho branco
sobre o dependente Íormalmente livre na região do vale do Paraíba zadoy. Aqui notamos a mesma ausência da institucionalização de
interessou-me, desde minha primeira leitura, precisamcnie p<>r oferecer uma eslera moral autônoma de fundo é tiu >-religioso, que caracteriza
uma investigação empírica, enriquecida por tuna bela e sintética a “nova periferia” que também havia-mos notado no complexo casa-
exposição do drama psicossocial do dependente íormalmente livre, grande e senzala. Na ausência deste componente capaz de impor
gcneralizávcl, a meu ver, as suas outras variações regionais.4^ regras minimamente consensuais, o comportamento prático é regu­
Desse modo, a relativa “disjxrnsabilidadc" econômica do depen­ lado pelo “código da virilidade", ou como prefere Carvalho Franco,
dente, que irá, como veremos, marcar também toda a sua existência pelo “código do desafio".4" O principal elemento do código da virili­
moral e política, é condicionada pelo que Carvalho Franco chama de dade ou do desafio reside no lato de que ele envolve os conrcndores
presença ausente” da escravidão. Esta Sombra da escravidão não na sua integridade, “não aringindo apenas um segmento abstrato dr
será apenas evidente no sentido da vida destinada a uma existência personalidades frnd< tnadas em múltiplos papéis independentes”.50 Isso
economicamente marginal, inas também, e mais importante .c.spccial- implica que, aos envolvidos no desafio, nada mais importa que o
mentr paia <xs fins deste livro, para a definição de um padrão de (não) momento e a defesa incondicional c sem nenhuma gradação de uma
reconhecimento social murro rrmalhintr àquele do quaJ o próprio noção primitiva c autocentrada — mas uma vez produto da ausência
escravo é vitima, embora oculu»sob iòrmas aparentemente voluntárias de uma religiosidade ética que pressupõe alguma forma de descen-
c consensuais que dispensam grilhõese algemas, Com o iremos ver tração da consciência de honra.
também, as circunstancias sociais que permitem a constituição c
124 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA SU BCID A D A N IA ... Parte 2 - 125

Nesse contexto, os riscos não são cuidadosamente evitados mas terras, apesar da ilusão subjetiva de liberdade ser um componente
ousadamente enfrentados e levados às últimas consequências. Na constitutivo dessa forma peculiar de dominação pessoal.
ausência de formas de regulação externa da conduta, seja através de A maestria da exposição de Carvalho Franco reside cm precisa­
mecanismos reguladores externos, seja através de códigos morais mente cm revelar a riqueza c as vicissitudes desse ripo ambíguo c
internalizados, a violência se erige em conduta aceita e legítima, velado de exercício do poder pessoal. Apesar das manifestações feno-
sendo percebida como o único modo de restabelecer a integridade ménicas do dependente serem varias, ele talvez possa ser captado
do agravado.'1 Aqui as reputações se expressam cm frases do tipo adequadamente a partir da figura, clássica na melhor literatura brasi­
fulano não leva desaforo para casa", ou, no seu equivalente nordestino, leira,54tio “agregado” rural ou urbano. Nas suas formas fénomcnicas,
se o leitor mc permite uma referência ao meu próprio horizonte o agregado podería assumir a forma do tropeiro, do vendeim, do
cultural, aquele cabra é macho mesmo, não tem medo de ninguém*'. sitiante ou, ainda simplesmente, o “cabra" de confiança, o braço
Aqui, os conflitos tendem a tomar a forma rotal de lutas de extermínio, armado e camarada de confiança do patrão. O que une todas essas
pela impossibilidade de negociação que podería limitá-lo a proporções formas concretas e a existência de uma relação pessoal de dependência
parciais. - Deste modo, n ã o c apenas a pobreza material e a escassez, objetiva que “aparece, para ambos os lados, como se fosse o resultado
que se constitui com o fauãi explicativo básico do lionzonte moral do de um acordo voluntano
dependente, mas esprcialmentc a sua pobre/a espiritual, m«:>rale .sim­
A relação do agregado com o senhor ê um vinculo de favor e
bólica em sentido amplo, que transforma a violência no éniu i codigo
legitimo. proteção, como aliás de rodas as formas de dominação pessoal que
abdicam do uso direto da violência física. O que caracteriza a forma
Sc a violência era a sombra ubíqua que refletia a ausência de um peculiarmente “brasileira” desta relação tem a ver com a ausência de
codigo moral explicito, internalizado e articulado que pudesse regular código explícito e compartilhado por todos, o qual permitisse, tam­
c controlar a vida social, isto não significa a inexistência de códigos bém, a limitação da amplitude c profundidade do poder do elemento
inarticulados c opacos, no sentido de não serem percebidos enquanto dominante. Na ausência da ação efetiva de um código moral com
tais por seus praticantes c, muito especial mente, por suas vítimas. O algum grau de institucionalização — o qual cm contextos tradicionais
próprio codigo da virilidade é, sem duvida, uma versão rude e primi­ ixissucm invariavelmente um fundo de religiosidade crica, corno
tiva de vida moral, No entanto, o que existe aos meus olhos de mais vimos ausente em sociedades da “nova periferia” do tipo da brasileira
interessante e importante no trabalho de Carvalho Franco c o magistral — que pudesse constituir uma esfera autônoma de moralidade para
desvelam en to do código de honra-<jue unia, numa relação vertical além dos meros desejos e ambições pessoais em jogo, o código implí­
cu|o vínculo hierárquico era cornado naturalizado c intransparente, cito da relação de favor/proreção tende a assumir traços muito pecu­
tkpendenrc c senhor de terras. J j esse vínculo hierárquico naturalizado liares, que são analisados com argúcia c competência por Carvalho
e tornado intransparente <flic esclarece a importância do escravo como Franco. Além da ausência de um código moral compartilhado, o
“presença ausente" conferindo, apesar de não ser um elo direto da monopólio da terra c dos fatores l!c produção indispensáveis â grande
referida relação, o seu caráter peculiar. Como vimos, era o escravo propriedade mercantil, completam o quadro de pressupostos objetivos
que ocupava o lugar pn idutivo fundamental no sistema escravocrata. para dar conta da especificidade dessa forma de dominação entre nós.
Vimos também que o dependente livre era, por conta disto, obrigado
O dependente se rclacú ma com o proprietário como se tosse seu
a ocupar as franjas e os interstícios da atividade econômica principal.
igual. Como explica um membro da classe dominante, citado por
Isso o obrigava a uma dependência objetiva cm relação ao senhor de
Carvalho Franco: “Não havia desigualdade entre fazendeiros e sitiantes;
126 - A CONSIRUÇÃO SOCIAL DA SUBC1DAOANIA... Parte 2 - 127

havia mesmo amizade. Se um deles chegava a nossa porta, vinha para Nesse sentido cspccífia >. a “servidão voltmtárjaT d<>dependente, seria,
a mesa almoçar conosco,” ' Por trás dessa igualdade tormal, no entanto, para Carvalho Franco, ainda mais vimlenra que a dominação explícita
se esconde o lato mais tundamenrai de que a subsistência material do do escravo:
dependente esta condicionada a boa vontade do senhor. B ele, afinai,
que empresta a terra ao sitiante, e de que pernute (ou não) ao tropein > Na propriedade servil, embora o escravo seja transformado em
o uso de pastagens em suas terras, é ele que apadrinha c protege a coisa e a extinção dc sua consciência vá ao limite d.i auconcgaçào
prole de seus cabras e agregados. A contrapresraçao dos favores c como pessoa, existem marcas violentas que denunciam a opressão
proteção, mais uma vez, na ausência de um código moral objetivo, que sobre des pesa e nessa medida possibilitam pelo menos “um
explícito e autônomo que estabeleça obrigações a ambas as partes, vago desejo dc liberdade”, “urna mera necessidade subjetiva de
adquire a iorma de sujeição absolura. A identificação do dependente afirmação que não cnconcra condições de realizar-se cnncrccamcnte”.
Liberdade impossível mas pelo menos desejada, que devolve ao
com os interesses e desejos do senhor vai ao limite do assassinato a
escravo, embora apenas como projeção individual, urn seitrido dc
mando;” à subordinação dos interesses da própria família56 c ate a
humanidade. Para aquele que se encontra submetido ao domíliú i
}>erda da própria liberdade1 para o atendtmenro das necessidades c pessoal, incxisiem marcas objetivadas d<»sistema de constriçõcs a
interesses do patrão e protetor,
que sua existência está confinada, seu mundo é formalmentc livre.
De interesse nesta relação c a dcscolierta dos mecanismos, opacos Não é possível a dcscolieria dc que sua vontade está presa a do
à consciência dos envolvidos, que permitem o esralxdccimcnto de ral superior, pois o processo dc sujeição tem lugar como se tosse
grau de heteronomia numa relação social entre lormalmcntc iguais. espontâneo. Anulam -sc as possibilidades de auiocoivsciénria. visto
O primeiro aspecto relevado por Carvallu >Franco c o íechamcnro dc como sc dissolvem 11a vida social todas as referencias a partir das
quais ela poderia se consumir. Plcnamcntc desenvolvida, a domi­
horimnfe de possibilidades dessa população para a compreensão dc
nação pessoal transforma aquele que .1 sofre numa criatura4ü»m~
qualquer relação impessoal lodo horizonte dc significados, no con­
(içada: proteção e benevolência lhe são concedidas cm troca de
texto examinado, c sempre redutívcl a motivos c atributos de sujeitos
fidelidade e serviços reflexos. Assim, para aquele que está preso ao
concretos. Não existe n possibilidade de "abstração valorativa” que |xider pessoal sc define um destino imóvel, que sc fecha insensivel­
pudesse permitir pensar-sc cm termos de valores univcrsalistas ou mente no conformismo,?8
impessoais. Estado, lei, autoridade impessoal, são conceitos estra­ .J
nhos c litcralmente incompreensíveis enquanto tais. Na falta de uma
Es.sc feto é também responsável pela nâ<>fxrrcepção da dimensão
religiosidade dc fundo ético que transmita e institucionalize, cm alguma
social na qual o senhor de terras era efetivamente também dependente
medida, obrigações c mandamentos á ação gencralizáveis e universa- da contraprestaçâo do subordinado: 11a esfera política, Ncsra dimensão,
lizantcs, o fechamento da imaginação no horizonte do concreto e do cks serviços c a lealdade dos agregados c dqsendciites eram clcthramcnrc
imediato se cristaliza de maneira inexorável.
indispensáveis ao senhor. A jx ilítica era o campo por excelência do exer­
Nesse contexto, a retribuição dc íavores ao protetor poderoso cício da lealdade c da subserviência percebidas .sob a refração do manto
adquire a realidade de uma retribuição honrosa que rccstabclece. na honroso da “gratidão”. Ainda hoje, no N'<irdeste brasileiro, embora aqui
consciência do dependente, algum sentido dc bilaterahdadc c, arravés .saiamos do horizonte empírico do estudo de Carvalho Franco, cujo
desta, dc alguma Iorma de auto-esrima c reconliecimento social ( ) ambiente rural é o lugar por excclcncia da continuidade secular dessa
resultado aparece conto uma acciução voluiuána da autoridade, forma dc relação social, mas também, ainda que de forma d ifira, no
percebida, nes.se mvcl de consciência, com o consensual e desejável. meio urbano, o único crime que não merece, perdão c a “ingratidão’’ ,
128 ' A CONSTRUÇÃO SO CIAL L>A SUBC1D AD ANIA... Parte 2 - 129

o crime capir.il do poder pessoal. De todo modo, Carvalho Franco O aspecto mais interessante das visões do escravo-na “escravidão
percebe nessa relação políáca uma única forma de deriva dependência muçulmana”, que analisamos com Freyrc, e do ilcprodentc lomulmence
mutua, que poderia estimular uma maior probabilidade de que o livre, analisado por Caivallx>Franco, é sua extraordinária comiguidadc,
senhor possa se sentir lòrçado a cumprir etêri vamenre suas obrigações. Ambos são obrigados, através de processos c precondiçôes sociais
Na sua lalta, os compromissos do fazendeiro são frágeis c absoluta­
distintos, a assumirem posições quase que tntcrcambiáveis. Aos dois
mente dependente de seus humores c de sua boa vontade.’*
é comum o fechamento do próprio horizonte de percepção dfxs seus
N o entanto, a dependência objetiva não eliminou a possibilidade
interesses e a subordinação, com o se fosse uma eleição advinda de
real de ascensão social para vários dependentes. Graciliano Ramos,
escolha autônoma, aos interesses e desejos do senhor. Ambm irão
um dos maiores escritores brasileiros do século XX. narra em Sáfí
Bentardti™a trajetória de um cx-dependente que logrou, a golpes de formar a “ralé” dos imprestáveis e inadaptados ao novo sistema
esperteza c assassinatos, à condição de senhor de terras e gente. O fio impessoal que chega de fora para dentro “como prática institucional”
condutor da belíssima prosa de Graciliano e prectsamente o processo de pura, sem o arcabouço ideal que, nas sociedades centrais, foi o estí­
dcsumanizaçâo que a ascensão social neste contexto de insegurança, mulo último para o gigantesco processo de homogeneização do tijx>
precariedade c violência exige. Ela implica, na realidade, cm trans­ humano contingente e improvável que serve de base à economia
formar em virtude adaptativa a faculdade de nã<>levar em conta qual­ emocional burguesa, e que permite a sua generalização também para
quer forma de respeito á alteridade. ( ) “fraco” deve ser explorado e
as classes subalternas. £ .apenas quando este processo c levado a cabo
humilhado, para que nunca esqueça “quem manda”, e o “forte”, se
com alguma medida significativa de sucesso, que poderemos ter a
for um rival, deve ser “eliminado” anres que possa ler a mesma idéia,
ou seja, com o um “cuidado preventivo”. chance de que a lei abstrata que serve de .substrato à noção de cidadania
seja uma realidade efetiva. Estc será o fio condutor de toda a terceira
O talento literário de Gradliano deixa claro que o drama subje­
tivo de Paulo I lonório, o nome do herói do romance, cuja incapaci­ c última parte deste livro.
dade de estabelecer laços afetivos o joga no desespero e na solidão,
está inrimamenre relacionado ao drama objetivo de um contexto que
só permite a oposição “fortes” e “fracos”, tiranos c humilhados. A
narrativa de Graciliano ajuda também a compreender que a realidade
abordada por Carvalho Franco era nacional, assim com o a “sombra” Do p o d e r p e sso a l ao p o d e r im p e sso a l
da escravidão que a condicionava.
Carvalho Franco, neste mesmo sentido, supõe também vias
alternativas, conformism o do maior número e ascensão social de
a) Florestan Fernandes e a dimensão macrossocial da
uns poucos, ao dependente enquanto indivíduo.''1Coicuv.imentc. no
revolução burguesa no Brasil
cnuitLo. a v:u reformadora c revolucionária a partir de baixo estava
lêduda, dado precisa mente o caráter naturalizado, opact >e pré-reflexivo
da “servidão voluntária”, excetuando-se qsmovimentos messiânicos cpi
Vimos que a tradição dominante. seja na dimensão local, seja na
sqdicqs c passageiros. O caminho cio dependente, o mais das vezes,
fi>i e é o da submissão, excetuada a explosão eventual c violenta que dimensão internacional, rende a interpretar o processo de moderni­
apenas coniirma sua solidão, isolamento c desespero. zação de sociedades da “nova periferia" como a brasileira, com o um
130 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SU6CX0ADAMA. Parte 2 - 131

processo ambíguo de cerra forma comandado pela variável pré- principal do secundário (mesmo quando este ultimo seja o dado mais
moderna. o que explica seu caráter incompleto e superficial. Deste visível a «»lho nul) distanciando da corrente de pensamento dominante
modo, o personalismo c a égide do poder pessoal continuaria domi­ que percebe a modernização de sociedades periféricas como a brasi­
nante, quando muito com transformações de escala, como a passa­ leira como um fenômeno superficial e epidérmico.
gem dc um contexto parriarcalista e familista para um contexto patri-
A forma com o Florestan percebe o aparecimento do burguês,
monialisra comandado pela instância estatal. Corrupção, golpes de
Estado, pobreza, tibieza das instituições, todas as mazelas das socic- no Brasil, combina períeiramente com nossa discussão acerca da
dades |x-rifcricas podem assim ser explicadas com um único golpe. anterioridade das “práticas” (institucionais c sociais) em relação às
Com o não mc canso de repetir, csie tipo de explicação não c apenas “idéias”! O "burguês", entre nós. diz ele. já surge como uma "reali­
vítima de contradições internas insolúveis, mas impede uma ade­ dade espcrinlizada”.65 ou seja, c agora já na nossa visão, não surge
quada tcmatizaçáo dos “reais” problemas que ailigem este ripo de como uma criação espiritual cuja prática inintencional o transforma
sociedade. E nm tipo de explicação fácil, rente ao senso comum, dc em agente econômico como na Europa. Não surge, enfim, como
onde retira plausibilidade c poder de convencimento, tendo levado a produto dc roda uma visão de mundo revolucionária da vida social
teoria e a prática política dessas sociedades a um beco sem saída, em todas as dimensões, como na Europa, mas como um produto
Apesar de dominante no passado e no presente — hoje em dia circunscritamentc econonucti. Um produto econômico que, desde o
sob a máscara do hibridismo, tão cm moda num contexto “politica­ começo, se constitui como resposta a estímulos econômicos concretos,
mente correto”, já que tende a confundir palavras dc ordem políticas sem que ocorra, pelo menos a curto e médio prazo, tuna abstração dessa
desejáveis com a análise de realidades táticas — , o paradigma do circunstância paia o contexto social maior. Sem duvida contribui
personalismo não é,m cntaiiU M J único, bloiman Fernandes parece-me para isso o fato de que o capitalismo se estabelece entre nos sob sua
o autor penteneo que mais se aproximou da construção dc um para­ variante comercial, na medida em que os “agentes comerciais autôno­
digma, o qual, a partir dele, é possível visltunbrar uma concepção mos” tendiam a se converter cm assalariados das casas exportadoras ou
alternativa que ]semn?n dar conta dos problemas “modernos dc socie­ desaparecer na plebe urbana, não permitindo a constituição de um
dades modenttmentr periféricas. núcleo de interesses autônomo da manufatura c da indústria.66
O livro-chave para a discussão deste ponto em Florestan c o seu Fai a Florestan, o fator estrutural fundamental da implantação do
A revolução Uur&uaa na Brasil. O rema do livro c precisjjncntc a capitalismo no Brasil é a independência política, a partir da quebra
implantação c consolidação do capitalismo cm nosso paísbflorcstan do pacto colonial c da concomitante estruturação dc um Estado
percebe, com clareza c agudeza im}>ecávcis, que o ponto essencial nacional. Ele cira cxplicitamcnrc a rede dc serviços para a constituição
neste contexto é a c<impreensão do “padrão dc civilização d<iminantc" dc um Estado nacional c o efeito multiplicador deste fato para o
a partir da transformação estrutural das firm as econômicas, soáais c desenvolvimento de sociedades urbanas. Apesar do empreendimento
políticas fundamentais/’’jPara ele, no Brasil pis-independência (1822),
colonial rer sido, desde sempre, associado ao capitalismo comercial
este padrão dominairfe‘vai ser o do “mundo ocidental moderno”.63
internacional, todo o esquema era montado para drenar as riquezas
Não deve ser, portanto, nos “fatores exóticos c anacrônicos da
de dentro (colônia) para tora (metrópole), impossibilitando que a
paisagem”,64 diz o autor, c<»berro dc razão, c]uc se deve procurar esse
riqueza aqui produzida pudesse dinamizar o mercado interno/'7 Desse
padrão, mas nos requisitas estruturais e funcionais do padrão dc civi­
m<nlo, o rompimento do estatuto colonial, permitindo que parte maior
lização dominante. K prccisamentc esta sofisticação de análise c percep­
do produto gerado fosse aplicado internamenre, convcrtc-sc, para
ção que O permite superar a análise dc aparências c hicrarquizar o
florestan, no passo inicial, juntamente com a já mencionada expansão
132 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBUDADANÍA... Parte 2 - 133

