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Revista Semestral do Centro de Estudos Everardo Dias

Ano I N" 1 Maio de 1978

CARA A5IAD
Movimento Estudantil: E Agora?
Marx, Engels e os «Populistas Russos»
Gramsci e o Conhecimento Crítico
A Oposição e a Luta pela Democracia
A Classe Operária vai à Luta
Conteúdo

Apresentação
DebateV Conjuntura
Movimento Estudantil: E Agora? 5 Debate com a participação
das tendências Liberdade e
Luta, Caminhando e Centelha.
O Movimento Estudantil 42 Entrevista com o deputado
Visto de Fora Airton Soares, prof. Décio Saes,
padre Luís Roberto Benedetti
e um operário da oposição
sindical dos Metalúrgicos
de São Paulo.
Cara a Cara com 71 Comissão Editorial
o Movimento Estudantil de Cara a Cara
Oposição e Democracia no 84 Depoimentos de:
Brasil: A Hora das Decisões Alan Melo de Albuquerque
Carlos Henrique Escobar
Sydney Sérgio F. Solis

Artigos
Uma Estratégia de 98 Michel Thiollent
Conhecimento Crítico
A Classe Operária Vai à Luta: 105 Silvia I. L. Magnani
A Greve de 1907 em São Paulo

Documentos
Dos Caminhos para o Socialismo: 125 Introdução de
A Controvérsia entre Marx, Rubem César Fernandes
Engels e os "Populistas" Russos
Cara a Cara
Revista Semestral do Centro de Estudos Everardo Dias
Ano I — N.0 1 — Maio de 1978
Diretor Responsável Adalberto de Paula Paranhos
Conselho Editorial Adalberto de Paula Paranhos
Franceschina Vilardo
Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida
Márcia Maria de Paula Leite
Maria Silvia Duarte Hadler
Mônica Siqueira Leite de Barros
Ruy de Quadros Carvalho
Sydney Sérgio Fernando Solis
Wilma Keller

Redação e Administração Rua Rosa de Gusmão, 782


Campinas
Correspondência para:
Caixa Postal 1216
13.100 — Campinas — SP
Concepção Gráfica Claudia Zarvos
Composição e Impressão Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
Petrópolis, RJ

CARA A CARA aceita colaborações, mas se


reserva o direito de publicar ou não os artigos
espontaneamente enviados à Redação.
Os conceitos emitidos em artigos assinados
são de absoluta e exclusiva responsabilidade
de seus autores.
Apresentação

Estamos pedindo um aparte para intervir no debate político que


se processa hoje no interior das oposições no Brasil. Entramos na
luta com as armas que temos: a luta é pela democracia no seu
sentido mais profundo; nossas armas são a palavra, a crítica, o
debate.
Somos o Centro de Estudos Everardo Dias, formado originaria-
mente por alunos e professores universitários de Campinas. Apenas
isso, entretanto, não define nossa identidade. Somos, acima de tudo,
uma parte das oposições brasileiras que acredita que as conquistas
democráticas pelas quais aspiramos só podem ser produto da von-
tade e da ação dos trabalhadores organizados. Fazemos nosso, por-
tanto, um conceito de democracia que vai muito além dos usos e
abusos a que ela tem se prestado. Para nós a democracia, longe de
se configurar através de meras declarações de intenções, pressupõe
concretamente a supressão da opressão e exploração e a mais ampla
participação política das massas. Numa palavra, lutamos pela demo-
cracia do ponto de vista dos trabalhadores.
Sabemos que nossa identificação com esse ponto de vista não eli-
mina nossa identidade social — estudantes e professores que somos.
Apesar disso, procuramos orientar nossa prática numa perspectiva
voltada para os interesses fundamentais dos trabalhadores. Daí uma
revista como Cara a Cara, que tentará romper com a postura aca-
dêmica e se inserir no debate político. Abordaremos na seção Con-
juntura — que ocupará um lugar destacado na revista — os assuntos
colocados na ordem-do-dia em meio à luta pela democracia. A seleção
dos artigos obedecerá, acima de tudo, ao critério da relevância po-
lítica, seja nos debates de conjuntura, seja no levantamento crítico
de nossa história política, em especial da história política dos traba-
lhadores, seja nas matérias propriamente teóricas. Veiculando tam-
bém pesquisas produzidas na universidade, publicaremos indistinta-
mente trabalhos de alunos e professores na medida em que inte-
ressem ao esforço de compreensão da nossa realidade política, eco-
nômica e social. Reconhecendo as limitações próprias de um trabalho
como o nosso, nos daremos por satisfeitos se pudermos contribuir
para estimular o debate político e subsidir aos setores mais conse-
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quentes da oposição brasileira, buscando sempre direcionar as dis-
cussões para o alvo já apontado e dessa forma colaborar para des-
nudar o véu que mascara a realidade.
Neste número Cara a Cara põe em debate o ME., seus problemas
e suas responsabilidades, ao mesmo tempo em que promove a
discussão sobre a oposição e a democracia no Brasil, hoje. À parte
das questões conjunturais publicamos um artigo sobre a estratégia
do conhecimento crítico segundo Gramsci, que estabelece a relação
entre as questões teóricas e a prática política. Vem a seguir um
trabalho historíográfico sobre a greve de 1907 pela conquista da
jornada de trabalho de 8 horas, contribuição que integra a tentativa
de revisão da história política da classe operária brasileira. Fechando
a revista apresentamos parte da correspondência entre Marx, Engels
e os "populistas russos", documento inédito em português, de ine-
gável interesse para a discussão sobre os caminhos para o socialismo.
Estamos certos de que essa é a maneira — enquanto Centro de
Estudos — de intervir politicamente. Nossa experiência de trabalho
coletivo já nos demonstrou a importância da manutenção de canais
livres e independentes para o debate político em nossos dias. Em
outubro de 1976 os atuais membros do Centro de Estudos Everardo
Dias editaram um número especial da Revista de Cultura Vozes
que funcionou para nós como um balão de ensaio. Sua primeira
edição — 4.000 exemplares — se esgotou em apenas duas semanas,
o que nos animou ainda mais a desenvolver um projeto próprio
para a publicação de uma revista baseada nos mesmos princípios que
nortearam aquele trabalho inicial. O resultado é esta revista que,
como seu nome indica, pretende ser um canal aberto e independente
para o debate político, sem subterfúgios, sem mistificações, de frente.
Cara a Cara.
Conselho Editorial
Movimento Estudantil:
E Agora?

Com o objetivo de fazer uma avaliação da história recente do M.E.,


concentrando-se mais propriamente na análise do seu comportamento
em 77, e de apontar perspectivas que conduzam à superação dos
impasses com que ele se defronta, o Centro de Estudos Everardo
Dias promoveu dia 17 de novembro do ano passado, no IFCH/
UNICAMP, um debate sobre o tema Movimento Estudantil: E Agora?
Para tanto foram convidadas quatro das mais expressivas tendên-
cias, que cumpriram um papel importante justamente em centros
onde o MJE. acusou um ascenso em 77: Refazendo, Liberdade e Luta
e Caminhando, de São Paulo, e Centelha, de Belo Horizonte.
De início cada uma das tendências — com exceção de Refazendo,
que, apesar de haver confirmado a sua participação, não compare-
ceu ao debate — fez uma intervenção mais ampla na qual procurou
definir em linhas gerais sua posição em relação aos temas propos-
tos para a discussão. Em seguida abriu-se o debate entre as ten-
dências, observado o direito à palavra a todos os membros do audi-
tório. As discussões então travadas são aqui transcritas e refletem
os dilemas que o M.E. tem pela frente.
Pareceu, no entanto, à Comissão Editorial de Cara a Cara que
seria importante sabermos qual é a imagem que elementos ligados
a outros setores sociais fazem do MJS. Afinal de contas, muito se
tem insistido na necessidade de uma articulação orgânica entre o
M.E. e outros grupos e classes sociais que se encontram hoje na
trincheira das oposições brasileiras. Daí a matéria O Movimento
Estudantil Visto de Fora.
Entrevistamos Aírton Soares, deputado federal pelo MDB eleito,
em grande parte, com o voto de universitários, advogado de presos
políticos e, além do mais, elemento que participou ativamente das
lutas do M.E. em 68; Décio Saes, professor de Ciência Política da
UNICAMP, particularmente dedicado ao estudo das classes médias;
Luís Roberto Benedettí, padre da Arquidiocese de Campinas, cuja
ação pastoral é desenvolvida junto a bairros populares; e um ope-
rário da oposição sindical dos metalúrgicos de São Paulo.
Ao final, a Comissão Editorial de Cara a Cara pede um aparte e
intervém no debate. Não podíamos, de forma alguma, nos colocar
à margem das discussões. Cara a Cara com o Movimento Estudantil
expressa, sem meias palavras, o nosso ponto de vista.

Debate/Jemário
Apresentamos a seguir uma série de questões que se constituíram
no fio condutor dos debates:
I. O debate sobre as orientações políticas e a organização e direção
atuais do M.E. necessariamente remete ao entendimento de seu
papel ao longo da história brasileira. Nesse sentido o ponto de refe-
rência principal é sua atuação na década de 60, como movimento
de oposição e resistência ao golpe de 1964, considerando que ainda
hoje o M.E. privilegia a luta contra o regime instaurado e conso-
lidado no período 64/68. Daí surge a preocupação de analisar os
erros da orientação e da direção do M.E. naquele período, bem como
suas conseqüências práticas, e determinar até que ponto a situação
atual configura efetivamente um avanço.
Trata-se então de:
a) estabelecer uma comparação entre as características e as contra-
dições atuais do M.E. e as da década de 60, buscando avaliar, dadas
as perspectivas de agora, os avanços ocorridos;
b) precisar como as mudanças políticas e econômicas condicionaram
no pós-68 as alterações na linha de ação do M.E.
II. O papel especial que cumpriu o M.E. no avanço da oposição
brasileira na luta por liberdades democráticas coloca hoje para o
conjunto dos estudantes a necessidade da avaliação de sua parti-
cipação nesse processo, visando a ampliar a organicidade e a força
de seu movimento. Se, por um lado, se obteve como saldo positivo
dessa luta o início da organização e articulação de várias parcelas
da sociedade, por outro, quanto à articulação interna do M.E., aos
saldos positivos se sobrepuseram alguns impasses que devem ser
analisados e ultrapassados.
Constatamos que se verificou: 1) um afastamento crescente entre
as lideranças e o conjunto dos estudantes; 2) ao lado da criação
e reconstrução de entidades superiores (DCEs, UEEs), um desgaste
e esvaziamento das entidades localizadas. Isso se refletiu na dimi-
nuição da participação da massa estudantil nas últimas mobiliza-
ções, originando tuna tendência ao refluxo. Daí a importância de se
debater:
a questão da mobilização e da organização:
— Como combinar o processo de mobilização com o crescimento
organizativo do M.E.?
— Que importância se atribui, tendo em vista seus objetivos, a que
a participação da massa estudantil se dê num nível crescentemente
consciente? Que elementos determinariam a possibilidade da par-
ticipação consciente da massa estudantil?
— Qual o papel das entidades nesse processo (concepção da enti-
dade: entidade de massas x organização política)?
— Qual a significação e os limites das tendências?
— Como articular as reivindicações específicas dos estudantes com
as lutas políticas comuns a outros setores sociais?
III. Além disso, o ME. parece viver em alguns momentos o impasse
criado pela defasagem entre sua maior possibilidade de organização
e radicalização nas lutas e a de outros setores da classe média e
da classe operária. É necessário examinar as possibilidades de solu-
ção desse impasse, ou melhor, obter formas de articulação que, num
momento como o atual, abram caminho para o avanço do movimen-
to de massas como um todo, diminuindo o isolamento do MJS.
Assim propomos para a discussão:
a) Qual é o papel do M.E., hoje, nas lutas políticas que se dão no
interior da sociedade brasileira?
b) Que caráter deve assumir a aliança entre o M.E. e outros setores
sociais?
c) Como interpretar a mobilização de setores das classes dominan-
tes e seus representantes no sentido de reformar o atual regime?
Se essa articulação abre brechas para o avanço da oposição, como
aproveitá-las? Há possibilidades, na conjuntura atual, de que seto-
res da oposição sejam cooptados por um projeto reformista? Como
evitá-lo?
d) Como se posicionar ante a campanha pró-convocação de uma As-
sembléia Constituinte? Como encarar a perspectiva de formação de
um partido socialista?

Debate/ Intervenções
Centelha
Nós somos da UFMG, de Belo Horizonte. Nossa tendência, Centelha,
foi formada no início deste ano. Nós nos constituímos como tendên-
cia à época das eleições para o DCE. Entendemos que a tendência
no M.E. é uma forma de os estudantes que possuem uma posição
política mais ou menos comum buscarem se organizar para atuar
nesse movimento. Essa forma de organização que consideramos avan-
çada representa, a nosso ver, uma conquista do movimento de
massas, ou seja, à medida que o movimento democrático avança
as posições se explicitam, e em meio a isso é importante que aqueles
que têm posições mais ou menos comuns se organizem visando
uma ação definitiva e organizada nesse movimento.
Por outro lado, fazemos o possível, embora nem sempre o con-
sigamos, para que não se confunda tendência com entidade estu-
dantil. Achamos que é fundamental o fortalecimento das entidades
de base (DCEs, DAs, CAs, centros e grêmios). Não concordamos,
por exemplo, que se faça das entidades simples instrumentos de
manifestação das tendências. As entidades estudantis cabe organizar
politicamente o movimento, dando expressão única e coletiva às ne-
cessidades, interesses e contradições da massa estudantil. Elas repre-
sentam uma conquista dos estudantes (principalmente após a forte
repressão que se abateu sobre todo o movimento de massa em 68,
e particularmente sobre o M.E.).
A entidade estudantil deve congregar todos os estudantes, canali-
zar todos os níveis de participação. Para que tenha um papel agluti-
nador de força, é preciso que as entidades sejam representativas,
refletindo os interesses da maioria. Ora, todos nós somos estudantes,
eL sendo assim, vivemos e sofremos os mesmos problemas: a situa-
ção dos restaurantes, as péssimas condições de ensino, o avanço do
ensino pago, a situação de repressão política geral da sociedade
brasileira. Problemas comuns exigem soluções comuns. Mas, se os
problemas são comuns, são diversas as interpretações de suas causas
e diversas as soluções propostas. Ora, não somos uma massa homo-
gênea de pessoas que possui o mesmo grau de experiência política,
a mesma compreensão dos problemas e a mesma consciência deles.
Se a unidade repousa na existência de problemas comuns, ela se
faz necessária pela própria heterogeneidade política dos estudantes.
A chave da questão consiste em conseguirmos a máxima plurali-
dade nas discussões e a maior unicidade possível na ação. Apenas
dessa forma julgamos que uma entidade possa ser aberta e repre-
sentativa. Num processo de luta, de ação política, as diferentes ten-
dências e correntes políticas existentes podem e devem se manifestar,
cabendo aos estudantes — do modo mais amplo possível — decidir
sobre qual a visão mais justa. Somente assim podemos construir
um movimento sólido e firme que seja a expressão política do
conjunto dos estudantes, um movimento de massas. Somente assim
as entidades podem se transformar em órgãos forj adores da frente
única dos estudantes.
A partir daqui, vou esboçar rapidamente os princípios essenciais
de nossa tendência. Consideramos que o traço fundamental, hoje, na
sociedade brasileira é o avanço que as forças do movimento demo-
crático estão tendo. Esse avanço, no entanto, basicamente de setores
da pequena-burguesia, acompanhado aqui e ali de algumas manifes-
tações isoladas do movimento operário, deve ser relativizado na
medida em que saímos de um período em que as classes populares
perderam todas as suas conquistas democráticas anteriormente
acumuladas e em que a esquerda foi destruída. A tradição política
que se mantinha na sociedade brasileira acabou sendo esfacelada.
Temos, nesse contexto, um movimento de oposição que avança, mas
que avança de forma desigual, seja do ponto de vista político, ideo-
lógico ou organizativo. Isso se faz notar inclusive dentro do M.E.
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onde, por exemplo, São Paulo está à frente dos demais Estados, o
movimento secundarista não se manifesta, etc. Isto para não se falar
dos outros setores da pequena-burguesia e das classes populares.
Essa desigualdade se manifesta ao mesmo tempo em que o poder,
ou seja, o governo busca insidiosamente, através de uma série de
tentativas, isolar alguns setores dessa oposição, neutralizar outros e
inclusive ganhar alguns para o seu projeto de abertura política,
visitando a Igreja e fazendo uma série de pequenas modificações,
visando à institucionalização do regime, ou seja, à mudança na fa-
chada do regime autoritário, sem afetar de maneira alguma aquilo
que ele tem de essencial. Para nós é fundamental, no momento
em que se observa essa dispersão do movimento de oposição e a
referida tentativa do governo, definir as tarefas políticas que devem
ser cumpridas por nós para que consigamos unificar esse movimen-
to de oposição e apontar para os nossos inimigos. É nessa perspec-
tiva, por um lado, que levantamos a necessidade de definição de
um programa democrático. Apontamos, por outro lado, para a pers-
pectiva de lutarmos pela construção de uma Assembléia Nacional
Constituinte.
Por programa democrático não entendemos apenas tarefas eminen-
temente políticas. Democracia não significa somente conquista de
liberdades políticas e anistia. Significa igualmente a luta por outras
conquistas democráticas que incluem fundamentalmente a luta con-
tra os monopólios nacionais e estrangeiros, reforma agrária e tam-
bém a luta contra a superexploração do trabalho, que são os pro-
blemas essenciais da nossa sociedade. A oposição conseqüente deve
conseguir articular esses pontos para unificar as reais forças demo-
cráticas da sociedade, a fim de formar um bloco popular de oposição
sólido, ideologicamente homogêneo, com vistas a atingir o poder. A
proposta de Assembléia Nacional Constituinte vem nessa perspecti-
va. É bom que se diga, de passagem, que ela vem sendo colocada
até hoje na nossa sociedade de maneira incorreta. Existe muita
gente que ao defender a Assembléia Constituinte pressupõe a iminên-
cia da queda da ditadura. Nós achamos que nesse tipo de colocação
há um viés de ilusão de classe, ou seja, implica, por um lado, numa
superestimação do poder do movimento de oposição, hoje, e, por
outro lado, numa superestimação do potencial político transforma-
dor da burguesia nacional, seja ela o que for.
Acrescente-se que essa proposta, ao ser colocada na sociedade
brasileira, não toca em nenhuma bandeira econômica, ou seja, se
falamos numa Assembléia Constituinte livre, democrática e soberana,
como não vamos falar nas forças sociais que sustentam o Estado
autoritário? Como não vamos apontar aqueles que sustentam hoje
a ditadura no Brasil? Como não vamos dizer a quem devemos com-
bater, quais são os inimigos sociais, quais são os inimigos políticos
das forças de oposição? Essa colocação de Assembléia Nacional
Constituinte, que tem, é claro, como requisito a queda da ditadura
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e as liberdades políticas, deve ser articulada a um programa de-
mocrático. É na base desse programa, calcado naqueles quatro pon-
tos, que nós vemos a necessidade e a forma de conseguirmos a
construção do bloco popular. A proposta da Assembléia Nacional
Constituinte vem no sentido de unificar essas forças e apontá-las
para o poder. Não vamos cair naquela ilusão democratista de lutas
isoladas que não ultrapassavam o marco do resformismo liberal.
Vamos, isso sim, colocar a questão do Estado, a questão do poder,
a questão das formas de governo que garantam as conquistas de-
mocráticas, através da proposição da Assembléia Nacional Consti-
tuinte e através de um amplo espaço que essa proposição abre para
que todos quantos tenham idéias políticas agitem suas idéias.
A partir dessa definição achamos que o MJE. tem um importante
papel a cumprir na conjuntura brasileira. Importante, mas relativo:
ele é um movimento de pequena-burguesia, incapaz de por si só
derrubar a ditadura. Ele tem um papel a partir da sua constituição
enquanto movimento de massas, e não enquanto movimento de par-
cela da massa: buscar unificar essa oposição que existe hoje no
Brasil; buscar travar o combate ideológico junto aos setores de
pequena-burguesia; buscar desgastar o regime e fundamentalmente
buscar abrir espaços para a organização política dos trabalhadores
do campo e da cidade. As forças fundamentais da sociedade brasi-
leira são hoje os trabalhadores da cidade e do campo e seus aliados.
Nós, enquanto tendência, procuramos fazer com que o M.E., como
já falei, ganhe um caráter massivo e que atue junto aos outros
setores populares de diversas formas. A maneira de se fazer isso
não pode ser homogênea. Não se pode dizer, por exemplo, que o
método para organizar o conjunto da população são as grandes
mobilizações. É a própria desigualdade do movimento de oposição
no seu desenvolvimento hoje no Brasil que condiciona as formas
pelas quais nós vamos levar nossas bandeiras ao conjunto da socie-
dade. Grandes mobilizações hoje estão presentes de acordo com o
nível de organização e radicalização política do M.E. Mas pergun-
tamos: o método de ação política deve levar em consideração apenas
o setor mais avançado? Ou seja, o método de ação política não deve
combinar grande mobilização com pequena mobilização, conversa
política, comitê, luta específica, enfim, uma série de formas que
correspondam ao nível de organização, de consciência dos setores
que hoje compõem essa frágil oposição?
Estas são as colocações fundamentais que gostaríamos de fazer.
Achamos que a proposta de Assembléia Nacional Constituinte hoje
é importante. Achamos importante a unificação das diversas pro-
postas para, a partir daí, se desmistificar e colocar claramente quem
está no bloco popular e quem não está.

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Caminhando
Vou tentar abordar aqui algumas questões que foram colocadas na
pauta das discussões. Antes, porém, de analisar a situação atual do
MJS. — quais os saldos que ele teve, os problemas que enfrenta
hoje, etc. — é preciso ter claro, no entender de Caminhando, duas
questões anteriores que estão articuladas com a situação atual. For
um lado, o entendimento correto da conjuntura pela qual o país
passa, que evidentemente não é uma conjuntura que está aí por
acaso, já que está ligada a todas as questões estruturais da socie-
dade. Assim, a crise pela qual se passa hoje, embora não seja uma
crise geral das estruturas, tem raízes estruturais. Por outro lado,
o entendimento do caráter que o M.E. tem, qual é a do ME., enfim.
Em termos da situação conjuntural, num breve esboço de análise,
constatamos o seguinte: dadas as alterações dos problemas estrutu-
rais da sociedade brasileira, após o golpe que foi dado em 1964, o
movimento popular, as forças oposicionistas e populares (movimento
operário, movimento camponês, M.E. e assim por diante) entram
num prolongado descanso, num refluxo mesmo, numa fase de recuo
estratégico que se estende, em nosso entender, até 1974. Alguém
pode dizer: mas teve 1968 e tal. Mas para não se ficar fazendo
aqui arqueologia do M.E. e ficar desenterrando as coisas pelo bel-
prazer de desenterrar, depois voltaremos a esta questão.
De modo geral nós poderíamos caracterizar o movimento operário
até 1973-74 como vivendo um momento de refluxo. Após 1964 houve
um agravamento das contradições existentes na sociedade brasileira:
agravam-se as condições de vida da população; agrava-se a depen-
dência do país em relação ao imperialismo instaurando-se um go-
verno que é pró-imperialista; agravam-se as condições de vida da
massa trabalhadora da cidade e do campo. O agravamento destas
contradições, que incluem o esgotamento do regime instaurado —
principalmente após 1968, com a destruição total das liberdades de-
mocráticas, a implantação de uma forma de dominação burguesa
que prescinde das liberdades democráticas burguesas, implicando em
práticas terroristas contra a classe operária e demais setores popu-
lares — estas contradições todas não conseguem ser resolvidas pelo
regime. Este, ao invés de resolvê-las, pelo contrário, as agrava.
Diante dessa situação e do esgotamento do tão propalado "milagre
brasileiro", tem-se em 1974 uma votação expressiva do Movimento
Democrático Brasileiro — o tal voto de protesto que levou todo
mundo a votar no MDB. Qual foi a significação disso? Para nós
naquele momento ficou bem clara uma coisa: a total incompatibili-
dade, expressa a partir de então, entre os setores populares e o
regime implantado no pós-64. Toma-se evidente que não é mais
possível dominar neste país os setores populares utilizando estas nor-
mas gastas de parlamento castrado, sem liberdades democráticas e
assim por diante. O que acontece então? Todo o movimento popular,

H
que vinha numa fase de resistência prolongada tentando garantir
suas lutas parciais e isoladas, começa a ter um novo reavivamento
com o revigoramento das lutas operárias, das lutas populares. E ne-
las, despontando como principal setor da oposição, aparece o M.E.,
por não ter sido tão atingido pela repressão, embora pareça até
cômico falar nisso porque ele também foi atingido. Esse momento
que se vive de 1974 para cá é o momento em que estão criadas as
condições minimas para o desenvolvimento rápido do movimento
popular. É um momento em que estaríamos em transição entre aque-
la fase em que estávamos — tanto o movimento popular como o
M.E. — simplesmente em resistência, apenas garantindo nossas lutas
específicas e parciais, e a fase de uma contra-ofensiva. É a transi-
ção para esse novo momento que virá, no qual acreditamos, haverá
uma articulação da oposição como um todo. A nosso ver há possi-
bilidades da articulação do próprio movimento operário através de
lutas que começam a despontar, como, por exemplo, a luta dos
metalúrgicos pela reposição salarial relativa ao ano de 1973.
Esta é a nossa visão, num breve esboço, da conjuntura, no que
se refere à situação do movimento popular. Do lado das classes
dominantes, a própria questão sucessória, em meio ao acirramento
da crise econômica, tanto nacional como internacional, deixa claro
que as diversas frações da burguesia não conseguem mais conciliar-
se entre si, formular um projeto que pelo menos seja amplamente
hegemônico entre todas as frações dominantes e capaz de unificá-las
e, portanto, capaz de fazer com que o regime aqui instaurado con-
tinue existindo impunemente. A briga toda das classes é por ter um
mínimo de modificações no governo que garantam a essência do
regime, mas mudando a sua fachada. É por isso que surge a possi-
bilidade de um candidato civil à presidência da República, a restau-
ração do habeas-corpus, menos para os "terroristas", e assim por
diante. Nada disso vai implicar numa modificação essencial do regi-
me, mas são as formas que encontram atualmente as classes domi-
nantes para contornar a crise que aí está traçada.
Com relação ao papel que achamos caber ao ME., entendemos
que ele aspira por coisas mais profundas do que simplesmente a
luta pela democracia política. Democracia política, hoje em dia, al-
guns mais outros menos, todo mundo fala disso. Frações mesmo da
própria burguesia liberal chegam a dizer que estão interessadas na
democracia, que é necessário que se tenha anistia, e alguns até falam
em anistia ampla e irrestrita, em Assembléia Constituinte, que é
uma bandeira de luta capaz de unificar os diversos setores populares,
etc. Enfim, essa é a lenga-lenga toda de frações da burguesia liberal.
Agora, o M.E., no nosso entender, aspira por coisas mais profundas.
Aspira por várias daquelas coisas que foram tocadas pelo compa-
nheiro de Centelha. Aspira, por exemplo, pela solução dos problemas
referentes à universidade, à democratização e melhoria das condições
de ensino. Mas isso está ligado à melhoria das condições gerais de
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vida da população. Ora, como é que se vai melhorar as condições
de ensino da universidade, como é que se vai democratizar a uni-
versidade se não se consegue a melhoria das condições gerais de
vida da população brasileira? Por sua vez, a melhoria das condições
de vida está ligada à questão do fim dos monopólios, da expulsão
do imperialismo, da resolução do problema agrário, e assim por
diante. Daí que o ME. aspira por transformações que são do inte-
resse dos diversos setores populares.
Quanto às transformações democráticas, ou mais especificamente
relativas à democracia política, elas compõem uma frente de oposi-
ção um pouco mais ampla do que a composta pela fração popular,
na qual entram o MJE., o movimento operário, o movimento campo-
nês, artistas, intelectuais, e assim por diante. Então o M.E. tem que
saber combinar tanto o seu caráter democrático quanto popular,
porque ambos não se contradizem, não são coisas estanquizadas.
Cabe às direções estudantis lutar para que se privilegie o seu ca-
ráter popular.
Nesse sentido, no que diz respeito à maneira de como levar as
lutas do ME., convém esclarecer a nossa posição. Na pauta das dis-
cussões que recebemos se aponta: a existência de um afastamento
do conjunto dos estudantes em relação às lideranças, um esvazia-
mento das entidades localizadas e um descompasso entre o processo
de organização geral do MJE. (recriação de UEEs, de DCEs e tal)
e o fortalecimento das entidades localizadas, ou seja, das entidades
de base. Por que existe isso? Em primeiro lugar, achamos que o
M.E., apesar de ter tido um grande avanço este ano — e teve mesmo,
porque se formos fazer um balanço, de cara, sem dúvida, veremos
que não se vive nenhum momento de refluxo ou de enfraquecimento,
e sim um momento de fortalecimento do ME. — teve como ques-
tão principal o momentâneo abandono, a momentânea falta de pre-
ocupação das direções estudantis com a aplicação correta de uma
linha de massas, de ligação entre o conjunto de estudantes e as
lideranças.
O que significa isso? Significa, por um lado, que não devemos
levar para o conjunto dos estudantes propostas prontas que vão
sendo autoritariamente colocadas para a massa estudantil, para quem
não resta outra alternativa a não ser optar por uma ou outra pro-
posta política. Achamos que a massa estudantil deve participar do
próprio processo de elaboração das propostas. Não há nenhuma
contradição entre isso e o fato de que o MJE. deve ter uma direção
política clara e definida. A construção dessa direção é uma coisa
que se dá através do processo democrático de ligação entre as
massas e as direções. Por outro lado, o esvaziamento das entidades
localizadas está não só ligado à questão acima apontada, bem como
a uma falta de visão correta de como se reconstrói o movimento
geral. O movimento geral não deve caminhar para a sua reconstrução
simplesmente abandonando as entidades localizadas, como se ao re-
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construir as entidades tipo UEE, DCE, as entidades localizadas, como
Centros Acadêmicos, Centros de Estudos e, em determinados mo-
mentos, até Diretórios Acadêmicos, perdessem essas funções. A par-
tir do momento em que se reconstroem as entidades maiores, as
entidades menores passam a ser e devem ser o próprio suporte das
entidades maiores. Mas elas não podem querer trabalhar como se
trabalhava antigamente através da organização dos estudantes em
suas lutas específicas, nas lutas de cada escola, como se aos centros
e diretórios acadêmicos competisse lutar por apostilas, por tirar o
professor autoritário, e ao DCE, à UEE coubesse lutar pelas questões
gerais. Achamos que as questões gerais e as questões específicas
devem ser tratadas conjuntamente.
Com relação ao problema questões gerais/questões específicas, en-
tendemos que é uma falsa dicotomia achar que existe uma contra-
dição entre os "problemas econômicos" dos estudantes — que estão
focados principalmente na luta por melhores condições de ensino,
pela democratização do ensino e pela universalidade democrática —
e a luta pelas liberdades democráticas, pela democracia política, pela
Constituinte, e assim por diante. Achamos que a luta por melhores
condições de ensino está totalmente ligada às lutas por melhoria
das condições de vida e trabalho para toda a população. A luta
contra as sobretaxas, a luta contra o aumento de preço das refeições
devem ser colocadas numa perspectiva popular, ou seja, numa pers-
pectiva contra a carestia e por melhores condições de vida.
Quanto ao papel das tendências, esta é uma questão embananada.
Geralmente se coloca que as tendências devem ser a forma de orga-
nização dos estudantes que têm uma visão mais ou menos comum,
etc. Para nós isso é mais ou menos escamotear o problema. Acha-
mos que as tendências vão um pouco além disso. Elas não surgem
espontaneamente, se bem que em determinados momentos possam
até surgir. Elas estão ligadas a todo um processo de luta de classe
geral que existe dentro da sociedade. Então é uma falsa questão
você dizer que se deve tratar todas as tendências como se fossem
uma forma de organização espontânea das massas, como se qualquer
forma de organização que surgisse fosse uma tendência. A nosso
ver, deve-se colocar bem claramente qual o papel das tendências
enquanto forma de organização política — tendências políticas que
organizam parcelas da massa, mas que o fazem com base em direções
que já existem, com base em propostas políticas que existem, não
dentro da universidade simplesmente, mas que são resultado da
luta de classes. E esta, como se sabe, não se dá simplesmente dentro
da universidade. Ficaria por aqui porque acho que no decorrer do
debate as coisas ficarão mais claras.
Liberdade e Luta
Liberdade e Luta é uma tendência nascida no processo de lutas
no interior do M.E. e que se baseia em alguns eixos fundamentais
14
de intervenção. O primeiro deles, que é uma questão de método, é
pautar nossa intervenção dentro do M.E. pela aliança com a classe
operária, ou seja, visualizar a questão da resolução dos problemas
estudantis a partir de um ponto de vista global e social em que
se procura determinar qual é a saída, no plano social, para as ques-
tões da universidade. A aliança operário-estudantil é um ponto básico
de organização da tendência Liberdade e Luta, não só na USP como
também em outras universidades. Outro ponto é a luta pela recons-
tituição da UNE, ou seja, a luta pela unidade política sindical do
estudantado. Esta luta faz parte de uma luta global do movimento
de massas no Brasil pela recuperação de suas entidades independen-
tes, pela centralização política das entidades e organismos de caráter
amplo como é a UNE, como é do ponto de vista operário, uma CGT
livre, e coloca portanto a necessidade de unidade das massas contra
a ordem burguesa na defesa dos seus interesses. Neste contexto, a
luta pelas liberdades democráticas é, em nosso entender, a luta que
alimenta a vida política do país neste período. E vai ser sempre
de importância fundamental num país atrasado como o Brasil, onde
uma burguesia socialmente débil é incapaz de garantir a democracia
para o conjunto da sociedade e onde as tarefas democráticas passam
para as mãos dos explorados e oprimidos que, no processo da luta,
arrancam conquistas democráticas que são trampolins para uma luta
mais abrangente visando solucionar os problemas de acordo com os
interesses da maioria da população.
Isto é Liberdade e Luta. Nós intervimos em vários Centros Aca-
dêmicos que desempenham um papel de certa relevância na recons-
trução do DCE da USP, na reconstrução da própria UEE aqui em
São Paulo e nos colocamos como uma tendência disposta a continuar
intervindo no ME.
Em relação às questões levantadas aqui no Temário, antes de
abordá-las, gostaria de fazer uma rápida introdução sobre o momento
político que vivemos hoje no Brasil e que, a meu ver, foi apenas
tangenciado pelos colegas anteriores. Eu acredito que a forma como
foi descrito o atual impasse político brasileiro é válida desde que
Geisel assumiu. A nosso ver, a situação hoje é um pouco mais
complexa: vivemos um momento em que todas as bases que justifi-
cam a existência da ditadura no Brasil estão extremamente corroí-
das pelo desenvolvimento da crise econômica e política. O que é
a ditadura e para que ela serviu é o primeiro ponto que devemos
investigar.
Em meio à crise do pré-64, a unificação de diversos setores bur-
gueses culminou no golpe de 64. O movimento de massa, apesar de
direções comprometidas, já chegava a ameaçar de fato, forçando
a derrubada dos setores burgueses que anteriormente falavam em
capitalismo independente, reforma agrária, etc. No momento em que
o movimento de massa começa a ganhar efetividade a classe do-
minante como um todo se aglutina e golpeia as massas. O período
15
de 64-68 é o reacomodamento das diversas frações burguesas ao
redor dos militares, em que se procurava dar uma feição definitiva
ao bloco original de 64. Nesse período há ainda uma resistência
do movimento de massas. As manifestações do período, partindo de
uma direção errada, são facilmente controladas pelo aparato repres-
sivo, e de 68 para cá se observa uma homogeneidade, digamos assim,
dos diversos setores burgueses ao redor do governo, que passa a
dominar dando todas as cartas. O período de 68-73 marca uma das
fases mais negras da História do Brasil, com repressão violenta e
acomodamento de diversos setores e interesses burgueses. Isso se
deveu à própria abdicação e intervenção política direta por parte
da burguesia, que aceita as regras do jogo e os dois pseudopartidos
da ditadura. A conjuntura internacional favorável de então permitiu
um crescimento tal que a divisão do bolo satisfez aos diversos inte-
resses burgueses. Associa-se, então, grandemente a economia nacional
ao imperialismo, processo que corre junto com o da monopolitização.
No front econômico a situação começa a alterar com a recessão
internacional de 72-73, que desequilibra o modelo econômico brasi-
leiro, bastante dependente do mercado externo e da importação de
capitais. Com a crise internacional, o milagre brasileiro se desinte-
gra, tomando-se o grande problema da tecnocracia dominante o fe-
chamento dos mercados. A situação econômica começa a criar con-
flitos íntraburgueses em tomo da definição de quem pagaria menos
pelos prejuízos e esses conflitos também se refletem no cenário po-
lítico. Surge assim o momento em que um setor da burguesia bate
o pé na mesa e pleiteia ficar com a melhor fatia, deixando o rojão
para os outros. Isso é impossível num tipo de regime baseado no
consenso entre os diversos setores da burguesia e na sua abdicação
e entrega do poder ao braço armado e à tecnocracia. A partir do
momento em que é quebrada a unidade burguesa pela crise econô-
mica, o governo começa a escorregar. A primeira tentativa foi a
distensão, que conseguiu iludir muita gente. Mas, devido à própria
inflexibilidade do regime, onde em última instância os militares
sempre dão a última palavra, a distensão deu com os burros n'água
e culminou no pacote de abril. Como se vê, data desse período as
primeiras preocupações do próprio governo para reflexibilizar um
pouco mais sua margem de manobra para compor com os setores
burgueses marginalizados pela crise econômica.
Mas, de lá para cá, muita coisa mudou. A distensão foi por água
abaixo. O governo não mostrou uma flexibilidade que conseguisse
comportar esses diversos setores burgueses e, mais do que isso,
como dado principal, temos que o movimento de massas consegue
se recuperar dos golpes do período anterior, ainda que de forma
lenta e por uma série de fatores, com maior evidência no M.E. Um
desses fatores é que o estudantado não desempenha um papel defi-
nido nas relações de produção. Façamos um rápido paralelo: uma
greve no M.E., numa escola, não significa um caos para a nação
16
como seria tuna greve geral operária que paralisasse o setor pro-
dutivo. Os estudantes, apesar de todos os golpes, conseguiram em
algumas universidades como a USP manter entidades livres e com
base nessa luta inicial de resistência montaram uma estrutura mí-
nima que permitiu um avanço posterior, que, aliás, não se explica
apenas pelo MJE. em si mas também por essa consideração global
que estou fazendo a partir da caracterização da crise intraburguesa.
Crise essa que começa a estourar as possibilidades de a ditadura
contemporizar com ela. Vejam bem, a ditadura tem dois partidos:
a ARENA e o MDB. Quem é que faz política nestes dois partidos
hoje em dia? Ninguém, a não ser o pessoal que propôs voto no
MDB. A própria burguesia, quando quis pressionar o governo em
termos de estado de direito e liberdades democráticas, sempre o
fez por fora dos partidos através de associações empresariais e sin-
dicatos patronais.
Hoje a grande polêmica nos meios intelectuais de esquerda, uni-
versitários, de oposição, enfim, é o surgimento de novos partidos.
Fala-se em PTB, PS, Partido Nacionalista, Partido Democrata Cris-
tão, e a ditadura continua a oferecer ARENA e MDB até novo pacote.
Hoje o movimento de oposição no Brasil sobrepassa em muito a
oposição oficial que é o MDB e o nega pela própria formulação de
propostas de novos partidos, negando dessa forma pela raiz a dita-
dura baseada num bipartidarismo totalmente controlado, num Con-
gresso fantoche com o poder de decisão exclusivamente nas mãos
dos militares e dos grupos de pressão mais próximos. No momento
em que a burguesia não está disposta a abrir mão do poder político,
como o fez em 64, para enfrentar o mesmo movimento de massas,
mas ao contrário toda a polêmica da classe dominante gira em tomo
da reforma do controle direto dos negócios políticos e econômicos,
é evidente que a estrutura partidária imposta pelo regime se decom-
põe. E se pode perceber esta decomposição pelo dia-a-dia dos
jornais: mil grupos de interesses na própria ARENA, que está caindo
pelas tabelas; é a ARENA de vanguarda de São Paulo em contacto
com a social-democracia na Europa; Brossard, do MDB, presente à
reunião da executiva da Internacional Socialista; o Partido Traba-
lhista, até um secretário do Governo Paulo Egídio está organizan-
do... Tudo isso mostra um processo de decomposição das formas
políticas que a ditadura oferecia, tanto para as classes dominantes
como para o movimento de massas.
O movimento de massas penetra em brechas abertas por essa
crise global. Não foi um lento trabalho de acumulação de forças
que teriam explodido de repente. O ME. se aprofunda numa con-
juntura de crise aguda da ditadura, o que não quer dizer que ela
vá cair amanhã ou depois de amanhã, mas que as bases sobre as
quais ela se assenta estão profundamente corroídas. E o MJS. se
aprofunda por estar mais organizado e consegue assim uma resso-
nância como a que teve agora. O que se deve, evidentemente, h
17
existência de direções que perceberam isso e foram capazes de
conduzir as lutas do M.E. através da discussão democrática e ampla.
Se estivéssemos na base da PEG (Política Educacional do Governo)
até hoje não haveria passeatas. Mas como conseguimos visualizar
a questão das liberdades democráticas, conseguimos visualizar a
questão central, hoje, para as massas, que se traduz na palavra
de ordem "abaixo a ditadura!", conseguimos sair às ruas e obter
ampla adesão popular e nos tornamos um dado importante na atual
conjuntura.
Essas questões gerais nos parecem muito importantes. Mas exis-
tem outros dados que independem, digamos assim, de uma análise
mais geral. Trata-se de saber, em primeiro lugar, que é que vai
substituir essa ditadura. São as massas? De forma nenhuma. A si-
tuação do movimento de massas no Brasil, hoje, não é a melhor
possível. A classe operária, que é o setor fundamental, não tem ao
menos sindicatos que possam ser chamados de sindicatos. Tem, isso
sim, agências estatais do Ministério do Trabalho que disciplinam a
classe operária, que são os sindicatos atuais. O ME., pelo seu peso
social, não é capaz de dar uma resposta global à crise que vivemos.
Então a coisa está mais para os setores da classe dominante que
estão em ruptura. É por isso que inclusive setores da classe domi-
nante levantam bandeiras de partido e a própria bandeira da Cons-
tituinte. E levantar a bandeira da Constituinte não é levantar qual-
quer palavra de ordem. Constituinte não é mais restaurante. Consti-
tuinte é uma palavra de ordem que sintetiza o conjunto das institui-
ções políticas de um país. É Constituição. É mudança da forma de
hegemonia burguesa no país. Quer dizer a preocupação da burguesia
neste momento é alterar a sua forma de domínio sobre a sociedade.
No entanto, um outro dado conjuntural importante é a existência
de um impasse muito grande do ponto de vista das classes domi-
nantes. Talvez exatamente por causa desse impasse é que a proposta
da Constituinte tenda a ter uma força maior no próximo período.
Não há nenhum setor das classes dominantes com um projeto claro,
definido e acabado com relação à redefinição das formas políticas
do país. A burguesia ainda está se movimentando no sentido de
encontrar esse projeto. Assim se explica, por exemplo, a discussão
em torno dos partidos políticos, a diferenciação que se está ope-
rando no interior das classes dominantes, cada qual procurando
onde se segurar depois da queda da ditadura. O PS, por exemplo,
não vai existir com a ditadura aí em cima. Mas já se especula nesse
sentido porque está se vendo que no próximo período está colocado
o problema da queda da ditadura. Mas ainda não há, digamos assim,
um setor da burguesia que unifique os demais setores ao redor do
seu projeto e pumba!... derrubou-se a ditadura. Existe um impas-
se, uma marcha lenta. A burguesia opera através de conchavos, ao
mesmo tempo em que cria partido pelo lado de fora. Intervém ainda
pelo MDB na questão da Constituinte, dá umas conversinhas com

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Portela, apesar de que o diálogo, cá entre nós, virou conversa do
Portela com a Sílvia Kristel, porque o diálogo não evoluiu um mi-
límetro, consultando todo mundo e não chegando a conclusão algu-
ma. Mas tudo isso constitui um dado importante: expressa um
impasse do ponto de vista da burguesia sobre de que forma se livrar
deste governo. Nessas condições a tendência, já que não há um
projeto unificador, é a proposta de a Constituinte ir tomando corpo,
talvez não agora no período imediato em que ela se esfriou um
pouco com a queda do Frota, mas num período de médio prazo
a Constituinte tende a ser a proposta que centralize os interesses
da própria classe dominante, porque ela é o plano onde vão ser dis-
cutidos os diversos projetos. Para que haja essa discussão é preciso
um espaço descongestionado, um espaço com uma certa liberdade
que permita às diversas frações burguesas organizar-se em partidos,
pois não há projeto sem partido.
E o movimento de massas? O movimento de massas, ao contrário
de ficar esperando a burguesia se definir, tem que desde já apro-
veitar as brechas que se apresentam, aproveitar a timidez, a covar-
dia, a pusilanimidade — sei lá o adjetivo que se dê — as vacilações
dos burgueses que estão contra a ditadura e avançar. Avançar com
palavras de ordem que nos parecem corretas como Constituinte.
Ora, qual é a questão central colocada para o movimento de massas
no Brasil, hoje? É a de se mobilizar pura e simplesmente? Não é.
Mobilizar por mobilizar, os anarquistas fazem isto desde o século
passado. A questão-chave colocada no movimento de massa é a
questão da organização. A classe operária no Brasil não completou
um processo de evolução de classe-em-si para classe-para-si. É uma
classe operária que não conseguiu ao longo de sua história ter um
partido operário de massa que a nível social colocasse uma alterna-
tiva própria. Uma classe operária que ainda não conseguiu se re-
cuperar da derrota que foi o sindicalismo pelego imposto pelo Go-
verno Vargas desde 1935.
E o que é a questão da organização para a classe operária?
Primeiramente, a questão da organização sindical e partidária. Para
isso é necessário conquistar um espaço democrático que ainda não
existe. Como unificar as diversas lutas democráticas que se dão
neste momento? Apontando para o Estado. As massas no seu mo-
vimento, seja na sua composição operária, estudantil ou intelectual,
devem ter um objetivo comum em relação ao Estado para não
permanecerem numa luta dispersa e setorizada. Aí a questão da
Constituinte é uma questão-chave porque ela concentra e sintetiza
as reivindicações democráticas, desde a necessidade de liberdade par-
tidária e sindical às questões como o problema agrário, o problema
do voto do analfabeto, o arrocho salarial, enfim todas as questões
levantadas pela crise política por que passa o Brasil, hoje.
Debates
Auditório — Novo Rumo: A primeira coisa importante, aqui já levan-
tada, que se deve ver com clareza, é que este debate tem uma
significação muito grande, pois se reflete um pouco sobre o que
está acontecendo neste segundo semestre, sobre a prática havida este
ano da parte do movimento popular e de massas, para iluminar
como vai ser nossa prática daqui por diante. Vem por aí um período
de férias e um novo ano que a gente prevê como de muita luta.
E é necessário ter claros os principais acertos da nossa prática
política para podermos fazê-la cada vez melhor e mais transforma-
dora.
A primeira questão que devemos enfrentar é a da caracterização
do momento em que vivemos. Quando se diz que estamos num
refluxo temos que ter muito cuidado em caracterizar a palavra re-
fluxo. Achamos que devemos partir de uma análise global da socie-
dade e ver que a tendência do momento não é o refluxo, mas sim
o avanço do movimento de massas. Estamos começando a ver o
processo em que a ditadura se desgasta, perde terreno e o movi-
mento de massa avança. Neste sentido a perspectiva é de avanço
e não de refluxo. O que estamos vendo — e muito — a nível do
M.E., hoje, é uma falta de eixo político, uma relativa desmobilização
que houve a partir da invasão na PUCSP. Mas ele de forma alguma
perdeu terreno, recuou ou enfraqueceu na sua organização. De for-
ma alguma estaríamos passando por um descanso à Ia 69. Pelo con-
trário, paramos e vamos continuar avançando. Paramos para pensar
e consolidar o M.E. e continuar avançando. Isto é muito importante
para que não pensemos que não temos mais força. Nossa força
continua e ela está aumentando. Este debate é uma prova disto.
Ninguém está pensando em se retirar, fugir e voltar para casa.
Uma questão importante neste sentido, levando em conta a pró-
pria correlação de forças hoje no Brasil, é a de caracterizar qual
é o governo que nós temos. A questão que se coloca para o conjunto
da sociedade é a questão da ditadura, ou seja, saber que espaço
o movimento de massas deve conquistar para atuar. Sob este aspec-
to, o que unifica o movimento de massas, quaisquer que sejam suas
posições ou setores, é a luta contra o regime, ainda que cada um
lute como pode, de acordo com sua condição. É aí que se situa a
questão da Assembléia Constituinte, que, para ficar bem claro, não
é simplesmente a solução final dos problemas da sociedade, e sim
uma luta que hoje pode esclarecer certos setores da sociedade na
medida em que coloca claramente o problema da forma de governo
e da ditadura e desde que tenha um programa — e isso para nós
ó muito importante — amplo e claro que inclua tanto a luta por
melhores condições de vida quanto a luta pela anistia, pela liber-
dade dos partidos e pela livre eleição da Assembléia Constituinte.
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Isso pode unificar o movimento de massas e conquistar para ele
um amplo espaço de organização.
No entanto, essa luta só pode ter sucesso se for levada de forma
independente pelo movimento. De uma forma independente que hoje
não existe, na medida em que se tem em termos de organização
política da sociedade os partidos criados pelo regime de 64: ARENA
e MDB. Como já foi dito, estes partidos da própria burguesia são
cada vez menos representativos dela. Dentro da própria ARENA
existem vários agrupamentos, assim como no MDB. O que se toma
cada vez mais claro é que para o movimento de massas está faltando
uma palavra de ordem que comece a colocar a forma de organiza-
ção política do movimento de massas na luta contra a ditadura, na
luta pela Assembléia Constituinte.
Temos que discutir a necessidade de se criar uma alternativa polí-
tica ao movimento de massas, ligando a luta pela Constituinte, pelas
melhores condições de vida, de ensino, à luta pela constituição de uma
alternativa politico-partidária para o movimento de massas. Trata-se
para nós, no caso, de lutar pela criação do PS enquanto partido
que tenha um programa independente em relação à própria burgue-
sia. Neste sentido, é muito importante, hoje, a reflexão sobre a
experiência passada do movimento de massas no Brasil, sobre o que
foi o PTB e as lideranças populistas, e sobre a necessidade da cria-
ção de uma alternativa forjada a partir das bases. Este partido teria
a função de colocar uma alternativa de independência para a pró-
pria Constituinte, dando uma opção àqueles que votam nulo ou que,
dentro do MDB, desejam alternativa mais conseqüente. Acho que
é importante que esse problema seja abordado neste debate, coisa
que ainda não ocorreu.
Centelha: Foi feita uma tentativa de comparação entre 68 e 77, como
está na pauta, e eu gostaria de colocar algumas coisas sobre isso.
Achamos importante lembrar que no pré-64 as massas estavam num
processo de mobilização, o poder do Estado burguês em desagrega-
ção, e isso culminou, sem querer fazer um paralelo mecânico, na
solução autoritária da ditadura. Assustada com o crescimento do mo-
vimento de massas, ela inicia um processo de repressão sistemática.
E a partir daí tem-se um processo de crescimento e cristalização
do capitalismo dependente cuja base é a superexploração do traba-
lho, a vinculação do capital internacional e uma forma de Estado
ditatorial. De 64 a 68 assiste-se a uma progressiva concentração de
renda em detrimento não apenas do proletariado mas também da
pequena-burguesia, assim como a uma concentração de meios de pro-
dução em prejuízo das pequenas empresas. Isso faz com que a pe-
quena-burguesia seja levada a sucessivos impasses num processo que
culmina em 1968.
O MJE., que ainda não tinha perdido toda a sua força organizativa,
vai às ruas e parte para um processo de enfrentamento, muitas ve-
zes físico, com a repressão. Num determinado momento, o ME. —

