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Elizabeth Oliveira
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Vensceslau Brás, 70, Campus Praia Vermelha,
Botafogo, 22290-140, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. elizabetholiverbr@yahoo.com.br
Frederico Tavares
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor PPG Eicos/IP e ECO/UFRJ. Av. Vensceslau Brás, 70,
Campus Praia Vermelha, Botafogo, 22290-140, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. fredtavares@fredtavares.com.br
Resumo. O turismo em favelas tem suscitado inú- Abstract. Tourism in favelas has aroused a lot of
meras controvérsias na academia, no trade turístico controversies in the academy, in the tourist trade
e, também, na cobertura jornalística. Consideran- and also in the coverage of journalism. Considering
do a importância da mídia na difusão da imagem the importance of the media in the dissemination
veiculada sobre essas localidades e sobre o próprio of the image about these localities and the tourism
turismo ali desenvolvido, este artigo foi construído developed there, this article was constructed with
com o objetivo de interpretar como a mídia digital the objective of interpreting how the digital media
decodifica e dissemina as informações sobre o turis- decodes and disseminates information about tour-
mo em favelas no Rio de Janeiro. Para tanto foi esco- ism in favelas in Rio de Janeiro. For this purpose,
lhido como recorte temporal os Jogos Olímpicos Rio the Olympic Games Rio 2016, a period of great vis-
2016, período de grande visibilidade para a cidade. ibility for the city, was chosen for the study. For
Para o desenvolvimento das análises, a noção de the development of the analyzes, the notion of dis-
dispositivo, concebida por Foucault e desenvolvida positive, conceived by Foucault and developed by
por Deleuze, por meio da proposta de “geografia fi- Deleuze, through the proposal of a “philosophical
losófica”, constituiu a lente teórica da interpretação. geography”, constituted the theoretical lens of the
Com base nessa inspiração teórica e, por meio da interpretation. Based on this theoretical inspiration,
leitura crítica de 49 publicações, difundidas por 33 and through the critical reading of 49 publications
mídias digitais, foi possível perceber que o discurso spread by 33 digital media, it was possible to per-
jornalístico sobre o turismo em favelas é polêmico ceive that the journalistic discourse on tourism in
e, também, contraditório. Para além do recorte te- favelas is controversial and also contradictory.
mático proposto – o turismo em favelas – emergiu In addition to the proposed thema – tourism in
dessa análise o enunciado sobre o lugar favela, de favelas – emerged from this analysis the statement
forma mais ampla, evidenciando o forte estigma about the favela itself, more broadly, highlighting
ainda vinculado a esses espaços na interpretação the strong stigma still linked to these spaces in the
Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC-BY 4.0), sendo per-
mitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Favela – lugar para se visitar ou evitar? As contradições na mídia sobre o turismo em favelas no Rio de Janeiro
da mídia, mesmo no contexto favorável vivido pela interpretation of the media, even in the favorable
cidade nesse período. context lived by the city in that period.
Palavras-chave: favela, turismo, mídia, dispositivo Keywords: favela, tourism, media, dispositive
1
A Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, extingue a escravidão no Brasil sem prever, contudo,
nenhuma forma de inclusão dos negros na sociedade.
2
A Política de Pereira Passos foi uma ampla reforma urbanística que se iniciou em 1903. Inspirada na reforma higienista
do Barão de Haussmann em Paris, o prefeito do Rio modernizou a zona portuária e abriu amplas avenidas: a Rio Branco,
a Beira-mar e a Maracanã.
volvimento das favelas no Rio de Janeiro: o cidos, em contraste à sua aproximação física
reconhecimento da existência dessas moradias nas cidades. No Rio de Janeiro, em particular,
pelo Código de Obras da cidade (1937); a ex- esse contexto é ainda mais marcante, já que
pansão desenfreada de novas construções sob os principais bairros de alto poder aquisitivo
a égide do populismo, nas décadas de 1950 e da zona sul carioca são cercados por favelas4.
1960; a remoção e a eliminação de muitas fa- Embora haja um compartilhamento de espa-
velas durante a ditadura militar, na década ços urbanos privilegiados, a proximidade e
de 1970; a urbanização de algumas áreas pelo a convivência desses grupos não é pacífica e
Banco Nacional de Habitação (BNH), após o não representa uma escolha de nenhuma das
retorno da democracia, na década de 1980; partes. Nesse sentido, ela não está isenta de
além do Programa Favela-Bairro3, na década preconceitos e estigmas e envolve, em alguns
de 1990. Cabe adicionar a esse breve histórico, casos, violência física e simbólica (Leite, 2000;
o movimento recente de implementação das Bentes, 2007).
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) com Nesse contexto, a cultura das favelas da
o objetivo de aumentar a segurança nas fave- zona sul carioca se formou a partir de uma
las, no final de 2008 – uma iniciativa do poder grande mistura de influências, sendo as do
público que passou a contribuir para a inten- nordeste do Brasil e, sobretudo, as dos afro-
sificação do turismo nessas áreas, desde então. descendentes5, as mais representativas.
