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| O IMPACTO DA CRISE NA POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL
THE IMPACT OF THE CRISIS IN THE EXTERNAL POLICY OF BRAZIL

O IM PAC TO D A C R IS E NA P OL ÍTIC A EXTER NA D O B R AS I L


P EDRO S EABRA / JÚLIO C. R ODRIGUEZ / LUIZ E DUARDO G ARCIA DA S ILVA / CARMEN FONSECA

CRISE E CASTIGO? REVISITANDO A AGENDA EXTERNA DO BRASIL

Com 2017 a chegar ao fim, um certo cia não pode nem deve ser interpretado
consenso parece emergir face ao momen- como absoluto em si mesmo. Longe vão
to de transição com que o Brasil se depa- os tempos do discurso político subjacen-
ra. Constrangido por dinâmicas internas te ao ‘Brasil Potência’ no início dos anos
implacáveis que ameaçam desmoronar 70. Mas as contradições na emergência
os ganhos alcançados nos últimos anos, do país por entre um sistema interna-
e acossado por um sistema internacional cional fortemente limitativo e restritivo
que reclama a concretização das expecta- continuam ainda bastante próximas da
tivas suscitadas durante um ciclo anterior realidade. Durante anos, a expressão polí-
expansivo, o Brasil apresenta todos os tico-idiomática ‘de Porto Alegre a Davos’
sinais de se encontrar entre a espada e a ilustrou na perfeição tal díade estrutural.
parede no que diz respeito ao seu papel Por entre uma aposta no Sul Global e a
no mundo. Após anos de intenso prota- preservação de canais de comunicação
gonismo e visibilidade, a probabilidade privilegiados com o hemisfério Norte, o
de conseguir garantir um lugar definitivo Brasil reclamou para si o ónus de trilhar
no seio dos principais centros de decisão um caminho através do qual almejava
parece agora francamente mais diminuta. manter o melhor de dois mundos, tão
Ainda assim, quaisquer avaliações defini- desconectados quanto aparentemente in-
tivas deste género acabam também elas, comunicáveis. Essa capacidade para esta-
em boa medida, por ofuscar a complexi- belecer pontes permitiu-lhe, por sua vez,
dade inerente ao próprio percurso exter- jogar nos principais palcos internacionais,
no do Brasil até esta data. recorrendo a diferentes estratégias e ins-
Essa constatação torna-se por demais trumentos, ao mesmo tempo que buscava
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evidente quando verificamos o quão pro- ocupar um espaço próprio onde pudesse
dutivo se tornou analisar o Brasil nos projetar as suas posições face a temáticas
últimos 15 anos. Quer lhe atribuamos a e áreas geográficas mais prementes e ren-
classificação de potência regional, média táveis.
ou emergente, é inegável a curiosidade No entanto, tal abordagem acabou
generalizada que o Brasil desencadeou também por deixar transparecer a verda-
quanto às condições que propiciaram e/ deira magnitude associada ao conjunto
ou sustentaram o seu percurso de 2003 das suas ambições externas. Colocado de
em diante. Isto dito, o conceito de potên- outra forma, as capacidades materiais do
2 08 Brasil foram esticadas até ao limite, levan- de privilegiada, se revelou muito pouco.
tando questões sobre a sustentabilidade Atravessando vários cenários geográficos
daquilo que era efetivamente possível distintos, todos os autores acabam por
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abarcar e gerir. Quando tudo é conside- expor um conjunto considerável, quer de


rado uma prioridade, nada acaba sendo incongruências estruturais, quer de desa-
verdadeiramente priorizado. E muito fios significativos em anos vindouros. De
embora as raízes do problema venham de igual forma, mais do que uma causa-efei-
trás, os sinais começaram a multiplicar-se to automática, é reconhecido que a crise
à medida que a crise política se agudizou atual, composta por múltiplos choques
com o impeachment de Dilma Rousseff externos e internos, acaba sobretudo por
em 2016, e as contas nacionais começa- levantar o véu de algumas fragilidades
ram a exigir medidas de austeridade pro- pré-existentes que sustentaram grande
fundas: a rede diplomática existente viu parte da atividade externa do Brasil até a
a sua anterior extensão começar a ser este ponto.
abertamente questionada e reavaliada; o A consciencialização destas limitações
espectro do congelamento do direito de tem, sem surpresa, levado à redução do
voto em várias organizações internacio- entusiasmo em torno daquilo que o Bra-
nais começou a ser suscitado devido a sil pode ou não alcançar e tem também
quotas em atraso; e a defesa da legitimida- invariavelmente levado a um repensar de
de do novo governo no exterior passou a pressupostos prévios. Nesse sentido, o de-
exigir um esforço assinalável e recorrente, bate espoletado nesta secção sobre o lugar
tendo originado níveis menores de diplo- do Brasil no mundo encontra-se ainda na
macia presidencial. Por entre tudo isto, infância. Fugindo a determinismos fáceis,
com cinco diferentes ministros no espaço parece, no entanto, claro que qualquer
de sete anos, a liderança do Itamaraty de- tentativa de compreender o presente ce-
finhou no seio de uma Brasília mais con- nário exige que se ultrapasse dicotomias
centrada na auto-sobrevivência do que na simplistas e se incorpore as várias nuan-
resolução dos problemas que se pareciam ces que marcaram este último ciclo aqui
acumular de forma interrupta. em análise. Como tal, e por um lado, é
Os diferentes contributos nesta secção facto que as suas dimensões naturais con-
são particularmente incisivos a respeito tinuarão a torná-lo um país incontorná-
do momento que o Brasil experiencia, vel a vários níveis. Mas, por outro lado,
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bem como sobre os efeitos que se têm e levando em conta as vulnerabilidades


feito sentir em variados domínios da sua existentes, qualquer sinal adicional de
agenda externa: um subcontinente que ‘desengajamento’ tenderá a minar ainda
oscila entre ser considerado uma priori- mais os ganhos anteriores enquanto ator
dade ou ser instrumentalizado para fins internacional relevante e suscitará certa-
maiores; o risco de expectativas criadas mente questões acrescidas sobre o seu lu-
em África saírem defraudadas; um relacio- gar na agenda regional e global.
namento invariavelmente surdo e pouco
consequente com o México; e uma par-
ceria formal com a União Europeia que, Pedro Seabra
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BRASIL E AMÉRICA DO SUL: O GIGANTE ENSIMESMADO

As condicionantes principais da

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A política externa brasileira sofreu ampla
retração nos últimos anos. As causas fre- Política Externa Brasileira e seus
quentes deste processo estão localizadas impactos para a região sul-amer-
no nível interno, mas com íntima relação icana
com aspectos regionais e sistêmicos. In-
ternamente, a instabilidade política e a A política externa do Brasil apresenta
desaceleração da economia são as causas diversas condicionantes, que decorrem
principais. Nota-se que, em meio à crise de diferentes níveis analíticos e, logo, de
econômica do segundo governo Dilma e distintas percepções teóricas. Para a aná-
ao longo do governo Temer, a chancelaria lise das relações do Brasil com a América
brasileira dá dois passos atrás em sua in- do Sul, recorre-se, então, a três níveis dis-
serção internacional, deixando de lado a tintos, porém inter-relacionados: o sistê-
esfera global e diminuindo a atenção que mico, regional e nacional. E em função
outrora fora dada à região. A diplomacia destes níveis e das diferentes filiações teó-
do governo Dilma já se caracterizava por ricas, define-se, nesta análise, três cenários
ser menos ambiciosa que as anteriores possíveis para as relações do Brasil com
de Lula e Fernando Henrique Cardoso seu entorno estratégico mais próximo.
(FHC); entretanto, a diplomacia presi- Os distintos níveis caracterizam-se por
dencial ainda funcionava, pois a presiden- oferecer constrangimentos e oportunida-
te ainda frequentava reuniões de cúpula des à ação externa do Brasil. Iniciamos a
com líderes mundiais com algum respeito análise pelo nível sistêmico. Assim, as va-
e protagonismo. Com a queda do governo riações na distribuição de poder ao nível
e a mudança na orientação geral da polí- sistêmico condicionam as possibilidades
tica externa, então sob comando de José de inserção do país que, por seu status
Serra, nem mesmo a diplomacia presiden- intermediário de poder, acompanha tais
cial restou, já que a ação deste Ministro se mudanças em busca de riscos e oportu-
vinculava mais aos seus interesses políti- nidades. Nos primeiros quinze anos do
cos internos, do que à projeção de poder século xxi, há redistribuição do poder dos
do Brasil no mundo e na região. Inicia-se, Estados Unidos em direção às potências
portanto, nesta fase de fortes turbulências regionais emergentes, como China, Índia
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na economia e na política nacionais, uma e Brasil, que representou uma importante