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não como um todo, mas especialmente através de sua parcela mais
consciente — não soube compreender especificamente seu papel so-
cial e de certa forma assume como sua a tarefa de fazer quase
que fisicamente o processo de transformações sociais. Houve inicial-
mente choques diretos com a repressão nas ruas que acabaram se
prolongando em confrontos armados com a formação de organiza-
ções de esquerda, a que se seguiu um período de intensificação de
repressão. A esse processo de não-compreensão de seu papel social,
de substituição das reais forças democráticas da sociedade e inclu-
sive da não-compreensão dos valores e interesses objetivos do con-
junto da massa estudantil, nós caracterizamos como vanguardismo,
ou seja, um processo político que não leva em conta o momento
social específico que se está vivendo.
Seria bastante mecânico tentar comparar 68 com 77. Agora, algumas
coisas devemos levar em consideração para fazer qualquer análise
política. Em primeiro lugar, trata-se de saber até onde consegue o
M.E. transformar a sociedade. Isso deve ser ligado à análise do sis-
tema político que existe hoje no Brasil. Falou-se aqui do caráter
ditatorial do regime e da sua constante e sistemática desagregação.
Deve-se ver isto com bastante cuidado. Realmente o que está acon-
tecendo é que existe um processo de diferenciação política no inte-
rior da burguesia. Mas isso quer dizer que o processo resultará na
derrubada da ditadura pela burguesia? O que nos pode garantir que
a dinâmica das contradições existentes na sociedade brasileira vai
levar a que haja uma derrubada da ditadura pela burguesia? Este é
um ponto que considero importante na medida em que essa análise
da forma de ser do Estado burguês pode influir inclusive na nossa
atuação junto ao movimento de massa. Por outro lado, abrindo um
parêntese, uma colocação para a qual se deve estar atento é aquela
sobre o que seriam as conquistas democráticas. É um erro, por
exemplo, dizer que as oito horas de trabalho ou o voto dos analfa-
betos, o voto das mulheres, a criação de partidos políticos, socia-
listas ou comunistas, foram dádivas da burguesia ao movimento de
massas. Pelo contrário, as conquistas democráticas foram conquistas
mesmo e nenhuma burguesia doou a democracia a nenhum movi-
mento de massas. Foi num processo longo, duro e prolongado que
o proletariado conseguiu fazer com que essas conquistas fossem fi-
nalmente obtidas. Ora, se vivemos num país onde a burguesia é
indigente, depende do Estado economicamente e para preservar a
ordem social que ela mesma criou, o que nos diz que a burguesia
vai abdicar não só do seu Estado autoritário mas também chegar
a ceder uma série de medidas democráticas ao bloco oprimido?
Para nós ocorreria o contrário. O que poderia fazer com que hou-
vesse uma desagregação da ditadura seria fundamentalmente o avan-
ço do movimento de massas e uma luta democrática mais dura e
prolongada, sem imediatismo, isto é, uma crescente organização do
proletariado e do campesinato bem como uma articulação do con-

22
junto do bloco oprimido. A partir daí é que se conseguiria forjar
uma força social capaz de imprimir à sociedade uma outra ditadura.
Dentro dessa perspectiva é que colocamos a questão da Constituinte.
Para nós a Constituinte é um instrumento forjador de um poder que
expresse os interesses da maioria oprimida. Quando defendemos a
Constituinte não se trata de barganhar uma taxa de democracia com
a burguesia. Constituinte é um processo de formação de um poder
da maioria, quer dizer, que expresse o ponto de vista dos trabalha-
dores da cidade e do campo, camponeses, estudantes, professores,
artistas, intelectuais. Igreja progressista, funcionários públicos e do
comércio, etc. Retomando a questão da queda da ditadura e partindo
do princípio de que o bloco oprimido não detém hoje conquistas
democráticas fundamentais, que ela deve arrancar da burguesia num
processo prolongado, não seria ilusão pensar que as contradições
existentes entre burguesia e ditadura não poderiam também culminar
numa saída autoritária?
Neste ponto é que surge a questão do papel social que deve
cumprir o M.E. Na medida em que se tenha uma visão de crescente
desagregação do poder burguês, de que a ditadura está estrebuchan-
do, não se passa ao M.E. a atribuir ao M.E. um papel político supe-
rior às suas forças? Será que à medida que isto ocorre não se começa
a fazer um M.E. que atinja mais de perto os interesses de uma pe-
quena fração, muito significativa e combativa, mas apesar disso cain-
do-se num desvio vanguardista? Ninguém é contra a mobilização.
O M.E. cumpriu um papel político fundamental neste segundo se-
mestre e podia inclusive ter feito mais. Neste sentido eu queria
tocar na questão do refluxo. Numa perspectiva de evolução política
do M.E., realmente nós não estamos num refluxo, mas, por outro
lado, o poder de mobilização do M.E. não é, por exemplo, aquele
poder do início do semestre. No conjunto das mobilizações não con-
seguimos combinar luta, mobilização e fortalecimento do M.E. pela
base. Isto não significa que o M.E. esteja desagregado, num beco
sem saída, mas que chegamos ao final do ano numa situação à beira
da exaustão de nossas forças. Então se colocam para nós as seguin-
tes questões: o caminho que o M.E. tem que seguir é apenas o de
um crescendo de mobilizações políticas? É isso que significa que
o M.E. está cumprindo o seu papel? É isso que é aliar-se aos traba-
lhadores como foi dito? O que significa o M.E. estar do lado do
bloco realmente democrático?
Auditório (1): Talvez pelo caráter geral das intervenções não tenham
ficado claras as diferenças de detalhe entre as posições apresentadas.
Mas uma coisa é essencial em toda esta questão e diz respeito às
lutas pelas liberdades democráticas. Eu gostaria que ficasse mais
explícito aquilo para o que se aponta exatamente a luta por liber-
dades democráticas. Com exceção da intervenção do colega de Cen-
telha, não me pareceu claro em que direção se deve fazer conver-
gir a luta por liberdades democráticas. Para ele, pelo que entendi,
23
esta luta deve fazer convergir para a construção de um regime de
democracia, democracia revolucionária, evidentemente, mas que se
configure, se institucionalize e que não só diga respeito a uma vaga
liberdade política, mas que se caracterize também plenamente no
campo econômico.
Para justificar esta questão, eu quero abordar algumas interven-
ções do colega de Liberdade e Luta sobre como sua tendência en-
tende a luta por liberdades democráticas, já que ela me parece cair
no equivoco, apontado pelo colega de Centelha, de considerar como
possível a concessão de certas instituições democráticas por parte
do governo burguês. Para mim é um equívoco histórico imaginar
que qualquer regime de democracia burguesa se tenha constituído
fora da luta de classe real. É imaginar, talvez, que a burguesia
tenha alguma vocação democrática. É imaginar que as suas revolu-
ções burguesas tenham assumido as formas democráticas que assu-
miram sem que o movimento de massas, em cada momento histó-
rico preciso, tivesse intervido. Acho muito estranho, além do mais,
que o companheiro, por exemplo, identifique a base do regime no
bipartidarismo e no Congresso-fantoche. Acho também que é sinto-
mático que ele, referindo-se à experiência de 68, aludiu a todo o
contingente da oposição brasileira que foi destruído, assassinado,
como se estivesse engajado numa brincadeirinha de trocar tiros
com a ditadura. Quem estava arriscando a sua vida em favor de
uma alternativa ao reformismo dominante de maneira alguma se
restringia a uma camada de vanguarda do M.E. Esta é tipicamente
uma crítica exterior de quem não íntervinha no processo.
Liberdade e Luta: Vou começar pelo fim. Tenho todo respeito pos-
sível por todo tipo de militância contra a ordem social e econômica
vigente. Outro problema, do qual não abro mão, é o da crítica a
métodos de intervenção. Acho que o método de intervenção de 68
realmente significou um período de extremo retrocesso para o mo-
vimento de massas como um todo. Está legal, é uma opção ao refor-
mismo? Certo, por ser uma opção ao reformismo. Baader Mainhof
também o é. Em termos de método de trabalho de massa, de alter-
nativa global colocada — porque é importante lembrar que o progra-
ma político do pessoal que se meteu no bang-bang era um programa
de governo de frente popular junto com a burguesia — era o mesmo
programa do PC, com método diferente. Em termos de militância,
de gente que morreu, de gente que lutou, total e irrestrita solida-
riedade. Mas, inclusive para que não venha a ocorrer desperdício
de militância no próximo período, temos que fazer a crítica. O re-
flexo que houve para o movimento de massas foi este: a política
tomou-se uma arte restrita à vanguarda. Mais do que isto, passou
a ser uma arte militar. Mais de uma vez se ouviam os argumentos
de que "não é hora de teorizar", "a teoria já está feita, o negócio
agora é operacionalizar a coisa", "a política se resume ao fuzil". Aliás,
saiu recentemente um livro. Em Câmara Lenta, que bem mostra o
24
ambiente da época. Naquele contexto a massa deixa de ser um dado
na discussão, sendo tratada com festão, bailão e era assim. Não
houve uma campanha política de peso no período em que havia
choque entre aparelhos na rua, ou seja, aparelhos de esquerda contra
aparelhos de Estado. Quem tem mais gente e mais armas ganha.
A política de massas foi abandonada nesse período e todas as con-
quistas posteriores do M.E. se deram porque isso foi revisto. Se não
se perceber que a massa não é para ficar aplaudindo, que ela mesma
tem que segurar o pepino na mão, não se avança um dedo.
Quanto à questão da democracia, consideramos que o grau de
democracia de uma sociedade está intrinsecamente vinculado com a
situação do movimento operário, do movimento de massas em geral,
no processo de luta de classes. Não existe burguesia democrática
desde 1789. O recente episódio de repressão ao conjunto do movi-
mento de massas na Alemanha mostra que mesmo nos países adian-
tados a tendência mundial da burguesia, neste período de imperia-
lismo, é arrancar as conquistas democráticas da classe operária.
Democracia está vinculada à classe progressivamente revolucionária.
Democracia hoje significa avanço da classe operária. Nós não temos
nenhuma ilusão de que a burguesia vai conceder ampla democracia
e assim por diante. Fizemos questão de ressaltar, em nossa inter-
venção, que o movimento de oposição dos setores burgueses à dita-
dura é um movimento de ziguezague, tímido e covarde, que joga
nos dois campos. Este é o método da burguesia, que vai tentar re-
formular este regime a frio. Ela quer impedir que o movimento
de massas intervenha com fisionomia própria nesse próximo período
de luta de classe no Brasil. Ela quer erguer o muro que a separa,
a ela, a suas brigas internas e à ditadura, de um lado, e o movimento
de massas atomizado, de outro, para mais tarde, através de parti-
dos burgueses, tentar disciplinar e canalizar o próprio movimento
de massas para pressionar, seja contra o governo, seja para barga-
nhar alguma coisinha com o imperialismo.
Outra coisa é a seguinte: pressionada pelo desdobramento das
lutas políticas, a burguesia não pode tomar outra atitude que não
seja a defesa incondicional do Governo Geisel. Neste sentido é im-
portante ressaltar o episódio Sílvio Frota. Por um lado, um dado
bom é o fato de que ninguém saiu para defendê-lo, isto é, do ponto
de vista das classes dominantes, ninguém esposou o seu projeto
golpista. Mas é importante também notar que ninguém saiu em
defesa de Geisel. Editoriais de jornais que têm sido cabeça-de-ponte
de setores burgueses em ruptura (Estadão, Jornal do Brasil) não
assumiram a defesa de Geisel, mas o ponto de vista de que isso
só acontece porque a coisa é inflexível, porque se o regime não
fosse assim isso não teria acontecido. Por sinal, o único manifesto
que saiu dentro das próprias Forças Armadas — e é importante
porque a saída de Frota significa pela primeira vez no pós-64 uma
clara e aberta ruptura dentro das Forças Armadas — foi o dos

25
coronéis integrantes do Movimento Revolucionário Democrático, o
qual opunha Castelo Branco, e não Geisel, a Sílvio Frota.
Voltando ao assunto anterior, a burguesia não vai derrubar a
ditadura mas ela quer uma passagem a frio, uma coisa palaciana.
Isso não interessa ao movimento de massas na medida em que a
indecisão burguesa aprofunda as brechas em que nós podemos pe-
netrar, abrindo uma margem maior para a nossa intervenção inde-
pendente e possibilitando que a gente não faça aliança com tudo
quanto é setor. Porque aliança implica em você sentar ã mesa, ceder
alguns pontos e receber alguns pontos de volta. Propomos frente,
frente com outros setores, isto é, uma mobilização pela Constituinte:
todos a favor da Constituinte, engrossando a mobilização (MDB,
OAB, padres, estudantes, etc). Preservando o quê? A nossa indepen-
dência. Vamos lá com as nossas faixas, com os nossos panfletos,
com a nossa palavra de ordem, procurando cavar nossa perspectiva
de solução para a crise e não deixar o auditório ao bel-prazer de
demagogos burgueses. Quem é que vai forçar então uma abertura
democrática, quem vai arrancar a Constituinte democrática? É o
movimento de massas por si só, com seus próprios instrumentos e
métodos de intervenção, que não são os métodos da burguesia (con-
chavos palacianos; entrar aqui, fuchicar ali, criar um partido dentro
de um apartamento). Nossos métodos são métodos de mobilização
direta e ação combativa. Acho que houve um mal-entendido na per-
cepção do colega, pois não estamos acreditando que a burguesia
vá usar métodos democráticos. Coisa diferente é que, pressionada
pela evolução de uma situação política, ela pode vir a se descartar
de uma forma de governo em favor de outra. Pode ser, embora
eu não aposte nisso, que, pressionada por fatores como a criação
de novos partidos políticos, avanço embrionário mas já presente
do movimento de massas, entrada dos trabalhadores na cena política
com a questão do reajuste, a burguesia venha a se desfazer do
regime através de uma conspiração palaciana. Mas uma coisa é
certa: não nos interessa isto. Nós temos que, apoiados na força do
movimento de massas, impulsionar ao máximo a luta por liberdades
democráticas em direção à Constituinte. Que significa uma Consti-
tuinte para nós? Constituinte para nós é abrir a perspectiva da
organização partidária para a classe operária poder acaudilhar os
demais setores da população em direção a um governo que expresse
o ponto de vista dos operários e camponeses. Liberdades democrá-
ticas para nós é isto.
Caminhando: Acho que foi bem apontado aqui que as conquistas
democráticas não são obtidas por dádiva das classes dominantes.
Não devemos ter a ilusão de que este regime vai cair simplesmente
porque, dada a atual forma de dominação das classes dominantes,
elas estão se degladiando e não conseguem ter um projeto hegemô-
nico ao nível de todas elas. Existe uma fração do capital financeiro
que na atual crise econômica cada vez mais procura defender apenas

26
seus próprios interesses, não sendo capaz de deixar nenhuma teta
de vaca — quês está cada vez mais magra — para as outras frações
burguesas também mamarem. Não é por isso, para que as classes
dominantes também possam novamente ser rearranjadas e montar
um novo governo, que a gente vai ter o fim da ditadura. Muito pelo
contrário, acho que este tipo de contradição por si mesmo aponta
apenas para uma mudança de fachada.
Por outro lado, não devemos ter a ilusão de que o regime só vai
cair quando existir toda uma alternativa popular composta e com-
pleta a este regime. Exemplos históricos não faltam para provar
que existiram transições de regimes ditatoriais para outras formas
de dominação burguesa mais ou menos suaves — não que sejam
suaves no sentido de que acabou a exploração, mas formas que
garantam um minimo de estabilidade para a dominação da burgue-
sia. Este é o caso da Espanha, de Portugal, Grécia e assim por
diante, que mostra que muitas vezes as ditaduras caem sem que
sejam substituídas por um governo popular, um governo da maioria
da população. Devemos ter bem claro que para a gente se trata
de arrancar o máximo possível de conquistas democráticas. Se con-
seguíssemos colocar como alternativa a este regime um governo
popular, de maioria, um governo que viesse como resultado de todo
um acúmulo de forças, conseguiríamos através de lutas que hoje
se colocam por melhores condições de vida e trabalho, além da
questão democrática que também está colocada, se conseguíssemos
isso, muito bem, é o que queremos. Não devemos, no entanto, ter
a ilusão de que esta é a única alternativa que possa acontecer.
Outro assunto que gostaria de comentar aqui é a questão demo-
crática quanto ao que foi aqui apontado, quase como pré-requisito
para a convocação da Constituinte. Acho que se comete um equívoco
muito sério ao se condicionar a luta pela Constituinte, a convocação
da Constituinte, que se corporifica basicamente, nas lutas pelas liber-
dades democráticas, a pré-condíções relacionadas com a expulsão do
imperialismo, à expropriação dos monopólios, à solução da questão
agrária, etc. No entender de Caminhando, não é a Constituinte que
vai resolver estas questões. Estas questões vão ser as condições
para a sua solução enormemente alargadas, enormemente facilitadas
em meio à luta pela Constituinte, na medida em que a Constituinte,
concentrando a luta pela democracia política, cria as condições mí-
nimas para que a classe operária tenha liberdade para se organizar
— organizar seus partidos, suas organizações de massas, seus órgãos
de poder — e dessa forma vai colocar uma alternativa ao sistema
e não simplesmente ao regime. A coisa então é muito mais longa,
é um processo muito mais penoso.
Tocando apenas de leve na questão dos erros de 68, eu acho que
é uma depreciação dizer que não se travavam lutas de massa. Havia,
isto sim, um privilegiamento da questão militar em detrimento da
luta de massa. Não é dando simplesmente exemplos, como se acre-
27
ditava em 68, que a massa vai atrás. Existe todo um processo de
educação politica das massas que deveria ter sido feito. No entanto,
eu creio que aqueles que erraram daquela forma estavam realmente
situados do lado do povo.
Sobre como colocar a questão das liberdades democráticas, hoje,
de que forma ela pode ter um conteúdo que interesse mais a classe
operária e os demais setores populares, eu acho que é levantando
com firmeza a bandeira da Constituinte que se consegue isso. Por
quê? Hoje em dia, como falei, o regime está apontando para solu-
ções^ paliativas. É evidente que o regime, o imperialismo, as diversas
frações da classe dominante não estão jogando com uma só carta
— por exemplo: não estão jogando somente com Figueiredo — mas
eles têm diversas opções políticas que se colocam dependendo da
atuação do movimento de massas, dependendo das conquistas que te-
nham sido arrancadas a cada momento. Então eu acho que o que
nos interessa, enquanto uma parcela do movimento popular como
um todo, é sustentar com firmeza a luta pelas liberdades demo-
cráticas apontando para o fim do regime. É dizer claramente que não
queremos modificações de fachada, não queremos um candidato mais
ou menos liberal do que o outro, mas queremos anistia total, o fim
total do regime.
Centelha: Acho que o colega de Liberdade e Luta peca ao fazer a
crítica menos desassombrada e mais galhofeira do período e da dire-
ção que teve o movimento popular no ano de 68. Devemos fazer,
sim, a critica desassombrada para procurar uma direção correta
para a luta dos oprimidos, hoje. Isso deve desembocar no reconhe-
cimento de que só a luta dirigida com as massas e pelas massas
pode romper definitivamente com a direção incorreta que a gente
viu no período de 68. O colega de Liberdade e Luta não vê no M.E.,
hoje, uma distância entre a direção e a massa, considerando que o
M.E. é feito apenas por uma parcela mais avançada e radicalizada
que até agora dele tem participado mais ativamente. O colega não
leva em consideração de nenhuma maneira o fato de que hoje todos
estamos sentindo, não um problema de refluxo, mas sim um esgo-
tamento ao nível das grandes mobilizações e da organização de
massa. Eu pergunto se não se estaria, por trás da galhofa, partindo
da aceitação desses pressupostos. Se aceitássemos que o M.E. é feito
por aqueles que dele participam, sem que as parcelas mais avança-
das procurem conquistar as massas, as bases, as parcelas dos estu-
dantes menos conscientes, não estaríamos de certa forma incorrendo
na mesma visão anterior? Trocando em outros termos, não estaría-
mos com os fuzis mas estaríamos com 100 quando poderíamos
estar com 10 mil?
Outro ponto que gostaria de comentar é que o questionamento
ao reformismo vem desembocar na busca de uma direção efetiva-
mente transformadora da luta democrática. É óbvio que a situação
hoje nos mostra que a ditadura se tomou uma forma inconveniente
28
e instável de dominação da burguesia. No entanto, entendo que seria
uma revisão inocente e reticente pensar que a queda da ditadura,
ao resolver o problema da burguesia, resolveria em grande parte
o problema do povo oprimido. É preciso que os oprimidos se colo-
quem neste momento muito adiante daquilo que a burguesia tem
como problema. Se hoje a ditadura é incômoda, inclusive para a
burguesia, é preciso acenar com uma forma de poder, com um poder
que interesse ao povo oprimido. Neste sentido, acho que a Consti-
tuinte, ao colocar a queda da ditadura, atinge em cheio a reivindica-
ção do povo oprimido. Mas a vida do povo oprimido vai além disso.
Creio que a luta pela queda da ditadura não pode estar desvinculada
da organização do povo oprimido, elemento fundamental na luta
que derrotará a ordem burguesa. Para tanto não se pode isolar a
dominação política da dominação econômica. Não compreendo que
a queda da ditadura passe ao largo da dominação econômica. É pre-
ciso, portanto, que o povo oprimido entre em cena questionando
não apenas o regime mas a ordem burguesa. É nesta perspectiva
que entendo a Constituinte, que deve, a meu ver, amarrar as mais
profundas aspirações do povo, que são, não apenas a queda da dita-
dura, mas também a solução dos problemas fundamentais da vida
dos trabalhadores, dos camponeses e, em parte, de setores da pe-
quena burguesia proprietária ou não.
Neste sentido, faço uma crítica ao modo como Caminhando coloca
esta questão. Para eles a bandeira da Constituinte e a luta pela
queda da ditadura devem também abraçar outras tarefas democrá-
ticas, que não chegam, entretanto, a ser explicitadas. Falou-se no
problema da terra, mas ao mesmo tempo questionou-se que a Cons-
tituinte seja vista como síntese da solução dos problemas econômi-
cos; questiona-se que se coloque a solução da contradição fundamen-
tal dos trabalhadores e dos camponeses como caracterizadora da
Constituição pela qual o povo oprimido luta.
Auditório (2): Não se pode comparar diretamente o ME. de 68 com
o de 77, a não ser que se procurem através da análise das respecti-
vas conjunturas políticas as determinações que articulam os diversos
grupos sociais — inclusive os estudantes — e que formam um de-
terminado quadro de forças políticas. No entanto, e sem pretender
esgotar o assunto, quero ressaltar duas questões de 68 e que podem
se repetir hoje. Refiro-me à relação Uderanças x massas e, ligada a
esta, a relação M.E.X demais setores sociais. Em primeiro lugar, não
devemos criticar o comportamento das lideranças de 68 de forma
autônoma, ou seja, como se não existisse naquele momento toda
uma conjuntura de crise, resultado de readequação do Estado aos
interesses hegemônicos da burguesia monopolista e que se traduziu
na política de Roberto Campos, com uma série de falências de pe-
quenas e médias empresas, com o arrocho salarial e a repressão
institucional. Não é de graça e muito menos pela atração mágica do
M.E. e de suas lideranças que na passeata dos 100.000 se viam inte-
29
lectuais, donas-de-casa, operários, funcionários públicos e pequena-
burguesia em geral, além dos estudantes. Portanto, não podemos
confundir os movimentos de massa de 68 com a fase militarista.
Esta se expressa no refluxo daqueles. E aí, sim, as lideranças co-
meçam a se afastar realmente das bases. A crítica ao militarismo
não se pode esgotar na sua expressão mais visível: as ações armadas.
O militarismo nada mais é do que uma das expressões do volunta-
rismo pequeno-burguês. Muitos se esquecem das tentativas de pene-
tração na classe operária de fora para dentro, através de elementos
(a maioria estudantes) qtte se deslocavam para dentro das fábricas
para "organizar" os operários. Este é apenas um exemplo do volun-
tarismo: o M.E. tentando imprimir artificialmente a sua dinâmica
aos demais setores sociais. Eu pergunto se hoje não se corre o
risco de repetir esse tipo de erro ao se atribuir ao M.E. tarefas de
"vanguarda" na luta democrática.
Auditório (3): Eu gostaria de colocar uma questão sobre o alcance
que poderia vir a ter a Constituinte. Os companheiros de Centelha
fizeram uma colocação no sentido de que a Constituinte não deveria
trazer apenas conquistas democráticas, mas tratar também da ques-
tão do Estado e da questão do poder. Falou-se de soluções para
problemas do povo brasileiro ou dos oprimidos. Eu perguntaria se
os colegas encaram a Constituinte realmente como uma etapa de
transição, uma alternativa ao poder burguês. Isto porque, quando
os colegas se referem a soluções para os problemas da classe ope-
rária ou do povo, acho que não as estão considerando dentro do
atual regime burguês. E também teria uma questão à colocação que
o colega de Caminhando fez ao se referir à Constituinte dizendo que
ela vai trazer conquistas democráticas, mas que não resolverá as
questões básicas da sociedade, tais como reforma agrária, imperia-
lismo, etc. Para mim esta posição de Caminhando se contrapõe
frontalmente às colocações dos outros companheiros. A meu ver.
Constituinte é, como já foi dito, uma palavra de ordem que unificará
os setores de oposição que existem hoje e que será uma alternativa
de governo no atual Estado. Eu não acredito que a Constituinte seja
realmente uma alternativa de poder. Ela é uma palavra de ordem
que ainda está dentro dos* marcos do regime burguês. Quanto ao que
o colega de Caminhando colocou, acho que não se pode afirmar a
priori que ela vai trazer ou não solução para os problemas aponta-
dos. Isso vai depender da relação de forças que se tiver instalado
dentro da Constituinte. Se bem que a solução deles, da forma que
interessa à gente, ou seja, extrapolando os marcos do regime burguês,
eu acredito que não se vá colocar.
Esta pergunta é pertinente porque muitos companheiros se valem
disso para argumentar contra a campanha pela Constituinte, afir-
mando que ela não vai trazer a solução para estes problemas já que
a classe operária está desorganizada, o movimento é fraco, não há
alternativa política independente e os sindicatos estão esvaziados. Isto
30
para mim é modificar o caráter que vai ter a Constituinte. Ela não
é uma etapa de transição de poder, mas será uma conquista demo-
crática que ainda estará dentro dos limites do regime burguês.
Caminhando: Creio que a solução das questões apontadas se dará
num governo de maioria, sob hegemonia operária e camponesa. No
entanto, pressupor que a instalação de uma Assemblélia Constituinte
depende da solução das referidas questões é ilusão. Se ela vai ser
instalada num momento em que estas transformações mais profun-
das sejam possíveis, isto depende de uma série de fatores ou da
correlação de forças nesse momento. Quando levantamos a bandeira
da Constituinte de forma alguma deixamos de tocar a questão que
remete ao Estado, além de não deixar também de tocar as questões
tais como o monopólio, da expulsão do capitalismo, da melhoria das
condições de vida e outras mais. Ninguém deixará estes temas de
lado para que a burguesia liberal tope uma Constituinte com a
gente. Não se trata disso, mas de que parte desses setores se aglu-
tinam em tomo da bandeira da Constituinte. Isto apesar das vacila-
ções que se percebem na maneira pela qual eles, dentro do M.E.,
dialogam com o governo, assumindo muitas vezes um caráter rea-
cionário. A burguesia nacional, se é que ainda existe uma parcela
dela, sempre teve um caráter vacilante. Em 64 ela foi francamente
traidora, aliando-se ao imperialismo. Entretanto, não temos a ilusão
de que a luta pela Constituinte não vai agregar esses setores. Ao
contrário, ela está agregando e isto é uma coisa que devemos apro-
veitar.
Centelha: Gostaria de sintetizar a questão do colega do auditório da
seguinte forma: nós estamos numa luta democrática, qual o caráter
desta luta democrática? A luta pela democracia é uma etapa pela
qual o processo de transformação social deve passar? No nosso en-
tender, a luta por liberdades democráticas de maneira nenhuma
pode ser considerada uma etapa.
A nossa colocação é de que a Constituinte tem como pré-requisitos
a ampla e irrestrita anistia, liberdades sindicais, etc, que significam
o máximo de democracia que uma república burguesa clássica pode
dar. No entanto, é ilusão pensar que a queda da ditadura por si
só vá levar à conquista da democracia. Em 1945, por exemplo, isso
não aconteceu: continuou havendo repressão sobre os trabalhadores
e a CLT não foi revogada. Dentro desses ideais democrático-burgue-
ses colocamos o máximo de democracia possível e acoplamos à
proposta de Constituinte o nosso programa que reivindica o con-
junto das transformações que achamos essenciais para que haja
uma transformação real, de peso, da nossa sociedade. Neste sentido,
o papel fundamental que cumpre a nossa proposta é o de apontar
quem sustenta a ditadura, quem são os nossos inimigos, quem nós
devemos isolar.
31
Não se trata, portanto, de conseguir primeiro uma forma de Es-
tado e acreditar que a partir daí nós vamos ter anistia, liberdade de
expressão, etc. Não. Isto vai ser conquistado dentro de um pro-
cesso global que se inicia desde hoje com lutas democráticas e lutas
por melhores condições de trabalho e de vida, contra a superexplo-
ração do trabalho, etc. Aí está por que não se trata de etapas, mas
de, colocando a questão do poder das liberdades políticas e as ban-
deiras econômicas, buscar a articulação do conjunto dessas tarefas.
Isto não significa reconhecer na Constituinte uma alternativa de
poder. A Constituinte é um dos instrumentos de que se deve utilizar
para se conseguir construir um poder proletário próprio na socie-
dade. Por outro lado, a gente não pode fazer política em cima da
previsão de que a ditadura possa cair ou não. A questão não é esta.
A tarefa principal hoje é a organização do pólo oprimido e a con-
solidação nele de uma consciência de classe realmente democrática.
Não é simplesmente organizar por organizar, uma organização vazia.
Entendemos que a organização passa pelos problemas comuns que
os oprimidos estão vivendo e passa pela consolidação de sua cons-
ciência de classe.
Auditório (3): A Constituinte pela qual o companheiro está lutando
seria uma Constituinte com maioria operária e camponesa. Você
pressupõe algumas regras fixas para que esta seja a Constituinte
pela qual está lutando. Não vê o caráter de aglutinação, de frente
com diversos setores, que é a situação que se tem hoje dentro da
luta contra a ditadura. O companheiro já vê a Constituinte, da
forma que coloquei antes, como uma etapa de transição para um
governo de ditadura da maioria.
Centelha: Realmente nós temos visões opostas de Constituinte. Um
dos objetivos de nossa proposta de Constituinte hoje é realmente
isolar a burguesia, que anda falando em democracia, como fala, p.
ex., a UDN desde 1945. Ela falou sempre em democracia e foi o
partido da burguesia que mais articulou golpes neste Brasil. Nossa
proposição de agitar também bandeiras econômicas, além da pro-
posta da Assembléia Nacional Constituinte, é isolar a burguesia para
solidificar um bloco de classes. Quanto à formação de uma frente
contra a ditadura para depois se desviar da frente, gostaria de
lembrar que a falência histórica da burguesia nacional foi basica-
mente demonstrada em 64. Que aconteceu em 64? Onde foi parar
aquela aliança de classe? Ou o proletariado entra de sola desde o
início, definindo para si a vanguarda e buscando a hegemonia no
processo de luta, aglutinando realmente aqueles setores de classe
que se interessam por uma transformação radical ou então o caráter
de uma aliança como esta pode levar muitas vezes a uma tragédia
política.
Auditório (3): A Constituinte de que estou falando aqui é uma frente
contra a ditadura. Aglutinaria todos os setores que estão hoje contra
32
a ditadura, indo desde os setores da burguesia nacional até a classe
operária. Isto não significa uma aliança, como o companheiro colo-
cou, mas uma frente contra a ditadura através de uma Constituinte.
Dela participa quem está com relação de forças suficiente para isso.
Os setores de movimento de massa (operários, camponeses, estu-
dantes, etc.) procurariam dentro dela ter a hegemonia, é claro, mas
eu não considero isto um pressuposto para lutar pela Constituinte.
Você não pode colocar de antemão que a classe operária vai ter
hegemonia. Da maneira como o companheiro coloca é como se es-
tivesse pressupondo tal hegemonia.
Liberdade e Luta: Queria chamar atenção para uma intervenção com
a qual concordei inteiramente e acrescentar mais um exemplo: um
fator de isolamento do ME. em 68 com relação ao M.O. não foi
só a questão do militarismo mas também a proposta que se colo-
cava para o M.E. Nessa época, todo mundo se encucava sobre a
forma de fazer uma universidade critica, uma universidade vermelha,
uma universidade X ou Y. A universidade era encarada como uma
série de segmentos estanques, sendo que a cada um deles caberia
fazer a transformação social dentro do seu setor. Isto estava muito
em voga e foi bastante prejudicial.
Quanto à questão do vanguardismo, quando nós caracterizamos o
M.E. como sendo os estudantes que se mobilizam, é isso mesmo.
Acho que não tem outra caracterização. No entanto, não se pode
criticar uma coisa que nós não dissemos, ou seja, que é proibido
aumentar o MJE. Ao contrário, a intervenção de Liberdade e Luta
tem sido sempre no sentido de ampliar o número de estudantes
que participam, fazem política, discutem, debatem, ainda que cir-
cunstancialmente. A gente tem proposta para todo mundo, e a base
para se levar adiante uma proposta desse tipo é o Centro Acadêmico,
entidade elementar de frente única. Frente única por quê? Porque
todo e qualquer estudante, independentemente de sua posição política,
ideológica, raça, cor, nacionalidade, se une em defesa de seus inte-
resses em tomo dessa entidade de tipo sindical. Outra coisa que
continuo achando meio falaciosa é dizer que o M.E. são todos os
estudantes. Ora, concretamente não são todos os estudantes. Isto
não quer dizer que a gente deva deixar de lado a nossa tarefa cen-
tral que é a de aumentar o MJE., fazer com que cada vez maiores
parcelas dos estudantes venham a combater politicamente em defesa
de seus interesses.
Agora queria chamar atenção para a intervenção do colega de
Caminhando que coloca uma questão bastante importante do ponto
de vista do método de intervenção, de concepção global do que
seja um processo de luta de classes e assim por diante. Isto pode
ter sido um escorregão, mas ele falou até em burguesia traidora,
quer dizer, uma burguesia que potencialmente era democrática e
deixou de ser, traindo a bandeira democrática. A nossa posição,
como já foi dito, é bem diferente desta. Para nós a burguesia sim-
plesmente abandonou as massas, passou para o lado da contra-
revolução e deu-lhes uma cacetada na cabeça, não se tratando de
nenhuma traição. A burguesia não traiu nenhum princípio seu ao
dar o golpe de 64.
Outra questão diz respeito ao governo de maioria. Que fetiche
é este de governo de maioria de que o colega fala? "Nós queremos
uma Constituinte de maioria, nós vamos apoiar um governo de
maioria..." Desse jeito o colega está com o Carter, que é um gover-
no de maioria. Não existe isto: Constituinte que vá dar origem a um
governo de maioria. Governo de maioria é a quinta-essência da de-
mocracia burguesa — 50% mais um é a maioria. Não existe isto
em política. Na Constituinte nós não devemos esperar um governo
de maioria que vá ser a solução dos nossos problemas ou pelo
menos a tal de ditadura democrática. Ditadura democrática é outra
coisa que saiu da boca do colega aí do lado. Ora, ditadura demo-
crática do campesinato e do proletariado não é um governo burguês
nem um governo operário, mas acaba sendo um governo de colabo-
ração da burguesia com o proletariado, portanto um governo bur-
guês, um governo de maioria, uma etapa que tem que se cumprir
em direção a um governo que realmente vá atingir os nossos objeti-
vos. É a isto que leva este tipo de análise. É a visão de uma etapa
em que um governo de maioria é ditadura democrática, governo de
composição de setores da burguesia com setores do operariado.
Quando o colega fala que não se trata de atacar a essência, ou
seja, o Estado, mas a forma, aí o método vem à tona totalmente.
Para nós não existe esta separação de forma e conteúdo no movimen-
to real da luta de classes. A classe operária quando se mobiliza não
o faz em primeiro lugar contra a forma — seja lá qual for ela,
ditadura, fascismo, etc. — para depois atacar o conteúdo, que é o
Estado burguês. A classe operária não faz esta distinção acadêmica,
forçada, entre forma e conteúdo. O próprio movimento não precisa
ser um movimento de ampla repercussão nacional. Pela própria in-
serção da classe no processo produtivo ela se coloca em movimento
contra a burguesia, contra o seu Estado, da forma como ele se
apresenta concretamente na situação da luta de classes. Ninguém
ataca antes a forma do Estado, a não ser essa corrente da filosofia,
para não dizer outra coisa: antes a forma do Estado e depois o
conteúdo. A classe operária na Espanha, quando se mobiliza contra
o franquismo, está se mobilizando contra a forma concreta que
assume o Estado burguês na Espanha. É o Estado burguês que é
o franquismo e não outra coisa, e por isso mesmo está se mobili-
zando contra o Estado burguês. Isto tem que ser apontado na sua
intervenção. Não existe uma forma para consumo, que é a ditadura,
e outra coisa escondida no plano das idéias, que é o Estado burguês,
a essência do Estado burguês, que iríamos atacar mais tarde. Não.
E esta é uma questão fundamental.
34
A Constituinte do colega de Caminhando acaba num governo de
maioria, numa ditadura democrática. Ele acaba fazendo uma dife-
rença abstrata porque na prática no movimento das classes, não
existe esta diferença entre a forma do Estado e o próprio Estado.
Não existe um Estado ideal hegeliano flutuando e a forma dele
aparecendo para a gente combater. O movimento é um só. Nós não
podemos quebrar a unidade do movimento. É por isso que na ques-
tão da Constituinte não podemos ficar nos limites da demagogia
pequeno-burguesa: que a democracia e blá-blá-blá. Na questão da
Constituinte temos que levantar o problema do arrocho salarial e
outros problemas que em última instância determinam o antago-
nismo de classe. Não temos uma política de num primeiro momento
juntar todo mundo e combater a forma, e num segundo momento,
quando a forma já foi por água abaixo, combater a essência, que
é o Estado burguês, já agora só os operários e camponeses. No pro-
cesso de luta democrática a burguesia também luta e fala de coisas
como "democracia", "estado de direito", mas não aponta para ques-
tões centrais, as questões materiais (que eu não chamo de questões
econômicas porque no século XX não existe esta distinção entre
o econômico e o político). As questões materiais que refletem os
antagonismos fundamentais entre as classes, estas têm que ser le-
vantadas. E onde vamos levantar estes pontos? Na universidade, nos
comitês pela Constituinte que vão existir e assim por diante, mas
principalmente e especialmente no programa de um partido operá-
rio independente que surja nesse processo de luta pela Constituinte.
Não existe uma só Constituinte em jogo. Historicamente, um mi-
lhão de Constituintes aconteceram de formas diferentes. Inclusive a
ditadura pode muito bem, a partir das pressões que vem recebendo
de uma parte da burguesia, chegar a propor uma Constituinte com
Geisel e quatro partidos. O que faríamos então? Lutamos por uma
Constituinte soberana e democrática. Se os caras me vêm com uma
palhaçada, uma farsa, com quatro partidos substituindo o MDB e
a ARENA, sem liberdade de organização partidária, sem liberdade de
voto, sem anistia ampla: boicote, voto nulo nessa Constituinte. Va-
mos organizar uma corrente, um movimento de massa que lute
por uma Constituinte mais avançada, que realmente atenda aos inte-
resses das massas.
Constituinte, nós não podemos definir a priori. Num processo de
Constituinte pode muito bem acontecer isto: uma Constituinte é con-
vocada com maioria de partidos burgueses e por fora pode estar
havendo um movimento molecular da classe de criação de organis-
mos de luta pelo poder que vão passar por cima da Constituinte.
No dia seguinte a Constituinte é letra morta. Isto significa que nós
aproveitamos as brechas abertas pela própria democracia burguesa
para avançar a democracia popular, que pode nascer no interior das
organizações operárias ainda dentro da sociedade burguesa, como, por
exemplo, partidos, sindicatos e outros órgãos de poder operário.
35
Portanto, não temos o fetiche da Constituinte. Hoje no Brasil se
trata de abrir uma brecha no cenário para a classe conquistar de
forma organizada um partido. Para isto a Constituinte hoje é fun-
damental. Se esta Constituinte tiver maioria burguesa — e acho que
pelo jeito em que as coisas estão é o que vai ocorrer — isto não
é fundamental. O fundamental é o processo de luta. Seja como for,
o programa que o partido vai levar na Constituinte tem que abarcar
as questões materiais que opõem classe contra classe. Não temos
aliança mas frentes localizadas em alguns momentos para combater
este ou aquele, frentes que não implicam em nenhum acordo pro-
gramático. Ao contrário, pressupõem independência na sua partici-
pação.
Mudando de assunto, agora eu gostaria de chamar a atenção para
um problema recente do ME. Trata-se da caracterização de refluxo
que, de forma nefasta, está enfraquecendo o M.E. Tudo começou na
PUC, onde a repressão atuou de maneira violenta. Já ressaltei na
intervenção inicial que a coisa não pode ser observada unicamente
do ponto de vista estudante x repressão. Ela deve ser colocada numa
conjuntura ampla. Na PUC a questão que estava sendo debatida
era uma questão central para a ditadura: a UNE. A UNE é a unifi-
cação nacional dos estudantes, uma entidade diretamente política que
não responde a uma necessidade sindical de causa imediata. A UNE
supera isso e está no plano das liberdades democráticas. Nós difi-
cilmente vamos conseguir a UNE neste regime de ditadura, no en-
tanto não deixaremos de tentar avançar. Eles reprimiram em cima
da questão da UNE, mas não conseguimos dar uma resposta a esta
repressão: fizemos um ato público dentro do campus. Por quê?
Porque nós estamos trabalhando num meio pequeno-burguês onde
as oscilações são freqüentes. O refluxo tem de ser encarado também
a partir do quadro social em que você está intervindo. No plano
mais geral todos concordam que não há refluxo; ao contrário, a
tendência é o ascenso. Mas mesmo no plano localizado nós tínhamos
uma resposta efetiva a dar que já estava sensibilizando alguns se-
tores da massa e que era a seguinte: antes da repressão da PUC
tinha havido um congresso com 6 mil delegados que criou a UEE.
Qual foi o balanço que as várias tendências tiraram depois da re-
pressão da PUC? "Bom, nós já avançamos em termos de mobiliza-
ção". Ora, a mobilização por si só não tem sentido. O avanço do
movimento se mede pelo processo organizativo que está por baixo
dele. Mobilizar, mobilizar é típico da pequena-burguesia exasperada
que mobiliza que nem uma louca, jacobina, e não acontece nada.
As mobilizações este ano foram de vulto nacional. Tentamos abrir
espaço para construir a UNE, mas não foi possível devido à corre-
lação de forças geral que permitiu a repressão violenta.
Entretanto, a UEE foi possível, mas na hora das direções, das
famosas direções que têm um peso fundamental no movimento de
massas e que tinham a arma nas mãos para dar respaldo e poder