Nesta retrospectiva, é importante resgatar, Com essa diversidade cultural, o turismo
ainda, o intenso processo de urbanização do em favelas vem sendo interpretado como uma
país na segunda metade do século XX, cuja real possibilidade para o desenvolvimento
taxa passou de 31%, em 1940 para 81%, em econômico, a valorização cultural e o com-
2000 (Burgos, 2002). Assim, um grande contin- bate aos estigmas associados a esses espaços.
gente populacional de todo o país, mas sobre- Mas esse tipo de atividade tem sido criticado,
tudo da região nordeste, migrou (e ainda mi- também, por muitos pesquisadores, uma vez
gra) para as capitais fluminense e paulista, em que representaria uma forma de estetização da
busca de oportunidades de trabalho e melho- miséria e de exotização dos seus moradores.
ria de qualidade de vida. Com poucos recur- Nesse sentido, a visita à favela seria percebida,
sos, esses indivíduos acabaram se agregando ainda, como um tipo de “safári humano” e de
às populações dos morros cariocas e paulista- voyeurismo de estrangeiros, resultando, as-
nos, adicionando ao “caldo” cultural das fave- sim, na exploração econômica da miséria por
las, ingredientes de suas terras de origem. agentes do trade turístico. No centro das con-
A ocupação desses espaços é explicada, trovérsias estão as relações de poder explícitas
ainda, pela falta de políticas habitacionais no e implícitas nesse jogo frequentemente velado,
período de maior crescimento das cidades bra- tema que perpassa a discussão deste artigo.
sileiras. Segundo Ribeiro (2004), por exemplo,
o percentual da população de São Paulo mo- A noção de dispositivo como
rando em favelas cresceu de 1%, em 1970, para uma via possível para a interpretação
20%, no ano 2000. No Rio, com quase 28% de da dinâmica de poder na mídia
crescimento, entre 2001 e 2011, a população to-
tal das favelas alcançou 1,4 milhão de pessoas, Como ponto de partida para se compreen-
contingente que significa quase um quarto do der a discussão central deste artigo é impor-
total de habitantes do município, de acordo tante que se resgate a contribuição de Michel
com o último censo realizado (IBGE, 2011). Foucault para o debate teórico no qual se apoia
E, para além do aumento da população esta análise. Foucault foi um teórico francês
em favelas, Karnani (2011) chama a atenção que buscou interpretar as dinâmicas de poder,
para o crescente distanciamento econômico com base em uma análise crítica dos discursos.
entre a camada mais pobre e os mais favore- Isto porque, à medida em que se aprofunda-
3
Programa de urbanização coordenado pela Secretaria Municipal de Habitação com recursos do Banco Interamericano
de Desenvolvimento.
4
Diferentemente de Mumbai ou Nairobi, onde favelas que têm sido fortemente exploradas como atrações turísticas são,
predominantemente, planas, as favelas cariocas mais antigas foram construídas em espaços altamente íngremes. As mo-
radias foram incrustradas e autoconstruídas em morros muito íngremes.
5
O Rio de Janeiro concentra atualmente 15% da população negra de todo o país (IBGE, 2011) e grande parte desse con-
tingente está nas favelas.
va nos estudos sobre a genealogia do poder, de visibilidade, (ii) curvas de enunciação, (iii) li-
Foucault percebia que o discurso extrapo- nhas de poder e (iv) linhas de subjetivação.
lava aquilo que, de fato, era expresso. Nesse Para Deleuze (1990) os dispositivos são
sentido, passou a considerar um espectro de “máquinas de fazer ver e de fazer falar”, na
discurso mais amplo em sua análise. Para tra- medida em que transcendem o que está sendo
duzir essa complexidade, Foucault formulou explicitado.
a noção de dispositivo, que visava facilitar a
compreensão das dinâmicas de poder na so- E, no dispositivo, as linhas não delimitam ou en-
ciedade contemporânea. Assim, um dispositi- volvem sistemas homogéneos por sua própria con-
vo teria o seguinte significado: ta, como o objecto, o sujeito, a linguagem, etc., mas
seguem direcções, traçam processos que estão sem-
pre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora
um conjunto decididamente heterogêneo que en-
globa discursos, instituições, organizações arqui- se afastam umas das outras. Qualquer linha pode
tetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas ser quebrada – está sujeita a variações de direcção
administrativas, enunciados científicos, proposi- – e pode ser bifurcada, em forma de forquilha –
ções filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o está submetida a derivações. Os objectos visíveis,
dito e o não dito são os elementos do dispositivo. os enunciados formuláveis, as forças em exercício,
O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes os sujeitos numa determinada posição, são como
elementos (Foucault, 2000, p. 244). vectores ou tensores (Deleuze, 1990, p. 87).
Cabe destacar que, na sua origem, o con- E para que se possa ampliar, ainda mais, a
ceito de dispositivo era aplicado por Foucault compreensão dessa discussão teórica, sobre-
para a análise de questões relacionadas aos tudo no que se refere, especificamente, ao pa-
presídios e manicômios, assim como às esco- pel da mídia como ator capaz de influenciar
las e fábricas. Entretanto, posteriormente, essa a opinião da sociedade sobre determinados
abordagem foi ampliada e apropriada por ou- temas, cabe incorporar a esse debate, a releitu-
tras áreas de estudo, como pode ser percebido ra de Klein (2007), segundo a qual, a noção de
em interpretações mais recentes6. E conforme dispositivo pode ser utilizada, também, como
defendido por Agamben: meio de interpretação do discurso midiático, já
que para o autor, “os processos midiáticos só
Não somente, portanto, as prisões, os manicô- podem ser bem compreendidos em sua com-
mios, o panóptico, as escolas, as confissões, as plexidade se estudados na perspectiva das di-
fabricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, ferentes relações que se estabelecem entre as di-
cuja conexão com o poder é, em um certo senti- versas dimensões em jogo” (Klein, 2007, p. 208).
do, evidente, mas também a caneta, a escritura, Nesse sentido, direcionar o olhar para a
a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, mídia, com base na noção de dispositivo, pa-
a navegação, os computadores, os telefones celu-
rece representar um caminho possível para se
lares e - porque não - a linguagem mesma, que e
discutir os processos midiáticos, motivo pelo
talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há
milhares e milhares de anos um primata - prova- qual esse suporte teórico foi escolhido para
velmente sem dar-se conta das consequências que orientar a leitura crítica em relação a cobertura
se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar das mídias digitais sobre o turismo em favelas
capturar (Agamben, 2005, p. 13). cariocas, durante os Jogos Olímpicos Rio 2016.