do Estado nacional c suas consequências socioecí>nômicas — novos sociais que se desenvolviam. Assim, até a derrocada do escravismo
serviços c funções, homogeneização e maior ligação entre os diversos 11888) c do Império (1 8 8 9 ), as novas forças c práticas sociais cm
mercados regionais etc. — para a singular construção dc um capita­ ação desde início do século XIX mostram-se ainda sob a lente dc dis­
lismo periférico.
tinções e avaliações estamentais da ordem anterior. E precisamente
() principal asjxrcto limirante, di> npo dc sociedade moderna esse “dcficir” de arrimlação que dá conteúdo à noção dc Morcsran dc
constituída com o que «tantos diamaiuio dc antenondade das práticas uma revolução burguesa “eucapuzada1'. Ela se produz moleeularmente,
institucionais e sociais cm relação a.s ide de rrmndi capilarmente, em pequeno, no dia e dia e nas práticas cotidianas,
unpossihilidade de articulação consciente da visão de mundo e do mas sem a articulação consciente c dc longo prazo dc uma visão dc
comporuinentoccMidiano que essas mesmas práticas institucionais e inundo adequada a seus próprios interesses.
sociais envolvem. Articulação, aqui, significa a capacidade dc perceber O estatuto do liberalismo ciure nós é muito interessante para
com clareza as precondiçôcs c pressupostos imprescindíveis para o precisar e, ao mesmo rempo, mediar e limitar o que acabamos de
desenvolvimento das práticas mencionadas anteriormenre, assim como dizer. E que a doutrina liberal irá se transformar, como Florestai!
o adequado cálculo dc consequências ininrcncionais que essas mesmas percebe com agudeza impecável, no ideário mais adequado para a
práticas envolvem. Essas práticas não são “neutras”, como vimos na expressão da visão de mundo c dos interesses da nova sociedade que
discussão feira na primeira pane deste livro. Ao conrrário, mercado c se formava a partir das entranhas c da lenta decadência da antiga. O
Estado já reproduzem uma visão dc mundo c do ser humano contin­ ideário liberal era não apenas expost cm relação ãs práticas das quais
gente historicamente produzida, quclucrarquizani indivíduos e clas­ ele passa a ser o porta-voz, boa parte dc sua limitação advinha da sua
ses sociais dc acordo com seus imperativos funcionais. É com base posição “reativa” em relação à antiga ordem dominante, send< ><ibrigada
nessa lucrarqma que classificados e desclassificados sociais são pro­ a lutar dentro do campo dc ação demarcado pelo inimigo. Sua posição
duzidos sob uma aparência de naturalidade e neutralidade pela ação no debate sobre a abolição da escravidão é sintomática tanto de sua
dc princípios supostamente universais c acima de qualquer discussão importância quanto de seus limites. Sua importância e ambiguidade
com o, por exemplo, a noção dc desempenho diferencial. ficam ciaras a partir do fato dc que a pregação liberal anticscravisca ao
Com o avanço da abrangência da lógica de funcionamento dessas mesmo tempo “disfarçava e exprimia o afã de expandir a ordem social
práticas institucionais fundamentais, temos, concomitantcmcnte, um competitiva”,** ao dirigir-se contra a instituição fundamental da anti­
aumento da eficácia capilar dos princípios de organização social c dc ga ordem para dar-lhe o golpe dc morte definitivo, abrindo caminho
comportamento individual implícitos na ação de práticas institucio­ para uma reorganização nacional segundo os interesses da economia
nais como mercado c Estado. Passa a ser fundamental, para o tipo de dc mercado. Sua limitação fica dara, por outro lado, nos contornos
sociedade que se constitui sob esse estimulo, o grau de consciência e amesquinhados do compromisso final entre as elites, que torna a
dc auto-rellexividadc que os atores c gmpos sociais envolvidos c imersos abolição uma “revolução social de brancos para brancos”, leia-se, um
no processo possuem das virtualidades do mesmo, Um "déficit" de compromisso inrra-clitc, inaugurando, daí, um abandono secular de
articulação pode significar, neste contexto, não apenas “naturalização uma “ralé” despreparada para enfrentar as novas condições sociocco-
da desigualdade”, aspecto que iremos desenvolver cm detalhe na nòmicas.
terceira parte deste livro, mas também, por exemplo, ausência de IX- qualquer modo, o liberalismo fornece uma espede dc "gra­
perspectiva dc longo prazo e ausência de adequada compreensão da mática iminuia”, que permite explicitar os interesses envolvidos na
profundidade e da abrangência dos novos comportamentos e papéis rcelaboraçào de uma nova agenda socKXukural dc urna elite recém-
134 - A CONSTRUÇÃO SOCTAI DA SURCTDADAWA... Parte 2 - 135

saída da dcpendém-ta cdrt mrnondadc, para o desempenho dus papéis sociais c psicossociau se impõem quase com o realidade material
cnçrdfw para a inserção ito mercado internacional e para a gestão de bruta. O ideário ex post do liberalismo, se possibilita a mediação,
um aparelho estatal nacional autônomo O liberalismo passa a vigorar negociação c legitimação a curto prazo c no “calor da luta” dos
como uma ideologia ou visão de mundo g^lvanizadora c integrador a novos papéis sociais, permitindo um “alargamento das esferas psicosso-
dos novos requisitos estruturais e funcionais, canto da nova ordem ciais de percepção da realidade”/1 não logra, por outro lado, realizar,
legal.61' quanto também d.a concepção de mundo que articulava uma com o alto grau de consciência e inteucionahdade que caracterizam
nascente esfera pública. ( ) discurso liberal, de cerro modo, dciinia as os casos europeu e norte-anteneano, expeaativas de longo prazo paia
possibilidades c limires dessa esfera que então se formava. Tratá-la a sociedade com o um todo. Não houve aqui nenhuma preocupação
com o um dado “psicótico”, desvinculada da realidade, uma “idéia com a “sociedade ordeira”7* que caracteriza os esforços de organização
íòra de lugar” ou atribuir-lhe um caráter meramente epidérmico ou social das comunidades puriranas nos EUA. nem a preocupação,
de fachada, cotno um mero adorno ou “máscara social”, parece não primeiro da elirc e, depois, das próprias classes subalternas euro­
perceber a dinâmica social de longo prazo, único modo de dar conta péias. com os processos de homogeneização e generalização do tipo
da forma pela qual idéias e concepções de mundo se articulam com de personalidade e de economia emocional burguesa. Veremos, na
interesses sociais concretos. parte 3 deste livro, as graves consequências acarretadas por este faro.
t A “gramática mínima” do liberalismo jtermiriu a exploração, Por mais interessante e refinada que seja a análise de Florcstan
ainda que ritubcantc c incipiente, de todo um universo material e d<>processo de modernização brasileira do século XIX, ela apresenta,
sim bólico que, de outro m odo, teria permanecido inarrículado. ao mesmo tempo, deficiências graves c sintomáticas, Se lhe sobra
Florcstan percebe que a sociedade colonial, localista, provinciana
sensibilidade sociológica para a percepção dos fatores estruturais cm
c baseada cm relações pessoais, experimenta por assim dizer um
jogo neste processo, falta-lhe a consideração da dimensão que confere
“choque cutniral” que a transforma, paulatina mas radicalmcnte, em
a este “sangue e carne”, ou seja, à dimensão da ação social consubs­
uma sociedade nacional com relações de dominação crescentemente
tanciada na temarizaçáo dos grupos e classes suportes do processo de
impessoais. O liberalismo fornece uma linguagem possível para este
modernização. Na reconstrução de Florcstan, esse tema, quando
processo de abstração c generalização, permitindo a autocompreensão
tratado, apresenta inclusive um significativo hiato de 60 anos entre a
dos próprios sujeitos imersos no processo. As novas funções estatais de
consolidação da estrutura cstaral, vista por ele próprio como o marco
grande |x>rte como fisco, administração centralizada da justiça, rede
de serv iços e cirditt >etc., quando associadas ao aumento da significação zero do processo de mudança social, e a temarizaçáo dos agentes do
econômica do com ércio, o que implica, por sua vez, o estímulo às processo de modernização. Sujeitos da modernização brasileira para
profissões liberais, imprensa c a diferenciação de ocupações quali­ Florestan são os fazendeiros do Oeste paulista, percebidos com o
ficadas, completam o quadro de expansão e diferenciação social herdeiros dos bandeirantes, c o imigrante italiano que chega ao
antes inexistente.;,|> Brasil nas ultimas décadas do século XIX. * Como explicar esse hiato?
Por que a desconsideração do processo de modernização que se da,
E essa revolução política da sociedade nacional integrada, ainda
na realidade, inicialmcnte no R io de Janeiro c depois em Salvador e
que de modo parcial e incompleto dada a endêmica escassez de
recursos, que irá permitir a Florcstan a “silenciosa revolução sociocco- Recife, antes de alcançar, com intensidade inédita, São Paulo?
nômica” que constitui o Brasil m od erno.1A revolução burguesa tenra Essa circunstância, para mim, é sintomática do fato de que sua
c molecular, ou seja, a “revolução encapuzada” de que fala Honestan. é interpretação alternativa do processo de modernização brasileiro não
a mais jxntcita expressão de um processo de modernização onde as tenha ainda sido levada em conta, até onde posso saber, pelo menos
“práticas” inxnrucionais, como Estado c mercado, e suas consequências
136 - A CONSTRUÇÃO 50CTA1 DA SUBCIDADANIA... Parte 2 - 137

cm ioda a .sua radicalidadÁ H que, apesar de Florestar ter consciência b) Gilberto Freyre e a dimensão microssocial da vida
dara da efetividade do processo de modernização penlêrico brasileiro, cotidiana
d e o interpreta segundo o registro teórico da “escola do parrimonia-
lismo” que enfatiza a “cueepewwwilidgdc paulista”: Segundo esse tipo
de interpretação, o processo modem izador brasileiro é endógeno e O tema dc Sobrados c mucambos, esse belo “romance sociológi­
se localiza cm São Paulo, percebido como uma cspccic de “Nova co" da vida urbana brasileira da primeira metade do século XIX, sob
Inglaterra tropical”, que se contraporia ao resto do país atrasado, impacto da reeuropeizaçao, c a lenta decadência da cultura patriarcal
personalista c corrupto. O processo-chavc para essa construção é a rural brasileira a partir do desenvolvimento das cidades e da cultura
romanttzaçáo do bandeirante como precursor do fazendeiro do Oeste urbana desde inícios do século XIX. Ao contrário dc Florcstan. que
paulista — naquela forma de presridigitação teórica que transforma o localiza o ponto de inflexão da mudança em 1822, com a indepen­
bandeirante aventureiro em protótipo do capitalista, quando este, na dência e a constimição de um Estado nacional autônomo, Freyre a
verdade, é o seu contrário especular. A obra do Sérgio Buarque antecipa cm alguns anos. Afinal, 1808 é um ano prenhe dc aconte­
maduro, a interpretação de Raimundo Haoro cm Os dêmos do podei- c. cimentos de larga repercussão, corno a vinda da família real portuguesa,
muito cspecialmcntc, o elegante São Paulo e o hstado narioual de Stmon que lugia das guerras tupoleònicas, c a abertura dos portos, no
Sclwartsrnan, são rodos exemplos dessa influente corrente interpre- mesmo ano, eliminando o monopólio comercial da metrópole.
tativa qtic marcou não só o horizonte teórico nacional mas também o Esses dois acontecimentos com o que ilustram, aos meus olhos,
prático-pol ítieo.75 a entrada, no contexto de uma sociedade até então extremamente
De forma menos explícita, atinai. Florestar» está se referindo a primitiva material c simbolicamente, das duas práticas institucionais
um processo moderutzador de proporções nacionais. Sua interpreta­ mais fundamentais c importantes do mundo moderno: Estado c
ção, ao se concentrar nos grupos envolvidos tio rápido processo dc mercado. Afinal a vinda da família real, acompanhada dc milhares dc
modernização paulista, a partir do final do século lÒX, e “esquecer" funcionários do rei c por parte expressiva do meio circulante
o processo dc recuropeização que se dá em outros centros urbanos português,7*1 irá significar, para alcm do aspecto pragmático do
do Brasil desde 1808, parccc jogar água no moinho da variante de maior controle fiscal e político sobre a colônia, também uma primeira
interpretação patrimonialista que enfatiza o exoepcionalismo paulis­ forma, inédita até então, dc introdução de uma serie dc melhoramentos
ta, O alto nível dc abstração da exposição, causado precisamente pela sociais c apoio c estímulo à produção e serviços. A abertura dos
narrativa de mecanismos cstrunirais sem uma ênfase concomitante portos irá significar não só o aumento da troca dc mercadorias, mas
no aspecto da ação social, reforça essa possibilidade de interpreta­ também a entrada, cm quantidade significativa, que muda a paisagem
ção. F. por conta destes elementos não considerados adequadamente humana dc cidades como o R io de Janeiro, dc agentes comerciais,
cm sua análise que julgo, para efeitos dc adequada exposição do que vendedores, manufáuireiros, mecânicos c viajantes europeus, especial­
me parccc ser um caso típico de “modernização exógena”, de fora mente ingleses Boa parte da história que Freyre nos conta no seu
pata dentro. Considero que a exposição dc H bw nu i deva ser com­ livro deve-sc ao impacto dessas duas inovações principais.
plementada com a interpretação de Gilberto Freyre acerca do proces­ A chegada dc D. João V I, simbolizando o maior peso do Estado
so dc rccuropcizaçãô que toma o pais dc assalto desde inícios do na vida da colônia, implica uma nova orientação da vida política c
século XfX social na direção de uma maior proteção dos interesses urbanos em
desfavor dos interesses rurais, antes todo poderosos conforme já foi
138 - A coNsmiçÀo social da subcidadanja. .. Parte 2 - 139

mencionado, de tal modo que, lenta mas seguramcncc. a cidade tende parte dos seus relatos de viagem ao interior do Brasil, como o espantava
a se afirmar num a o engenho c o potentado rural c o Estado contra o fato de não ver ou conversar com mulher, quando de visita cm casa
a família patriarcal. U A ligura do intermediário, do comerciante, do de brasileiro. As mulheres literalmcnte fugiam dos visitantes. A mu­
financista, do emprestador de dinheiro a juros, começam a ganhar tilação social c moral da mulher legitimava o duplo padrão de mora­
cm importância, ameaçando c minando paulatinamente as bases do lidade: rodas as liberdades ao homem e todas as obrigações à mulher.
poder do senhor de terras e gente dhc aqui a mcrcantilização crescente Também neste campo, os fatores impessoais da vida urbana e
da vida econômica passa a ameaçar os fundamentos estamentais da moderna levaram a uma modificaçãi»importante nos padrões da relação
base socioeconòmica do parriarcalismo, a entrada do Estado e de entre os sexos. Tspccialmcnre a entrada cm cena das figuras sociais
seus agentes, ainda que ambiguamente e sob «>peso de compromissos do médico de família, que substitui o confessor, o diretor de colégio,
constantes, completa o quadro de substituição paulatina c capilar do o juiz, representam, no fundo, a nova presença de instituições que
poder pessoal e familiar pelas instituições impessoais recétn-importadas. passam a mediar as relações puraincnic pessoais no ambiente familiar,
Sem dúvida que a forte interpenetração de interesses urbanos c mitigando c limitando a importância patriarcal e implicando consi­
rurais, tanto no plano econômico quanto no plano político, fezcoin derável ganho de liberdades de movimento às mulheres, elevando-a
que a subordinação dos interesses fantilistas se desse por etapas, jurídica e moralmcntc.**'Já no final dp_séçulq 3UX»como afirma Freyre
negociações c regressões eventuais, o que o torna visível apenas a cm Ordem e progresso, o livro que fecha a trilogia iniciada com Casa
uma perspectiva de longa duração. Nesta perspectiva, a direção geral de granAt & senzala e continuada com Sobradas c nmatmbos acerca da
menos patnarcalismo e mais individualismo c evidentee insofismável./* ascensão e queda do Parriarcalismo no Brasil, temos a entronização
A lenta superação do pcrstMiahsino e do tãnulísm o deu-se tanto do amor romântico, independente da classe e situação econômica
no espaço privado qitanfn rio póMicot Nü espaço privado,.foram as dos amantes, como a forma dominante e legítima de consórcio enrre
relações do patriarca com sua própria família que tenderíam a mudar os sexos."' o que comprova a penetração dos ideais individualistas no
radicalmcntc. A mudança da relação com a mulher c parricularmcntc cotidiano.
signilicativa. N o contexto do patnarcalisnto meio ‘‘árabe” c meio Mas a grande derrota do personalismo patriarcal dentro de casa
poligâmico brasileiro, a desvalorização da figura da mulher tendia a não sé deu em relação à mulher do patriarca, mas cm relação ao seu
assumir formas extremas.7’ A ligura da mulher era percebida como o filho. No contexto patriarcal tradicional, a distância entre o homem c
contrário especular da do homem, como diz Freyre, uo sexo frágil e o menino é imensa. O patriarca, com o autoridade praticamente
belo, mais frágil do que belo”,"' de modo a diferenciada da agilidade absoluta, tinha ate o direito de morre sobre seus filhos."4 A educação
e do vigor masculinos. Para Frevre, a distância e a animosidade entre dos mais novos tinha, muitas vezes, requintes de sadismo."5 Com a
os sexos não permitia formas de simpatia feminina pelo trabalho ou entrada em cena espoei aImente do Estado, com suas novas necessidades
pela pessoa do homem, desenvolvendo formas pessoais c intelectuais c imperativos funcionais, essa situação muda radicalmente. O Estado
nardsicas c monossexuais próximas da morbidez Freyre percebe, e em menor grau as atividades ligadas ao comercio urbano minam o
com clareza psicanalítica, o desejo dissimulado de afastar a competição poder pessoa) pelo alto, penetrando na própria casa do senhor, rou­
c o fascínio da mulher e de dominá-la complcramcntc (medo e bando-lhe os filhos e transformando-os cm seus rivais.
controle). Viajantes europeus reportavam, escandalizados, os hábitos
É que as novas necessidades estatais por burocratas, juizes, fiscais,
de senhores que mandavam a mulher para o asilo de modo a poder
juristas etc., todas indispensáveis para as novas funções do Estado, jxa-
viver cm paz com sua amante."1 Saint Tlilairc reporta, cm alguma
dem ser melhor exercidas pelo conhecimento qtic os jovens adquirem
140 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBCIDADANIA... Parte 2 - 1 4 1

na escola, espccialmcmc sc essa iòsse européia, o que lhes conferia públicos cm favor dos particulares. O abastecimento de víveres, por
ainda mais prestigio. Com isso, o velho conhecimento baseado na exemplo, foi um problema cspecialmcnre delicado, sendo permitido,
experiência, típico das gerações mais velhas, foi rapidamente desva­ inclusive, o controle abusivo dos proprietários ate sobre as praias e
lorizado. em um processo que, pelo seu exagero, é típico de cpocas dos viveiros de peixes que nelas se encontravam, sendo estes vendidos
de transição como aquela. D. Pedro II c uma figura emblemática depois a preços oligopolísricos.*"
nesse processo. Sendo ele próprio um imperador jovem, ccrcou-se de A recuropcização teve, nesse contexto primitivo, um caráter de
seus iguais, ajudando a criar o que Nabuco chamaria de “nc< Kiracia”.86 reconquista ocidental íz ante c de transformação profunda não só de
( ) faro c que os presidentes de província, juizes, consellieiros, dos hábitos, costumes c mores, mas também de introdução de valores,
grandes aos pequenos cargos do novo aparelho estatal, passam a ser normas, formas de comportamento e estilos de vida novos destinados
conferidos, prioritariamente, aos jovens com diploma. a se constituir em critérios revolucionários de classificação e desclas­
Mas foi no espaço publico que as novas mudanças se mostraram sificação social. O que foi introduzido a partir de 1808 foi rodo um
com mais ênfase. A cpoca de transição do poder político, econômico novo mundo material e simbólico, implicando na repentina valorização,
ç cultural do campo para a cidade foi também, em vários sentidos, a de elementos ocidentais c individualistas em nossa cultura mediante
época do campo m cidade De início, o privatismo c o personalismo a influência de uma Europa, agora já francamente burguesa, nos
rural foi transposto tal qual era exercido no campo para a cidade, A exemplos da França. Alemanha, Itália, e, muito cspecialmcnre. da
metáfora da Casa e da Rua em Gilberto assim o atesta. O “sobrado5*, grande potência imperial c industrial da época, a Inglaterra. Tal
a casa do senhor rural na cidade, ê uma espécie de prolongamento processo realizou-se com o uma grande revolução de cima para baixo
material da personalidade do senhor. Sua relação com a ma, essa envolvendo r<xlos os estratos sociais, mudando a posição e o prestígio
espécie arqucúpica e primitiva de espaço público, é de desprezo, a relativo de cada um desses grupos e acrescentando novas elementos
rua é o lixo da casa, representa o perigo, o escuro, era simplesmente de diferenciação. São esses novos valores burgueses e individualistas
a não-casa, uma ausência, O “sadomasoquismo” socíalmenrc con­ que irão se tomar o núcleo da idéia de “modernidade”, enquanto
dicionado pela inexistência de instituições intermediárias e pela princípio ideologicamente hegemônico da sociedade brasileira a
ausência de códigos morais consensuais, típico do complexo rural partir de então. N o estilo de vida, e aí Freyre chama a atenção para a
Casa-grande e Senzala, muda, inicialnicntc, apenas de “habitação”. influencia decisiva dos interesses comerciais e industriais do impe­
Seu conteúdo, no entanto, aquilo que o determina com o conceito rialismo inglês, mudou-se hábitos, a arquitetura das casas, o jeito de
para Gilberto Frcyrc, ou seja, o seu visceral não reconhecimento d a vestir, as cores da moda, algumas vezes com o exagero do uso de
alteridade, permanece. tecidos grossos e impróprios ao clima tropical. Bebia-se agora cerveja
A passagem do sistema “Casa grande c senzala” para o sistema e comia-se pão com o um inglês, c tudo que era português ou oriental
“Sobrado e mucambo”, fragmenta, estilhaça em mil pedaços uma transformou-se em sinal de mau gosto.** O caráter absoluto dessas
unidade antes orgânica. Esses fragmentos espalham-se agora por toda novas distinções tornou o brasileiro de então, inclusive, presa fácil da
a parte, completando-se mal e acentuando conflitos c oposições. Da esperteza de europeus que vendiam gato por lebre.
casa-grande e senzala, depois sobrados e mucambos, e, talvez, hoje N o entanto, nenhuma dessas mudanças importantes teve o
em dia, bairros burgueses e favelas, as acomodações c complementari- impacto da entrada cm cena no nosso país do elemento burguês
dades ficam cada vez mais raras./De inicie», a cidade não representou iiemocratizantc piar excelência: ttumlsea*nentoe, r-om ek, a miortzaçau do
mais do que o prolongamento da desbragada incúria dos interesses talento mdi\nãutd. que «MM»o novo mercado por amhccs csj»ecializados.
142 - A c o n s t r u ç ã o s o c i a l d a s u i j c i d a d a n i a . ..
Parte 2 - 1 4 3