36
aparar as arestas, o que eles fizeram? Caminhando e Refazendo per-
correram o Estado inteiro para desmobilizar a UEE. Foram adiadas
sine die as eleições para a UEE. Este debate que estamos realizando
aqui agora sobre o que o M.E. conseguiu e qual foi o seu saldo
organizativo poderia ser um debate feito a nível estadual. Com todas
as dificuldades que isto possa ter, já que o movimento é desigual,
é necessário combinar esta desigualdade em algum ponto. Este ponto
tem que ser o organizativo para o movimento não sair pelos dedos
das mãos. E este ponto era a UEE. Várias tendências estavam orga-
nizando a campanha pela UEE e, de repente, as famosas direções,
montadas nos DCEs da USP e PUC, desenvolvem um ingente esfor-
ço para desmobilizar e não para mobilizar. É fundamental insistir
que por isso tudo a UEE está caindo de madura. É fundamental
construir a UEE neste período. Vai ser a UEE ideal? Não vai. Vai
ser a UEE necessária para entrarmos em 78, porque, este sim vai
ser o ano do movimento de massa. Em 77 o ME. mostrou a que
vem. Não se trata de vanguarda. Acho totalmente errado caracteri-
zar o M.E. como vanguarda. Mas o M.E., sem sombra de dúvida,
saiu às ruas com maior evidência que os outros setores. No entanto,
no ano que vem as coisas não vão ser tão fáceis assim, pois as
próprias correntes burguesas em briga com a ditadura vão passar
a mobilizar a massa e nós estaremos desarmados em termos de
organização unificada a nível estadual para entrar nesse período.
Esse déficit nós trazemos deste semestre: a não-construção da UEE,
que se deveu basicamente à postura em cima da análise do refluxo.
Caminhando: Eu queria voltar à questão da UEE. O companheiro de
Liberdade e Luta disse que Caminhando e Refazendo, após o ato
público da PUC, ao fazer tuna avaliação do movimento, considera-
ram que ela estava em refluxo. E daí saíram para desconvocar as
eleições da UEE. De nossa parte, reiteramos nossa opinião apresen-
tada no congresso de fundação da UEE. Segundo ela era impossível,
dada a maneira como a conjuntura estava caminhando, fazer as
eleições da UEE, já que não concordamos que construir uma enti-
dade seja simplesmente colocar uma diretoria. Os companheiros, ao
invés de ficar vociferando contra Refazendo e Caminhando e nos
atribuindo uma força maior do que na verdade temos, deveriam ir
para o interior convocando eleições da UEE. Qual foi o trabalho
que vocês fizeram para as eleições da UEE? Que eu saiba vocês
foram a muito poucos lugares fazer a divulgação das eleições e
somente àqueles onde vocês têm pessoas.
Liberdade e Luta: Claro, vocês é que têm gente em todo canto.
Caminhando: Ah! mas então é o seguinte: se fosse simplesmente
esta a questão vocês que se pretendem direção política para o Estado
inteiro, ou então metam gente em todas as cidades ou então com-
prem passagens de ônibus e vão para todos os lugares dizendo o
que bem entendem. Foi feita uma avaliação sobre os lugares onde
37
seria possível fazer as eleições para a UEE ainda este ano. Para
nós, pelo que temos conhecimento, elas poderiam ser feitas, mal e
porcamente, na USP, na PUC e em uma ou outra escola isolada de
São Paulo, além de São Carlos. Acho que isto é expressivo das con-
dições e da representatividade com que hoje se conta para tirar
numa eleição uma direção para a UEE. Nestas condições não pode-
ríamos mesmo defendê-la.
Auditório — Novo Rumo: Gostaria de fazer uma colocação em nome
do grupo Novo Rumo sobre como o M.E. vai se relacionar com os
outros movimentos sociais, ou seja, como ele vai conseguir se orga-
nizar mais amplamente, saindo do famoso muro da universidade, não
apenas através de passeatas mas de forma mais organizativa. Se o
movimento político hoje está colocando com toda a clareza a neces-
sidade de unificar o movimento de massas na luta contra a ditadura
em torno de palavras de ordem que unificam, como p. ex. constituin-
te, a nosso ver este processo não se separa da organização das enti-
dades estudantis, como UEE e UNE. Neste sentido concordo com
o que falou o companheiro de Liberdade e Luta sobre a necessidade
urgente que havia de se fazer a eleição da UEE no segundo semestre.
Aquele recuo foi desnecessário. No entanto, isto não pára aí, vai
até a questão da UNE. A nossa proposta quanto a isto é que se
marque o IV Encontro Nacional para abril, ou seja, logo que o
ano de 78 comece e o M.E. retome a sua força, a fim de reconstruir-
mos a UNE.
Para nós este processo também não se separa da organização a
nível político, ou seja, da organização de partidos políticos. Nós
defendemos a palavra de ordem Constituinte, anistia ampla e irres-
trita, além de liberdade a todos os partidos, da mesma forma como
os companheiros o fazem. Agora, o que vemos é que existe uma
diferença entre defender a palavra de ordem liberdade para todos
os partidos — que é uma palavra de ordem democrática onde ca-
bem todos os tipos de gatos — e colocar a necessidade que os
trabalhadores e os setores oprimidos da sociedade têm de se orga-
nizar, fazer os seus próprios partidos independentes da burguesia.
Este é um tipo de palavra de ordem que não é simplesmente demo-
crática, mas de organização de movimento de massas. Não podemos
diluir a questão da unificação entre estudantes e trabalhadores de
forma independente da burguesia falando simplesmente em liber-
dade para todos os partidos. Por outro lado, devemos ter em pers-
pectiva a possibilidade do movimento de massas, numa abertura
controlada, conquistar em face da burguesia a liberdade para vários
partidos. Pode então acontecer algo semelhante ao que ocorreu na
Espanha, que foi extremamente prejudicial, onde o processo de
abertura trouxe mais de 100 partidos para concorrer às eleições das
Cortes. Isto favoreceu bastante a tranqüila vitória obtida pela União
de Centro. Enfim, achamos fundamental organizar trabalhadores e
os diversos setores oprimidos, inclusive os estudantes, mas na pers-
38
pectiva de unificar o movimento de massas e não de diluir as suas
forças em infinitos pequenos partidos por ai. Para tanto, estamos
colocando a necessidade de se lutar pela construção do Partido So-
cialista no Brasil como alternativa de unidade para enfrentar esse
período de luta pela derrubada da ditadura e lutar ativamente pelos
nossos interesses, que incluem reforma agrária, melhores condições
de vida, etc. e também a palavra de ordem transição. Lançando
candidaturas à Constituinte, por exemplo, não vamos ficar apenas
em melhores condições de vida, reforma agrária, etc, mas colocare-
mos palavras de ordem socialistas.
Tudo isto para nós está muito ligado à busca de uma perspectiva
para o ME. de como intervir no próximo período. Como os estu-
dantes vão tentar se unificar a outros setores da sociedade sem se
limitar apenas a sair às ruas, levantar faixas sobre carestia e outras
atividades em relação às quais todo mundo bate palmas, entra ou
desempenha papel? A unidade é muito maior e inclui evidentemente
a necessidade de se organizar em conjunto. E como os companhei-
ros das demais tendências que aqui estão debatendo não abordaram
esta questão, a não ser de forma muito tangencial, achamos funda-
mental que se posicionem com toda a clareza a respeito.
Auditório (4): Tenho uma pergunta para o colega de Novo Rumo
sobre o PS. Vocês colocam como palavra de ordem a constituição
de uma frente de luta pelas liberdades democráticas cujo objetivo
fundamental é a obtenção de um espaço mínimo para a organização
da classe trabalhadora em partidos. Neste sentido se descartam
palavras de ordem que atinjam a questão que aqui se está chaman-
do de econômica, a questão de uma mudança estrutural da socie-
dade. Vejo uma contradição entre esta colocação e a proposta de
organização de um PS, que dependeria de motivos de luta que estão
exatamente vinculados a este tipo de modificação — a modificação
das relações de produção. Gostaria de colocar ainda uma segunda
questão. Até que ponto chamar atenção para a necessidade de orga-
nizar um PS de trabalhadores e estudantes não escamoteia a ne-
cessidade de um partido de classe? O que vocês estão colocando
não é um partido de classe, mas é uma coisa indefinida, hibrída,
por ser um partido de pequena burguesia, isto é, de estudantes e
da classe trabalhadora.
Auditório — Novo Rumo: Acho que primeiro é necessário esclarecer
esta questão de frente pela democracia que o companheiro coloca.
Para nós existe uma diferença muito grande entre uma frente, quer
dizer, uma atuação conjunta em torno de um determinado ponto,
que se chama de frente única, e uma outra coisa que seria uma
aliança, algo mais organizado, com determinado programa fechado,
com uma certa disciplina interna ou coisa parecida. A diferença fun-
damental seria exatamente esta. Se hoje há setores, que vão desde
a burguesia até a classe operária, defendendo liberdades democráti-
39
cas, isto não implica absolutamente que do ponto de vista do mo-
vimento tenhamos que limitar nossa luta por liberdades democráticas
àquelas liberdades ditas formais que esses setores da burguesia de-
fendem. Não se pode de forma alguma isolar a luta por liberdades
democráticas, que interessa ao movimento de massas, da luta pelas
suas reivindicações materiais e pelo socialismo. Pelo contrário, a for-
ma de o movimento de massas participar da luta pela democracia
junto com esses outros setores que têm interesses de classe dife-
rentes, seja a pequena-burguesia, seja a própria burguesia, é justa-
mente esta. Colocamos tudo aquilo que converge, que é comum,
como aquilo que não converge. Não vamos deixar de defender os
interesses da classe operária para não romper uma suposta frente
democrática. Em relação ao Partido Socialista, mais especificamente,
esta parece ser a posição de setores das próprias bancadas parla-
mentares do MDB ou ainda de alguns setores de intelectuais que
estão apoiando a tese do Partido Socialista. Eles acham que não está
na hora, que vai rachar o MDB, a suposta frente democrática. Nós
não pensamos assim.
Caminhando: Eles estão interessados no socialismo, por exemplo?
Auditório — Novo Rumo: Chego lá. Esta é outra questão. Quanto ao
problema da frente, quero acrescentar que não creio absolutamente
que romper a dita frente democrática, que seria o MDB, seja um
recuo ou resulte no enfraquecimento do movimento de massas. Pelo
contrário, ele só pode crescer a partir daí, isto é, a partir do mo-
mento em que coloque com toda clareza seus interesses próprios
e deixe de se limitar.
Agora, quanto à questão dos estudantes e do conteúdo de classe
do partido, creio que também dá para ser englobado na pergunta
do companheiro de Caminhando. Hoje, a partir destes movimentos
que estão havendo em torno de novos partidos, pode ser, e é até
provável, que o PTB, o Partido Trabalhista, ou sei lá que nome
venha a ter — como se sabe, há articulações de um PTB com par-
ticipação de até mesmo um secretário do Governo Paulo Egídio e
de alguns pelegos conhecidos — consiga uma aceitação de massa,
em termos de classe operária, muito maior que qualquer PS. Um
PS estruturado da forma que pretendemos, isto é, um partido que
não se vincule à II Internacional — e nós vamos lutar para colocá-lo
o mais possível para a esquerda, a fim de que o programa definido
em seu congresso de fundação seja o mais classista possível — não
vai ter de forma alguma respaldo amplo das massas desde o início.
Pode ser que o PTB ganhe no primeiro momento, em função prin-
cipalmente de que a experiência da classe operária no Brasil, com
relação ao populismo, foi cortada em 64 e não se completou, não
se esvaziou em função do próprio avanço do movimento operário.
Ainda há alguns líderes populares atualmente cassados, exilados ou
banidos que, evidentemente, ao voltar para cá, vão conseguir uma
40
bela penetração do movimento de massas. Então pode ser que o
PS, no primeiro momento, reúna setores de pequena-burguesia até
mais do que de classe operária. Entretanto, o que vai determinar o
seu crescimento, o seu fortalecimento enquanto partido dos traba-
lhadores, é o seu programa e o seu método de luta. Se ele tiver um
programa conseqüente — e cremos que não será de forma alguma
um programa revolucionário, ou seja, não será um programa que
proponha a ditadura do proletariado, sovietes e por aí afora, porque
isto depende da correlação de forças entre as classes e não é para
isto que a correlação de forças está apontando agora — então em
função deste programa classista e em função de um método de tra-
balho, não de cúpula ou de diálogo parlamentar, mas de um método
de combate de massas, este partido vai conseguir se implantar e se
consolidar como partido dos trabalhadores mesmo.
Em relação aos interesses socialistas ou não dos setores intelec-
tuais ou parlamentares que o colega de Caminhando questiona...
Caminhando: Marcos Freire, Brossard, Saturnino Braga...
Auditório — Novo Rumo: ... Exato... acho que realmente não dá
para dizer que estes senhores estão comprometidos com o socia-
lismo. Agora, o mencionado programa classista e conseqüente deve
ter três eixos principais: democracia, condições de vida e luta anti-
imperiaUsta, incluindo quanto aos dois primeiros pontos a questão
da reforma agrária. Aliado a isto, deve colocar a questão do socia-
lismo como uma bandeira assim como a sua própria legalização.
Neste sentido, pode muito bem acontecer que alguns setores da
pequena-burguesia mais radicalizados, autênticos do MDB e intelec-
tuais por aí afora, venham a concordar com este partido e trabalhar
dentro dele. É evidente que no interior do PS as correntes mais
conseqüentes do movimento de massas devem lutar para que as
suas posições vençam e o seu programa vença e ganhe o respaldo
da massa. Mas há outra questão: este partido só vai poder servir
ao movimento de massas se for realmente amplo, aberto, democrá-
tico, com uma democracia interna total e completa. Parece que
existe um outro setor, no caso de parlamentares emedebistas, colo-
cando o partido vinculado à II Internacional, com um centralismo
rígido e bastante burocrático. Este tipo de partido evidentemente
não serviria, pois para se trabalhar dentro dele se teria que abdicar
de toda posição própria.

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um jornal democrático

41
O Movimento Estudantil Visto de Fora

Cara a Cara com Airton Soares


Cara a Cara: Como você encara o M.E. enquanto movimento de
oposição e qual o papel do ME., hoje, nas lutas políticas que se
dão no interior da sociedade brasileira?
Airton Soares: Acho que no Brasil o M.E. assume um papel dos
mais importantes na medida em que a nossa realidade é toda ela
peculiar no tipo de participação, pois dá oportunidade de setores de
classe média e pequena-burguesia em ascensão terem uma prática
política. E estes setores são aqueles que mais condição têm de fa-
zer movimentos de opinião pública. Estes movimentos têm sido
feitos no Brasil a partir do movimento dos estudantes, o qual tem
sido um dos grandes fatores de luta pela redemocratização. Se fôs-
semos fazer uma análise do que tem sido a participação dos estu-
dantes na vida política, teríamos que remontar à criação da UNE.
Verificaríamos que desde então os estudantes têm tido um engaja-
mento político e que, desde os primórdios da criação da UNE, este
engajamento se deu, todo ele, num contexto de luta contra o regime
de exceção que vigia na época.
Consideremos, agora, qual é o quadro da oposição brasileira: por
um lado, uma oposição legal, consentida, que é o MDB; por outro,
as outras oposições não-legais, não-autorizadas. Dentre estas, o tipo
de participação política dos estudantes é considerado pelo governo
de exceção como não-legal; daí, a repressão permanente sobre ele.
Neste quadro o M.E., enquanto movimento de oposição, tem um sig-
nificado importante na medida em que ele consegue agregar e fazer
com que as posições mais corretas sejam levadas ao conhecimento
da opinião pública, sejam levadas a uma prática intensiva que pode,
a cada dia, atingir o maior número possível de pessoas. O ME., hoje
em dia, não está só se desenvolvendo dentro da universidade. Sua
força como movimento de vanguarda, sem querer ser vanguardista,
é a força de oposição conseqüente, sem se destacar das demais
oposições. Há algum tempo, na fase em que participei do ME.,
principalmente em 68, um de nossos erros foi termos assumido uma
posição que não tínhamos condição de assumir, qual seja, a posição
de vanguarda da oposição brasileira. Sempre considerávamos ter as
42
posições mais corretas e fazíamos com que os outros setores de
oposição tivessem que — a expressão seria esta — engolir as nossas
propostas e levá-las adiante. Um erro e outros erros se acumularam:
o resultado não foi positivo. Mesmo sem a repressão teríamos tido
os mesmos problemas em função de nossas divergências e da falta
de um denominador comum. Observando hoje o MJC., verificamos
que o seu significado é o de uma força que tem levado às lutas mais
corretas, tem procurado estar em consonância com os demais se-
tores da oposição, sem vanguardismo e, junto com outros setores,
insistindo permanentemente na necessidade do debate político e de
se procurar uma saída para o regime de exceção.
Agora, existe uma condição muito especial que muita gente não
entende principalmente no MDB e em alguns outros setores: como
fazer oposição preservando uma certa autonomia de ação? Como
fazer uma oposição dentro de um regime de exceção sem que a
entidade ou o agrupamento deixe de se caracterizar como tal e passe
simplesmente a fazer parte de um jogo dentro do contexto maior
de oposição? O MDB, por exemplo, por ele traria para dentro de
si todos os demais setores de oposição para se fortalecer. No en-
tanto, a visão correta seria o MDB, oposição consentida, atuar como
um instrumento de estímulo, de apoio aos outros setores de oposi-
ção; o M.E., o setor operário, etc. Acho que é uma distinção básica,
em termos de participação política, quando colocamos o papel do
M.E. e dos demais setores nas lutas políticas que se dão no interior
da sociedade brasileira.
Cara a Cara: Que papel deveria ser desempenhado hoje pelo ME.
no conjunto das oposições no Brasil?
Aírton Soares: O papel do Movimento Estudantil tende fundamental-
mente a se consolidar como representativo dos estudantes, embora
as reivindicações específicas tenham que ser analisadas sempre num
contexto mais amplo porque decorrem dele. Não podemos hoje pen-
sar que o M.E. deva se restringir, como muitas correntes acham, às
reivindicações e às lutas internas à universidade — melhores con-
dições de ensino, melhores instalações, problemas de restaurantes.
Apesar de respeitar os setores que estão defendendo posições ligadas
à política educacional do governo, entendo que é decorrência de um
quadro político mais amplo a situação que vigora dentro da univer-
sidade. O enfoque tem que ser dado, com prioridade, no quadro
político mais amplo onde o estudante está inserido, ou seja, o seu
contexto social. Depois disso deve-se partir para uma análise da uni-
versidade, e finalmente das suas lutas internas. Eu não sei se está
reservado um papel ao ME. como tal. Talvez o seu papel seja diluir-
se dentro dos outros setores de oposição em luta na sociedade bra-
sileira e, através desta absorção, poder impregnar os demais setores
com algumas posições que dentro da universidade florescem mais ra-
pidamente. Acho que, na medida do possível, ele tem que sair da
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universidade, diluir-se no grande movimento de massas de oposição
que possa existir neste processo de luta pela redemocratização do
país.
Cara a Cara: Como você analisa a atuação recente do M.E.?
Aírton Soares: Com relação à participação mais recente do M.E.,
embora as divergências tenham dificultado um pouco uma unidade
de ação para que a opinião pública tivesse uma noção mais concreta
daquilo que, na verdade, pretendem os estudantes, creio que neste
ano ele preencheu todos os requisitos necessários ao seu papel como
movimento. É bom que se lembre que em termos de organização
pouco existia e o que existia estava mal consolidado. Acredito que
o que se fez em pouco tempo é de fundamental importância, qual
seja, a reestruturação dos mecanismos próprios da representação es-
tudantil. As tentativas que foram feitas em função da UNE também
preencheram o seu papel, apesar da repressão. Isto porque mostrou
à opinião pública a necessidade do órgão de coordenação nacional
das atividades dos estudantes. Neste contexto, as divergências inter-
nas têm que ser analisadas como necessárias a um setor onde o
debate político é livre, na medida do possível. Elas surgem numa
sociedade democrática e normalmente se estampam nos partidos
políticos. No Brasil, em face da repressão, estas divergências se es-
tampam dentro da universidade. São correntes de opinião que se
formam e que às vezes se perdem quando a luta interna passa a
ser, em determinadas horas, o mais importante. Nestes casos, ven-
cer o adversário interno ao M.E. passa a ser mais importante do
que combater o regime de exceção. Quanto a isso, minha posição
é a seguinte: dentro das várias tendências do MJE., temos que pro-
curar alguns pontos principais sobre os quais possa haver um deno-
minador comum. Basta que haja uma compreensão maior e que
cada posição ceda um pouco diante deste denominador comum.
Depois, quando tivermos liberdade para tanto, veremos quem terá
mais apoio na opinião pública para fazer prevalecer suas posições.
Isto é decorrência da fase que virá a seguir.
Cara a Cara: Você vê, no momento em que estamos vivendo, o risco
de o M.E. se perder em suas divergências internas e deixar de
lado a luta que você considera mais ampla, ou seja, contra o regime
de exceção?
Aírton Soares: Acho que o ME. não vai se perder porque o regime de
exceção ainda dá condições para que, de uma maneira geral, a opo-
sição da universidade seja vista pela opinião pública como um todo,
desde os professores até o aluno menos participante. Se o regime,
num passe de mágica, fosse liberado, tenho a certeza de que hoje
aconteceria o caos entre estas oposições em função das divergências
existentes. Como o regime de exceção ainda vai manter esta unidade
aparente, elas não chegam a comprometer a estrutura da movimen-

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tação. Mas acho que temos que nos preocupar com isso, pois as
possíveis aberturas ou melhores condições de trabalho darão a per-
ceber que estamos muito pouco organizados; que temos muito pouca
participação de massa; que na própria universidade o nivel de cons-
cientização é ainda muito baixo. As pessoas se prendem às estru-
turas de participação da UNICAMP, da USP ou da PUC, onde o nível
da discussão é mais desenvolvido, apesar de ainda muito baixo, e
se esquecem da realidade nacional, em termos da participação dos
estudantes como um todo. Saindo de São Paulo, por exemplo, para
um centro universitário como Moji das Cruzes, verifica-se uma com-
pleta acefalia em termos políticos, uma total ausência de discussão.
Isto é algo absurdo para uma cidade a 40 minutos de São Paulo.
Estas coisas devem ser registradas para que essas divergências pas-
sem para um plano secundário. Não nego a necessidade de posições
divergentes; existem orientações, doutrinas que são divergentes. Mas
não podemos nos dar ao luxo de, através destas divergências que
existem na teoria e na prática, vir a facilitar a ação de quem hoje
detém o poder.
Cara a Cara: Há uma corrente de opinião dentro do MJS. que defen-
de a tese de que haveria um movimento de massas em ascensão.
Pelo que você acabou de dizer, parece que você teria sérias objeções
a este tipo de colocação.
Aírton Soares: Eu definiria como "românticos" todos os que defen-
dem a posição de que existe um movimento de massas em ascensão,
que dizem que o regime está podre e vai cair amanhã. Só em noite
de luar, com violão, é que se pode imaginar um negócio destes. A
realidade é muito diferente. Tenho viajado, não só pelo interior de
São Paulo, mas também por todo o Brasil, e não vejo organização
alguma que possa justificar as posições destes setores. Mesmo aqui,
na periferia de São Paulo, tenho contacto permanente com os mais
diversos tipos de trabalho, inclusive os mais conseqüentes, e não
vejo nada disso. Se há uma coisa que o regime de exceção cuidou
foi exatamente de manter os setores capazes de gerar lideranças e
desafiar a estrutura de poder sob a mais rigorosa vigilância e repres-
são. E não se trata simplesmente de prisão, de tortura; a repressão
que mais diretamente atinge o trabalhador é a que atinge o que é
mais essencial para ele: a comida para a sua família e os seus filhos;
a manutenção no emprego e o salário, etc. É pouco conhecido o tipo
de repressão que a liderança sofre quando se destaca na empresa.
O operário passa a sofrer todo tipo de perseguição por parte dos
setores empresariais e se vê obrigado a mudar de profissão para
poder sustentar a si e a sua família. Ora, quando isto acontece, ele
não pode se dar ao luxo de fazer trabalho político. O trabalho po-
lítico mais ligado a outros setores se vê, por sua vez, prejudicado,
acrescendo o baixo nível de pohtização e a repressão permanente.
45
Acho que o movimento de massas, em termos de organização, tem
hoje um caráter embrionário, com as maiores dificuldades até para
reunir lideranças para a discussão politica, embora eu reconheça
que existem condições objetivas que se expressam num amplo des-
contentamento com relação à situação e ao governo, condições obje-
tivas que podem permitir, num curto espaço de tempo, um tipo de
estrutura que venha, não digo a organizar, mas a dar forma do mo-
vimento de massas. Confunde-se, às vezes, na medida em que se
constata uma ampla aversão ao regime, a existência deste potencial
com a sua capacidade de agir e de reivindicar. Não há isso. Não
há ainda possibilidade desses movimentos de oposição sindical, tra-
balho de bairro, etc. se autocoordenarem. Não há pessoas nem estru-
turas para isso. Para não falar no movimento que deveria existir
no campo, pois aí então chegaríamos ao marco zero em termos de
organização de base. O movimento no campo hoje, até no interior
de Pernambuco, é dos mais precários; percebe-se que é no campo
que o partido do governo consegue sua sustentação ainda hoje. E
sem os camponeses organizados no movimento de massas, como se
pode falar em ascenso?
Cara a Cara: Como se coloca você diante do problema da atuação
conjunta do ME. com outros setores sociais?
Aírton Soares: Como eu já disse, é evidente que considero funda-
mental a atuação conjunta do ME. e os outros setores. Agora, acho
que as posições que os estudantes devem levar a esses outros setores
não serão posições oriundas da universidade que vão "esclarecer"
essas parcelas de oposição. Os estudantes demonstrariam habilidade
se pudessem chegar a um determinado setor de oposição e não mais
serem identificados como estudantes. E isto na medida em que se
incorporem ao trabalho desse setor e que o mesmo defina uma
norma de comportamento para eles. O papel do estudante consciente
é muito mais de desenvolver um trabalho dentro desses setores,
visando aperfeiçoar sua organização, no sentido de trazer seus co-
nhecimentos sobre as posições mais corretas e discuti-las, mas nunca
tentar estabelecer as regras do jogo. Admitir que os estudantes pu-
dessem ter uma posição a levar aos outros setores seria não somente
um erro politico como seria também negar o significado histórico
do movimento de oposição e o papel do movimento estudantil nele.
Acho que esta é a grande tarefa: colaborar com os outros setores
conseqüentes e que envolvam de fato a participação popular. Tenho
sentido que nesta etapa é ainda muito difícil o estudante ser até
mesmo recebido por esses setores. Há algum tempo atrás os estu-
dantes da USP fizeram um movimento contra o preço do restau-
rante e o governo resolveu subsidiar o preço excedente. Eu me
lembro muito bem de que na época ouvi, num núcleo onde se fazia
trabalho de periferia, um operário dizer: "Esses caras estão resol-
vendo o problema deles. Mas e o nosso? Nós não temos o governo
46
subsidiando as nossas refeições". Essa é uma constatação sem muita
profundidade, mas é um tipo de reação que ocorre nos setores
populares diante de certos privilégios que a própria condição de
classe dá aos estudantes. Quebrar essas barreiras, fazer essa apro-
ximação, ganhar confiança desses setores populares são tarefas que
os estudantes não têm discutido. E aqui vai uma crítica ao M.E.
Existem os riscos, mas é necessário arranjar uma forma de superá-los.
Cara a Cara: Vê você o M.E. num papel de assessoramento aos
demais setores e não como organizador destes? Rejeitaria você, por-
tanto, todo tipo de vanguardismo?
Aírton Soares: Claro. Em relação ao vanguardismo, eu tenho posição
fechada, sem dúvida nenhuma. Agora, não sei se seria correto falar
em assessoramento. Vejo o trabalho dos estudantes como algo diluí-
do no contexto dos demais setores, num trabalho que existisse.
Onde e quando este trabalho não existir, o papel dos estudantes
seria procurar contactá-los e organizá-los. Este sim é um papel pio-
neiro e de vanguarda: criar condições para que um setor que, até
então não se tinha preocupado em ter uma discussão política, nem
estava organizado para isso, passe a fazê-lo. Agora, depois de organi-
zado, querer-se continuar a ensinar os caminhos, acho que é confun-
dir as coisas. É evidente que na participação política as coisas têm
que ser colocadas em termos dialéticos. Elas não são estanques:
vamos até ali e depois paramos. Não é bem assim. O importante
é que se acompanhe o movimento de dentro do setor. Neste sentido
o conhecimento e a prática política de dentro da universidade aju-
dam a mostrar como as coisas devem ser feitas. O estudante que
seja inábil, que não saiba se comportar de acordo com o contexto
onde atua, será rejeitado. Será, quando muito, acatado; mas este
é um processo ilegítimo.
Cara a Cara: Que tipo de atuação poderia ser desenvolvida entre o
MDB e o ME.?
Aírton Soares: Alguns de nós, do MDB, temos desenvolvido um tra-
balho de colaboração e cooperação. Quando há movimentação e é
feito um convite para setores de oposição, o MDB tem comparecido
e colocado as posições que tem. O programa do partido, quando
colocado com honestidade e propriedade, ele serve. É um programa
niínimo com posições bem avançadas dentro do contexto geral. Nesta
medida o emedebista, o parlamentar e o próprio partido têm con-
dições de colaborar. No entanto, como disse antes, existem no par-
tido setores que acham que têm que trazer os estudantes para
dentro do MDB, pois estariam protegidos pelo mesmo e teriam
melhores condições para voa trabalho político. É um erro! Exata-
mente isto é o que o governo quer. Isto é negar a participação po-
lítica do cidadão no meio social onde ele está inserido. Seria o
mesmo que dizer aos trabalhadores: não façam política no seu sin-
dicato porque existe o departamento trabalhista do MDB. Pelo con-
47
trário, acho que este movimento de oposição de várias faces, que
é o MDB, não pode ter outro tipo de participação junto ao M.E.
que não seja o de colaboração e cooperação, pois de outra forma
os estudantes estariam se subordinando às diretrizes do MDB. Não
nego que em um regime de liberdade democrática um partido, cons-
tituído segundo uma posição ideológica ou classista, possa estabele-
cer para o setor do MJE. a que ele tenha acesso um comportamento
político-partidário. Isto é uma decorrência natural, mas não é este
o caso do MDB. Sejam quais forem os partidos, entretanto, é ne-
cessário que se preserve a independência do ME., como um todo,
para que ele represente o veículo de defesa dos interesses dos estu-
dantes nos assuntos pertinentes à universidade. Mas aí já estou fa-
lando sobre um regime de liberdade onde o papel do ME. tem um
outro conteúdo. Não vou entrar em detalhes porque nunca vivi a
prática política estudantil num regime de liberdade. Sabemos em
termos teóricos, mas em termos reais as coisas deverão mudar tanto
que só a prática o dirá. Hoje, como partido político, o MDB deve
usar a tribuna da Câmara, do Senado e das Assembléias e os meios
de comunicação a que tenha acesso para defender as propostas dos
estudantes e solidarizar-se com elas. Isto tem sido feito por alguns
setores do partido.
Cara a Cara: Por outro lado, como vê você a possibiUdade de o
MJE. colaborar com o MDB?
Aírton Soares: Sem perder quadros, o ME. pode utilizar uma parcela
deles para desenvolver um trabalho político-partidário. Por exemplo,
o MDB tem um instituto de estudos políticos; ora, não vejo como
os estudantes não devam participar desse instituto que deveria fun-
cionar, mas em função da estrutura do MDB funciona muito pouco.
Aqui a participação dos estudantes é necessária. É a volta, o tipo
de colaboração que se dá do lado de cá. Outro exemplo: nas eleições
é evidente que os setores esclarecidos da universidade não apoiarão
o partido como um todo, mas irão apoiá-lo como legenda e através
de alguns candidatos que se identifiquem com suas teses. Fortale-
cendo estes setores do MDB os estudantes impedirão que os adesis-
tas, moderados de todo tipo e até mesmo os fascistas que lá existem,
se fortaleçam. Os setores mais conseqüentes do MDB precisam deste
tipo de apoio no confronto interno com essas tendências do partido.
A não-existência de apoio mais destacado do M.E. a estes setores
tem feito com que essas posições sejam sempre minoritárias, o que
é negativo.
Enfim, respondendo à sua pergunta: o trabalho deve ser comple-
mentar e se dar nestes dois níveis: os estudantes fortalecendo os
setores conseqüentes e combatendo os reacionários dentro do MDB
e, em contrapartida, estes setores progressistas do partido defen-
dendo as posições dos estudantes e se solidarizando com eles, onde
possam.
48
Cara a Cara com Décio Saes
Cara a Cara: Qual é, a seu ver, o significado do M.E. como movi-
mento de oposição?
Décio Saes: Desde logo gostaria de dizer que esta pergunta parece
partir de uma elaboração abstrata do M.E., como se existisse uma
espécie de condição estudantil em geral e como se pudéssemos defini-
la por uma atitude de oposição permanente a um poder político
constituído. Para mim, o movimento estudantil exprime uma classe
ou frações de classes em movimento. E não podemos determinar
apriori, para todos os tipos de sociedade, que classes específicas
vão se pôr em movimento, num nível específico, que é o da escola
ou universidade. É importante relembrar que essas classes variam
segundo o tipo de sociedade, segundo o tipo de formação social
concreta, e, portanto, varia a posição do M.E. nas lutas sociais. Se
assim é, não podemos resumir a posição do M.E. nas lutas sociais
a expressão "Oposição", que me parece demasiadamente genérica,
embora possamos admitir que, por definição, a categoria estudantil
em movimento seja o aspecto de luta, de ação renovadora, de ação
transformadora ou mesmo de ação destruidora.
Gostaria de dar alguns exemplos históricos para mostrar esta va-
riação. O primeiro caso é o do M.E., do 4 de maio de 1919 na China.
E sabido que manuais que falam da história recente da China se
referem à ação modernizadora do M.E. Em que constitui, na ver-
dade, esta ação? Este movimento aparece como movimento expressi-
vo, seja da burguesia nacional, seja do campesinato rico, que fazem
paradoxalmente do cosmopolitismo e do anticonfucionismo armas de
iuta, seja contra os senhores da guerra, seja contra os notáveis ru-
rais, seja contra o próprio imperialismo. Um segundo exemplo histó-
rico interessante seria o movimento pela reforma universitária, em
Córdoba, em 1918, que foi designado na literatura sobre o ME.
como a "revolução universitária". Este movimento aparece como um
dos aspectos da luta antioligárquica da classe média emergente.
Luta que de resto se exprime, de um certo modo, na própria ascen-
são política do Partido Radical e no componente pequeno-burguês
da gestão Yrigoen, que vai de 1918-1930. Em terceiro lugar seria
mteressante lembrar o próprio movimento pela reforma universitária
no Brasil, sob JK, que de uma certa maneira parecia ser uma es-
pécie de esforço da nova classe média, em processo de constituição,
de liquidar a universidade de tipo arcaico, bacharelesco, estamental,
que tínhamos até então, e de criar instrumentos educacionais para
sua própria ascensão econômico-social.
Dando estes três exemplos, quis ilustrar a idéia de que o MJE.
sempre representou o movimento de certas classes ou frações de
classes. Sublinho esta idéia geral para problematizar teses que pre-
tendem esvaziar o conteúdo de classe do M.E. Considerar, p. ex., que
49
o M.E., no seu conjunto, pode funcionar como um partido ou direção
política de classes sociais incapazes de criá-los. O argumento utili-
zado neste tipo de análise visa exatamente esvaziar o conteúdo de
classe deste movimento. Algumas vezes esta tese aparece sob a se-
guinte forma: os estudantes seriam um grupo de transição, que
viveria numa situação, provisória, numa situação de total disponibi-
lidade social, peimitindo que ele se deslocasse rumo a outras clas-
ses sociais, podendo atingir a condição de vanguarda de algumas
delas.
Gostaria de lançar um contra-argumento. Não se trata de recorrer
de maneira simplista ao argumento das origens de classe do estu-
dante, embora dizendo isto não esteja descartando a origem social
como um elemento importante de definição de comportamentos de
membros de associações políticas, militares e religiosas. Quero que
fique claro que a origem social nestes casos é importante. E basta
relembrar a este respeito toda a importância que Gramsci deu ao
fato de o recrutamento de exércitos como o italiano, o francês, para
não falar do russo, ser de base majoritariamente camponesa; e a
influência que esta origem social do contingente militar teve sobre
o comportamento destes setores. Na verdade, diria que não é ne-
cessário que recorramos às origens de classe dos estudantes, porque
podemos afirmar que eles pertencem a uma determinada classe, seja
porque exercem um trabalho (tendo uma posição no processo social
de produção), seja porque entretêm uma relação de manutenção
com membros de determinadas classes sociais. Aqui estou me refe-
rindo, em primeiro lugar, à situação do estudante trabalhador, que
representa uma grande percentagem dos universitários, em vários
países. A este respeito reporto-me aqui à pesquisa feita nos anos
60 por Marialice Foracchi, a quem recorri para estas idéias. O
M.E. mostra com variações, de setor para setor, que em vários
cursos universitários praticamente a metade dos estudantes são tra-
balhadores, alocados sobretudo no setor terciário. Em segundo lugar,
os outros estudantes (não-trabalhadores) entretêm aquilo que M.E.
chama de uma relação de manutenção com a família, cujos mem-
bros produtivos têm uma situação de classe definida. É esta rela-
ção de manutenção que aparece como caução de uma relação de
dependência que não é apenas econômica mas também ideológica.
Portanto, é importante detectar exatamente a classe ou classes
que se fazem representar dentro da escola, da universidade, servindo-
se destes dois elementos. Evidentemente dizer isto não significa que
o M.E. não tenha nenhuma especificidade com relação às outras
manifestações da classe que ele, grosso modo, representa. Esta espe-
cificidade se manifesta, a meu ver, em dois níveis. De um lado, no
que diz respeito à natureza dos objetivos do ME. De outro lado,
no que diz respeito às suas condições gerais de ação. Quanto aos
objetivos, seria interessante lembrar aqui que eles, num extremo da
escala, podem se apresentar como puramente corporativos, isto é,
m
50
problemas estritamente internos a uma unidade de ensino, como por
exemplo a reivindicação por melhores aulas, troca de professores,
questões de horários e mesmo lutas por apostilas, etc. No máximo,
podemos imaginar que existem reivindicações puramente corporati-
vas, na medida em que elas ganham a unanimidade das posições
sociais e não se apresentam abertamente como reivindicações de
classe.
A seguir, nós temos aquilo que podemos chamar de reivindicações
político-corporativas e que constituem a manifestação majoritária no
seio do M.E. São exatamente os objetivos político-corporativos que
estão integrados à própria luta social, ou seja, são objetivos que se
apresentam como uma expressão tópica, a expressão localizada de
objetivos sociais, de uma classe determinada. Estes objetivos defi-
nem a posição da categoria estudantil com relação ao Estado e às
classes sociais, ainda que o façam de um modo indireto. Um exem-
plo claro é a própria luta pela liberdade de ensino, a luta pela
liberdade de discussão e de pesquisa na universidade. Esta luta, num
contexto ditatorial, é objetivamente parte da luta antiditatorial, que
evidentemente opõe certas classes a outras classes.
E, finalmente, no ponto máximo da escala teríamos objetivos pu-
ramente políticos, isto é, objetivos que não encontrariam imediata-
mente uma tradução ao nível das reivindicações mais especifica-
mente corporativas da categoria estudantil. Neste nível o ME. se
define de modo direto, mais aberto, com relação ao próprio Estado
e à luta social. O exemplo clássico é a participação do MJS. em
campanha contra a guerra e o imperialismo nos Estados Unidos,
ou pela reforma agrária no Peru.
A conclusão a que chegamos é de que o conteúdo de classe do
M.E. está evidente nestes dois últimos casos. Então, só quando a
categoria estudantil se limitasse estritamente a perseguir objetivos
puramente corporativos é que se poderia dizer que, na verdade, ela
estaria num estado de apoliticismo e não seria o veículo de um
movimento de classe. Neste caso, a ação da categoria estudantil dei-
xaria de vincular mais claramente um conteúdo de classe. Mas, de
fato, podemos dizer que na maior parte do tempo a ação da catego-
ria estudantil persegue prioritariamente os objetivos político-corpora-
tivos, quando não objetivos claramente políticos. De modo que se
assim é, na maioria dos casos o M.E. atingiu o mínimo de politici-
dade que garante a sua representatividade de classe. Esta seria a
Primeira especificidade do ME. com relação às outras manifestações
das classes ou classe que ele, a grosso modo, representa.
Existe uma segunda especificidade do ME. que está ligada à dupla
função da própria escola, mais especificamente, da universidade. De
um lado, a escola, a universidade têm uma função econômica, no
quadro de uma sociedade burguesa — formação e qualificação de
mão-de-obra — e em segundo lugar (é o que mais nos interessa
no caso presente), têm uma função ideológica: criar o mito da meri-
51
tocracia para as classes populares, construir e impor ao conjunto
da sociedade a imagem da escola como um lugar neutro da ciência
e da verdade. O problema está em que estas funções devem ser
continuamente alimentadas pelo Estado Burguês. Elas devem ser
mantidas em funcionamento para além de um limite mínimo. E é
exatamente este fato que garante a maior eficácia da ação política
das classes representadas na universidade. Quero dizer com isso que
uma classe, de certa maneira, encontra maior facilidade de pôr-se
em movimento dentro da universidade que fora dela, já que dentro
dela a ação desta classe é mais dificilmente reprimida devido às
funções que o próprio Estado Burguês confere à escola e à univer-
sidade. É por isso que numa certa medida — evidentemente, isto
é variável, no tempo e conforme o grau mais ou menos avançado
e o tipo de sociedade — a universidade aparece como uma espécie de
santuário para os movimentos sociais. É este caráter, em razão
da relativa autonomia, que a universidade deve ostentar para fazer
jus à imagem construída, que toma mais problemática a repressão
do M.E.
Relembrar a relação existente entre as funções do aparelho escolar
universitário e a maior eficácia do movimento de classe no seio da
universidade, de uma certa maneira nos afasta daquele tipo de inter-
pretação psicologista, segundo a qual a burguesia não gosta de agre-
dir seus filhos, razão então pela qual o ME. não seria reprimido.
Reprimir o ME. eqüivale, de uma certa forma, anular a função ideo-
lógica desempenhada pelo aparelho escolar e universitário no quadro
da dominação burguesa. E se assim é, isto nos leva a uma questão
muito importante que é a questão do ritmo do M.E.: ele apresenta
um ritmo próprio que não é necessariamente o do movimento mais
geral da classe que ele representa. Isto é, só nas linhas mais gerais
podemos dizer que o ritmo do M.E. seja o próprio ritmo da luta
política e social. Mas, dentro desta tendência mais geral, seu ascenso
e descenso estão em grande medida ligados às lutas corporativas
ou político-corporativas do estudante. Um exemplo clássico disso é
uma ascensão no reinicio das aulas, quando as lideranças estudan-
tis procuram explorar o potencial de problemas que se acumularam
no período anterior. Isto é verdade para a Europa e, sob certo as-
pecto, no Brasil isto pôde ser constatado no próprio início do ano
de 1977, quando as universidades apresentavam problemas materiais
extremamente graves devido à escassez de recursos orçamentários,
etc.
Para resumir a resposta a esta primeira questão, poderíamos dizer
que o significado do MJE. só pode ser avahado a cada conjuntura
concreta, levando-se em conta três elementos: 1) As classes que se
colocam em movimento dentro da universidade. Isto, realmente, só
pode ser avaliado caso por caso. Nem sequer a tese segundo a qual
o MJE. é necessariamente o movimento da pequena-burguesia deve
ser aceita sem uma investigação; 2) deve-se levar em conta os obje-

52
tivos políticos destas classes que se fazem representar no seio da
categoria estudantil; 3) um elemento extremamente importante é
o modo particular de articulação destes objetivos às lutas corpo-
rativas da categoria estudantil.
Cara a Cara: Qual seria mais especificamente o papel do ME. no
Brasil, hoje?
Décio Saes: Para responder a esta pergunta aplicarei ao Brasil o
modelo de análise que esbocei acima. Servindo-me do material das
análises existentes, estou razoavelmente convencido, sobretudo a par-
tir dos trabalhos de M.E. que existe uma predominância massiva de
membros da classe média no seio da universidade brasileira. Se que-
remos compreender os objetivos deste movimento que assumiu um
aspecto de representação da classe média, é preciso avahar os pró-
prios objetivos políticos desta classe.
O que nos parece importante nesta atual etapa é que, embora o
conjunto da classe média não faça isso, pelo menos uma fração
unportante dela — que de uma certa maneira não se deixou conta-
I i
y inar pelo autoritarismo e busca uma superação do antigo libera-
lismo oligárquico e do próprio populismo, enquanto atitude política
paralisadora — procura se engajar em lutas democráticas. Exemplo
disto encontramos na crescente luta dos profissionais liberais do
tipo da OAB, dos bancários, dos promotores públicos, dos profes-
sores, etc. É verdade que estas lutas ainda se manifestam com va-
riações de categoria para categoria profissional, de uma maneira
ainda tímida, e por isso aumenta a importância do papel do M.E.
nas lutas democráticas. Então, no primeiro plano, o papel do ME. é
0
de uma espécie de agente catalisador da classe média, que, desen-
volvendo uma ação ideológica intensa, atrai pouco a pouco para esta
luta um contingente considerável desta classe por meio de manifes-
tações de massa.
Através do M.E. o próprio movimento democrático pequeno-bur-
suês ganha aos poucos um caráter de massa. Se isto é verdade, se
existe um engajamento progressivo de contingentes da classe média
e o ME., as lideranças estudantis, caso se mantenham aquém destes
objetivos políticos, ou caso passem além deles, evidentemente cor-
rem o risco de provocar, em primeiro lugar, o seu isolamento em
relação à massa estudantil, em razão do abandono dos objetivos da
classe que é fundamentalmente representada na universidade; em
segundo lugar, o isolamento do próprio conjunto do ME. com re-
lação às frações da classe média engajadas nas lutas democráticas.
p
or outro lado, estas lideranças estudantis, à vista do que dissemos
na primeira parte, não podem e não devem esquecer a especificidade
dessa manifestação de classe que constitui o ME. Não podem e
não devem esquecer as reivindicações corporativas ou político-corpo-
rativas, sob pena de se alienar da massa estudantil. Os chamados
Problemas universitários não devem ser subestimados em favor ex-
53
clusivamente dos chamados grandes problemas; caso contrário, o
M.E. pode sofrer um descenso artificial. Por descenso artificial desig-
no aquele descenso específico do M.E. que ocorre num período social
e politicamente tenso, em razão do sentimento que se cria no seio
da massa estudantil de que, de uma certa maneira, tenha sido traída
pelas lideranças.
Cara a Cara: Vê você possibilidades de articulação entre o M.E. e
outros setores sociais?
Décio Saes: Parece-me que na atual etapa de lutas democráticas o
M.E. deve procurar simultaneamente desenvolver formas de ação
comum com outras organizações representativas da fração da classe
média que se encontra num processo de superação do liberalismo
tradicional e do populismo, ou seja, associações de profissionais libe-
rais, como os advogados e juristas da OAB, associações de profes-
sores e jornalistas, sindicatos mais avançados, como o sindicato dos
bancários. É evidente que só a vontade política desta ação comum,
que apenas se esboça neste momento, é que poderá indicar toda a
riqueza de formas concretas que tal ação deve assumir. O impor-
tante é que os estudantes, de um lado, e os trabalhadores de classe
média, de outro, estejam de acordo no fundamental sobre a natu-
reza dos objetivos políticos a serem alcançados. Mas, além disso,
nesta atual etapa, o MJE. deve procurar igualmente desenvolver for-
mas de ação comum fora do âmbito da classe que ele representa,
isto é, com setores sociais distintos da classe média, trabalhadores
do campo e da cidade. Isso é possível na medida em que estes se-
tores se encontram igualmente envolvidos nas lutas democráticas.
Neste nível a ação política do M.E. pela democracia pode desempe-
nhar o papel de abrir espaço para uma participação mais intensa
destes setores nas próprias lutas democráticas.
Parece-me que o erro, ao se tocar a questão do relacionamento
do M.E. com estes setores sociais distintos da classe massivamente
representada na universidade, estaria em pensar que o M.E. possa
vir a atuar como um partido político ou a própria vanguarda destes
setores. Digo isto, embora possa admitir que as organizações polí-
ticas representativas destes outros setores recrutem seus membros
no seio das lideranças estudantis, como poderão recrutá-los no seio
de outros grupos sociais. Mas, na verdade, se coloca a questão de
saber em que consiste abrir espaço político. Parece-me que a ação
do ME. deve consistir em mostrar que a luta por estes objetivos
democráticos é mais ampla; que esta luta reúne mais setores sociais
que apenas trabalhadores da cidade e do campo. Portanto, mostrar
que existem condições para tuna luta mais ampla e mais eficaz
pela democracia, uma luta que reúne as frações democráticas da
classe média aos assalariados da indústria e às massas do campo.
Mais especificamente, o ME. pode vir a facilitar o encontro dos
diversos setores sociais engajados na luta democrática, embora ele
54
não possa dirigir esta luta. Ele pode ter um papel ideológico impor-
tante no rompimento do isolamento político das camadas trabalha-
doras, dos assalariados da indústria e das massas do campo.
Neste capítulo, no contexto destas duas perguntas, coloca-se uma
questão especial: a relação do M.E. com o partido de oposição par-
lamentar. Esta questão deve ser resolvida à luz, em primeiro lugar,
de tudo que foi dito acima sobre o papel do MJE. e, em segundo
lugar, à luz de uma análise da própria oposição parlamentar. Se
nós desenvolvermos esta dupla análise chegaremos à conclusão de
que o M.E. pode apoiar candidatos cujos programas sejam confor-
nies com seus objetivos políticos. Entretanto, ele deve tomar todo
o cuidado para evitar a sua dominação pelo partido oposicionista.
Particularmente, uma forma sutil de dominação seria a constituição
da chamada fração parlamentar e a massa estudantil favorável _à
fração parlamentar, esta fração teria grandes chances de dominação
do M.E. Ora, o perigo desta dominação estaria exatamente em que
seria possível um desvio do MJE. com relação a seu papel nestas
lutas democráticas e ao seu papel de atração das classes populares
Para uma luta comum com frações da classe média. Neste caso, o
M-E. estaria inteiramente a reboque da oposição parlamentar e fica-
ria à mercê dos avanços e recuos desta oposição, o que poderia
então desviar o MJE. do papel ideológico fundamental a que eu me
referi.
Cara a Cara: Como veria você a possibilidade de ação conjunta entre
o M.E. e os intelectuais em geral?
Décio Saes: Começo por fazer uma ressalva. A questão fala de inte-
lectuais: é conveniente lembrar que, no Brasil atual, são igualmente
intelectuais Gilberto Freire e Fernando Henrique Cardoso. Gustavo
Corção e Francisco Weffort. Então, na verdade, o que interessa ao
M.E. é exatamente o contacto com aquela fração da categoria dos
trabalhadores intelectuais engajados nas lutas democráticas. É uma
forma de relacionamento possível na medida em que estes trabalha-
dores intelectuais possuem associações, como OAB, associação dos
professores, etc. Neste caso, a primeira dimensão desse relaciona-
mento seria evidentemente a busca de formas de ação comum entre
o M.E. e intelectuais democráticos congregados nessas associações.
Mas gostaria de me referir aqui a uma contribuição diferente que
poderiam dar os intelectuais nessa etapa da luta política. Eu me
referiria, especialmente, àqueles intelectuais que Foucault designa
como intelectuais específicos: médicos, advogados, físicos, agrônomos,
etc. Os intelectuais específicos, nesta etapa, têm uma função muito
importante que é a de ampliar as denúncias sobre todas as expres-
sões tópicas, localizadas, setoriais, da existência generalizada de me-
canismos não-democráticos. Ou seja, a denúncia da existência destes
mecanismos nos hospitais, na justiça, nas escolas, no campo e assim
Por diante. É claro que se este tipo de trabalho ganha importância,
55
o que podemos constatar cada vez mais, o M.E. apresenta, de um
lado, como um auditório privilegiado para este tipo de denúncia,
mas, de outro lado, e ao mesmo tempo, como um excelente agente
difusor dessa modalidade de ação ideológica pela democracia, isto é,
a denúncia localizada de todas as práticas cotidianas antidemocráti-
cas. Parece-me que este tipo de trabalho contribuiria decisivamente
para o aprofundamento do próprio conteúdo social da luta demo-
crática e, em última instância, para a criação no país daquilo que
poderíamos chamar de um caldo de cultura democrático; isto é,
este caráter generalizado que a luta democrática precisa ter para
que atinja suas metas.
Cara a Cara: Você falou várias vezes em luta democrática, luta pela
democracia e caráter democrático da luta. Gostaria que você pre-
cisasse o que entende por este caráter, enfim, o que isto significa
para você.
Décio Saes: O que me parece importante reconhecer é que a tarefa
fundamental deste momento é a restauração das liberdades demo-
cráticas burguesas. Depois de uma longa quadra de dominação pura-
mente ditatorial, os setores populares têm um interesse em aglutinar
forças para restaurar e ampliar estas liberdades democráticas bur-
guesas.
Cara a Cara: Você admitiu que o M.E. poderia apresentar um des-
censo num momento de ascenso geral por causa de um distancia-
mento dos objetivos político-corporativos dos estudantes. Você acha
que isto teria acontecido no segundo semestre de 1977?
Décio Saes: Sem generalizar e sem fazer julgamentos externos ao
ME., gostaria de lembrar um caso que parece sintomático: o caso
da UhB, uma situação onde era evidente a possibiUdade de mobili-
zação da categoria estudantil, não só a nível local mas também na-
cional, e que não teve uma resposta adequada. Essa situação pedia
uma continuidade da ação na medida em que era um tema capaz
de mobilizar ainda a massa dos estudantes, um caso extremamente
grave e não tão freqüente de ocupação militar da universidade. Na
prática essa oportunidade foi perdida. Quer dizer, houve um recuo
das lideranças do M.E. Em geral (e não apenas de Brasília, onde
as condições de ação talvez fossem muito desfavoráveis) numa ques-
tão que mobilizava concretamente todas as suas frações: até mesmo
sua maioria conservadora teria razões para permanecer mobilizada
nessa situação de crise e, na verdade, não houve resposta adequada.
Temos assim um caso sintomático de descenso específico do M.E.
numa conjuntura de ascenso político geral da luta democrática.
Cara a Cara: Você concorda com a análise de que o M.E. foi em
1977 o detonador da crise política maior, o agente que provocou
a explicitação de todas as propostas de redemocratização?
56
Décio Saes: Não temos todos os elementos para dizer isso. Talvez
fosse um pouco forte usar a palavra detonador, porque na verdade
foi um ano em que se acumularam contradições da ordem mais
variada. Um ano que é marcado pela aproximação acelerada da ques-
tão sucessória e em que setores ligados à burguesia começaram a
se manifestar de maneira crescente. Um ano marcado igualmente
pela questão da reposição salarial. Assim, não se pode estabelecer
a priori nenhum tipo de relação que garanta que tudo isso de uma
certa maneira se deveu prioritariamente à explosão estudantil do
primeiro semestre. O que me parece evidente é que o ascenso do
M.E. no primeiro semestre ajudou, ao nível da ação ideológica, em
primeiro lugar, a atrair camadas crescentes da classe média para
essas lutas; e em segundo lugar, desempenhou aquela função de
abrir espaço político para manifestações de setores das classes po-
pulares. E, quando me refiro a espaço político, quero dizer que a
partir dessas manifestações se toma claro que esses setores não
estão mais isolados nas suas lutas e que então se visualiza a possi-
bilidade de atuação comum no quadro das lutas democráticas.
Cara a Cara: Para certos setores o movimento de massas está em
ascensão, para outros, houve um certo refluxo, principalmente no
ME., no segundo semestre de 1977. O que você pensa sobre isso?
Décio Saes: Parece-me claro que desde o início do ano para cá, em-
bora não se possa falar em ascenso do movimento de massas, ele
superou uma situação de pura resistência que se prolongava. Uma
vez superada uma situação de pura resistência, recuperação,
preservação de forças diante do período de ofensiva da burguesia
que se prolongava desde 64, se toma fácil dizer se o movimento de
massas se encontra numa fase de ascenso ou de ofensiva. O impor-
tante é constatar que há um progressivo avanço desse movimento.
Um exemplo claro é a ação desenvolvida por setores das classes
Populares, trabalhadores da indústria, que conduzem a campanha
Pela reposição salarial e lançam abertamente o tema da própria re-
organização corporativa. O importante é dizer que aquela fase de
pura resistência está superada.