nova fase de retração da política externa brecha de oportunidade para crescimen-
brasileira, na qual o mundo ficou distan- to no poder relativo destes atores e tal foi
te e a região pode voltar a ser o terreno acompanhada pela escolha destes países
de ação prioritário. Cabe destacar, então, em ocupar espaços na política interna-
quais os fatores que influenciaram a polí- cional. Passaram, então, a frequentar com
tica externa brasileira nos últimos anos e mais afinco as altas rodas de negociação.
que permitem a identificação de quais as Deriva desta conjuntura de oportunidade
opções mais prováveis desta política para a inserção do Brasil em diversos grupos,
a região sul-americana. fóruns e demais organizações reformis-
2 10 tas da ordem internacional (ex.: IBAS, de empurrar o Brasil para fora da região,
BRICS e BASIC). Enfim, as oportunida- a tendência é de regresso à região. Desta
des sistêmicas são condições necessárias forma, o fim do boom das commodities,
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do alcance da política externa brasileira, a relativa diminuição do crescimento da


e, logo, menores brechas sistêmicas, em economia chinesa, conduzem o país de
função da diminuição da velocidade da volta à região. Porém, a instabilidade in-
redistribuição de poder nos últimos anos, terna faz com que este retorno seja ainda
também explicam a retração da inserção mais forte e o gigante regional, ao invés
internacional brasileira. de caracterizar-se por um pé na região e
Com relação ao nível regional, o país outro no mundo, está, nesta conjuntura,
também faz a leitura dos riscos e opor- com os dois pés dentro do seu próprio te-
tunidades. Entretanto, com relação à rritório.
sua área contígua, adota um padrão de Relativo ao último nível, que oferece
relação dual, em que ora está bastante a última condição necessária da retração
próximo, ora distancia-se. As causas desta da política externa brasileira, pode des-
aproximação e distanciamento estão nas tacar-se que adquire peso relativo maior
dinâmicas regionais de poder, com vin- que as outras condições explicativas, ao
culação às variações no poder material do longo dos últimos anos, pois a crise po-
país e às preferências e possibilidades in- lítica e a derivada crise econômica são de
ternas ao país. Em trabalho anterior, em grande tamanho e afetaram frontalmen-
coautoria com Andrés Malamud, sobre te a capacidade de condução da política
a relação do Brasil com a região, eviden- externa brasileira, tanto pelas burocracias
ciamos que o país, no início da segunda estatais (Itamaraty e Ministérios vincula-
década do novo século, estava com um pé dos a projeção econômica do país), quan-
na região e outro no mundo. E dentre as to pelo Presidente e seus Ministros. Desta
causas principais apontamos que a dife- forma, oscilam as prioridades e as agen-
rença de poder entre o Brasil e seus vizin- das, não há nitidez sobre as prioridades,
hos condicionava as suas escolhas para a e a escolha do governo é gastar energia na
região. Assim, quanto menor é a diferença tentativa de estabilizar econômica e poli-
de poder entre o Brasil e os vizinhos, mais ticamente o país. Assim, quando levados
alinhado com os interesses regionais esta- em conta os três fatores causais principais,
rá o país. Portanto, mais propenso a ade- justifica-se plenamente a retração da polí-
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rir a processos de integração. Por outro tica externa brasileira, pois a conjuntura
lado, quanto maior a diferença de poder, sistêmica é desfavorável, a região carac-
menos comprometido com a região esta- teriza-se por apresentar mais riscos que
rá, assim crescem na sua agenda processos oportunidades e o nível interno está a
cooperativos menos formais. Isto é, quan- consumir toda a capacidade de ação do
do o Brasil apresenta emergência global, estado brasileiro. Mas cabe questionar:
menor será o peso da região na sua agen- o que restou de ação externa do Brasil?
da. Portanto, o Brasil quando pode “vai Quais os cenários e implicações para seu
ao mundo” e lá fica! No entanto, quando entorno estratégico?
os ventos da política internacional param
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Três Cenários Hipotéticos sobre a O (2º) segundo cenário, moderado
relação do Brasil com a América ou “o Brasil entre a região e o mundo”,
do Sul vincula-se com três fatores centrais: (1) a

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estabilização da economia chinesa, com
Os cenários propostos aqui relacionam as a manutenção da compra de produtos
três condicionantes e apontam para as pos- produzidos no Brasil, estabilização da
sibilidades de atuação do Brasil em função redistribuição de poder global; (2) a es-
dos riscos e oportunidades regionais. O tabilização da crise política na Venezuela,
(1º) primeiro cenário, pessimista ou “o com engajamento regional na solução dos
Gigante Ensimesmado”, relaciona-se com conflitos políticos e (3) estabilização da
três aspectos centrais: (1) a manutenção da crise econômica e política, com eleições
desaceleração da economia chinesa, com em 2018, transcorrendo com normalida-
queda no consumo de produtos produzi- de e leve recuperação da economia. Neste
dos no Brasil, e a consequente estabilização cenário, a estabilização interna e a relati-
para baixo da redistribuição de poder glo- va estabilização da economia internacio-
bal; (2) a piora no cenário político na Ve- nal permitiriam ao país o engajamento
nezuela, com pressões para o engajamento em temas regionais, como a crise Vene-
regional na solução pacífica dos conflitos zuelana, porém, este engajamento per-
internos e os riscos de transbordamento maneceria vinculado ao Mercosul e aos
da crise e (3) o recrudescimento da crise processos cooperativos regionais, como
política e econômica nacional, com a even- a Unasul. As oportunidades sistêmicas,
tual queda do presidente Temer antes das regionais e nacionais não são grandes o
eleições de 2018. Neste cenário, as alterna- suficiente para permitirem que o país as-
tivas ao país são escassas e o engajamento suma liderança nos processos e dinâmicas
regional é pequeno. O recrudescimento regionais. Portanto, neste cenário, riscos e
dos problemas internos, com a região e o oportunidades são moderadas e não con-
mundo sinalizando com riscos, configura figuram uma conjuntura ótima para o re-
a conjuntura propícia para o isolamento torno da inserção internacional do Brasil.
do país. Neste cenário, não seria possível Contudo, para a região, pode configurar
contar com o Brasil na resolução pacífica na melhor alternativa, pois o engajamen-
(ou não-intervencionista) dos problemas to brasileiro diminui em função do seu
regionais que a crise da Venezuela pode poder. Quanto maior o seu poder relativo
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produzir, nem com o engajamento do país aos vizinhos, mais distante da região es-
em outros processos regionais. Adiciona-se tará. E, ao contrário, quando há grandes
a esta tendência a paralisia dos processos distúrbios internos, menos engajamento
de integração (Mercosul) e nas dinâmicas regional. Assim, esta conjuntura mediana
cooperativas (Unasul, CDS) que envolvam pode permitir, se as preferências internas
o país. Tal retração, cabe mencionar, con- permitirem, que o país atue em conjun-
fere brechas de oportunidades às potências to com seus parceiros de Mercosul para
externas à região na perspectiva de solucio- mediar a crise venezuelana e envolva os
nar a crise venezuelana, como, por exem- demais países, liderando a atuação da or-
plo, Rússia e China. ganização que foi criador, a Unasul.
2 12 O (3º) terceiro cenário, otimista ou utilizada pela Bolívia (gás) e pelo Para-
“o Brasil retorna ao mundo”, vincula-se, guai (energia elétrica).
também, a três fatores permissivos cen- Estes três cenários permitem verificar
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trais: (1) o retorno dos bons tempos da o quão improváveis são as conjunturas
política internacional, com retomada do em que os riscos são mínimos e as opor-
consumo dos produtos brasileiros pela tunidades são máximas. Nestes casos, a
China e nova onda de redistribuição atuação do Brasil, quando há percepção
de poder global; (2) a resolução regio- de oportunidade e proveito dela pela
nal da crise venezuelana, novas eleições ação da diplomacia, é maximizada ao ní-
e pacificação das disputas políticas, re- vel global e mantida a um compasso mé-
cuperação do preço do petróleo e recu- dio-baixo ao nível regional. A tendência
peração da economia, estabilização da mais forte é uma mescla dos cenários
região e (3) resolução da crise política e medianos e pessimistas, já que os riscos
crescimento econômico do país. Neste sistêmicos relativos à redistribuição de
cenário, portanto, atuam todas as con- poder e com relação à economia chinesa
dições que permitem a retomada da in- permanecem, os riscos de transborda-
serção do Brasil em nível global, distan- mento da crise venezuelana se agudizam
ciando-se relativamente da região. Em e a crise política e econômica brasileira
função das oportunidades globais reapa- vão se arrastar por um longo período.
recerem, da diminuição dos riscos regio- Entretanto, estes fatores que afetam es-
nais, com a estabilidade regional e o fim pecialmente o Brasil, não afetam com a
dos riscos internos, com crescimento mesma força outros países da região que
econômico e com estabilidade política, se recuperam econômica e politicamen-
o país voltaria à sua atuação, caso haja te, como é o caso da Argentina, do Peru
interesse interno, aos moldes do perío- e da Colômbia. Desta forma, pressões
do do governo Lula, com grande alcan- pelo engajamento do Brasil em soluções
ce de sua inserção internacional. Nesta cooperativas para a crise na Venezuela
configuração, a atuação regional seria de podem vir destes vizinhos e do possível
equidistância e envolver-se-ia apenas em engajamento de potências externas à re-
processos cooperativos, que produzem gião, como é o caso de Rússia e China. E
menos entraves à sua atuação global. As- o Brasil, apesar de seus grandes proble-
sim, esta atuação do Brasil representaria mas, dada sua relevância regional, pode-
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para os atores de nível mediano, como rá atender ao chamado regional e atuar


Argentina, Colômbia e Chile, oportuni- em conjunto com os vizinhos.
dades para a sua atuação regional; po- Finalmente, para a compreensão das
rém, aos países com menor poder como possibilidades de ação do Brasil na Amé-
Paraguai, Bolívia e Uruguai, o desenga- rica do Sul, deve verificar-se qual o peso
jamento do Brasil poderia representar que a região pode ter na sua agenda de
riscos relativos, já que estes países costu- política externa. Tal peso está relacionado
mam “amarrar” o Gigante pela via insti- com os três níveis analisados, portanto, o
tucional (por meio do Mercosul) ou por distanciamento ou aproximação do Brasil
meio de barganhas estratégicas, como a da região depende de como ele percebe
oportunidades e riscos sistêmicos e regio- sua política externa; contudo, não se pode 213

nais em função de suas capacidades nacio- afirmar se este renovado engajamento re-
nais. A tendência mais provável então é presentará sorte ou azar aos vizinhos!