quanto as novas luuçocs «W M » exigiam. O conhecimento. apertem. possa “tipo lisico”. Na terceira pane desre livro, trataremos com maior
a ser o mm» ekm enta que passa a coutar deform a crescente n a definição dn detalhe do Contexto político e social que tornava semelhante ideolo­
nora htcrarqm a social. Ncs.sc sentido, servindo de base para a intro­ gia integradora plausível. De qualquer modo, é uiegávd a ascensão
dução dc um elemento efetivamente democrauzantc, pondo de ponta social dc mulatos e de pessoas antes desclassificadas, e dc qualquer
cabeça c redefinido rcvolucionanamentc a questão do sratus inicial cor?1 a |>artir dc decadência progressiva dos critérios adscritivos de
para as oportunidades de mobilidade social na nova sociedade.,Unu. classificação social em favor dc critérios agora baseados, crcscente-
“democratização” que unha como suporte* para Freyre, o mulato mcntc, na valí iri/ação burguesa e capitalista do mérito e desempenho
habilidoso. Do lado do mercado, essas transformações se operam pessoal.
segundo uma lógica de "baixo para cima”, ou seja, pela ascensão 'Gilberto freyre. cerumentc sem o refinamento sociológico e
social dc elementos novos cm lunçóes manuais, as quais, sendo o teórico dc Florestan para poder perceber, como este último, toda a
inferdito social absoluto cm rodas as sociedades escravocratas, não profundidade da relação entre estrutura c agente envolvida no processo
eram percebidas pelos brancos como dignifkantes. D o lado do de modernização — na medida cm que, paradoxalmcntc, ao descrever
Estado, a mesma lógica se reproduzia a partir da generalização da um processo exógeno dc modernização que vira roda uma sociedade
figura do “mulato bacharel”,89 alguns ocupando os mais altos cargos de ponta cabeça continua, não obstante, pcrccbendo-a como uma
do império. continuidade cultural fxirtuguesa — possui, por outro lado, qualidades
A Ao desvalorizar as duas posições sociais polares que marcam a que faltam à análise dc Florestam
sociedade escravocrata, o “capital cultural"90 requerido para o desem­ Em ifcviv, temos uma recuperação, reforçada por seu notável
penho dos imperativos funcionais de um incipiente mercado e listado talento narrativo, precisamente tios aspectos que, no nível dc abstração
vinha valorizar, por conta disso, prccisamcntc àquele elemento medio, dc uma análise como a dc f lurcstan, são facilmente secundarizados
que sempre havia composto uma espécie de estrato intermediário na corno a alteração progressiva e capilar dos princípios e estilos de vida
antiga sociedade, tu qual não sendo nem senhor, nem exatamenle que guiam a vida cotidiana dos mais diferentes estratos e grupos
um escravo, era um “deslocado", um sem lugar portanto. Na nova sociais em todas as dimensões da vida, assim como a identificação
sociedade nascente, na visão de Freyre, são as antigas posições polares dos grupos-chavc, cujos interesses materiais e ideais mais se identifi­
que perdem peso relativo, e esses indivíduos, quase sempre mestiços, cavam com o processo cm curso e que servem dc suporte material
sem outra fonte de riqueza que não sua habilidade c disposição dc para sua disseminação progressiva. E por sccundanzar esse aspecto
aprender os novos ofícios mecânicos, quase sempre como aprendizes da ação social, portanto, que Florestan pode produzir um hiat» >de 60
dc mestres e artesãos europeus, passaram a iòrmar o elemento mais anos entre o fenômeno que, nos seus próprios olhos, foi o catalizador
tipicamente burguês daquela sociedade em mudança: o elemento principal da mudança, c a identificação dos grupos suportes tio
medio, sob a forma de uma meia-raça. mesmo. A consideração combinada da visão destes dois grandes
Ha que se perceber cu m jjran o salis c.ssa cntãsc dc freyre no pensadores, talvez os dois maiores que o país já produziu, pode,
“mulato habilidoso" como “suporre social da nova visão dc mundo desde que superadas suas unilaieralidadcs recíprocas, nos propiciar
material c simbólica que se lòrnuva entre nós. Afinal o “mulato” e uma adequada visão do período considerado como um todo,
sua ascensão seria, para d c, uma espécie dc comprovação empírica A partir dc 1808 remos no Brasil um exemplo típico do que
de sua tese do Brasil como paradigma da “mestiçagem” e da cultura venho chamando dc processo modemizadorda “nova periferia”, ou seja,
“democraticamente híbrida” de certo modo corporilicadas no próprio sociedades que são tiirmadas, pelo menos enquanto sociedades complexas,
144 - A CO NSTRUÇÃO SO C IA l DA SU BC ID A D A N IA ..,
Parte 2 - 145

prrnmMmmilnr pelo influxo do crescimento não da mera expansão "artefatos prontos”. As consequências deste fato são imensas, mas
do capitalismo comercial como no período colonial, que deixa intocadas das serão precisamente o fio condutor da parte final deste livro.
estruturas tradicionais c personalistas — do capitalismo uidustnal Por enquanto, vale lembrar que o processo mt idernizador não sc
europeu a partir da transferência de suas praticas institucionais dá, obviamente, do dia para noite, nem dc forma homogênea cm
impessoais enquanto “artefatos prontos", com odiria Max VVcber. todas as regiões. Sc do Rio dc Janeiro, cidade que recebeu maior
Hssas práticas institucionais — para uma sociologia que não se deixe impacto modemizador na primeira metade do século XIX, Frevre
cegar pela ilusão da "ideologia espontânea do capitalismo", ou seja, afirma, com o já vimos, que, em 1840, tudo que era burguesamente
pelo discurso mudo da suposta neutralidade e universalidade que cun ijxru já era perccbidt >como “absohitamenre bom”, enquanto rude >
essas praticas institucionais "sugerem" sobre si mesmas — possuem que era português c colonial já era tido "com o absolutamente de mau
toda tuna concepção de inundo contigente c htsfoncnmentr consrimúfa, gosto”, nas regiões do interior esse impacto foi. inicialmcntc, bem
corporiticada de forma opaca e intransparemc, que sc impõem, a menor. Na verdade, o processo de modernização instaura uma duali­
dade marcada precisamente pelo impacto diferencial, nas diversas
partir dos castigos c prêmios empíricos, que funcionam com o estí­
regiões, do influxo modernizantc. A vitória definitiva do processo de
mulos para a persecuçáo por parte dos atores dos seus imperativos
modernização periférico brasileiro vai exigir não mais apenas o influxo
funcionais, como padrão dc comportamentoaocial legítimo para toda
exógeno. dc “tora para dentro”, mas também, como resultado de lento
a sociedade
processo de conscientização e luta política, um influxo endógeno de
£ precisamente esta nova e contingente visão de mundo (do “dentro para fora”, «>u .seja, a formulação consciente c refletida de um
mundo social, natural c subjetivo) que passa a guiar a percepção e a projeto modemizador autônomo c nacional. Esse c o tema do nosso
construção de novos estilos e condutas dc vida numa sociedade, que próximo subcapítulo,
antes — e aqui a diferença essencial em relação às “grandes civiliza­
ções mundiais" da velha periferia analisadas por Max VVcber — era
perpassada por uma cultura material e simbólica, rasteira c primitiva.
Sem dúvida que permanece a questão da “esquematização” específica,
no sentido rayloriano, dos influxos modernizantes a partir da cultura A R evolu ção d e 1930 e a fo rm u la çã o de um projeto
material e simbólica antes existente, Kstc impacto mc parece, no m o d e m iz a d o r a u tô n o m o e nacional
entanto, scr infinitamente menor em iodas as esferas sociais, não só
em relação às sociedades axiais da "velha periferia", mas especial*
mente em relação às sociedades ocidentais centrais. Acredito que
essas influencias sc concentrem nos estratos subalternos náo-europei- O livro, já clássico, dc I uiz Werneck Vianna liberalism o e sindi­
zados. e mesmo nestes, mediados, agora, por mecanismos cspccifica- cam no Brasil c um desses exemplos raros de sociologia política em
meine modernos de “naturalização da desigualdade”, como veremos que o esclarecimento da relação entre sociedade e política não se
na parte 3 deste livro. Neste senado, a especificidade do processo de perde em um intencionalismo que reduz a complexidade social aos
modernização dc sociedade da "nova periferia" como a brasileira, tem moriví is conscientes dos sujeitos envolvidos. Kvsc dado c áindamcntal,
a vci; antes com a “ausência” do que a “presença” «Jc unia tradição com o veremos, para o adequado esclarecimento de um fenômeno tão
complexo quanto a Revolução de 30 no Rrasil. Além disso, o referido
moral ou religiosa que pudesse, cfctivamcutc, "csquaiuu zar” o im ­
livro apresenta, num estudo que sc concentra nas causas c efeitos da
pacto moderni/.anre das prãricas institucionais transplantadas como
Parte 2 - 147
146 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SU8CIDADAN1A...

assim chamada “Revolução de 3 0 ” no Brasil, sob o ponto de vista No entanto, os limites da dominação liberal. lederalista sob o
comando dos setores agrocxportadores, já de há muito revelava suas
analítico, uma notável continuidade com a reflexão desenvolvida por
Florcstan Fernandes na primeira parle do seu “A revolução burguesa tragilidades. As pressc»cs democrarizantes vinham tanto de “baixo”,
no Brasil”, a qual já analisamos cm detalhe, Não apenas ambos os pelas constantes agitações operárias urbanas, quanto do meio , pela
autores percebem o processo modemizador brasileiro com o uma intensa agitação e descontentamento dos chamados “setores médios ,
“revolução encapuzada” ou uma “revolução passiva", com o prefere compostos basicamente pelas novas camadas urbanas, formadas a
Wcmcck - o que de reslo se acopla, perfeitamente, à tese da anterio- partir da expansão de Estado e mercado, além dos militares cada vez
ridade das práticas institucionais e sociais em relação ás idéias que mais envolvidos na política. Esses setores médios já haviam celebrado
estamos propondo, neste livro, para o processo modemizador perilê- uma união explícita a partir de 1921 — simbolicamente o discurso de
rico brasileiro como um todo — , mas a reflexão deste autor permite, Rui Barbosa, líder da oposição civil, na posse de Hermes da Fonseca,
também, uma interessante discussão acerca das possibilidades e limites líder da oposição militar95— , enlaçando as duas vertentes da oposição.
do liberalismo com o a ideologia da expansão da ordem burguesa no Mas não eram apenas as novas forças sociais ascendentes (ao que se
Brasil. junta aqui uma incipiente burguesia industrial), ainda relarivamentc
impotentes politicamente, que não estavam satisfeitas com o arranjo
Como vimos, ainda no contexto da exposição acerca de Florestan,
o liberalismo se constituiu cm uma espécie de “língua com um " que dominante. Também os seiores agrários ligados ao mercado interno
permitia, no contexto intra-clitcs em que se deu expansão negociada st encontravam marginalizados do jogo político pela concepção
da ordem burguesa, uma legitimação, ainda que de curto prazo e cxdudcnre do federalismo presidido pelos setores agroexportadores.
reduzido às parcelas privilegiadas da população, das demandas por De certo modo. tbi a própria revitalização social, ainda que dentro
respeito a contratos, instituição de uma ordem legal autônoma, uma de limites econômicos e políticos rígidos, fruto da expansão do sctoi
estrutura representativa, ainda que extremamente restritiva etc. exportador, que liberou forças impossíveis de controlar dentro de
camisa de força política e social mente tão excludcnte, Com a crise
N o íinal do século XIX e começo do século XX, era precisamente
aberta pela eleição de 19 3 0 , a oligarquia dissidente assume a predo­
essa ordem elitista e restritiva fundada e legitimada pelo discurso
minância política do movimento reformador, ve constituindo, como
liberal, que se encontrava em cnsc. Sc desde a primeira metade do
assinala Werucck, numa primeira revolução brasileira que parte da
século X IX o liberalismo havia fornecido a “gramática mínima" para
periferia para o centro do sistema, (cintando com esse aliado de
o acordo negociado intra-elitcs para a expansão gradual da ordem
am a”, a agitação urbana passa a contar com um canal adequado de
burguesa — não nos esqueçamos também que essa ordem era f unda­
mental para as transações internacionais baseadas cm contratos — , exp ressão j
no limiar cio século seguinte, esse arranjo eliusta começou a ser am­ Werneck se propõe uma questão fundamental nesse contexto:
plamente criticado c ameaçado. Na base da leitura de Wcmcck .sobre sendo apropriado por uma elite tradicional oligáquica, por que o
o turbulento período pré-revolucionário, está a certeza de que o arranjo Estado reformador se encaminhará no senrido de propor um projeto
liberal chega ao íim de suas virtualidadcs renovadoras. O liberalismo modemizador?‘MIsso se explica dado que, no contexto da heterogê­
formalista puro era agora associado, não mais á expansão da ordem nea “aliança liberal" que ascende ao poder, os pontos convergentes
legal e impessoal, mas á conservadora dite agrária exportadora de eram precisa mente representados pelas demandas por diversificação
produtos primárias no poder econômico e político e se reunia, no do aparato produtivo e pela ampliação do sistema de participação
plano da lógica da dominação política, a uma estrutura fcdcralista política. A diversificação econômica visava reestruturar o li ágil e
descentralizada que permitia a alternância da elite de alguns poucos tênue eleito multiplicador da economia fundada no esforço agroex-
Estados mais ricos no poder.‘n portador, precisamente no sentido de fortalecer o mercado interno c
148 - A c o N ír m u ç À o s o c ia l d a s u b c id a d a n t a . .. Parte 2 - 149

ampliar as bases da atuação estatal. A questão passa a scr elevar a uma extretnamenre bem-sucedida ideologia que enfatiza organicidade,
reprodução de mercado c Estado a um novo patamar, de tal modo
unidade e grande/a nacional.
que pudesse permitir a participação tanto econômica quanto política
Ao ctmtrário da tc,se dc que a ordem corporativa implica um
dos setores ate então marginalizados. Assim sendo, apesar da não
pacto com as classes subalternas, Wcrneck msiste na presença dc
participação efetiva da incipiente burguesia industrial na revolução,
uma estratégia desmobilizadora c repressora, no período prc-1935. c
essa nova constelação de interesses explica pi >r que o Estado passa a
manipuladora e cooptadora, a partir dc 1935. Afinal, para “assumir'
enveredar conscientemente no caminho da modernização c da indus­
^ representa^* tl&$ sulxüternux. o cocponitivisiiio tcin tjuc
trialização.
acabar primeiro com suas urgatlizaçt >es e lideranças independentes.
É precisamente com base nessa configuração dc interesses espe­ Rebaixado ao status dc uma entidade dc cooperação técnica do Estado,
cifica, que Wirrncrlr constrói sua fe.se do “tiuaaiuhu prussiano” da a sindicalização facultativa passa a scr estimulada c adquirir caiater. na
modernização brasileira, ü s nossosJunkcrs caboclos viríam dc repre­ prática, compulsório, à medida que uma série de direitos previ-
sentações políticas cie regiões dominadas pelo latifúndio, o que iria dcnciários e trabalhistas são associados à sindicalização efetiva/'
implicar na preservação do monopólio tia terra, na inviabilização da A estrutura corporativa d<>Estado, antes desrinada a abranger tanto
reforma agrária e n.i.exclusão dos trabalhadores rurais dos benefícios trabalhadores quanto empresários 11a sua disciplina, termina por
sociais e trabalhistas Ao mesmo tempo, cs.sa elite tradicionalista, convcrtcr-se em um Estado autoritário modernizanre. Os empte-
pela sua associação com os setores urbanos emergentes, permitiu ao sários não irão se submeter ás veleidades da burocracia corporativa,
novo Estado que se formaria uma dimensão universalizadora incom­ o que termina por constitui-lo no único "agente livre do mercado.
paravelmente mais abrangente que a anterior e abriu espaço para que Os empresários legitimam o componente autoritário e repre-ssivo d< >
este mesmo Estado pudesse elevar, a partir de um gigantesco c Estado c repudiam ocorporanvo,1150c se rebelam contra as leis proteri-
bcm-succdido esforço dc modernização, consideravelmente, as bases vas aos rraballiadorcs Os empresários da indústria, que não fize­
materiais do capitalismo e do mercado interno brasileiro. ram “politicamente” a revolução, logo perceberam, no entanto, que
Politicamente» portanto, 4. “saída prussiana" implica a perma­ o novo caminho seguido pela sociedade os tornava a tração dominan­
nência dc relações primitivas nas regiões atrasadas (cspcciaimente te entre as classes dirigentes. Afinal, o seu progresso representava o
Norte,/Nordeste) e inibição das demandas mais plurais e abrangentes progresso dc todos, pelo fortalecimento do mercado interno, o fun
expressas na esfera publica da primeira r e p u b lic a ,Desse modo, a da mento mesmo do novo pacto federativo.101 Aceitas suas pretensões
ênfase na negação do conflito, típico para todo o período inaugurado hegemônicas, abre-se caminho para um compromisso a partir da
cm 1930, aparece com o o alfa e ômega, tanto da ação efetiva quanto aceitação da legislação social
tia ideologia do novo Estado que se consrimi. Em oposição ao libera­
lismo formalista anterior, teremos agora o que Wcmcck chama de
“WÜUrisiiio organteista V uma ideologia política que tem aversão a
qualquer forma de interesse que se.revele como particular. O corpo
raúvixmo será o wstenu ideal para um Estado que conjuga uma
dimensão consensual para as frações das classes dominantes e dos serra­
res médios urbanos ascendentes, com uma dimensão repressiva em
relação às classes subalternas, mitigadas por concessões reais e por
P a rte 3

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBCIDADANIA


Parte 3 - 1 5 3

A- O processo de modernização periférica e a


constituição de uma "ralé" estrutural

O Estado autoritário c modernizador, que sc consolida a partir


de 1930. não inicia o processo de modernização brasileiro, que se
inicíaja em L8Q8, mas o póe efetivamenre em um outro patamar. A
partir dele o processo de modernização brasileiro passa a ser coman­
dado não mais pelo surto urbanizador c comercial, como no século
XIX, mas, agora, pela industrialização. Também, a partir dele, a
estrutura iransiciim.il que articulava um setor moderno, espccialmeiuc
nas cidades, c um setor tradicional, cspcdalmcntc no campo, rende a
refletir a crescente hegemonia do primeiro 11a dimensão nacional. A
indústria passa a ser, no contexto da política dc .substituição de
importações, o principal fator dinâmico do crescimento econômico.
O Estado rehjrmaç^t^çjíJíUití lança as bases dessa profunda Lransft >r-
maçáo ccoltônuca, pela ênfase nas indústrias de base — como side­
rurgia c pctrolco c pela construção da infra-estrutura para um
crescimento capitalista em grande escala. No plano político, alarga-sc
a ínfima base participativa antes existente, ainda que cm bases
democráticas, apenas a partir dc 1946^üe modo a incluir os setores
médios urbanos, um dosTnaiorcs beneficiários do novo modelo de
desenvolvimenn», e os n’abalhadores urbanos, ainda que sob bases
corporativas, repressivas e desmobilizadoras. N o plano econômico,
esse novo modelo de desenvolvimento vai perdurar até os anos 80 ,^
quando entra cm crise, assegurando, nesses 30 anos, taxas continuas
dc crescimento econômico capazes dc transformar um dos países
mais atrasados do globo, em 1930, tu oitava rnajpr economia do
mundo, ac» final do processo, no limiar dos anos 8 0 .^So plane >político,
embora alternando períodos dc democracia formal plena e autorita­
rismo, a expansão dos horizontes da participação política teve prcci-
sameiue na expressão autônoma dos traballtadorcs. ate o limiar dos
anos 80 com a entrada cm cena do partido dos trabalhadores hoje
no poder — , seu limite c sua condição de existência./
Y^Vlas é com relação ao rema guia deste livro - a formação dc um
padrão especifica mente periférico de cidadania C subeidadania
que o novo período instaura um novo padrão de instimcionalização.
154 - A coNsruuçÀo socíai da subcioadania.. . Parte 3 - 155