Cara a Cara com o Padre Benedetti


Cara a Cara: Como encara você o M.E. enquanto parte de um mo-
vimento de oposição?
P- Benedetti: Eu vejo o ME. como vanguarda. Acho que ele é com-
posto, digamos assim, por um pessoal que tem o "olho aberto".
Um pessoal que confronta aquilo que é dito oficialmente com aquilo
que está por trás, ou seja, um pessoal que faz ciência e a ciência
é sempre um fator de conscientização. E acho que quando a gente
57
começa a enxergar as coisas, começa a querer mudá-las porque per-
cebe que a consciência meramente intelectual não resolve nada. E,
ao lado disso, também existe, no meu modo de entender, o fator
idade. É uma explicação meio psicologista, mas, de qualquer modo,
acho que a juventude é mais sensivel a uma situação de injustiça,
ela realmente detesta situações de privilégios. E estes dois fatores,
conjugados, dão, a meu ver, maior relevância ao ME.
Cara a Cara: Qual é, a seu ver, o papel que o ME. desempenha hoje
no interior das oposições da sociedade brasileira?
P. Benedetti: Para mim o papel que o M.E. desempenha é fundamen-
tal. É fundamental, mas tem um problema muito sério aí: ele é,
às vezes, um pouco desacreditado. Exatamente por ter uma cons-
ciência crítica maior, às vezes se propõem bandeiras que ficam muito
além da capacidade de compreensão da grande maioria do povo.
Então, às vezes, ele deixa de ter a relevância que deveria ter en-
quanto movimento de oposição. Pelo menos é assim que eu vejo o
que aconteceu em 68. Além disso, às vezes desqualifica-se um pouco
o protesto estudantil, dizendo-se: o estudante é um privilegiado, está
numa situação melhor e no fundo, quando se formar, também vai
se integrar ao sistema e passar a agir como as outras pessoas agem.
Acho que este tipo de argumento é apenas um argumento para
acusar. Isso fica bem claro, mas, de qualquer forma, constituí um
dos problemas que se coloca para a atuação estudantil. Essa argu-
mentação que é muito usada pela classe dominante, contribuí para
enfraquecer o ME. porque realmente o estudante, nos dias de hoje,
é um privilegiado.
Cara a Cara: Gostaríamos de saber qual foi, no seu entender, o
papel específico que o M.E. desempenhou em 77.
P. Benedetti: Ah, certo. Acho que ele teve um papel específico, so-
bretudo em 77, e o papel dele foi exatamente mostrar que não é
ele sozinho que está no movimento de oposição. Quer dizer, quando
o estudante foi pra rua, por trás dele a gente percebeu vários seto-
res tomando posição. Percebeu-se aquele esforço do jornalista em
tomar posição dentro de uma empresa, que é o jornal. Percebeu-se
a tomada de posição do próprio povo, na medida em que desempe-
nhava o papel, em que torcia pelo estudante contra o policial. Num
certo sentido o ME. foi uma voz que se levantou, mas que tinha
atrás de si todo um coro, e a gente talvez não percebesse esse coro
enquanto alguém não puxasse o canto. Então, vejo que o M.E. mos-
trou em 77 que o movimento de oposição é bem maior que o M.E.;
no estudante se revelou a insatisfação de todo o povo.
Há também aí um dado que é importante: houve uma mudança
na linguagem do M.E. É evidente que em 68 se era muito mais
radical, no sentido de se contestar realmente o modo de produção
(linguagem usada na época). Hoje, não; o estudante fala em líber-
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dades democráticas, em liberdade de debater, em diminuição do custo
de vida: o povo precisa comer, vestir-se, morar. Não quero dizer
com isto que só por esta mudança de linguagem é que se manifestou
um apoio maior ao movimento. Acho que este foi um fator, mas
o fator maior é que existia latente uma oposição muito mais ampla.
O estudante foi aquele que apenas se manifestou e deu chance para
que outros também aparecessem.
Cara a Cara: Como você vê o papel que o M.E. deveria desempenhar
aqui e agora?
P. Benedetti: O problema que se coloca nesta pergunta está um
pouco dentro da primeira. A gente tem que reconhecer que o es-
tudante realmente não se identifica com o povo; ele fala do povo,
nias não é povo. O próprio fato de ser estudante já o separa, já o
coloca como privilegiado. A própria instrução o separa do povo.
Num certo sentido isso cria uma defasagem entre ele e o povo.
Então, acho que seria um desafio para o M.E. tentar uma maior
aproximação, seja a nível acadêmico, seja a nível prático. Trata-se
de encontrar um meio de chegar ao povo. Não para levar coisas
Para ele, não para defender a causa do povo, do lugar dele, mas com
e
le. Acho que este é um passo que deve ser dado e é um grande
desafio. Enquanto Igreja a gente sente isso. Este passo tem que ser
dado, talvez passando das manifestações de massa para uma ten-
tativa de trabalho de base. Que se tente um trabalho de fazer o
povo tomar consciência de quem ele é, de seu valor, para que ele,
consciente disso, possa também ter uma ação prática transforma-
dora.
Eu acho ainda que o estudante fala sempre de uma perspectiva
acadêmica e a gente tem que reconhecer que o acadêmico é muito
hermético. Acho que é um desafio para o M.E. fazer com que o
estudante, o intelectual, o cientista, a universidade, sejam mediado-
res; fazer com que o saber não se esgote aí, mas que seja apenas
um meio de, através da universidade, voltar ao povo, a fim de que
a universidade não seja um castelo. A deselitização da universidade
é um desafio que deve ser vencido. Não se trata, no meu modo de
entender, de dizer que a universidade é para o povo, como se falava
em 63, 64 e 65; mas se trata de fazer com que a universidade não
se encastele. Levar o povo para a universidade talvez seja uma pers-
pectiva burguesa ou pequeno-burguesa; acho que o desafio maior é
íazer uma universidade voltada para o povo. Acho que ainda não
existem condições mínimas para que isto aconteça. Mas, de qualquer
forma, este projeto, esta utopia, tem sua função teórica. Acho que
se trata de tentar chegar a isto. Os temas que dizem respeito ao
povo deviam ser objetos mais constantes de pesquisa universitária.
No campo da política, por exemplo, aquilo que é peculiar ao povo
deveria ser objeto de pesquisa universitária, por ser uma coisa real-
mente do povo que precisa ser estudada para se compreender me-
59
lhor, embora soe como não-acadêmico. E a partir deste tipo de estudo
deveríamos tirar lições práticas para que isso sirva também para
a libertação do povo. É preciso não achar que o intelectual se esgota
em si mesmo. Ele é sempre um mediador que deveria fazer chegar
seu saber ao povo.
Cara a Cara: Ao se referir a um certo distanciamento entre o estu-
dante e o povo, você está procurando explicá-lo muito mais a partir
da condição especifica do estudante, que tem mais acesso à instru-
ção e pode por isso fazer uso de um instrumental teórico mais
elaborado. Este problema, no entanto, não estaria também referido
a uma certa concepção política de como atuar no movimento de
massas? Não teria, enfim, relação com um certo vanguardismo que
levaria a esse tipo de atitude de querer ensinar ao povo alguma
coisa ao invés de tentar trabalhar junto com ele?
P. Benedetti: Tem sim, mas acho que a razão é ainda mais profunda.
E acho que a razão mais profunda é esta: vivemos em uma socie-
dade de classes e temos que reconhecer que o acesso à cultura,
salvo exceções, depende muito de nossa situação econômica. Então,
o estudante faz parte de uma determinada classe, uma classe que
realmente, por toda uma ideologia, não se identifica com o povo.
Talvez a causa seja esta e talvez seja necessário o MJE. tomar cons-
ciência disto, o que seria no fundo tomar consciência da realidade
da sociedade de classes e de como nós estamos inseridos dentro
dela e de que não é por um passe de mágica que vamos solucionar
o problema. Acho que a solução é uma transformação da consciên-
cia; supõe que o estudante, mais do que intelectualmente, efetiva-
mente, na prática, mude sua consciência de classe.
Cara a Cara: Como você encara a possibilidade de uma atuação co-
mum entre o ME. e a Igreja?
P. Benedetti: A questão da relação do MJE. com a Igreja coloca
alguns problemas mais interessantes. Quando se fala de Igreja em
geral corre-se o risco de se imaginar alguma coisa monolítica. Acho
que toda a contradição que existe na sociedade em termos de ação
poUtica — há o reacionário, o liberal-burguês, a esquerda, o centro
— está presente na Igreja, e realmente não sei quem é mais forte
dentro da Igreja. De fato, há um setor engajado, preocupado efeti-
vamente com uma atuação transformadora. Em todo caso, é neces-
sário deixar claras estas distinções.
Agora, em termos de uma atuação concreta do MJE. com certos
setores da Igreja, com sinceridade posso dizer o seguinte: vejo esta
possibilidade de atuação em termos de uma opção pessoal, não numa
linha de opção institucional. Eu me explico: não sei se devo tomar
todo o meu trabalho, toda a minha ação política, como Igreja, mas
como partindo de alguém que pertence à comunidade humana, que
tem uma posição política, se não explícita, pelo menos implícita
em tudo o que faz. Portanto, esta atuação política que tenho me leva
60
a agir politicamente de modo coerente também no âmbito religioso.
É evidente que, se faço um sermão numa missa, ele tem uma di-
mensão política muito clara: pode ser um instrumento a serviço da
manutenção da situação, de acomodamento, mas acho, com toda am-
bigüidade que isso comporta, que pode ser também um instrumento
de transformação. Então, é preciso que fique claro isto: não posso
me comprometer, enquanto instituição, com o ME., mas enquanto
um homem político, na medida em que se entenda por pohtica a
participação na tarefa de construção de uma sociedade mais huma-
na, mais justa, mais livre, enfim, uma sociedade que supere a so-
ciedade de classes.
Cara a Cara: No caso dos movimentos de base da Igreja, como a
pastoral, por exemplo, como veria uma atuação conjunta entre este
setor e o M.E.?
P. Benedetti: Eu não sei, devido a certas características presentes
no M.E. Num certo sentido ele está distanciado do povo e isso mais
por um problema de ordem estrutural do que por uma posição cons-
ciente. Por outro lado, quando se liga explicitamente ao ME. um
tipo de atuação pastoral junto ao povo e que tenha caráter trans-
formador, é interessante saber até que ponto isto não faz com que
determinadas salvaguardas com que conta a instituição sejam cor-
tadas. Pode ocorrer que sejam tiradas todas aquelas condições de
atuação prática que se tinha até então, exatamente porque era um
movimento, digamos assim, não-marcado, um movimento que tinha
nma salvaguarda institucional muito grande, da qual se depende
muitas vezes para trabalhar junto ao povo.
Isso não quer dizer que se deva atuar em linhas diferentes. Não
é isso que quero dizer; mas acho que o estudante tem uma peculia-
ridade própria, ou pelo menos ainda tem, que faz com que ao ligar,
atrelar um outro tipo de trabalho a ele, se possa queimar o outro
trabalho. Embora no fundo se queira a mesma coisa, não sei até
Que ponto não seria interessante trabalhar separado ao nível explí-
cito. Acho que não se pode queimar uma pastoral operária por
causa do ME. Pode-se, por exemplo, desenvolver determinado tipo
de trabalho com um grupo de operários de tal forma que no dia
de uma manifestação estudantil alguns vão lá engrossá-la, enquanto
uma opção política, conseqüência de um trabalho de base já feito.

Cara a Cara com um Operário da Oposição Sindical


dos Metalúrgicos de São Paulo
Cara a Cara: Quais são, a seu ver, as possibihdades e limites do
M.E. enquanto movimento de oposição?
Operário: Existe uma luta que é uma luta geral de todas as oposi-
Ções, que todos os setores da sociedade enfrentam. Além disso, o
61
M.E. tem um significado próprio enquanto movimento com seus
aspectos particulares como a luta na universidade, nas faculdades.
O que vejo de fundamental é que em determinados momentos, de-
pendendo de a proposta ser ou não ser mais correta, ele tem uma
maior aproximação com certos setores. A limitação dele é a de qual-
quer outro setor com exceção do movimento operário, dos traba-
lhadores em geral. Na medida em que não tem o seu centro na
produção, o M.E. revela seus limites.
Para mim está claro, em princípio, que a função da faculdade é
produzir quadros para a burguesia. Embora este processo vá con-
tinuar até que haja uma mudança, dependendo de quem está lá
dentro é possível assumir um posicionamento crítico. Uma limitação
do M.E. é que se choca com uma ordem de coisas que tem aí.
Quando determinadas lutas extrapolam para questões mais gerais,
como no caso da anistia, do habeas-corpus, se outros setores não
estiverem participando das mesmas lutas, acho muito difícil levá-las
adiante.
Ao nível interno, outro problema que deve ser considerado é que
a relação da vanguarda com os estudantes ainda é muito difícil.
Apesar de existirem vários grupos, várias pessoas atuando dentro
da faculdade, na verdade é uma vanguarda que atua. É preciso haver
um alargamento da participação no M.E., pois existe uma massa
estudantil muito grande e hoje quem participa são fundamentalmen-
te os alunos das universidades oficiais. Nas escolas particulares há
uma baixa participação e são elas que contêm elementos de outros
setores sociais, ou seja, o pessoal que trabalha durante o dia e que
teria condições de também estar participando. Não vejo a univer-
sidade como formadora de quadros, mas acredito que o M.E. é um
movimento auxiliar que tem tarefas específicas. Dentro de suas lutas
específicas é importante que haja uma maior participação estudan-
til. Não sei como isso poderia ocorrer, porque não conheço o ME.
por dentro. Não sei, por exemplo, se a participação ao nível das
assembléias tem levado em conta todos os degraus necessários da
história: o problema das classes, de que forma são escolhidos os
representantes, os delegados, etc.
Cara a Cara: Você quis dizer que o MJE. nas suas lutas mais gerais,
por exemplo, pela anistia, pela Constituinte, tem muito pouca força
se não estiver articulado a outros setores, especialmente ao movi-
mento operário?
Operário: É quase isso. É fora de dúvida que o M.E. exerce sempre
um papel fundamental porque é um setor que se aglutina mais fácil,
que tem seus momentos de conscientização e explosão mais rápidos.
No fundo as lutas do ME. traduzem, dando-lhes um sentido mais
amplo, as lutas dentro da sociedade. Por isso, independentemente de
outros setores, o M.E. tem uma função. Se, hoje, o setor operário,
por estar bastante reprimido, não se encontra no seu conjunto mi-
62
nimamente organizado para desenvolver determinados tipos de luta,
a importância que vejo no M.E. é que ele tem condição de levar
essas lutas. É lógico que o ME. é limitado, mas até chegar aos
seus limites ele pode despertar vários outros setores da sociedade
ou dos trabalhadores. Um movimento pela anistia, por exemplo, é
pelo menos minimamente veiculado em jornal, rádio, etc.
Nesse sentido se reforça a sua condição de ponta-de-lança da insa-
tisfação existente. Em quase todas as lutas, com exceção das lutas
específicas do movimento operário, o primeiro grito de insatisfação
de toda a sociedade normalmente parte da faculdade. Você tem aglu-
tinada na faculdade uma série de pessoas com uma certa conscien-
tização, com uma certa disponibilidade, e as lutas que estão se dando
na faculdade encontram sua forma mais "acabada" dentro da fa-
culdade, como é o caso da luta pela anistia, pelo abeas-corpus, pela
Constituinte e todas estas questões que aí estão. Para mim o ME.
é termômetro da sociedade porque é formado basicamente pela
classe média que funciona como o termômetro da insatisfação. A
classe média está entre os dois pólos de luta, entre a burguesia e
o proletariado, ela sofre pressões dos dois lados em determinados
momentos, como de alguns momentos para cá, e assume certas lutas.
Cara a Cara: Levando em conta a existência de um regime altamente
repressivo, que dificulta em muito o trabalho do M.O. como por
exemplo o de oposição sindical, você acha que há um peso especí-
fico do MJE. com relação a esta conjuntura de repressão? Por outras
palavras, o ME. teria nesta conjuntura um peso decisivo na luta
contra a ditadura, mais ou menos independente da participação de
outros setores sociais?
Operário: Sem dúvida alguma há uma especificidade. Mas nem tudo
que está aí eu acredito que o ME. tenha condição de mudar. Acre-
dito, isto sim, que o ME. tem condição de abrir brechas de atuação,
levar a luta contra alguns pontos mais fracos do governo que estão
sendo questionados. É o caso da luta pela anistia, que não faz parte
do cotidiano do operariado, mas é uma luta importante. A burguesia,
o governo, têm condições de absorver isso e abrir esse espaço de
atuação. O M.O. não tem a mobihdade com que conta o ME. em
termos de articulação entre estados diferentes e de veiculaçao de
informações e discussões através de jornais. A especificidade do
M.E. é então criar brechas onde inclusive outros setores vao traba-
lhar, é o caso da ampliação das liberdades democráticas.
Não acredito que o ME. sozinho consiga levar a luta das oposi-
Ções. Ele é um pólo que aglutina outros setores descontentes de
classe média, como advogados, médicos e assim por diante. Tem con-
dições para fazer um movimento pela anistia, pelas liberdades demo-
cráticas, pelo fim do AI-5, embora com isso ele não va acabar com
o AI-5. Agora, nas lutas que colocam em xeque o próprio Sovevno
eu acho muito difícil que o ME. sozinho tenha a possibilidade de
ser bem sucedido. Para tanto, ele deveria contar com o apoio não só
dos operários como também do conjunto dos trabalhadores. Aliás,
eu acho que seria fundamental que houvesse coesão e identidade
entre o ME. e o M.O. Concretamente não temos isto hoje, mas me
parece importante caminharmos para atingir este nível.
Cara a Cara: Que alternativa concreta você vê para que haja uma
articulação efetiva entre o M.E. e o M.O.?
Operário: Vou falar a partir da própria prática da gente. Antes de
mais nada convém esclarecer que é necessário um mínimo de orga-
nização para se chegar a isso, pois não acredito em uma visão es-
ponteneísta segundo a qual, num determinado momento da luta, as
coisas vão acontecendo naturalmente. Para que essa articulação possa
ser alcançada é indispensável que tanto o MJS. como o M.O. estejam
relativamente organizados. Seja lá como for, em muitos setores da
oposição sindical, em alguns bairros, existem pelo menos alguns
exemplos em miniatura de como essa articulação pode ser conse-
guida. Em São Paulo, de certa forma, está acontecendo isso, embora
eu não ache que seja a maneira mais correta, através do movimento
do custo de vida, que conta com alguma participação do MJS. e do
M.O.
Cara a Cara: Por que não lhe parece ser esta a forma mais correta?
Operário: Porque não concordo com a forma como é conduzido esse
movimento. No fundo, a coisa caminha sob a direção da Igreja. E o
que temos? Um movimento popular que não é enraizado na fábrica,
mas parte do bairro. E, partindo do bairro, não ecredito que tenha
tanta força para questionar as coisas de uma maneira mais ampla.
Veja bem, a questão do custo de vida mexe diretamente com os
salários. No fundo isto tem a ver com a luta contra o arrocho, que
é a política determinante de 64 para cá. A meu ver a luta contra o
arrocho é tuna luta sindical que poderia até levar a assembléias tais
como as de custo de vida, que são, na verdade, uma extensão do
problema do arrocho. A luta contra o arrocho é a luta mais geral.
Portanto, se a política do arrocho não for questionada — e questio-
nada a partir da luta sindical — a luta contra o custo de vida corre
o risco de não ser bem sucedida.
Voltando ao problema da necessidade da articulação entre o MS.
e o M.O., acho que existem algumas formas de trabalho de conjun-
to, como palestras, discussões em bairros, sociedades de amigos de
bairros, etc. É importante, por exemplo, o estudante entrar para o
bairro e não simplesmente vir para um papo. Há porém outras for-
mas de atuação — cabe a vocês julgar se elas são corretas ou não
— como a participação em diretórios do MDB, com o que eu parti-
cularmente não concordo. Em certos casos, há quem proponha a
formação de cooperativas. Tudo isso depende dos locais e das con-
dições dadas.
64
De toda forma, não é simples, hoje, a integração do M.O. com o
M.E. Atualmente não temos condições de fazer sentar à mesa a
liderança estudantil com a liderança operária. Ambas têm pesos di-
ferentes e práticas diferentes. É necessário, no entanto, que se con-
siga uma articulação mínima ao nível de um trabalho de conjunto.
Mas isso não significa chamar um operário para fazer um discurso
em uma manifestação estudantil. De que vale isso? O que vai tra-
duzir em termos de maior organização do M.O.? Muito pouco ou
nada. É uma intervenção pela intervenção, somente. Não ajuda a arti-
cular, a divulgar e nem ajuda a propagandear ao nível dos operários.
Quanto ao trabalho que estamos desenvolvendo enquanto membros
da oposição sindical, acho que ele abre a possibihdade de um tra-
balho comum com os estudantes. Vejo isso, entretanto, como uma
alternativa, quase que individual mesmo, para poucas pessoas. Nas
eleições sindicais, por exemplo, o estudante pode desempenhar um
certo papel fazendo parte de uma comissão legal de oposição. Pode
desempenhar funções ligadas à propaganda, às finanças, discussões
mais gerais de conjuntura, etc, até ter um mínimo de contacto que
lhe permita ver como andam as coisas. Além disso, o 1.° de Maio
é outra ocasião que pode ser aproveitada para que se faça uma ação
conjunta, deixando claro que essa ação conjunta é possível mas tem
que ter a direção dos trabalhadores. Não consigo ver hoje um jeito
melhor de juntar o MJE. e o M.O. porque atualmente o M.O. está
muito atrasado em relação ao MJE.
Cara a Cara: Você acha que esses tipos de prática, como o trabalho
de bairro e o trabalho à época de eleições sindicais, seriam o mínimo
necessário para que fossem lançadas as bases de uma aproximação
das lideranças do M.E. e do M.O.? Por falar nisso, que avaliação
você faz do Comitê l? de Maio? Parece que ele acabou virando um
comitê só de estudantes...
Operário: Vamos por partes. O Comitê 1° de Maio na verdade foi
muito pouco discutido dentro do M.O. Quando a coisa já vem pronta
o M.O. não pode assumi-la inteiramente. Foi o que aconteceu com
o Comitê 1.° de Maio. Apesar disso, a gente assumiu essa luta dentro
tias nossas possibilidades, que são bastante limitadas. No caso das
prisões de São Bernardo, por exemplo, nós tiramos um boletim, não
para ser divulgado em jornal ou em rádio — porque não temos
condição de agüentar o repuxo — mas para lançar na fábrica para
quem precisa saber das coisas, para quem está mais próximo da
gente. A solidariedade que se pode ter com quem foi preso é desen-
volver o trabalho de fábrica para, amanhã, quando isso tomar a
acontecer, podermos dar um respaldo para quem for preso.
No Comitê 1.° de Maio as dicussões ficaram muito polarizadas.
Os operários que estavam participando ou querendo participar eram
em número reduzido ou foram convidados de uma tal forma que
dificilmente teriam condições de assumir. Exigir que dentro do Co-
65
mitê 1." de Maio uma escola ou um centro acadêmico assine um
boletim é uma coisa. Agora, exigir isso de uma oposição sindical é
outra coisa num momento em que o centro de repressão é o M.O.
Nós estamos juntos com o M.E., mas como? Reforçando nosso tra-
balho na fábrica, no bairro. Foi levado aos bairros o que estava
acontecendo com os estudantes, o que os estudantes estavam que-
rendo. Isso é o que temos condições de fazer.
Agora vamos retomar o problema da articulação entre o M.E. e
o M.O. Volto a insistir que no 1.° de Maio talvez seja possível fazer
alguma coisa mais geral, como, por exemplo, promover alguns cír-
culos de debates nos bairros. Mas é preciso ter claro que o próprio
M.E. é bastante heterogêneo. Vamos supor que um grupo de estu-
dantes vá a um bairro e comece a falar em "fim da ditadura". Ora,
é preciso ter uma certa percepção das coisas e uma linguagem ade-
quada para não estragar todo o trabalho. O problema de hoje estar
mais difícil a aproximação entre o M.E. e o M.O. é que houve erros
de ambas as partes. De um lado, estudantes querendo ir para os
bairros, assembléias, para doutrinar o pessoal e ser o comando. De
outro lado, alguns operários, que passaram por essa época e que
não têm uma compreensão histórica, se arrepiam quando ouvem
falar de estudante, não querendo discutir nada. Neste caso tem-se
que levar em conta que eles estão assumindo por ignorância uma
imagem que é vendida. Por isso a aproximação entre estudantes e
operários deve ser muito diferente da que houve em 1968, deve estar
calcada na realidade que se tem aí. Apesar de haver setores de
trabalhadores apoiando o M.E., o estudante não pode querer entrar
no M.O. e pegar as questões que são próprias do M.O. para ele fazer
as coisas. Acho que se vai levar muito tempo ainda para se fazer
uma aliança operário-estudantil.
Cara a Cara: Vocês da oposição sindical têm discutido alguma coisa
sobre o M.E.? Enfim, como está o debate no interior da oposição
sindical e da classe operária como um todo a respeito das manifes-
tações estudantis?
Operário: A gente tem discutido sobre isso, já que não somos tão
ignorantes em relação ao MJE. Não estamos tão distantes quanto
parece. É verdade que os operários que estão mais comprometidos
com as lutas, a chamada "vanguarda" — e vanguarda entre aspas
— têm formas de discutir com alguns estudantes. Nós, em termos
de oposição, acreditamos que o ME. deu um passo violento pra
gente, particularmente em 77. De que forma? Na forma de passea-
tas, pois de qualquer forma o operário tomou conhecimento delas,
ou porque chegou tarde ao serviço ou porque chegou tarde em casa;
por uma série de motivos se soube que o M.E. estava nas ruas, que
estava lutando por diversas coisas. Muitas vezes o operário não com-
preende, no conjunto, o que são essas coisas. Mas essas passeatas
são importantes porque abrem condições de discussão dentro das
66
fábricas. Assim, nós temos condições, a partir do que está aconte-
cendo, de travar o debate dentro da fábrica. O mais importante é
isto: travar o debate; e isso acontecendo, o operário pode se posi-
cionar. E nesse posicionamento, o pessoal, em geral, está a favor.
Isto é importante, pois difere muito de algumas outras ocasiões
em que se dizia que o estudante é baderneiro, vagabundo. Temos
notado que, de uns tempos para cá, esta imagem, ao nível do
operário, que não tem uma consciência muito clara das coisas,
está mudando. Hoje já se está dizendo: "eles têm que ir pra rua
rnesmo, porque ninguém agüenta mais, e eles têm condições de ir,
nós não temos". Ê lógico que ele faz uma análise incorreta da ques-
tão, mas ele se mostra muito esperançoso. Na medida em que se
naostra esperançoso, uma discussão já está aberta: "por que eles têm
condições de se manifestar e nós não temos?" Ai há possibilidade
de se tocar no problema da unidade: todo mundo fala que a gente
precisa de união, mas como fazer esta união? Por que a gente não
Pode sair às ruas como os estudantes? Que está acontecendo? Então
o pessoal coloca: "a gente não tem unidade, os estudantes são unidos".
Mas por que a gente não é? São questões que parecem muito sim-
ples, mas que permitem despertar muitas pessoas para começarem
a discutir. Ao nível do bairro o M.E. também é muitas vezes co-
mentado. Notícias de jornal são levadas para sociedades, amigos de
bairro, cursos de madureza, mural. Não é todo bairro nem toda
fábrica que está sabendo das coisas, mas pelo menos as pessoas que
eu chamaria de combativas e que foram despertadas por essa mo-
vimentação estudantil.
Também é preciso dizer que em nenhum momento o MJE. quis
nsar o M.O. Teve sempre propostas claras, ainda que em determi-
nados momentos se tenha falado em juntar operários para participar
oas manifestações. Mas parece que houve o predomínio do bom
senso. Tentar articular operários com estudantes é um tipo de coisa
Que é necessário ir discutindo. Até acredito que um certo número
de operários tenha participado dessas manifestações e que na ver-
dade voltaram falando bem delas. Houve bom senso realmente, inclu-
sive no enfrentamento com a polícia. Não houve nenhum movimento
108 pudesse ser classificado como baderna, como bagunça.
Quando o estudante veio com uma série de coisas que atingem o
operário, por exemplo, "contra o arrocho", "contra o aumento do
custo de vida", foi bom. Acho que o centro da coisa foi que algumas
Palavras de ordem tinham muito a ver com os trabalhadores; eles
sentiam que aquilo também era bandeira deles. E depende da ma-
turidade do M.E. aprofundar isto. E não estou querendo dizer apro-
fundar só através de passeatas ou coisas do tipo. Isso vai depender
também da criatividade e da própria dinâmica do ME. Por que,
Ppr exemplo, fazer uma panfletagem no centro da cidade? Por que
n
ão se distribuem panfletos — são opiniões de vários operários —
Uo Tatuapé, em Sto. Amaro, na Penha, em saída de fábricas? Talvez
67
não se precise de passeata, mas que se vá a alguns bairros em de-
terminados momentos e se distribua um determinado material, com
uma linguagem clara, para que as pessoas vejam que tem mais
gente que não está satisfeita com a atual situação. Não estou dizen-
do que o ME. tem que fazer isso, estou apenas dando exemplos.
Cara a Cara: O que você acha das palavras de ordem "pelas liber-
dades democráticas", "pela Constituinte", "pela liberdade de organi-
zação e expressão"?
Operário: Acho que é preciso compreender muito bem o que quer
dizer liberdades democráticas. Para o M.O. isso adquire certos signi-
ficados precisos, por exemplo, desatrelamento do movimento sindical,
direito de se organizar nas fábricas, como em comissões, etc. Para
nós liberdades democráticas tem esse peso, compreende?
Cara a Cara: Parece que essa colocação é feita do ponto de vista
da oposição sindical. Agora, estas palavras de ordem mais políticas,
como liberdades democráticas, liberdade de organização e expressão,
pela Constituinte, possuem alguma significação concreta para o con-
junto da classe operária? Conseguem tocar de alguma forma o ope-
rário médio?
Operário: Eu diria o seguinte: "pela Constituinte", hoje, não toca.
Ninguém sabe o que é Constituinte. É mais difícil o operário conse-
guir traduzir ao nível de suas necessidades o que é uma Constituinte.
É preciso um preparo anterior, um mínimo de prática anterior para
se chegar a entender isso. Agora, quando se fala em liberdades de-
mocráticas pode-se dizer que há operários que estão sendo presos, há
uma série de coisas acontecendo, estudante está aí se manifestando,
tem só ARENA e MDB, e se tivesse liberdades democráticas a gente
ia poder discutir dentro da fábrica. Então, como liberdades demo-
cráticas é uma expressão bastante ampla dá para ser traduzida ao
nível das necessidades do operário.
Um outro exemplo: a questão da anistia. Muitas vezes se comen-
tava na fábrica: "pô... quem quer defender a gente está preso",
"cara que fala muito, quer fazer muito, está preso". Ora, seria inte-
ressante não ser preso. Assim, a discussão sobre liberdades demo-
cráticas vai entrando no nível dessas questões concretas. Seria bom
poder discutir dentro da fábrica sem ser chamado de subversivo
— aliás, esta é uma imagem que preocupa muito o operário em ge-
ral, os caras têm pavor de ser chamados de subversivos.
Com relação à Constituinte, é necessário o operário ter um nível
de consciência mais ou menos razoável para poder entender o que
vem a ser isso. Eu diria que hoje é mínima a parcela que tem
condição para entender isso. E a parcela que tem, que conhece o
que é Constituinte, está dividida. Uns pensam assim: "que adianta
Constituinte se a gente não está organizado?"; outros já dizem: "mas
a gente se organiza durante o processo", ou então: "mas, afinal, é

68
uma Constituinte burguesa, no fundo eles vão fazer a coisa e a gente
vai ter só que assinar". Quem tem um certo nível de consciência
está bastante dividido sobre essa questão. Quem não tem não sabe
o que é isso para poder dar opinião.
Cara a Cara: Como é que se poderia colocar mais especificamente a
questão da liberdade de organização e expressão junto à classe ope-
rária, hoje?
Operário: Eu só posso falar a partir das minhas experiências de fá-
brica e das discussões que a gente mantém com outros companheiros
que estão preocupados com esse problema. Quando se fala em liber-
dade de organização e expressão não é dessa forma que ela aparece
na prática. Ela aparece ligada a problemas específicos, como, por
exemplo, quando se diz: "hoje a gente podia ter o direito de escolher
um cara aqui dentro da fábrica que representasse a gente e que
não fosse mandado embora"; "seria como se o sindicato pudesse
funcionar livremente, se a gente pudesse ter outros partidos além
da ARENA e do MDB e eleger algum cara que está aí na luta".
Mas quem diz isso ainda é o pessoal que está começando a ter um
mínimo de consciência da situação.
Na verdade, traduzir esses problemas políticos para o dia-a-dia
dos operários não é tão simples assim. A absorção da classe em
termos do econômico é quase que imediata porque é em função disso
que ela sofre no dia-a-dia: salários baixos, perseguição dentro da
fábrica, etc. Por isso o descontentamento do operário vem a partir
do nível econômico, que toca diretamente a ele. Ele tem família,
Paga aluguel normalmente, ganha pouco e se vê obrigado a fazer
muitas horas extras. E a gente que está trabalhando dentro da fá-
brica tem que ir aos poucos mostrando os aspectos políticos da
questão. Quando se discute o arrocho, por exemplo, você tem que
conseguir mostrar que não é só esse ou aquele patrão que é ruim,
mas que isso faz parte do que é o governo. A partir daí deve-se
discutir por que o governo bota o arrocho salarial ou aumenta as
coisas e o salário não aumenta. Enfim, é necessário questionar em
termos de classe, ter um posicionamento de classe, senão é muito
difícil o operário chegar às palavras de ordem políticas. É necessário
traduzir liberdade de manifestação e organização para as necessida-
des concretas dos operários. As palavras soltas no ar são difíceis
de serem absorvidas pela classe.
Cara a Cara: Você teria mais alguma colocação que gostaria de fazer?
Operário: Em primeiro lugar eu queria lembrar uma coisa que tem
que ser levada em conta: o nível de consciência do conjunto dos
operários é baixo. Se elementos especialistas estão hoje meio perdi-
dos, imagine a situação da gente no M.O., trabalhando oito, dez, doze
horas por dia. Para uma série de questões não estamos tendo res-
postas. Não estamos tendo nem tempo para sentar e para discutir,
69
porque a gente tem os problemas diários, prementes, que temos
que atacar primeiro. Por isso muito do que disse é mais pela obser-
vação concreta das coisas, que nem sempre correspondem à reali-
dade histórica. Nós nem sentamos, nem fazemos uma reunião de
três dias para discutir isso tudo com um método científico, a fim
de podermos dizer que o nosso posicionamento em termos de opo-
sição é este ou aquele.
Insisto que para as questões que a gente chamaria "as grandes
questões" não temos uma resposta pronta. Só a prática, aliada às
discussões que surgem dessa prática, podem dar resposta, indicar os
caminhos a serem seguidos. Curso de natação por correspondência
não existe. Você pode ler, ler, ler, e nunca vai aprender a nadar.
É a mesma coisa. Não adianta sentarem três caras do M.O. com
três caras do M.E. e bolarem uma fórmula perfeita. A aproximação
concreta depende de um mínimo de prática conjunta que se vai
fazendo e analisando. Aliás, não podemos dizer que tudo o que foi
feito até agora foi errado. Houve muitas coisas interessantes. É pre-
ciso ver os erros, os acertos e procurar caminhar.

CONTRAPONTO
Revista Quadrimestral

No n 2, já à venda
A Crise Política e a Luta pela Democracia no Brasil — mesa redonda com:
Francisco Weffort, Francisco de Oliveira, João Carlos Torres, Jorge Batista
e José Álvaro Moisés.
Estado e Capital — G. Mathias

Notas sobre a Evolução da Crise Atual e a Questão da Democracia —


Sydney Sérgio F. Soiis e Cláudio Roberto Frischtak

Classe Média e Política de Classe — Décio Saes

Casa e Trabalho — Moacir Palmeira

A Idealização do Passado numa Área de Plantation — Lygia Sigaud

Nordeste, Capital: São Paulo — Ana Valderez Amorim Batista

CONTRAPONTO — Revista do Centro de Estudos


Noel Nutels — Rio de Janeiro

70
Cara a Cara com o Movimento Estudantil *

I. Uma frente tão difícil quanto necessária


1. Quando, numa noite chuvosa e fria de setembro, o coronel Erasmo
Dias carregou contra os estudantes que, reunidos no campus da
PUC/SP, realizavam o II Encontro Nacional objetivando a reconstru-
ção da UNE, mais do que um novo ato de violência do "vilão oficial"
do regime, ficou claro que o movimento estudantil estava diante de
um impasse: o que fazer com o potencial capitalizado nas manifesta-
ções do primeiro semestre de 77, agora que fora atingido o limite
permitido pelo regime, pelo menos na atual correlação de forças?
Olhando para trás, para as mobilizações ocorridas em São Paulo,
principalmente, mas também no Rio, Brasília, Belo Horizonte e outros
grandes centros, no 1' semestre do ano que passou, não há como negar
a existência de um saldo favorável nas lutas dos estudantes pela
democracia. Sabiamente, o progressivo movimento de massas que
ressurgiu das cinzas e do torpor causados pela repressão do início
da década evitou o vanguardismo que caracterizou o período 68-70,
negando-se ao enfrentamento direto com os aparelhos policiais, e o
Que foi importante, capitalizando em popularidade para suas pala-
vras de ordem os desmandos de um Estado arbitrário e violento.
O amplo movimento de desobediência civil, na maior parte das ve-
zes pacífico, encabeçado pelos estudantes não apenas ampliou o es-
forço político possível, mas, ao mesmo tempo e principalmente, gene-
ralizou pelo conjunto da população brasileira o questionamento da
validade das regras impostas, em certos casos, colocou em questão
0
próprio regime ditatorial. Nas passeatas e reuniões estudantis
viam-se, lado a lado, faixas pedindo o fim do arrocho salarial, o fim
do decreto-lei 477, faixas contra a carestia, contra o AI-5 e por liber-
dades democráticas. É inegável que, apesar dos quase 10 anos que
nos separam do ascenso de 68, a memória política do M.E. guardava
lições daquela época. Ficara claro que os estudantes, sozinhos, não
fariam as transformações sociais esperadas; e mais: qualquer estu-
dante, mais ou menos informado, hoje repudia a idéia de que o
M.E. substitua outras forças sociais — em especial a classe ope-
rária e o campesinato.
Garantimos às tendências participantes do debate e aos entrevistados pleno
direito de resposta às considerações que aqui sâo feitas.

71
Alastra-se a noção de que o movimento dos estudantes é algo
orgânico que deve vincular intimamente, por um lado, suas lide-
ranças e bases, e, por outro, estudantes, operários, trabalhadores
rurais e camponeses, intelectuais, profissionais liberais, políticos, etc.
num amplo movimento de massas de oposição. Entretanto, este avan-
ço inconteste do nível de consciência do M.E. foi, em grande parte,
um dado espontâneo do conjunto dos estudantes. De nada servem
observações de que esta ou aquela tendência organizada tinha esta
ou aquela posição correta. O lado objetivo da questão mostra que
prevaleceu nas assembléias estudantis o "bom senso" das massas e,
exatamente, por isso, a maioria das lideranças demonstrou sabedoria
ao acatá-lo, organizá-lo e levá-lo adiante. Foi em nome desse bom
senso que se evitou o enfrentamento direto com a polícia, assim
como foi também em seu nome que se repudiou o vanguardismo e
o esquerdismo voluntarista. Este movimento, se teve um sentido,
foi, sem dúvida, de baixo para cima. O avanço do M.E. em relação
a 68 deveu-se precisamente à pressão das massas e foram elas que
o puseram na ofensiva.
Mas essa ofensiva teve seu limite dado pela sua própria esponta-
neidade. A partir de certo momento, medido talvez pela reunião da
Faculdade de Medicina da USP, fazia-se necessário que as lideranças
eleitas pelas massas dessem respostas capazes de garantir a conti-
nuidade do movimento; respostas que calassem fundo nos amplos
setores descontentes que hoje formam a massa de oposição no Brasil,
evitando o refluxo. E esse refluxo viria, inevitavelmente, caso as li-
deranças não dessem respostas ao nível da organização compatíveis
com a realidade objetiva do movimento de massas de nossos dias.
É certo que hoje, mais que nunca, o terreno é fértil para as opo-
síções democráticas, mas é ilusão pensar que exista no Brasil um
movimento de massas de oposição digno desse nome. Um movimento
implica em um programa mínimo tático; implica em organizações
de base atuantes; implica numa ideologia própria e, finalmente,
numa direção política definida e aceita como tal. Quanto a esses
requisitos, o M.E. fica muito aquém do que se poderia esperar.
O ascenso do primeiro semestre permitiu que alguns desses pon-
tos fossem postos na ordem do dia: algumas lideranças foram legi-
timadas pelo conjunto dos estudantes; a dinâmica do processo apro-
fundou a consciência dos estudantes e seu nível ideológico, além de
colocar diante dos olhos de todos a questão da organização interna
e externa do M.E. e a questão de um programa mínimo que desse
corpo a uma frente única. Essas últimas seriam as grandes colheitas
do M.E., que acabaram por não ser feitas.
Durante o debate realizado em novembro no IFCH/UNICAMP e
aqui reproduzido, um colega do auditório chamava a atenção sobre
a confusão corriqueiramente feita entre o movimento de massas que
eclodiu em 1968 (no Rio chegou-se a ter 100 mil pessoas numa pas-
seata) e a fase militarista que se seguiu no refluxo das manifesta-

72
ções de rua. No objetivo de continuar avançando, as lideranças do
M.E. e uma parcela da massa ligada a elas não se aperceberam de
que progressivamente se descolavam do restante da massa estudantil.
Pior que isso, assumindo a autodeterminação de vanguarda da oposi-
ção ao regime, limitaram seu relacionamento com os demais setores
dessa oposição ao gesto puro e simples. Uma vez dado o exemplo,
os operários, camponeses, donas-de-casa, etc. "viriam atrás". E não
vieram. Num piscar de olhos, essas lideranças não podiam mais
recuar. Nem mesmo no interior das universidades havia mais espa-
ço para elas, pois nada deixaram lá que as abrigasse.
Se em 77 não se verificou esse quadro, o impasse permanece.
Seria simplista e sem base histórica a explicação do desvio van-
guardista apenas por uma questão de "tática errada", ou, como
disse um dos debatedores, por uma "questão de método". Essa obser-
vação, tipica de quem não viveu o processo e, além disso o conhece
pouco, é por demais simplória para ser aceita por qualquer pessoa
que tenha vivido ou conhecido o desenrolar dos acontecimentos.
Na verdade, nada mais restava às lideranças daquela época senão o
gesto e o avanço louco em função dos seus erros de base. Esses erros
começavam pela própria análise de conjuntura, quase sempre deri-
vada por extensão de uma dada visão estratégica de como se desen-
volvia o capitalismo no Brasil, a revolução mundial e coisas assim.
Não raro, tais interpretações preconizavam a queda Iminente da
ditadura, o estreitamento de suas bases, etc. quando o processo real
era exatamente o oposto.
Essas formas de ver a realidade brasileira, quase sempre em níveis
de grande generalidade (raramente se fazia uma análise concreta
de uma situação concreta), eram comumente revestidas de sacrali-
dade e sobre elas não eram admitidas dúvidas. Daí ao sectarismo
e à intransigência não vai mais que um passo. Cabe ressaltar que
esses comportamentos repisavam certo dogmatismo tradicional na
esquerda brasileira do qual se derivam outros tipos de comporta-
mento não menos desconhecidos: a burocratização dos movimentos
e o distanciamento entre lideranças e massa. Cada tendência que se
apossasse de um diretório, de um DCE ou entidade, regional ou na-
cional, fechava-os às demais, feudalizava-os. Daí a pouca preocupa-
ção em forjar entidades de base realmente amplas, abertas e atuan-
tes, onde as divergências (e as concepções) fossem tiradas a limpo
na prática, no processo da luta estudantil e na luta de classes. Sem
organização interna efetiva, como o M.E. de 68 poderia esperar
relacionar-se organicamente com os demais setores da oposição ao
regime? O gesto, o militarismo, o vanguardismo voluntarista seriam
a única opção.
E o que temos em 78? A lembrança da destruição dos melhores
quadros, da desarticulação das bases, do amordaçamento das enti-
dades e centros ainda está clara para o conjunto dos estudantes.
Esse fator transbordou para as assembléias de 77, onde a pressão

73
das massas obrigou — o termo é este — as lideranças à prudência
e à cautela. No ato público na Medicina da USP a massa negou-se
sair às ruas, tomadas por um número sete vezes maior de policiais,
embora não faltasse quem a incitasse ao enfrentamento, fazendo o
jogo dos provocadores. Num outro ato público na PUC/RJ elementos
da massa denunciaram a ilegitimidade e a incompetência do compor-
tamento das lideranças, forçando-as a um consenso sobre os pontos
básicos, fato largamente noticiado na grande imprensa carioca (JB
p. ex.). Isso tudo demonstra que o M.E. precisa e quer se conso-
lidar como movimento organizado, longe das loucuras vanguardistas
de 68. Atualmente, porém, ele está numa espécie de "terra de nin-
guém": repudiou seu passado, mas ainda não construiu seu presente.
A ação espontânea das massas levou-o até aqui; agora, considerando
a ação das lideranças, quais são as perspectivas?
A julgar pelas propostas das tendências que participam desse
debate se poderia dizer que pouca coisa mudou. Em maior ou menor
grau permanece a dificuldade de uma maior concretização. As aná-
lises de conjuntura já vêm prontas de tal modo que sempre justi-
ficam a "correção" das palavras de ordem táticas de cada tendência.
Mesmo em certos casos, como o de Centelha, onde certas preocupa-
ções reais estão esboçadas, ainda não há respostas concretas, pelo
menos a nível organizatório. Por isso não é de se espantar que,
apesar de presente na pauta de discussões, quase nada se tenha
falado sobre o tema organização do M.E., seja internamente, seja
no interior das oposições. Falou-se em fortalecer os centros e dire-
tórios, pregou-se a reabertura da UNE e das UEEs, mas ninguém
arriscou uma só palavra sobre a dinâmica e a organização dessas
entidades.
Por outro lado, a criação e desenvolvimento de organizações au-
tônomas dos estudantes colocaria para as tendências a tarefa de
conquistar a liderança das massas. Entretanto, repetindo 68, todos
ficaram "na sua", buscando preservar-se ao máximo da critica, sem
correr o risco da construção de entidades onde não fosse assegurada
a priori sua hegemonia.
Alguns objetivos são emitidos, mas fora da órbita do M.E., res-
guardando-se, numa atitude suicida, as áreas de influência, pois elas
são cada vez menores e mais fluidas. Fala-se de Constituinte, de
PS, e eis que de repente vemos as lideranças estudantis falando em
nome dos trabalhadores, dos operários e camponeses, como antes.
Nega-se o vanguardismo no discurso e se age vanguardisticamente.
Mas como falar em nome dos outros setores com os quais não se
tem relação orgânica? E como tê-la se o M.E. não existe como mo-
vimento internamente organizado?
Devemos analisar com cuidado essas questões. Em certo momento
do debate está colocado o problema da organização interna do M.E.
Fala-se, então, nos centros acadêmicos como entidades de frente
única (Libelu e Centelha) onde o conjunto dos estudantes se reúne,

74
discute e se organiza para defender seus interesses. E como são vis-
tos esses interesses? Neste caso, recorre-se aos exemplos quase clás-
sicos da luta por apostilas, por melhores restaurantes, contra maus
professores, etc. etc. etc. Libelu cita mesmo o discutido caso da lu-
ta contra a PEG; mas a mesma Libelu, ao comentar as razões do
avanço do ME. em 77, fala que "se ainda estivéssemos na PEG"
nao teríamos dado um passo. Para essa tendência o avanço deveu-se
ao fato de o M.E. ter empunhado bandeiras gerais: liberdades de-
mocráticas. Constituinte, etc. Pode-se então perguntar: uma coisa
nega a outra? Ou em outros termos: como politizar as lutas espe-
cíficas? Como mostrar a relação entre as lutas corporativas dos
estudantes e as lutas mais gerais da sociedade?
Essa questão significa apontar diretamente para o conteúdo de
classe que possuem esses problemas específicos e é nessa medida
que os centros e diretórios ganham vida e podem formar uma só-
lida base molecular para o M.E. como um todo e dar respaldo aos
DCEs, UEEs, e uma futura UNE reconstruída. Mas a ponte não é
feita; fala-se em dar vida aos centros, em politizá-los, em politizar
suas lutas e, até corretamente, fala-se contra a falsa divisão entre
as tarefas dos centros (específicas) e dos DCEs (gerais). Isso, po-
rém, implica em análises mais concretas da realidade, em ambos
os casos. Essa é, sem dúvida, tarefa de liderança, a tarefa que trans-
cende o ascenso espontâneo. E como ficamos? Quando se trata de
análises, além do já citado nível geral destas (e talvez por causa
disso mesmo), recai-se na velha tecla de falar em nome da classe
operaria, do povo oprimido, etc. E isso tem um nome: vanguardismo.
Se o M.E. superou o vanguardismo de 68 ao nível da prática, aque-
les que falam em nome dele — as tendências — em grande parte
não superaram este mesmo vanguardismo ao nível de sua própria
prática. Essa superação só seria possível se fossem forjadas sólidas
bases orgânicas que capitalizassem os ascensos e possibilitassem o
crivo da prática para dirimir questões e concretizar as análises
Resolvendo suas divergências internas, ou pelo menos estabelecendo
pontos de atuação comum ao nível estudantil, sem suprimir a luta
interna, o M.E. teria condições de postular uma aproximação com
os demais setores de oposição sem vanguardismos.
Esse é outro ponto quase ausente nas considerações das tendências-
a relação que o M.E. deve manter com os demais setores do movi-
mento de massas de oposição. Essa relação deve ser orgânica, em
cima de trabalhos comuns, como dizem tanto o metalúrgico de
Sao Paulo, como o deputado Aírton Soares. Isso significa que essa
relação deve-se dar no interior das organizações de massa que este-
jam levando este ou aquele trabalho e, o que é fundamental, em
função do trabalho. Nelas o estudante dissolve a sua identidade
estudantil, mas não seus conhecimentos e posições. Estas, se referen-
ciadas ao trabalho específico do bairro, do sindicato, das associa-
ções voluntárias, das pastorais, etc. darão um grande impulso ao

75
processo em curso, ajudando a organizá-lo, a definir o seu caráter,
alertando para problemas e colaborando com seus conhecimentos e
sua experiência para a sua solução. Em contrapartida, dentro da
universidade terá condições de levar problemas novos, que trans-
cendem o âmbito acadêmico, aprofundando o caráter e a consciên-
cia do M.E. e fazendo dele o veículo para os mais sentidos interesses
da maioria da população brasileira.
Contudo, analisando mais uma vez o debate, vemos que apenas
uma solução foi dada ao problema: a construção do PS. E um
partido político não é e nem pode substituir organizações de massa,
num novo equívoco entre muitos. Um equívoco, aliás perigoso, pois
do ponto de vista do partido ele acarreta tal fluidez orgânica e ideo-
lógica que leva fatalmente a agremiação ao oportunismo, à traição;
por outro lado, do ponto de vista das organizações de massa esse
equívoco, "um partido para movimento de massas" (como o quer
Novo Rumo) acarreta a subordinação das massas ao partido (ou
àqueles que o dominam) e leva à burocratização e à desmobilização.
Enfim, as diversas tendências que lideram o ME. não se saíram
melhor no que corresponde ao tópico "relações entre ME. e os
demais setores de um possível movimento de massas de oposição".
Cabe lembrar que foi por não saber equacionar e dar respostas a
essas questões que as lideranças de 68 descambaram para o milita-
rismo vanguardista. Logo, por mais que se tenha em conta esse
perigo, o ME. não está livre de incorrer neste ou noutro tipo de
vanguardismo, igualmente danoso e trágico.
2. Quaisquer considerações que se façam sobre o ME. devem se-
guir a linha de raciocínio esboçada pelo Prof. Décio Saes em sua
entrevista. Ele procurou esquematizar os elementos que deveriam
ser considerados na análise do fenômeno estudantil, aqueles que lhe
dariam sentido. Todavia, a sua análise peca principalmente por não
levar em conta as determinações intrínsecas à prática estudantil, va-
lendo-se apenas de suas relações fora da escola — na sociedade e na
produção. Esse tipo de consideração que isola "o_ estudante", indi-
vidualizado, separado de seu contexto histórico, não leva em conta
o ME. como fenômeno coletivo que se realiza com base numa ins-
tância particular da prática social que é a escola, em todos os seus
níveis superiores, e que, portanto, é também coletiva e não se ex-
plica pelas relações externas que cada estudante mantém com a
produção ou a família. Ao contrário, a solução deve ser buscada
nas relações que a escola, em especial a universidade, mantém, co-
mo aparelho ideológico e político, com o Estado, a produção e com
a estrutura de classes.
Neste sentido, o operário metalúrgico provou em sua entrevista
maior clarividência sobre o assunto. Embora a questão seja mais
complexa, fica claro que ele sabe perfeitamente que a função que
o Estado e as classes dominantes reservam para a universidade é
servir a seus interesses, seja pela produção de quadros, seja pela

76
elaboração de ideologias, tecnologias, conhecimentos, enfim tudo aqui-
lo que chamaríamos, no sentido amplo, ideologia burguesa. No en-
tanto, essa função se dá sobre um determinado quadro de relações
políticas, e sobre um dado padrão de acumulação, estando, portanto
sujeita às suas contradições. Além do mais, lidando com a produção
de conhecimentos, com o saber, na medida em que essa produção
se apoia explicitamente no entrechoque de ideologias e interesses
que emanam da luta entre as classes, fica extremamente difícil evitar
que floresçam posições antagônicas ao "status quo" dentro da uni-
versidade. Antagonismos que vão desde a contestação da forma pela
qual o aparelho universitário se organiza para exercer suas funções
até as conseqüências e a apropriação dos conhecimentos ali produ-
zidos, chegando-se em certos casos a uma contestação política do
regime, da estrutura da propriedade e até do próprio Estado. Res-
salte-se que o florescimento dessas posições antagônicas depende do
desenvolvimento e da qualidade das contradições como um todo na
realidade brasileira. E a contradição principal que recorta, hoje a
luta de classes no Brasil é a contradição ditadura x democracia. Mas
é um erro pensar que nessa contradição estejam presentes apenas
questões sobre a forma e a organização jurídico-política do país
abstratamente colocadas. Se a forma ditatorial assume, hoje um
caráter impopular até mesmo para aqueles que a apoiaram, é porque
existe um impasse de muito maior dimensão do que o citado si-
tuando-se a nível do próprio padrão de acumulação que vigora atual-
mente. Assim a contradição ditadura x democracia pode ser traduzida
no impasse pela redefinição dos termos em que se processa a ex-
propnaçao e distribuição do excedente (mais-valia) global ao nível
social, isto é, ao nível do conjunto da economia e não apenas em
alguns de seus setores.
Esta contradição em nossos dias se manifesta mais agudamente
entre as diversas frações das classes dominantes. É inegável, porém
que ela atinge também o conjunto das classes sociais, em'especial'
as classes trabalhadoras e, secundariamente, frações da pequena-bur-
guesia — todos relegados a meros espectadores do processo político
— pois o que está em jogo é a nova forma que deve assumir a
exploração do trabalho pelo capital. É precisamente isso que se
coloca na base de todas as contradições, hoje, inclusive as univer-
sitárias. Ao ser questionada a base sobre a qual repousavam as
funções programadas pelos dominantes para a universidade, são ques-
tionados ao mesmo tempo essas funções e o próprio caráter da
universidade.
Neste questionamento o M.E. desempenha um papel fundamental
e e a partir dele que deve esse movimento buscar inserir-se no
quadro mais geral das oposições brasileiras, se quiser de fato as-
sumir o ponto de vista dos trabalhadores sem perder o pé da reali-
dade. Questionando a universidade, suas funções e ao mesmo tempo
as relações sociais e políticas que lhe servem de base, desmascaran-

77
do o caráter seletivo e elitista do ensino bem como o comprometi-
mento da ciência com a ordem atual, levando seus conhecimentos
e sua dinâmica aos demais setores de oposição e paralelamente fun-
cionando como canal de expressão para os setores oposicionistas
que se identifiquem com os interesses dos trabalhadores e dos seus
aliados, o M.E. pode (e deve) abrir os espaços políticos e ideológicos
necessários para uma real democracia, como conquista de massas.
Mas é necessário que o M.E. se organize e garanta ao menos a
sua continuidade como movimento para que isso ocorra. E essa
organização é função, como disse Airton Soares, da possibilidade
que as tendências tenham de se entender sobre alguns pontos bá-
sicos, pontos que dizem respeito à organização e dinâmica das enti-
dades estudantis, assim como a algumas análises concretas sobre o
papel da universidade brasileira, suas funções e relações internas e
de que modo isso se articula com a ditadura e atinge o conjunto
dos estudantes. É necessário que se estabeleça um programa de
frente estudantil contra a ditadura dentro e fora da universidade.
Uma frente que possua ideologia democrática, entendendo essa de-
mocracia como conquista das massas. Uma frente que fixe pontos
de atuação comum e mantenha aberto o espaço para as divergên-
cias. Uma frente que não burocratize o movimento, garantindo a
revitalização das entidades de base e o livre debate nelas. Enfim,
só a partir daí poderá o M.E. relacionar-se com os demais setores
da oposição democrática sem vanguardismo — o que não lhe cabe
— e sem perder a sua especificidade — o que não é conveniente,
por ser desmobilizador de sua própria massa.