Tendo em vista este breve contexto, o ob-
Contribuindo também para ampliar esse jetivo deste artigo é interpretar como a mídia
conceito, Deleuze consegue aprofundar o que digital decodifica e dissemina as informações
Foucault havia introduzido como “desemara- sobre o turismo em favelas no Rio de Janeiro.
nhar as linhas de um dispositivo”, ao visualizar Se espera, assim, com essa reflexão, construída
uma perspectiva espacial e tridimensional para de forma dialogal com a literatura especializa-
a noção de dispositivo. Deleuze propôs o que da, contribuir para ampliar a discussão sobre o
descreveu como uma “geografia filosófica” en- tema em foco em suas articulações com o pla-
volvendo quatro elementos analíticos: (i) curvas nejamento do turismo nesses espaços.
6
Na tese “Uma floresta tocada apenas por homens puros… Ou do que aprendemos com os discursos contemporâneos
sobre a Amazônia”, Shaula Maíra Vicentini de Sampaio (2012) desenvolve o conceito de dispositivo da sustentabilidade.
A autora apresenta essa nova perspectiva a partir de estudos de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Trabalha com a ideia
de uma pedagogia exercida pelo dispositivo, especialmente o da sustentabilidade e ressalta de que forma esse atende a
uma urgência histórica, a de promover uma sociedade sustentável.
7
O Google foi escolhido por ser o maior buscador disponível. Ele foi usado em modo anônimo, de forma que as pesquisas
anteriores realizadas no mesmo computador não tiveram influência sobre o resultado/relevância da busca. O ordenamen-
to da apresentação se deu pela ferramenta de relevância do próprio buscador, que leva em consideração o número de
acessos dos veículos e a quantidade de vezes que as palavras-chave da pesquisa foram apresentadas no texto.
8
O objetivo de realizar a busca também em inglês foi contemplar não apenas o que se diz “de dentro”, mas os discursos
que vêm de fora da cultura brasileira, que percebe o fenômeno do turismo em favelas cariocas de forma exógena.
Figura 1. Fotografia do Muro Olímpico “por Figura 2. Fotografia do Muro Olímpico “por
fora”, LightRocket. dentro”, Mario Tama.
Figure 1. Photograph of the Olympic Wall Figure 2. Photograph of the Olympic Wall “in-
“outside”, LightRocket. side”, Mario Tama.
Disponível em: Getty Images e retirada da reportagem do Disponível em: Getty Images e retirada da reportagem do
The Guardian (Ref.16). The Guardian (Ref.16).
Figura 3. Turistas compram souvenirs, Arabian Figura 4. Turistas percorrem as ruas da favela
Business (Ref. 39). em jeep: Imagem Arabian Business (Ref. 39).
Figure 3. Turists buy souvenirs, Arabian Busi- Figure 4. Turists travel the streets of favela by
ness (Ref. 39). jeep: Image Arabian Business (Ref. 39).
(ii) Curvas de Enunciação Copa, O Globo (Ref. 32); Turismo Olímpico nas
favelas é 10% do obtido na Copa do Mundo,
Considerando outra dimensão de análi- UOL (Ref. 34) e Notícias negativas derrubam
se, neste artigo, se busca refletir sobre o que busca por passeios em favela, Estado de São
se expressa, excessivamente, e o que se omi- Paulo (Ref. 43).
te, obsessivamente, na cobertura midiática Por outro lado, no balanço publicado pelo
pesquisada. Nesse caso, quais as principais Diário do Turismo, com o título Ministério di-
representações sobre as favelas que emergem vulga dados do turismo nas Olimpíadas (Ref.
desses embates e quais os julgamentos sobre a 41), o termo “favela” foi mencionado apenas
visitação a esses lugares? na frase: “apesar dos casos de violência ocorri-
Para tentar responder a essas questões, é dos durante a Olimpíada, como o assassinato
importante considerar as curvas de enunciação, do soldado que entrou por engano na favela,
em termos do que é dito, mas também do que 88,4% dos estrangeiros e 87,1% dos brasileiros
é percebido, porém omitido (o não dito), como avaliaram positivamente a segurança no Rio
curvas de expressão que moldam o dispositivo. de Janeiro”.
Nesse sentido, cabe aqui resgatar uma pa- Essa menção à favela, em associação à vio-
lestra proferida em setembro de 2016 sobre o lência e onde se entra “por engano”, parece
turismo nas favelas cariocas, durante as Olim- indicar a percepção de que o turismo nessas
píadas. Na ocasião, Freire-Medeiros (Daily Te- áreas urbanas ainda não está enunciado posi-
xan, 2016, tradução livre) afirmou que: tivamente, no discurso do Ministério do Turis-
mo. Contudo, essa percepção parece estar em
Duas aparentemente incompatíveis lógicas se ins- contradição com o conteúdo de uma outra ma-
talaram ao mesmo tempo. Por um lado, as favelas téria do próprio Ministério do Turismo sobre o
foram acolhidas não apenas como territórios de Projeto Favelidade (Ref. 35)9, que buscou gerar
potencial turístico e oportunidade econômica, mas visibilidade a dez favelas cariocas, no período
também como parte fundamental do mito da brasi- dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Essa aparente
lidade. Mas por outro lado, esses mesmos territó- contradição, na forma de se mencionar as fa-
rios foram considerados invisíveis ou descartáveis. velas em matérias que envolvem a mesma ins-
tituição, ilustram o caráter controverso e pro-
O paradoxo discutido pela referência men- blemático de enunciação desses espaços, não
cionada é percebido, também, no contexto da somente na cobertura midiática, mas também
presente pesquisa. Nesse sentido, aparente- nas narrativas governamentais.