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que o seu engajamento regional aumente,
à medida que recupere fôlego, na tenta-
tiva de retomar ao menos uma pauta de Júlio C. Rodriguez

BRASIL E ÁFRICA: UMA NOVA ENCRUZILHADA

Introdução própria narrativa que sustentou o enga-


jamento do Brasil com África nos últimos
Por entre a lista de sucessos e conquistas anos começou também ela a ser posta em
que a política externa brasileira tende a causa. Com efeito, falar de Brasil e África
reclamar como resultado dos governos na atualidade implica abordar um con-
liderados pelo Partido dos Trabalhadores junto de expetativas em risco de saírem
(PT), é frequente encontrar o restabeleci- defraudadas e uma nova retração genera-
mento de laços prolíficos com África em lizada, alimentada quer pelas sucessivas
lugar de amplo destaque. Após um inte- descobertas sobre o comportamento das
rregno temporal considerável, a aposta principais empresas privadas e lideranças
nas relações Sul-Sul com África, de for- políticas brasileiras, quer pela crise eco-
ma crescente, entre 2003 e 2016, acabou nómica que o país ainda experiencia.
por representar um feito notável no plano Torna-se, por isso, legítimo repensar os
externo. Subitamente, o Brasil passou a pressupostos que fomentaram um enga-
apresentar-se como um ator incontorná- jamento que sempre aparentou ser tão
vel em discussões-chave para África, quer natural quanto inevitável e sustentável.
fossem sobre energia, cooperação para o Uma simples derivação de um ditado po-
desenvolvimento, governança internacio- pular poderá se revelar particularmente
nal, comércio ou agricultura, ao mesmo ilustrativa nesse sentido: ‘diz-me quanto
tempo que era percecionado como um pagas, com quem te alias, e quem prote-
exemplo de potência emergente em cla- ges, e dir-te-ei quem és’.
ra demanda. Do ponto de vista de vários
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países africanos, estimular e manter re- Quando o dinheiro acaba


lações produtivas com o Brasil era por isso
entendido como uma decisão acertada Sustentar uma política externa expansiva
por entre um contexto internacional em constitui uma empreitada relativamente
rápida mudança, que parecia abrir cada custosa, sobretudo, quando inserida na
vez mais espaço para novas soluções e no- atual conjuntura. No caso do Brasil, ci-
vos intervenientes. clos económicos favoráveis coincidiram
No entanto, num curto espaço de tanto no tempo como no espaço, aquan-
tempo, esta breve avaliação inverteu-se do da anunciada intenção de reengajar
diametralmente na medida em que a com África. O momento era propício a
2 14 esse tipo de iniciativas e as autoridades relação simbiótica que se tinha desenvol-
brasileiras souberam interpretá-lo como vido até então entre atores públicos e pri-
uma oportunidade que não podia ser vados. A tão propagada diferenciação bra-
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desperdiçada. À frente desta renovada sileira era, no final de contas, tão passível
inserção em África, encontravam-se as de incorrer nos mesmos comportamentos
principais empreiteiras e conglomerados e práticas que os seus mais diretos compe-
brasileiros, enquanto pontas-de-lança tidores. Muito embora não se possa ou se
nacionais, devidamente acarinhadas pelo deva confundir a árvore com a floresta, a
poder político-diplomático. Disfrutando pouco e pouco, ficou em evidência a base
de uma nova fase de internacionalização, periclitante que sustentou grande parte
o setor privado brasileiro aproveitou o destas investidas.
zeitgeist existente para se consolidar/ex- O mesmo efeito derivado da crescente
pandir para novos mercados que permi- escassez de recursos é facilmente encon-
tissem o escoamento dos seus produtos. trado em outros vetores deste relaciona-
Nesse sentido, as comitivas empresariais mento, como por exemplo, no trabalho
que acompanhavam as múltiplas viagens levado a cabo pela Agência Brasileira de
presidenciais e ministeriais a África tril- Cooperação (ABC) com África. Embo-
havam abertamente caminho com vista a ra generoso na distribuição de conheci-
novos contratos lucrativos. mento e formação técnica – com parti-
Contudo, assim que o clima económi- cular enfoque nos Países Africanos de
co expansivo se interrompeu, as linhas de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) –,
financiamento e de apoio às exportações não foram em verdade estabelecidas reais
previamente disponibilizadas pelo Banco prioridades que permitissem enquadrar
Nacional de Desenvolvimento (BNDES) eventuais choques de conjuntura, como
deixaram de ser suficientes ou acabaram aquele que o país vivencia presentemente.
também elas atingidas pelas ramificações Proporcionar cooperação em resposta à
da Operação Lava Jato. O financiamento demanda local, preenche o critério-chave
público e o apoio oficial começaram en- para se classificar enquanto cooperação
tão a rarear, e a disposição de atravessar Sul-Sul, mas serve de pouco consolo a
o Atlântico começou também a estancar. partir do momento em que a procura
Em simultâneo, a crescente competição excede e esgota a capacidade de oferta.
internacional, com especial ênfase na Quando o orçamento da ABC conheceu
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China – responsável por uma ofensiva de o maior corte de sempre, ficou claro que
financiamento sem fim a projetos mas- o Brasil jogava afinal noutro campeonato.
sivos de infraestrutura por todo o conti-
nente –, tornou-se particularmente difícil Quando o multilateralismo sai
de acompanhar. Durante algum tempo, a caro
ideia de que ‘o Brasil faz diferente’ pareceu
ganhar alguma tração, ou pelo menos não A quantidade de recursos disponíveis
incitou a tanta rejeição local como outros não se revelou apenas fundamental para
intervenientes. Isso não foi, no entanto, financiar fluxos comerciais, interesses pri-
suficiente para esconder o quid pro quo da vados e projetos de cooperação. Repre-
sentou igualmente uma peça-chave para Isso não significa, no entanto, que 215

dar corpo a alianças e enquadramentos todas as apostas se revelaram bem-suce-


de alegada ‘geometria variável’, enquanto didas. Antes pelo contrário. Por exemplo,

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aposta clara das autoridades brasileiras em a primeira cimeira entre o Brasil e a Co-
África. A decisão de privilegiar a criação munidade de Estados da África Ocidental
e utilização de formatos multilaterais re- (CEDEAO), em 2010, ficou conhecida
mete para o desafio de qualquer inicia- por ter sido também a última do géne-
tiva emanada de fora que tente abarcar ro. Já a ZOPACAS, apesar de resgatada
um continente com 54 países, contendo da hibernação institucional em que se en-
múltiplas realidades distintas. Em con- contrava anteriormente, rapidamente se
sonância com a sua tradição diplomática, resignou ao mesmo padrão de inatividade
o Brasil visou assim ultrapassar as difi- após 2013. Longe de terem representado
culdades de comunicação, transporte e um erro em si mesmas, estas opções aca-
logística inerentes a distâncias geográficas baram sobretudo por simbolizar a falta de
consideráveis, ao mesmo tempo que se follow-up ou comprometimento material
apresentava como uma ponte entre vários do Brasil com a sustentabilidade futura
mundos, do Primeiro ao Terceiro, capaz que cada uma dessas estruturas requeria
de gerar consensos em temáticas de inte- na prática. A dinâmica estrutural subja-
resse partilhado. cente tornou-se clara: se o Brasil suportas-
Esta proliferação multilateral, devi- se de forma consistente os custos ineren-
damente enquadrada por um discurso tes à organização e manutenção destes
Sul-Sul revitalizado, permitiu corelacio- encontros, conseguiria invariavelmente
nar objetivos centrais da agenda externa parceiros do outro lado do Atlântico, dis-
brasileira com a angariação de apoios poníveis a subscreverem e a apoiarem as
numéricos cruciais, em tais casos como suas iniciativas. Mas a partir do momento
a campanha por um assento permanen- em que as condições económicas se dete-
te no Conselho de Segurança das Nações rioraram e a disponibilidade de assegurar
Unidas (CSNU) ou as candidaturas de o dia a dia dessas plataformas se desvane-
oficiais brasileiros para cargos interna- ceu, era razoável antecipar que o interesse
cionais. A ‘sopa de letras’ utilizada nesse em participar nos respetivos trabalhos se
âmbito foi tão vasta quanto diversa, desde reduziria também de forma proporcional.
as Cimeiras América do Sul-África (ASA) Mais cedo ou mais tarde, os custos de li-
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até à Comunidade de Países de Língua derar uma estratégia multilateral barata