II. ME + MO: Uma articulação possível


1. É tarefa daqueles que se colocam ao lado dos trabalhadores ca-
racterizar as condições particulares que hoje assume a luta por
liberdades democráticas no Brasil.
De fato, na questão política atual mais evidente — a refletida na
contradição democracia x ditadura — estão comprometidos certos se-
tores de classe média, que já há algum tempo tem um peso deci-
sivo em qualquer alteração de nosso quadro político, assim como,
em grau bem mais reduzido, elementos representativos da burgue-
sia, inclusive parte da base original da implantação e consolidação
deste regime. A posição destacada dessas classes e segmentos de
classe na chamada luta política fica evidente quando se procede
à verificação de quem, no momento, está mais organizado e é mais
atuante dentro da oposição ao regime: a Igreja, os estudantes, as
associações de profissionais liberais, professores e artistas, parte do
partido oficial de oposição, etc.
Reconhecer tal situação, no entanto, não pode obscurecer a deter-
minação mais relevante de que as alterações democráticas realmente
78
significativas para os trabalhadores brasileiros — eliminação do re-
gime ditatorial, com anistia ampla e irrestrita, extensão do voto ao
analfabeto e principalmente liberdade plena de associação e expres-
são, que culmine num sindicalismo autêntico e desatrelado do Estado
e na criação de organizações políticas representativas dos trabalha-
dores, criando condições para a conquista do fim do arrocho sala-
rial e a manutenção de efetivo poder de barganha para a classe —
nada disso poderá ser conquistado a não ser por um movimento dos
próprios trabalhadores organizados, verdadeiros interessados nessa
transformação.
Não se tenha a ilusão de que a democracia política, com tal con-
teúdo, será doada à classe trabalhadora e seus aliados como resul-
tado de qualquer disputa entre as classes dominantes, por mais
acirrada que seja. Não deve haver enganos quanto ao comprometi-
mento destas com valores democráticos. Antes, a ausência de plenas
liberdades democráticas no Brasil de hoje é condição essencial para
a manutenção de um determinado padrão de exploração econômica
e acumulação capitalista. Além disso, seria não menos idealista ima-
ginar que um regime democrático pode representar uma vitória da
luta política dos mencionados setores sociais médios, seja pela diver-
sidade e ecletismo ideológicos que perpassam esses setores, seja
pelas dificuldades de seu aglutinamento ou ainda pela insignificância
do peso de alguns deles na estrutura produtiva. Mesmo os estudan-
tes que, por participarem da luta ideológica que ocorre em seu
espaço de atuação — a universidade — podem assumir uma pers-
pectiva mais conseqüente e transcender os limites de sua situação
de classe, mesmo os estudantes não contam com um movimento
com força suficiente para se constituir em elemento principal e de-
cisivo na obtenção da democracia devido à fragilidade de suas armas.
Daí colocar-se para o M.E. a necessidade da chamada "articulação
com os outros setores" para que o fortalecimento do movimento de
massas resulte, não numa farsa constitucional, mas no verdadeiro
fim do regime ditatorial, com a implantação de um novo regime
que assegure as conquistas democráticas acima apontadas. Daí que
a principal (não a única) tarefa nessa articulação seja a integração
do M.E. na luta dos trabalhadores, de maneira a potencializar am-
bos os movimentos.
Mas isso exige a precisa identificação das especificidades do mo-
vimento atual dos trabalhadores. Se hoje as questões "políticas" mais
evidentes são encabeçadas pela pequena-burguesia, tal não se deve
a uma despolitização inerente à classe trabalhadora ou a sua falta
de interesse pela democracia política. Deve-se antes à esmagadora
ação repressiva imposta a ela pelo Estado. Não podemos desconhe-
cer o caráter violentíssimo da repressão quando se trata de comba-
ter o M.O. Ao arrocho salarial e à destruição do poder de barganha
da classe, e para garanti-los, somou-se o arrocho político. Ao lado
do crescente grau de exploração econômica, esta situação se fez

79
sentir, ao nível político, na regressão, despolitização relativa e de-
sorganização do operariado e demais trabalhadores assalariados ex-
plorados.
Nessas condições, compreende-se por que qualquer espaço político
viabilizado, qualquer terreno para uma incipiente organização autô-
noma dos trabalhadores, seja utilizado na sua luta mais premente
— a obtenção de melhores condições de vida; o fim do arrocho
salarial. Também fica claro por que, na primeira etapa, a reivindi-
cação organizativa da classe se volta para a constituição de um
sindicalismo autêntico. Os fatos nos mostram que, antes de pedirem
o fim do AI-5, a extinção da censura, eleições diretas ou o habeas-
corpus, os trabalhadores exigem a liberdade de organização sindical
e o fim de uma política estatal que lhes retira qualquer poder de
barganha na determinação de salários (a avaliação do representante
da oposição sindical quanto às palavras de ordem do M.E. — pelas
liberdades democráticas, pela Constituinte, etc. — aponta esta con-
clusão). Esta luta, porém, não é menos política. O movimento das
oposições sindicais hoje é tão mais político quanto as questões apre-
sentadas em suas palavras de ordem envolvem um enfrentamento
direto com o atual regime. Pois a luta pela reposição salarial de
73 não é apenas contra os patrões, mas também contra o Estado
que fixou os índices de inflação e reajustamento daquele ano. Por
razões idênticas, a conquista do sindicalismo autêntico implica ne-
cessariamente o enfrentamento político.
A articulação do M.E. com os trabalhadores, tomando como pré-
condição necessária uma análise concreta das condições políticas da
classe, deve "respeitar o ritmo próprio do M.O.", para repetir as
palavras de um dos nossos entrevistados, a fim de que se encontrem
caminhos viáveis para se ir além da proposta colocada pelos estu-
dantes, de uma aliança fantástica, abstrata e vazia entre estudantes
e trabalhadores. Exemplos para a organização e ação conjuntas são
sugeridos para nossa reflexão, nas entrevistas antes apresentadas.
Ê significativo que, no entanto, tais questões não sejam levantadas
no debate.
Não se entenda com isso que devam ser descartadas, ou que
tenham pouca importância, consignas tais como liberdades demo-
cráticas, fim do AI-5, etc. Dadas as dificuldades que se apresentam
aos trabalhadores hoje para a organização e atuação, qualquer es-
paço político conquistado à ditadura é de interesse fundamental
para a classe. E os estudantes, por estarem melhor organizados, por
terem conseguido um grau razoável de politização em seu movimen-
to, por poderem se articular mais facilmente com os outros setores
da pequena-burguesia na oposição, interessados na liberalização do
regime ou mesmo verdadeiros aliados dos trabalhadores, podem,
primeiro, dar um conteúdo mais conseqüente àquelas palavras de
ordem e, além disso, pela sua reivindicação, obter determinadas aber-
turas que, embora limitadas, facilitariam e potencializariam o avan-

80
ço da luta dos trabalhadores na direção de um regime democrático.
Aqui fechamos mais uma vez com o representante da oposição sin-
dical: os estudantes, por si próprios, não têm condições nem mesmo
para uma vitória, no plano político, contra o atual regime; mas
podem, desde que articulados, "abrir brechas" para o avanço do
M.O.
Resumindo, o momento aponta para a necessidade de:
— Delimitar com clareza a luta por liberdades democráticas; deixar
claro o conteúdo da democracia que interessa às classes trabalha-
doras.
— Analisar concretamente a atual correlação de forças; entender os
limites e possibilidades, no momento, do movimento dos trabalha-
dores; avaliar as contradições próprias dos setores da classe média
na oposição, sua diversidade e potencial político, em especial quanto
às suas camadas inferiores e assalariadas.
— Estabelecer um programa que respeite esta correlação. A nosso
ver, coloca-se hoje aos estudantes a urgência de englobar, num mes-
mo programa, as atuais lutas do M.O. e aquelas de cunho mais
"político", conferindo a estas últimas, assim, um conteúdo mais con-
seqüente. Tal programa exige dos estudantes uma articulação direta
com a classe trabalhadora, mas que respeite seu ritmo próprio e
busque formas de atuação conjunta, não impostas. É necessário ainda
a atuação em frente com os outros setores da classe média, cujas
lutas podem resultar numa ampliação do espaço político para todas
as classes, frente dentro da qual seja mantida a autonomia do M.E.
e repisado o conteúdo por ele atribuído à palavra de ordem pelas
liberdades democráticas.
2. Finalmente, queremos aprofundar nossa opinião quanto ao pen-
samento do M.E. (ou melhor, das tendências aqui apresentadas)
sobre o próprio M.E., como ele se vê a si mesmo, o que nos conduz
à crítica da teoria elaborada no seu interior.
Com exceção de um ou outro aspecto da intervenção do grupo
Centelha, as análises de conjuntura como um todo parecem advir
de um grupo de pensamento rígido e idealista que, não importa
quão bem intencionado esteja, erige "verdades" e categorias, conhe-
cidas a priori, em "essência", passando a utilizar os fatos como
"provas".
Desçamos a critica aos fatos. Muitas vezes, no debate transcrito
acima, fala-se de luta de classes de forma tal que nos faz pensar
que se trata da burguesia e do proletariado europeus do século
XIX! Ora, a formação das classes no Brasil, especialmente nos anos
mais recentes, tem provocado a diferenciação da estrutura social,
com reflexos no movimento político das classes. Isso forma a ava-
liação da correlação de forças políticas — se reduzida simplesmente
às categorias burguesia e proletariado, sem maior consideração para
a sua evolução histórica, sem a composição de um quadro que,
tendo por base a contradição social principal, dê conta da diversi-

81
dade de forças políticas atuantes como decorrentes da diversifica-
ção da estrutura social — uma simplificação grosseira. Por um lado,
há diferenciações e modificações na própria composição da burgue-
sia; em especial complicam-se as relações com o capital internacio-
nal. Por outro, há um crescente processo de pauperização de nume-
rosos assalariados não-operários ligados aos mais diversos tipos de
trabalhos burocráticos — secretárias, escriturários, etc. — um pro-
cesso que aproxima esses setores, quanto a seu nível de vida, de
algumas categorias operárias. Que peso têm esses setores no movi-
mento político atual? Não é verdade que parte desses setores cons-
tituiu, num passado recente, base social do atual regime? E hoje?
Não queremos aprofundar essas questões, nem mesmo colocar ou-
tras. Apenas enumerar alguns problemas, exemplificando o tipo de
preocupação a nosso ver cabível, para que não se incorra no excesso
de simplificação nas análises de conjuntura. Façamos uma ressalva
às colocações de Centelha: o grupo procede a uma tentativa, nem
sempre bem sucedida, de tomar a análise mais complexa e próxima
da realidade.
Embora haja determinações sempre recorrentes na realidade, há
sempre também, em cada situação concreta, determinações novas e
diferentes. E só o estudo destas últimas permite a reconstrução
mental da realidade, evitando a "essencialização" do conhecimento.
Os estudantes conscientes formaram um grupo privilegiado, na si-
tuação atual, para o trabalho teórico. As condições de tempo, re-
cursos materiais, acesso a informações, etc. de que dispõem, por
mais precárias que sejam (precariedade contra a qual se luta jus-
tamente, exigindo mais verbas para a educação), não lhes tira a
responsabilidade própria desta circunstância. Há muitas tarefas neste
sentido a serem cumpridas, que, antes de representarem exigências
da vida acadêmica, são pré-condições da luta política.
A mesma simplificação da realidade impediu — só assim o com-
preendemos — uma avaliação pelas tendências, durante o debate,
da limitação do ME., tendo em vista a sua inserção na estrutura
social. Realmente não basta caracterizá-lo como movimento de pe-
quena-burguesia capaz, devido às contradições no interior da univer-
sidade, de transcender perspectivas limitadas de sua situação de
classe (como o faz Centelha, o que, de qualquer forma, já é um
passo). É preciso ir além, dar respostas a questões apresentadas
por acontecimentos que deixam marcas nas pretensões políticas do
M.E., hoje:
— como nunca a universidade se transforma em produtora de tec-
nologia e mão-de-obra especializada para a produção capitalista; boa
parte da massa estudantil é constituída do técnico-trabalhador (de
amanhã) que hoje não trabalha porque está em treinamento, qua-
lificando seu trabalho;
— a política educacional universitária, apesar de toda desobrigação
do Estado com a educação de uma forma geral, ameaça criar, quan-

82
do já não criou-a, através da política salarial para as universidades,
da diversificação de uma parte do conjunto dos estudantes (os de
pós-graduação) via concessão de bolsas e através do quase total
isolamento da universidade do meio social (da fábrica e do campo)
— uma situação de cooptação e de isolamento dos quadros da uni-
versidade;
— como nunca, também cresce a quantidade de estudantes, espe-
cialmente nos cursos noturnos, que são trabalhadores assalariados,
constituindo para o M.E. uma categoria muito especial.
Não é verdade que tudo isso cria barreiras adicionais e fortes —
ou, ao contrário, fatores de potencialização — ao esforço necessá-
rio do M.E. para estender sua atuação a camadas mais amplas dos
estudantes e para articular-se com outros setores da oposição bra-
sileira? Então nada justifica a posição de certas lideranças que se
abstêm de examinar o M.E. de fora, criticamente — sob a desculpa
esfarrapada de que "isto seria sociologismo" — já que para elas
a consciência e o papel do M.E. como vanguarda são um dado
absoluto.

CONTEXTO
Revista Quadrimestral

Leia no n0 5:
Os Novos Partidos Políticos no Brasil — Fernando Henrique Cardoso

Revolução e Contra-Revolução — Florestan Fernandes

Nos Poros da Produção — Jaime Pinsk

Ideologia do Trabalho — José de Souza Martins

O Teatro de Plínio Marcos — Isidoro Blykstein


e outros artigos.

Editora UCITEC - Alameda Jaú, 404 - São Paulo, SP


Oposição e Democracia no Brasil:
A hora das Decisões

No mês de janeiro de 1978, Cara a Cara promoveu a tomada de de-


poimentos de três representantes do Centro de Estudos Noel Nutels,
do Rio de Janeiro, os quais militam na chamada "imprensa alterna-
tiva". São eles: Alan Melo de Albuquerque, do jornal "Em Tempo",
Carlos Henrique Escobar, de "O Beijo" e Sydney Sérgio P. Solis, da
revista "Contraponto". O objetivo da matéria que se segue é iniciar
o debate sobre os "caminhos e descaminhos" de oposição brasileira,
ao mesmo tempo em que visa auscultar as diversas correntes de
oposição que hoje se reaglutinam e das quais nos aproximamos.
Nos depoimentos tomados, são comentados: o sentido da crise
política atual, as perspectivas para o atual ano político, o papel da
oposição de esquerda no quadro das oposições brasileiras, a reorga-
nização partidária e a reorganização sindical. Esperamos que o de-
bate que ora iniciamos seja o primeiro de uma séne sobre os assun-
tos que mais de perto interessam ao "front" oposicionista.

Alan Melo de Albuquerque


"Se a crise deselvolveu-se muito tempo no palco, a platéia já começa
a se agitar e em alguns momentos ameaça subir nele".
Acredito que o ponto inicial de uma análise política hoje deva ser
a tentativa de uma correta caracterização da crise que vivemos. A
crise do regime autoritário não foi precedida de nenhuma acumula-
ção de forças por parte das classes trabalhadoras e me parece se-
guir um modelo comum a esses regimes: uma crise que se propaga
no interior do próprio bloco dominante, uma crise de hegemonia,
vale dizer, uma crise intraburguesa. E se, por um lado, a crise eco-
nômica não coloca, a meu ver, em xeque a capacidade de acumula-
ção do regime, de modo que o modelo de acumulação ainda tem
fôlegos para uma sobre-sustentação (até mesmo porque os credores
não estão interessados que o barco afunde, pois precisam garantir
seus investimentos), no plano político a coisa e mais confusa. Porque
é no plano político que se definirá quem vai pagar o pato, e o
pato no caso são os custos da crise.

84
Mesmo sem condições de encaminhar a análise por ai, gostaria
de lembrar que o Estado brasileiro, após 64, assumiu um caráter
nitidamente bonapartista (não acima das classes, mas aparentemen-
te acima dos setores da classe dominante), gerindo a economia e a
política em nome da burguesia e dos interesses dos setores hege-
mônicos da burguesia. Isto foi possível num momento de aguda
crise, em que se impunha medidas drásticas de saneamento econô-
mico que sustentasse o salto da economia para um modelo monopo-
lista-dependente. O fim do "milagre", porém, e a necessidade de
redefinição das hegemonias, iniciou um processo de cisão no bloco
dominante que se caracteriza pela luta de setores consideráveis do
capital para reassumir o controle e a direção da política econômica
e do poder político. E esta luta, que é o cerne e a origem da crise
que vivemos, tendeu a radicalizar na medida em que, por um lado,
nenhum dos setores logrou impor rapidamente sua hegemonia, e
por outro o exercício direto do poder pela burguesia exige uma
margem de manobra, de discussão e de consenso que colocam em
xeque o autoritarismo.
É evidente que a "liberalização" por que lutam esses setores bur-
gueses é de fachada e se circunscrevia às necessidades daquela mar-
gem mínima de manobra. A própria dificuldade em se redefinir
rapidamente o bloco dominante e a entrada em cena de outros se-
tores sociais, nas brechas criadas pela crise dos dominantes (e
alargadas, na marra, pela entrada destes outros setores, como o
movimento estudantil, por exemplo), radicalizou as opções e ampliou
os efeitos da crise. Por um lado, foi evidente o rápido avanço das
posições de empresários representativos, tipo Villares, Bardella e ou-
tros, que advogam hoje a livre negociação entre patrões e trabalha-
dores, sem a intervenção do Estado, acompanhada de uma abertura
de canais de participação política para os diversos setores sociais.
Por outro, o candidato da oposição burguesa, Magalhães Pinto, vê-se
obrigado a alargar muito mais do que desejava sua plataforma po-
lítica de modo a tentar articular setores mais avançados da oposição
liberal e propõe eleições diretas em todos os níveis, anistia, fim
dos atos de exceção, etc. O próprio poder, colocado em xeque,
acena com o fim dos atos de exceção e, numa tentativa desesperada
de salvar os dedos perdendo os anéis, substituí-los por "salvaguardas
do Estado".
Se a crise desenvolveu-se muito tempo no palco, a platéia já co-
meça a se agitar e em alguns momentos ameaça subir nele. A radi-
calização das rupturas no bloco dominante e a guerra de movimentos
em que estão empenhados os diversos setores da burguesia, coad-
juvados pela oposição liberal, não passam de uma preliminar da
verdadeira crise nacional, que contrapõe hoje o povo, ou seja, o
conjunto dos assalariados e o Estado autoritário. Mais uma vez, de-
pende da entrada em cena dos setores populares, alargando e arrom-
bando as brechas criadas pela fissura no poder, a definição clara
85
da crise que vivemos e que, levada às verdadeiras conseqüências, ca-
racteriza na conjuntura a contradição entre democracia e ditadura.
É importante ressaltar que essa contradição se resolve não apenas
contra o Estado autoritário, mas contra a própria tentativa de uma
abertura elitista, tipo Magalhães, e contra os setores mais atrasados
da oposição liberal, que acorrem de braços abertos a qualquer aceno
de "diálogo" e de "conchavo" para colaborar nas chamadas "refor-
mas políticas", que não passam de uma tentativa de "embelezar a
ditadura". São esses setores que, por exemplo, dentro do MDB tro-
cam (e sabotam) a luta pela Constituinte pelo remendo grosseiro da
Carta outorgada.

"A tarefa mais importante para a esquerda hoje ainda é superar


a visão puramente estratégica e resolver corretamente a questão
da luta pelas liberdades democráticas como um momento da luta
pelo socialismo".
O isolamento destas tentativas espúrias e a definição clara dos
campos em luta, ou seja, democracia versus ditadura, depende, é
claro, da participação das classes trabalhadoras e do avanço do mo-
vimento de massas. Somente estes setores poderão impulsionar cor-
retamente a luta pelas liberdades democráticas. E no entanto eles
estiveram, e ainda estão, em grande medida, mudos durante exces-
sivo tempo. A desarticulação de suas organizações próprias e a des-
truição de suas lideranças foi uma tarefa metodicamente levada a
cabo nos últimos 14 anos. Em grande parte, vai depender do correto
posicionamento da oposição de esquerda a superação da situação
atual. E, por outro lado, esse posicionamento correto vai depender
da superação de uma deficiência que acompanha a história da es-
querda no Brasil: a incapacidade de definir uma tática e de marcar
uma posição independente a nível da conjuntura. A esquerda sempre
teve estratégias, mas se limitou a duas posições extremas e negativas
nas diversas conjunturas: ou assumia uma posição doutrinária, presa
a uma visão puramente estratégica, que redundou sempre no isola-
mento, ou tendia ao taticismo, indo a reboque de alianças incorre-
tas ou, o que é pior, às vezes imaginárias. Hoje nós vivemos um
momento muito rico e propício à superação desses erros e a luta
pelas liberdades democráticas pode bem ser o início de uma atua-
ção vigorosa e independente da oposição de esquerda na conjuntura
política. Não estou querendo ser excessivamente otimista, e ainda
representa pouco o fato de hoje ser muito mais amplo o consenso
em tomo da luta por liberdades democráticas que há algum tempo.
Representa pouco porque ainda há muito a fazer para viabilizar
corretamente esta luta do ponto de vista da esquerda, de um pro-
grama democrático conjugado aos objetivos estratégicos mais gerais.
O que eu quero dizer é que, se não aprofundarmos esta discussão
poderemos, e muitas vezes estamos, incorrendo nos dois erros apon-
86
tados anteriormente: o doutrinarismo ou o oportunismo. Parece-me
que a tarefa mais importante para a esquerda hoje ainda é superar
a visão puramente estratégica e resolver corretamente a questão da
luta pelas liberdades democráticas como um momento da luta pelo
socialismo. A luta pela democracia apareceu comumente como um
objetivo ligado à luta da burguesia (ou de uma frente nacional)
pelo poder. Mas é incorreto pensar que apenas no bojo de uma
etapa burguesa, ou nacional-democrática, esta luta é a principal. A
luta pelas liberdades democráticas se mantém mesmo depois da
conquista formal de uma república democrática. Elas sempre foram
conquistadas e arrancadas às burguesias através de lutas memorá-
veis e permanentes das classes trabalhadoras. Em outras palavras,
as chamadas "liberdades burguesas" são tão mais efetivas e amplas
quanto mais forte e organizada for a classe trabalhadora numa so-
ciedade capitalista.
Por isto, não decorre de nenhuma determinação estratégica a luta
pela democracia, mas da necessidade de conquistas parciais que
fortaleçam e temperem os trabalhadores nas lutas por seu objetivos
imediatos. Estão enganados aqueles que na luta pelas liberdades
democráticas procuram ligá-la ao socialismo apenas ao nível da
propaganda, o que na prática os leva a secundarizar a conquista des-
sas liberdades e portanto o compromisso com um programa demo-
crático. A luta pela democracia está ligada em nosso país à luta
pelo socialismo também ao nível da propaganda. Mas numa conjun-
tura em que não se coloca a questão do poder, em que as classes
trabalhadoras são débeis do ponto de vista político e organizacional,
a conquista do socialismo impõe, frente ao Estado autoritário, a luta
pela conquista real de liberdades democráticas. E esta luta necessita
concretizar-se num programa democrático, pois somente assim po-
deremos superar a simples agitação de uma bandeira de luta geral.
Lutar hoje pelas liberdades democráticas é ter consciência de que
elas só poderão ser conquistadas a partir da participação efetiva
das classes trabalhadoras nesta luta. Dos liberais, se não pressiona-
dos pelo povo trabalhador, só poderemos esperar arremedos de
democracias elitizadas, democracias de "patrícios". É ter consciência
também que elas terão que ser viabilizadas num programa de rei-
vindicações democráticas que determine com muita clareza os nossos
objetivos imediatos, tais como a anistia ampla e irrestrita, a liber-
dade de organização partidária, a liberdade sindical, o direito de
greve, o fim da legislação de exceção, a convocação de uma Assem-
bléia Nacional Constituinte.
Não devemos ter ilusões acerca da frente de oposição que hoje
desenvolve, em níveis diferenciados, a luta por essas liberdades. Do
ponto de vista dos liberais, o entendimento do caráter e da ampli-
tude dessas lutas não é o mesmo dos setores mais conseqüentes
da oposição. Por outro lado, não podemos perder de vista a luta
pelo socialismo se não quisermos incorrer na prática social-democrata
87
e assumir tais reivindicações estaticamente. Se a luta pelas liberda-
des democráticas é parte integrante da luta pelo socialismo ela tem
que encaminhá-lo desde já, não apenas ao nível da propaganda, mas
da conquista de espaços políticos e orgânicos que garantam uma
participação autônoma e independente das classes trabalhadoras.

Carlos Henrique Escobar


"Na ausência de um partido a chamada "crise" pode ser uma "difi-
culdade" passageira administrada de cima para baixo".
1) Recuso-me a entender a crise (eventual) da formação social bra-
sileira hoje, de um ângulo econômico. Uma crise econômica não
significa mecanicamente uma crise política, ou crise de Estado. O
conceito de crise é um conceito político. Claro que ele implica obri-
gatoriamente a crise econômica e que, em sendo sempre crise polí-
tica, pode ser seu dominante em áreas diferenciadas de uma rea-
lidade social particular. Acho ainda que a simples designação política
da crise-conjuntural brasileira é muito pouco para nós. É preciso
cobrar desta noção (e para que ela ganhe uma estatura acima do
impressionismo habitual) a posição política. Isto é, a intensidade e
o nível de organização da luta de classe como medidor interno da
crise política, ademais inseparável de sua conceituação. Eu diria
mesmo que, na ausência de um partido conseqüente e de sua inser-
ção significativa na chamada "crise", esta última pode ser entre
outras coisas uma "dificuldade" passageira administrada de cima
para baixo, cuja resolução significará um remanejamento sem gran-
des conseqüências da burguesia. Aguardo que os acontecimentos ou
que alguém me prove o contrário.
Se o conceito de crise é dialético (e, portanto, o contrário de
sua forma estalinista na III Internacional) ele só é dialético e politi-
camente significativo para nós, pela existência de um Partido. Se
toda crise, nela mesma, é política e se a saída da crise é sempre
política, esta chamada "crise brasileira" hoje — sobretudo pela au-
sência de um Partido conseqüente — não é politicamente significa-
tiva para nós. O que não quer dizer que ela não disponha de mate-
riais e "oportunidades" novas de encaminhar nossos propósitos po-
líticos. O importante é não fazer dela aquilo que ela não é e que
os economistas e analistas políticos burgueses (inclusive os da "opo-
sição") procuram dizer que ela é. Claro que suas análises de um
ponto de vista intraburguês se referem a questões e preocupações
que os movem e os mobilizam. Eles querem "participar", dividir,
eles querem garantias de todas as ordens, eles querem prestígio, etc,
porém tudo isso concerne a um remanejamento em processo das
formas de dominação e de sofisticação da exploração de classe. Ir
destas questões aos floreios de que a crise em que vivemos é a

88
contradição entre o Estado e a Nação (Francisco de Oliveira), ou
entre o Estado e a Sociedade Civil (Fernando Henrique Cardoso),
é recobrir estas dificuldades relativas do processo mesmo das for-
mas de dominação e exploração no Brasil por fantasmas da cha-
mada "ciência política da burguesia". Aliás, é bom que se diga que
é urgente que se contraponha às conclusões (e figuras retóricas) das
análises políticas do governo e da "oposição" — com toda sua tra-
dição de serviços prestados desde o desenvolvimentismo, reformis-
mo do PC, Escola Superior de Guerra de antes de 64, ISEB e a
Universidade hoje — os termos politicamente corretos para carac-
terização das crises no Brasil.
No seio da crise econômica internacional, com uma divisão inter-
nacional de trabalho já assentada, a crise brasileira revela a que
ponto o Estado tomou-se, como em toda cadeia imperialista, capaz
de intervenções (e "criatividade") diversificadas, a ponto mesmo de
ocupar os lugares políticos tanto de seus representantes diretos
como daqueles da "oposição". De outro lado, mas por uma relação
direta, os altamente ativados AIE * social-democratas e Partidos Co-
munistas plebiscitários ampliam o espaço de jogo destas diferentes
formas de Estado pelos quais o imperialismo assegura sua perma-
nência.
2) De nada adianta perguntar se alguns dos grupos presentes na
"oposição" responde aos interesses da classe trabalhadora. Desde
logo porque o pior deles (pouco importa se o "trabalhismo" ou os
populismos e nacionalismos carcomidos) pode receber total e com-
pleta adesão desta classe. É preciso ficar claro que a classe traba-
lhadora em si resiste à idéia de liquidação de uma sociedade que a
explora. Entre outras coisas, porque ela foi produzida e mantida
sob dominação ideológica e política. O que é necessário perguntar
é das nossas condições de formar um Partido que transforme esta
classe trabalhadora em classe revolucionária num longo tempo e
das condições mesmas da manutenção desse Partido (não importan-
do aqui as características deste Partido, já que seus termos, formas
e objetivos são claros e por isso mesmo transbordam a chamada
legalidade). Acho que a tal Frente está morta. Acho que a Federação,
além de impossível politicamente, pois estaria como que obrigada
a ser morta — resultado de compromissos e programas muito aber-
tos — é uma fantasia daqueles que temem os riscos e trabalhos
da formação do Partido conseqüente. Enfim, para a formação desse
Partido conseqüente, não vejo no Brasil outro contingente humano
que os quadros advindos das lutas de 68 para cá, tanto pela sua
combatividade, como pelas formas antipopulistas, anti-reformistas e
anti-social-democrata que os caracterizam. Ora, tudo isso é impossí-
vel sem uma clara visão das dificuldades e das exigências concemen-

• Aparelhos Ideológicos do Estado — N.R.


tes a este objetivo. Refiro-me ao nível e às formas teórico-politicas
desses militantes, à máquina necessária para o encaminhamento das
diferentes tarefas políticas e sobretudo à manutenção de uma crítica
contínua e persistente ao "saber" da burguesia movido pela Univer-
sidade e congêneres.
Se a burguesia hoje no Brasil (através do seu aparelho de Estado)
dá as cartas do jogo político — e ela é, sob graduações, o governo
e a "oposição" — é necessário revelar quanto as oposições estão
comprometidas com este jogo.
3) Minha posição aqui é plena e decididamente por um trabalho
de base. De certa maneira um trabalho implicado com a produção
mesma de um Partido conseqüente.
Sobrepor-se hoje a estas tarefas e a estes questionamentos, colo-
cando quadros em práticas políticas contingentes, só pode significar
somar nos trabalhos dos partidos burgueses já existentes ou em
vias de existir. Desviar quadros para política burguesa ou até mesmo
dar apoios a uma política parlamentarista com o fito ingênuo de
dispor de "representantes" (não importa em que sentido) antes de
definidas e realizadas as tarefas de produção de um partido conse-
qüente é, já de antemão, destruir a seriedade e o rigor necessário
a estes trabalhos preparatórios.
As formas políticas burguesas (legais e sindicais) existem não em
razão de uma "grandeza" eventual desta mesma burguesia, mas como
controle e produção ideológica das classes dominadas. Que nelas
se processem contradições significativas para toda e qualquer polí-
tica não há nenhuma duvida. Porém, se estas formas se tomam
dominantemente o lugar do trabalho político, já isto constitui um
erro grave. Da mesma forma não se justifica que a luta travada
aí se torne a luta política por excelência dos socialistas conseqüentes.
Ademais só se pode conduzir uma luta política nos sindicatos e
todo outro qualquer AIE a partir de um Partido que pilote e reúna
benefícios dessa luta. Entre outras coisas porque a luta quando
circunscrita a sindicatos e congêneres tem seus limites nas formas
mesmas destas instituições. A forma de presença dos socialistas
conseqüentes nos sindicatos e instituições legais não pode tomar a
forma de operadores destes órgãos, mas de críticos e de hábeis
instrumentadores da luta de classe em seu interior. Mas o mediador
de tudo isso é um Partido e seu momento histórico já é hoje.

Sydney Sérgio Fernandes Solis


"Os interesses dos trabalhadores não se definem pela escolha dessa
ou daquela forma de explicação, mas pela supressão de toda explo-
ração".
O afastamento do general Sílvio Frota, a insistência do Sr. Maga-
lhães Pinto em sua candidatura à presidência, a demissão do chefe
90
da casa militar do Planalto, general Hugo Abreu, o apressamento
da convenção da ARENA e algumas manifestações civis e militares
visivelmente hostis ao nome do sucessor indicado, general João Ba-
tista de Figueiredo, são indícios que as fissuras que se abriram em
73 no bloco dominante estão se aprofundando e, já a esta altura,
tomando características de quase-antagonismos. Não se pense, entre-
tanto, que as contradições que ora aparecem sem disfarces são fru-
tos da crise internacional, algo assim como epidemia contagiosa que
se contrai a partir de um vírus que vem contaminar um organismo
sadio. Ao contrário, os ideólogos oficiais tentam passar essa noção
porque é muito mais fácil pôr a culpa nos árabes, na inflação mun-
dial ou nos países industrializados, do que justificar as aberrações
do "modelo". O pior de tudo é que muitos oposicionistas endossam
tais balelas, encobrindo as causas reais e a oposição entre as classes
a nível interno. No entanto, sabe-se que, para as classes trabalha-
doras, a situação de hoje só é pior que aquela da época do "milagre"
na medida em que se acentuou o processo de deterioração das con-
dições de vida de que já eram vítimas, desde então. O "milagre
brasileiro", para a imensa maioria dos trabalhadores e assalariados
de baixa renda, constituiu-se uma "calamidade pública" que só a
repressão, policial e ideológica, pode mascarar, sem convencer.
Se assim é, se para os trabalhadores da cidade e do campo, a
situação hoje se apresenta como uma continuação piorada de um
estado de coisas calamitoso, como explicar a atual ebulição política
brasileira nos dias que correm? Para uma primeira abordagem do
tema, parece-me fundamental deixar claro que as atuais formas de
extração e repartição da mais-valia, as presentes formas de explo-
ração dos trabalhadores estão diante de um impasse. E é óbvio
que o ponto básico de resistência a ser considerado são os próprios
trabalhadores. De fato, a exploração do trabalho e a deterioração da
qualidade de vida e de emprego chegaram a tal ponto que começam
a pôr em risco a própria sobrevivência dos operários e camponeses,
o que provoca, além da resistência espontânea, contra tudo e contra
todos, dos próprios trabalhadores, o perigo de impedir a própria
reprodução útil da força de trabalho, o que também é problema
para a burguesia, na medida em que um dos "fatores de produção"
— o fator trabalho, a mão-de-obra — se toma precário. É impor-
tante, sobremaneira, que a oposição de esquerda leve em conta que
este é o lado da questão que afeta os trabalhadores e que, portanto,
é por aí que a coisa tem que ser vista primeiro. E isso é tanto
mais importante se lembrarmos que as análises usuais partem da
epiderme do problema, da forma como ele aparece, o que, numa
situação de dominação burguesa e ditadura política, só pode ser
a forma como o problema aparece filtrado pela ideologia burguesa
e pelos limites de manifestação política que a ditadura permite.
Falando mais claramente: os analistas usuais, muitos até de "opo-
sição", limitam-se à análise das contradições intercapitalistas, como