É essa a quesrão que gostaria de examinar nesta terceira c última <^[piva-lhcx o i^nnjh.ui ila i ntia p*‘l.i n quca.1- Neste contexto, acres­
parte deste livro. Gostaria dc iniciar a discussão com a análise em centando-se a isto o abandono dos libertos pelos antigos donos c
detalhe de uma obra que consegue estabelecer a questão decisiva em pela sociedade com o um todo, estava, dc certo modo, prfifeurado
pauta nesta problemática, ainda que a resposta final seja insarisfaró- o destino da marginalidade social e da pobreza ccon o m ic^ j
ria/rrata-sívda Integração do negro m sociedade dc classes de Florestou O quadro geral da a, na fase imcdiatanicntc
Fernandes/ Nesse livro, Florestan sc predispõe o empreender uma posterior à abolição, era percebida do seguinte modo poiJEkèEfcitan:
análise d c com o o '‘povo" emerge no história brasileira. A concen­ hj-m irnn:i na zona vital dc preservação do poder nas mãos das
tração no negro c no mulato .sc legitima, neste contexto maior da antigas famílias proprietárias, o espaço aberto à competição era
empreitada teórica, posto que loram prccisamcnte estes grupos que d iiiú n u m .iflg u a to o , no entanto, naestéra aberta pela livre empresa
tiveram "o pior ponto dc partida"1na transição da ordem escravocra cm expansão, prevalecia a idéia individualista e liberal do right m an
ta à compeotiva, Desse modo, a reflexão de Florestan pode ser ampli­ in rbe rigbt placc.3 O estrangeiro, cspccialmentc o imigrante italiano,
ada para abranger também os estratos despossuídos e os dependentes aparecia, inclusive, neste espaço recém-abcrro, como a grande espe­
em geral c de qualquer cor, na medida cm que o único elemento rança nacional de progresso rápido. Nesse quadro, cm que a realidade
que os diferenciava de negros e mulatos era o “handicap" adicional e a fantasia do preconceito sc alimentavam rcdprocamcnte, o imi­
do racismo. Vimos, anteriormente, as razões objetivas que permitem grante europeu eliminava a concorrência do negro onde quer que ela
essa assimilação para o período colonial. O período estudado por Flo­ sc impusesse.4 Para o negro, sem a oportunidade de classificação social
restan vai dc IÜ8Ü a 1960, o que dá uma idéia da amplitude do alentado burguesa ou proletária, restava os prrrxtieins c as Iramas marginais
estudo, e o horizonte empírico concenrra-.sc na cidade de São Ihulo, do sistema com o forma dc preservar adlgníJailè dc homem livre. o
permitindo, deste modo, observar as dificuldades dc adaptação dos seg­ mergulho na escória proletária, no ócio dissimulado, ou, ainda, na
mentos marginais na mais burguesa c competitiva das cidades brasileiras. vagabundagem sistemática c na criminalidade fortuita ou permanente.
O dado essencial dc todo o processo dc desagregação da ordem Fstc c o quadro que permite comptxçndcr o drama social da
servil e scnhorial íòi, como nota corretamente Florestan, o abandono adaptação do liberto as novas condiçocs^E aqui Florestan roca na
do titanto à própria sorte (ou azar). Os amigos senhores, na sua quesrão central, para todo seu argumento nesse livro, assim como
imensa maioria, o Estado, a Igreja, ou qualquçr outra instituição, para toda a construção do meu próprio argumenm, a seguir, nomea*
jamais sc interessaram pelo destino do liberto.fFstc, imediatamente damente a questão da organização psicossocial qtte c um pressuposto
depois da abolição, se viu responsável por si e p o r seus familiares, da atividade capitalista, e que exige uma pré-socíalização em um
sem que dispusesse dos meios materiais ou morais para sobreviver sentido predeterminado, a qual faltava, cm qualquer medida signifi­
numa nascente economia competitiva do tipo capitalista c burguês} cativa, ao cx-escravojA ònsia cm liberrar-se das condições humilhantes
Ao negro, fora dp contexto tradicional, restava o deslocamento social da vida anterior, tõntava-o. inclusive, espccialinentc vulnerável a um
na nova o rd cm fÍJe não apresentava os pressupostos sociais e psicos- tipo de comportamento reativo e ressentido em relação as demandas
sociais que são ck» motivexs últimos do sucesso no meio ambiente da nova ordem. Assim. i J d n w tendia a confimdir as obrigações do
concorrência], Fqlrava-lhe vontade dc s,c ocupar com as funções contrato dc trabalho c não distinguia a venda da força dc trabalht >da
consideradas degradantes (que lhe lembravam o passado) — pejo venda dos direitos substantivos á noção de pessoa jurídica livre. ’
que os imigrantes italianos, por exemplo, não tinham — ; q,io eram Ademais, a recusa a certo ripo de serviço, a inconstância no trabalho,
^ül^léfiuiinrnrt-.t.ailusliiaéos nem nounadares e. acima de mdo. a indisciplina o mtra a supervisão, o fascínio p<>r ttcupaçõcs *ttobilitantes .
P a rte 3 - 1 5 7
i 5 6 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA SU BCID A Ü A N TA .,.

,I l Para nã<>ser “otário”, condenado


trido conspirava para o insucesso nas novas condiçocs de vida c para a
aos “serviços dc negro”, invariavelmente perigosos e humilhantes/
confirmação do preconceito.
os dcsrinõs^ê*v7agabuiido, ladraó ou prostituta oterççjam perspectivas
flo re s ta r» percebe, portanto, c com notável acuidade, precisa­ L^mpãratvvãmãnc maiores,
mente nas dificuldades dc adaptarão a nova ordem competitiva, a A anenú i» i.uinli ai tcch r ri n m vuKi vttttt-Tn. Horestan aponta a
semente da marginalização continuada dc negros c mulatos. Hlc posição peculiar do sexo no mundo do negro como uma das causas
localiza essas dificuldades na esfera das condições psicossociais da principais da anomia nesta esfera. Já o próprio excesso de pessoas
personalidade, a) a inadaptação do negro para o trabalho livre; c b) morando nos cortiços c barracos dc fivelas, facilitava todo tipo de
a sua incapacidade de agir segundo os modelos de comportamento c relação incestuosa ou abusiva (os garotos scxualmentc abusados pelos
personalidade da sociedade com petitiva.4 Na realidade, os dois mais velhos). O filho natural e a mãe solteira quase sempre jovem
1atores apontados por Florestan se assomam a um único, na medida eram os produtos mais comuns deste upo dc convivência. E nesse
em que o segundo ponto é a condição dc possibilidade do primeiro? contexto que Florestan inverte a mistificação popular do negro ou da
mulata como “ávidos por sexo . Na realidade, o srxo sc. ciige na
( ) lugar da 111'TFTTThjiím MmifiTr c cspccialmentc significativa neste
única área livre de exercício das aptidões humanas”,1" para esses grupos
contexto. A tese de Florestan c a de que a família negra não chega a
excluídos c marginalizados de tudo, menos do sexo (e do futelxil
se constituir como uma unidade capaz de exercer as suas virtualidades diriamos hoje), constituindo-se, então, no centro único que atrai todas
principais de modelação da personalidade básica e controle de com ­ as atenções cesforços. O vicio do elerrd c também percebido por
portamentos egoísticos.7 Kxistc, neste rema centra] da ausência da Florestan como o sexo, como um lator de desorganização e autodex-
unidade familiar como instância moral e social básica, uma continui­ truição. As entrevistas tendem a compor um quadro em que a sucessão
dade com a política escravocrata brasileira que sempre procurou dc insucessos sociais e pessoais montam um contexto no qual o alcoo­
impedir qualquer forma organizada familiar ou comunitária da parte lismo sc converte no sucedâneo do suicídio, quando o protesto eonrra
dr.xs escravos/t a continuidade dc padrões familiares dismptivos que a adversidade, jxrrccbida C(nno fatalidade natural c até justa c inevitável,
é percebida, corrctamcntc, por Florcsran, como o lator decisivo para se vira contra a própria pessoa.11
a perpetuação das condições dc desorganização soci.tl de negros e Nesse quadro dc desorganização, os-velhíu r- inv.i lidHw.se trans­
mulatos/ formam em carga pesadíssima, enquanto os Ttm»nii m m u n m w rram
compelidos a sc tornar, sem nenhum preparo, “donos do seu próprio
N.i ltiliriadrrrryi)ii|ii 11 iiiiptu. u rjnruila-pcla madupuiçÃo suuuF-
nariz”. Nesse contexto, as m«Hw«**-ainda unham comparativamente
°"riTT1....... < pxi^o rgaiip ^T n tniniliwi doíu rmim.it. umdlUo»
mais chance dc acesso ao mercado dc trabalho do que os homens,
inuBwnwiitc A submersão nas lavouras de subsistência e a
pelo quase monopólio dos serviços domésticos, única arca onde a
concentração nas então nascentes “favelas" das cidades, seriam, para competição com o imigrante não era significativa. fissa circunstancia
Florestam antes que fuga da realidade, uma espécie de “desespero ajuda a explicar a endêmica “m arrifrraluU k” da família negra c pobre
mudo conteúdo irracional dessas escolhas, já que para ele não brasileira.12 Fora os serviços dom ésticos, o único acesso fácil as
era passividade ou indiferença o que estava na raiz do eonqxim m cnto mulheres era a baixa prostituição. Era difícil, mesmo às mulatas mais
do negro, mas “escolha”, ainda que uma escolha desesperada, sem bonitas", sc alçarem a alta prostituição, já que, também neste campo,
dúvida, uma espécie de protesto mudo e in artialk d o na própria mulatas c negras “valem menos”,'3
autocondenação ao ostracismo, à dependência e à autodestruiçio, L—ê rriilrr nu mpi i n n irfnm ilm Ur r im 1 * L , ‘"
cra claro para FlorestanjN cru mu. \iodisminante tlc-extrema prm>çâ<>. úwnwfiiil ii nii i» Amidii mm i a i . xnih A não-socializ.açáo
«-wi-t.o i.h gw. d rsvm n »* -d» notais - n pa-ree i un com o a lirm açan de
1 5 8 - A CO N SfR U Ç Ã O SO CIAL LIA b U B C ID A D A N lA ... Parte 3 - 159

adequada de nenhum dos papci.s familiares, a incerteza c insegurança como em as tendências empiriêistax acerca da desigualdade hrasilciía
social, que faziam expulsar de casa “as filhas que se perdiam", por tendem, hoje. a interpretar. Se há preconceito neste terreno, ç
exemplo, tudo milira%'a no sentido de que a família nao só não fosse ccttamentc há e agindo de forma imranspavcntc c virulenta. nao c,
uma base segura para a vida em uma sociedade competitiva, mas antes de mdo, unrprcconccito de cor, mas sim um preconceito que
também se transformasse na causa dos mais variados obstáculosA serefçrc a ceriu tipo de "peisonalulule”, julgada como improdutiva
vida familiar desorganizada, aliada ã pobreza, era responsável por c disruptiva para a sociedade cumo um todo.
um tipo de individuação ultra-egoísta e predateiri^'4 Este ripo de ^ E s s e aspecto central não é, todavia, percebido com clareza por
orgiuttmçw i drpt 1'viinln.Lidu sobejamente dem< instrada nas ennrvistas Florcstan. Sem dúvida ele tem o méruo de apontar, na sua busca das
causas últimas da marginalidade da população negra, as prccondi-
clcncadas no livro, produto da desorganização familiar, reflete, no
ções sociais independentes da cor que condicionam a situação de
cgom i.o c iui mrrmmruiwlw iç io seja o “outro" a mulher ou o
marginalidade. Klc percebe, por exemplo, que as condições de ina­
mais jovem e indefeso, uma situação de sobrevivência rão agreste
daptação da população negra é comparável a dos defWHkuttò. rurjns
que qndrp jervínctrlrr rie-iolKfrwedaJf, desde o
Jy^yiüãS.lb misturando esses dois clcmenLOS, como compondo, em
mais básico na família ate o comunitário e associativo mais geral. conjunto, a “gentinha" ou a “ralé" nacional.17 Atinai, com o vimos no
capítulo acerca da constituição peculiar do poder pessoal no Brasil, a
A criança, que só tangemia], deformada c esporadicamente se via situação dos negros escravos era cm tudo comparável a do dependente
tratada como tal pela mãe, nos breves momentos cm que da per ou agregado despossuído branco ou de qualquer cor.
manecia em casa... raramente feria oportunidade de aprender a
A i~oi i co m o sB W lín d t
respeitar c a obedecer os outros por amor. Vigorava um código
'1 n ü i ^ -iUjma-áitVOUKHtli emmteST^r»,' n w frn ttrfê rt' d rfp ro -
niderncncc egoísta e individualista: para sobreviver, o indivíduo
precisava ser “saindo", mesmo nas relações com a mãe c com os bhmu»êvrcombmaçtto de abandono r tm daptação. tlcsüUL»qneiTTm-
irmãos.16 ,n .,!> mihi.il. grup«* utdefm»*4***trmmrrttof-wr Precisamente por
confundir habitus, no sentido que estamos utilizando neste texLO <c
I*m i'i yttUH-.iundLtflú11ul paw-wwTWNiniiiihi im M w ttH T i que ele próprio havia revelado com tanta argúcia no peso relativo que
ele auibui a desorganização familiar), com “cor da pele", Florcstan é
qwe^ u » A4»hh)>u i >ea a.pkutcnnrii >t ,-nrrr-thgWíg;^mw>fn^ t«liuj.s.
levado a imprecisões e paradoxos que se repetem em cascata na sua
.malaw A -ty iri’>tm uçur
argumentação. Na realidade, todo o argumento do livro é tributário
sentido de Bourdicu —
da ambiguidade fundamental, que confunde os dois aspectos relevados
^ U j i i vm ri tji.vmnidr»v^mrorprTi «los rhr mortn-pn^rrttrr n-rr rffltn - anreriormente. cm relação a causa fundamental da situação de carência
i»*u^*M..-ansbMrmr- famfltãrTlf^nJrjTrrart rema ittade, perrrritmde a e marginalidade do negro. Florcstan supõe como causa primeira da
cw fcm uiç io de reJcvKfxrtfr.TfrritiHri -pr^fd-lextv^s e automáticas. mesma, tanto a “escravidão interna" dentro do homem, que o impede
1I >1idanrdncfi?ãrtlfenrlti ração; prrr um htdo, c artriyrmn de pensar e agir segundo os imperaiivos da nova ordem social,
pw õ iictfKo, pcu-wuu<j — 11 iundarwrwt^ ^-w yfiC T^-sA a quanto o preconceito de cor,"' visto com o uma realidade “inctvial
a«u*!midHl.rrtP'tfo mgM». representando "resíduos" do passado, que penetram na sociedade
abmtsp competitiva c que de supõe, a partir do avanço c desenvolvimento
desta, estejam destinados a desaparecer/'
160 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SLIBCÍDADANTA.. . Parte 3 - 1 6 1

/ Esses dois aspectos, apesar de interligados, são analirícamcnte |cm medida significativa, um ripo humano para todas as classes, como!
duas realidades m uito distintas. No contexto cstamental c adseritivo Lima prccondição para uma efetiva e atuante idéia de cidadania, con-j
da .sociedade escravocrata, a cor funciona como índice tendcndál- Ve guio este intento como efeito colateral unicamente do descnvolvi-l
iTicme alwolnro da situaçao servil, ainda que esta também assumisse [mento econômico, l^entre as sociedades desenvolvidas, inclusive, c a J
formas mitigadas, conforme já vimos. Na sociedade competitiva, a Luais rica dentre elas os EUA, a que apresenta maior índice de desi l
ço rJundc>na como índice urelanvor^tçj.irim irm d a^ — .sempre em L u Idade e exclusão.22 A marginalizaçâo permanente de grupos sociais I
rclaçao ao padrão contingente do‘tipo humano definido com o útil c Vitciros tem a ver com a disseminação efetiva de concepções morais |
produtivo no racionalisnio ocidental e implementado por suas nisti- 2 políticas, que passam a funcionar como “idéias-força” nessas socic- I
tuiçóes fundamentais que pode ou não ser confirmado pelo indiví­ lades. É a explicação que atribui a marginalidade desses grupos a
duo ou grupo cm questão. O próprio florestan relata sobejamenre as •resíduos” a serem corrigidos por variáveis economicamente derivadas
inúmeras experiências de inadaptação ao novo comexn >determinadas, í -dominantes, não só cm Florestan, mas em todo o debate nacional
cm pnmciro plano, por incapacidade de atender ãs demandas da /eórico e prático acerca do tema das causas c dos remédios da dcsigual-
disciplina produtiva do capitalismo.
(dade que melhor contribui para sua permanência c naturalização.
IwtTi wfwlmini porr^Hu. píissífdmwppr-■
tculi.1 <iljiiv7.i coifi ■>■>>=>- entre esres dois
srptç, “iiiccialm enic" qu c.rslii n n K»W- realidade esta destinada a
f aspectos é muitas vezes ohseurccida por motivos “políticos”, dado
desaparecer com o desenvolvimento econômico/
que. acredita-se, a atribuição da marginalidade do negro a causas
ouLras que não a c o re o racismo equivalería a atribuir a “culpa" da
LirUmode-qttalqmT « o r) com*>“*usp>ttiUxtcá^p»ra-v stavct qwaUftter
mesma à sua "J*-*—t 4 ftm -im im tr rriran A in n —— 1----- »-
w-útiH*- rrln uur - p—
v -do dependente de qualquer cor « própria sorte — ----
ipÊmluaola su>v^*uuai^* A “inércia" aqui, como
obvu de srn irmdaptaçao Foi este abandüiio.quc çrjou condições
ocorre tão frequentemente, está, de fato, no lugar de uma explica­
perversas de cternização de um “habitus precário” que constrange
ção" de qvie modo a transição
esses grupos a uma vida marginal c humilhante à margem da serie­
dade incluídafPOr ourm lado, é necessário ter-se clareza teórica e do poclcr pessoal para o impessoal muda radicalmentc as possibilida­
prática acerca Jas causas reais da marginalizaçâo. F, precisamente o des de classificação e desclassificação social?^) que está em jogo
tipo de explicação que enfatiza o dado secundário da cor — a qual nessa passagem e nessa mudança tão radical que expele como im ­
permitiría, supostamente, atribuir a “culpa” da marginalizaçâo uni­ prestáveis os segmentos responsáveis fundamenta Imente pela produ­
camente ao preconceito — que joga água no moinho da explicação ção econômica no regime anterior? ^ara a resposta desta questão, o
economidsta c evolucionista de tipo simples, que supõe ser a margina- tema dos “resíduosÇj& ias “inércias" - cspecialmcntc porque esses
Ibsação algo temporário, modilieávcl por altas taxas de crescimcnro tais resíduos e incrcias se eternizaram c se mostraram, de lato, ao
economico, as quais, de algunjj^iodo obscuro, terminaria por incluir contrário do aur supunha o autor, permanentes não avança o nosso
todos os setores marginalizado^ conhecimento. í
> Esse tijx> de explicação dcscura dos aspectos morais c políticos Um outro "ponto de imprecisão, que no ftindo duplica a ambi­

)
que são imprescindíveis á uma real estratégia indusiva. Hm nenhuma guidade em relação a opção cor/habitus, c a menção a coisas como
das sociedades modernas, que logrou homogeneizar e generalizar, “mundo branco” c “mundo negro” como se fossem, ambos, realidades
162 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL OA S U B C IU A D A M A ... Parte 3 - 163

essenciais c independentes, e como se a hierarquia valorativa que nem por seus informantes, Acredito, também nesse ponto, que. para
articulasse essa disjtumva não fosse. na realidade, única, e subordi­ ultrapassarmos ouso meramente retórico deste termo c conferirmos a
nasse lanto “brancos” quanto “negros”, Neste ponto, da mesma for­ ele densidade analítica, torna-se necessário superar a confusão entre
ma que em relação ao tópico anterior, poderiamos refrasear a ques­ habitus c cor. Afinal, o que os próprios informantes entendem por
tão que formulamos c nos perguntar, afinal, o que está por rrás das “ser gente” reflete, claramente; o que estamos percebendo como as pre-
cores, cspccialmemc da cor preta, que a fa7. um “índice" de alguma condiçòcs para a formação de um habitus adequado aos imperativos
coisa, ao mesmo tempo mais fundamental c menos visível, e que se institucionais da nova ordem, independrnrcmcnte de qualquer cor de
manifesta por trás da cor ?
F 1/
ÀliàíUÍ. P arfi1|'ll'í'_ e.srou certo, o apego à hierarquia antenor
que produz o racismo e o transfere como “resíduo” à ordem social Um dos sujeitos das histórias dc vida, que vivia com a rnãc c a irmã,
competitiva. Afinal, a ordem competitiva tainlfem não é “neutra”, “ao deus dará”, relata o deslumbramento que sentiu, por v<ilt a dc
nesta dimensão do ponto de partida meritocrático, como parece estar 1911, ao passar a viver, aos dez anos, na casa dc um italiano. Viu,
implícito no argumento de Florestan. <* anpimi , entio, “o que era viver no seio de uma família, o que entre eles (os
irrn n ainda que i'qp|c-||,i, im........ m rim1 italianos) era coisa seria”. “Gostava porque comia na mesa...” c
podia apreciar em que consistia “viver como gente”.2®
passadas, que Untu negros quarrro bramus. *cm htiowpw»vfoe^ua
»L,-.scLíÃi.Uii.adoseuurgmal«7M»*iok de forma permanente, f^ão No mesmo sentido, remos as declarações abaixo:
c à toa, nesse sentido, que a legitimação da marginalização, nos de­
poimentos colimados em todo o livro pelo autor, venha .sempre acom­ “Negro é gente c não tem que andar diferente dos outros”... “Ser
panhada da menção a aspectos conspícuos da hierarquia valorativa gente” só pode significar “ser igual ao branco” c para isso é preciso
do nacionalismo ocidental moderno: ausência de ordem, disciplina, “proceder como o branco”, lançanilo-sc ativamente na competição
previsibilidade, raciocínio prospecrivo ct£> t ^ enrrn n operai ur rir ocupacional.-’®
claMitir i>V4tiÁ](‘srJii^ lliuiyiu a x i á t, colado 11,1 hu.m rquiá-vaWnnva
mipL.ua. c . uaperiimai J a -a cftj <m <p>e--trvr>rThrna-sc-<-m
/Afinai, o que é, para alem do sentido rcrónco. compreensível
Concebia-sc, por imcdiatanientc dc forma inarticulada por cada um dc nos, mas que
exemplo, que o negro se “misturasse com o branco airasado, que está
apresenta desafios aparentemente intrat^uoiuvcis logo que pretendemos
ã sua altura moral, intelectual” 25 Florestan, no entanto, permanece
defini-lo dc forma adequada, “ser gcnte”fy\ rc jn Ksma.esta questã* >é, na
preso à explicação dos “resíduos”,2,1 e não consegue incorporar vários
verdade, o tema ccnrral deste livrcCmi medida cm que |x>de nos
desses depoimentos ao seu quadro explicativo, que se tom a crescem
temente ambíguo, impreciso c inconclusivo. ajudar a clarificar, em um sentido não retórico categorias oomo gente
e “subgente” ecidadãoC '"subudadão". F,ss^espogM adg^>esjcjajr^
l i resolução teórica desse “imbróglio", com consequências práticas
c j(pcnto .simultâneo c prévio fle ç|(ps q u e s tõ e s / ^ reconstrução da
nada desprezíveis, exige a determinação precisa deste componente
hierarquia contingente e liistoricamente constniWaque servrc dc base,
misterioso por trás da cor. Florestan ja aponta o caminho a ser seguido
de forma opaca e inartiailada, à legitimação da dj^mualdadc nos cott-
por meio da alusão, recorrente cm todo o seu trabalho, dc que o que os
tcxrt *s cei itral c periferia >nas condições mi xlemas/bjJ <>esclarec une nr<>
negros «fctivamenre queriam era cfcüvamcnrc transiormar-sc e “ser
do seu modo específico dc ancoramento institucional nas condições
gentc ó J T ) termo nunca c definido daramente nem por Florestan,
da modernização periférica.
164 - A CONSTRUÇÃO SOCiAJ. D A SU 0 C IO A D A N IA ...
Parte 3 - 165