Portuguesa (CPLP), a Zona de Paz e acabam sendo arcados por quem os igno-
Cooperação no Atlântico Sul (ZOPA- ra à partida.
CAS) ou o Fórum Índia, Brasil, África do
Sul (IBAS). Muito embora o enfoque não Quando o entorno estratégico
fosse sempre exclusivamente centrado aumenta
em África, o continente assumia-se como
uma componente incontornável por en- Apesar de ter recebido menor atenção
tre este mapa organizacional em franca mediática, importa também realçar os
evolução. avanços brasileiros em questões de segu-
2 16 rança com relação a África. Com efeito, peacekeeping no Haiti (MINUSTAH),
a narrativa de que o entorno estratégi- outra janela de oportunidade parece
co brasileiro englobava o Atlântico Sul agora abrir-se, com uma possível nova
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e, consequentemente, a costa ocidental contribuição para a missão das Nações


africana – enquanto formalizado por tais Unidas na República Centro-Africana
documentos oficiais como a Estratégia (MINUSCA). Os contornos dessa ope-
Nacional de Defesa ou o Livro Branco de ração permanecem ainda em aberto e
Defesa – impulsionou desenvolvimentos é questionável até que ponto se poderá
significativos. Através de múltiplos acor- equiparar verdadeiramente ao esforço
dos de cooperação de defesa, programas feito no Haiti. Ainda assim, algumas
de treino, venda de equipamento militar dúvidas permanecem. Por um lado, os
ou exercícios conjuntos, o Brasil conse- riscos associados a um novo contexto
guiu fomentar a imagem de um parceiro local, relativamente desconhecido dos
emergente que, pese embora carecesse de decisores brasileiros e consideravelmen-
grande projeção de capacidades militares te mais violento que missões anteriores
no exterior, conseguia fazer muito com recentes. Por outro lado, as dificuldades
pouco e parecia então disposto a assumir logísticas associadas a um menor apoio e
a sua quota-parte de responsabilidades consenso regionais, mais uma vez, quan-
ao nível de segurança regional e interna- do em comparação com a MINUSTAH.
cional. A ter lugar, é facto que este investimento
O reverso da medalha, no entanto, desafiaria a cautela sobejamente conheci-
pode ser encontrado mais uma vez nas da das Forças Armadas Brasileiras em se
expectativas criadas quanto à fase se- comprometerem com operações no con-
guinte dessa mesma disponibilidade. Se tinente africano na última década. Mas
os interesses estratégicos do Brasil pas- poderia também ajudar a minimizar a
saram a chegar efetivamente tão longe, perceção de que o Brasil, enquanto ator
seria apenas de se esperar uma maior de segurança em África, não se resumiu
participação subsequente em tais dis- afinal a um impulso meramente cíclico
cussões, como, por exemplo, sobre os ou conjuntural. Alcançar esse objetivo
riscos do Golfo da Guiné ou na luta con- sem canibalizar os parcos recursos exis-
tra a pirataria e o narcotráfico no litoral tentes no sector de segurança brasileiro
africano. Sobretudo quando atendendo representará, no entanto, um desafio
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

que, ao deixar o espaço livre, outros ten- considerável para qualquer liderança po-
derão certamente a ocupá-lo. Por outras lítica que venha a equacionar seriamente
palavras, ausências ou abstenções pro- essa opção.
longadas no tempo apenas diminuem
a imagem e reputação paulatinamente Conclusão
obtidas neste domínio ao longo dos úl-
timos anos. A constatação de que África se tor-
No plano inverso, ao mesmo tem- nou um tabuleiro de xadrez interna-
po que o Brasil encerra um ciclo com o cional, onde o Brasil poderia fazer a
fim da sua participação com a missão de diferença enquanto peça representativa
e legítima, permeou grande parte do um mínimo de conteúdo substancial en- 217

imaginário oficial nos últimos anos. De tre ambas as partes em anos vindouros.
forma semelhante ao investimento colo- Posto de outra forma, o Brasil conti-

O IM PAC TO D A C R IS E NA P OL ÍTIC A EXTER NA D O B R AS I L


cado na América do Sul, as relações com nua, sim, a ter algo que dizer e que fazer
África serviram um propósito maior de em África. O que acontece é que o es-
substanciar as ambições brasileiras por paço, que lhe era antes reservado, não
um protagonismo internacional cada vez mais parece necessariamente garantido.
mais evidente e explícito. Contudo, qua- O desafio apresenta-se por isso suficien-
se 15 anos depois desde o tiro de largada, temente complexo: como se manter en-
parece hoje inegável a desproporcionali- quanto ator relevante no contexto afri-
dade entre aquilo que o Brasil prometia cano, em plena evolução e cada vez mais
ser e fazer e aquilo que conseguiu efeti- atraindo interesse externo, sem perder
vamente cumprir. margem de manobra e sem defraudar as
Neste contexto, possíveis argumen- expetativas suscitadas na última década?
tos de que nos encontramos perante um A solução mais prescritiva possível en-
mero ajustamento da curva da posição volveria aprender com as lições do passa-
do Brasil no mundo tornam-se, sem do recente e priorizar os parcos recursos
dúvida, apelativos q.b., mas pouco nos disponíveis para este efeito, numa lógica
dizem sobre o que esperar em concre- custo-benefício que visasse a sustentabi-
to face às prioridades do país, inclusive lidade de parcerias e projetos já inicia-
com relação a África. O tríptico temático dos, antes de embarcar em novas ini-
acima utilizado sugere que uma política ciativas. Sobretudo quando atendendo
assente em baixos recursos, alianças frá- ao facto que esses mesmos recursos se-
geis e garantias de segurança ocasionais guirão certamente escassos e suscetíveis
deixaram o terreno fértil para a atual re- a variações bruscas, quer a nível interno,
tração. Ainda assim, importa reter duas quer a nível externo. As probabilidades
considerações que podem ajudar a miti- de um cenário desse género, tão ideali-
gar uma perspetiva excessivamente pessi- zado quanto eficiente, encontram-se, no
mista. Por um lado, a existência de uma entanto, em aberto. Ironicamente, atra-
componente histórico-sociológica difícil vessar hoje o Atlântico nunca foi tão fá-
de descartar, quando colocando Brasil cil para o Brasil. Mas a encruzilhada em
e África na mesma frase. Tais laços não que se encontra, tanto a sua credibilida-
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

desaparecem simplesmente por conta de de como as suas capacidades para execu-


ciclos político-económicos regressivos tar as vastas promessas feitas um pouco
e tenderão a manter o interesse mútuo por todo o continente, também nunca
à tona da água. Por outro lado, é tam- foi tão grande.
bém impreciso dizer que África tenha
subitamente desaparecido em absoluto
da agenda brasileira. A manutenção de Pedro Seabra
vários projetos de cooperação técnica
com os PALOP e o anúncio expectável
relativamente à RCA, por si só, garantem
2 18
BRASIL E MÉXICO: OS IMPASSES DE UMA QUASE NÃO-RELAÇÃO
S EABR A / R OD R IGU EZ / GAR C IA D A S ILVA / FONS EC A

Apesar de se destacarem como as duas O México, por sua vez, iniciou o novo
maiores economias da América Latina, milênio prometendo operar mudanças
as relações entre o Brasil e o México qualitativas na estrutura política do país
padecem de um imobilismo quase insu- que, pela primeira vez, elegeu um pre-
perável. Dentre as principais razões que sidente do partido de oposição ao PRI.
explicam este diagnóstico, estão a dis- Desta forma, a política externa planejada
puta pela liderança da parcela latina do por Vicente Fox (2000-2006) transpare-
continente americano, a maior projeção cia o empenho dos novos governantes em
e prestígio no âmbito dos órgãos multi- vincular a imagem do México à de um
laterais e a competição pelo alargamen- país democrático e que resguardaria valo-
to da influência econômica. Ao mesmo res típicos de uma democracia, como os
tempo, não se deve incorrer no erro de direitos humanos. Isto implicava a ruptu-
interpretar as dificuldades subjacentes ra de alguns dos eixos norteadores e tra-
ao relacionamento entre ambos Estados dicionais da política externa nacional. A
como sendo fruto de mero distancia- reinterpretação do princípio de não-inter-
mento ou desinteresse. O presente en- venção e do respeito pelo direito à autode-
saio tem por objetivo analisar os aspectos terminação, estabelecidos na constituição
que estruturam e permeiam esta relação, mexicana, foram algumas das principais
buscando apresentar as convergências e mudanças adotadas. É preciso lembrar
dificuldades a ela subjacentes, bem como que este novo modus operandi possuía um
apontar prováveis cenários futuros, da- componente interno bastante elevado que
das as condições em que os dois países pretendia romper com as práticas dos an-
atualmente se apresentam. tigos mandatários do PRI, além de buscar
Apesar da distância geográfica que os reforçar a imagem do país externamente.
separam, Brasil e México compartilham Simultaneamente, o México aspirava por
problemas internos semelhantes, como um maior espaço no ambiente internacio-
a pobreza, a violência e a desigualdade nal, contando com o reconhecimento dos
social. Neste sentido, ambos vislumbram outros países. Para tanto, utilizou como
a possiblidade de superação, pelo menos instrumento o discurso de pertencer ao
em alguma medida, destes entraves com rol dos países democráticos e, como tal,
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