91
se estas nada tivessem a ver com os "de baixo", ou, na melhor das
hipóteses, afetando-os apenas "em última instância", garantindo a
nível do seu discurso que essa "Instância" seja realmente bem últi-
ma, a ponto de ser desprezível na análise. Afirmo, entretanto, que
essas considerações encobrem justificativas ideológicas e políticas
que procuram provar que o atual momento não coloca a contradição
entre o capital e o trabalho na ordem do dia e que, por isso, as
classes dominadas devem esperar uma "normalização democrática"
para intervir. Outros, com o mesmo argumento, justificam o "silên-
cio" operário: as questões que estão em debate dizem respeito às
contradições entre os dominantes e, a partir delas, os trabalhadores
não podem e não vão se mobilizar. Outros ainda propõem que se
mobilizem os trabalhadores a partir dessas mesmas questões formais
que estão em jogo, como "liberdades democráticas", "Constituinte",
"reformas", etc. Mas, ao fazerem isso, escamoteiam o conteúdo des-
sas questões, negando-lhes uma vinculação classista mais profunda.
Essas análises, não só incorrem num profundo e crasso empirismo,
como também manietam e desarmam os trabalhadores, fazendo o
jogo dos dominantes.
Existe, de fato, o lado burguês da história. A correlação de forças
que ganha pleno corpo em 67, estabelece uma estratégia política e
econômica que absolutamente estará isenta de contradições. O "cres-
cimento do bolo" nunca foi harmônico e funcional como trombe-
tearam os arautos do regime; sem dúvida, essas "disfunções" foram
minimizadas face ao crescimento da economia, mas apenas ao nível
da ideologia. Na realidade, pari passu com o crescimento do P.I.B.,
cresciam as diferenciações entre os próprios dominantes, levando
a dissidências, ainda minimizadas, como o caso Cime Lima, por ex.,
e pouco a pouco engrossando o coral dos que criticavam a política
delfiniana. Para os de memória curta, lembro que setores do pró-
prio governo, como por exemplo aqueles ligados à Secretaria de
Planejamento do Governo Mediei (para não falar no próprio Sr. Si-
monsem) apontavam falhas e desacertos no "modelo", quando o
PIB — indicador excelso da ditadura — ainda crescia a 11%. O su-
perdimensionamento do setor financeiro e a extrema liberdade cre-
ditícia que se seguia, a extrema dependência do país aos mercados
e investimentos externos que o tomava vulnerável às flutuações in-
ternacionais, a incapacidade (ou desinteresse) do país em financiar
importações que permitissem a produção interna de meios de pro-
dução, o que corresponde a dizer a incapacidade (ou desinteresse)
em fazer crescer o mercado interno, a dependência tecnológica, são
alguns exemplos das críticas que, na época, eram lidas nos jornais,
apesar da censura. Essas críticas contudo encontravam eco restrito,
na medida em que, mal ou bem, uma grande parcela dos interesses
dominantes eram atendidos, embora, e de forma crescente, com
desigualdades. Isso corresponde a dizer que a forma de extração
e distribuição do excedente dos dominados pelos dominantes ainda
encontrava condições de garantir taxas de lucro, razoáveis para al-
guns, altíssimas para outros. Garantindo essas condições estava e está
o aparato político — repressivo montado pelo regime, tão importan-
te que, ainda hoje, toma-se difícil aos setores burgueses descon-
tentes propor a sua revogação. Portanto, o que desejo ressaltar
é que a raiz dessas contradições interburguesas que hoje se acirram,
está na matriz que combinou diversas formas de exploração do tra-
balho numa determinada forma global de expropriação e distribuição
do excedente a nível social. Sem aprofundar a questão, devo dizer
que essa matriz levou à exaustão o limite de resistência dos traba-
lhadores, dos menos aos mais especializados, e repito que é na
medida em que a taxa de exploração atingiu limites insuportáveis
e que a atual matriz e o regime político que lhe dá sentido impedem
o avanço das forças produtivas, no sentido de uma redefinição dos
níveis globais de produtividade, que é nessa medida que os interes-
ses interburgueses se tornam antagônicos. Mas a quebra de um
padrão de hegemonia burguesa interessa necessariamente aos domi-
nados pois, no final das contas, é a própria dominação que está
em jogo. Ao discutir-se as possíveis formas de dominação burguesa,
como hoje se discute, está se discutindo diversas formas de explo-
ração dos trabalhadores. E os interesses dos trabalhadores não se
definem pela escolha deste ou daquele tipo de exploração, mas pela
supressão de toda a exploração. Esse é um ponto que deve estar
presente na avaliação da estratégia e da tática da oposição de es-
querda conseqüente.
Outra coisa importante a ter claro é que, apesar das contradições,
as frações do bloco no poder ainda relutam no enfrentamento aber-
to. É evidente que o regime político ainda tem suficientes forças
para comandar o processo e, mesmo acreditando-se que os antago-
nismos crescerão, não se deve ter a ilusão de que a ditadura vai
cair de hoje para amanhã. Prova isso a intenção explícita do governo
em negociar limitadamente as "reformas" políticas, reformas estas
que ele, governo, pretende outorgar. Se, por um lado, as rachaduras
no edifício da ditadura colocam as "reformas" como fato consu-
mado, por outro lado é também evidente que o governo se reserva
a última palavra, ou seja, o poder decisório final. Ninguém faz isso
sem poder nas mãos. E esse poder não esfacelar-se-á por si próprio,
ainda mais que, quando se trata de propor alternativas próprias,
as diversas frações burguesas não se entendem em função da crise.
O corolário disto é a convicção de que o espaço político estará su-
ficientemente congestionado quando as "reformas" vierem e, de qual-
quer modo, elas virão de cima para baixo. É o chamado "pacotão".
Se isto não chega a ser novidade, creio que pelo menos coloca pro-
blemas sérios à oposição conseqüente e limites à sua ação. O pro-
blema que vivemos hoje estaria mais ou menos configurado dessa
forma para a esquerda conseqüente: Não se pode perder de vista
que os interesses dos trabalhadores colocam primordialmente a ques-
93
tão da supressão de toda a exploração e que essa supressão é con-
quista de um movimento de massas, das massas trabalhadoras. Isso
significa que a esquerda tem que construir esse movimento, o que
vale dizer, tem que construir as condições de democracia política
que garantam esse movimento como legítimo. Deve saber, por isso,
que nenhuma fração burguesa concederá tais condições e que os
próprios trabalhadores deverão arrancar essas conquistas democrá-
ticas à burguesia. No caso brasileiro, entretanto, a coisa se complica,
na medida em que o regime de exceção não está disposto a conceder
espaços que possibilitem a organização de um movimento autônomo
dos trabalhadores, muito menos quando colocada a questão do po-
der. Traduzindo o problema: a oposição conseqüente, face a atual
distância que a separa dos trabalhadores e face ao seu precário grau
de articulação, tem que ter claro que suas forças atuais não têm
condições de, sozinhas, empurrar para trás o limite imposto pelo
regime. Porém, por outro lado, tem que fazer alguma coisa que
permita, nessas condições, jogando com o que é imposto, acumular
forças para reverter essa situação. Fazer alguma coisa junto com
outros setores descontentes bem mais vacilantes, setores à sua direi-
ta, sem que isso implique na perda de sua identidade e no rebo-
quismo político. A situação é ainda pior, pois a possível frente de
oposição que surgir não terá condições, pelo menos por agora, de
impor parâmetros de mudança do regime, tendo que lutar contra
as "reformas" outorgadas que o governo pretende (e ainda pode)
conceder. Tal luta é uma luta de desgaste do projeto político da
ditadura e como tal deverá descer ao nível mais concreto, pois é lá
onde terá condições de desmascará-lo. Mas descer ao concreto não
significa necessariamente descer às determinações e às raízes últimas
dos problemas do povo brasileiro. Para um exemplo, veja-se a cam-
panha de "desmascaramento" do "golpe da antecipação" da convenção
da ARENA que está sendo levada pelo Sr. Magalhães Pinto. O referido
arenista vem concretamente apontando o claro significado golpista
do fato, sem contudo mostrar que esse procedimento (que até bem
pouco tempo também era o seu) faz parte daquilo que poderíamos
chamar de "normal" no pós-64. E isso porque o senador mineiro é
tão golpista quanto aqueles a quem hoje acusa.
Enfim, há formas e formas de se desgastar o conteúdo antidemo-
crático do "pacotão". A oposição conseqüente, embora atuando nesse
sentido com outros setores, repito, setores à sua direita, deve nesse
caso marcar bem as diferenças, forjando concretamente suas pró-
prias alternativas. Vejamos dois exemplos disso no que se refere
aos partidos políticos e aos sindicatos.
Na atual etapa da luta em que ainda não existem consoüdados
nem partidos representativos, nem um movimento de massas orga-
nizado, a palavra de ordem conseqüente, no que se refere a partidos
políticos, é a de uma ampla e irrestrita liberdade de organização
partidária. O governo contudo já deixou claro que não vai admitir
94
isso, excluindo de cara a possibilidade de partidos autenticamente
representativos dos operários, camponeses e trabalhadores rurais,
e mesmo da pequena burguesia radical. Contudo, é dada como certa
a extinção do bipartidarismo, com o fim da ARENA e do MDB e o
surgimento de novos partidos. Face a esse óbice, a esquerda tem
duas alternativas concretas: ou participa assim mesmo ou fica de
fora, criticando de fora, tentando se organizar por si mesma, o que
reputo, como já disse, algo quixotesco; algo situado no plano da
ética e da moral e não da política. Sim, porque um partido não se
organiza fora da luta política e, nas atuais condições, participa-se
politicamente muito limitadamente fora desse quadro. Por outro
lado, ficar esperando que os liberais ou quaisquer outras frações
burguesas concedam ampla e irrestrita liberdade partidária é ilusão
de classe. Pois bem: creio que isso não pode ser alcançado enquanto
vigorar o regime de exceção, mas, se a esquerda conseqüente não
participar do processo de criação de novos partidos, as condições
para ampla liberdade partidária nunca existirão. Devemos propugnar
para que a nova estrutura partidária não se tome uma camisa de
força para a reaglutinação do movimento dos trabalhadores. Nesse
sentido, a oposição conseqüente deve ter duas coisas em mente:
jamais considerar os futuros partidos como definitivos, mas, ao
contrário, como veículo para a construção de um partido verdadeira-
mente representativo dos trabalhadores; em segundo lugar, deve ter
claro para si que existe um enorme distanciamento entre ela, a opo-
sição, e os trabalhadores, o que quer dizer que sua função deve ser
a de envidar todos os esforços no sentido de vincular-se o mais es-
tritamente possível às massas. Embora isso não passe apenas pela
questão partidária, reflete-se nela, indica parâmetros, princípios funda-
mentais que devem ser defendidos a todo o custo no processo de
construção de novos instrumentos partidários. O 1» desses princípios
já foi citado: os novos partidos em que a oposição conseqüente
participar, deverão ter um caráter de frente provisória, nunca o de
um partido definitivo. O caso da articulação do PS mostra essa
tendência, embora lá não faltem posições como as que ocorrem
no futuro P.T.B. que já se define mais rigidamente como agremia-
ção definitiva. Mas a idéia de frente que se esboça na articulação
do PS — frente pelas liberdades democráticas — incorre num perigo
do qual o PTB tenderá a levar vantagem: enquanto que essa possí-
vel frente levanta bandeiras jurídico-políticas formais, o PTB, pelo
que se sabe, repetirá a tática do populismo, vinculando a questão
democrática à questão nacional e procurando assimüar esta à ques-
tão social. Se bem que essa é uma falsa semelhança, não resta
dúvida que um programa assim feito atingirá muito mais as clas-
ses trabalhadoras, porque fala sua língua, toca seus problemas, ainda
que falseando-os, e sem dúvida é mais concreto. Daí ser esta uma
lição que a esquerda não pode esquecer: lutar por um partido —
frente — provisório, o PS ou o que for, significa lutar também por
95
um programa mínimo desta frente, o mais classista possível e que
toque nos problemas concretos dos trabalhadores. É óbvio que tal
programa de frente não deve ser confundido com a estratégia da
superação de toda a exploração, mas também não deverá tomar-se
obstáculo a ela. Nesse sentido, um programa que lute pelo fim do
arrocho salarial, pela melhoria das condições de vida da população,
pela liberdade de organização sindical e partidária deve ser defen-
dido ao lado das reivindicações por democracia política.
O 3' princípio que me parece indispensável refere-se à estrutura
e ao funcionamento desse partido-frente. Ela deve ser tal que possi-
bilite a ação conjunta, no que se refere ao seu programa mínimo,
mas não se pode permitir que as divergências estratégicas sejam
submetidas a ela. Em outras palavras, a estrutura deve possibilitar
a atuação como fração, permitindo que sejam marcadas e definidas
posições dentro e fora do partido. Se no caso do programa o exem-
plo da UDN deve servir de alerta para a oposição conseqüente, no
caso da estrutura partidária, encontraremos no MDB o tipo de
frente a combater. Um novo MDB não nos serve, pois submete as
frações ao programa do partido, um programa mínimo que sufoca
as posições divergentes e impede-as de chegar às massas. Nós, pelo
contrário, devemos lutar para que os novos partidos sejam canais
para se atingir as massas, veículos de organização e propagandea-
mento de idéias, e uma estrutura do tipo emedebista não permite
(nem nunca permitiu, mesmo em 74) isso.
Penso que é nesse ponto que a questão partidária se articula à
sindical. Como disse, a esquerda deve lutar para que os partidos
em que participe incorpore em seu programa de frente as questões
que, hoje, dizem respeito diretamente aos trabalhadores e seus alia-
dos. Entre essas, encontra-se a questão da liberdade sindical. Os fu-
turos partidos deverão, portanto, lutar pela liberdade e autonomia
sindical. Gostaria de lembrar que a questão sindical constitui-se,
atualmente, no mais importante movimento da classe operária e
sobre isso falarei adiante. Voltando à luta partidária, fica claro aqui
por que a necessidade de a estrutura da futura frente permitir
a atuação como fração: formada por diversos setores classistas des-
contentes, é óbvio que existirão inúmeras formas de encarar-se o
problema sindical. Desatrelar o sindicato do Estado é vim ponto
comum, mas encobre muitas outras coisas. Não existe apenas um
tipo de sindicato livre: veja-se, por exemplo, o sindicato americano,
o inglês e o espanhol. Não existe paralelo entre eles. A consígnia por
liberdade sindical pode encobrir formas altamente danosas como, por
exemplo, o "Sindicato de Negócios" americano. Esse tipo de sindica-
lismo jamais levará à superação de toda a exploração e portanto
não nos interessa. Contudo, interessa a outros setores que poderão
situar-se num PS, no caso, à social-democracia. Esses setores dispõem
hoje, enquanto frações do capital, de condições infinitamente supe-
riores para hegemonizar um partido, de modo que uma estrutura
96
rígida falará sempre por sua boca. No caso da fração, isso não
ocorre, pois mesmo em condições inferiores, a oposição conseqüente
poderá encontrar canais de ligação com as massas trabalhadoras e,
através deles, influenciar a luta por liberdades sindicais, desmasca-
rando o conteúdo nefasto de propostas como o "Sindicalismo Ame-
ricano" que tentam nos impingir e, ao mesmo tempo, propagandean-
do suas próprias alternativas.
Sobre isso, gostaria de fazer breves considerações como encerra-
mento: influir nessa luta, hoje a mais importante levada a cabo pelos
trabalhadores, coloca imensos problemas. Não é nada simples para
uma esquerda desvinculada, por seus erros passados e pela repres-
são, de suas bases classistas atuar nesse campo movediço. O fato
de que esse seja o movimento mais sério que os trabalhadores
desenvolvem desde 64, não exclui a presença de elementos ideoló^
gicos e políticos burgueses nele. Este movimento, por um lado, é
sumamente importante, pois não opõe os operários a este ou àquele
patrão isolado, mas concretamente opõe-nos ao Estado, pois é este
Estado quem impede a livre organização dos trabalhadores, mani-
pula os índices de correção salarial, arbitra os dissídios coletivos,
impede as greves, etc. Pela primeira vez está desmistificada, na prá-
tica da classe, a herança populista do "Estado patemal". Mas, por
outro lado, a condução desta luta, até agora, não tem valorizado
este aspecto sumamente importante, porque diretamente político.
Os operários estão questionando o Estado, mas sem transcender o
seu conteúdo de classe burguês. E isso seria impossível de ser con-
seguido por eles mesmos face as suas atuais condições: alta repres-
são, desorganização, pouca experiência política, instabilidade no em-
prego, etc. Essa tarefa caberia às lideranças sindicais. E quais são
elas? Pelegos como o Sr. Joaquim e o Sr. Ari Campista; social-demo-
cratas e as chamadas frentes de oposições sindicais — os setores
mais conseqüentes. Gostaria de deixar apenas uma pergunta, agora
que fica claro como se imbricam a luta partidária, a luta sindical
e a luta pela democracia como conquista das massas trabalhadoras:
estará a esquerda capacitada a levar essa luta num sentido conse-
qüente? ou seja: Teremos vencido — em nós mesmos — as heranças
do populismo (o mito do "Estado", o burocratismo, o sectarismo
vanguardista, etc.) de forma a nos tornarmos capazes de dar res-
postas táticas eficazes aos anseios das massas, respostas que se
anteponham e desmascarem os policiais e provocadores infiltrados,
os pelegos e os social-democratas? Sejam quais forem as respostas,
elas deverão ser dadas nos campos das lutas citadas acima.

O REPÓRTER — Tablóide mensal


Autônomo e Independente

97
Uma Estratégia de Conhecimento Crítico

Michel Thiollent*

Gramsci é muito conhecido como teórico das superestruturas e do


papel dos intelectuais na sociedade. Dentro da sua concepção do
papel dos intelectuais, existe uma certa estratégia de conhecimento
social crítico cuja função é teórica e política. Tentaremos caracteri-
zar a especificidade de tal estratégia, assim como algumas das suas
tarefas e implicações metodológicas dentro do campo da filosofia
e da ciência social.

1, Paradigma historicista
Considerada como "historicismo absoluto", a concepção gramsciana
da filosofia da práxis consiste na interpretação, dentro do processo
histórico, "dos motivos práticos e teóricos das opções da época".'
Tal interpretação tem em vista a orientação da "vontade coletiva" de
transformação social pela realização das opções possíveis. Sem essa
"vontade coletiva" a dialética do conhecimento não tem suporte
nem sentido.
A filosofia e a ciência política a ela relacionada assumem a fun-
ção de interpretar os elementos conflitivos da conjuntura, as pos-
sitailidades e potencialidades para definir objetivos prático-históricos.
Dessa forma a prática de conhecimento está "organicamente" ligada
com a dialética do movimento real, desempenhando neste último
um papel de autoconsciência e de orientação da transformação so-
cial. Tal concepção da prática de conhecimento se baseia na seguinte
tese:
A proposição contida na introdução à Crítica da Economia Política
de que os homens tomam consciência dos conflitos no terreno das
ideologias deve ser considerada como uma afirmação de valor gno-
siológico e não puramente psicológico ou moral. Daqui se segue
que o princípio teórico-prático da hegemonia tem também um al-
cance gnosiológico, e portanto deve procurar-se neste campo o má-
ximo contributo teórico de Ilitch à filosofia da práxis.2

• Professor de Sociologia da UNICAMP.

98
Em contradição com o teoricismo que tenta produzir o conheci-
mento fora do movimento real e em seguida aplicar certos resulta-
dos à orientação do mesmo, o historicismo de Gramsci postula que
as condições da teorização e da análise científica existem dentro do
movimento social. A tomada de consciência e a constituição de uma
vontade coletiva de transformação da infra-estrutura são considera-
das como condições sociopolíticas e gnosiológicas para a produção
de um conhecimento crítico. Este último, ao final do círculo prático,
contribui para a modificação das condições de início.

2. Crítica das ideologias e a atualização do possível


De acordo com o paradigma historicista a estratégia de conhecimen-
to, para assumir tarefas gnosiológicas e políticas, dispõe de dois
componentes: a) crítica sistemática das várias formas ideológicas e
b) a atualização das possibilidades contidas na situação.
O primeiro componente é indispensável para a efetivação do se-
gundo. A crítica das ideologias tem por objetivo a "descoberta dos
fundamentos sociológicos da historicidade".' Em outras palavras,
ela deve destruir as formas de representação que eternizam ou coi-
sificam as relações sociais. Por trás do enrijecimento ideológico,
destacando o caráter contraditório e temporário do real, a crítica
permite definir caminhos de superação.
Segundo Nicola Badaloni, "criticar as ideologias significa tomar
consciência da validade relativa delas, quer no sentido de 'aparência'
ou 'historicidade', quer no sentido da relação que elas entretêm com
os homens reais e as forças sociais determinantes".' As ideologias
não são concebidas como elocubrações individuais mas como "for-
ças" que intervém com certa "organicidade" nos processos sociais
reais, especialmente quanto ao enrijecimento normativo que mantém
as massas sob a hegemonia das classes conservadoras.
No plano gnosiológico, a critica das ideologias é o meio de acesso
ao conhecimento científico dos processos reais na medida em que
se consegue descartar a "aparência". No plano sócio-político, o mesmo
tipo de crítica contribui para a transformação social, produzindo
condições cognitivas da formação da vontade coletiva no processo
de superação ideológica e política da estrutura econômica vigente.
A tomada de consciência (catarse) necessária para tal superação
permite a passagem da necessidade à liberdade (ou "criatividade
histórica")."
Dentro da dialética histórica o conceito de necessidade, para
Gramsci, não envolve uma idéia de causalidade ou determinismo
apenas econômico; a necessidade aparece no processo de transfor-
mação como uma tensão entre o que é e o que deveria ou poderia
ser. A partir dessa tensão elabora-se um projeto de transformação
da realidade baseado nas exigências e possibilidades da situação.
Aí intervém o segundo componente da estratégia de conhecimento
crítico para a determinação das possibilidades cuja atualização na
prática abre novos campos de "criatividade histórica". Descrevendo
esse processo teórico-histórico, Nicola Badaloni utiliza a noção de
"atualização da utopia". Parece melhor, como faz Jean Texier, colo-
car essa atualização do possível em termos de "criatividade histórica".

3. Estratégia e prática na crítica


dos ideólogos do senso comum
A atividade intelectual opera simultaneamente em dois níveis de
conhecimento: o nível de alta elaboração (teorias científicas, sistemas
ideológicos) e o nível do senso comum (filosofia dos não-filósofos,
representações populares, etc). Tal atividade produz efeitos de co-
nhecimento e efeitos de consciência combinados e supõe habilidade
particular no conjunto das decisões estratégicas e táticas.
a) Crítica dos Ideólogos Eminentes
Gramsci coloca em termos estratégicos a crítica teórica. Escolhendo
as concepções dos ideólogos mais eminentes da época como alvo
prioritário (caso de B. Croce), o autor mostra a diferença que existe
entre este tipo de luta e os outros:
Põe-se a questão: não seria apenas preciso referir-se aos grandes
intelectuais adversários, e descuidar os secundários, os remastigado-
res de frases feitas? Tem-se a impressão precisamente de que se
quer combater apenas contra os mais débeis e talvez contra as po-
sições mais débeis (...) para obter fáceis vitórias verbais (...).
Imagina-se que exista uma certa semelhança (nem formal nem me-
tafórica) entre uma frente ideológica e uma frente político-militar.
Na luta política e militar pode convir a tática de atacar os pontos
de menor resistência para ser capaz de investir contra o ponto mais
forte com o máximo de forças disponíveis pelo fato de ter elimi-
nado os auxiliares mais fracos, etc. (...). Na frente ideológica, pelo
contrário, a derrota dos auxiliares e dos meros sequazes tem uma
importância quase desprezível; nela é preciso lutar contra os mais
eminentes. De outra maneira confunde-se o jornal com o livro, a
pequena polêmica quotidiana com o trabalho científico.'
b) Crítica do Senso Comum
A critica do senso comum tem valor gnosiológico na medida em
que sua superação é necessária para se ter acesso ao conhecimento
do real e também apresenta uma finahdade ideológica, política ou
simplesmente pedagógica. A crítica das ideologias superiores fica es-
téril quando existe sem ligação com a crítica do senso comum. A
inter-relação das duas críticas é uma especificidade da filosofia da
práxis e garante o seu valor político. A critica do senso comum im-
plica, por parte dos intelectuais, uma aproximação às representações

100
populares e o exercício da inteligência crítica sobre elas. Não há
arbitrariedade: a crítica-elucidação dentro do pensamento popular é
o único meio de acesso aos problemas subjetivos reais que existem
na conjuntura e condicionam as possibilidades de atuação. No de-
correr da transformação social, na medida em que as massas estão
em posição de ator e não de espectador, a crítica in vim do senso
comum é um requisito antielitista da dialética e as incorpora ao
processo de tomada de consciência e à criatividade histórica.
Uma das principais críticas feitas por Gramsci ao Manual Popular
de Sociologia de N. Bukharin, diz respeito ao ponto de partida da
exposição. O Manual apresenta considerações teóricas de nível su-
perior sem estabelecer relação com o senso comum cuja critica
seria o ponto de partida de uma exposição pedagógica. O autor
justifica sua critica da seguinte maneira:
O que se disse atrás sobre o Manual Popular, que critica as
filosofias sistemáticas ao invés de partir da crítica do senso comum,
deve ser compreendido como nota metodológica, e dentro de certos
limites. Isto não quer dizer com certeza que se deva descuidar a
crítica às filosofias sistemáticas dos intelectuais. Quando, individual-
mente, um elemento de massa supera criticamente o senso comum,
aceita por este mesmo fato uma filosofia nova: eis portanto a
necessidade, numa exposição da filosofia da práxis, da polêmica com
as filosofias tradicionais. Mais: por este caráter tendencial de filoso-
fia de massa, a filosofia da práxis não pode ser concebida senão sob
forma polêmica, de luta perpétua. Todavia, o ponto de partida deve
ser sempre o senso comum que é espontaneamente a filosofia das
multidões que se trata de tomar homogênea sob o ponto de vista
ideológico.'
4. Reestruturação do saber
Ao lado da concentração de forças para a crítica teórica em tomo
dos alvos da conjuntura, a atividade intelectual se dá, a longo prazo,
uma tarefa de reavaliação ou reestruturação de quase todo o conhe-
cimento humano disponível numa configuração geral adequada aos
vários momentos da dialética da consciência na transformação do
real.
Nesse amplo programa, podemos levar em consideração vários
aspectos ilustrados com citações do próprio autor:
a) De acordo com o paradigma historicista as atividades intelectuais
necessárias e possíveis são determinadas pela fase da transformação:
À fase econômico-corporativa, à fase de luta pela hegemonia na
sociedade civil, à fase estatal, correspondem atividades intelectuais
determinadas que não se podem improvisar ou antecipar arbitraria-
mente. Na fase da luta pela hegemonia, desenvolve-se a ciência da
política; na fase estatal todas as sobrestruturas se devem desenvol-
ver, sob pena de dissolução do Estado.8
101
b) Na discussão científica a melhor maneira de tratar as concep-
ções dos "adversários" teóricos não é a rejeição a priori; é possível
incorporar as posições opostas (também reflexos da realidade con-
traditória) como um momento no raciocínio da "própria constru-
ção". '
c) No domínio científico, o conhecimento disponível contém dois
elementos: o núcleo racional relativo à realidade objetiva e um
feixe de hipóteses ideológicas referentes às condições sociais de
produção e utilização do conhecimento. Gramsci considera que "é
relativamente fácil distinguir a noção objetiva e o sistema de hipó-
teses ideológicas por meio de um processo de abstração inscrito
na metodologia das ciências e que permite a apropriação da primeira
e a rejeição do segundo (...). Ê por isso mesmo que um grupo
social pode fazer sua a ciência de um outro grupo sem aceitar a
ideologia deste último"."
d) A reestruturação do saber deve incorporar as descrições empíri-
cas na medida em que informam sobre a situação e as relações
de força:
Os elementos de observação empírica que habitualmente são ex-
postos confusamente nos tratados de ciência política (...) deveriam,
enquanto não são questões abstratas ou construídas no ar, achar
nos vários graus das relações de forças internacionais (em que acha-
riam lugar as notas escritas sobre aquilo que é uma grande potência,
sobre os agrupamentos de Estados em sistemas hegemônicos e, por-
tanto, sobre o conceito de independência e soberania pelo que diz
respeito às pequenas e médias potências) para passar às relações
objetivas sociais, isto é, ao grau de desenvolvimento das forças pro-
dutivas, às relações de força política (...) e às relações políticas
imediatas (...)."

5. Análise das situações concretas


e das relações de força
A intervenção teórico-prática não escolhe seu objeto ao acaso. O
objeto de análise é uma situação concreta (ou conjuntura determi-
nada) dentro do qual são considerados os vários momentos das
relações de força e as várias possibilidades para definir uma alter-
nativa em função de um objetivo fundamental.
Na análise de uma situação, Gramsci estabelece demarcações me-
todológicas para distinguir o que é orgânico (ou estrutural) do que
é apenas contingente. A avaliação das relações de força é concebida
de uma maneira complexa, articulando as relações das forças obje-
tivas inscritas na infra-estrutura, as relações de forças subjetivas
(grau de desenvolvimento da consciência, tipo solidariedade...) e as
relações das forças politico-militares. O autor sublinha que tais aná-
lises não podem e não devem ser um fim por si mesmo (a não ser
102
que se escreva um capítulo da história do passado), mas adquirem
um significado apenas se servem para justificar uma atividade prá-
tica, uma iniciativa da vontade."
Seria possível considerar o modelo de pesquisa proposto como
um tipo de "pesquisa operacional" (o objetivo faz parte do objeto)
com historicismo em lugar de positivismo. A dialética envolvida
nesse modelo nada tem realmente a ver com a "dialética" de certos
estudos neogramscianos de tendência nominalista em que só se trata
de projetar palavras (hegemonia, intelectual, orgânico, etc.) sobre
realidades concretas não consideradas como objeto de pesquisa, mas
apenas como "pretexto" a sábios comentários para ficar na moda.

6. Historicismo e onti-historicismo
Nos anos 60 Louis Althusser criticou o historicismo de Gramsci em
termos políticos e epistemológicos. Politicamente, o professor da
Rue d'Ulm denunciou como sendo esquerdismo a historicização da
filosofia e a ligação orgânica entre a prática de conhecimento e a
prática política. Epistemologicamente, o historicismo conduziria à
confusão do objeto real e do objeto do conhecimento e cairia na
ideologia empiricista por não ter pensado o estatuto autônomo da
ciência."
Apenas na base das formulações às vezes lacônicas de Gramsci, é
verdade que a historicização do conhecimento no processo real pre-
judica uma clara separação entre o objeto real e o objeto de pen-
samento e não abre o lugar teórico de uma instância epistemológica
para definir as condições de teorização e submetê-las a critérios
lógicos. Sem este lugar existe o risco de a filosofia da práxis cair
num praticismo (ou espontaneísmo) por falta de critérios de vigi-
lância ou de controle científico. Reconhecendo isso, podemos con-
siderar que a postura teoricista althusseriana (agora parcialmente
autocriticada) cai na extremidade oposta: colocando no posto de
comando uma epistemologia bastante formalista, ela perdeu de vista
o contexto prático do conhecimento e seus critérios gnosiopolíticos.
A justa crítica ao empirismo não pode ir até ao desligamento da
teoria e da empiria e ao desligamento da teoria e da prática apenas
reunidas na expressão "prática teórica" sem consideração do con-
texto social da atividade intelectual.
A perspectiva de Gramsci não oferece em si própria todas as so-
luções. A aplicação ingênua de algumas de suas formulações daria
em uma prática de conhecimento muito subjetiva. Porém a combi-
nação das frentes contra as ideologias e o senso comum permite
uma estratégia de conhecimento crítico complexa e diversificada.
Além disso, as características de inserção da prática de conhecimen-
to dentro do processo real não impedem um possível fortalecimento
da instância epistemológica e lógica no controle do conhecimento,
desde que se tenha vontade de trabalhar neste sentido.

103
Notas
1. Badaloni, Nicola, "L'historicisme de Gramsci face au marxisme contemporain"
in Les Temps Modernes, n' 343, 1975, p. 1019-1947; cit. p. 1020 (original C. M.
n» 3, 1967).
2. Gramsci, Antônio, Obras Escolhidas, Lisboa, Editorial Estampa, Coleção Teoria,
1974, vol. 1, p. 89.
3. Badaloni, Nicola, op. cit, p. 1025.
4. Idem.
5. Texier, Jean, "Gramsci: Necessite et créativité historique", in La Nouvelle Cri-
tique, n» 69, dez. 1973, p. 61-68.
6. Gramsci, Antônio, op. cit., p. 187.
7. Idem, p. 171-172.
8. Idem, p. 137.
9. Idem, p. 59.
10. Gramsci, Antônio, "La science et les idéologies scientifiques", in L'Homme et
Ia Société, n' 13, 1969, p. 174.
11. Obras Escolhidas, vol. 1, p. 321.
12. Idem, p. 335.
13 Althusser, Louis, "Le marxisme n'est pas un historicisme", in Lire Le Capital,
tomo II, P. Maspéro, Paris 1965, p. 73-108.

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104
A Classe Operária vai à Luta:
A Greve de 1907 em São Paulo*

Sílvia I. L. Magnani

Introdução
Em maio de 1907 aconteceu em São Paulo intensa agitação operária
reivindicando a redução da jornada de trabalho para oito horas e
aumentos salariais variáveis (25 a 30%). Até então a duração da
jornada de trabalho variava entre 10 e 16 horas, podendo ser redu-
zida ou estendida conforme as necessidades da produção, e os sa-
lários sofriam rebaixamentos ou aumentos conforme a duração da
jornada. A questão da duração da jornada (como todas as outras
questões trabalhistas) era decidida entre os próprios envolvidos —
o operário e o patrão — sem a mediação do Estado (legislação), e
normalmente o proprietário impunha o horário de sua conveniência.
A greve de maio é classificada como interprofissional porque não
atingiu simultaneamente todos os ramos da produção (os operários
do setor de bebidas, p. ex., não participaram do movimento). A dura-
ção da parede variou conforme a categoria profissional, estendendo-
se em algumas até o início de junho. O principal objetivo dos gre-
vistas era reduzir a jornada de trabalho, já que, ao firmarem os
acordos com os patrões, abdicaram, na maioria dos casos, do au-
mento do salário.
A agitação em prol da jornada de trabalho de oito horas é estu-
dada aqui enquanto fenômeno singular, isolado do contexto mais
amplo da história da classe operária e do movimento operário. Nós
nos propusemos a realizar simplesmente um estudo de caso preli-
minar, limitando-o à sua dimensão sincrônica e procurando recons-
truir o desenrolor concreto dos acontecimentos através da pesquisa
de fontes primárias. Claro está que esse tipo de estudo é insuficiente
pela perda da dimensão histórica (diacrônica), pela impossibilidade
de estabelecer causas e conseqüências, restringindo-se enfim aos ele-
mentos contidos nas próprias fontes primárias. Entretanto, permite
aprofundar o conhecimento dos fatos, que por sua vez podem con-
♦ Esta pesquisa preliminar integra o projeto de tese "Trabalho e Ideologia em
São Paulo (1904-1917)", que a autora vem desenvolvendo como aluna do Mestrado
em Ciência Política da UNICAMP, contendo com o financiamento da FAPESP.

105
tritauir para a elucidação e a interpretação do processo histórico de
constituição da classe operária e suas lutas.
As fontes primárias consultadas foram o jornal anarco-sindicalista
A Terra Livre, maio-junho de 1907; os jornais diários Correio Pau-
listano, maio-junho de 1907, e Comércio de São Paulo, maio de 1907.
Também foram consultados alguns números do jornal socialista
Avanti!

1. A jornada de oito horas


1.1. A jornada de trabalho de oito horas foi o tema debatido e
aprovado no I Congresso Operário Brasileiro (Rio de Janeiro, abril
de 1906), no qual foi preponderante a influência do anarco-sindica-
lismo, sendo considerado o marco inicial do predomínio dessa ideo-
logia no movimento operário brasileiro da República Velha. Os con-
gressistas interpretaram da seguinte forma a questão:
Tema-A — Reivindicação preferida: Para que espécie de melhora-
mentos deve o operariado organizado orientar principalmente os seus
esforços? Para o aumento de salários ou para a diminuição de horas?
Considerando que a diminuição de horas de trabalho tem influência
sobre a necessidade do bem-estar, aumentando o consumo e daí a
produção; que por essa razão e ainda por diminuir o trabalho coti-
diano, a desocupação diminui e o salário tenderá a subir; que o
descanso facilita o estudo, a educação associativa, a emancipação
intelectual e combate o alcoolismo, fruto do excesso de trabalho
embrutecedor e exaustivo; que o aumento de salário é mais uma
conseqüência, um efeito da diminuição de horas de trabalho, de
menor desocupação e bem-estar relativo do que causa dos mesmos;
o I Congresso Operário aconselha de preferência a conquista da re-
dução de horas pelo próprio proletariado, porque só assim será vá-
lida, sobretudo se amparada pela abolição do trabalho por obra e
das horas suplementares, pelo "gocanny" (trabalho sem precipita-
ção), pela fundação de bibliotecas e instituições de ensino e pela
atividade sindical.'
E decidia o Congresso:
Instigar calorosamente organizações a empreenderem uma ativa
propaganda em favor das oito horas, sem diminuição de salário,
seguindo o salutar exemplo do proletariado de outros países, hoje
em agitação;... envidar, de acordo com o método seguido pelos com-
panheiros franceses (ação direta), os maiores esforços para que o
operariado do Brasil, no dia 1» de maio de 1907, imponha as oito
horas de trabalho.'
A necessidade da conquista do horário de oito horas diárias justi-
ficava-se por motivos econômicos, políticos, educacionais e morais.
106
Os motivos econômicos referiam-se tanto à indústria quanto ao pro-
letariado. O aumento do consumo e conseqüentemente da produção
representariam um benefício direto à indústria, aumentando os seus
rendimentos; a redução das horas de trabalho não acarretaria uma
diminuição no volume da produção, nada obstando, portanto, sua
adoção. Essa argumentação, ao salientar que a reforma do horário
não traria limitações ao poderio econômico dos proprietários, repre-
sentava uma tentativa implícita de diálogo entre as classes. E con-
trariava, de certa maneira, a temática anarco-sindicalista de constante
ativação da luta de classes, visando à abolição, mesmo que parcial,
dos privilégios burgueses.
Do ponto de vista especificamente operário, a motivação econômi-
ca dizia respeito ao aumento indireto dos salários, através da dimi-
nuição da taxa de desemprego, que é um dos fatores determinantes
do valor da força de trabalho (menor pressão do exército industrial
de reserva). O atenuamento da concorrência interoperária por colo-
cações também teria conseqüências políticas ao reforçar a união e
a solidariedade da classe, já que os movimentos reivindicatórios não
seriam rompidos pelos desocupados, o que em última instância au-
mentaria o poder do operariado em face do patronato.
Os motivos educacionais eram os mais importantes e preponderan-
tes. A maior disponibilidade de tempo permitiria ao operário dedicar-
se ao estudo, primeiro passo em direção à emancipação intelectual e
ao fortalecimento da consciência de classe, condições indispensáveis
para a vitória de suas lutas parciais contra o capital e para a abo-
lição do capitalismo. A educação operária, tal como era concebida,
estava intimamente relacionada com a motivação política, e o for-
talecimento do motivo associativo, pois ao educar-se o operário
procuraria defender seus interesses através do sindicato (para os
anarco-sindicalistas esta era a agremiação por excelência defensora
dos interesses do proletariado em oposição aos do capital).
O motivo de cunho moral que, no documento citado, justifica a
necessidade da obtenção da jornada de oito horas, era o combate ao
alcoolismo, tema constante na imprensa operária, o que permite
supor que o alcoolismo fosse muito comum entre os operários. Ou-
tros documentos contidos na imprensa operária apontam também
para o problema da desagregação da família operária.
A Federação Operária de São Paulo (F.O.S.P.) constituída em 1905,
que coordenou o movimento grevista de maio de 1907, cuja direção
era formada por operários anarco-sindicalistas, interpretava da se-
guinte maneira a jornada de oito horas:
Festejar o trabalho, quando ele é (...) uma escravidão para nós,
um castigo, um jugo que nos é imposto (...), festejar o trabalho
um dia a cada ano quando 364 dias a exploração do capital nos
condena à miséria mais negra (...) é absurdo (...). Nada de fes-
tejos, portanto, nesse dia designado pelo Congresso de 1889 para,
reativando as energias e despertando a consciência, lançar o opera-
107
riado no caminho de suas reivindicações, começando pela obtenção
das oito horas (...). Operários! Abandonemos o trabalho, não para
nos embriagarmos ou para fazer qualquer passeata de recreio, mas
para demonstrar nossa força e para fazer ver aos nossos compa-
nheiros ainda inconscientes que chega a nossa vontade para trocar
as coisas.3
Em outro documento da F.O.SP. afirma-se:
Menos horas de fadiga, mais descanso, isto é, menos necessidade
de álcool para chicotear os nervos num trabalho brutal, mais ale-
gria no lar, mais pão para a boca, mais instrução para vós (operá-
rios), mais bem-estar e educação para os filhos.*
Portanto, para a Federação a conquista das oito horas diárias
inseria-se no contexto da luta de classe e conduziria a um fortaleci-
mento da consciência de classe entre os oprimidos. Entretanto, as
vantagens imediatas da luta eram sobretudo de cunho educacional
e moral, ficando as vantagens econômicas em segundo plano.
O jornal A Terra Livre (S. Paulo e Rio de Janeiro), de tendência
anarco-sindicalista, ao analisar a greve de São Paulo invalidou os
argumentos econômicos, ligados à obtenção da jornada de oito horas,
ressaltando, além disso, o caráter reformista e limitado da medida:
Pelo que se refere ao lado econômico da questão (...), o trabalha-
dor é constrangido a notar que os melhoramentos de sua situação
de produtor-consumidor, conquistados em regime capitalista, embora
sejam dignos dos nossos esforços (...), são contudo impotentes
para transformar eficaz e duradouramente as condições do salariado.
Já em São Paulo o aumento dos preços, tendo por motivo ou pre-
texto o maior custo da produção, parece ter destruído em parte
os bons efeitos das conquistas obtidas (...). Mas esse inconveniente
não destrói totalmente as vantagens da diminuição das horas de
trabalho (...). É a reforma transitória, mais resistente e de mais
alta significação moral, pois nela o trabalhador reivindica o seu di-
reito às alegrias do repouso, do recreio, do lar, da instrução, re-
cusando "labutar como uma besta", ocupar o lugar de dois e aumen-
tar a concorrência de braços desocupados (...); há contudo no
próprio funcionamento do regime capitalista sobejas causas que re-
produzem (...) a desocupação, a concorrência entre trabalhadores,
a incerteza da vida, o mal-estar econômico e moral: o aumento da
população (...), o desenvolvimento do maquinismo (...), as crises
de produção."
Portanto, os benefícios materiais da redução da jornada de tra-
balho eram somente o direito ao descanso e a menor taxa de desem-
prego, não sendo possível obter desse modo o aumento dos salários.
Assim, para A Terra Livre a conquista das oito horas diurnas de
trabalho era justificada predominantemente por motivos político-
educacionais e morais.
Os socialistas que até o momento de eclosão do movimento não
acreditavam em sua viabilidade, também destacaram através de seu
108
jornal Avanti! os motivos morais justificadores da luta pelas oito
horas. Essa conquista era encarada como "o único meio verdadeira-
mente eficaz de realizar a moral do proletariado", permitindo-lhe
acesso à educação sem a qual seria "uma besta", "uma máquina de
trabalho"." Em suma, a menor jornada de trabalho permitiria ao
operário realizar a sua condição humana.
Assim, para os anarco-sindicalistas, secundados pelos socialistas,
os motivos imediatos da luta do proletariado pela redução da jor-
nada de trabalho eram, acima de tudo, educacionais, políticos e
sociais... A importância da educação operária não se referia à pos-
sibilidade de melhor remuneração ou de ascensão social, mas sim
à necessidade de despertar a consciência de classe, isto é, de o ope-
rário reconhecer sua posição social, a opressão, para então lutar
pela melhoria de suas condições de vida na sociedade capitalista e
lutar em prol de sua total emancipação, através da derrubada do
regime capitalista.
A reivindicação da jornada de oito horas, embora não fosse uma
proposta de conteúdo especificamente libertário, foi levantada e pro-
pagada pela liderança anarco-sindicalista, demonstrando que ela teve
certa penetração nos meios operários, sobretudo se considerarmos
o aspecto inovador e moderno da reivindicação. No mesmo período,
a maioria dos países industrializados não havia regulamentado o
horário de trabalho, sendo a regulamentação uma das reivindicações
básicas do movimento operário desses países. Foi, de certa maneira,
surpreendente (inclusive para os próprios anarquistas) o empenho
do operariado paulista, especialmente se considerarmos a sua situa-
ção de classe em formação, a ausência de tradição de lutas reivindi-
catórias (descontinuidade do movimento operário) e considerando a
própria reivindicação, que não se origina de uma luta imediata pela
sobrevivência, como no caso das lutas por melhorias salariais.
Entretanto, sob certos aspectos, os objetivos explicitados pelos
grevistas diferiam das posições anarco-sindicalistas. Os grevistas en-
fatizavam a necessidade de descanso físico, como um direito inerente
ao corpo humano:
Nós (tecelões) também, como todos os outros, temos o direito de
ser mais humanamente tratados. Temos o direito de repousar como
todos os outros trabalhadores e não devemos trabalhar mais de
oito horas por dia.'
A justiça e a modéstia de nosso pedido não podem ser contesta-
das e os industriais, que nos impeliram a abandonar o trabalho (...)
não podem persistir em sua deliberação desumana e descabida.'
O nosso trabalho, com o atual horário, requer todas as nossas
energias físicas e intelectuais, prejudicando gravemente a nossa saú-
de, subjugando o nosso desenvolvimento moral e material.'
Portanto, o operariado justificava sua ação pela necessidade de
descanso (um direito), que traria melhorias físicas e morais. A maior
disponibilidade de tempo não significava necessariamente o incre-
109
mento da educação ou de sindicalismo. Por outro lado, os paredistas
davam grande ênfase ao problema da diminuição do desemprego:
Queremos a diminuição do horário para poupar uma pequena
parte de nossas forças e para que tantos de nossos companheiros
não fiquem desocupados."
Compreendemos que aceitando vossa senhoria (patrão) o nosso
modesto pedido será forçado a aumentar de algumas operárias a
sua oficina para efetuar a mesma quantidade de trabalho.M
Pela leitura do noticiário da greve na imprensa diária, depreende-se
que um dos objetivos fundamentais para a instauração de novo
horário era a diminuição do desemprego, que beneficiaria a totali-
dade da classe operária por meio do crescimento da oferta de em-
pregos e da maior estabilidade do trabalhador em sua colocação.
Os operários não fizeram referências ao aumento indireto dos salá-
rios, conforme salientara o Congresso Operário. Assim sendo, os
grevistas vinculavam a conquista das oito horas a objetivos imedia-
tos: descanso e emprego.
1.2. A posição dos industriais frente ao problema do estabelecimen-
to das oito horas diárias de trabalho pode ser avaliada através da
coluna "Opiniões" do Correio Paulistano, que transcreveu a opinião
do Centro Industrial do Brasil, e através dos manifestos dos pro-
prietários das fábricas de tecido.
A coluna "Opiniões" dos dias 10, 11 e 12 de maio publicou o
estado da questão da regulamentação do horário de trabalho nos
seguintes países: Alemanha, Austrália, Bélgica, Áustria, Canadá, Di-
namarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Inglaterra,
Hungria, Itália, Noruega, Países Baixos, Argentina, Rumênia, Rússia,
Suécia e Suíça. Segundo a coluna, destes países somente a França
e alguns Estados dos E.UAL. haviam regulamentado o horário de
trabalho de homens adultos, mesmo assim superior a oito horas
diárias. Dessa forma, na medida em que os países industrializados
não haviam estabelecido a jornada de oito horas, a pretensão dos
operários paulistas tomava-se, aos olhos dos industriais, absurda e
totalmente inviável, concluindo as notas:
Os operários paulistas são na sua maioria bem sensatos e sabem
que a pretensão levantada por alguns de seus colegas não é viável,
pois oito horas diárias com salários aumentados em 25% é o mesmo
que dizer aos industriais — fechem as oficinas que nõs não quere-
mos trabalhar. Admitindo mesmo um horário de oito horas, este
não poderia ser concedido de maneira uniforme para todas as in-
dústrias, em virtude de razões elementares de índole econômica,
que não é possível contrariar. A diminuição das horas de trabalho
ocasiona como conseqüência imediata: uma diminuição de produção
e um aumento de custo.12
Dessa maneira a análise do Centro Industrial do Brasil (Rio)
deformou a proposta operária, pois o horário das oito horas foi
entendido como horário de funcionamento das fábricas e oficinas,
110
e não como horário de trabalho dos empregados; daí a alegação da
sua inviabilidade em alguns ramos de produção e a queda da pro-
dução.
A 13 de maio de 1907, os proprietários de fábricas têxteis reuni-
ram-se com o propósito de tomar uma resolução conjunta frente
ao movimento paredista. Aliás os proprietários do setor de fiação e
tecelagem e do setor gráfico foram os únicos que tentaram organizar-
se em associações no calor da hora, isto é, o próprio desenrolar
da ação coletiva dos trabalhadores (em várias categorias já organi-
zadas em sindicatos) condicionou as tentativas de organização pa-
tronal, que nesse período não tiveram continuidade.
A primeira parte do "pacto" firmado pelos proprietários apresen-
tou uma análise das reivindicações em nome dos "fabricantes do
Estado de São Paulo". Primeiramente considerava "desmedidas e de-
sarrazoadas as exigências do operariado do Estado de São Paulo"
(jornada de oito horas e aumentos salariais da ordem de 25%).
Se nós, os fabricantes do Estado, tivéssemos que atender a tais
exigências, ficaríamos em uma situação tão desigual em relação aos
manufatureiros de outros Estados que o resultado seria contrapro-
ducente para os operários daqui. Ficaríamos na contingência de fe-
char os nossos estabelecimentos pela impossibilidade de lutar contra
a concorrência estranha favorecida pelo custo mais barato de 25%
a 30%. Acresce que se desse o caso de conseguirem os operários
de todo o país a adoção do dia de oito horas com agravação de
25 a 30% nos salários, teriam inconscientemente cavado a ruína da
indústria nacional e, portanto, a sua própria, pois colocá-la-iam na
impossibilidade de poder concorrer com os produtos estrangeiros.
Nesse dia onde encontrariam trabalho os operários de hoje? "
Os proprietários decidiram que não poderiam fazer as concessões
desejadas pelos operários dados os motivos seguintes:
1» necessidade de uniformidade de horário em todo o país e no
exterior;
2' necessidade de elaboração de "estudos profundos antes de se poder
chegar a um horário tão reduzido, ainda não conseguido na Europa";
3' os trabalhadores têxteis "não podem ser equiparados com outras
classes de trabalhos mais pesados";
4? a redução brusca dos horários, trazendo imediata e grande di-
minuição da capacidade produtora das indústrias, afeta economica-
mente vários e relevantes interesses sociais, e como tal só pode ser
resolvida, periodicamente, pela evolução natural.14
A 18 de maio os industriais de tecidos publicaram novo manifesto,
onde reafirmaram suas posições:
O interesse recíproco de patrões e operários é manter a regulari-
dade de trabalho em condições justas, garantidoras dos elementos
da vida para uns e outros; (...) sendo necessário evitar o mais
possível pretextos para atritos entre os dois elementos — patrões
e operários — é preciso nulificar os manejos subversivos dos que
111
propositadamente procedem de falsa fé, de modo a impressionar a
imaginação do proletariado com argumentos fantasiosos; (...) a de-
sigualdade em que porventura viessem a ficar alguns estabelecimen-
tos em relação a outros, se fossem forçados a concessões, seria
perturbadora da marcha dos negócios, e como tal futuramente pre-
judicial aos próprios operários; (...) finalmente, achando-se na me-
lhor disposição de, em condições normais, por forma legal e sem
atritos, estudar a situação operária em todos os ramos industriais,
atendendo as aspirações justas, melhorando-a na medida do possí-
vel e de modo geral e estável."
Assim elegeram os industriais uma comissão incumbida de soli-
citar ao governo medidas de garantia à liberdade de trabalho e à
propriedade, solicitar à imprensa cotidiana a redução das notícias
sobre a greve, estudar as tabelas salariais de todo o país "para ver
o que se pode, com eqüidade, fazer em benefício dos operários" "*,
e tratar da fundação de um Centro que congregasse todos os indus-
triais do Estado.
A posição assumida pelos proprietários fundamentava-se nos inte-
resses da produção e do ganho. O principal argumento, ao negar
as reformas, insistia na necessidade de evitar a concorrência de
outros Estados da Federação e países. Para eles a adoção da jor-
nada de oito horas seria fatal para a indústria paulista. A análise
era radical: a jornada de oito horas pressupunha a falência da in-
dústria, não se prevendo medidas de defesa de volume da produção
e de redução dos custos (os industriais não cogitaram, por exemplo,
no estabelecimento de vários turnos).
Os interesses da classe operária e dos proprietários industriais
eram considerados convergentes e harmônicos, pois, segundo os pro-
prietários, o principal beneficiário da industrialização era o operário:
a produção industrial garantia a sobrevivência tanto dos operários
quanto dos patrões, e qualquer perturbação, nas relações de trabalho
revertia em prejuízo ao trabalhador. Mesmo que a indústria sobre-
vivesse adotando a jornada de oito horas, o trabalhador não seria
beneficiado, tendo que arcar com a elevação dos preços, decorrente
de aumento de custo. Dentro da ótica dos proprietários, o operário
agia irracionalmente ao colocar-se em luta contra o patronato.
Por outro lado, os manifestos procuram demonstrar que o con-
flito não se travou entre a totalidade do operariado e patronato,
mas que o real conflito era restrito a uma pequena parcela de
subversivos e o patronato; a massa proletária agia ludibriada, de-
vendo, portanto, os industriais resguardá-la de influências nefastas.
Os conflitos, vistos como prejudiciais por ambas as partes, deveriam
ser evitados através da "nulificação dos manejos subversivos", e não
através de acordos, já que não existiam interesses divergentes.
Os industriais recusaram-se a agir sob a coação da paralisação
do trabalho, prometendo atender as justas aspirações em condições
normais e mediante a realização de estudos sobre a indústria. Assim,

112
os proprietários arrogaram-se o direito de julgar o que era justo,
bom ou danoso para o proletariado, ficando implícita a concepção
de que o operário era incapaz de discernimento, estando sujeito a
manobras subversivas e necessitando da proteção de seus empre-
gadores.
Ainda justificando a negação das reformas, apelou-se para a idéia
de evolução natural da economia. Partia-se do princípio de que
medidas reformistas não podiam ser tomadas por meio da ação
deliberada tanto dos operários como dos patrões, mas seriam resol-
vidas acima de tudo "pela evolução natural", isto é, o próprio de-
senvolvimento da economia efetivaria as mudanças ao tempo certo,
sem quaisquer conturbações.
Em resumo, para os industriais a jornada de oito horas soava
como um absurdo, sendo considerada completamente inviável den-
tro das condições da indústria paulista.
1.3. o governo do Estado de São Paulo tomou posição favorável
aos industriais, apesar da alegação de imparcialidade, na medida
em que utilizou o aparato policial para reprimir as manifestações
operárias. A repressão atingiu o ápice por ocasião do fechamento
do F.O.S.P. e prisão de seus dirigentes (14 de maio). Jorge Tibiriçá,
então presidente de São Paulo, justificou a ação da polícia nos
seguintes termos:
A princípio calma e dentro da lei, logo a parede começou a ma-
nifestar-se por ameaças e violências. Teve então a polícia de intervir,
fazendo dissolver estes ajuntamentos de operários, que se tornaram
ilícitos, dos quais partiam movimentos que, com ameaças e violên-
cias materiais, perturbavam a ordem pública. (...) A ordem pú-
blica restabeleceu-se imediatamente, sem haver necessidade de força
armada, que estava aquartelada durante o tempo da agitação."
Oficialmente, ou seja, aparentemente, o Estado agiu para preservar
a ordem pública e o interesse geral, mantendo-se imparcial quanto
a parede.
Os fundamentos da imparcialidade e as justificativas de sua con-
duta foram explicitadas pelo diário Correio Paulistano, órgão do
Partido Republicano, e, como tal, defensor das posições e das ações
governamentais:
Era necessário não perder de vista — por mais respeitável que
seja, em face de modestos princípios, o direito de greve — a pro-
teção e a garantia devidas aos que, divergindo desse movimento,
desejam e procuram manter sua liberdade de trabalho. Ora, é em
tal sentido (...) que a polícia está agindo. Inspirada (...) no
mdubitável pressuposto que essa pendência de acréscimo de salário
6 diminuição das horas de labor não passa de uma mera relação
contratual entre o capitalista e o operário (...) na qual não pode
e não deve interferir, a autoridade tem-se colocado numa linha de
estrita imparcialidade" (...) de forma a estabelecer e firmar a
posição neutra e imparcial da autoridade nos atritos e colisões das

113
duas grandes forças (capital e trabalho), enquanto não periclita a
ordem geral e não contravêm os direitos individuais. (...) sem se
imiscuir da controvérsia, (...) os agentes da administração, atentos
e solícitos, devem prestar mão forte à garantia coletiva e a obediên-
cia das leis (...) Aquele elemento de segurança da nossa sociedade
limitou-se (...) a declarar e tornar efetiva a sua indispensável inter-
venção, em bem da propriedade porventura ameaçada e do livre
trabalho dos não-adesos ao movimento."
Assim, como de praxe, a fundamentação da posição e da ação do
Estado foi buscada na ideologia liberal: a não-intervenção no plano
econômico, a defesa do interesse geral e das liberdades individuais.
No entanto, a ação repressora atingiu tão-somente os operários: a
polícia atendeu a todas as solicitações de proteção às fábricas, dis-
solveu reuniões pacificas (desrespeito ao direito de reunião), apre-
endeu objetos pertencentes à F.O.S.P., e ainda se recusou a fornecer
às autoridades judiciais o paradeiro de operários detidos.
Em artigo publicado em 20 de maio, o Correio Paulistano, porta-
voz do governo e dos cafeicultores, ressaltava que a parede trouxera
somente danos ao operariado e que fora um movimento injustifi-
cado:
Para o proletário a parede foi a privação irreparável de ganho, a
perda da pouca poupança (...), o déficit (...) e para o capitalista
uma menor e recuperável percentagem do interesse lucrativo (...)
Aqui a abundância e a insuficiência de braços valorizam geralmente
os salários em muito mais do que as necessidades comuns, de
maneira que é raro o trabalhador sem alguma economia (...) Por
outro lado, são inegáveis as condições do relativo, mas crescente
conforto, proporcionadas a essa classe e perfeitamente representadas
na instrução, higiene geral e mais elementos de pública assistência
que possuímos, de acordo ainda com a densidade de nossa popu-
lação. "
Esta era a posição de certa forma clássica assumida pelas classes
dominantes em face à chamada "questão operária": o Brasil cons-
tituía-se em paraíso para a classe trabalhadora, portanto seus pro-
testos não tinham fundamentos concretos, a não ser a ação de
agitadores estrangeiros.
As análises diversas sobre a questão da redução da jornada de
trabalho refletiram a posição assumida pelos diversos setores so-
ciais: por um lado, a manifestação do conflito entre as classes, a
manifestação dos antagonismos entre a burguesia industrial e o
proletariado, cada qual com interesses específicos e divergentes;
por outro lado, o Estado mantendo-se aparentemente neutro, mas
defendendo os interesses do capital; a classe dominante — os ca-
feicultores — assumindo abertamente a defesa de seus sócios me-
nores — os industriais.