mente, as mídias nacionais analisadas busca- Nessa perspectiva de “quem diz o quê”, é
ram ressaltar os aspectos de brasilidade das importante ressaltar, quais são os atores que
favelas e, incentivar o turismo nesses espaços, ganham voz. Nesse sentido, há uma clara dis-
como expressam as matérias: A vida real das tinção entre a cobertura jornalística de mídias
favelas para o turista ver, do jornal O Globo mais convencionais e a daqueles veículos que
(Ref. 03); Projeto gera impacto social nas co- se autodenominam de “mídia engajada”, isto
munidades cariocas com turismo (Ref. 10), do é, que assumem um posicionamento político
Diário do Turismo; e o trio do Estadão: Turismo na divulgação dos fatos, sob a perspectiva de
de inclusão pelas comunidades cariocas (Ref. minorias e atores sociais não hegemônicos. No
12); Longe do asfalto roteiros para conhecer caso das favelas, especificamente, o RioOnWa-
favelas do Rio de Janeiro nas Olimpíadas (Ref. tch (Rio Olympics Neighborhood Watch) é, segun-
19); e Comida boa morro acima: onde comer do sua auto definição, “um projeto da organi-
nas comunidades cariocas (Ref. 24). zação Comunidades Catalisadoras (ComCat),
Após o início dos Jogos Olímpicos Rio para dar atenção local e global aos pontos de
2016, contudo, ficou clara a decepção com o vista oriundos das favelas do Rio de Janeiro até
desempenho do turismo nas favelas cariocas, as Olimpíadas de 2016” (Rioonwatch, 2010).
em algumas mídias pesquisadas, nas seguin- O RioOnWatch recorrentemente entrevistou
tes matérias: Número de visitantes em favelas moradores de favela em suas matérias. Na
caiu até 90% nos Jogos em comparação com a mídia internacional quem cumpre, frequente-
9
O Favelidade foi um projeto criado com objetivo de gerar renda e visibilidade para as comunidades durante os Jogos
Olímpicos. Foi concebido pelo Favela Experience (negócio social de operação de viagens e hospedagem em favelas do Rio)
e pela Atados (ONG de fomento ao voluntariado) com apoio da Campanha Passaporte Verde (desenvolvida pela ONU Meio
Ambiente com enfoque em turismo sustentável).
mente, esse papel é o jornal The Guardian (Ref. quer lugar e a qualquer horário. Estas suge-
16) que, assim como o RioOnWatch, priorizou, riam, ainda, que o turista não tivesse consigo
na sua cobertura, as vozes locais. bens valiosos, e que tivesse, sempre à mão,
Nesta pesquisa se percebeu, também, que algum dinheiro para entregar aos bandidos,
após o início dos Jogos Olímpicos, as matérias sem resistência, em caso de alguma eventu-
positivas sobre essas localidades, veiculadas alidade. Essa menção parece sintetizar como
pela mídia digital brasileira, tiveram caráter a imagem da cidade tem sido divulgada nos
apenas pontual, como a matéria do G1: Ame- últimos anos.
ricanos constroem playground em favela do Ainda sob a perspectiva da imagem vei-
Rio durante Olimpíada (Ref. 36) ou estas eram culada sobre as favelas, alguns exemplos de
imprecisas, como foi o caso da matéria Olim- matérias analisadas parecem ilustrar como as
píada alavanca turismo em favelas (Ref 47)10, abordagens midiáticas têm a capacidade de
do jornal O Dia. influenciar a forma pela qual o turista percebe
As matérias veiculadas nas mídias inter- e descreve essas localidades. Nesse sentido,
nacionais, por sua vez, transitaram entre a se observou que nas entrevistas da RioOnWa-
divulgação do que era considerado como “o tch com turistas estrangeiros em Copacabana
melhor” do turismo em favelas, com desta- (Ref. 40) esses interlocutores expressaram
que para a matéria How slum tourism can be a suas impressões sobre a questão da violência
good thing (Ref. 05) do VICE, e também para associada a essas áreas habitacionais. Ao se-
“o pior” dessa atividade. Nesse contexto, críti- rem indagados se sabiam o que era uma fave-
cas à gentrificação causada pelo turismo foram la, estes responderam:
registradas na matéria da EuroNews (Ref. 01),
enquanto questionamentos sobre a ética da vi- “Eu acho que vi uma favela, talvez perto da
sitação de favelas foram apresentados no News Lapa? Acho que elas são para as pessoas pobres,
Australia (Ref. 02). Além disso, alguns textos, elas são perigosas. Eu não fui a uma e não iria”
Werner, 47, Áustria.
vídeos e imagens foram apresentados em ou-
tras matérias analisadas (Ref. 23, 25, 31, 37, 39 “Favelas são o que poderíamos chamar de gue-
e 44) abordando o que significa uma favela e to nos Estados Unidos. Elas não são seguras, são
ressaltando o conteúdo exótico dessa realida- comunidades pobres. Eu queria fazer um tour,
de brasileira. porque não é, obviamente, o que todo mundo diz
Uma imagem claramente pejorativa, asso- que é. Eu quero visitar uma favela, acho que seria
ciada à violência nesses lugares, foi também interessante” Juan, 28, e Sam, 28, EUA.
veiculada pelo DailyMail (Ref. 22), que sugeriu,
ironicamente, que ao se hospedar nas favelas, “Eles dizem que é muito perigoso, mas honesta-
mente eu acho que seria bom visitar [...]. Eu não
o turista poderia ter uma experiência autêntica
sei exatamente como isso funciona, mas eu ouvi
do Rio, “incluindo os tiroteiros” (sic). O jornal que elas foram pacificadas, então eu acho que isso
Miami Herald (Ref. 28), por sua vez, afirmou, significa que elas estão seguras. Você sabe qual
também em tom sarcástico, que “no Rio os favela seria mais segura para nós visitarmos?”
bandidos correm pelo ouro – e outros bens de Jimena e Michal, Argentina.
turistas”, apresentando, inclusive, entrevistas
com jovens moradores de favelas que admi- Esse breve extrato de alguns dos muitos
tiam se aproveitarem do contexto das aglome- trechos reproduzidos pelo RioOnWatch ilus-
rações para a prática de pequenos furtos. tra como a favela é percebida, quase sempre,
A forma como a violência é ressaltada por como um espaço de pobreza e violência, mas
embaixadas europeias foi traduzida na maté- que, enquanto muitos consideram este contex-
ria “O que governos europeus dizem a cida- to como um impeditivo para uma visita, outros
dãos que vão ao Rio” (Ref. 17). Foi menciona- avaliam esse quadro como uma oportunidade
do, nesse contexto, que embaixadas da Itália, para a experiência e imersão na alteridade.