B- A "Ideologia Espontânea" do Capitalism o Tardio e a


uma infinidade dc distinções sociais, é a situação de “necessidade”
construção social da desigualdade
da classe operária. O que mostra o caráter histórico contingente c
espaço fcmporalmcnte contextual dessa “necessidade” c que ela se
refere à distinção de hábitos de consumo dentro da dimensão de
O desafio deste tópico é recuperar, para as condições concretas
da modernidade central c penicrica, a rcllexãi >desenvolvida na primeira pacificação social típico do Wcifare Statc./O que c visto com o
parte deste livro a partir das contribuições dc Taylor e Routdieu A “necessidade”, neste contexto, comparando-se a sociedades periféricas
escollia desses dois aurores, vale a pena repetir, deve-se ao tato de corno a brasileira, adquire o sentido de consolidação histórica c con­
que, aos meus olhos, ambos se afastam tanto dc uma sociologia sub- tingente dc lutas políticas c aprendizados sociais c morais múltiplos
jerivista, que reduz a complexidade da realidade social à interação dc efetiva c fundamental importância, os quais passam desapercebidos
consciente enrre seus membros, quanto de uma sociologia sistêmica, enquanto tais para Bourdicu/
que naturaliza a realidade .social e se torna incapaz de perceber seus Gostaria dc propor iwm-swhdivtta i» -irtatr gi win di i luúwtHw,
sentidos opacos c tornados intransparentes á consciência cotidiana c dc ral modo a confêrir-lhc um caráter histórico mais matizado inexis­
científica, ou, ainda, de uma sociologia que esscncializa a dimensão tente na análise bourdieusiana c acrescentar, portanto, uma dimensão
cultural, com o nas teorias tradicionais c contemporâneas da moder­ genética c diacrônica â temática da constituição do habitus. Assim,
nização.
ao invés dc nos referirmos apenas de habitus genericamente, aplicando-o
Rara ambos, a sociedade moderna sc singulariza precisamente a sittuções específicas dc classe cm um contexto sincrônico, como
pela produção dc uma configuração, formada pelas ilusões do senrido faz Bourdicu, acho mais interessante e rico para meus propósitos,
im ediato e cotidiano, que Taylor denomina de “naturalism o", e falarmos de i ú*i >itu.s’'. Sc o habitus representa a
Bourdicu, de “doxa”, que produzem um “desconhecimento específico” incorporação nos sujeitos de esquemas avalíativos c disposições de
dos arons acerca de suas próprias condições de vida. Lambem para comportamento a partir de uma situação socíoeconômica estrutural,
ambos, apenas uma perspectiva hermenêutica, genética c rcconstrutiva, ) myd.inça.s fundamentais na estrutura económico-social deve
podería rccstabelecer as efetivas, ainda que opacas e intransparentes, implicar, consequentemente, mudanças qualitativas importantes no
precondições da vida social em uma sociedade deste tipo, N o entanto, tipo dc habitus para rodas as classes sociais envolvidas dc algum m<ido
o desafio concreto aqui ê o dc articular, sisrcmaticamenre, lambem
nessas mudanças.
as imilateralidades de cada uma das perspectivas estudadas de modo
a lorná-las operacionais no sentido de se permitir perceber como
moralidade c poder sc vinculam dc modo peculiar no inundo moderno, jktni ns «m edades modeiu asn o t Judcute. A burguesia, como a primeira
e muito cspecialmentc no contexto periférico. classe dirigente na história que traballia, logrou romper com a dupla
moral típica tias sociedades tradicionais baseadas no código da honra e
^Talvez o aspecto que mais explicite as deficiências da teoria bour-
construir, pcio menos cm uma medida apreciável c significativa, uma
dieusiana c ponha a nu a necessidade de vinculá-la a uma teoria obje­
i-mm-ipp a partir da generalização dc sua
tiva da moralidade como a tayloriana c o radical contextualismo da
própria economia emocional — domínio da razão sobre as emoções,
sua análise da classe trabalhadora francesa, que o impede de perceber
cálculo prospcctivo, auto-responsabilidade etc. — ás classes dominadas,
processos coletivos de aprendizado moral que ultrapassam dc muito
hsse processo .se deu cm todas as sociedades centrais do Ocidente das
as barreiras de classc^.om o pudemos observar na análise de Hourdieu
mais variadas maneiras. Em iodos as sociedades que lograram homo­
sobre o caso francês, o paLamar ultimo da sua análise, que fiuidarnenta
geneizar um tipo humano transclassisra, csrc foi um desiderato, como
166 - A C O N SIKU Ç A d SOCIAI DA SUBCTOADANtA... Parte 3 - 167

vimos de th fW ü f r deiXAck.,1 especulares, reativas c de soma zero. A radical contcxtualidadc de


HfW HfKAíiMvièyAiíiAittt jrrmTir^Hr* pmgressu oconouuco, Assim sendo, seu argumento o impede de perceber a importância de conquistas
esse gigantesco processo histórico homogeneizailnr, que posrcrionncxitc históricas desse tipo de sociedade, como a francesa, as quais tornam-se
foi ainda mais aprofundado pelas conquistas sociais e políticas de ini­ óbvias por comparação com sociedades periféricas, como a brasileira,
ciativa da própria classe trabalhadora, o qual ccrtamemc não equalizou em que ral consenso inexiste^o chamar a generalização, portanto, das
todas as classes cm rodas as esferas da vida. mas, .sem dúvida, genera­ precondições sociais, econômicas e políticas do sujeito útil, “digno” e
lizou e expandiu dimensões fundamentais da igualdade nas dimensões cidadão, no sentido tayloriano de reconhecido inccrsubjcrivamente
d vis, políticas c sociais como examinadas por Marshall no seu texto como ral, de "habitus primárioA eu o faço para diferenciá-lo analifi-
célebre, pide .ser percebido como iim pgamia m processo dc aprcndi- camcnre de duas outras realidades também fundamentais: o ••àabfros
WKàmmmém^màÉmmmàl profunda* cotwqtienaas. ptiwciUK)'' e o que gostaria de denominar "habitus secundário”.
^ L p recisam cn tc esse processo histórico de aprendizado coletivo (*<'h»bmw precamr sm a « limite U*> habnus pnmaricripara
! que nao é adequadamente tematizado por Bourdieu no seu estudo jülillll IHM1Ht»^cna aquele tipo de personalidade e de disposições de
empírico acerca da sociedade trances,\\ Hlc representa o que gostaria comportamento que nao .íreiidein as demandas objetivas paia que,
de denominar de "habitus primário" de modo a chamar a atenção a scía um indivíduo seia um grupo social, possa ser considerado
esquemas avaliarivos c disposições de comportamento objetivamente produtivo e utü em uma sociedade de ripo moderno e competitivo,
internalizados e “incorporado»'’, no sentido bourdicusiano do termo, podendo gozar de reconhcuuiçmo social com todas as suas dra-
que permirc o compartilhamento de uma noção de diemriadc efeti­ máricas consequências existenciais e poliricas Para alguns autores,
vamente compartilhada no sentido tayloriano. É essa “dignidade”, rriesnií >sociedades afluentes como a alemã, já apresentam agora seg­
cfctivamcnte compartilhada por classes que lograram homogeneizar mentos de trabalhadores c de jx>bres que vivem do seguro social prcci-
a economia emocional de todos os seus membros numa medida sig­ samente com estes traços de um "habitus precário”/1 na medida cm
nificativa, que me parece ser o tUiJ.jcUJ.nnu> ^J.uJuuJu dujcconlm -i que o que estamos chamando de “habitus primário” tende a ser
mento social inlra e ultrajuridieo, o qual, pc>r sua vez, permite a definido segundo os novos patamares adequados às rccenrcs trans­
eficácia social da regra jurídica da igualdade c, portanto, da noção formações da sociedade globalizada c da nova importância doconhc-
moderna de cidadania..!-, essa dimensão da “djgQjjJbde’*compartilha­ dmento.yNo entanto, como iremos ver, essa definição só ganha o
da, no sentido não jurídico de “levar o outro cm consideração”, e que estatuto de um fenômeno de massa permanente, em países perifé­
Taylor chama de respeito aüiudinal,'1' que tem que estar disseminada ricos como o Rrasij3

Í
de forma efetiva em uma sociedade, para que pos.sam<>s dizer que, O que estamos chamando de " habitu s w u n d á n o trm-ir-vwt
nesta sociedade concreta, temos a dimensão jurídica da cidadania e firmrr do ym m m o” |vata o u u , «iu «ua. vem a urr
da igualdade garantida pela lei. Para que lui.i eficácia legal da regra ■.XIn I ir ii-, c iw p .iiu UÉÉUtalqueprm u fx *;-m>
> de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão sauuiia-fortc do termo, a gynenhrarm d « “habitus p sim í m tm.parra
da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada./ ‘Wpia^.s amadas da pcqji^ãodcJJUlU.sJAdasücialade. Kes.se sentido,
fi essa dimensão que exige, portanto, mn efetivo consenso valorati o “habitus secundário” já parte da homogeneização dai-princípios
vo l iaasckl— » comosua aindicárTtlêêxísccncia. que não~é percebida operantes na cictcrminação do “habitus primário” c institin, pot
enquanto tal por Bourdieu! É essa ausência que o permite pensar as sua vez, critérios classificatórios de distinção social a p a rtir do qiltv
relações entre as classes dominantes e dominadas com o relações Rourdicu chama de “&ostoU.M as a determinação conccitu.il precisa
168 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBODADANIA... Parte 3 - 169

dessa diferenciação triádica da noção de habitus, dcvc scr acoplada Para ele, a ideologia do desempenho baseia-se na “m »de
à discussão tayloriana das lonrcs morais ancoradas institucionalmcntc mcouM-iauca'' que envolve qiuidicaçáu*, posição e salário Destes,
no mundo moderno^scja no centro ou na periferia, para sua ade­ a q»»W*c»ção, refletindo a extraordinária im portância do conhe­
quada pmjbleinan/açãy. Como a categoria de “habinis primário” é a cim ento com <>desenvolvimento do capitalismo, c ojarimeiro c mais
mais básica, na medida em que e a partir dela que sc torna compreen­ importante ponto que condiciona os outros doií^^ ideologia do
desempenho é uma “ideologia” na medida em que ela não apenas
sível seus limites “para baixo” c “para cima” devemos nos deter ainda
estimula c premia a capacidade dc desempenho objetiva, mas legitima
um pouco na sua definição.
0 acesso difcrcjjcial permanente a chances de vida e apropriação de
Gostaria de usar as investigações dc Hrtn+rord K w M - para bem escassos Apenas a combiitapo da tría d çjja id ço jo g ú ^ o
tentar levar a noção dc “hahirus primário” a um patamar mais con­ desempenho fãz do Indivíduo üm^smãCzà3or” compIctr.MLgfctMf
creto de análise. Parto da pressuposição de que a noção de Kreckel 1 f »"cidadãí) c<>mp!eU>” (\bllburger). A trí ade torna também eompnecri
dc “ideologia do desempenho”3-1permite pensar a dimensão socioló­ sífiSsf porque apenas através «ia categoria do “traliafho” e possível sc
gica da produção da distinção social, partindo da força objetiva da assegurar de ictentuiadc, autu-esunu c rcconiicumento social. Nesse
idéia de dignidade do agente racional como proposta por Taylor. sentido, o desempenho diferencial no trabalho tem que se referir a
final, as pessoas não são aquinhoadas cquicativamente com o mes­ um indivíduo e só pode scr conquistado por d e próprio. Apenas
mo reconhecimento social por sua “dignidade dc agente racionafj quando essas precondições estão dadas pode o indivíduo obter sua
Essa dimensão não c tão “rasa” como a simples dimensão política identidade pessoal e social de tòrma completa/
dos direitos subjetivos universalizavas c intcrcambiiveis sugere. Como Isso explica por que uma dona-dc-easa, por exemplo, passe a ter
vimos, a dimensão jutuliça da proteção legal c apenas uma das um starus social objetivamenre “derivado”, ou seja, sua importância e
dimensões — apesar dc fundamental e importantíssima — desse reconhecimento social dependem dc seu pcrtencimcnto a uma família
processo dc reconhecimento. Se é o trabalho uül, produtivo e di.scipli ou a um “marido”. Ela se torna, neste sentido, dependente dc critérios
adscriüvos, já que no contexto meritocrático da “ideologia do desem­
nado que parece estar pc >r trás da “avaliação (^ c ri va d( * valor relativo”
penho" ela não possuiría valor autônomo.í+£\ atribuição dc respeito
de cada qual nesta dimensão, então o potencial cncobridor de desi­
social nos papéis sociais dc produtor e cidadão passa a scr mediado
gualdades por trás da noção dc “dignidade” do agente racional deve
pela abstração real já produzida por mercado e Estado aos indivíduos
sc manifestar mais facilmente nesta dimensão.
pensados como “suporte de distinções” que estabelecem seu valor
Kreckel chama dc “ideologia do desempenho” a tentativa de relarivõl A explicitação dc Kreckel, acerca das precondições para
elaborar um princípio único, para alem da mera propriedade econô­ o rccõfinecimento objetivo dos papéis de produtor c cidadão, c
mica. a partir do qual sc constitui a mais importante forma dc legi­ importante na medida em que e fundamental não apenas relcrir-.sc ao
timação da desigualdade no mundo co n tem p orân eo id éia subjacente inundo do mercado e da distribuição dc recursos escassos como
a este argumento é que rena que haver um “pano dc fiando consensual” perpassado por valores, como fãz Nancy br ase r, por exemplo, mas é
(Hintmpimdktmscm)^ acerca do valor diferencial dos seres humanos, necessário explicitar “que valores” são esses.
dc tal modo que possa existir uma efetiva — ainda que subliminar­ AlWtttk, vai ser o poden luwim.iflnr .«la que Kreckel chama de
mente produzida — legitimação da desigualdade/ Sem isso o caráter “ideologia do desempenho” que íra d cian iu u r, aos suicitos cgrupos
violento e injusto da desigualdade social se manifestaria de forma sociais cxxlüíüos de plano, pela ausência dos pressupostos mínimos
cíanTc a ollUI flli. “
170 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SU &CIO AÜAN IA... Parte 3 - 1 7 1

£^3U U U Jm pcuüs.> bcm-sueedida, desta dimensão, o ^ o ica u ia i um fenômeno de massas mima sociedade periférica como a brasileira,
seu nno-rmmhfcinMnttTTririil c tim n.inàríriV ■l.rãT.m <A é resultante ldã'ampliação da definição do que estamos chamando
ideologia do desempenho” funcionaria assim como uma espécie “habitus primário". Nq caso ajcm|y, a disparidade entre “habitus
de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano, refletindo a efi­ primário" e “habitus precário" c causada pelas demandas crescentes
cácia de princípios funcionais ancorados cm instituições opacas c por flexibilização, o que exige uma economia emocional de tipo
intransparentes como mercado e BstadaTEla é intransparente posto peculiar. No caso brxsücm)^.»>AUi>nK> cria, ja n o limiar do sccul< •
que “aparece" à consciência cotidiana como seT*sse cíeltoTe prin­ ãdJÚ cou» a reeutupcj^ãviy doqwis c « i miemtfiea a parrir de i<*30
cípios universais e neutros, abertos à com|xrrição meritocrátíca. Acho 1rira ia início th» p rim im riu ntodemiração em grande escala Neste
que esta idéia ajuda a conferir concrcmde àquilo que Taylor chamava caso, a linha divisória passa a ser rracada entre os setorffi “^impricidn*:"
de " fonte morai", com base na~noção "de self pontual, embora seu ou seja, os setores que lograram se adaptar às novas demandas ’
poder ideológico ^nrodutor de distinções não seja explicitamente produtivas t* sociais— e os setores “njg curupcizadus" quu-uanksam, '
renutuado por ele j f por seu abandono, a uma crescente e permanente marginalização.
/f)a definição c da constituição de uma ideologia do desempenho, V Í o m o o prindpio básico do consenso transei assista é o principio |
comTr mecanismo Icgitimador dos papéis de produtor c cidadão, que doclcscmpcnho e da disciplina (a fonte moral do self pontual para
equivalem, na reconstrução que estou propondo, ao conteúdo do Taylor), passa a ser a aceitação e intemalização generalizada deste
“habints primário”, é possível compreender melhor o seu limite “para principio que faz com que a inadaptação e a marginalização destes
baixo", ou seja, o “habitus precárit^Assim, " setores possam ser percebidas, tanto pela sociedade incluída como
implica um conjunto de predisposições psicossociais refletindo, 11a também pelas próprias vítimas, como um “fracasso pessoal”. fi
esfera da personalidade, a presença da economia emocional e das também a ccntralidadc universal do princípio do desempenho, com
precondiçõcs cognitivas para um desempenho adequado ao atendi­ sua consequente incorporação pre-reflexiva, que faz com que a reação
mento das demandas (variáveis 110 tempo c no espaço) do papel de dos inadaptados se de num campo de forças que se articula precisa-
produtor, com reflexos diretos no papel do cidadão, .sob condições meiue cm relação ao tema do desempenho: posirivamente pelo reconhc-
capitalistas modernas, »mUáfcn j eu- pofrtnUtvMc-', em alguma cimento da inrocabilidade de seu valor intrínseco, apesar da própria
medida significativa, implica 11a constituição de um habitus marcado posição de precariedade c, negativamente, pela construção de
pela precariedade. um estilo de vida reativo, ressentido, ou abeitamente criminoso
Nesse sentido, k*íwm<rpreeanr> pode referir-se tanto a setores c marginal,*6
m.us tradicionais da ciasse trabalhadora de países rtrw-nvyilvwW c [á o lirniir dq “habitus primário" para cima tem a ver com o fato
aflucnres 101110 a Alemanha. c<mm api. mia t hve Biulingmáycrcm sCU de que o desempenho diferencial na esfera da produção ter que scr
estudo, 4' incapazes de atender as novas demandas por continua forma­ associado a uma “cstilizacáo da-VÍda" peculiar de modo a produzir
ção c flexibilidade da assim chamada "sociedade do conhecimento" distinções sociais. Ü 11 seja, o desempenho diferencial não c apenas,
(Wisscm£esdhclmftu que exige, agora, uma ativa acomodação aos nem primariamente uive/., uma E E tc dr "valori/.ição s<>ci il” (hwUV
novos imperativos econômicas, quanto, também, a secular "ralé" \Mrtschàtzunef) que estimula os laços de solidariedade social, como
brasileira, tratada no livro de Florestan Fernandes que examinamos propõe Axel H onncth,37 por exemplo, mas também, cm grande
anteriornicntèrSTos dois casos, 3 formação de rodo um segmento de medida, frmti»deebwTíç**!»*-soemis-qw-w1«wtT e nr do'Cí.rmcxTirdc
tnadaptados, um lénõmeno marginal cm sociedades como a alemã c < c de apatcntrnm m bdadevo -qual-épatt*. mregramedti
172 - A OONS IRUÇÃO SO CIAL DA SU BCIÜ A D A N IA ,, . Parte 3 - 1 7 3