114
2. A agitação em prol da obtenção
da jornada de oito horas
2.1. A questão da necessidade de obter a jornada de oito horas foi
uma das resoluções do I Congresso Operário Brasileiro. Durante o
ano de 1906 os anarco-sindicalistas empenharam-se em campanhas
de divulgação da reivindicação nos meios operários de São Paulo.
Em maio a F.O.S.P. organizou o I Congresso Operário Estadual com
o objetivo primeiro de defender e concretizar as resoluções adota-
das pelo Congresso Nacional.
O ano de 1906, em São Paulo, foi marcado pelo ascenso do movi-
mento operário, sobretudo através da eclosão de inúmeras greves
por motivos econômicos (aumento salarial) e morais (melhoria no
tratamento dispensado aos operários pelos patrões e prepostos). A
greve de maior repercussão foi a da Companhia Paulista de Estrada
de Ferro, que eclodiu em Jundiaí por motivos salariais e de arbi-
trariedades da chefia, estendendo-se em seguida a outras localidades.
Esta greve sofreu forte repressão policial (inclusive ocasionando a
morte de um grevista) e foi acompanhada de greve de solidariedade
generalizada em São Paulo e cidades do interior.
O movimento sindical recebeu novo impulso através da reativação
de associações já existentes e da constituição de novos sindicatos
de resistência (organizados conforme os padrões anarco-sindicalistas
— o chamado sindicato de minoria militante), em cujas "bases de
acordo" (terminologia anarquista para designar os estatutos e fins)
constava a luta pela conquista da jornada de oito horas. Assim, por
exemplo, em junho foi "constituída a Liga dos Operários Ourives de
São Paulo, ficando deliberado na primeira assembléia enviar um
memorial aos patrões reclamando as oito horas de serviço, o que
é conseguido com exceção de apenas duas casas"." Esta é a pri-
meira notícia de concessão de novo horário que encontramos, em-
bora provavelmente tenha sido abolida pelos patrões em seguida,
pois os ourives participaram da greve de 1907.
A 1<> de janeiro de 1907 concedeu-se o horário de oito horas de
trabalho aos operários da Companhia Mojiana, cumprindo-se o acor-
do firmado entre os operários e a direção por ocasião da greve de
solidariedade aos trabalhadores da Companhia Paulista. Na cidade de
São Paulo a primeira greve reivindicando oito horas diuturnas de
serviço eclodiu a 25 de março de 1907 entre os operários do setor
de construção de veículos; estendeu-se até os últimos dias de abril,
obtendo os trabalhadores completa vitória.
2.2. As comemorações do Dia do Trabalho foram coordenadas pela
P.O.S.P., incluindo conferências sobre a importância da conquista
da jornada de oito horas. A Federação distribuiu então 10 mil bole-
tins que, entre outros, conclamavam o operariado paulista a iniciar
o movimento pelas oito horas.
115
No dia 4 eclodiu a greve entre os operários metalúrgicos da Cia.
Lidgerwood:
Às sete horas da manhã o gerente mandou suspender os trabalhos
da seção de metalurgia, alegando conhecer de antemão o desígnio
dos operários. À objeção dos trabalhadores declarou o gerente que,
se eles em documento se comprometessem a jamais declarar greve,
continuaria o trabalho. A isso responderam os operários (...) que
era impossível satisfazer a exigência, pois que eles pretendem obter
o dia de oito horas, com o fim de dar trabalho a grande número
de companheiros, que lutam com a falta de serviço. Não havendo
acordo foi mantida a suspensão do trabalho, às lOh os operários
das demais seções (...), sabendo da suspensão da seção de meta-
lurgia, declararam-se solidários e abandonaram o trabalho."
A greve dos metalúrgicos foi um movimento espontâneo, no sen-
tido de que não obedeceu a orientações apriorísticas de sindicato
ou de qualquer tipo de liderança; o movimento foi decidido pelos
próprios operários. Por outro lado, a greve não eclodiu simultanea-
mente em toda a categoria profissional, mas eclodiu gradativamente
nas diversas empresas. Estas foram características quase que gerais
do movimento: o espontaneísmo e a greve por empresa.
A partir do dia 4 diferentes categorias declararam-se em greve,
seguindo geralmente uma mesma conduta, com pequenas variações.
Os trabalhadores de uma empresa, tendo resolvido conquistar as
oito horas, elegiam uma comissão de operários para manter enten-
dimentos orais com o patrão ou a chefia. Os operários concediam
um prazo para a resposta (geralmente três dias), findo o qual,
abandonariam o trabalho. Por vezes a primeira reação dos patrões
foi a dispensa imediata de todos os membros da comissão. Declarada
a parede nas categorias sem sindicato, a comissão reunia-se freqüen-
temente para discutir o desenrolar dos acontecimentos, comunicá-los
aos colegas, tomar medidas para estimular a agitação em estabele-
cimentos congêneres e contactar com o patrão. Na medida em que
a greve se estendia a várias casas de um mesmo ramo, alterava-se
a composição da comissão, participando então operários dos vários
estabelecimentos. A partir daí, a comissão agia no sentido de esti-
mular a fundação de um sindicato do ofício.
Nas categorias organizadas sindicalmente, o mais comum foi a
intervenção da associação após a eclosão da perede. O sindicato con-
vocava uma assembléia, quando era eleita a comissão executiva, que
tratava de incentivar o movimento entre os operários da categoria
não-aderentes, informar a marcha das negociações, organizar a soli-
dariedade, denunciar a crumiragem (fura-greves) e enviar ultimatos
aos patrões.
Em algumas categorias organizadas em sindicatos, mas que não
haviam iniciado o movimento espontaneamente, os dirigentes sindi-
cais convocavam assembléias com o objetivo de tomar posição frente
ao movimento. Em caso de consenso entre os participantes, elegia-se

116
a comissão executiva, que redigia e enviava o ultimato aos patrões.
Por vezes não se obteve consenso, ficando, nesse caso, a decisão de
iniciar ou não a agitação a cargo dos operários de cada estabele-
cimento.
A maioria das reuniões sindicais realizou-se na sede da F.O.SP.
(Largo da Sé) e contava com a presença de um membro da comissão
executiva da Federação. Após o fechamento do prédio (14 de maio)
e a proibição de ajuntamentos operários, as comissões operárias
encontravam-se secretamente em casas particulares ou nos arredo-
res da cidade e suas deliberações eram divulgadas pela imprensa
cotidiana.
Nos três casos a greve era declarada por empresa e não por cate-
goria. Nas oficinas em que os patrões concediam imediatamente o
novo horário o trabalho prosseguia normalmente, enquanto outros
estabelecimentos congêneres estavam paralisados. Na medida em que
após alguns dias de greve os patrões firmavam acordos com seus
operários, o trabalho era retomado, não importando a situação do
restante da categoria. Com isso o poder de pressão dos operários
era enfraquecido, pois o conflito não se estabeleceu entre a parcela
significativa do operariado ou categorias profissionais e a totalidade
do patronato ou patrões de um mesmo setor. O conflito foi parti-
cularizado no âmbito das empresas (instância imediata das relações
de produção).
Assim, apesar da retórica anarquista sobre a união e solidariedade
da classe e sobre a crescente consciência de classe entre os operá-
rios paulistas, a união e a solidariedade não se manifestaram plena-
mente, em termos de mobilização geral da classe em prol das rei-
vindicações, visando uma significativa paralisação da produção, como
meio de acuar o patronato. A união e a solidariedade manifestaram-
se ao nível material e não ao nível propriamente político, pois a
norma era que aos operários vitoriosos, que retomavam a seus pos-
tos, auxiliassem os companheiros em greve mediante contribuições
monetárias e de gêneros e a indicação das empresas com novo ho-
rário necessitadas de trabalhadores. A consciência de classe dos gre-
vistas manifestou-se mais concretamente pela percepção da divergên-
cia entre operário e patrão dentro da própria unidade de produção
do que pela percepção dos antagonismos entre as duas classes sociais
em sua totalidade.
Embora a participação dos anarquistas tenha sido intensa, sobre-
tudo coordenando a ação dos grevistas, o comportamento da massa
grevista não permite supor a sua plena identificação com a ideologia
libertária. Nos manifestos operários (exceto os da F.O.S.P.) não apa-
reciam referências à necessidade de sindicalização, educação operá-
ria, nem tampouco à luta entre capital e trabalho. A greve não foi
analisada como um episódio da luta de classes: os operários inter-
pretaram a greve como uma luta isolada para a conquista de um
117
direito (o descanso) dentro das condições sociais vigentes, não ante-
vendo a luta progressiva para a total reestruturação da sociedade.
Portanto, não podemos afirmar que a massa dos grevistas adotava
a ideologia libertária, recusando ira totum a organização social ca-
pitalista, mas sim que rejeitava a continuidade do trabalho em cer-
tas condições específicas, cuja alteração não implicava, a rigor, em
abolição, mesmo que parcial, dos privilégios capitalistas e nem tam-
pouco solapava os fundamentos do capitalismo. Mas nem por isso
podemos afirmar que a penetração do anarquismo foi insignificante
ou que a massa operária rejeitava totalmente essa ideologia. Basta
lembrar que a própria reivindicação partiu da liderança anarquista
e que os grevistas não contestaram a atividade de coordenação le-
vada a cabo pelos libertários.

3. A greve nas principais categorias


Metalúrgicos
A greve no setor iniciou-se na Cia. Lidgerwood (capital inglês, 206
operários) a 4 de maio, atingindo rapidamente outras oficinas. O
setor metalúrgico, conforme o censo industrial", compunha-se de 18
estabelecimentos, com 1510 operários. Entretanto, pela leitura dos
jornais computámos 25 estabelecimentos, dois dos quais não foram
localizados, 12 constavam do censo e 11 não constavam. (Consideran-
do que o censo não relacionou empresas com menos de 5 operários,
podemos supor que a greve atingiu principalmente pequenas empre-
sas, que foram as primeiras a conceder o novo horário. Podemos
supor também que os operários de alguns estabelecimentos médios
e grandes nem sequer intentaram qualquer movimento. As maiores
empresas não aceitaram as reivindicações, tentaram bloquear o mo-
vimento pela contratação de novos operários, mas, dado o grau de
especialização de mão-de-obra, não conseguiram restabelecer a nor-
malidade da produção.
A greve perdurou até os primeiros dias de junho, quando os ope-
rários das duas maiores empresas retomaram ao trabalho sem qual-
quer modificação nas condições vigentes. A ação dos operários foi
coordenada pelo Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos (junho
de 1906), que todavia não cogitou a decretação de uma parede de
solidariedade aos operários que se mantiveram em greve até junho.
Por outro lado, a classe patronal não desenvolveu qualquer ação
conjunta.
Pedreiros e Serventes
O movimento paredista iniciou-se a 6 de maio e atingiu a totalidade
da categoria. A 8 de maio declararam-se em greve os pintores de
parede. O setor da construção civil em São Paulo (inclusive o setor

118
de pintura) provavelmente não apresentava significativa concentra-
ção de capital, entretanto deveria empregar um número razoável de
operários. Não era organizado em empresas, sendo constituído de
um sem-número de empreiteiros.
Os empreiteiros eram engenheiros civis e arquitetos ou "constru-
tores" (sem formação profissional universitária), não eram proprie-
tários de firmas, mas contratantes de serviços. O empreiteiro ao
firmar o contrato com o proprietário da construção estipulava o
valor da obra e o prazo de entrega, recebendo inicialmente somente
parte do pagamento. Os empreiteiros contratavam os operários ne-
cessários, adotando o sistema de pagamento por tarefa (serviços es-
pecializados) ou pagamento mensal; os trabalhadores eram possuido-
res de suas ferramentas. Portanto, a construção civil apresentava
características pré-capitalistas. Os ofícios de pedreiro e pintor exi-
giam um relativo conhecimento técnico, não podendo os operários
ser substituídos por elementos não-profissionais. Além do mais, à
medida que o empreiteiro realizava seus cálculos a priori, e que
parte do pagamento ficava retida até o momento de conclusão dos
serviços contratados, qualquer anormalidade no decorrer dos traba-
lhos revertia em prejuízos, dificilmente assimiláveis, dada a escassez
de capital do contratante. Assim, o setor era bastante sensível às
agitações operárias.
O movimento reivindicatório dos trabalhadores da construção civil
iniciou-se na primeira quinzena de maio: a 8 de maio foram decre-
tadas as primeiras paralisações. A ação operária foi coordenada pelo
Sindicato dos Pedreiros e Anexos 1901 e durante o movimento foi
constituído o Sindicato dos Pintores. A partir de 10 de maio os
empreiteiros instauraram gradativamente as medidas reivindicadas
(oito horas e pagamento semanal), tanto que em muitas obras não
ocorreu sequer a paralisação dos trabalhos. A parede declinou em
meados do mês, mantendo-se paralisados somente os operários dos
grandes empreiteiros, como, por exemplo, os operários que presta-
vam serviço ao Dr. Ramos de Azevedo, contratante das obras do
Teatro Municipal de São Paulo. Finalmente, foram celebrados acordos
estabelecendo que a jornada de oito horas seria adotada após o
término das obras em andamento.
A vitória dos pedreiros foi favorecida, por um lado, pela debilidade
econômica dos empreiteiros; por outro, pelo nível de especialização
da mão-de-obra, que dificultou a substituição dos operários grevistas.
Os empreiteiros não tentaram qualquer ação coletiva, e podemos
supor que existia concorrência pela mão-de-obra, já que os sindica-
tos divulgaram nomes de empreiteiros que haviam concedido os
benefícios pleiteados e que necessitavam de empregados.

119
Trabalhadores em Madeira
(carpinteiros, marceneiros, torneadores, lustradores e douradores)
Os trabalhadores em madeira iniciaram a agitação a 7 de maio. O
movimento não foi simultâneo em toda a categoria, eclodindo por
empresas. O já referido censo industrial registrou 24 estabelecimen-
tos no setor, com um total de 521 operários. Contudo, através dos
jornais computámos 32 estabelecimentos, dos quais 7 não foram
localizados, 12 não constam do censo e 3 constam. Portanto, a
maioria dos grevistas eram empregados de pequenas empresas, que
não poderiam resistir a uma paralisação mais prolongada. A partir
de 10 de maio os patrões concedem o novo horário e em meados
do mês não encontramos mais notícias sobre a greve no setor.
A ação operária foi coordenada pela Liga dos Trabalhadores em
Madeira (1901). Os patrões não intentaram qualquer ação conjunta.

Sapateiros Mecânicos
Em meados de maio iniciou-se a agitação entre os sapateiros mecâ-
nicos. Os sapateiros manuais, cujo pagamento era feito por tarefa,
não aderiram à greve. O censo havia registrado 9 estabelecimentos
do setor, entretanto, pela leitura dos jornais computámos 7 empre-
sas, das quais 3 não recenseadas. Aliás, a indústria de calçados tipi-
ficava a fase de transição da industrialização brasileira: era formada
predominantemente de grandes fábricas (empregando até 500 operá-
rios), que, todavia, utilizavam operários propriamente ditos — os
sapateiros mecânicos — totalmente separados dos instrumentos de
produção, e trabalhadores-artesãos, possuidores de suas ferramentas
de trabalho, pagos por obra, e que por vezes trabalhavam a domi-
cílio.
A 11 de maio, uma das grandes fábricas concedeu, independente-
mente de uma pressão direta dos trabalhadores, o horário de 81/2
horas de trabalho. A 12 de maio a F.O.S.P. patrocinou uma reunião
da categoria, ficando então constituído o Sindicato dos Sapateiros
Mecânicos, e decidiu-se pleitear a jornada de oito horas, embora
nem todas as fábricas aderissem ao movimento. A partir de 13 de
maio as pequenas fábricas concederam o novo horário. Os operários
de grandes fábricas mantiveram a parede até fins de maio, quando
celebraram diferentes acordos com as direções. Em alguns casos
obtiveram a jornada de oito horas condicionalmente, isto é, se num
dado período o novo horário não fosse adotado em todo o setor,
se voltaria ao antigo horário. Em outros casos os operários aceita-
ram a jornada de trabalho de até nove horas.
Os proprietários não tentaram qualquer ação conjunta. Entre as
causas da vitória parcial dos sapateiros deve-se levar em conta a
especialização da mão-de-obra, não facilmente substituível, e a pró-
pria estruturação do setor, que era capaz de fazer frente às pressões
operárias.
120
Tecelões
O ramo de fiação e tecelagem era o principal setor da indústria
paulista, com 13 estabelecimentos empregando 4.660 operários, em
sua maioria mulheres e crianças (dados do censo). O horário de
trabalho estendia-se por até 13 horas diárias. As maiores fábricas
de panos da capital participaram do movimento em prol das oito
horas de trabalho; a greve eclodiu por estabelecimentos a partir
do dia 13. No dia 14 os proprietários realizaram sua primeira reu-
nião, decidindo não fazer qualquer concessão; a 18 de maio realiza-
ram a segunda reunião, mantendo as decisões anteriores e decidindo
formar uma associação patronal.
Os operários mantiveram-se em greve, inclusive tentando impedir
o trabalho de fura-greves, mas defrontaram-se com a pronta inter-
venção policial, solicitada pelos empregadores. O movimento era co-
ordenado pelo Sindicato dos Operários em Fábricas de Tecidos (fe-
vereiro de 1907). A 16 de maio o sindicato resolveu suspender as
reuniões públicas da categoria, dada a violenta dissolução de um
comicio no Alto da Mooca, reunindo-se a partir de então somente a
comissão executiva.
A 21 de maio a comissão de industriais resolveu aceitar a jornada
de trabalho de 11 horas. Os operários, porém, não aceitaram tal
horário. O impasse persistia. A partir de 29 de maio começou o gra-
dativo retomo ao trabalho, tendo as partes concordado com o esta-
belecimento da jornada de BVi h, sem aumentos salariais. A capitu-
lação dos operários deveu-se, em grande parte, ao poderio econômico
do setor, que teria condições para assimilar facilmente os prejuízos
decorrentes da paralisação; à capacidade de organização dos patrões;
às reiteradas ameaças de substituir os grevistas por operários recru-
tados no interior do Estado, já que a mão-de-obra não-especializada
era facilmente substituível.
Gráficos
A 13 de maio a União dos Trabalhadores Gráficos reuniu-se em
assembléia, ficando assentada a agitação em prol das oito horas.
Os jornais registraram o comparecimento de 1.000 gráficos, por onde
se pode medir a importância do setor em termos de operários em-
pregados. O movimento atingiu um total de 43 estabelecimentos, em-
bora não simultaneamente.
Diante disso os proprietários de 18 estabelecimentos reuniram-se,
decidindo por unanimidade de votos não atender as reivindicações
(inclusive aumentos salariais) e fechar seus estabelecimentos no dia
17, caso os grevistas não reassumissem seus postos. Em nova reunião
do dia 16 decidiram fechar as oficinas por tempo indeterminado, não
aceitar, pelo prazo de um mês, os operários despedidos em conse-
qüência de parede e eleger uma comissão de 5 membros para tomar
as resoluções necessárias.
121
A U.T.G. lançou um manifesto comunicando a continuidade do
movimento, apesar da ameaça dos patrões. A 18 de maio 6 proprie-
tários-signatários do acordo patronal reabriram suas gráficas, pois
receberam da parte de seus operários documento afirmando que
não faziam parte da associação da classe e que continuariam os
trabalhos nas condições até então vigentes. A maioria dos gráficos,
no entanto, continuava a paralisação. A partir do dia 21 os pro-
prietários começaram a conceder o novo horário e aumentos salariais
de até 100%. A 25 estava encerrado o movimento.
A vitória dos gráficos foi favorecida pela especialização da mão-de-
obra empregada e pela debilidade da ação conjunta dos proprietá-
rios, pois o patronato não se aglutinou em sua totalidade.
Outras Categorias
O movimento grevista estendeu-se também às seguintes categorias
de trabalhadores: canteiros, lavadeiras, fabricantes de pentes e bar-
batanas, passamaneiros, marmoristas, fabricantes de tubos de barro,
jardineiros, vidreiros, trabalhadores da limpeza pública, curtidores,
funileiros e encanadores, fabricantes de massas, costureiras, cigarrei-
ros, oleiros, ourives e relojoeiros. Destes somente os marmoristas
obtiveram vitória completa. Em meio à luta fundou-se o Sindicato
dos Canteiros bem como o Sindicato das Costureiras.
Ocorreram ainda tentativas de mobilização nas seguintes catego-
rias: tiradores de areia, fabricantes de perfumes e sabonetes, alfaia-
tes, barbeiros e cabeleireiros, acendedores de lampiões, cesteiros e
vassoureiros, serventes de cafés, confeitarias, restaurantes e hotéis.
Acrescente-se que o movimento grevista também repercutiu em
Santos, Campinas, São Roque, Salto do Itu, Sorocaba e Ribeirão
Preto, onde diversas categorias declararam greve, principalmente pe-
dreiros e tecelões.
Conclusão
Quais os fatores que poderiam explicar os acontecimentos de maio?
Quais fatores atuaram como determinantes?
Para os anarquistas a explicação dos fatos está contida em um
fator básico: a expansão da consciência de classe entre os operários
paulistas, o que os levou a empreender as lutas reivindicatórias.
Para os socialistas os acontecimentos foram determinados por dois
fatores básicos: a juventude (existência recente) do proletariado, daí
o seu entusiasmo e coragem diante do patronato; heterogeneidade e
incapacidade de união da burguesia industrial.
Avaliar a extensão da consciência de classe é extremamente pro-
blemático, pois neste trabalho não levamos em consideração a his-
tória anterior e posterior da classe operária. A consciência de classe
durante a greve manifestou-se explicitamente na percepção de inte-
resses divergentes entre operário e patrão ao nível da própria fá-
brica; mas não podemos avaliar se essa percepção atingia setores

122
significativos do operariado. O que ocorria entre as categorias que
não aderiram à greve? E nas que tentaram infrutiferamente iniciar
a agitação?
Quanto à intervenção sindical (o sindicato é encarado pelos anar-
quistas como manifestação concreta da expansão da consciência de
classe), podemos afirmar que os sindicatos foram elementos impor-
tantes na mobilização das categorias profissionais, já que a maioria
das categorias que tentaram em vão aderir ao movimento não eram
sindicalizadas. Entretanto, a intervenção sindical não foi fator deter-
minante da vitória ou derrota dos operários, pois houve categorias
sindicalizadas que não obtiveram os direitos pleiteados, como por
exemplo os tecelões.
Segundo os elementos contidos nas fontes primárias, a incapaci-
dade associativa dos industriais não pode ser considerada um fator
preponderante tanto para a eclosão do movimento quanto para a
vitória ou não dos operários. O resultado das duas únicas categorias
cujos patrões se associaram foram radicalmente opostos — os tece-
lões não obtiveram o que pleiteavam, já os gráficos concretizaram
suas reivindicações. Para os industriais a ação conjunta não era
fundamental porque contavam com o apoio da polícia para intimidar
e reprimir os grevistas.
Através da pesquisa verificamos que entre os fatores condicionan-
tes da vitória e da derrota do operariado devem ser destacadas: a
estruturação dos setores industriais e o nivel de especialização da
mão-de-obra. Por outro lado, a maioria dos grevistas vitoriosos eram
empregados de setores industriais organizados em pequenas e mé-
dias empresas ou empregados de pequenas empresas dos diversos
setores, como por exemplo os metalúrgicos. Em suma, a debilidade
de capital restringia a capacidade de resistência do patronato.
Por outro lado, os operários especializados foram os que mais
se empenharam na luta e quando não obtiveram de início as con-
cessões, mantiveram-se em prolongada parede. As categorias que,
apesar da agitação, não obtiveram os benefícios pleiteados, foram
sobretudo as não-especializadas, como os tecelões. Já as categorias
que tentaram em vão iniciar a agitação eram constituídas predomi-
nantemente de trabalhadores não-especializados, por exemplo, os tira-
dores de areia e oleiros.
Entretanto, os fatores acima relacionados não explicam a totah-
dade do fenômeno; os fatores ideológicos (penetração do anarquismo
e consciência de classe) provavelmente não estiveram ausentes na
determinação dos acontecimentos. Por que a greve eclodiu em 1907?
Por que assumiu dadas características? Qual sua significação para a
história do movimento operário? Reencontramos, assim, as limita-
ções deste estudo de caso, da dimensão sincrônica, basicamente a
restrição da análise aos elementos contidos nas próprias fontes con-
sultadas. E reencontramos também a necessidade de passar à análise
crítica dos dados aqui ordenados, o que exige a sua inserção no
contexto da história social do período.
123
Notas
1. "Resoluções do Primeiro Congresso Operário do Brasil", in Rodrigues, Edgar,
Socialismo e Sindicalismo no Brasil, Rio de Janeiro, Ed. Laemmert, 1969, p. 121-130.
2. Idem, p. 127.
3. "Boletim da Federação Operária de São Paulo", de 1' de Maio de 1907, in
Comércio de São Paulo, l' de maio de 1907.
4. "Manifesto da Federação Operária de São Paulo", de 24 de maio de 1907, in
Rodrigues, Edgar, op. cit., p. 198-200.
5. A Terra Livre, n' 36, 8 de junho de 1907, Rio de Janeiro.
6. Avantü, 7 de maio de 1907.
7. "Boletim da Comissão Executiva do Sindicato dos Tecelões", in Comércio de
São Paulo, 18 de maio de 1907.
8. "Boletim da União dos Trabalhadores Gráficos", in Correio Paulistano, 17 de
maio de 1907.
9. "Ultimato da Comissão das Costureiras aos Patrões", in Correio Paulistano,
22 de maio de 1907.
10. "Boletim do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos", In Comércio de São
Paulo, 31 de maio de 1907.
11. "Ultimato da Comissão das Costureiras aos Patrões", já cit.
12. Correio Paulistano, 12 de maio de 1907.
13. "Boletim dos Proprietários e Gerentes das Fábricas de Tecidos do Estado de
São Paulo", in Correio Paulistano, 14 de maio de 1907.
14. Idem.
15. "Resolução dos Proprietários e Gerentes das Fábricas de Tecidos do Estado
de São Paulo", in Comércio de São Paulo, 17 de maio de 1907.
16. Idem.
17. "Mensagens apresentadas ao Congresso Legislativo de S. Paulo pelos presidentes
do Estado e vice-presidentes em exercício, desde a Proclamação da República
até o ano de 1907", in Jorge Tibiriçá, 14 de julho de 1907, p. 342.
18. Correio Paulistano, 12 de maio de 1907.
19. Idem, 18 de maio de 1907.
20. Idem, 20 de maio de 1907.
21. Dias, Everardo, "História das Lutas Sociais no Brasil", São Paulo, Edaglit,
1962, p. 260.
22. Correio Paulistano, 7 de maio de 1907.
23. "Censo Industrial", in O Brasil, suas Riquezas Naturais, suas Indústrias,
Centro Industrial do Brasil, vol. III, 1909, p. 117-130.

124
Dos Caminhos para o Socialismo: A Controvérsia entre
Marx, Engeis e os «Populistas» Russos
Karl Marx & Fredrich Engeis

1. Introdução (Rubem César Fernandes*)

Os escritos de Marx e Engeis sobre a Rússia foram redescobertos


na década de 60 e despertaram um interesse incomum, sendo mesmo
promovidos como parte de um dos capítulos mais significativos e
paradoxalmente menos conhecidos de sua obra.
Publicá-los é descobrir um Marx desconhecido que denuncia sem
equívocos a falsificação dogmática que atravessou o marxismo du-
rante toda a época. Esta falsificação consistia essencialmente em
reduzir a história da humanidade à sucessão necessária de cinco
estágios caracterizados por "cinco tipos fundamentais de relações de
produção", o comunismo primitivo, os modos de produção escrava-
gista, feudal, capitalista e socialista.'
O deslize de anacronismo (Marx denunciando algo acontecido dé-
cadas depois de sua morte) evoca o ânimo polêmico que movia o
antropólogo francês Maurice Godelier, na redação destas linhas. A
edição de originais que haviam sido esquecidos ou ignorados, parte
do "reler Marx" de que tanto se falou, ocorreu no contexto dos
intensos debates deflagrados pela crise do que se convencionou cha-
mar o "dogmatismo estalinista".
Na Europa Ocidental, os escritos de Marx e Engeis sobre a Rússia
apareceram em várias edições e comentários, via de regra como um
apêndice à obra maior Formações Econômicas Pré-Capitalistas.' Esta
posição editorial era iniciativa dos interesses teóricos dos editores.
Centrados nos conceitos de "formação econômica" e "modo de pro-
dução", noções-chaves para a delimitação do objeto de análise e de
arena de luta dos marxistas, estavam empenhados numa controvér-
sia acerca dos princípios ordenadores do discurso marxista. Os textos
sobre a Rússia foram assim assimilados como fontes preciosas para
uma revisão dos limites do marxismo e de seu objeto. Mais parti-
cularmente, eles foram valorizados tendo em vista a caracterização
das sociedades pré-capitalistas.
* Professor do Conjunto de Antropologia da UNICAMP.
125
Essa localização conceituai dos textos de Marx e Engels sobre a
Rússia, numa problemática formulada no tempo pretérito, foi cor-
roborada pela formação acadêmica dos principais comentaristas: his-
toriadores, antropólogos, orientalistas, africanistas, americanistas das
épocas pré-colombianas e colonial, em uma palavra, especialistas de
objetos longínquos.3
Salvo engano, foi essa a primeira vez que especialistas da acade-
mia ocuparam, enquanto tais, posição de destaque na caracterização
do discurso marxista. Produziram volumes eruditos e aplicaram aos
clássicos certos princípios básicos da crítica histórica, tais como a
sinalização de variações conceituais de um escrito a outro, levanta-
mento das fontes utilizadas, avaliação das informações a que tinham
acesso, etc. Com esse trabalho fizeram a mediação entre as duas
redes institucionais a que pertenciam — a científica e a dos partidos
marxistas. Junto à primeira, buscaram "atualizar" as idéias de Marx
e Engels em função das informações e noções atualmente reconhe-
cidas pela coletividade científica, fazendo assim valer as preocupa-
ções marxistas em seu campo específico de pesquisa. Junto aos se-
gundos, levaram o prestígio da ciência para consolidar posições nas
divergências internas dos partidos marxistas, reabrindo, entre outras,
a velha questão do vínculo entre intelectuais e dirigentes políticos
no interior desses partidos.
Entre os muitos frutos desse trabalho, há um que não custa men-
cionar: os debates estimularam pesquisas monográficas sobre áreas
exóticas, resultando rapidamente numa acumulação bibliográfica que,
a menos que não se faça outra coisa, já não pode ser dominada por
uma só pessoa. * Não havia boas razões para esse entusiasmo. Aplicar
o marxismo às sociedades "pré-capitalistas" implicava retomar uma
questão central para a visão do mundo marxista, qual seja a parte
desempenhada pelo capitalismo na história humana. Aos especialistas
coube enfrentar, no plano do empírico, uma questão que, na crueza
da amplitude (capitalismo/humanidade) havia se tomado difícil no
contexto da crise ideológica.
Os problemas abordados podem ser agrupados em dois vastos
conjuntos:
a) da aplicabilidade de categorias derivadas da análise do capitalis-
mo para o estudo de sociedades pré-capitalistas, pondo pois em ques-
tão a universalidade daquelas categorias;
b) da sucessão de vários tipos de sociedade ao longo do tempo, ou
seja, da causalidade no plano da História com "H" maiúsculo.
Um exemplo do primeiro conjunto de problemas é a localização
das relações de parentesco na estrutura social das sociedades tribais
— está na "infra-estrutura", na "superestrutura", ou nas duas? Cada
uma dessas alternativas foi defendida por autores declaradamente
marxistas, todos eles devendo considerar a quarta possibilidade, i.é,
que o parentesco não deva ser localizado em nenhuma das duas
126
posições mencionadas, já que talvez a dicotomia "infra/super" não
se ajuste a esse tipo de sociedade."
No plano da sucessão histórica, ocorreram divergências acerca de
cada passagem de um modo de produção a outro, projetando-se
um ponto de interrogação sobre cada elo constitutivo de uma His-
tória cujo sentido repousaria na necessidade de desenvolvimento do
capitalismo e de sua superação.'
Constituiu-se, assim, um campo de tensões no interior do discurso
marxista: tendências divergentes, que ameaçavam subtrair as dimen-
sões de necessidade e universalidade da parte representada pelo
capitalismo na história humana, foram contrapostas a tendências
convergentes, que buscavam uma reintegração dos conceitos capazes
de fundamentar a convicção de que nas palavras de um dos editores:
A linha de desenvolvimento ocidental é típica porque somente ela
(...) deu à humanidade inteira as condições para a solução de um
problema universal presente desde o aparecimento das classes e
que consiste em assegurar o desenvolvimento máximo das forças
produtivas sem a exploração do homem pelo homem.'
Embora não deixe de ser esclarecedora, a leitura dos escritos de
Marx e Engels sobre a Rússia como se fossem um apêndice às
Formações Econômicas Pré-Capitalistas obscurece uma série de as-
pectos associados às circunstâncias em que foram produzidos. Salvo
fragmentos esparsos, eles consistiram todos de respostas em discus-
sões públicas ou privadas com autores russos. A rigor, não se pode
captar uma parte considerável do que ali disseram sem que se tome
em consideração o que havia sido dito pelo interlocutor a quem
respondiam. Nessa medida, são parte de um conjunto mais amplo
de textos. O gosto pela exegese histórica sugere, portanto, que sejam
editados juntamente com os escritos dos seus interlocutores. É esta
a caracteristica distintiva de uma antologia a ser publicada em breve
pela Editora HUCITEC. Nessa versão, os textos aparecem agrupados
em pares polêmicos, tais como P. N. TkatchovxF. Engels (1875);
N. K. Mikhailovsky x K. Marx (1877); Vera Zasulitch x K. Marx
(1881); Vera Zasulitch x F. Engels (1885); N. P. Danielson x P. Engels
(1891-1893); J. Plekhanov x P. Engels (1894-1895).8
Lidos assim, os escritos de Marx e Engels sobre a Rússia apresen-
tam-se como textos-respostas em um sentido mais profundo: aten-
diam a perguntas alheias. A difusão das idéias de Marx e Engels
na Rússia foi promovida pelos narodniki (de "narod" que significa,
a um tempo, "povo" e "nação" na língua russa), também chamados,
numa tradução que pode ser enganadora, os "populistas russos".'
Um de seus autores, N. P. Danielson, foi o responsável pela primeira
tradução de O Capital a qualquer língua, antes mesmo da inglesa.
Mas a difusão implica uma reordenação das idéias, pois elas passam
a ser assimiladas em função de interesses teóricos e práticos dife-
rentes daqueles que caracterizaram o seu lugar de origem. Como
os próprios narodniki observaram, O Capital, que na Europa Oci-
127
dental representava uma análise de um ciclo histórico já concluído
(ou, segundo se cria, prestes a concluir-se), apresentava, para a
Rússia, o quadro de um futuro ainda a percorrer." Esta inversão
dos sinais temporais que vinculavam a realidade descrita no livro
aos seus leitores (passado-presente, na Europa Ocidental; presente-
futuro, na Rússia) acarretava uma série de transformações significa-
tivas.
Em seu lugar de origem O Capital foi lido como uma síntese teó-
rica das dimensões científica, política e moral de um pensamento
socialista. Ele explicava as razões de fato e de valor para uma
postura revolucionária. Na Rússia, ele foi inicialmente assimilado
não como uma síntese integradora, mas como um gerador de pro-
blemas para a consciência socialista. Corroborava vigorosamente a
denúncia moral do regime capitalista, mas demonstrava que a pas-
sagem pela longa e penosa estrada do capitalismo era uma condição
necessária para o alcance do socialismo, deixando pois a consciência
política dos socialistas russos dividida entre a moral e a ciência,
entre os valores práticos, que recusavam o capitalismo, e os valores
teóricos, que o aceitavam como um fato inevitável. Seria ingênuo
supor que a tradução de O Capital produziu esse dilema. Melhor,
este livro foi lido, discutido e interpretado nos termos de um dilema
característico do pensamento socialista russo na segunda metade do
século XIX. Em suma, a difusão de O Capital na Rússia cumpriu
uma função de destaque para a articulação do problema central dos
naroãniki.
Ora, esse problema não fora previsto por Marx e Engels. Há evi-
dências claras de que ele os surpreendeu e de que resistiram a ele
até que foram forçados, pela pressão polêmica dos naroãniki, a
tomá-lo também como seu, e por isso aprenderam o russo para che-
gar às fontes desses surpreendentes e embaraçantes leitores que
insistiam em questionar a demonstração da necessidade da passa-
gem pelo capitalismo para a realização do socialismo em um país
como a Rússia. Assim, as condições de produção dos escritos de
Marx e Engels sobre a Rússia diferiram, em um ponto crucial, das
que nortearam a redação de Formações Econômicas Pré-Capitalistas.
Estas foram anotações preparatórias para O Capital, escritas pelo
autor para si mesmo, num esforço de auto-esclarecimento tendo em
vista o seu próprio projeto teórico. Não eram destinadas à publi-
cação, e publicá-las implica, a rigor, uma transformação de suas
significações originais." Em contraste, os escritos sobre a Rússia
foram feitos sob encomenda e sob pressão, carregando desde o
início o peso dos condicionamentos sociopolíticos da circulação das
idéias, e sobretudo levando Marx e Engels a se entregarem a uma
problemática diferente daquela em que se situavam originalmente.
Gostaríamos de destacar aqui três aspectos desses escritos que
emergem para o primeiro plano uma vez que sejam lidos em con-
junto com os textos dos naroãniki.
128
1. São eminentemente políticos. "Será possível fazer a revolução
socialista em um país, como a Rússia, em que o capitalismo não
foi plenamente desenvolvido? E que socialismo seria este? Quais as
suas bases sociais? Quais as suas formas políticas? Em que seria
diferente da revolução socialista no 'Ocidente' economicamente desen-
volvido? Como chegar a ele? Como reunir, em uma única associação
internacional, movimentos socialistas de origens tão diversas?" Fo-
ram perguntas desse teor que mobilizaram a controvérsia em todos
os seus níveis, inclusive naquele privilegiado pelos editores recentes
sobre a "uni" ou "multi" linearidade da evolução histórica. E mais,
as perguntas foram formuladas em função de interesses práticos,
devendo orientar programas divergentes de atuação política. Para
mencionar somente alguns dos textos principais: "Tkatchov x Engels"
(1875) referiam-se praticamente aos conflitos entre a dissidência
bakuninista e a direção da 1» Internacional assim como às diferen-
ças entre o partido social democrata alemão e os naroãniki exilados
no Ocidente. "Vera Zasulitch x Marx" (1881) partiam de questões
que dividiam os socialistas russos entre uma linha terrorista (o
Comitê Executivo de A Vontade do Povo), uma linha antiterrorista
que preconizava a organização e a conscientização das bases popu-
Jares, camponesas sobretudo (A Repartição Negra, liderada por J.
Plekhanov, ainda um narodnik), e uma tendência que se valia das
análises de Marx para justificar um apoio ao desenvolvimento do
capitalismo na Rússia. "Danielson x Engels" (1890) faziam um balan-
ço das experiências dos últimos 30 anos tendo em vista as frustra-
ções do movimento narodnik e a formação de círculos revolucioná-
rios marxistas na Rússia.
2- Com efeito, a comuna rural tradicional na Rússia foi tema central
de todas as análises, mas não como um problema teórico relacionado
com os primórdios da história humana. Era a contemporaneidade
dessa forma não-capitalista de organização que criava problema.
Esquematizando, pode-se periodizar a controvérsia em 3 períodos:
D da formulação de posições com os futuros parceiros ainda distan-
tes entre si — aproximadamente de em seguida às revoluções de
1848 até depois da Comuna de Paris;
II) da aproximação polêmica e da interpenetração — de meados da
década de 1870 a meados da década de 1880;
III) da separação e da cristalização de posições em um antagonismo
Programático, com Marx já ausente e com a paticipação de "mar-
xistas russos" reconhecidos por Engels — de meados da década de
^80 até a morte de Engels.
2
-l. Na década de 1850, Alexandre Herzen, que havia sido um dos
expoentes do "ocidentalismo" na Rússia, achando-se agora no exílio
e
ni Londres e frustrado pelos insucessos do republicanismo radical
129
nas revoltas de 1848, retomou vários temas de seus adversários teó-
ricos da véspera, os filo-eslavos, integrando-os numa perspectiva ra-
dical de um caminho russo para o socialismo." Como os filo-eslavos,
passou a descrever a "evolução ocidental" como um processo de
desintegração cultural (atomização, reiíicação mercantil, guerra de
classes sem perspectivas de resolução, etc). Em contraste, à "Rússia"
caberia uma missão de regeneração civilizatória justamente por estar
à margem dos progressos capitalistas. Ela havia preservado formas
comunitárias de organização da propriedade e de autogoverno, entre
as quais a comuna camponesa, que poderiam oferecer as bases para
a realização do socialismo, o grande ideal que o Ocidente produziu
mas que parecia incapaz de conquistar. A palavra mir, nome dado
à comuna enquanto unidade dirigida por uma assembléia coletiva
de seus membros, tinha uma tríplice significação na lingua russa,
propiciando as mais estonteantes associações intelectuais. Ela queria
dizer, a um só tempo, "a comuna reunida em assembléia", "o mun-
do", e "a paz". O ideal da Rússia como um Grande Mir, pela pri-
meira vez elaborado pelos conservadores filo-eslavos e projetado por
eles num passado longínquo anterior à corrupção "ocidentalizante"
introduzida de fora para dentro e de cima para baixo pelo Estado
burocrático (as reformas de Pedro, o Grande, constituindo-se no
maior divisor de águas), foi lançado no futuro como projeto de
um movimento que começava a agitar os círculos intelectuais e
camponeses na Rússia.''
Marx e Engels cruzaram com Herzen em Londres, assim como
com outros refugiados russos que se compraziam em valorizar a
potencialidade revolucionária do Oriente europeu justamente por
causa de seu "atraso" econômico. '4 Não se impressionaram com
esses senhores, ouvindo-os como a ecos de uma longínqua situação
de isolamento social cujo verdadeiro papel na Europa era o reforço
da reação por um Estado despótico."
Nessa mesma década de 1850, Marx redigiu os Grundrisse (For-
mações Econômicas Pré-Capitalistas, inclusive) e uma série de arti-
gos sobre a índia, pensando as formas sociais não-capitalistas de
seu mundo nos termos de uma periodização do passado histórico.
Expressou vigorosamente essa concepção no prefácio à primeira edi-
ção de O Capital: "o país mais desenvolvido não faz mais do que
representar a imagem futura do menos desenvolvido".,6
2.2. Em seguida à Comuna de Paris, o movimento socialista sofreu
um refluxo na Europa Ocidental que contrastou com o ascenso dos
narodniki na cena política russa." Foi nesse período que Marx e
Engels estreitaram relações com intelectuais russos, passando de um
antagonismo radical (registrado na polêmica entre Tkatchov e Engels,
em 1875) a uma troca de idéias que, embora não fosse desprovida
de tensões, implicava o reconhecimento de um horizonte comum de
questões e de respostas possíveis. A esta segunda fase pertencem o
prefácio de Marx e Engels à edição russa do Manifesto Comunista
130
bem como as quatro cartas redigidas por Marx (das quais só uma
foi enviada) em resposta a uma dupla encomenda significativamente
feita por representantes das duas tendências principais entre os
narodniki: Vera Zasulitch, de Genebra, já então ligada à corrente
antiterrorista liderada por J. Plekhanov, e o Comitê Executivo de
A Vontade do Povo, de São Petersburgo.
Essa troca de idéias foi marcada por um tema central: o contraste
entre "Rússia" e "Ocidente", pensados como duas totalidades a um
tempo distintas e interligadas. O eixo temporal (pré-capitalista/capi-
talista/pós-capitalista), em cujos termos as relações sociais na Rússia
haviam sido pensadas por ambas as partes (uma enfatizando as
vantagens e a outra as desvantagens do "atraso"), foi complicado
por uma dimensão espacial que enfatizava a coexistência de formas
sociais radicalmente distintas em um mesmo mundo. Não havia
recanto do pensamento político que não fosse afetado por esta com-
plicação conceituai, mas a riqueza da problemática não pode ser
percebida sem que se leia os narodniki, que eram, nessa contro-
vérsia, justamente aqueles que enfatizavam as diferenças da situa-
ção russa e que assim suscitavam as perguntas perturbadoras da
coerência do esquema temporal.
2.3. A exterminação do movimento terrorista em conseqüência de
seu maior sucesso (o atentado fatal sobre o Tzar Alexandre II em
l9 de março de 1881) deu uma conclusão trágica à longa e diver-
sificada história dos narodniki, deixando o movimento socialista rus-
so em um marasmo surdo que perdurou por mais de uma década.
A novidade desse período foi a formação de pequenos círculos de
revolucionários marxistas que se definiam por oposições ao seu
passado narodnik. Engels manteve um estreito relacionamento, teó-
rico e pessoal, com o núcleo principal dessa tendência, formado no
exílio, em Genebra, com o nome de "A Libertação do Trabalho", em
1883, por J. Plekhanov, Vera Zasulitch e outros. Nesse período for-
mativo, os marxistas russos caracterizam-se pela crítica ao caráter
"utópico" e "revolucionário" do projeto narodnik de chegar ao so-
cialismo sem passar pelo capitalismo. Seriam esses traços próprios
à infância de um movimento cuja maturidade viria com a razão
científica apoiada no determinismo histórico. Esse discurso tendia
a anular as implicações teóricas das diferenças da situação russa,
integrando-se num eixo temporal modelado na evolução do Ocidente
europeu. Taticamente isso implicava escalonar a estratégia revolucio-
nária em termos de estágios históricos a serem percorridos, come-
çando-se por uma revolução "democrático-burguesa".
Embora politicamente cansado, o pensamento teórico narodnik
continuava vigoroso, sobretudo no campo das análises econômicas.
A correspondência do tradutor de O Capital, N. F. Danielson, com
F
- Engels, documenta essa nova fase da controvérsia. Enquanto En-
gels acompanhou a linha de argumentação dos marxistas russos,
buscando correspondências entre as relações da Rússia da época e
131
as do passado europeu ocidental, sustentando ademais que a Rússia
já havia sido penetrada pelo capitalismo o suficiente para não mais
poder escapar às suas leis, Danielson continuou a insistir na impor-
tância da diferença entre a Rússia e o Ocidente, reelaborando as
teses tradicionais dos naroãniki. Reconheceu que a Rússia já havia
ingressado na ordem capitalista, mas argumentou que esta não tinha
futuro em seu pais. A posição marginal nas trocas internacionais,
fruto de uma chegada tardia ao capitalismo, e os saltos tecnológicos
que multiplicam a produção sem absorver os trabalhadores desem
pregados pela desintegração da agricultura e indústria tradicionais,
criariam obstáculos externos e internos intransponíveis para a for-
mação do mercado de que depende a expansão capitalista. Essa
correspondência realça o interesse da longa controvérsia entre Marx,
Engels e os narodniki para uma história das reflexões sobre a ex-
pansão do capitalismo vista a partir de suas regiões periféricas.
3. Um outro aspecto a destacar é o interesse desses textos enquanto
documentos da formação do "marxismo". A passagem do pensamen-
to de um autor a uma doutrina ordenadora de grupos socialmente
organizados é um processo complexo e pouco estudado sobretudo
no caso de um pensamento tão polêmico como o marxista. Apesar
da convenção dos direitos autorais, uma vez publicadas e ainda mais
traduzidas, as idéias de um autor deixam de pertencer-lhe e passam
a sofrer combinações as mais surpreendentes. Karl Marx foi dupla-
mente surpreendido pelos seus leitores russos: que fossem justa-
mente eles, tão longínquos e tão isolados pelos muros do "despo-
tismo oriental", os primeiros a traduzir O Capital; e que este ser-
visse de fonte teórica para a defesa do desenvolvimento capitalista! "
Um autor pode guardar-se na ironia diante das múltiplas metamor-
foses sofridas por suas idéias à medida que são difundidas. Mas uma
doutrina socialmente efetiva necessita digerir a sua diferenciação de
tal maneira que esta seja escondida em um discurso de aparência
coerente. Esta coerência de superfície é condição de existência da
doutrina enquanto tal, pois ela se constitui pelo disciplinamento
de uma forma coletiva de pensar. Em conseqüência, a formação e
o desenvolvimento de uma doutrina engaja um debate constante
sobre "o que o fundador realmente disse", pergunta problemática
em sua raiz, pois atribui ao autor um conjunto de idéias e um tipo
de coerência que não lhe pertencem.
A controvérsia com os narodniki apresenta um caso limite da
ambigüidade vivida por um autor que se toma, ainda em vida, fun-
dador de uma doutrina. Nela, Marx e Engels foram pressionados
a pensar doutrinalmente sobre si mesmos. A este respeito há uma
diferença significativa entre os escritos de Marx e de Engels: o pri-
meiro resistiu a essa pressão, o segundo assumiu-a plenamente.
Desafiado a apresentar uma análise "marxista" para o programa de
um partido revolucionário na Rússia, Marx hesitou, redigiu três lon-
gos rascunhos extremamente cuidadoso no uso das palavras, desistiu
132
de atender à encomenda e mandou como resposta uma carta de pou-
cos parágrafos que não diziam nem sim nem não à pergunta central
sobre a justeza de um programa revolucionário socialista na Rússia.
Ademais, justificou a ambigüidade de sua resposta restringindo a
abrangência de suas análises em O Capital à história da Europa
Ocidental e desautorizando quaisquer interpretações que dele deri-
vassem uma política "marxista" na Rússia." No entanto, essa sus-
pensão de julgamento não funcionou como tal para os leitores de
sua carta. Os naroãniki saudaram-na como uma confirmação de suas
teses sobre a diferença, passada e futura, da história russa; e o
círculo marxista de Plekhanov viu-se, anos mais tarde, forçado a
minimizar a sua importância, valorizando outros textos e convocan-
do Engels para que usasse de sua autoridade para "esclarecer" o
que ele e Marx haviam "realmente pensado"." Esse episódio ilustra
o fato de que a autoridade do fundador de uma doutrina é social-
mente produzida, não podendo pois ser desautorizada pelo indivíduo
que a encarna. A doutrina encontra meios de pôr em palavras o
que o mestre não chegou a dizer. Suas ambigüidades, hesitações,
silêncios, ao invés de veicular uma suspensão de julgamento e de
serem reconhecidos enquanto tais, oferecem pontos comuns de apoio
para as interpretações divergentes, como se fossem encruzilhadas
dos caminhos de socialização de suas idéias.
Engels, por outro lado, envolveu-se corajosamente no trabalho de
definir posições teóricas em função da organização de um partido
político na Rússia.11 Para tanto teve de "reinterpretar" o que Marx
e ele próprio haviam escrito, sendo envolvido numa estranha polê-
mica com Danielson em que este, julgando-se também marxista,
utilizava-se de citações de Marx e do próprio Engels para contra-
dizer suas interpretações atuais.
A análise dessas primeiras disputas na Rússia sobre "o que Marx
realmente disse" é iluminadora de uma dimensão pouco considerada
da relação entre as tradições naroãnik e marxista naquele país.
Costuma-se sublinhar a ruptura entre elas, obscurecendo-se uma
certa continuidade que não deixou de existir. Os problemas da dife-
rença e da interligação entre "Rússia e Ocidente" foram internali-
zados pelo discurso marxista e têm ocupado, até nossos dias, uma
posição importante nas lutas internas da tradição de pensamento
centrada na revolução bolchevique. Isto significa que as questões
primeiramente levantadas pelos naroãniki não foram superadas pelo
"marxismo russo", mas retomadas em um outro contexto doutriná-
rio e institucional. Nesse sentido, os escritos dos naroãniki não per-
tencem a "precursores" ultrapassados, mas continuam a contribuir,
assim como os de Marx e Engels, para a articulação dos problemas
Que configuram o horizonte ideológico contemporâneo.

