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Sexta-feira | 17 Maio 2019 | publico.

pt/culturaipsilon
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 10.616 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

O Sol
Voltou
e Luís
Severo
resplandece
Há dois anos chamámos-lhe
músico em ascensão.
O terceiro álbum, editado hoje,
é a confirmação plena
de um cantor inescapável
Acção Paralela Crónica
António Guerreiro António Roma Torres
Sophia, poeta ou poetisa? O princípio de i
complexo
N
o ano do seu centenário, Sophia de Mello mesmo grotescas, na literatura de arremedo, também
Breyner Andresen tornou-se nome de chamada literatice. Ou então começam por querer
biografia, graças aos ofícios da jornalista convencer o leitor de que a pessoa biografada não tem
Isabel Nery (e da editora A Esfera dos uma história, tem um destino. A partir daqui,

H
Livros). A biografia de escritores e figuras da preparamo-nos para o pior ou, por prudência, á dias, fui convidado a debater um
cultura nunca foi um género muito cultivado pousamos o livro para sempre. Não estou a insinuar filme no final da projecção numa
por estes lados, mas anuncia-se agora uma vaga de que esta biografia ofende a Sophia ou deturpa os sala de cinema. Apresentaram-me
vidas escritas por outrem que repõe a lógica editorial factos da sua vida. Do que li, parece-me antes que o como duplo especialista, em Saúde
nos caminhos que os mapas actuais sinalizam. Esta seu grande pecado é ser inócua: estão lá os factos da Mental e em Cinema. Essa
circunstância fez-me recordar que a decepção foi a vida de Sophia, mas não encontramos lá nenhuma duplicidade, apesar da conotação
experiência que obtive da maior parte das biografias Sophia. Escrever uma biografia não é o mesmo que negativa que geralmente se lhe atribui
que li, ou que abandonei a meio, de maneira que fazer a reportagem de uma vida. quando aplicada a pessoas, tem a sua
aprendi que não há outro género tão permeável à Há uma circunstância quase anedótica que ganha virtude, pelo menos quando é possível
fraude. E depois de ter lido um texto ensaístico de algum peso nesta biografia. Como sabemos, Sophia aproximar os dois pontos de vista. É,
Siegfried Kracauer, de 1930, que tinha por título A lançou, no seu tempo, uma interdição que, pelos metaforicamente, um efeito binocular que
biografia como forma de arte da nova vistos, ainda hoje vigora: não quis ser chamada possibilita uma visão com perspectiva.
burguesia nunca mais consegui ler nenhuma em “poetisa” porque a declinação do “poeta” no A iniciativa integrava-se no ciclo de cinema
sossego (deliciosa contradição: pacificou-me uma feminino lhe soava como uma menorização ou A Prevenção dos Maus Tratos na Infância e na
biografia do próprio Kracauer, feita pelo historiador mesmo uma mutilação. E, a partir daí, ninguém mais Juventude, partiu de Honório Novo,
italiano Enzo Traverso). (feministas ou machistas de diferentes credos, presidente da Comissão de Protecção de
Chegou-me às mãos a dita biografia, acabada de sair. filisteus ou nem por isso) ousou dizer que Sophia era Crianças e Jovens do Porto Ocidental,
Tentando contrariar o meu cepticismo, passo por uma poetisa. Poeta, sim, é o que toda a gente passou estendendo-se às demais comissões da
cima da introdução e avanço para o início da narrativa a dizer que ela é. De maneira que estamos sempre cidade, e teve o apoio da Câmara Municipal
biográfica, para assistir ao nascimento de Sophia (que obrigados a conviver com “a poeta” Sophia, o que através do vereador da Educação, Fernando
se espera de uma biografia ?). É uma decepção, nem sequer dá muito jeito quando o convívio é longo Paulo. No caso, o filme (de um conjunto de
nenhum biógrafo tem o direito de fazer nascer assim o e repetido, como acontece nesta biografia. É verdade três) era The Florida Project, de Sean Baker.
seu biografado: “As gotas grossas caem inclementes e que já houve um tempo em que “poetisa” soava a Rosário Farmhouse, presidente da Comissão
frias sobre a água baça e barrenta do mar do Norte. poeta menor. Sophia ainda foi desse tempo, o que Nacional de Promoção e Protecção de
Chove, como no dia em que Sophia nasceu, 6 de justificava a sua interdição. Mas, entretanto, muita Crianças e Jovens em Risco, deslocou-se ao
Novembro de 1919. Chove como durante a travessia coisa aconteceu, a carga negativa que algumas Porto e de certa forma amadrinhou o evento.