Suíça, Espanha e de Portugal, entre outras, Outra enunciação recorrente na cobertu-
vinham advertindo, em seus sites oficiais que ra analisada foi a do turismo como “safari”.
a violência no Brasil poderia ocorrer em qual- O reconhecimento desse viés negativado de
Foi realizada entrevista com uma das fontes da matéria para compreender porque era apresentado por ela um panora-
10
ma diferente das demais. Ficou claro que os dados foram interpretados pela mídia com algumas imprecisões dentre as
quais, a denominação de “empregos” para postos de trabalho temporários e informais, além da divulgação de números
de um período de tempo superior (pré-Olimpíadas) como se fossem relativos apenas aos dias dos Jogos Olímpicos.
interpretação sobre esse tipo de turismo se ex- mas incluiu, ainda neste rol, os asilos, já que
pressou na fala do guia da Favela Santa Marta: em uma sociedade tão ocupada e produtiva é
“há tours que buscam a miséria. São jeep tours muito desviante simplesmente “velhar”, como
que não pisam na comunidade. E como se a cunhou Guimarães Rosa (1992). Nessa mesma
favela fosse um safari na África” (Ref. 27, livre perspectiva, se poderia pensar sobre as fave-
tradução). É importante, nesse caso, que se las (lugares onde habitam pessoas com baixo
reflita sobre o risco que esse tipo de turismo poder aquisitivo) como espaços desviantes em
pode gerar de, ao invés de integrar e informar, uma sociedade de consumo. Também por esta
contribuir para a discriminação, como discu- razão, o “consumo turístico” nesses lugares
tem alguns autores de referência neste debate. é tão paradoxal. Por essa via reflexiva, para
Freire-Medeiros (2009), a grande polêmica e
Todas as formas de discriminação nada mais são o que imprime uma condição controversa ao
do que formas simplificadas e degradantes de re- turismo em favelas se relacionam, exatamente,
tratação do que é diferente, sendo esse processo aos códigos morais da cultura ocidental, que
provocado por imagens destorcidas do outro [...].
ditam que se deve evitar a relação entre prazer
Estas expressam o sentido de descriminação e as
dificuldades de vivenciar a diversidade, a alte-
e pobreza.
ridade, como se o outro fosse o próprio inferno, No plano dessas contradições, o visto e o
parafraseando Sartre (Nascimento e Costa, 2015, não visto, o dito e o não dito tendem a influen-
p. 91). ciar os processos de tomadas de decisão dos
mais diversos atores e, consequentemente, a se
Por esse caminho, o temido “criminoso” ou refletir na vida cotidiana e na configuração do
“marginal”, fonte de apreensões da população lugar. Assim, os elementos de visibilidade e, a
da cidade e também dos turistas, pode se ma- enunciação, parecem contribuir para a confi-
terializar de forma preconceituosa na figura guração das linhas de força, como será discu-
do “favelado”, causando o que Jodelet (2001) tido a seguir.
denomina como “alteridade de dentro”. Esta
se refere ao caso daqueles que são “marcados (iii) Linhas de Força
com o selo da diferença, seja ela física (cor,
raça, deficiência, etc.) ou ligada a uma perten- Visibilidade e enunciação se complemen-
ça de grupo (nacional, étnico, comunitário, re- tam e constituem, conjuntamente, o saber,
ligioso, etc.)”. Segundo a autora, essas pessoas uma ferramenta de poder e de manipulação,
estigmatizadas “se distinguem no seio de um segundo Foucault (2000). E é justamente a par-
conjunto social ou cultural e podem aí ser con- tir do saber que se articulam as linhas de força.
siderados como fonte de mal-estar ou de ame- Nesse sentido, as instituições de educação e as
aça” (Jodelet, 2001, p. 48). Nessa abordagem, a mídias de grande audiência são consideradas,
cobertura midiática pode, também, contribuir pelo autor, como vias de expressão de poder,
para a propagação de uma imagem estereo- na medida em que podem influenciar e mes-
tipada do “criminoso” ou de outros grupos mo moldar realidades e percepções, com base
marginais (Vogel, 2009), incluindo, nesse pro- na produção do saber. E esses poderes são
cesso, os próprios moradores de favela. múltiplos. Desde os mais convencionais, como
Muitas vezes as imagens estereotipadas as mídias, os governos e o mercado, até os mi-
desses lugares e pessoas se transformam em cro-poderes, exercidos em várias direções por
tabus e são, inclusive, camufladas nos textos pessoas físicas e jurídicas, atores singulares e
expressos pela cobertura midiática. Por isso, é coletivos, hegemônicos e marginais.
importante analisar quais são as interdições, No que se refere à composição de linhas
isto é, o que parece ser silenciado nos enun- de força, o Estado (nas esferas federal, es-
ciados sobre a favela. Nesse contexto cabe res- tadual e municipal e em todas as suas com-
gatar o pensamento de Foucault (2014) para petências; no executivo, no legislativo e no
quem a “palavra proibida” representa um sis- judiciário) representa um ator importante.