“tdaUogwtWfeMxnpeiiW: paft
que «melem a se "na; de ‘
n o q u e e s u m u s cham ando
i de existência o horizonte da mdividualização conWttdfstic.l, baseada no Ideal da
str.vsc sentido, o que estamos chamando dc “habitus secundário" idenudade original dialõgtea e narra trvamcmr constimfda, qnanrmn
seria precisamcntc o que Hourdieu teria em mente com seu estudo pioccsso dc individoaçár» superficial baseado no tpnck fix. Rourdieu
sobre as “sutis distinções" que eie analisa no seu distm aw g^ É nesta não percebe a diferença entre as duas formas já que. para ele, por
dimensão que o “gosto” passa a ser uma espécie dc moeda invisível, força de slus escolhas categoriais, a estratégia da distinção é sempre
transfi>rmando tante>o èapiul n onêmia »puro quant»>, muito especial* utilitária c instrumental. Para meus fins, no entanto, essa diferença é
menre, o Ciipinl nilrni il, “travestidos em desempenho diferencial” fundamental. Afinal, a recuperação da dimensão objetivada, trabalhada
segundo a ilusã<»di >“talento inato", etn um conjunto dc signos -sociais por Tavlor, é o que explica, em última instância, o apelo c eficácia
dt distinção legitima, a partir dcxs efeitos típicos do contexto de social inclusive da versão massificada e pastichc dessa possibilidade
opacidade em relação as suas condições de possibilidade. de individuação.
Mas, também aqui, c necessário acrescentar a dimensão objetiva (A personificação do “gosto” para Bordicu serve, antes de tudo,
da moralidade que permite, cm última instância, todo o processo dc precisamcntc para a definição da “personalidade distinta ", uma
fabricação dc distinções sociais, o qual, ecyno vimos na primeira personalidade que aparece como resultado de qualidades inatas e
parte deste livro, é dcs curada por Bourdieut Assim, também o con­ como expressão dc harmonia c beleza c da reconciliação dc razão e
ceito dc “WKirmp <f, ,1rur n iiM W H u liiiu , a exemplo do que sensibilidade, a definição do indivíduo perfeito e acabado^*1Ashitas
li/cmos com o conceito de “habitus primário e precário", auuautotp q jít c as diversas frações de dasse se dão. preosamente, pela detcrmi-
uuuL.rfiud»<l«K npam r n tm tr a W io .q u e Ibr rontem eriraem l^frto da versao socialmentc hegemônica do que é unia personalidade
percebemos na "ideologia do desempenho” enquanto corolário da distinta c superior. A classe trabalhadora, que não participa dessas
dignidade do ser racional do sclt pontual tayloriano, o fundamento lutas pela definição do critério hegemônico dc distinção, seria um fsT -
moral impliciu» e naturalizado das duas outras lònnas de habitus que mero negativo da idéia dc personalidade, quase como uma “não-V^/ j
pessoa”, como as especulações de Rourdieu acerca da redução d o s ^
* paru r da noçao ravfoiw u traballiadores a pura força física deixa entrever.'^Mas c precisamcntc
de ^xprt^ivid^fee-^uiaa.Uu^cLuic aqui, creio eu, que o contcxtualismo de Rourdieu se mostra em seus
O ideal romântico da-«*enriadnde, que o Tàylor do T hesou rçaof limites c cm sua perspectiva a-histórica.
thesdf interpreta como uma fonte moral alternativa ao selfpontuaL, e o v Uma comparação entre as realidades francesa c brasileira pode
princípio do desempenho que o comanda, na medida cm que implica ilustrar melhor o que imagino a partir da distinção entre “habitus
na reconstrução narrativa dc uma *d*mtKUtle singular. para a qual primário e secundário” e a importância desta diferenciação para uma
não há modelos prcestabelecidos, vive o perigo de transforma-se no percepção adequada das cspccificidadcs das modernidades central c
seu contrario nas condições aluais. O mote do disgnóstico da época periférica. Desse niodo. w cem»,-seria 3 «•frtiva pxisténcia de
levada a cabo por laylor no seu /be etbics ofauthm tiaiy é precisamcntc
a ameaça crescente de tmialização desre ideal do seu conteúdo dLdógico das preceindiçõcs s<xiais que possibilitam o ccimparrilhamcntt)efetivr »,
ede auto-invenção cm favor de unüpcrspccrivaauux-rcícnda.siniliolizada nas sociedades avançadas, do que estou chamando de “lubitus pri­
no que o autor chama de ijmrk fix''1(solução rápida). mário”. que faz com que. por exemplo, um alemão a u if o lK f c .d e
174 - A OONS1RUÇÃO SOCIAL DA SUBUDADANIA... Farte 3 - 175

classe nifrtia ouc atropele um seu çpmpatrinra d.rseLtccrc hslvac c^j ) abre o inquérito ate o juiz que decreta a sentença final, passando por
>.<uti alnssima pnibahiliclade, c.tciívamcutc punido de acordo com ,1 advogados, testemunhas, promotores, jornalistas etc., que, por meio
ia ,.> £ um brasileiro de classe média atropela um brasileiro pobre da de um acordo implícito e jamais verbalizado, terminam por inocentar
“rale", por sua vez, as chances de que a lei .seja efetívamente aplicada o atropclador. («tapir liga mdas rssas imcncionalidadcs individuais de
neste caso c, ao contrário, baixíssima. Isso não significa que as pessoas, túm u subliminar eque conduz ao acordo implícito entre elas e o faro
nesse último caso, não se importem de alguma maneira com o objetivo e ancorado institucionalmente do não valor humano, posto
ocorrido. O procedimento policial é gcralmente aberto c segue quc-é-picc.isamente o valor diferencial enrre m seres humanos que
seu trâmite burocrático mas o resultado é, na imensa maioria dos CAfci atualizado de forma matriculada em todas as nossas práticas ins-
casos, simples absolvição uu penas dignas de mera contravenção. imtciotuis c sociais, do atropelado.
ÍKão se trata de intencional idade aqui. Nenhum brasileiro euro­
compartilhado socialmente. o valor.do brasileiro p J----- ~~ "•njiirtrrnfn peizado de classe média confessaria, em sã consciência, que conside­
ou seja. que não compartilha da economia emocional do sell ra seus compatriotas das classes baixas não-curopeizadas “subgcnce”.
pontual que é criação culniral contingente da Europa e da América Grande parte dessas pessoas votam em partidos de esquerda c parti­
do norte — é-eomparavei a que se coniete a um animal domestico, o cipam de campanhas contra a fome e coisas do gênero, .-^dimensão
quccaracten/.a«ibjcnvamemc seu starus sub-humano. Existe, cm países aqui e objetiva, subliminar, unplicita e uuranspareme. Ela é implícita
periféricos como o Brasil, «#Ja uuu daçsc d,ç pessoas excluídas c também no sentido de que não precisa ser linguisticamente mediada
«inrhtiifiiwihii, dado quedas não participam do contexto valorarm > mu- simbolicamente articulada. -tLa implica, como a idéia de habitus
d críin d o — o que lãylor chama de “dignidade" do agente racional cm Bourdieu, toda uma visão de mundo c uma hierarquia moral que
— nqwif é condição de p issibtlidade para o efetivo compartilhamento, se sedimenta c se mostra como signo social de forma imperceptível a
P®* todos, da idéia de igualdade nessa dimensão fundamental para a partir de signos sociais aparentemente sem importância com o a
constituição de um liabinis que, por incorporar as características disci- inclinação respeitosa c inconsciente do inferior social, quando
plniadoras, plásticas c adaptarivas básicas para o exercício das funções encontra com um superior, pela tonalidade da voz mais do que pelo
produtivas no conrcxto do capitalismo moderno, poderiamos chamá-lo que é dito etc/O que existe aqui são acordos e consensos sociais
de “habitus primário". mudos c subliminares, mas, por isso mesmo tanto mais eficazes que
Permitam-me precisar melhor essa idéia central para todo meu articulam, como que por meio de fios invisíveis, solidariedades e
argumento nesre livro. Falo de “itobuu* pnmanré'. dado que trata-se preconceitos profundos e invisíveis. E este upo de acordo, para usar
efétivamente de um habirus no sentido que essa noção adquire cm o exemplo do arropclamcnto, que está por trás do íãto de que todos
Bourdieu. São uwpumias avubauvoscumpartilhadi «> ub)euvamcnn\ <>senvc)lvid<k n<»pr<icessi»p ilicial e j udí ciai na m<>rre p >ratri ipelamentt)
ainda que opacos, c quase sempre irrefletidos e inconscientes que do sub-homem não europeizado, sem qualquer acordo consciente c até
guiam nossa ação e nosso comportamento efetivo no mundo. É apenas contrariando expectativas explícitas de muitas dessas pessoas, terminem
este ttpo tleconwuso, como que corporal, pré-reflexivo c naturalizado, por inocentar seu compatriota de classe média"*7
«)tMfode-permmr, para além da eficácia jurídica, uma espécie de acordo Bourdieu nao percebe, pelo seu radical contcxtualismo que implica
unpliciro qtw -íHgerv. como no exemplo do atropelamento no Brasil, um componente a-histórico, a existência do componente rransclassista,
que-trignmaepessoas c claxxes-iíMãortrmn da ter e outras abaixo drk que faz com que, cin sociedades como a francesa, exista um acordo
Exism, como que uma rede mvisível que une desde o policial que intersubjetívo c transclassista que pune, efetivamente, o atropelamento
176 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBC1DADAN1A... Parte 3 - 177

de um francês dc classe baixa, posto que de é, efetivamente, na os indivíduos c grupos sociais precarizados com o subprodntorcs c I
dimensão subpolírica e subliminar, “gente'’ e “cidadão pleno" c não subeidadãos, e isso sob a forma dc uma evidencia social insofismável, j
apenas força física c muscular ou mera tração animal. E a existência tanto para os privilegiados com o para as próprias vítimas da preca- j
eferiva deste componente, no entanto, que explica o fato de que. na riedade, é um fenômeno dc massa e justifica minha tese dc que o que j
sociedade francesa, numa dimensão fundamental, independentemente diferencia substancialmente esses dois tipos dc sociedades é a produção I
da pertença a classe, todos sejam cidadãos. Esse fato não implica, social dc uma "ralé estrutural” nas sociedades periféricas. HssaJ
por outro lado, que não existam outras dimensões da questão da circunstância não elimina que. nos dois tipos dc sociedade, exista I
desigualdade que se manifestam dc forma também velada e intrans- a luta pela distinção baseada no que chamo dc IrobwmAteciuiilarkx ,
parente. como tão hem demonstrado por Bourdieu em sua análise da que tem a ver com a apropriação seletiva de bens e recursos escassos
sociedade francesa. Mas a temática do gosto, como separando as 1 c constitui contextos cristalizados e tcndcncialmcntc permanentes de
pessoas por vínculos de simpatia e aversão, pode e deve ser analitica- desigualdade. Mas a consolidação eletiva, cm grau significativo, das
mente diferenciada da questão da dignidade fundamental da cidadania precondiçócs sociais que permitem a generalização dc um “habitus
jurídica e social, que estou associando ao que chamo dc “habitus primário” nas sociedades centrais toma a subeidadania, enquanto
primário”. fenômeno dc massa, restrito ajxuas às sociedades periféricas, marcando
A diwiflção a partir do gosto, tão magistralmenre reconstruída sua especificidade como sociedade moderna e chamando a atenção
|M)i KwmitIiu j - pressupõe, no caso francês, um patamar dc igualdade para o conflito de classes específico da periferia.
eferiva na dimensão tanto do compartilhamento dc direitos funda­ dessa ccuistLUyto mulupia de habitus serve para ultra­
mentais quanto na dimensão do respeito atitudinal dc que fala laylor, passar- concepções wbjwiniitM da realidade que reduzem a mesma ás
no sentido dc que todos são percebidos como membros "úteis” ainda íutuuçocs face a facc.iA situação já descrita, do atropelamento, por
que desiguais cm outras dimensões. Em outras palavras, à dimensão exemplo, seria “explicada" pelo paradigma personalista hibridisra,ü
do que estamos chamando “Ldwtw -piinwrin” . se acrescenta uma com base no capital social cm “relações pessoais” do atmpelador de
outra, que também pressupõe a existência dc esquemas avaliarivos classe média, que terminaria levando à impunidade. Esse c um exemplo
implícitos c inconscientes compartilhados, ou seja, corresponde a típico do despropósito subjetivista dc se inrerpretar sociedades peri­
um habitus específico no sentido de Bourdieu, como cxcmplarmenie féricas complexas c dinâmicas, como a brasileira, como sc o papel
demonstrado por este autor a partir das escolhas do gosto, ao qual
estruturante coubesse anrincípios pré-modemos como o capital social
estamos denominande * dc “Wihii rrs sei tmdano".
em relações pessoais, ^ esse terreno, não há qualquer diferença entre
I làwas'dtwis firmemões nbvnmcnte se imer|ictK;tram dc várias países centrais ou peimíricos. Relações pessoais são importantes, na
maneiras. N o entanto, podemos e devemos separá-las analiricamcnte definição de carreiras c chances individuais de ascensão social, tanto
na medida cm que obedecem a Iwgieas distintas de funcionamento, em um caso como no outro. Nos dois tipos de sociedade, no entanto,
I j Com o diria laylor, as lontes morais são distintas cm cada caso. No os m pttftkxconômijjg y cultur^foão esimiurante», o que o capital
caso do “ItaWtlfí pnmâni >“ <»que está cm jogo é a efetiva disseminação social de relações pessoais não é, ,
da noção de dignidade do agente racional que o toma agente produtivo
O -ujuceito de habitus. desde que acrescentado de uma concepção
c cidadão pleno. Em sociedades avançadas, essa disseminação é
não csscncialista dc moralidade ancorada em instimiçóes fundamentais,
fleferiva, c os casos de %»bTTm pretanrr são fenômenos marginais.
pemute tanto a percepção dos efeitos sociais dc uma hierarquia
Em sociedades periféricas como a brasileira, o “habitus precário”,
atualizada dc forma implícita e opaca— c, por isso mesmo, tanto mais
^que implica a existência dc redes invisíveis e objetivas que desqualificam
178 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBCIDADAMA... Parte 3 - 179

eficaz — ipiantri^STcíentifiicação do sai potencial segregador c consu­ ygaadafteda dominação, também sob~coudiçãc* mudemamenu;
midor de relações naturalizadas de desigualdade cm vários dimensões, penfericas, c autodestrutiva para os grupos afetados com um “habinw
variando cora o tipo de sociedade analisado. Nesse sentido, esse precário", na medida cm que a auto-representação c a aum-estima,
conceito parece-mc tun recurso fundamental desde que complementado soeialmcnte construídas, inexoravelmente àquilo que Taylor havia
com uma hermenêutica do sentido e da moralidade como a que Taylor definido como »eweÉÉW|tiÍ!WÍiHÍwmiíiwwHá»a«wwilieeimene»,wwel:
nos oferece. “ausência de reconhecimento não significa apenas falta do devido res-
peiro a alguém. Ela inflige feridas prcitundas, atingindo suas vítimas
com um amv df.if ftír i-mttTttaflWf.^fLhna dessas formas de feridas
profundas parece-mc a aceiUçãu da situação de precariedade como
C- A especificidade da desigualdade periférica legítima e até merecida c justa, fechando o círculo do que gostaria de
chamar de “aiann-nlização daxlcsigualdadc". mesmo de uma desigual­
dade abissal como a da sociedade brasileira./
^ S e o argumento desenvolvido anteriormenre está correto, a
A critica weberiana ao conceito de lín tío m Marx é interessante
assunção, muitas vezes apenas implícita, da resolução dos conflitos
neste contexto, na medida cm que ela sc concentra precisamcnre na
sociais decorrentes da desigualdade na distribuição dc recursos escassos,
no contexto do \wijan State rfas sociedades avançadas, mostra-se como negação do autonutismo enrre a situação dc classe e a possível cons
relação de interesses que se cria a partir dela. fiara Weber, ras
exageradamente otimista. Mas e certamcntc no âmbito das sodedades
ülBÉI um lato natural c
periféricas que a desigualdade social em todas as suas dimensões
assume proporções e formas parricularmente virulentas. Espccialmente
i política visando
na dimensão que estamos chamando dc “habitus primário”, esfera
« desta condição4^ meus olhos, é a circunstancia da
onde o reconhecimento social dos papéis sociais dc produtor e cidadão
são. c<«movamos, definidos. Enquanto a generalização dc um “habitus “naturalização” da desigualdade periférica que não chega à consciência
I I
precário" nas sociedades avançadas c um fenômeno circunscrito c dc suas vítimas, prccisamente porque construída segundo as formas
limitado, a sua generalização como fenômeno dc massas em sociedades
VSr impessoais e peculiarmente opacas e intransparentes, devido à ação,
periféricas, como a brasileira, é suficiente para condenar cerca de também no âmbito do capitalismo periférico, de uma “ideologia
*
1/3 de uma {«opulação dc 170 milhões de pessoas a tuna vida marginal espontânea do capitalismtLj que traveste dc universal e neutro o que
nas dimensões existencial, econômica e política é contingente e partícula r j i
V H precisamcnre a união das duas |M>ntas do argumento que
Utsta parccc-mc constituir-se na principal distinção entre estes
dois Tipos de sociedade c não a pressuposição, para souedades peri­ plmínite reconsrniir a ação desta “ideologia espontânea no mundo
féricas complexas e dinâmicas como a brasileira, dc personalismo», moderno, seja no centro seja na periferia do sistema, nomeadamente,
a explicação da gênese da hierarquia valorativa que a preside c
pam m ouulismos c resíduos pré-modernos compondo realidades
comanda, por um lado, c a identificação dos signos visíveis dc sua
uh íbridas^YCom< >o exercício da “ideologia do desempenho” se dá
de forma sub-rcpucia, sutil c silenciosamente por meio dc uma prática eficácia na vida cotidiana, que tonaram a união das conrribuiçoes dc
reproduzida irrefletidamente nos diversos habitus com escolhas, ’Iay!<>r e Bouidicu rãi«importantes para a construção d<«meu argumenti«.
É apenas a paitir da reconstrução da lógica opaca dessa dominação
distinções e distanciamentos como que pré-emburidos em um princípio
de realidade simbólico ancorado c reproduzido msritucionalmentc, a simbólica subpolítka incrustada no cotidiano, que se compreende como
180 - A CONSIRUÇÃO SOCIAL DA SUBCIDADAN1A... Parte 3 - 181

cm sociedades democraticamente abertas com o a brasileira, sob o


ponto dc vista formal, e possível a reprodução cotidiana d< õrwno a hnstteifi, Embora cm São Paulo,
Ic Uãaáúws cm iodo o globo entre as sociedades complexas cidade analisada por Florcstan cm seu escudo, o referente empírico
dc algum tamanho. da “europcidade” seja efetivamente um “europeu”, no caso o imigranie
X K apenas a partir da percepção da existência dessa dominação italiano, essa relação não é, de modo algum, ncccssaria. Com a
sim tólica subpolítica. que tray.de forma inameulada uma concepção designação dc “europeu” eu não estou me referindo, obviamenre, à
acerca do valor diferencial dos seres humanos c cujo ancoramento entidade concreta “Europa", nem muito menos a um feno tipo ou
institucional, no cerne de instiruições fundamentais com o mercado c [ tipo físico, mas ao iwgar e a fonte histórica da eouoqição cultural
istado, jx:nnitc, por meio dos prêmios c castigos empíricos associados ittOitc determinada de ser humano que vai ser cristalizada na ação
ao funcionamento destas instituições — sob a forma dc salários, lucro, empinca de msntuiçücs como mcrcado com pcntivoe Estado racional
ímprvgo, repressão policial, imposto etc. — a imposição objetiva, Cttèualizado, as quais, a partir da Europa, Incralmcnte "dominam <>
jindependentemenre dc qualquer intencional idade individual, de toda mundo” em rodos os seus rincões e cantos, com o exemplarmcnu:
tma concepção de mundo c dc vida contingente c historicamente rmu»ua o ca«> brasileiro cm detalhe já examinamos.
produzida sob a máscara da neutralidade c da objetividade inexorável, ^ O “europeu” c a “europeidade”, mais uma vez, para evitar
íssa hierarquia valorativa implícita e ancorada institucional mente dc m al-entendidos, percebidos com o o referente em pírico dc uma
forma invisível enquanto tal c que define quem c ou não “gente”, í hierarquia valorativa peculiar que pode, por exemplo, com o no
kempre segundo seus critérios contingentes c culturalmcnte detem n-j caso do R io de Janeiro do scculo XIX. ser personificada por um
|ados e, por consequência, quem é ou não cidadão, na medida em que? •mulato”, vai se transformar na linha divisória que separa “gente” de
í eficácia da regra da igualdade, que constitui a noção dc cidadaniai “não-gente" c cidadão de “subeidadao”. É o atributo da “cun ipeidadc”,
recisa estar efetivamente internalizada c incorporada pré-reflexiva* no sentido preciso que estamos utilizando c.stc termo aqui, que irá
:nte, também nesta dimensão subpolítica da opacidade cotidiana) segmentar cm classificados e desclassificados sociais, sociedades
Iara ter validade eletiva. periféricas modernizadas exogenamente com o a brnsileira^Lstou
^Desse m odo, compreende-se por que o desejo ingente dos convencido dc que o mesmo vale para o que chamei dc “nova periferia .
excluídos entrevistados por Florcstan Fernandes cm seu estudo fosse de modo a nomear um conjunto de sociedades, com o as latino-
preçisamcntc "ser gente’' com o cie incansavelmente repete cm seu americanas, por exemplo, resguardadas as peculiaridades históricas
UvroVcianTt" e 'Víi Im Ino pfciKT vão ser apenas aqueles indivíduos e c regionais, que sc constituem , com o sociedades cpmplexas, sob o
gnipos que se identificam com a concepção dc ser humano contin­ impacto direto da expansão mundial da E u r o p a ^
gente e culturalmente determinada que “habita”, de forma implícita / Nesse sentido, mesmo naqueles grupos sociais com o os dos
c invisível, a consciência cotidiana, a hierarquia valorativa subjacente ex-eSTravos c dos dependentes rurais c urbanos dc qualquer cor e
a eficácia institucional de instituições fundamentais como Estado e emia, que não foram abrangidos pelo impacto modernizador da chegada
mercado c que constitui o cerne da dominação simbólica subpolítica da “Etm>pa” entre nós, e que podería, portanto, scr percebidos como
que perpassa rodas as nossas ações e comportamentos cotidianos. "resíduos” pré-modernos, passam a ser englobados — ainda que com o
Esse contexto estava, dc modo obviamente inarriculado, presente na desclassificados — pela lógica totaltzadora do novo padrão simbólico
forma como os informantes de Florcstan percebiam a si e aos outros. c institucional que sc instaura para ficar e transformar em algo novo
rudo que existia antes^A versão moderna desta “ralé”, portanto, não
182 - A c o n s t r u ç ã o s o c i a l d a s u b o d a d a n i a .. .
Parte 3 - 1 8 3