que Jan Andresen fez, entre a ilha de Föhr e a cidade palavras transportavam foi anulada, e a simples ideia No início do século passado, os anos vinte
do Porto, algures em 1840”. Este arremedo de de que dizer “poetisa” é diminuir o valor de quem é testemunharam, particularmente em
literatura, capaz de nos fazer corar de vergonha assim referido começa a ser aberrante e perpetua o França, um debate sobre a evolução do
quando o recitamos, é a morte — e não o nascimento — que já é mais que tempo de ser abolido. Não sinto cinematógrafo (termo caído em desuso) de
do objecto da biografia. Com alguma ingenuidade e que possa suscitar qualquer reserva ou preconceito curiosidade de feira até ser aceite como arte,
achando que, por intermediação, entrou em contacto tratar Sophia como poetisa; e sinto que continuar a dita a sétima. É verdade que muitas vezes se
com o Olimpo literário, a biógrafa começa logo por dizer “a poeta” é ceder à linguagem da discriminação falou de uma forma de expressão mais
querer escrever ficção literária. Saberá ela se choveu e persistir em hierarquias construídas com base abstracta que se alimentaria da experiência
de facto no dia em que Sophia nasceu? E como pode numa dominação masculina que, ao nível em que da música e das artes plásticas, mas a
dizer que também houve chuva a acompanhar a aqui nos situamos, já não devia existir. Muito mal vão verdade é que o cinema narrativo, mais
travessia que Jan Andresen fez até à cidade do Porto, as coisas se ainda existe e se o interdito lançado por próximo da literatura e do teatro, também
“algures em 1840”? As péssimas biografias começam Sophia, em tempos que já lá vão, continua foi aceite como arte.
quase todas com estas quedas presunçosas, ou interiorizado como uma lei gramatical. De uma obra de arte pode questionar-se se
não é apoucá-la o seu uso instrumental na
animação sócio-cultural e educacional, mas,
Livro de recitações sendo eminentemente uma arte popular, o
seu efeito agregador e estimulante pode
“Portugal está de braços abertos [para acolher os emigrantes]” gerar uma convivialidade que introduza o
António Costa, citado pelo PÚBLICO, 7 de Maio de 2019 pensamento participativo e o espírito crítico
e dialógico. Este foi o caminho percorrido
Esta imagem de um país condescendente, que alguém cometesse a imprudência de regressar pelo cineclubismo iniciado também nesse
aceita acolher com generosidade os seus filhos apenas porque levou à letra a metáfora do período e em solo francês.
pródigos e até anseia pelo seu regresso, inverte primeiro-ministro, iria certamente arrepender-se e Foi interessante um professor presente na
completamente as coisas e até constitui um insulto experimentar como são constrangedores esses audiência ter iniciado a sua intervenção
a quem deixou o país, seja por vontade própria e tais “braços abertos”. Não porque Portugal seja afirmando-se contente por esse debate estar
em grande felicidade, seja por circunstâncias pior do que muitos outros países, mas porque a acontecer numa sala como o Cinema
coercivas. Na verdade, a condescendência e a nenhum país é a comunidade de afectos Trindade, com história na cidade.
dádiva estão todas do lado de quem, tendo construída pelo discurso do respectivo Mas a verdade é que um filme de ficção,
abandonado o país, decide voltar. A metáfora do primeiro-ministro. Neste aspecto, ele ocupa como aliás uma peça de teatro em palco,
país como um corpo protector ou um colo não necessariamente o lugar da mentira e o melhor que pode ser legitimamente considerado um
funciona nem tem qualquer verosimilhança. E se se espera dele é que minta com parcimónia. modelo, como que geométrico ou, diríamos
melhor, sistémico, susceptível de figurar uma
realidade social complexa, no seu conjunto
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON de interacções e polaridades, movimentos e
DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO FOTO DA CAPA NEUZA RODRIGUES E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT tensões, que transcendem a simples
psicologia dos indivíduos. E até é possível que
a sua qualidade artística se possa ligar com a

4 14 18 20
Luís Severo Daniel São Luiz Francisco forma como consegue captar, nessa
Terceiro álbum Kehlmann Uma opereta Vidal construção, a própria realidade e a dimensão
confirma Conversa com para comemorar Procurar África humana que corresponde ao nosso olhar.