tema de exclusão do discurso. No plano da gestão pública, no caso brasi-
Ainda nesse sentido, Foucault (1987) men- leiro, no entanto, o turismo tem sido tratado
ciona como espaços desviantes na sociedade, de uma forma predominantemente liberal,
os lugares que abrigam tabus e questões que sendo compreendido frequentemente como
não se quer ver nem debater. O pensador rela- uma atividade econômica de mercado, com
cionou os hospícios, os conventos e as prisões suas próprias forças de regulação. Contudo,
como os principais espaços com esse perfil, as inúmeras críticas relacionadas, especifi-
camente ao turismo em favelas, nos moldes Além dos conhecidos jeep tours, uma outra
mercadológicos de “safaris” e “zoológicos”, consequência da atitude liberal do Estado nas
parecem ter influenciado uma ação do Poder favelas tem sido o aumento do custo de vida
Legislativo do Rio de Janeiro. Na busca pela e a gentrificação. A matéria da CBC (Ref. 30)
regulamentação dessa alternativa na cidade, reforçou, por exemplo, o impacto dessas mu-
evitando que a atividade beneficie apenas danças da dinâmica urbana, a partir da pers-
agências de turismo em formatos que des- pectiva de uma moradora e empreendedora
respeitam os moradores locais, foi proposto do Vidigal. Ela afirmou que “aqui virou outro
em dezembro de 2015, em âmbito estadual, lugar, o preço de tudo subiu” se referindo, so-
o Projeto de Lei Nº 1599/2015 que cria Áreas bretudo, à alimentação e ao aluguel, condicio-
de Especial Interesse Turístico em 20 favelas nado por uma forte pressão advinda da espe-
do Rio de Janeiro11. O diário produzido por culação imobiliária.
um jovem jornalista da Rocinha para o The Outro aspecto importante a ressaltar nessa
Guardian (Ref. 16, tradução livre) traduz uma reflexão é o papel da mídia na configuração de
impressão favorável a essa iniciativa: linhas de poder no debate sobre a favela e seu
uso turístico, quando esta determina os atores
Os operadores de turismo tratam as favelas como que têm voz. Por exemplo, o jornal britânico
zoológicos, mas isso deve terminar em breve. The Guardian priorizou a perspectiva de uma
Uma proposta de lei para reformar os “safaris moradora da favela, que criticou o “muro da
tours” foi proposto à câmara pelo vereador Célio vergonha”, conforme apresentado previamen-
Lupparelli, que afirmou que as visitas são agen-
te, quando foram analisadas as curvas de visi-
dadas por empresas de fora da favela que dão pou-
ca atenção aos aspectos culturais, históricos e ar-
bilidade (Ref. 16). Em contrapartida, com rela-
tísticos da comunidade. Ao contrário, os turistas ção ao mesmo caso, o Portal G1 (Ref. 06), das
apenas focam na degradação, pobreza, violência e Organizações Globo, destacou a perspectiva
miséria e partem sem nenhuma interação com a do poder público, este representado pela voz
cultura local. do secretário municipal de turismo:
Figura 5. Fotografia de protesto de moradores contra as UPPs nas favelas - Pacificação sem opor-
tunidade e educação é como apagar o fogo com gasolina. RioOnWatch (Ref. 38)
Figure 5. Photograph of residents protesting against the UPPs in the favelas - Pacification without
opportunity and education is like putting out the fire with gasoline. RioOnWatch (Ref. 38).
11
“O presente projeto é fruto da construção democrática que uniu, por meses, guias de turismo das diversas favelas ca-
riocas, a Secretaria Municipal de Turismo, a RioTur, a Rede de Conexão de Turismo em Favelas (Contur), instituições de
pesquisa públicas e privadas e os técnicos deste gabinete na busca pela proposta que tornasse o turismo em favelas ins-
trumento de protagonismo social local, distribuição de renda para as favelas, união entre os cariocas e justiça social para
aqueles que realizam o turismo de base comunitária, sem prejuízos ao restante do mercado operador” (Câmara Municipal
do Rio de Janeiro, 2015). Uma proposta semelhante, a Lei 7884 foi aprovada em março de 2018: http://alerjln1.alerj.rj.gov.
br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/59c9d4f6aca1854c83258248005b0f60?OpenDocument.
Figura 6. Fotografia de jovens traficantes deixando um fuzil de lado para fazer uma oração com
o pastor Nilton em uma favela do Rio de Janeiro. Foto Felipe Dana/UOL.
Figure 6. Photograph of young drug dealers leaving a rifle aside to pray with Pastor Nilton in a
favela in Rio de Janeiro. Photo Felipe Dana/UOL.
Assim que começamos esse trabalho, eu já esperei co de drogas também contribui para a for-
por essa história de esconder a favela. Só que não mação de linhas de força, com grande influ-
existe isso, até por ser impossível esconder algo tão ência no processo de visitação das favelas.
grande, ainda mais no Rio, que tem tantas favelas
O turismo, nesse caso, representa uma ame-
[...]. As favelas do Rio sempre são vistas por quem
chega à cidade e já são tratadas por nós como ati-
aça para o tráfico, uma vez que gera movi-
vo turístico. Elas atraem a atenção de muita gente mentação de pessoas novas no lugar e dificul-
que vem ao Rio, principalmente estrangeiros. ta o discernimento sobre quem constitui, ou
não, um risco para as atividades criminosas.
A mídia tem, portanto, o poder de sele- As fotografias frequentemente registradas
cionar as linhas de abordagem e as vozes que pelos turistas também são interpretadas, por
serão ouvidas em cada caso e, muitas vezes, traficantes, como um risco e podem provocar
de direcionar o tom da informação veiculada. reações violentas do tráfico, como informa-
A manchete “Notícias negativas derrubam ram as seguintes matérias analisadas: Bandi-
busca por passeios em favela”, de uma matéria dos capturam turistas que fotografavam fave-
publicada pelo jornal Estado de São Paulo (Ref. la no Rio, da Revista Veja (Ref. 20); e Turistas
43), parece ilustrar esse potencial de influên- suecos são rendidos e levados para favela do
cia da mídia no próprio fluxo de turistas. Mas, Rio, diz polícia da Folha de S. Paulo (Ref. 21),
nesse caso específico, os motivos que levaram que apresentam essa complexa condição12.