c nuis oprimida por uma relação de dominação pessoal que tem na precisamcntc da mera articulação mais elaborada das crenças e
figura e nas necessidades do senhor, como vimos na análise de Freyre preconceitos que perpassam a vida cotidiana. Sob esta base o que
e Carvalho tranco, seu núcleo c referência N w w ntrw o impessoal ê efetivamente construído c unia "-pseudo-r co n a fjf’
1 Moderno, também no periférico, sao redes invisíveis dc crenças com- Isto é parricularmente visível na relação de complementaridade
paMÜbaé» pré-rrflcxivaniciuc aeerca do valor relativo de indivíduos entre as críticas do senso comum e dessas teorias dos “resíduos" pré-
cam pos, ancorados insntucionalnicntc e reproduzidos cootlianamcnic modemos ás mazelas sociais i]ue afligem sociedades periféricas como
pda ideologia «imbókea subpolitica incrustada nas práticas do dia a a brasileira .(^atribuição vulgar generalizada de uma suposta deso­
dia que determinam, agora, seu lugar soaal. Hssas redes, sem dúvida, nestidade c particularismo da classe política ou da sociedade como
I tiio eliminam .is relações de dependência, mas lhe dão um novo um todo, como um seu vício culturalista dc origem, enquanto “explica- j
conteúdo c dinâmica, envolvendo ramo doadores de favores quanto çao” geral das mazelas six'iais que nos singulariza, equivale predsamen-
receptores de proteção cm um quadro de referência que ultrapassa a tt- à elaboração, apenas “um pouco inais sofisticada" do personalismo
ambos. como tuna “herança cultural” secular que .se mantém inalterada, sabe lá £
£ explicação recorrente do resíduo'’ prê-rtvxlcmo nao percebe Deus como, cm contextos institucionais completamcntc distintos\ A
a-questão maior e mais fundamentai «juc o próprio Florestam em tese do patritnonialism o. no fundo uma derivação insritucionaliíada . „
outro livro, havia denominado de procura pelo “padrão de. civiltssa- do pmgmtiianp, apenas confirma este raciocínio. As modernas teorias
ção dominante". E esse padrão dominante-que irá hicrarquizar, se­ do “hihridismo” representam, no fimdo, urna versão “modernizada” do
gundo principias agora impessoais e intransparentes, as antigas rela­ personalismo, na medida em que são obrigadas a levar em consideração, ^
ções pessoais segundo sua própria lógica de reprodução. Com o fim também, as inegáveis consequências do vigoroso processo dc transfor- s
do período transicional. que mantinha uma realidade cfctívamentc mação social que transformou a c.smirura econômica, social c política ^
dual rendencialniente moderna nas cidades e tradicional no campo, de sociedades periféricas dinâmicas como a brasileira. Mas as duas ^
temos, a partir de 1930, a entronizaçáo da lógica da dominação materi­ realidades são percebidas como grandezas “paralelas", sem que a V
al c simbólica tipicamente impessoal c opaca do capitalismo, m n- questão sociológica central da articulação e da domináncia relativa
l>ém na periferia, que engloba c redimensiona, segundo sua própria dos princípios estruturantes em jogo seja jamais enfrentada.
lógica, todas as relações sociais. entanto, existe uma íntima relação entre uma “interpretação!
Na verdade, o paradigma do personalismo, nas suas roupagens adequada da realidade" c um enfrentainento adequado dos “proble-1
tradicionais ou conrêlhptJrtnws. represínia uma c a n c e p ç i i i d jl ^ mas práticos c políticos” que assolam sociedades periféricas como a
WWPklé análise sociológica, na medida em que as relações sociais são Imisile.iraJ( ) io c a .alwitoréw!ti»^.■exagerado de “cruzadas conrra a
percebidas segundo o paradigma da interação face a face. Ao retirar corrupção", como SC este não fosse um problema dc qualquer socie­
dc plano a análise do contexto objetivo do que estamos cRamãntío dade moderna, seja central ou periférica,*6 a ênfase cm reformas admi-
neste livro de “ideologia espontânea do capitalismo", todas as variantes nistrarivas com o se o problema central fosse apenas de gestão eficaz
deste ripo de enfoque teórico se deixa cegar por uma concepção de derm írsos. a én( i-Lainívejs regionais levando a uma luta conLra
sociedade que se reduz à intcncionalidadc dos agentes. FiuLaind.i, “as elites retrogradas”, como se as regiões mais modernas fossem
como esta dimensão dc análise intencionalista se recobre perfeitamente livres dos mesmos problemas c, acima de tudo, a crcnca “fcrichista" .
com a consciência vulgar da vida cotidiana, pode este tipo de explicação no poder da economia cm resolver todos os problemas, parecem-mc
retirar boa parte dc sua plausibilidade e poder de convencimento corolário do ripo dc anáfise que estamos criticando.
184 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SIJBdDADAMA,.. Parte 3 - 185

essas ênfases deslocadas, ainda t)uc ccrtamente p(>ssam e generalizar, por conta de idéias morais, religiosas e políticas, um
ol>tcr resultados inegavelmente positivos ropicamente, scniprc^ütiÉBm patamar dc igualdade efetivo, infra c ulrrajurídico, teve, no Brasil,
attdiUgu da coiur adição ptwopal deste tipo de sociedade que, aos um outro destino. Aqtu. s
metis olhas, tem a ver com foram meramcnte acontpanliadas de “ideologias pragmáticas” como
de inadaptados às demandas tia vida produtiva e social modernas, o liberalismo, o qual funcionou como uma espécie dc “graxa simbó­
constituindo-sc numa legiào de imprestáveis’, no sentido sóbrio e lica” destinada a facilitar a introdução pragmática do mundo dos
objetivo deste termo, com as óbvias consequências, ranto existenciais, contratos c da representação eliusta no contexto primitivo e perso­
na condenação de dezenas de milhões a uma vida trágica sob o ponto nalista anterior, mas que sempre encontrou seu limite cm qualquer
ik vista material e espiritual, quanto sociopolíticas como a endêmica expansão realmente generahzante desses mesmas princípios.
insegurança pública e maipnaiização política c econômica desses
— Essa circunstância também condiciona a dimensão limitada-que i
setore ^ A crença fèrichista no poder mágico do progresso econômico
a “terceira instituição fundamental do mundo moderno”, além dc
fez com que, pelo menus are os anos 80, quando a estagnação eco­
Estado e mercado, weadera ptibiic*. í‘ assume entre nrw: Em todas as •
nômica sucedeu os 5 0 anus anteriores de “milagre econômico’*, sc
grandes mudanças políticas no Brasil, a começar com a agitação
supusesse que o crescimento econômico, por si só.4' pudesse ter
abolicionista, a galvanização dc idéias e sentimentos coletivos, na
um eleito inclusive fundamental.
incipiente esfera pública que aqui sc constituía, foi um componente
Kssaa ç» fenemsu nu economia é tão renitente que mesmo a fundamental. Kla sempre foi o locus a partir do qual sc deu a difícil c
óbvia “comprovação empírica” da conjugação de rápido c a intinuadi i custosa expansão da participação política e social das setores excluídas.
progresso econômico com taxas quase que inalteradas de exclusão e Primeiro a expansão da participação política e econômica dos “setores
marginalidade, que caracterizou a hisuína brasileira durante boa jkhtc médios”, na agitação prc-3ü, com o já vimos, Depois, a inclusão
do século XXj parece não ter provocado nenhuma mudança de política tarnbém dos setores organizados do proletariado qualificado
mcntafídadc^ \ ssim ,.ao uives uma “esquematização” do das indústrias multinacionais de ponta e da inira-estrutura estatal,
processo de nuíocrmzaçáo brasileiro, por suas heranças personalistas que teve que esperar are o limiar dos anos 80, para sua participação
pré-modernas, pelos motivas já sobejamente disciitidos„^hü-que.u autônoma com sindicatos independentes c reivindicativos e partido
próprio, o P T (Partido dos Trabalhadores), hoje no poder.
i esjK-citKidade da forma a>m<»a nutdcnii/açãç.»sc produziu cm com­
ÍVfas a contradição úc interesse* dc classe mais. importante* na t
binação com uma “esquematização” produzida pela ubíqua herança
modernidade periférica parece dever sua especificidade ao fato de
^ r a v p c r a ta . hsta herança, que tam bém condiciona a vida do
que da não articula, como seus principais eomendores, traballudon^
dependente de qualquer cor, n truraliza -.i existência e a percepção de
tt-burgucscs. mas sim uma “rale” dc excluídos, por um lado. c rodos
subgente , no sentido não-rctórico que estamos usando neste livro,
os estratos incluídos, sejam trabalhadores, técnicas ou empresários.
ainda que sob condições espcciiicamentc modernas.
A mera inclusão no mercado, nos benefícios do Estado c a entrada
/Vimportação” do capitaHvmrt de “tora para dentro V através, com voz. autônoma na esfera pública, toma os setores antes marginais,
antes de tudo, de suas “praticas M É M M É f , sem o contexto em incluídos privilegiados. M as ao contrario de algumas analises
ideacional de fundo moral, religioso e cognitivo*que na Europa immtmiYiimrnte otimistas acerca do papel da cstèra pública no Brasil,-
transformou-se em fermento revolucionário, o qual acompanhou esta mostra-se tão .segmentada, c pelos mesmos motivos, quanto o
a entronizaçai»da lógica ec<ntómica d( >ca pitalism< >c logrou m<k! ific.tr acesso ao mercado c à instância estatal. Os novos instrumentos de
186 - A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SU BCID AD AN IA... Parte 3 - 187

luta ila classe trabalhadora organizada não são porta-voz dos interesses versão culturalmcntc comparável à democracia “meramente política”
genericamente difusos da plebe desorganizada. dos norte-americanos. Acredito que exista uma razão poiítico-idcoló-
Esta dimensão da desorganização e da imersão pré-polífica da gica clara que explica tanto o esforço dirigido de Frcyre em construir
“rale" nos obriga a voltar a nossa atenção à dinâmica entre “práticas” uma “narrativa mítica” para o país (acho que essa seria a melhor
c “idéias”. É que, para atem da ideologia espontânea do capiralismo”, definição do conteúdo de um livro como C asa g ran de senzala),
qtie “secreta” de forma impessoal c intraasparente toda uma concepção uma espécie de refundação da nação e da nacionalidade, quanto
de mundo c do valor diferencial dos seres humanos, ososte também, também explica boa parte da extraordinária influencia dessa obra.
como atributo dos processos modernos de formação nacional, -uma Esse contexto prévio mc parece dado pelajdeelugMMioínioaute
ideologia “expitcira” c ameutoda que funciona como uma dimensão no período imediatamente anterior a este que supunha, pelos seus
alternativa cautônoma deformação de identidades, coletiva c individual pressupostos racistas de resto, ambiguamente ou não, compartilhados
c, portanto, também de solidariedade coletiva e grupai. por rodos os nossos melhores intérpretes durante a segunda metade
No caso da Nalimi Building brasileira, processo que alcança sun do século X IX c primeiras décadas do século passado. qurnxxMfafa
consolidação definitiva apenas cõm o Estado corporativo c arregí- como a brasileira, estavam condenadas ao subdesenvolvi­
mentador de 1930, a dimensão da ideologia explícita ajienas corrobora mento. Casa tinindc & senzala de Frcyre inverte esse argumento no
e justifica a dimensão implicira da'{ISSSR^jlâSpônrKlW^ consrituindt» seu contrário ao celebrar o encontro racial come» positivo e não como
as condições específicas de um “imaginário social” brasileiro, ^ilberto mácula inarredável. De resto, como ideologia, e aqui não importa
Frcyre, que se não foi ccrtamcnie o iniciador, dado qLie rnuiro anres nenhuma forma consciente de irmandade ou inimizade entre os indi­
dele essa construção simbólica já vinha se constituindo e ganhando víduos Freyrc c GctúKo, esta se presta maravilhosamente aos novos
contornos mais ou menos claros, foi o grande formulador da “versão fins de integração ideológica como uma das pilastras da arrancada
definitiva7 dessa ideologia explícita que se torna “doutrina de Estado”, econômica proposta pelo Estado Novo.
passando a ser ensinada nas escolas e disseminada nas majs diversas Lauto. ideólogo, fiillrirnft Frryrrr *pciw» m m m
formas de propaganda estatal e privada, a partir de I 9 3 0 J \ leitura espeeularmente a baixa -auto-esrima cm orgulha nacional. Como toda
frcyriana da singularidade brasileira aponra para a afirmação de uma inversão especular, no entanto, esta também c reativa e está de algum
excepciortalidadc sociocultural, cm parte herdada de Pormgal, mas modo ligada ao seu contrapólo. Falta a ela distância crítica e, portanto,
aqui desenvi ilvida ate setis limites lógicos na idéia de uma “democracia o exercício de uma autocrítica reflexiva que efetivamente mudasse os
termos do debate. A crítica do raciocínio negarivista e pessimista
outros textos, implicaria, para ele, uma forma de “racionalismo com relação as potencialidades do país exigiría, certamente, não a
específico" para talar com Max VVcbcr, ou seja, tuna forma cultural­ sua inversão numa “maior civilização dos trópicos” ou numa “contri­
mente peculiar de constituir a relação homem-mundo em todas as buição singular à civilização”, mas, ao contrário, um ato de distancia­
suas dimensões possíveis. mento reflexivo que propiciasse tuna autocrítica construtiva c evitasse
N * versão de Irceyrc, o componente relativista c historicista c a identificação narcisicamcntc primitiva da personalidade do pesqui­
levado às últimas consequências (talvez, por influencia do componente sador com sua própria cultura.
romântico na tradição antropológica de Boas. definido por ele pró­ Segundo f-revre. nos, brasileiros, não só feríamos sido agraciadas
prio como seu principal mestre),4" o que fica claro na sua proposição pelo destino do encontro cultural que, por definição, nos enriquece.
de que a democracia racial ou social é mais ampla c vale como uma
188 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA SU RCÍD A D A N IA ..,

toas nos transform am os nos ctm tys-fte*tto^bridism o ro4tw*L Notas


LNov>u singularidade passa a ser a propensão para o encontro cultural,
para a síntese da.s diferenças, para a unidade na multiplicidade. H por
isso que somos únicos c cs pegais no mundo. Devemos, portanto, ter
orgulho c não vergonha distoJUm a maior afinidade com a doutrina
corporativa que passa a imperai; em substituição ao liberalismo anterior,
a partir de 1930, c difícil dc ser imaginada. Também, pelos mesmos
motivos, c1"OITft iHmagtnar ideologia mais cficaa nu nosso pais. Hla
hoje de nossa identidade. Todos nós “gostamos” dc nos ver Introdução
desta forma. A ideologia adquire um aspecto emocional insensível a
ponderação racional e tem-sc raiva c ódio de quem problcmatizc essa
verdade tão agradável aos nossos ouvidos, ãrmthténrift dessa idéia 1 H U N TIXG TO N , O choque dc cmUmções, p. 52. Uma interessante crítica
•wibrr ■» torma com o o pai» »c vc c se percebe é impressionante. ao ponto de partida csscndalista de Huntington se encontra cm: BENHABIB.
The claimsofcnlturr. cquality and dilvrsity in i!k global era, p. 187-189.
A partir da influencia de heyrc essa concepção tem uma história
dc gloi ia. 1 or meio do conceito de “plasticidade”, importado dircta- 2 E1SEN STA DT hmdammtaütm, see-tarianim and rcrohttúm: the jacobin
menfe deste autor, cia passa a ser central em todo o argumento do dimension o f inodcrnity; Die vielfalt der ttwdeme; c Traditiim wandcl aml
nutdemtSdr.
dc Sérgio Buarquc de Ilolanda, noção por sua vez
central na sua concepção do personaiismi >e do patrimonialismo, com<» ■' FLSFNSTADT. Trattlúon, wandcl and mndemitiU, p. 46-47.
representando a singularidade valorariva e institucional da formação 1 KKÒBL. Spielrdume der mwiernúierunfç, p. 29.
serial brasileira. Com isso, .Sérgio Buarquc sc transforma no criador
s Charles liiylor se refere, neste particular, em algum momento, a uma tradição
da auto-interpretaçáo dominante dos brasileiros no séailo XX, Pata
n<hui, ou seja, apologética da variante anglo-saxã da modernidade, como
mens interesses aqui, convém relevar a idéia do botncm cordial um traço geral da ciência política americana dominante. Exemplos dessa
reproduzindo a essencializaçáo e desdiícrenciação característica da perspectiva são os mfluentes trabalhos de BAK f ih l .D . I l>c moral basis ofa
idéia de hibridismo e de singularidade cultural como uma unidade mcktmrd society, os trabalhos clássicos de Alrnond e VBrba sobre cultura
substanciahzada. O homem cordial c definido com o o brasileiro dc política, e até os recentes trabalhos, nessa mesma linha dos estudos de
todas as classes, uma forma especifica de ser gente humana, que tem cultura política, de Ronald lnglcliart;como IN G L E H A R T Cultural s h if i
m advaneed induitrúd satitly e Modernizaram and ponrnodtrmsation. Para
sua vertente tanto intersubjeriva, na noção de personalismo, quanto
uma interessante crítica ao conceito dc “confiança” utilizado por lnglehart;
uma dimensão institucional, na noção de pafrimonialismo. ver EISliNRHILG; E E R F S. Slccping with thc enemy: eine analitische kntik
,_ - — -------,------ “T “ íliMHttliiíni i i iw w des vcrtrauensbcgxifts (no prelo).
ideologia explícita se amcula com o componente implícito da “rdeo- h Veja sobre esse tema o clássico trabalho de BKI d A H . Thc toku/fawa relnvm,
I espontânea Uas. pratica* insutucionais importadas c operautes c a coletânea de E lSE N iT A D T . 7 he protestant tthic and modernizanon: a
rambein na modernidade penícnea, construindo um cxnaotduiano compararive view.
awee*»t>dc ohscurecimcntodas causas da desigualdade, .seja para os " O já citado lnglebart é um exemplo da persistência desses moslclus explicativos.
pnvilcgiados, seja tainlicm, c muito espcciaImentc, para as virimas
* 1Jma excelente exposição da pré-história, desenvolvimento c contradições
desrc processo. Hssc, parece-mc, e o fxinto cenrral da questão da
internas ao paradigma da teoria da modernização, pode ser encontrada cm
naturalização da desigualdade entre nos, ”
K K Ò B L . Spielrdume dn medemizu-runa.
•t t fp t >o Av n
190 -A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA S U B U D A D A W A ... Notas - 191