o auxílio de uma política externa que pos- legitimado a atuar em nome de valores
sa alçá-los a um novo patamar no sistema que refletissem a sua nova condição – o
internacional. Durante os primeiros 15 chamado ‘bônus democrático’. Contudo,
anos do novo milênio, foi o Brasil quem em termos de ação externa, efetivamen-
logrou maior sucesso nesta empreitada. te, o governo mexicano não aproveitou
Fruto de um reajuste no eixo de sua ação aquela conjuntura para diversificar suas
externa e visando maior proximidade com parcerias políticas e comerciais, vinculan-
seus parceiros regionais, o país conseguiu do-se ainda mais aos Estados Unidos. Esta
capitalizar e promover em parte sua agen- estratégia se mostrou equivocada, uma
da de cooperação Sul-Sul. vez que o México ficou isolado tanto dos
219
EUA, que concentrava seus esforços em Brasil e México: eternos rivais?
seus conflitos no Oriente Médio, quanto
do restante da América Latina, que ob-

O IM PAC TO D A C R IS E NA P OL ÍTIC A EXTER NA D O B R AS I L


Embora a retórica entre as chancelarias
servava o crescimento do protagonismo tenha sido amistosa ao longo dos últimos
brasileiro na região. anos, constantemente reconhecendo a
Recentemente, a América Latina vive necessidade de maior aproximação, as re-
um cenário conturbado de profundas ins- lações entre o Brasil e o México carecem
tabilidades econômicas, sociais e políticas de maior substância em quase todos os as-
que tem implicado mudanças significati- pectos. A questão é: por que motivo as re-
vas na correlação de forças dos países que lações entre os dois países são tão tênues?
integram aquele espaço. O Brasil se vê Quais as razões que impedem um relacio-
em meio a diversos escândalos de corru- namento mais profundo entre ambos?
pção, que gradativamente minam a sua No âmbito político, são poucas as
capacidade de influência em seu entorno ações ou mecanismos institucionais que
regional. Por outro lado, o México tem coadunam os interesses de ambos e par-
aumentado seu protagonismo no am- te desta explicação pode ser reputada à
biente regional, apresentando um cenário própria falta de objetivos comuns nesse
de maior estabilidade política, conjugan- campo. A disputa pela proeminência da
do uma perspectiva econômica favorável América Latina e pelo reconhecimento de
ou pelo menos não tão instável quanto maior protagonismo internacional incen-
àquela observada no Brasil. O governo tiva a adoção de um posicionamento anta-
mexicano tem buscado ampliar a sua par- gônico nos fóruns políticos. Nos últimos
ticipação no âmbito multilateral, sendo anos, foram muitos os episódios em que
bastante atuante nos foros políticos e co- a polarização entre ambos foi constatada.
merciais, reforçando assim a sua imagem Por exemplo, o México foi o único país
frente aos seus vizinhos ao sul. latino-americano a não apoiar a candi-
No âmbito das relações bilaterais, as datura vencedora do brasileiro José Gra-
iniciativas empreendidas entre Brasil e ziano da Silva à presidência da FAO em
México foram insuficientes para substan- 2011. De igual forma, no mesmo ano, os
ciar o relacionamento entre ambos os Es- dois países concorreram separadamente à
tados. Do ponto de vista da elite política presidência da Organização Internacional
brasileira, o México não oferece apenas do Café (OIC), ao passo que, em 2013, a
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

pouco apoio político, como tradicional- disputa deu-se pela chefia da Organização
mente se opõe às iniciativas brasileiras Mundial do Comércio (OMC). Em am-
em organizações internacionais. O Brasil, bos os casos, o lado brasileiro saiu vitorio-
por sua vez, deu ensejo a iniciativas com so, o que agravou o distanciamento entre
o intuito explícito de diminuir a influên- os dois países.
cia do México na América do Sul. Cabe Outra divergência constante na di-
tentar entender os motivos que levam mensão política entre os dois países, pren-
duas das maiores potências regionais da de-se com a defesa da reforma do Con-
América Latina a abdicar de uma maior selho de Segurança das Nações Unidas
aproximação. (CSNU), objetivo bastante caro à política
2 20 externa brasileira. O México integra o gru- que deveria se reunir a cada dois anos,
po denominado de ‘Unidos pelo Consen- após o segundo encontro em 2009, só
so’, contrário ao aumento na quantidade voltou a se reunir em 2016. Ou seja, mais
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de membros permanentes do órgão. Desta uma evidência do imobilismo que envol-


forma, opõe-se ao pleito dos países que in- ve as relações dos dois Estados.
tegram o ‘Grupo dos 4’ que, além do Bra- No domínio econômico, o panorama
sil, ainda conta com a Alemanha, Índia e é semelhante ao que ocorre na dimensão
Japão. O argumento do México, compar- política. Os brasileiros tendem a inter-
tilhado por outros países latino-america- pretar a presença do México como uma
nos, como a Argentina e a Colômbia, é a forma de diminuir ou equilibrar sua
de que a simples inclusão do Brasil, como influência naquele espaço. Parte desta
um membro permanente no Conselho de preocupação é decalcada nas diferentes
Segurança, não conferiria automaticamen- percepções que os governantes das duas
te maior representatividade a este órgão. O economias possuem frente à abertura dos
Brasil nunca foi escolhido pelos Estados mercados. Enquanto o México privilegia
Latino-americanos como seu representan- a assinatura de tratados de livre-comércio,
te numa hipotética reforma do Conselho. como instrumento de sua inserção inter-
Além do mais, a inclusão do Brasil sinali- nacional, o Brasil adota uma postura pro-
zaria uma aceitação, ainda que tácita por tecionista, buscando na maioria das vezes
parte da comunidade internacional, da sua resguardar sua indústria nacional em sua
liderança da América Latina, o que natu- área de influência da presença de outros
ralmente contrariaria o México. países emergentes.
A falta de concertação política entre As recorrentes propostas mexicanas
as duas maiores potências latino-america- causam atritos entre as duas chancela-
nas, é também observada nas poucas ini- rias, até porque a celebração destes acor-
ciativas bilaterais que poderiam conjugar dos, não apenas diminui relativamente a
suas estratégias de desenvolvimento. Nes- participação dos produtos brasileiros no
te sentido, foi criada em 2007 a Comissão mercado internacional, como também
Binacional Brasil-México que continha enfraquece institucionalmente o Merco-
dentre seus objetivos uma proposta de sul. No caso do Paraguai, a irritação dos
aprofundamento qualitativo nas relações diplomatas brasileiros foi ainda maior,
entre os dois países. O interessante é que uma vez que o México, aproveitando-se
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

esta Comissão deveria substituir duas ou- da condição de suspensão daquele bloco
tras iniciativas prévias que não surtiram em 2012, tentou atraí-lo a ser parte in-
efeitos: o Mecanismo de Consulta em tegrante da Aliança do Pacífico. Porém, é
Matérias de Interesse Mútuo, de 1983, e preciso ressaltar que os mexicanos não se
a Comissão Brasil-México Século xxi, de opõem a realização de acordos de livre-co-
1999. Até ao presente momento, ainda mércio com o próprio Brasil. Pelo con-
não se observam resultados que tenham trário, são recorrentes as notícias de que
melhorado ou mudado de maneira efetiva ambos os Estados visam aprofundar suas
o panorama do relacionamento entre as relações comerciais através de acordos de
duas potências. Ainda mais, a Comissão livre circulação de mercadorias.
É justamente no campo das trocas co- aí maiores oportunidades de investir re- 221

merciais onde se encontram os elos mais cursos. Já o Brasil, apesar de ter defendi-
fortes da relação entre os dois países. Os do a necessidade de revisão do ACE 55,