133
Notas

i. Godelier, Maurice, Teoria Marxista de Ias Sociedades Precapitalistas, Barce-


lona, Editorial Esteia, 1971, p. 5.
2. Foi nessa condição que foram apresentados por Maurice Godelier e Eric
Hobsbawm. Deve-se notar que as leituras e edições feitas na Europa Oriental,
sobretudo a Polônia, seguiram um outro caminho. A edição polonesa colocou-os
como um apêndice a uma vasta antologia de Autores russos, os "narodniki". Foi
esta edição que inspirou o nosso trabalho.
3. Sofri, Giani, O Modo de Produção Asiático, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1977, apresenta um resumo breve e sugestivo dos debates ocorridos na década
de 1960.
4. Veja-se Gianni Sofri, op. cit.
5. Esta questão tem sido particularmente discutida entre os antropólogos mar-
xistas franceses, entre os quais Godelier, E. Terray, C. Meillassoux. Veja-se
Gianni Sofri, op. cit., para referências a trabalhos questionadores da universa-
lidade de conceitos como "modo de produção asiático", "feudalismo", e das difi-
culdades de estabelecer-se uma classificação de "modos de produção capitalistas".
6. Godelier, M., op. cit., discute a passagem das sociedades sem classe para as
sociedades de classe, E. Hobsbawm concentra os debates sobre as passagens do
escravagismo ao feudalismo e do feudalismo ao capitalismo (Introdução a For-
mações Econômicas Pré-Capitalistas, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975), ambos
numa perspectiva "reintegradora" dos conceitos, em busca de um "neoevolucio-
nismo".
7. Godelier, M., Sobre ei Modo de Produción Asiático, Ediciones Martinez Roca,
1969, p. 58.
8. Eis o índice da antologia:
Dos Caminhos para o Socialismo — A Controvérsia entre Marx, Engels e os
"Populistas" Russos, Ed. Rubem César Fernandes, Trad. de Lúcio de Almeida
e Rubem César Fernandes: Introdução.
Parte I: Os Narodniki.
1. Filosofia da História — os dilemas do progresso, P. L. Lavrov, Cartas
Históricas; N. K. Mikhailovsky, O que é o Progresso?
2. Análise econômica — desenvolvimento capitalista e a comuna camponesa,
N. F. Danielson, A Tarefa Econômica da Rússia; J. V. Plekhanov, A Lei do
Desenvolvimento Econômico da Sociedade e a Tarefa do Socialismo na Rússia.
3. Programas Políticos, N. V. Chelgunov e M. L. Mikhailov, À Jovem Geração;
P. L. Lavrov, Para Frente! M. A. Bakunin e N. I. Jukovsky, O Nosso Programa;
Programa do Partido: Terra e Liberdade; Programa do Partido: Vontade do
Povo.
Parte 11: A Controvérsia entre Marx, Engels e os Narodniki.
1. P. N. Tkatchov e F. Engels.
P. N. Tkatchov, Carta Aberta a Engels; F. Engels, A Questão Social na Rússia;
F. Engels, Epílogo à Questão Social na Rússia.
2. N. K. Mikhailovsky, O Dilema do Marxismo Russo; K. Marx, À Redação
de Otietchestviennie Zapisky.
3. Vera Zasulitch e K. Marx.
Carta de Vera Zasulitch a K. Marx; Respostas de K. Marx a Vera Zasulitch:
1' rascunho, 2'' rascunho, 3» rascunho; Carta de Marx a Vera Zasulitch.

134
4. Vera Zasulitch a Engels.
Vera Zasulitch a Engels; Engels a Vera Zasulitch.
5. N. F. Danielson e F. Engels,
Um Conjunto de Dez Cartas.
6. J. Plekhanov e F. Engels,
Um Conjunto de Cinco Cartas.
9. Há diferenças substanciais entre o movimento dos narodniki e o que se con-
vencionou chamar "populismo" na América Latina. Aquele se faz fora e contra
o Estado, este a partir do Estado; aquele foi dirigido ao campesinato, este so-
bretudo aos trabalhadores urbanos; aquele foi dirigido por intelectuais, este por
chefes políticos; aquele se propunha um programa revolucionário e socialista,
este um reformismo nos quadros do capitalismo.
10. Este é o tema central do artigo de N. K. Mikhailovsky, "O Dilema do Mar-
xista Russo", que motivou a resposta de K. Marx "À redação de Otietchestviennie
Zapisky". Ver Dos Caminhos para o Socialismo...
11. Vejam-se adiante as considerações sobre a passagem das idéias do autor
K. Marx para a doutrina marxista.
12. Entre os principais escritos de A. Herzen posteriores a 1848 estão: Da Outra
Margem (1848-49); Carta de um Certo Russo Mazzini (1849); Sobre o Desenvol-
vimento das Idéias Revolucionárias na Rússia (1851); O Povo Russo e o Socia-
lismo — Carta Aberta ao Sr. Michelet (1851); A Rússia e o Velho Mundo (1854);
Meu Passado e Meus Pensamentos. Herzen montou uma editora em Londres e
publicou um periódico Kolokol ("O Sino") que exerceram influência decisiva no
Período formativo do movimento. Veja-se E. H. Carr, The Romantíc Exiles,
Londres, 1933, e Franco Venturi, Roots of Revolution, Nova Iorque, 1960 d» ed.
em italiano em 1952).
13. A derrota na guerra da Criméia (1853-55) abalou os círculos dirigentes do
Estado Russo e a abolição do trabalho servil (19 de fev. de 1861) estendeu ao
campesinato um clima de instabilidade e uma situação de mudança. A intelec-
tualidade fornece as bases para o movimento dos narodniki que viam na crise
social uma oportunidade para a revolução socialista.
14. "As vantagens do atraso" é o tema central dos argumentos de P. N. Tkatchov
em sua polêmica com Engels em 1875. Ver Dos Caminhos para o Socialismo...
15. Marx refere-se a Herzen com pouco caso em O Capital, tratando-o de "bele-
trísta" e "moscovita", identificando-o aos conservadores filo-eslavos. N. K. Mik-
hailovsky denuncia esse tratamento do grande mestre do pensamento narodnik
como evidência da incompreensão de Marx dos problemas da Rússia. Ver N. K.
Mikhailovsky, "O Dilema do Marxismo Russo", em Dos Caminhos para o So-
cialismo ...
16. Ver K. Marx, prefácio à 1» edição de O Capital.

I7 • O movimento chegou ao clímax de mobilização em meados da década de


1870, quando estudantes e intelectuais foram convocados a abandonar as cidades
e
partir para o campo num esforço de conscientização dos camponeses. A frus-
tração dessa linha de "organização das massas" levou, no final da década, a
uma atividade terrorista de lances espetaculares que tiveram grande repercussão
em toda a Europa.
18. Em carta de Kugelmann, de 12 de outubro de 1868, Marx escreveu: "Há alguns
d
ias um certo editor de São Petersburgo espantou-se com a notícia de que se

135
publica uma tradução russa de O Capital... Ironia da sorte: os russos, com
quem lutei sem cessar durante 25 anos, não só na língua alemã, mas também
em francês e inglês, 'não me desejavam mal' afinal". Anos mais tarde, em 1881,
expressa sua surpresa diante dos analistas que se valiam de Marx na Rússia
para defender o desenvolvimento do capitalismo: "Os 'marxistas' russos a que
a Sra. se refere são inteiramente desconhecidos por mim". Ver "Rascunhos de
K. Marx a Vera Zasulitch", em Dos Caminhos para o Socialismo...
19. Ver K. Marx a Vera Zasulitch, 8 de março de 1881, em Dos Caminhos para
o Socialismo...
20. Ver correspondência entre J. Plekhanov e F. Engels, em Dos Caminhos para
o Socialismo...
21. Ver a correspondência entre F. Engels e N. F. Danielson e, sobretudo, F.
Engels, "Epílogo à Questão Social na Rússia" (1894), ambos em Dos Caminhos
para o Socialismo...

VERSUS — bimensal
um jornal de política, idéias e cultura

136
2. Cartas*
2-1. Nota para Vera Zasulitch
Vera Zasulitch (1849-1919) tomou-se figura legendária do movimento
socialista russo em seguida a um atentado que planejou e executou
sozinha, 1878, contra o comandante da guamição de São Petersburgo
que ordenara a tortura de um narodnik que havia se recusado a
tirar o boné em sua presença. Seu julgamento foi noticiado em toda
a Europa e culminou com uma fuga seguida do exílio em Genebra.
Embora houvesse dado o sinal para a adoção de métodos violentos.
Vera veio a identificar-se com a tendência antiterrorista liderada por
J- Plekhanov. Sua carta a Marx foi escrita num momento de gran-
des tensões nos círculos revolucionários russos. O terrorismo, lide-
rado pelo Comitê Executivo de A Vontade do Povo, crescia em
audácia e haveria de liquidar Alexandre II duas semanas mais tarde.
A Repartição Negra, liderada por Plekhanov, fazia o balanço da
história política que os tinha levado a uma posição marginal no
naovimento contestatário. Apareciam, por outro lado, os primeiros
indícios do "marxismo legal" (Pedro Struve, o jovem N. A. Berdiaev,
Tugan-Baronovsky) que sustentava a necessidade do desenvolvimento
capitalista na Rússia e a conseqüente desintegração da comuna cam-
ponesa. Autores liberais também se apoiavam em Marx para criticar
0
"anacronismo" de projetos socialistas na Rússia.
Diante desse quadro, Marx primou pelo cuidado: escreveu três
longos rascunhos e terminou por enviar uma carta de duas páginas.
Publicamos aqui somente o segundo rascunho. A resposta enviada
a Vera Zasulitch não foi dada ao público pelo grupo de Genebra.
Pode-se especular que aguardaram inicialmente um texto mais exten-
so que sabiam estar sendo preparado por Marx em atendimento a
uma encomenda feita pelo Comitê Executivo de A Vontade do Povo.
Depois da morte de Marx, havendo os de Genebra já rompido com
os narodniki, é de se supor que a publicação de uma carta tão
simpática aos narodniki já não interessasse. Ela foi descoberta nos
Papéis de P. B. Akselrod, depois de sua morte, e publicada por
* As Cartas aqui publicadas foram traduzidas por Lúcio de Almeida e Rubem
c
- Fernandes.

137
B. Nokolaievsky em Iz Archiva P. B. Akselroda, Berlim, 1924. Os três
rascunhos, por sua vez, que constituíam vim conjunto bem mais
elaborado sobre a questão, tampouco foram publicados por Engels
apesar dos insistentes pedidos vindos da Rússia por análises mais
detidas sobre as perspectivas políticas daquele país. Foram encon-
trados por D. Riazanov nos arquivos de P. Lafargue e publicados
em Archiv K. Marksa i F. Engelsa, n" 1, 1924.
Não é sem interesse lembrar que Vera Zasulitch iria acompanhar
Plekhanov na conversão ao marxismo, sendo uma das principais
dirigentes até o Congresso de 1903, onde esteve no foco das disputas
que haveriam de separar "bolcheviques" e "mencheviques". Vera
ficou com os segundos.
Vera Zasulitch a Karl Marx1
Genebra, 16 de fevereiro de 1881
Caro Cidadão
O Sr. sabe, com certeza, que O Capital goza de grande popularidade
na Rússia. Os poucos exemplares que escaparam à apreensão são
lidos e relidos por uma grande quantidade de pessoas mais ou
menos instruídas do nosso país. As pessoas o estudam com grande
seriedade. Mas provavelmente o Sr. não está consciente do papel
que O Capital desempenha em nossas discussões sobre a questão
agrária na Rússia e sobre a nossa comuna rural. O Sr. sabe melhor
do que ninguém da grande importância deste assunto na Rússia.
O Sr. conhece o que Tchemichevsky pensou a respeito. Nossa lite-
ratura progressista, como por exemplo Otietchesviennie Zapiski, de-
senvolve ainda as suas idéias. Em minha opinião essa é uma questão
de vida ou morte, especialmente para o nosso partido socialista.
A variação de um ponto de vista a outro pode decidir mesmo do
destino pessoal dos nossos revolucionários socialitas. Das duas, uma:
ou essa comuna rural — liberada das excessivas pressões fiscais,
das indenizações aos grandes proprietários rurais e da arbitrarie-
dade administrativa — será capaz de desenvolver o caminho socia-
lista, isto é, de organizar gradualmente a sua produção e a divisão
dos seus produtos em bases coletivas, caso em que o revolucioná-
rio socialista poderá dedicar suas forças para a liberação e o desen-
volvimento da comuna.
Ou, ao contrário, a comuna está condenada à ruína — caso em
que ao socialista nada resta senão dedicar-se a cálculos, mais ou
menos justificados, sobre quantos anos levará para que a terra do
camponês russo passe às mãos da burguesia, quantas centenas de
anos serão quem sabe necessários para que o capitalismo alcance
na Rússia o nível da Europa Ocidental. Deverá, então, limitar-se ao
trabalho de propaganda unicamente com o operariado urbano, o
qual será constantemente inundado por levas de camponeses lança-

138
dos pela desintegração da comuna para as ruas das grandes cidades
à procura de trabalho.
Ultimamente, ouve-se freqüentemente a opinião de que a comuna
rural é uma forma arcaica, condenada à desintegração pela história
e pelo socialismo científico (em suma, por tudo que está acima
das discussões). Os porta-vozes dessa opinião intitulam-se seus dis-
cípulos, são "marxistas".2 Freqüentemente, o seu argumento mais
forte é: "assim disse Marx".
— "Mas como deduzir isto de O Capital?", pergunta-se a eles. "Marx
não se ocupa lá da questão agrária e não fala de Rüssia".
— "Ele assim diria caso se referisse ao nosso país", respondem os
seus discípulos talvez já um pouco menos seguros de si.
O Sr. há então de compreender o quanto nos interessa um pro-
nunciamento seu sobre esse problema e o quanto nos ajudaria caso
expressasse as suas opiniões sobre as seguintes questões: que futuro
pode haver para a nossa comuna rural, e se todos os países do
mundo devem, por uma necessidade histórica, passar por todas as
fazes da produção capitalista.
Tomo a liberdade de pedir-lhe em nome dos meus amigos que
me preste esse serviço. Caso o tempo não lhe permita desenvolver
as suas idéias de maneira mais ou menos detalhada, faça o favor
de responder em sua carta, a qual peço licença para traduzir e pu-
blicar na Rússia.
Queira aceitar, cidadão, minhas mais respeitosas saudações.
Vera Zasulitch
Meu endereço: Gráfica Polonesa, Rue de Lausanne, 40; Genebra.

Karl Marx a Vera Zasulitch1


(Segundo rascunho, fevereiro-março de 1881)

I- Mostrei em O Capital que [transformação] metamorfose da pro-


dução feudal ou produção capitalista tinha como ponto de partida
a exploração do produtor e, mais particularmente, que a base de
toda essa evolução é a expropriação dos cultivadores [n» 315 da edi-
Çao francesa]: Eu contínuo:
Até agora só na Inglaterra ela (a expropriação dos cultivadores)
* completou de modo radical... Todos os outros países da Europa
acidental percorrem o mesmo movimento (1. cít.).
Portanto, [ao escrever essas linhas] eu restringi expressamente
Leste desenvolvimento] esta "fatalidade histórica" aos países da Eu-
ro
Pa Ocidental. Para não deixar a menor dúvida sobre o meu pen-
samento, eu digo na p. 341:
A propriedade privada, como antítese da propriedade coletiva, só
existe onde as condições exteriores do trabalho pertencem a parti-
139
culares. Mas, segundo estes sejam os trabalhadores ou não, a pro-
priedade privada muda de forma.
Assim, o processo que [descrevi] analisei substituiu uma forma
de propriedade privada e fragmentada dos trabalhadores: a proprie-
dade capitalista' de uma minoria ínfima (1. c. p. 342) levou à substi-
tuição de uma espécie de propriedade por outra. Como isto (se
exphcaria) poderia ser aplicado à Rússia, onde a terra não é nem
jamais foi "propriedade privada" do cultivador? [Em todo caso, os
que crêem na necessidade histórica da dissolução de propriedade
comunal na Rússia não podem absolutamente provar essa necessi-
dade com a minha exposição da marcha fatal das coisas na Europa
Ocidental. Pelo contrário, eles teriam que fornecer argumentos novos
e inteiramente independentes do desenvolvimento dado por mim. Só
há uma coisa que eles podem aprender comigo. É a seguinte]: A
única conclusão que eles estariam autorizados a extrair da marcha
das coisas no Ocidente é a seguinte: para estabelecer-se na Rússia,
a produção capitalista deve começar por abolir a propriedade comu-
nal e expropriar os camponeses, ou seja, a grande massa do povo.
Este é, de resto, o desejo dos liberais russos [que desejam natura-
lizar a produção capitalista entre eles e, conseqüentes consigo mes-
mos, transformar em simples assalariados a grande massa dos cam-
poneses] mas seu desejo prova mais que o desejo de Catarina II
[de introduzir] de implantar no solo russo o regime ocidental dos
ofícios das corporações medievais? [como entre os cultivadores rus-
sos a terra é propriedade comum e não foi jamais propriedade pri-
vada. ..].
[Na Rússia, onde a terra não é nem jamais foi "propriedade pri-
vada" do cultivador, a [transformação] metamorfose [dessa terra]
de alguma propriedade privada em propriedade capitalista [não tem
nenhum sentido] [ela é impossível] está portanto fora de questão.
[A única conclusão que se poderia extrair seria esta...] [Dos dados
ocidentais só se poderia concluir...] Caso se queira extrair [algum
esclarecimento] alguma lição dos dados ocidentais...].
[Os mais ingênuos não poderiam negar que são dois casos intei-
ramente distintos. Em todo caso, o processo ocidental].
Assim, [o processo que analisei] a expropriação dos cultivadores
no Ocidente serviu para "transformar a propriedade privada e frag-
mentada dos trabalhadores" em propriedade privada e concentrada
dos capitalistas. Mas é sempre uma substituição de uma forma de
propriedade privada por uma outra forma de propriedade privada.
[Logo, como se poderia atribuir esse mesmo processo [à terra russa]
aos cultivadores russos] [cuja terra não é nem jamais foi...] onde
a propriedade "territorial" permaneceu "comunal" e jamais foi "pri-
vada"? [E o mesmo processo histórico que [analisei] tal qual se
consumou no Ocidente...]. Na Rússia tratar-se-ia, ao contrário, da
substituição da propriedade comunista [dos cultivadores da terra, o

140
que seria evidentemente um processo completamente...] pela pro-
priedade capitalista.
Claro! Se a produção capitalista deve estabelecer seu reinado na
Rússia, a grande maioria dos camponeses, ou seja, do povo russo,
deve ser convertida em assalariada, em conseqüência expropriada
pela abolição anterior de sua propriedade comunista. Mas, de qual-
quer modo, o precedente ocidental não prova nada neste caso [a
favor da "fatalidade histórica" desse processo].
II. Os "marxistas" russos dos quais a Sra. me fala me são inteira-
mente desconhecidos. Os russos com quem mantenho relações pes-
soais têm, ao que eu saiba, opiniões inteiramente opostas.
III. Do ponto de vista histórico, o único argumento sério [que se
possa apresentar] em favor da dissolução fatal da propriedade co-
munal na Rússia é o seguinte: a propriedade comunal existiu em
toda a parte na Europa Ocidental e em toda parte desapareceu com
o progresso social; [por que seu destino seria diferente na Rússia?]
logo, como ela poderia escapar à mesma sorte na Rússia?
Em primeiro lugar, na Europa Ocidental a morte da propriedade
comunal [e a aparição] e o nascimento da produção capitalista estão
separados por um intervalo [que se conta em séculos] imenso, que
abrange toda uma série de revoluções e evoluções econômicas su-
cessivas [a morte da propriedade comunal não deu, aí, nascimento
à produção capitalista], das quais a produção capitalista é [apenas
a última] a mais recente. Por um lado, ela desenvolveu maravilho-
samente as forças produtivas sociais, mas, por outro lado, traiu [seu
caráter transitório] sua incompatibilidade com as próprias forças
que ela engendrou. Sua história não é, de agora em diante, senão
uma história de antagonismos, de crises, de conflitos, de desastres.
Por fim, ela revelou ao mundo, salvo aos cegos por interesse, seú
caráter puramente transitório. Os povos entre os quais ela teve seú
maior impulso, na Europa e [nos Estados Unidos da] América, não
têm outro desejo que o de romper suas cadeias, substituindo a pro-
dução capitalista pela produção cooperativa e a propriedade capita-
lista por uma forma superior do tipo arcaico da propriedade, oü
seja, a propriedade [coletiva] comunista.
Se a Rússia estivesse isolada do mundo, ela deveria realizar por
sua própria conta as conquistas econômicas que a Europa Ocidental
só realizou percorrendo uma longa série de evoluções, desde a exis-
tência de suas comunidades primitivas até o presente estágio. Não
haveria dúvida, ao menos para mim, de que suas comunidades se-
riam fatalmente condenadas à morte com o desenvolvimento da so-
ciedade russa. Mas a situação da comuna russa é absolutamente
distinta daquela das comunidades primitivas do Ocidente [da Eu-
ropa Ocidental]. A Rússia é o único país da Europa onde a proprie-
àade comunal se manteve em uma ampla escala nacional; mas, st
multaneamente, a Rússia existe em um meio histórico moderno, ela
141
é contemporânea de uma cultura superior, ela se encontra ligada
a um mercado mundial onde predomina a produção capitalista.
[É, portanto, a produção capitalista que lhe empresta seus resul-
tados sem que tenha necessidade de passar por suas... ].
Apropriando-se dos resultados positivos deste modo de produção,
ela estará, portanto, em condições de desenvolver e transformar,
ao invés de destruir, a forma ainda arcaica de sua comuna rural.
[Observo de passagem que a forma de propriedade comunista na
Rússia é a mais moderna do tipo arcaico, o qual passou para toda
uma série de evoluções].
Se os aprendizes de capitalistas russos negam a possibilidade de
tal combinação, que prova que para utilizar as máquinas a Rússia
teve que passar pelo período de incubação da produção mecânica.
Que me expliquem como puderam introduzir lá, em alguns dias,
por assim dizer, o mecanismo de trocas (bancos, instituições de
crédito, etc.) cuja elaboração custou séculos ao Ocidente!
[Ainda que o sistema capitalista esteja em seu ocaso no Ocidente,
que aqui se aproxime a época em que ele não será mais que [um
regime social] [uma forma retrógrada] uma formação "arcaica",
seus aprendizes russos estão... ].
IV. A formação arcaica ou primária do nosso planeta contém uma
série de camadas de diferentes idades, superpostas umas às outras;
do mesmo modo, a formação arcaica da sociedade revela-nos uma
série de tipos diferentes [que formam entre si uma série ascendente]
que denotam épocas progressivas. A comuna rural russa pertence
ao tipo mais recente dessa série. Nela o cultivador já tem a pro-
priedade privada da casa que habita e do terreno circundante.
Este é o primeiro elemento dissolvente da forma arcaica, desco-
nhecido nos tipos mais antigos e que pode servir de transição da
formação arcaica à... Por outro lado, estes repousam todos sobre
relações de parentesco natural entre os membros da comuna, en-
quanto o tipo ao qual pertence a comuna russa emancipou-se destes
vínculos estranhos. Por isso ela é capaz de um desenvolvimento
mais amplo. O isolamento das comunas, a ausência de laços entre
a vida de uma e a das outras, esse microcosmo localizado [que cons-
tituiu a base natural de um despotismo centralizado] não existe em
parte alguma como característica imanente do tipo primitivo. Mas
onde ela se encontra, faz surgir um despotismo central sobre as
comunas. Parece-me que na Rússia [a vida isolada das comunas
rurais desaparecerá] esse isolamento, primitivamente imposto pela
vasta extensão territorial, é de fácil eliminação, desde que se rom-
pam os entraves governamentais.
Chego agora ao fundo da questão. Não se deve ignorar que o
tipo arcaico ao qual pertence a comuna [rural] russa oculta um
dualismo que, em determinadas condições históricas, pode provocar
sua ruína [sua destruição]. A propriedade da terra é comum, mas
[por outro lado, na prática, a cultura, a produção, é a do camponês
142
parcelar] cada camponês cultiva e explora [sua parcela, apropria-se
dos frutos de seu campo] seu campo por sua própria conta, a exem-
plo do pequeno camponês ocidental. Propriedade comum, exploração
parcelar da terra, esta combinação [que era um elemento [fertili-
zador] de progresso da cultura] útil em épocas mais remotas, toma-
se agora perigosa. De um lado, os bens móveis, elemento que desem-
penha um papel cada vez mais importante na agricultura, diferen-
ciam progressivamente a fortuna dos membros da comuna e dão
lugar a um conflito de interesses, principalmente sob a pressão
fiscal do Estado; de outro lado, a superioridade econômica da pro-
priedade comum — como base do trabalho cooperativo e combinado
— se perde. Mas não se deve esquecer que na exploração das pra-
darias indivisas os camponeses russos já praticam o modo coletivo,
que sua familiaridade com o contrato do artel' facilitaria muito a
transição da cultura parcelar à coletiva, que a configuração física
do solo russo convida à cultura mecânica combinada em larga escala
(com o auxílio de máquinas) e que, enfim, a sociedade russa, que
durante tanto tempo viveu às custas da comunidade rural, deve-lhe
os primeiros avanços necessários para essa mudança. Evidentemente,
trata-se de uma mudança gradual, que começaria por estabelecer a
comuna no Estado normal de sua base atual.
V. Deixando de lado qualquer questão mais ou menos teórica, só
tenho a lhe dizer que hoje a própria existência da comuna russa
está ameaçada por uma conspiração de interesses poderosos. Um
certo tipo de capitalismo, nutrido às custas dos camponeses por
intermédio do Estado, ergueu-se frente à comuna: ele tem interesse
em esmagá-la. Também é interesse dos proprietários fundiários cons-
tituir os camponeses mais ou menos ricos em classe média agrícola
e transformar os cultivadores pobres — ou seja, a massa — em
simples assalariados, isto é, em trabalho barato. E como resistiria
a comuna, triturada pelas exações do Estado, explorada pelos pro-
prietários fundiários, minada internamente pela usura?
O que ameaça a vida da comuna não é uma fatalidade histórica,
nem uma teoria: é a opressão do Estado e a exploração dos capi-
talistas intrusos, tomados poderosos com a ajuda deste mesmo
Estado.

2.2. Nota para F. Engels e N. F. Danielson


As duas cartas que seguem fazem parte de um conjunto bem maior
escrito entre 1891 e 1893. Danielson foi o tradutor dos três volumes
de O Capital (publicados na Rússia respectivamente em 1872, 1885
e 1896). Esse trabalho proporcionou-lhe um contacto estreito com
Marx e Engels, diante dos quais manteve a postura respeitosa de
um discípulo independente que insistia na necessidade de rever os
conceitos dos mestres para que fossem adequados à situação russa.
143
A polêmica cortês que manteve por correspondência com Engels
forma talvez o conjunto mais rico sobre a questão (central para os
naroãniki) da aplicabilidade da análise econômica de O Capital para
um país de desenvolvimento tardio como a Rússia. Correspondente
assíduo e pesquisador meticuloso, Danielson enviou sistematicamente,
durante anos, materiais informativos sobre a economia russa para
Marx e Engels. Sua obra de maior repercussão foi Ensaios Sobre
a Nossa Economia Nacional Desde a Reforma, publicada, em parte,
em série, na revista A Palavra, em 1880, e ampliada numa edição
posterior, em 1893. A parte publicada em 1880 foi saudada por Marx
com palavras calorosas de apreço: "Li o seu artigo com o maior
interesse, ele é 'original' no melhor sentido da palavra — daí o
boicote" (K. Marx a Danielson, 19 de fevereiro de 1881). Uma dé-
cada mais tarde, época da correspondência com Engels, o mesmo
texto (ampliado) foi criticado pelos "marxistas russos" como uma
análise romântica que deturpava as idéias econômicas de Marx. Ver
correspondência entre J. Plekhanov e F. Engels, em Dos Caminhos
para o Socialismo...

F. Engels a N. F. Danielson

Londres, 15 de março de 1892'


Caro Senhor:
Sinto-me envergonhado pela demora desta resposta às suas amáveis
e interessantes cartas de 12 e 21 de novembro do ano passado.
Estive muito sobrecarregado de trabalho e ainda, para completar,
descobri que escrever à luz de gás faz mal aos meus olhos (os quais,
fora isto, servem-me muito bem). O excesso de trabalho e os dias
curtos do inverno hão de constituir, portanto, a minha justificativa.
Seu país passa agora por um período realmente importante, cuja
significação dificilmente pode ser exagerada. Pelas suas cartas, parece-
me que o Sr. não considera a nieurojai' atual um acidente, mas
sim um resultado necessário, um dos fenômenos inevitáveis que
acompanham o desenvolvimento econômico iniciado na Rússia no
ano de 1861. Na medida em que se pode julgar à distância, eu
também compartilho dessa opinião. No ano de 1861 começou na
Rússia o desenvolvimento da indústria moderna em escala digna de
uma grande nação. Ganhou corpo a convicção de que hoje nenhum
país pode alcançar uma posição de destaque entre as nações civi-
lizadas se não contar com indústrias que se utilizam de máquinas
a vapor e se não atender, pelo menos em grande parte, às próprias
necessidades de produtos industriais. A Rússia agiu de acordo com
esta convicção e o fez com muita energia. O fato de que se cercou
de uma barreira de impostos protecionistas foi perfeitamente natu-
ral, pois a concorrência inglesa forçou quase todos os grandes países
144
a esta política. Mesmo a Alemanha (onde une grande industrie de-
senvolveu-se com sucesso em uma liberdade de mercado qtiase total)
juntou-se ao coro e aderiu ao sistema protecionista, simplesmente
para acelerar o processo que Bismark chamou de Züchtung von
Milionãren.' Se os alemães escolheram esta orientação sem que dela
precisassem por uma razão maior, quem haveria de culpar a Rússia
por um comportamento que lhe foi necessário, já que só recente-
mente optou pelo novo curso industrial?
Creio que, em certa medida, pode-se comparar a situação do seu
pais àquela em que se encontra a França durante o reinado de
Luís XIV. Também lá, graças ao sistema protecionista de Colbert,
foram criadas condições favoráveis ao desenvolvimento da manufa-
tura. No decorrer de 20 ou 30 anos, formou-se a convicção de que,
nas circunstâncias dadas, a indústria manufatureira nacional somente
poderia ser criada às custas do campesinato. A Naturalwirtschaft
camponesa foi destruída e substituída pela Geldwirtschaft *; simul-
taneamente, e pelo mesmo processo, o mercado interno foi criado
e, ao menos por um certo período, foi quase inteiramente destruído,
devido à violência sem precedentes com que a necessidade econô-
mica abriu um caminho para si mesma. A isto somaram-se ainda
os maiores encargos em recursos monetários acarretados inevitavel-
mente pela introdução dos exércitos permanentes, tal como ocorreu
na Prússia em nossos dias, devido à introdução do serviço militar
universal. E finalmente, se acontecem uma ou duas más colheitas
sucessivas, intensifica-se em todo o país aquele estado de alarme
geral cuja descrição encontramos em Boisguillebert e no Marechal
Vauban.
Contudo, há também uma grande diferença. Quanto à influência
sobre o camponês, o pequeno produtor agrícola, possuidor dos seus
próprios meios de produção, a diferença entre a velha manufatura
e a grande industrie moderna não é menor do que a diferença
existente entre a velha espingarda de pederneira e de tambor liso
e a moderna carabina automática, calibre 7,50mm, do ano de 1892.
Ademais, se no ano de 1680 a agricultura em pequena escala era
ainda um modo de produção normal e a grande empresa agrícola,
uma exceção (cada vez mais freqüente, mas sempre ainda uma ex-
ceção), atualmente a enorme empresa agrícola mecanizada toma-se
a regra e assume cada vez mais o caráter de única forma possível
de produção agrícola. Assim, o camponês de hoje está condenado
à ruína.
O Sr. se lembra da carta do nosso autor a propósito de Jukovski',
onde aquele afirmou que se o seu país continuasse no caminho em
que entrou em 1861, a ohshtchina' camponesa estaria condenada à
ruína. Parece-me que é justamente o que ocorre hoje. É provável
que, pelo menos em algumas regiões, aproxima-se o momento em que
todas as antigas instituições do campo russo hão de perder o seu va-
lor para o camponês, convertendo-os em grilhões, exatamente como
145
ocorreu na Europa Ocidental em um passado distante. Temo que
sejamos obrigados a considerar a obshtchina um sonho de um pas-
sado que não volta mais e a contar, no futuro, com uma Rússia
capitalista. Assim, fica perdida uma grande oportunidade, mas não
há como escapar aos fatos econômicos. Contudo, é curioso que as
mesmas pessoas que infatigavelmente proclamam a incomparável
superioridade das primitivas instituições russas sobre as instituições
do Ocidente corrompido fazem tudo o que podem para destruir as
instituições primitivas e substituí-las pelas do corrompido Ocidente.
Mas se o camponês está condenado a transformar-se em proletário
industrial ou rural, então parece que a sorte do pomieshtchik' tam-
bém está decidida. Pelo que sei, esta classe está ainda mais endivi-
dada do que a camponesa, necessitando desfazer-se gradualmente
de seus bens. Entre os camponeses e os senhores parece crescer
uma nova classe de proprietários de terra, a classe dos kulaks ru-
rais e dos burgueses urbanos. Talvez sejam eles os pais da futura
aristocracia agrária russa.
A Nieurojai do ano passado trouxe tudo isto à luz do dia. Con-
cordo plenamente com o Sr. que as causas são de caráter exclusiva-
mente social. Quanto ao desflorestamento, é uma condição tão im-
portante para a existência da sociedade burguesa quanto a ruína
dos camponeses. Não foi evitado por nenhum país europeu "civili-
zado" e a América (e, sem dúvida, a Rússia) passa por ele atual-
mente.' Em minha opinião, o desflorestamento é, em sua essência,
tanto um fator quanto um resultado social. Mas serve também às
partes interessadas como um pretexto para diluir a culpa pelos in-
sucessos econômicos, atribuindo-os a causas pelas quais ninguém, ao
que se pretende, pode ser responsabilizado.
Acho que a Nieurojai não fez mais do que exibir o que até então
estava oculto. Mas isto acelerou muito a velocidade do processo.
Nas presentes colheitas da primavera, o camponês estará infinita-
mente mais fraco do que esteve durante as colheitas de outono.
Será forçado a recuperar suas forças em circunstâncias consideravel-
mente menos propícias. Na miséria, endividado até o pescoço, sem
gado, que iniciativa poderá tomar, mesmo nas localidades em que
conseguiu sobreviver ao inverno sem desfazer-se de suas terras?
Parece-nos que muitos anos passarão antes que os resultados dessa
calamidade sejam totalmente superados; e quando isso acontecer,
a Rússia será um país inteiramente distinto do que era em 1» de
janeiro de 1891. Para o nosso consolo, resta somente o pensamento
de que, no final das contas, tudo isso há de servir à causa do
progresso da humanidade.
Enviei-lhe, no outono passado, um livrinho, A Origem da Família,
quarta edição. Foi registrado e com o meu endereço de remetente.
Como não voltou, espero que o Sr. o tenha recebido.
Obrigado pelos diversos trabalhos e revistas que me enviou. Um
deles — o de Mendeleiev — é particularmente interessante.' Lamen-
146
to que o excesso de trabalho me impeça de dedicar-lhes toda a aten-
ção que merecem. O Sr. fará uma idéia do quanto estive ocupado
se eu lhe disser que desde o ano novo até o momento — e este é
normalmente o meu período mais tranqüilo — não consegui dedicar
um minuto sequer ao terceiro volume."
Suas congratulações foram encaminhadas a Paris."
Com saudações cordiais,
sempre seu,
P. W. Rosher"
Nenhuma notícia do nosso amigo comum? "

N. F. Danielson a F. Engels
Petersburgo, 12(24) de março, 1892'

Caro Sr.
Peço perdão por não haver escrito antes. Estou muito agradecido
pela Origem da Família... Foi-me entregue um mês depois de che-
gar a Petersburgo. Espero que o público russo tenha a oportunidade
de ler esse livro.
Devo-lhe muito pela carta de 15 de março, tão profundamente
interessante e provocativa, pois a escreveu a despeito de toda a
ocupação que lhe é imposta pelo crítico momento atual.
É nossa a culpa pelas misérias do presente. Orientamos todos os
nossos esforços para a "ampliação do comércio e das trocas". Com
efeito, o comércio já devorou os estoques de matérias-primas dos
camponeses — cereais, madeira, tecidos, lã etc, etc. Depois pusemo-
nos a "defender" as nossas indústrias capitalistas crescidas sobre
as ruínas do campesinato expropriado. O Prof. Mendeleiev encon-
trava-se na linha de frente desses protecionistas.
A comparação da nossa situação econômica com a da França dos
tempos de Colbert é muito justa e o Sr. enfatiza a diferença mais
importante: o desenvolvimento do capitalismo moderno. O Sr. diz:
"parece-me que muitos anos passarão antes que os resultados dessa
calamidade sejam totalmente superados; e quando isso acontecer
a Rússia será um país inteiramente distinto do que era em 1' de
janeiro de 1891. Para o nosso consolo, resta somente o pensamento
de que, no final das contas, tudo isso há de servir à causa do
progresso da humanidade".
A última frase não é totalmente clara para mim. Consideremos
os fatos. Com o objetivo de ampliar o mercado, exploramos ganan-
ciosamente a nossa terra; o clima é transformado, alguns rios secam.
Até a calamidade presente, "libertamos" cerca de 20-25% dos nossos
147
camponeses. Eles vagam pelo país à procura de trabalho. São en-
contrados na Sibéria, na Ásia Central, para além do Cáucaso, no
Brasil... O que fazem?
Entram nas fábricas? Ora, sabemos que o número de operários
nas indústrias modernas diminui consistentemente. Se, por exem-
plo, a Inglaterra, com os seus 44,75 milhões de máquinas de fiar,
ou seja, mais da metade das máquinas de fiar de todo o mundo,
e com os seus mercados externos, que abrangem mais da metade
do mercado mundial, emprega na indústria algodoeira apenas cerca
de 500.000 operários de diversas idades e ambos os sexos — quantos
serão necessários para abarrotar o nosso mercado interno? "En-
quanto compradores de mercadorias, os operários têm significação
para o mercado. Mas se aparecem como vendedores da sua merca-
doria — a força de trabalho — a sociedade capitalista apresenta
uma tendência a limitá-los ao preço mínimo".! Nossos camponeses
foram forçados a vender os seus produtos pelos menores preços
e os seus meios de subsistência diminuíram na mesma proporção.
Alcançando um nível de necessidades tão baixo, os camponeses que
abandonaram as terras comunitárias vão exercer pressão sobre os
operários das fábricas, etc. Em nossos pensionatos rurais, organi-
zados por pessoas de diversos tipos, a manutenção de uma criança
custa por mês de 76 kopeks a 1 rublo e a de um adulto, cerca de
1 rublo e 50 kopeks, ou seja, de 1 a 3 libras por mês.
É este o nosso ponto de partida, este o nosso mercado interno.
Enquanto isto, a tecnologia cresce entre nós num ritmo estonteante,
o que significa que o número de operários é muito limitado. É pela
expansão do seu mercado externo que os países capitalistas encon-
tram uma saída para as contradições indicadas pelo nosso autor.
Mas nós, onde encontraremos uma saída? Assim como não se pode
imaginar uma fábrica capitalista cuja produção seja destinada ex-
clusivamente ao consumo dos seus operários, tampouco parece pos-
sível a existência de um país capitalista que não disponha de um
mercado externo. Deste ponto de vista, o momento atual parece-me
ser de grande interesse e importância. A contradição assinalada pelo
nosso autor estende-se para o mercado mundial: cada nação deseja
tomar-se uma nação capitalista e cada nação mobiliza ao máximo
suas forças para conquistar o mercado de seus rivais. Sem merca-
do, não há capitalismo. E nós... nós também nos esforçamos para
conquistar mercados externos. Com que meios? Através de bonifi-
cações, ou seja, através da limitação dos nossos mercados internos.
Em suma, entramos na arena mundial no momento em que nossos
rivais são constrangidos aos maiores esforços, sendo obrigados a
se satisfazerem com uma baixa taxa de lucro. No ano de 1891, os
fabricantes de algodão ingleses exportaram o equivalente a cerca de
60 milhões de libras esterlinas, enquanto nós exportamos aproxima-
damente meio milhão. Na Europa Ocidental, os próprios capitalis-
tas perceberam que a educação científica e técnica desempenha um
148
importante papel nesta luta. Isto dá aos operários a possibilidade
de encarar conscientemente os assuntos públicos e de sair da crise
sem maiores problemas. Neste particular, nossa função é exclusi-
vamente negativa. Fechamos as portas das nossas instituições cien-
tíficas — por exemplo, o nosso único instituto agronômico, em
Moscou. Retroagimos em todos os sentidos. Eis por que não posso
compreender como, no final das contas, "tudo isto há de servir à
causa do progresso da humanidade". Antes que o sol se levante, a
rosa os seus olhos fecha.'
"Temo — diz o Sr. — que sejamos obrigados a considerar a
obshtchina um sonho de um passado que não volta mais e a contar,
no futuro, com uma Rússia capitalista. Assim, fica perdida uma
grande oportunidade, mas não há como escapar aos fatos econômi-
cos". Sem dúvida, mas há entre nós muitos tipos de fatos, de fatos
também econômicos. Enviei-lhe há alguns dias o 1? volume de Aná-
lise das pesquisas econômico-estatísticas na Rússia organizadas pelas
administrações municipais. O autor é V. V., ou seja, Vasilii Pavlovitch
Vorontsov. * Lá o Sr. encontrará uma grande quantidade de fatos
interessantes. Sabe-se que depois de 1861 a distribuição das terras
comunais foi até certo ponto freada, sobretudo nas regiões de terra
negra; contudo, ela recomeçou 20 a 25 anos mais tarde, mesmo em
aldeias em que a vida comunal era desconhecida. Ocorrem muitos
casos de proprietários particulares que haviam abdicado de seus
direitos em proveito da comuna, receberem, em seguida, suas par-
celas de terra, na qualidade de membros da obshtchina. Fatos desse
tipo parecem contradizer o que lhe escrevi anteriormente. Os fatos
continuam a ser fatos: cerca de 20 a 25% dos camponeses são for-
çados a procurar emprego fora de sua comuna. Os demais encontram
uma única saída para a situação (saída esta que se torna cada vez
mais difícil): uma eventual equalização das chances da luta. Temos,
portanto, duas tendências econômicas: uma delas é uma forma po-
pular de produção, que a maioria procura manter. Será que é tarde
demais para nos apoiarmos nas tradições tão profundamente enrai-
zadas das nossas comunas camponesas e na predileção que o povo
tem por elas, orientando a produção de acordo com a vontade
popular, ao invés de apoiarmos o capitalismo, que constitui a se-
gunda tendência econômica? Todos os nossos esforços têm sido
orientados para o desenvolvimento capitalista: investiu-se nisto algu-
mas centenas de milhões. Apesar de tudo, estes esforços foram abor-
tados. Exemplo: o ano de 1891. Não será o caso de mudar o objeto
de proteção? Mudar o "caminho"? Será que a indústria moderna
pode existir somente sob a forma capitalista? Assistimos à luta entre
dois tipos de produção: a camponesa, cujo desenvolvimento é deli-
beradamente contido, mas que tem todas as chances de estender
raízes mais profundas e, conseqüentemente, de ser mais duradoura,
e esta outra, puramente artificial, cultivada como numa estufa, de-
149
senvolvida às custas do campesinato, ou seja, da maioria do povo,
e a qual, apesar de tudo, continuamos a apoiar e a proteger.
Esta carta já está longa demais. Menciono somente que a dívida
dos proprietários de terra chegou, em 1' de janeiro de 1889, a 760
milhões, sendo 30,4 milhões correspondentes ao dízimo; isso sig-
nifica que 32,7% das propriedades territoriais particulares estão hi-
potecadas; nas províncias industriais do norte, de 1 a 26%, nas do
sul e da Pequena Rússia, de 42 a 65% (Chersonesskii, Charkov, Kiev).
Em 1" de janeiro de 1892, a dívida cresceu a 920 milhões, ou seja,
em cerca de 20% no decorrer de três anos. O número de dízimos
que se encontram hipotecados ainda não foi publicado.
Embora tenha escrito uma carta tão longa, sei que, em termos
práticos, esta minha discussão é gratuita, que o Sr. tem absoluta
razão: a minoria influente está por demais interessada em manter
o "status quo". E teoricamente? Para onde nos dirigimos? A venda
da 4» edição do "C"" está proibida. Será que contém algum texto
novo? A edição do livro do Sr. Kautski sobre K. foi interrompida.4
As memórias de Laf ' sobre o sogro serão publicadas em breve
em uma de nossas revistas.
Não há notícias de nosso amigo.*
Sinceramente seu,
N. Danielson

A verdade dos fatos está em


DE FATO

150
Notas
Carta de Vera Zasulitch a Karl Marx
1. Traduzida da versão polonesa Filozofia Spoleczna Narodnictwa Rosyjskiego,
Ksiazka: Wiedza, Varsóvia, 1965.
2. Trata-se dos "lavrovlstas" do ultimo período, do círculo de A. Taksis e
Murashkintsev. Essas idéias seriam mais desenvolvidas pelos "marxistas legais"
na década seguinte (nota do editor).

Carta de Karl Marx a Vera Zasulitch

1. Traduzido do original, francês, conforme edição de M. Godelier, cotejada


com a versão polonesa F.S.N.R., vol. II. Os colchetes no texto designam passa-
gens riscadas por Marx no original. Colchetes dentro de colchetes indicam cortes
dentro de cortes. Respeitando o caráter de rascunho do original, os tradutores
evitaram "melhorá-lo" com alterações estilísticas. A indicação "(N.M.G.)" ao final
de uma nota indica autoria de M. Godelier. Nem todas as suas notas foram
reproduzidas aqui e outras foram acrescentadas.
2. Esta frase foi muito corrigida. Antes era: "Assim o processo de que falo
transformou a propriedade privada e fragmentada em propriedade capitaUsta,
transformou uma espécie de propriedade em outra". (N.M.G.).
3. "Artel", organização comunitária de artesãos tradicional na Rússia.

Carta de F. Engels a N. F. Danielson

1. Original em inglês, traduzido da versão polonesa F.S.N.R., vol. II, p. 752 e


seguintes.
2. "Nieurojai", russo, "safra ruim".
3. "Züchtung von Milionaren", alemão, "procriação de milionários".

4. "Naturalwirtschaft" e "Geldwirtschaft", alemão, "economia natural" e "eco-


nomia monetária".
5. Referência à carta de K. Marx "À Redação de Otietchestviennie Zapisky", nov.
de 1877, em resposta ao artigo de N. K. Mikhailovsky, "Karl Marx sob o julga-
mento de J. Jukovsky", publicado no mesmo periódico em outubro de 1877.
6. "Obshtchina", russo, a comuna camponesa russa.
7. "Pomieshtchik", russo, "senhor de terras", grande proprietário pré-capitalista.

8. Na América vi isto com meus próprios olhos há quatro anos passados. Fazem-
se lá grandes esforços para resistir às conseqüências desse fenômeno e corrigir
os erros cometidos. (Nota de Engels).
9. D. J. Mendeleiev, Tolkovil tarif ili issledovaniie o razvitii promishlennosti
Rossii v sviazi s ieio obshtchim tamojennim tarifom 1891 g., Petersburgo, 1891-92.

10. Trata-se do terceiro volume de O Capital.


11. Congratulações enviadas por Danielson em carta anterior a serem transmi-
tidas para P. Lafargue, eleito para o parlamento francês.

151
12. P. W. Rosher, pseudônimo usado por F. Kngels.
13. Pergunta por G. A. Lopatln, conhecido revolucionário populista, fundador
da "Sociedade do Eublo", organização destinada à difusão de idéias e textos
socialistas.
Carta de N. F. Danielson a F. Engels
1. Original em inglês, traduzido da versão polonesa F.S.N.R., vol. II, p. 758 e
seguintes.
2. Citação em alemão no original.
3. O provérbio está em russo no original.
4. V. P. Vorontsov, importante economista do movimento populista, menos
radical que Danielson, preconizava uma linha de reformas chamada "minimalista".
5. O Capital.

6. Trata-se de K. Kautski, A Ciência Econômica de K. Marx, Stuttgart, 1887.


7. Lafargue.
8. Trata-se de G. A. Lopatln.

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