um músico hoje o escritor 125 anos em Lisboa Um tema como a violência de que são
imprescindível em Nova Iorque vítimas as crianças, seja a negligência e os
2 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
O que me passa pela cabeça
“Haverá vida depois de Moby Dick?”, interrogou-se o
escritor húngaro László Krasznahorkai. A pergunta era
pouco mais do que um bom pretexto para uma
incursão pela cidade de Nova Iorque. Com uma bolsa
atribuída pela New York Public Library, Kraznahorkai
decidiu seguir os passos de Herman Melville e chegou
a uma intrincada rede de conexões. “Manhattan,

incerteza e o pensamento
Melville, [Malcolm] Lowry, as três palavras giraram na
minha cabeça. Eu sabia que existia alguma ligação
entre os dois nomes e o lugar, mas não fazia ideia de
que haveria também um terceiro nome. Quando
descobri, já estava sujeito a uma forte força
gravitacional.” O escritor mergulha na cidade com as
suas influências literárias e artísticas, e o terceiro nome
de que fala é o do arquitecto e artista Lebbeus Woods.
Estão todos num belo livro assinado precisamente por
abusos físicos ou sexuais, mas também as simbólica de uma vigilância ineficaz); o László Krasznahorkai com as fotografias de Ornan
limitações dos excessos de protecção, próprio arco-íris, que foi uma coincidência Rotem. Chama-se The Manhattan Project, nome tirado
encerra naturalmente situações de feliz mas estava previamente no guião a exigir ao famoso projecto que esteve por detrás da
sofrimento e emergências de intervenção mais dinheiro se tivesse que haver recurso a construção das primeiras bombas atómicas durante a
que não podem deixar ninguém indiferente. efeitos tecnológicos, e quer simbolizar Segunda Guerra Mundial. Uma refinada provocação.
Mas a simplificação demasiada de realidades provavelmente toda a paleta de cores .
complexas e as intervenções impensadas e Na construção do argumento sobressaem Já tinha lido sobre este livro. Saiu em 2017 e é de uma
como que manualizadas arriscam diminuir a dois tipos de personagens: as vítimas, beleza inquietante. A preto e branco, com textos
possibilidade de encontrar soluções Moonee (Brooklynn Kimberly Prince, plena breves de László, cria uma poesia geográfica irresistível
particularmente nas situações mais de graça e boa disposição), uma miúda de para uma/um caminhante na cidade. Encontrei-o no
desesperadas onde o puzzle pode já ter muito seis anos, com uma incrível vitalidade e recentíssimo The Center for Fiction, que abriu este ano
poucas peças que permitam uma aparentemente resiliente a uma considerável na Baixa de Brooklyn. Fica junto à sede do Mark Morris
reconstrução da qual os protagonistas não ausência de vigilância parental, e Halley (Bria Dance Group e em frente do BAM, um dos espaços de
podem ser meros objectos passivos, a não Vinaite), uma jovem mãe desempregada espectáculos mais entusiasmantes e completos de
ser momentaneamente e em situação de obtendo proventos que permitam pagar a Nova Iorque — com teatro, dança, ópera, cinema,
grave perigo. renda em trabalhos irregulares de que nem conversas literárias. O edifício de 18 mil metros
Mesmo nas ciências robustas como a sequer protege a filha, com quem no entanto quadrados é da autoria da arquitecta Julie Nelson. De
física, o progresso obrigou à formulação de tem comunicação afectiva e forte); e os fora não se imagina o interior. Uma enorme e luminosa
conceitos como o princípio de incerteza ou a “protectores”, mais e menos eficazes, Bobby livraria, salas de leitura, auditórios e uma programação
teoria da relatividade, onde precisamente (Willem Dafoe, o Cristo de Scorsese e aliás invejável. Numa semana foi possível ouvir ali Salman
pontos de vista ou de observação nomeado para o Óscar de interpretação Rushdie, Karan Mahajan e Kate Zambrano. Reflecte a
contraditórios eram aparentemente secundária neste filme), o manager do motel, diversidade de que é feita a literatura americana. Quem
irresolúveis, mas ainda não encontramos o solícito e provedor, expulsando o pedófilo atende na livraria é capaz de responder a perguntas
equivalente quântico nas ciências sociais ou que se aproxima das crianças que brincam, bem difíceis e atender a pedidos complicados. Se não
nas decisões políticas, que não se suspeite mas mediando com objectividade os for na hora, tiram notas e garantem que resolvem
eivado de indesculpável fraqueza ou conflitos pelo apelo a comportamentos problemas. Da próxima vez, farei o teste.