O IM PAC TO D A C R IS E NA P OL ÍTIC A EXTER NA D O B R AS I L


acordos de complementação econômica somente quando se tornou deficitário,
(ACE) foram celebrados no âmbito bi- não chegou a romper o acordo, atitude
lateral (ACE 53) e, posteriormente, com tomada pelo governo argentino à época
o MERCOSUL (ACE 55) no âmbito da que simplesmente decidiu revogar uni-
ALADI (Associação Latino Americana de lateralmente o acordo sem nem mesmo
Desenvolvimento e Integração), em 2002. propor qualquer negociação com o Méxi-
Os dois documentos estabelecem as nor- co. O Brasil tomou a decisão de manter a
mas de intercâmbio com o México, prio- vigência do ACE 55, naquele momento,
rizando o setor automotivo, incluindo a contemplando a possibilidade de ganhos
compra e venda de peças, componentes futuros, quando as condições econômicas
e matérias-primas daquela indústria. Tra- lhe fossem mais favoráveis. Isto demons-
ta-se de uma iniciativa com o intuito de tra que, apesar das tensões ocasionais, a
incrementar a competitividade e a com- importância do México enquanto parcei-
plementariedade do setor automobilístico ro comercial nunca foi verdadeiramente
dos dois países aproximação a cadeia pro- descartada pela elite brasileira. Nem que
dutiva. Durante os anos iniciais da vigên- fosse por render a possibilidade de vis-
cia dos acordos, o Brasil conseguiu obter lumbrar maior inserção econômica junto
superávits comerciais. No entanto, quan- aos países do Caribe e da América Cen-
do a situação se inverteu em 2007, o go- tral.
verno brasileiro passou a adotar uma série
de medidas que minavam indiretamente O futuro das relações
as cláusulas do acordo, como, por exem- Brasil-México
plo, a redução das alíquotas de impostos
aos bens produzidos internamente. Um É patente que ainda existem lacunas a se-
episódio semelhante de tensão bilateral rem preenchidas e que poderiam estreitar
verificou-se no início de 2012. À medi- os laços entre o Brasil e o México. Contu-
da que o seu déficit aumentava cronica- do, para que esta aproximação tome cor-
mente, o Brasil propôs unilateralmente po é preciso que os líderes dos dois países
a revisão do ACE 55. Fato que descon- se empenhem em produzir uma política
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

tentou os representantes mexicanos, mas externa que comporte ações substanti-


que possibilitou a renovação do acordo, vas e que possibilite maior aproximação
de modo a contemplar as reivindicações entre ambas as partes. Oportunidades e
do governo brasileiro. condições que permitem a execução deste
No que tange às relações comerciais, processo existem, embora não sejam evi-
o México tenta evitar conflitos com o gi- dentes.
gante sul-americano. O tamanho e o po- No que diz respeito ao Brasil, a retração
tencial do mercado consumidor brasileiro observada na sua projeção internacional,
são elementos que chamam a atenção dos a instabilidade política interna e a crise
produtores mexicanos que vislumbram econômica relegaram à política externa um
2 22 papel quase secundário dentre as priorida- Em segundo lugar, porque os condi-
des daqueles que assumiram a Presidência cionantes internacionais das duas regiões
após o impeachment de Dilma Rousseff em das Américas favorecem uma maior coo-
S EABR A / R OD R IGU EZ / GAR C IA D A S ILVA / FONS EC A

2016. Entretanto, o discurso dos novos peração em vez de competição entre o


chanceleres era o de retomada da impor- Brasil e o México. A eleição de Donald
tância de uma atuação externa que prio- Trump nos EUA e sua política externa
rizasse as relações comerciais. A despeito ‘neoprotecionista’ preocupam os manda-
de todas as críticas que podem ser dire- tários mexicanos. A ameaça de saída do
cionadas ao fato de se restringir a inserção acordo do NAFTA, bem como a proposta
internacional a um aspecto estritamente de taxação dos produtos provenientes do
comercial, este é o principal pilar atual de México, não apenas coloca em risco o co-
sustentação das relações com o México. mércio exterior deste país, como também
Da mesma forma, o Brasil pode se reforça a necessidade de diversificação
beneficiar da maior proximidade políti- de parcerias. Cabe por isso ao Brasil em-
ca, conquanto saiba propor alianças que preender iniciativas em que, conjugando
conjuguem seus respectivos interesses. interesses mútuos, se possam aproveitar
Nesse sentido, existem pontos em co- os espaços políticos e econômicos cedidos
mum aos dois países, no que diz respeito pelos Estados Unidos. O México, aliás,
ao seu espaço de atuação nas organizações demonstrou o seu interesse em reativar e
multilaterais. Uma atuação coordenada e reforçar a sua identidade latino-america-
conjunta que propusesse mecanismos de na ao aderir à Comunidade dos Estados
expansão da representação dos países la- Latino-Americanos (CELAC), órgão que
tino-americanos nos processos decisórios congrega todos os países da América do
da ONU, OMC, FMI, etc., poderia faci- Sul, com exceção dos Estados Unidos.
litar o engajamento e ativismo conjunto No caso do Brasil, vive-se um período
na arena política internacional. Mas, para de mudanças na conformação dos execu-
que isso ocorra, é preciso que ambos ab- tivos nacionais. A derrocada dos governos
diquem de suas pretensões em ser o líder de esquerda ou centro-esquerda que re-
exclusivo da América Latina, na qual a duziram os antagonismos observados ao
proeminência de um deve necessariamen- longo da última década e que reforçavam
te eclipsar a do outro. o distanciamento do México das iniciati-
Primeiramente, porque esta disputa vas compartilhadas pelos sul-americanos.
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

não parece surtir efeito dentre os outros Es- A criação da UNASUL, a despeito de sua
tados que compõem a região. Países como importância estratégica e identitária para
o Chile, Colômbia e Peru buscam forma- a região, evidenciou esta política delibe-
lizar acordos bilaterais de livre-comércio, rada de isolamento do México, sendo o
relegando a integração econômica regional Brasil o responsável por este movimen-
a um aspecto secundário em sua agenda. Já to. Em resumo, Brasil e México encon-
a Argentina, mesmo possuindo uma con- tram-se cada qual em sua própria en-
cepção mais amigável à integração, dificil- cruzilhada no cenário internacional, com
mente aceitaria passivamente uma possível o primeiro priorizando suas relações com
liderança brasileira no seu entorno. seus vizinhos sul-americanos e obstruin-
do o protagonismo do segundo no seu deixado pelo Brasil poderá ser preenchido 223

entorno regional. O México, por seu tur- em parte pela Argentina na América do
no, tenta reforçar a sua presença na região Sul e pelo México no restante da América

O IM PAC TO D A C R IS E NA P OL ÍTIC A EXTER NA D O B R AS I L


através da participação ativa nos órgãos Latina.
multilaterais e na realização de acordos Outro aspecto que posterga o surgi-
comerciais bilaterais com as nações da mento de novas iniciativas são as eleições
América do Sul. que ocorrerão em ambos os países no ano
Menos como um exercício de futuro- de 2018. Os temas de política externa
logia e mais como um recurso heurístico, não rendem muitos frutos eleitoralmen-
pode projetar-se os próximos passos das te. Além disso, pleitos eleitorais carregam
relações entre o Brasil e o México. Embo- naturalmente certo grau de incerteza
ra haja condições externas que indiquem a dada a miríade de candidatos com dife-
possibilidade de uma melhora qualitativa rentes posicionamentos e propostas na
neste ínterim, tal movimento apresenta-se seara da inserção internacional de cada
como improvável pelo menos no curto Estado. Mesmo assim, historicamente,
prazo. São os determinantes internos que mudanças de governo e até de regime
inviabilizam este processo: ambos os paí- não foram suficientes para aumentar o
ses atravessam crises políticas internas. O interesse do Brasil em relação ao México.
presidente Peña Nieto encaminha-se para Nem mesmo quando o governo Lula pro-
o final de seu mandato, contando com vocou uma reorientação no eixo da po-
parco apoio da população, mas deixando lítica externa, privilegiando a cooperação
o país em um contexto internacional rela- Sul-Sul, houve uma grande aproximação
tivamente mais estável. No Brasil, o pre- bilateral. A impressão é a de que Brasil e
sidente Michel Temer não apenas carece México se admiram enquanto rivais, mas
de legitimidade, como tem a necessidade se ressentem da possibilidade de maior
de explicar quase que diariamente os es- aproximação. Em que pesem as possíveis
cândalos de corrupção envolvendo o seu mudanças internas e no sistema interna-
nome ou o de políticos de sua confiança. cional, o painel das relações entre as duas
Neste ponto, especificamente, percebe-se partes tenderá a manter a sua tendência
uma inversão no posicionamento de característica de permanente letargia.
cada um no cenário internacional, tendo
o Brasil perdido espaço e influência nas
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

articulações políticas da América Latina. Luiz Eduardo Garcia da Silva


Ao que tudo indica, este vácuo político

BRASIL E A UNIÃO EUROPEIA: A ILUSÃO DO EXCEPCIONALISMO?