à diminuição do número de turistas nessas lo- Tais matérias ilustram como a violência se
calidades não foi o debate ético sobre a exo- configura como uma linha de força relevan-
tização dos moradores, mas sim a dissemina- te nessa dinâmica. Durante as Olimpíadas,
ção do medo da violência e da transmissão do essa problemática não apenas afastou turis-
Zika vírus, segundo os argumentos apresenta- tas dessas localidades como impossibilitou
dos pelo jornal mencionado. a celebração de conquistas olímpicas, pelos
Mas é importante enfatizar que, para próprios moradores, conforme ressaltado em
além da própria mídia, o contexto do tráfi- uma outra matéria analisada:
12
Três suecos foram presos por traficantes por estarem filmando um panorama da favela no qual o tráfico estava inserido.
A polícia interviu, informada do crime pelo motorista do Uber que esperava os três turistas no carro, e eles foram liber-
tados sem ferimentos.
Muitos moradores da Cidade de Deus estavam caso analisado, tendem a moldar a identidade
comentando sobre a Rafaela Silva ter ganho a me- dos moradores das favelas perante a socieda-
dalha de ouro e estava acontecendo um intenso de e, diante de si mesmos. Nesse sentido, De-
tiroteio. Era ouro e tiro ao mesmo tempo. Então
leuze (1990, p. 158) esclarece que uma linha de
não teve nem como a comunidade se organizar
pra recebê-la lá com essa medalha (The Guardian
subjetivação “está pra se fazer, na medida em
– Ref. 16). que o dispositivo o deixe ou o faça possível”.
Esta representa uma “linha de fuga” na medi-
Ainda no âmbito da violência como linha da em que “escapa às linhas anteriores. O si-
de força, retratada pela mídia, é importante -mesmo não é nem um saber nem um poder.
resgatar que, como já apresentado, o fluxo de É um processo de individuação que diz res-
turismo nas favelas do Rio de Janeiro foi inten- peito a grupos ou pessoas, que escapa tanto às
sificado com a instalação das UPPs (Unidades forças estabelecidas como aos saberes consti-
de Polícia Pacificadora) nesses territórios, po- tuídos”. É, portanto, a constituição do sujeito
lítica esta iniciada em 2008. Há, contudo, seve- que se expressa em um processo de individu-
ras críticas a esse processo e aos seus resulta- ação (que pode ser singular ou coletivo), no
dos, conforme enfoque da matéria Rio 2016 é esforço de subtração das relações de força do
piada pronta – humor como resistência aos Jo- poder e do saber.
gos Olímpicos (Ref.38) sintetizado na Figura 5. Nessa perspectiva de subjetivação, nas ma-
Além do tráfico, questões de cunho religio- térias das mídias analisadas, nas quais os mo-
so nas favelas também se configuram como radores tiveram voz, foi possível apreender as
linhas de força, diretamente relacionadas com suas reivindicações por mais estrutura e me-
o turismo e a violência. Nesse contexto, se per- lhorias objetivas, mas foi expressa, também,
cebeu pela cobertura jornalística analisada que, uma clara demanda por reconhecimento sim-
algumas lideranças exercem um poder contra- bólico, pelo acolhimento e pela integração da
ditório que, ao mesmo tempo, pode contribuir favela à cidade, como ilustrado pela matéria
para conter e estimular a violência, ora pregan- do The Guardian (Ref.16):
do a paz e a irmandade, ora incentivando a in-
tolerância e o preconceito às religiões de matri- Moradores da Rocinha estão se mobilizando para
zes africanas (Geledes, 2014; BBC News, 2016). inserir o nome da favela na futura estação de
metrô que será inaugurada. O local está em fase
Nesse sentido, a Figura 6, a seguir, ilustra
final de obras, mas já foi batizado com o nome de
como religião e violência são questões fre- “Estação São Conrado”, de acordo com a Secre-
quentemente relacionadas a esses espaços. taria de Estado de Transportes. Nossa comuni-
Na matéria “Olimpíadas: fotógrafo retrata Rio dade acredita que a nomenclatura é uma questão
que turista não vê” (Ref. 11), jovens envolvidos de inclusão social e visibilidade ante à sociedade
com o tráfico de drogas nas favelas demons- [Desde que esta parte do diário foi escrita, uma
traram, por exemplo, grande respeito por um das entradas para a estação passou a se chamar
pastor que, segundo a reportagem, já foi tam- São Conrado-Rocinha.].
bém traficante.
Nesse caso, diante das informações siste- Esse tipo de reivindicação parece indicar
matizadas e até aqui analisadas, pode-se con- que os sujeitos moradores das favelas buscam
siderar que, todas essas linhas de força, isto é, visibilidade e reconhecimento. Mas em que
os poderes exercidos sobre as pessoas e sobre medida o turismo poderia ampliar ou afetar
os lugares, influenciam a representação des- essa visibilidade desejada? Claire Willians
sas pessoas e desses lugares, em suas identi- (2008, p. 486), em sua pesquisa sobre o perfil
dades e subjetividades. Mas em que medida do turista de favelas do Rio de Janeiro, salien-
os sujeitos sociais tendem a ser empoderados ta que, apesar das diferenças de perfis, “o co-
ou enfraquecidos nessas linhas de forças que mum a todos [os turistas] é o olhar e o jeito que
parecem ser exercidas pela mídia e, aparente- ele constitui relações de poder, distanciamento
mente, também pelo próprio turismo? e conhecimento entre quem vê e o outro exóti-
co que é visto”.