' Entre 1930 c 1980 1>Brasil desenvolveu-se j taxas medias anuais de 7% de ' TAYLOR- Sources ofrbe self. the making ofthe modem identity, p. 120. É
crescimento econômico. Ao tini deste período de 50 anos, uma das mais interessante notar que parece ser precisamente essa noção de autodomínio,
pubres c atrasadas sociedades do globo havia se tornado a oitava maior na medida cm que gera alguma forma de “harmonia" e noção de todo com
economia do mundo. uma direção para a “pessoa inteira", que parece possibilitar a noção de
Exemplos recentes de teorias latino-americanas de hibridismo são as de personalidade no sentido moderno, ou seja, permitindo uma orientação
principal c uma “condução da vida consciente”, como diría Max VVcIkt. A
CANCLLNI. Culturas híbridas; e DAMATTA. Cornava»;, malandros c
herots. moralidade da hegemonia racional é conseguida contra a fragmentação e a
pluralidade,
" SüEJZíVa4 modernizaçãoseleriva: uma retntcrprci ação do dilema brasileiro.
5 TAYLOR .Sources ofthe self. the making ofthe modem identity p. 127-143.
‘2 Wl-.BER.Dir wtrtscbajhcthik derwritniiiponm: hinduismus und buddhismus,
p. 250-251. 7 TAYLOR. Sources ofthe self. thc making ofthe modem identity, p. 134,

mesmo acontece com a noção, meramente descritiva, de “carisma”. (Jomo * TAYLOR. Sources ofthe self: thc making of thc môdern identity, p. 132.
nao existe a pressuposição de “sentidos coletivos" inanimlados, os quais v TAYLOR Sources o f thc self. the making of thc modern kfcntitv, p. 137.
cabería ao líder articular c conferir uma direção própria, o vínculo do líder
o nu seus seguidores torna-se “misterioso” e passa a depender da suposiçãr i 1ft TAYLOR. Sources o f the self: thc making ofthe modem identicy; p. 149.
de existência, por parte da massa cm atributos cxtracoridianos ou mácicos " TAYLOR Sources ofthe self: thc making of the modern identity, p. 133.
da personalidade do líder.
'* TAYLOR. Sources o f the self: thc making of the modern identity, p. 170.
4 Convém precisar o <]ue chamo aqui de “fetichismo”. Não existe dúvida
quatitoa gigantesca impoitáncia da variável econômica no mundo moderno. TAYLOR. Sources ofthe self. the making ofthe modern identity, p. 177.
O “tctíchisrno”. por outro lado, se instaura ,t partir da crença de que a
u TAYLOR. Sources ofthe self: thc making ofthe modern identity, p. 211-302.
variável econômica jmr si mesma, possa resolver questões como inclusão
sosial c combate à desigualdade. Como veremos em detalhe, esse engano é TAYLOR. Sources o f lhe self thc making of thc modern identity, p. 289-290.
endêmico cm sociedades periféricas como a brasileira.
*• TAY'LOR. The polities <rfrecognition, p. 27.
17 TAYI OR. Sources ofthe self. thc making ofthe modem identity p. 364-365.
Is TAY1 .OR. Sources ofthe self: thc making ofthe modern identity, p. 375.
PARTE 1 - A RECONSTRUÇÃO DA IDEOLOGIA
ESPONTÂNEA DO CAPITALISMO ,v TAYLOR. ’1lie polities of recognition, p. 28.
Capítulo I - A hermenêutica do espaço social para -' TAYLOR. Sources ofthe self. the making ofthe modern identity, p, 390.
Charles Taylor
*' TAYLOR. The polities of recognition. p. 25-26.
TAYLOR. l he polities of recognition, p. 30 31.
• RKLLAH et a í Habits ofthe heart: individu.ili.sm and cormnitmcni in -J TAYLOR. íhe ethiesafauthenticit\\ p. 60.
american lifc.
'4 TAYI.OR. Thc polities of recognition, p. 61-73,
Ver ROSA. Idmhtat and kulturrüc praxis: poiitisclic philosophie nach
Charlas Tavlog p. 260-270 TAYLOR. Tlseethiesof authentieity, p, 55-69.

’ 1'AYLQR. Sourcesofthe sdf\ thc maldng oi'lhe modem identity. i:' FRASER. Iroin redistribution to recognition?, p. 11-40,

1 1 AVLOR. Sourns ofrbe self. thc making ofthe modem identity, p. 27. 4 TAYLO K. Sources ofthe self the making ofthe modem identity p 15.
1 9 2 - A CONSTRUÇÃO SO CIAL DA S U B C lU A D A M A .,. Notas - 193

Capítulo II - Pierre Bourdieu e a reconstrução 11 BOURDIEU, DísttHitioH. p. 54-58.


da sociologia crítica *» BOURDIEU. Distinctio», p. 68-73.
21 BOURDIEU. Distmetim, p. 80.
1 B O U R D IE U . lh e theory ofpmxis, p. 30-41. -s BOURDIEU. Distinetion, p. 479.
■ R O U R D IF .t' The tijcory ofpraxis, p. 109. ™ BOURDIEU. Distinetion, p. 281.
’ BOURDIEU. lh e theory ofpraxis, p. 54 3‘ BOURDIEU. Disànctum, p. 282.
I BOURDIEU. The theary ofpraxu, p. 56. BOURDIEU. Dútinctúm, p. 183.
’ ROURDTF.U. 'The theory ofpraxis, p. 61. BOURDIEU- Distmetim, p. 381.
* BOURDIEU. The theory ofpraxir, p. 68. Vl BOURDIEU. Distmetim, p. 382.
BOU RDIEU . The theary ofpraxis, p, 71. Jl BOURDIEU. Datirutim, p. 387.
' 11: IER M LILLLR. Sotutístruktur u>uí LtbcnsstiUe; der ncucrc ihoúretuche
Disknrs übcr soziale Unglcichhcit, p. 268.
y B( )l 'RD1EU. The theory ofpraxii. p. 114.
Capítulo III - Taylor e Bourdieu ou o difícil casam ento
" BOURDIEU. The theory ofpruKà, p, 123. entre moralidade e poder
' 1 Um hclo exemplo, com o iremas ver na segunda pane deste livro, são as
relações que unem o dependente c o seu protetor na sociedade (ainda)
personalista do Brasil do século XIX. 1 SMTTU. Charlei Taylor. meaníng, morais anel modem ity. p. 21.
BOURDIEU. 7 hc theary o f prttxis, p. 130. I TAYI ,OR To follow a rale, p. 59.

! BOURDIEU. TJte theory ofpraxify\t. 122. ’ TAYT.OR. The etbies ofauthmticity, p. 28.

14 BOURD1 h l Dte verhorpenenMechiutismoi iier Maeht, p. 63. 4 TAYLOR. The poliries o f recognition, p. 59.

1' BF.I.L. Tl)ecoMunjf ofthepost-industrial uttiety, p. 43. * Uma boa visão geral è oferecida pela coletânea de Cynthia Willeti WTLLETT
Theorizmjf multicnlturalim a grude to a eurrent dclwtc.
'* HABERAIAS. Tcchmk and Wissensehafi ah Ideolpgie.
" SCH1.UCHTER. DieEntwieklungdesokãdentalat Rationalismus, p. 229,
' PETF.R MULLER. SocuüstrukturundLcbemttllc; der ncucre thcorctischc
Diskurs über soziale Ongleichhcit, p. 356. 7 SCH LU CIITER Die Hut»nklum des nkznlcntalm Rntwnalknws, p.204-255.
s BOI 'RDIEU. /)u-rerbor/jettenMcchanismmdet Maeht, p. 57. " C O llN , Critica e restona cão. p. 144.

PETF.R MLLI.F.R, SozialsTriiklitrund Tehemstille'. der neueretlieorxTisehe II SLMMEI.. DiePbilosophie dtsG elda, especial mente p. 292-338.
Diskurs iiher soziale Unglcichheit, p. 310.
KKÒ BL. Spiclraume derMademisierunq, p. 156.
II BOURDIEU. Distinctúm, p. 11. 11 ROSA. Identitát umi kultureüe Praxts: Polmsche Phitosophic nach Charles
BOURDIEU. Dmmctwn, p. 26. lãylor, p. 84-98.
194 -A CONSTRUÇÃO SOCIAl DA SUBCIDADANJA... Notas - 195

1' SMITH. Charles Thylot. meaning, morais and modcmity, p. 18. - TAYLOR. Modem social magtnarm, p. 3.
MÍ Não admira que cm uma teoria crítica como a habermasiana, que admite •' I AY I .OR. Modem social ànarjtnaries, p. 21
este ripo de construção an seu interior, perceba (nsconflitos sociais, prcicrcn
cialmenre. apenas no “fronr* entre sistema e mundo da vida c não mais * EISRNSTADT The axial age brcakthtoughs: theirdi.iracrcrisrics juxl origins,
dentro das realidades sistêmicas. Ver crítica de Joahanncs Bergcr: BERGER. p. 1-25.
I>tr Yersprachlichung des Sakralen und dic Entsprachlichung der Òkunomic. 3 W EBER. I>ie Wirtschafisetbik der Weltrdi#iontn\ Hinduismn.s und
4 BliLLAH et al. Hahts o f the hcart: individualism and oornmitmcnt in Buddhismus, p. 2.
amcrican life.
" WEBER. Die WertsdiajlsctlÁk der WrJircligmicn: Konfu/.i.misinus und Taois-
TjÂYI OR, Sounesoftbcsctf. thc makmg of the modem identity, p. 175. itms, p. 193-207.
16 TAYI.OR. The polities ofrccognilion, p. 30. 7 WEBER. Lhr Wirlschaftserbik der WiltnUffwnen: Hinduismus und Bu-
ddhismus, p. 250-251.
■ IAVLÜR. Tltc polities ot rccognition, p. 38
* EISENSTADT Traditton, Wtmdel und Modemitirt, p. 279-286.
'' BI N1LYBIB. KuUurdle vietfaü und demokmtisbc Clcicbbcit, p. 42.
" Quem primeiro chamou minha atenção para a característica mágica da reli­
''' 1AYLOR The poliries of rccognition, p. 59.
giosidade brasileira, inclusive atentando para suas consequências sociais e
ln ERASFR. ÍTom redistribution to rccognition?, p. 17-18. políticas, toi, cm muitas conversas c debates, o Prof. Eurico Santos da
21 WEBER. Die ptvTcstantisebe Ethik. p. 12. UnB.
10 Essa ausência dc autonomia da esfera religiosa, com sua submissão à esfera
n WEBER. DiepmestantiscbeEtbik,p. 18.
política, além da corrupção endêmica do padroado e domináncia da
u TAYI.OR The polities of rccognition. p. 31. religiosidade mágica e familiar, está na base do argumento de Ângela Paiva,
para a explicação da ausência de vigor moral c religioso, oumparativamente
24 Rara uma crítica das posições de lãylor c. Frascr, veja também HONNETH.
ibeory, Culture and Sociery. p. 52-53. aos EUA, da campanha atuiabolicionista no Brasil. Ver PAIVA. Católico,
protestante. adadnti: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos, p. 61-70.
1 Ver Dl 'MONT Homohieranljicus, p. 315.
11 A influência de autores "hibrkUstas" como Candini c DaMatta é decisiva,
BOURDIEU. Dütmetim, p. 250. ainda, mesmo para os autores latino-americanos mais jovens e talentosos
como Avritzcr. Ver AVRJTZER. Demoeraty and thtpuhUc sphere in latin
i? BOURDIEU. Dtstwaim, p. 244.
america. p. 73.
** HONNETH. Die zerrissene Wdt der symbolischcn Eormen: zum
1: BELLAH. Thc Irwkcn cemmanf. amcrican civil religion in a time of triaL p.
kultursoziologischcn Werke Picrre Bouúlieu, p. 178-179.
62.
lS WEBER. Peasants itnofrencbwm: the m<idernizarion of rural trance.
'* THOMPSON. 77/r makina o f the mtflisch jp orktttp class.
PARTE 2 - A CONSTITUIÇÃO DA MODERNIDADE PERIFÉRICA1
15 O termo, muito apropriado, aplicado a Frcyre, é de Antônio Mata. O
sentido do mesmo será discut ido mais tarde em detalhe.
1 Uma lx >a visão geral c p« iporcionada pela coletânea de BRONb EN a al. 16 El IA S . Oherdett Prozcss der ZiriUsation. //, p. 68-72.
Hyhride K u ltu rtn : bcitrâgc zur anglo-am crikanischenM ultikulturalisinus
I )cbattc. Acho cjuc todo c.ssc drbatc c marcado prccisanicnix: pela tentativa 17 Um belo exemplo moderno da eficácia da estratégia da “'lembrança’' cm
dc superação das .i|>orias da teoria da m odernização tradicional. desfavor da estratégia do “esqueeimento*, é o da Alcmanh a federal. Apesar
196 -A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBQDADANIA...
Notas - 197

dc todos us problcnus que essa estratégia envolve, foi possível estabelecer,


em grau .significativo na Alemanha moderna, um interessante processo de S,J FREY'Rli. Casagrande & senzala, p. 59.
aprendizado moral c político baseado, prerisamente, na constante lembrança
e discussão aberta acerca da experiência recente do holocausto. FREYRE. Casa grande eb"senzala, p. 361.
I REYRF.. Casagrande senzala. p. 354.
Obviamente, esta absctvaçãonão inclui os especialistas cm escravidão, dado
que a questão da relevância relativa, neste caso, sequer se põe. ** FREYRK. Casagrande CCscnzala, p. 354.
' FREYRE. ( '.asagrande &•senzala, p. 17-18. JV Ver cspccialmente a contribuição, já citada, dc F.rich Fromm, no contexto
10 FREYRE. Casagrande <lrsenzala, p. 160-161. dos estudos ralizados na década dc 30, pela escola de Frankfurt: FROMM.
SoziaipsychologjSchcr Teil.
-1 FRKYRE. Casagrande •&senzala, p. 191.
411 PRF.YRE. Casagrande senzala, p. 60, 326, 332.
ARAÚJO. Guerra cpaz: Casagrande & sensata e a obra dc Gilberto Frevrc
nos anos 30, p. 98.
41 FRE Y RE. Sobrados e mocambos, p. 68, 71.

2i FREYRE. Casa grande & senzala, p. 360,410. 422. É aqui que se forja a “pré-história” do mestiço, cspccialmcnte do mulato
brasileiro, tema que scra um dos fios condutores da narrat iva frcyrcana cm
:J Revista Veja, p, 71,15 sct. 1999. Sobrados e ntucambos. Rira Freyrc, o tema da ascensão social do mulato seria
tema para ser guardado paia ser discutido mais tarde: cm outro livro, que
i:' Revista Veja, p. 71,15 set. 1999.
tratasse de outro período histórico dc nossa formação, que viria a ser preci-
10 ARAÚJO. Guerra epaz\ Congratule senzala c a obra dc Gilberto lirvrc samente Sobrados e mueambos. Mas já em (Sua grande & senzala, encontra­
nos anos 30. p, 47-57. mos a menção das enormes famílias polígamas formarias também jior filhos
naturais e ilegítimos, os quais, não sendo nem senhores, nem escravos,
* FREYRE. Novo mundo ms trópicos, p. 179. seriam já uma pmtoclassc média naquela sociedade tão radicalmente dividida
ÍK IRKYRF. Novo mundo nos trópicos, p. 180. cm pólos antagônicos.

19 FREYRE. Novo mtsndo ms rroptroi. p. 180. 45 DEGLER. NettherUack norwhite: slaverv and raec relaiioas in Bra7.il and
United States, p. 84.
FREYRK, Novo mundo nos trópicos, p. 180,
" FRF.YRE Casa grande & senzala, p. 34, 153,222,223.
11 FRHYRE. Novo mundo nos trópicos, p, 181.
45 FRANCO. Homens livres na ordem escravocrata, p. 14,
u FREYRE. .\'í»-y>mundo nos trópicos, p. 181.
4" FRANCO. Homens livres na ordem escravocrata, p. 35.
i; FREYRK. Sobrados e mueambos.
47 Apenas pouco a pouco fui [icrccbcndo que o interesse da maioria dos
' Na esfera da sexualidade, para Frcud, tanto o sadismo quanto o masoquismo críticos e comentadores dc seu trabalho se concentra na singularidade de
são componentes dc toda relação sexual ‘‘normal'", desde que permaneçam sua reconstrução do patrimonialismo, para mim, a parte menos interessante
como componentes subsidiários. E apenas quando o inílingir ou rccclier a do seu excelente c estimulante rrab.ilho, por ra/ões que já devem ter ficado
dor transforma-se em componente principal, ou seja, passa a ser o objetivo óbvias ao Icin>r deste livro.
mesmo da relação, que temos o papel determinante do componente pato­
lógico. FREI T). Orei Abbandlttngen zur Sexualtheorie, p. 67. Na esfera u FRANCO. Homens livrei na ardem escravocrata, p. 28.
social, o ponto essencial é a adaptação do aparato instintivo ás situações F RANCO. Homens Uvrts na ordem escravocrata, p, 37.
socioeconómicax. Kromrn, por exemplo, proeumu aproveitar ov estudos
freudianos acerca do ‘caráter para a construção dc tipos sociais mais ou 5n FRANCO. Homens livtvsna ordem escravocrata, p. 37.
menos predispostos a uma relação autoritária. Ver KROMM. Sósia Itwvcho- bJ FRANCO. Homens livres na ordem escravocrata, p. 51.
logischer Teil, p. 93-135.
5?- FRANCO. Homens livres na ordem escravocrata, p. 61.
198 -A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBCIDADANiA... Notas - 199

" Machado de Assis, Guimarães Rosa c Graciliano Ramos são nomes que mc EREYRE. Solmuiose mocambos, p. 18.
vêm a mente, quando penso cm mestres da reconstrução narrativa deste
jx:r>» magem que assume, no Brasil, múltiplas fôrmas fenomênicas no ambiente ?t ER F.YRE. Sobrados e mucambos, p. 22.
niralc urbano. Não nos esqueçamos que a escravidão sexual de tipo muçulmano, praticada
4 BRANCO, Homens livres na ordem escravocrata, p, 84. dc forma mitigada no patriarcalismo brasileiro, tende a desvalorizar não
apenas as mulheres escravas, mas, por uma extensão social e psíquica, todas
'' FRANCO. Homens livres na ordem escravocrata, p. 71. as mulheres. A insuportável, para os olhos de um ocidental, subordinação
w FRANCO. Homens liimes na ordem escravocrata, p. 103. tia mulher nos países árabes tem, eertamente, nessas práticas, sua origem
histórica.
FRANCO. Homem livres na ordem escravocrata, p. 104.
1,0 FREYRE. Sobradose mucambos, p. 93.
” FRANCO. Homens livres na ordem escravocrata, p. 95,
41 FREYRE. Sobrados c mucambos. p. 126.
11 F RASCO. Homens livres na ordem escravocrata, p. 91,
M FREYRE. Sobradosemucambos, p. 122.
"" RAMOS. São Bernardo.
*3 FREYRE. Ordem e progresso, p. CI.VTI.
M FRANCO. Homens limes na ordem escravocrata, p. 111.
K4 FREYRE. Sobradose mucambos,p. 69.
FFR NAND ES. A revolução burguesa no Brasil, p. 17,
FREYRE. Sobrados c mucambos, p. 70-71.
M vimos, ainda que esqucmaticamentc, este c o engano básico do
“lúbridisrno”, aplicado as sociedades da “nova periferia”: a não definição da 44 FREYRE. Sobrados c mucambos, p. 88.
hierarquia que define o princípio cstruturaiite fiindamental dessas sociedades
47 FR F.YRE. Sobrados e mucambos, p. 171-177.
04 FERNANDES. A revolução burguesa no Brasil, p. 17.
** FREYRE. Sobrados e mucambos, p. 336.
0' FERNANDES, A revolução burguesa no Brasil, p. 18,
Uma biografia que sccnquandra perfciumcntc neste contextoé a de Rchouças,
FERNANDES. A revoluçãoburguesa no Brasil, p. 48, pai, advogado e deputado da causa da ampliação dos direitos civis no Brasil da
primeira metade do século XIX. Ver GR1NBERG. O fiador dos brasünsvs:
v FERNANDES. A revolução burguesa no Brasil, p. 22-24.
cidadania, escravidão e direito civil no tempo dc Antônio iVrcira Rcbouças.
FERNANDES, A revolução burguesa no Brasil, p. 19.
w O efetivo impacto dcmocratizante do capitalismo parece estar associado a
FERNANDES. A revolução burguesa no Brasil, p. 40. generalização daquilo que, em sociedades tradicionais, era monopólio guardado
" FF.RN ANDES. A revolução burguesa no Brasil, p. 48. a sete chaves pelas classes dominantes: o saber e o conhecimenti».

’1 FE RNANDES. A revolução burguesa no Brasil, p. 7 1. *•> O caso de Mauá, um garoto branco do Rio Grande do Sul mandado ao
Rio dc Janeiro para trabalhar como caixeiro de um português, c, neste
J FERNANDES. A revolução burguesa no Brasil, p. 58. sent ido, um destino clássico que Freyre pinta et>m detalhes picances bem
7' IAVLOR. Moitem socuil tmagmarics. p. 26. ao seu gosto — c nada excepcional. Mauá se tornaria, mais tarde, por algum
tempo, o homem mais rico do Império, dono de bancos, ferrovias e indústrias.
4 FERNAN’ DF,S. A revolução burguesa no Brasil, p, 121-146.
97 WERNECK. Liberalismo r sindicato m Brasil,p. 133.
s Para unia cxeeknte análise dessa relação entre idéias e projetos políticos, ver:
WERNECK. Wcbcr e a interpretação do Brasil. 9) WERNECK. l iberalismo r sindicato tw Brasil, p. 137.

Uma exposição excelente do impacto modemizante da vinda da corte '‘4 WERNECK. Liberalismo e sindicato no Brasil, p. 148.
portuguesa ao Brasil cnoontra-sc em UMA. D. João VI no Brasil. ,JS YVF.RNFCK. Liberalismo e sindicato no Brasil, p. 171.

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