Ao longo dos anos, o Brasil percepcionou cimento das relações diplomáticas e um


a União Europeia como um modelo a se- maior diálogo bilateral, o bloco europeu
guir em diversos níveis: político, econó- foi por vezes tido como uma alternativa
mico ou de integração. Com o estabele- ou um complemento à relação com os
2 24 Estados Unidos. Mais recentemente, a es- contrar consensos que nem sempre são fá-
colha do Brasil para a institucionalização ceis, o que se apresenta como um desafio
de uma Parceria Estratégica representou acrescido ao diálogo, tanto bilateral como
S EABR A / R OD R IGU EZ / GAR C IA D A S ILVA / FONS EC A

para Brasília a concretização de uma am- inter-regional.


bição antiga, associada à ideia de estabe- À luz das transformações do sistema
lecer laços fortes com as grandes potên- internacional das últimas duas décadas,
cias, apesar da desaprovação de alguns dos que tiveram reflexo na América Latina
seus parceiros do Mercosul. Além disso, e na Europa, este ensaio faz uma análise
foi também entendida como um símbolo da relação entre o Brasil e a União Euro-
do reconhecimento ocidental das capaci- peia, apresentando os principais desafios e
dades do Brasil para se tornar um global oportunidades com que os dois actores se
player, objetivo principal da política ex- têm deparado. Ao mesmo tempo, procu-
terna brasileira de então. ra compreender o estado desta relação e a
Por sua vez, a União Europeia co- existência de uma constante dessincroni-
meçou por ver o Brasil como uma ponte zação entre expectativas e concretizações.
entre a América Latina e a Europa, para, A análise parte da premissa de que a re-
posteriormente, o diferenciar e reconhe- lação Brasil-União Europeia tem estado
cer o seu papel como potência regional, dependente das conjunturas e interesses
democracia, maior economia da região, dos Estados-membros da UE, para os
com relações históricas com alguns dos quais o Brasil também não é uma prio-
seus Estados-membros e com uma voz ridade de política externa. Com efeito,
crescente nos assuntos internacionais. O trata-se de um país com o qual a relação
lugar do Brasil na acção externa da União assenta muitas vezes numa dimensão his-
Europeia reflecte por isso as características tórica, fraterna ou cultural, sendo por isso
do próprio país, bem como o protagonis- irregular ou intermitente o seu papel nas
mo que, em diferentes momentos, o país políticas externas dos diferentes parceiros
adquiriu na cena internacional. A osci- europeus. Deste modo, e tendo em con-
lação entre uma abordagem regionalista ta a dependência do relacionamento dos
ou bilateral tem sido reflexo da própria interesses específicos e particulares dos
estratégia interna da União Europeia, mas Estados-membros e não de uma estraté-
no caso do Brasil a opção regional, nos gia sólida e de longo prazo da União Eu-
marcos do Mercosul de meados da década ropeia, o relacionamento depara-se mais
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

de 90, não eliminou a relação bilateral. com constrangimentos e limitações do


De sublinhar ainda que esta é uma que com oportunidades.
relação entre desiguais – uma instituição
e um único país que, apesar disso, não Entre o bilateralismo e o region-
deixa de ter uma área continental supe- alismo
rior à da UE, mas com uma desigualdade
entre as suas regiões tão ou mais díspar. A relação entre o Brasil e a União Europeia
Significa isto que, tanto de um lado como não é nova, não se iniciou com a Parceria
do outro, existe uma multiplicidade de Estratégica, nem foi uma consequência
interesses em jogo, sendo necessário en- da progressiva emergência do Brasil no
mundo. As relações diplomáticas entre os fundamento da relação com o Mercosul 225

dois actores foram estabelecidas na déca- seria central para o diálogo e para o re-
da de 1960, e o primeiro Acordo-Quadro lacionamento com cada um dos países.

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data de 1992. A sua origem, contudo, Como tal, foram envidados esforços para
não deixa de estar sustentada nas relações o estabelecimento do Acordo de Asso-
históricas bilaterais do Brasil com alguns ciação com o Mercosul. Isso não obsta a
dos Estados-membros da UE, como Por- que o mesmo continue por se concretizar,
tugal e Espanha, mas também Alemanha, com as negociações a terem sido suspen-
Reino Unido, França ou Itália. sas por diversas vezes, devido às posições
O vínculo de Portugal e de Espanha intransigentes dos dois blocos (designa-
à região latino-americana é histórico, e damente no que concerne aos produtos
mais do que serem os representantes da agrícolas) ou à própria instabilidade que
América Latina na UE, estes países são tem marcado a evolução do Mercosul.
importantes intermediários entre as duas Em 2010, durante a presidência espan-
regiões, zelando, naturalmente, pelos seus hola da UE, os contactos voltaram a ser
próprios interesses, quer seja para estrei- retomados, mas só em 2016 ocorreu uma
tarem as relações com alguns dos países nova troca de ofertas de mercados para
latino-americanos, quer seja para conso- definir o que cada uma das partes está
lidarem a sua posição no seio da UE. Po- disposta a ceder. Desde então, o processo
rém, neste caso particular, ficou evidente negocial tem sido mais intenso através da
nos últimos anos, e especialmente com a realização de reuniões regulares com vista
institucionalização da Parceria Estratégi- a fechar o que cada parte pretende ofere-
ca, que o Brasil conseguia dialogar auto- cer e a encontrar o texto final do Acordo.
nomamente com a União Europeia. A forma como a relação e as nego-
Um dos motores para o início da re- ciações entre o Mercosul e a União Eu-
lação foi o comércio e, ainda hoje, a UE ropeia evoluíram pode ser vista como
se apresenta como o principal parceiro do uma oportunidade para o Brasil. Ainda
Brasil, sendo o país o principal exportador que, em 2007, os parceiros do Brasil no
de produtos agrícolas para a UE. Quan- Mercosul tivessem sido críticos do estabe-
to aos investimentos, a UE é o principal lecimento da Parceria Estratégica com a
investidor no Brasil e este apresenta-se UE – como se esta significasse a aposta do
também como o quinto maior investidor Brasil numa relação bilateral com a UE
Iberoamericana, XVII, 65 (2017), 207-229

na UE. Com a criação do Mercosul, em em detrimento do Mercosul –, a verdade


1991, a dimensão comercial da relação é que esta permitiu que se desenrolasse
foi, em certa medida, relegada para as ne- um diálogo bilateral entre Brasília e Bru-
gociações entre as duas instituições, que xelas de forma independente do Mercosul
não tiveram, contudo, os melhores resul- e com uma nova intensidade. Em todo o
tados. A relação sustentou-se, essencial- caso, as actuais conversações com o Mer-
mente, mas não de forma exclusiva, no cosul têm sido observadas com algum
diálogo UE-Mercosul. optimismo, e se até ao final do ano for
Tanto do lado de Brasília, como do possível estabelecer o Acordo, é possível
lado de Bruxelas, entendia-se que o apro- que o Brasil tenha que dividir novamente
2 26 o diálogo com a UE entre a dimensão bi- competitividade, crescimento e emprego;
lateral e regional. ii. desafios globais; iii. Direitos Humanos,
Além do comércio, outro dos princi- paz e segurança internacionais; iv. inter-
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pais eixos da relação centrou-se na coope- câmbio entre os povos e trocas culturais),
ração, em particular, a cooperação cientí- assim como a criação de novas áreas para
fica e tecnológica, tendo sido assinado um cooperação. Criados em 2005, os Diálo-
Acordo-Quadro de Cooperação Científi- gos Sectoriais são o instrumento que es-
ca e Tecnológica, em 2004, enquanto pri- trutura a cooperação Brasil-UE e é através
meiro acto da política externa brasileira deles que os projectos de cooperação são
com a União Europeia, depois de Lula da estabelecidos e implementados, sendo su-
Silva assumir a Presidência da República. pervisionados por organismos brasileiros
Após a assinatura da Parceria Estratégica, e europeus.
foram estabelecidos outros três acordos, É aqui, portanto, que reside a parti-
entre a Euratom e o Brasil (2009), sobre a cularidade desta relação. Ela não assenta
isenção de vistos (2011-2012) e no domí- no domínio das high politics, mas sim em
nio da investigação, em 2013. domínios de cooperação específicos e téc-
Contudo, muito embora as relações nicos. Ao contrário do que tem aconteci-
oficiais entre os dois actores remontem à do com países como a Índia – com o qual
década de 1960, apenas em 2006 se veri- a União Europeia começa a aprofundar
ficou a primeira visita oficial de uma alta as relações no domínio securitário, por
autoridade da UE ao Brasil. Concluídas, exemplo –, no caso do Brasil, dado o re-
ainda que sem sucesso, as iniciativas eu- traimento da actuação global do país nos
ropeias previstas para o período 2001- últimos anos, mas também devido ao me-
2006, devido à incompatibilidade dos nor peso geoestratégico da região sul-ame-
mecanismos administrativos de ambas as ricana, a Parceria Estratégica privilegiou a
partes, e antecedendo a apresentação do continuidade, ou o aprofundamento, da
“Documento Estratégico Brasil-UE” para cooperação técnica, sem no entanto se
2007-2013, a visita do Presidente da Co- apresentar como um instrumento para
missão Europeia, José Manuel Durão Ba- a inclusão, na agenda bilateral, de temas
rroso, reflectiu a vontade de aprofundar o quentes da agenda internacional.
diálogo entre o Brasil e a UE, sinalizando Para além disso, apesar da existência
já a intenção de ter o Brasil entre os seus de uma convergência de valores entre Bra-
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parceiros estratégicos. sília e Bruxelas, tem sido difícil traduzi-la