(iv) Linhas de Subjetivação Esse desejo de ver o outro (da parte do tu-
rista) parece mais claro na pesquisa de Freire-
Nesse jogo de luzes e sombras reforçado -Medeiros et al. (2013), segundo a qual, 90%
pelas curvas de visibilidade e enunciação, dos turistas estrangeiros entrevistados antes
nessas disputas de poder nas linhas de força, de um tour de favela no Santa Marta, no Rio,
vão surgindo as linhas de subjetivação que, no concordam que “conhecer outros modos de
vida” é a principal motivação para esse tipo de Quadro 1. Matriz síntese entre expectativas e
turismo. Mas esse encontro, segundo a autora, impressões pós-visita na Favela Santa Marta.
muitas vezes é mediado pela romantização de Chart 1. Synthesis matrix relating expectations
uma imagem idealizada. and impressions after tour in Favela Santa Marta.
13
A metodologia consistiu em pedir aos turistas que ordenasse as palavras de forma decrescente com relação às suas
expectativas minutos antes de chegar à favela Santa Marta. O mesmo questionário foi repetido ao final do tour e a com-
paração das 400 respostas antes e depois deu origem ao quadro apresentado.
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Ref Data Título das Matérias Jornalísticas
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02 News.com.au 05/05/16 The rise of ‘slum tourism’: an inappropriate new travel trend?
03 O Globo 10/07/16 A vida real das favelas para turista ver
Folha de São
04 12/07/16 Rio de Janeiro recebe maquiagem olímpica para os Jogos
Paulo
05 VICE 13/07/16 How slum tourism can be a good thing
Muro que separa Linha Vermelha de favela ganha painéis da
06 G1 13/07/16
Olimpíada
07 G1 13/07/16 PEGN - Favelas do RJ têm hostels para turistas estrangeiros
08 Estadão 16/07/16 Direto da Olimpíada
Will the Olympics offer Brazil a way out of crisis or add to its
09 The Guardian 16/07/16
burden?
Diário do Projeto gera impacto social nas comunidades cariocas com
10 26/07/16
turismo turismo
11 UOL 27/07/16 Olimpíadas: fotografo retrata Rio que turista não vê
12 Estadão 29/07/16 Turismo de inclusão social pelas comunidades cariocas
The
13 29/07/16 AirBnB brings Olympic tourists to Rio’s poorest áreas
Conversation
Business The 2016 Rio Olympics won’t have enough hotels for all of the
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Insider tourists, and now people are renting out favelas
Los Angeles Armed forces ‘pacified’ Rio’s slums, but as Olympics
15 31/07/16
Times approached, the gangs came back
‘The only Olympic legacy I see is repression and war’ - a year
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17 Carta Capital 02/08/16 O que governos europeus dizem aos cidadãos que vão ao Rio?
Protestos Anti-Olimpíadas no Rio na Véspera dos “Jogos da
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Longe do asfalto: roteiros para conhecer favelas do Rio de
19 Estadão 02/08/16
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20 VEJA 03/08/16 Bandidos capturam turistas que fotografavam favela no Rio
Folha de São Turistas suecos são rendidos e levados para favela do Rio, diz
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Paulo Polícia
EXCLUSIVE: The $11-a-night hotel in the heart of Rio’s
22 DailyMail 03/08/16 shantytown where Olympics fans will get an authentic taste
of favela life (sound of gunfire is complementary)
What Is a Favela? Five Things to Know About Rio’s So-Called
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Comida boa morro acima: onde comer nas comunidades
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Tourism Go on a favela tour. Though you probably won’t see ‘The City
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Miami At Rio Olympics thieves go for the gold - and other turist
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29 The Star 09/08/16 Guetto tourism means Rio’s favelas are go-to places: DiManno
Favela Chic’: Foreigners flock to lodgings in Rio’s poorest
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Apêndice 1. Continuação.
Título do
Ref Data Título das Matérias Jornalísticas
veículo
Video: ‘Slum tourism’ spreads in Rio favelas during Olympics
31 France 24 12/08/16
Games
Número de visitantes em favelas caiu até 90% nos Jogos, em
32 O Globo 13/08/16
comparação com a Copa
Para moradores da periferia proteção policial é apenas para
33 O Tempo 14/08/16
turistas
Turismo Olímpico nas favelas é 10% do obtido na Copa do
34 UOL 15/08/16
Mundo
Minist. do Turismo no morro: longe do asfalto, turistas visitam favelas
35 15/08/16
Turismo cariocas
Americanos constroem playground em favela do rio durante
36 G1 16/08/16
olimpíada
Business
37 17/08/16 Favela Tourism
Spotlight
Rio2016 é uma piada pronta: humor como resistência para os
38 RioOnWatch 17/08/16
Jogos Olímpicos
Arabian
39 18/08/16 In pictures: Favela tourism during the Rio 2016 Olympics
Business
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Diário do
41 19/08/16 Ministério divulga dados do turismo nas olimpíadas
Turismo
In Rio’s Favelas, Hoped-For Benefits From Olympics Have Yet
42 NPR 20/08/16
To Materialize
43 Estadão 20/08/16 Notícias negativas derrubam busca por passeios em favela
Archy Word The “Olympic” Tourism also reaches the favelas of Rio de
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News Janeiro
The Other Side of the Olympics in Rio — Evictions and
45 Ducor Sports 20/08/16
Tourism in Rio’s Favelas
Rio 2016 legacy: Brazil expecting post-Games tourism boost as
46 Rio 2016 21/08/16
Olympic visitors give seal of approval
47 O Dia 28/08/16 Olimpíada alavanca turismo em favelas
48 RioOnWatch 29/08/16 Social Media Campaing #StopFavelaStigma
Aumento do Turismo na Trilha dos Dois Irmãos Suscita
49 RioOnWatch 01/09/16
Preocupação no Vidigal