A Parceria Estratégica permitiu a im- em resultados concretos. Note-se por
plementação de um Plano de Acção em exemplo, ao longo dos últimos anos, as
2008, que veio, se não robustecer o re- diferentes tomadas de posições do Brasil e
lacionamento, pelo menos sistematizar da União Europeia em decisões em orga-
as áreas de possível cooperação. Ao esta- nismos multilaterais, incluindo algumas
belecer a Iniciativa de Apoio aos Diálo- votações no quadro das Nações Unidas,
gos Sectoriais, o Plano de Acção propôs a divergência em decisões do Fundo Mo-
a organização dos Diálogos já existentes netário Internacional ou sobre o tema da
em torno de quatro áreas principais (i. defesa dos Direitos Humanos como eixo
da actuação externa. Também nos casos de um lado como do outro do Atlânti- 227

dos conflitos da Síria e da Líbia, ou do co, poucos ou nenhuns foram os festejos.


conflito israelo-palestiniano, as posições Sem dúvida, os tempos hoje são outros,

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adoptadas pelos dois actores foram dis- mas não haverá motivos para celebração?
tintas. Como alguns autores referem, em- Em 2007, Brasil e UE viviam uma
bora Brasil e União Europeia partilhem conjuntura diametralmente oposta à ac-
os mesmos valores, persistem diferenças tual. No Brasil, vivia-se a euforia. A eufo-
na visão que ambos têm sobre a ordem ria do desenvolvimento e do crescimento
internacional, a sua organização e modo económico, da diminuição da pobreza,
de funcionamento. do aumento do consumo, do protagonis-
mo internacional. A UE, embora se en-
A institucionalização de uma contrasse a uma curta distância de uma
relação ‘especial’ tremenda crise económica, conseguira
reunir o consenso necessário para a as-
Não obstante o estabelecimento da Par- sinatura do Tratado de Lisboa, que viria
ceria Estratégica tenha decorrido, entre a introduzir alterações significativas no
outros motivos, do objectivo europeu de quadro institucional e no processo deci-
encontrar parceiros credíveis para a sua sório e esforçava-se por aumentar a sua
actuação global, a escolha do Brasil de- actuação global. Foi neste ponto que a
pendeu da situação interna do país e do parceria com o Brasil se inscreveu, como
momento ascendente em que, na altura, praticamente todas as outras Parcerias Es-
se encontrava a sua política externa. Ao tratégicas estabelecidas.
mesmo tempo, não é de ignorar a relação Dez anos depois, a euforia brasileira
histórica e o interesse de alguns dos Esta- deu lugar a um desânimo absoluto, en-
dos-membros no Brasil – por exemplo, a grossado com a crise económica, política
Parceria Estratégica foi desenhada duran- e institucional. O impeachment da Presi-
te a presidência alemã e assinada durante dente Dilma Rousseff em 2016, os cons-
a presidência portuguesa. Note-se inclu- tantes processos de investigação judicial a
sivamente a receptividade do tema Brasil Presidentes, antigos Presidentes e políti-
pelo então Presidente da Comissão Euro- cos acusados de corrupção, a condenação
peia, de nacionalidade portuguesa. do antigo Presidente Lula da Silva, e a
Deste modo, actualmente, é impossí- inércia na condução da política externa
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vel pensar-se na relação Brasil-União têm sido uma constante nas manchetes
Europeia sem aludir ao significado da sobre o Brasil. O sentido ascendente da
Parceria Estratégica. Ademais, o ano de trajetória internacional brasileira inver-
2017, que marca os 10 anos da institu- teu radicalmente o seu sentido. Por sua
cionalização da Parceria Estratégica e das vez, na UE, as atenções viraram-se para
Cimeiras bilaterais anuais entre o Brasil a crise dos refugiados e para a instabili-
e a União Europeia, obriga a tal. Foi a 4 dade na vizinhança próxima, ao mesmo
de Julho de 2007, durante a presidência tempo que ainda persistem os efeitos da
portuguesa, que a Parceria Estratégica crise económica e financeira desencadea-
foi assinada. Mas, dez anos depois, tanto da em 2008, atraindo incerteza para os
2 28 domínios políticos, securitários e para tinha subjacente uma estratégia concisa e
a própria sobrevivência da UE como se coesa, que fosse ao encontro da actuação
conhece. Embora 2017 tenha sido o ano global europeia.
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do 60º aniversário da UE, foi marcado


acima de tudo pelo debate em torno do Depois de 2007: mais do mesmo?
Brexit, da forma como se irá processar e
das consequências para o futuro da UE. Nos últimos anos, pelas crises e conjun-
Perante esta conjuntura, e com um turas atrás referidas, ambas as partes têm
oceano pelo meio, torna-se mais fácil conferido pouca atenção à relação, o que
compreender as razões pelas quais cada no caso do Brasil se estende simultanea-
um dos actores não se encontra presen- mente a outros domínios da política exter-
temente no radar um do outro. Um bom na. Por um lado, a UE não tem uma estra-
exemplo ilustrativo desta dinâmica pode tégia de acção externa claramente definida
ser encontrado no facto de a realização da para o Brasil, pois, como demonstrado, as
última Cimeira UE-Brasil ter tido lugar Parcerias Estratégicas têm um significado
em 2014 e não haver previsão de nenhum muito simbólico, não representando uma
outro evento para assinalar o 10º aniver- reviravolta no resultado das relações da
sário da Parceria Estratégica. Embora o UE com os países considerados especiais.
momento de crise possa ser a justificação, Por outras palavras, a Parceria Estratégica
a não realização das Cimeiras Brasil-UE, aprofundou os mecanismos de cooperação
que deveriam ter uma periodicidade existentes, mas não intensificou o diálogo
anual, são sintomáticas do momento de ou a relação política. Por outro lado, para
baixa prioridade pelo qual a relação está o Brasil, a existência por si só da Parceria
a passar. Se a Parceria Estratégica conti- Estratégica, por mais vazia que possa estar,
vesse uma dimensão estratégica mais só- foi desde logo tida como uma vitória im-
lida, poderia ser imune às crises internas portante para o reconhecimento do papel
de cada uma das partes ou pelo menos do país na arena internacional. Ademais,
incrementar, e não suspender, o diálogo mesmo que não se verifique a extrapolação
político regular. Fica cada vez mais evi- do diálogo além dos projectos de coope-
dente que a relação Brasil-UE, com ou ração, este é já um domínio de intercâm-
sem Parceria Estratégica, está assente na bio importante para o desenvolvimento e
cooperação e tem cada vez menos uma capacitação técnica do Brasil.
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dimensão política. Desta forma, fica claro que, se a relação


Para a UE, muito embora a selecção Brasil-UE deixou de estar dependente da
dos seus parceiros estratégicos não res- relação Mercosul-UE, ela continua de-
pondesse a uma abordagem estratégica pendente das relações históricas bilaterais
específica, as Parcerias Estratégicas su- entre os Estados-membros e o Brasil. Ora,
blinhavam a sua ambição global. Desta se o Brasil não é a prioridade de política
forma, é possível verificar que, apesar do externa de nenhum deles, o seu peso no
rótulo sonante, a Parceria Estratégica com quadro da UE tende a oscilar consoante
o Brasil não alterou substancialmente a a sua relevância internacional, tanto a ní-
relação previamente existente, pois não vel político como económico ou comer-
cial. De igual modo, o Brasil também não uma relação com as características do pas- 229

detém uma estratégia de política externa sado, assente na história e nos laços entre
direcionada para a UE que não enfatize a o Brasil e alguns dos Estados-membros da

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matriz histórica e as relações comerciais, UE. O excepcionalismo pode até existir e
acabando por isso por ser igualmente vaga perdurar, mas, por si só, provavelmente,
em termos de objectivos concretos. não fará nascer a estratégia necessária que
A institucionalização da Parceria Es- assegure uma relação com resultados que
tratégica criou a ilusão de uma relação sejam também eles especiais.
especial entre os dois actores, mas, em
boa verdade, mesmo depois de mais de
meio século de relações oficiais, persiste Carmen Fonseca

AUTORES

Pedro Seabra, Instituto Universitário Luiz Eduardo Garcia da Silva, Uni-


de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de versidade Federal do Rio Grande do Sul
Estudos Internacionais, pedronunosea- (UFRGS), luizeduardogarcia1@gmail.
bra@gmail.com, doutorado em Política com, Cientista Social, Mestre e Douto-
Comparada e Leibniz-DAAD Fellow do rando em Ciência Política. Pesquisador
German Institute of Global and Area visitante no German Institute of Global
Studies (GIGA). and Area Studies (GIGA).

Júlio C. Rodriguez, Universidade Fe- Carmen Fonseca, Instituto Português


deral de Santa Maria (UFSM), julio.ro- de Relações Internacionais da Univer-
driguez@ufsm.br, doutor em Ciência Po- sidade Nova, carmen.fonseca@ipri.pt,
lítica (Universidade de Lisboa), Professor doutorada em Relações Internacionais e
Adjunto de Relações Internacionais no investigadora no Instituto Português de
Departamento de Economia e Relações Relações Internacionais da Universidade
Internacionais da UFSM. Nova de Lisboa (IPRI-NOVA) e Profes-
sora na NOVA FCSH (Lisboa).
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