repugnante permissividade. correctores dos residentes sem se substituir
A ficção e a arte podem ajudar a corporizar a eles, e os funcionários da Protecção da Sem planear, percebo que ando por novos percursos
o open dialogue que hoje precisamente Criança, zelosos mas distantes, não evitando arquitectónicos numa cidade em permanente
psicólogos, como Jaakko Seikkula, trazido outros perigos, que levam à ironia de Halley renovação. Não vou falar da sensação claustrofóbica
em Novembro passado a Lisboa pela (“Então sou eu que sou incompetente?”). que foi caminhar mais uma vez pelo Highline e ver
Fundação Romão de Sousa, tentam, numa Naturalmente o final do filme deixa mais como os edifícios comeram as vistas, e o que parecia
intervenção em rede e apostando mais num interrogações do que certezas consoladoras, um oásis de respiração transforma-se a passos largos
way of life que numa psicoterapia, introduzir um pouco à semelhança de Shoplifters, filme numa quase fenda de verde entre prédios e multidões.
no tratamento mesmo de situações tão posterior do japonês Hirokazu Koreeda, Saio mesmo junto à nova atracção arquitectónica de
graves como uma crise psicótica aguda. onde umama idêntica intervenção abrupta Manhattan,
Manhattan o Vessel,, uma instala
instalação em forma de
ão e
É mais fácil conseguir que o pensamento suspendede umama vida familiar que, mesmo sem casco de navio, ou jarra,
arra, mas que
qu também
complexo sobreviva em situações onde as laços dee parentesco e na simples parece
arece uma cocolmeia,
meia, da autoria do designer
a aut
emoções humanas e compreensíveis o solidariedade
dade dos desprotegidos,
esprotegidos, evidencia britânico Thomas Heatherw
eather ick. Tem 154
ameaçam, vendo um filme numa sala de factoress de resiliência que a necessária lanços
an os de escadas e, do to t po, pode-se
cinema e podendo depois conversar sobre protecçãoão do Estado
E ta o apesar de tudo não ter uma panorâmica
anorâmica do o rrio Hudson,
ele em grupo, do que limitados ao mundo garante.. aquela
ue a que
ue as torres aind
ain a deixa livre.
das palavras das discussões mais ou menos esmo modo poderíamos
Do mesmo
abstractas. encontrrarr um paralelo entre Bobby e Pode
ode ser de caminho para ar o MoMA, o
The Florida Project (já lançado em DVD no alitza Aparicio),
Cloe (Yalitza Apari io), a empregada
mpre da Museu de Moderna
e Arte Mo erna de Nova Iorque,
mercado português) é um objecto de ficção, doméstiica que, mesmo sem saber onde
on e está uma exposição
exposi ão que mostra os
feito aliás com um guião preciso, a que alva do afogamento
nadar, salva afogame to na praia
pr ia as trabalhoss iniciais
trabalh ini de Mi Naquela
e Joan Miró.
mesmo os extraordinários actores infantis se criançass que tem a cargo, em quarta-feira
quarta- eira não havia fila,
ila, ou seja, pouca
cingiram. Mas com grande maestria Sean Roma, filme também posterior gente
ente a tapar a vista dos quadros do mestre
os qua
Baker, um realizador do chamado cinema nso Cuáron, sobre uma
de Alfonso catalão.
ca alã Joan
oan Miró: Birth o of the World junta
independente, ancora-o na observação da infânciaa desprotegida pelos 60 quadros
uadros do pintoint r para explorar
realidade: o motel de cores vivas, próximo do mas emocionais de um
problemas ligação
a liga ão eentre a sua
Disney World de Orlando, na Florida (Florida divórcioo numa classe
lasse alta (o pintu
nt ra e a poesia e
Project refere-se ao nome provisório da fenómeno no atra
atravessa a todas
odas vai estar exposta
construção do parque), transformado em es), mesmo se
as classes), até 15 de Junho.
at
residência mais permanente do que não faltaa o afecto.
fecto. Quem puder,
temporária de uma população desfavorecida; Coragem m e acção
ac o passe por lá.
KEYSTONE-FRANCE/GAMMA-RAPHO VIA GETTY IMAGES

Bria Vinaite no papel da mãe com uma vida prática podem ser Não demora
instável, escolhida a partir do Instagram com cazes do que
mais eficazes muito a
dados biográficos semelhantes à própria abedoria e
muita sabedoria convencer-se
personagem; a montagem sincopada e vem ser
não devem de que nunca é
documental de personagens ocasionais, na afastadasas nas demais ver
cena do incêndio ou no casal de turistas soluçõess Miró.
brasileiros descontentes com o alojamento verdadeiras.
eiras.
que tinham equivocadamente escolhido; os
helicópteros que constantemente sobrevoam
porque a produção não teve condições de o
impedir (mas poderão legitimar uma leitura Po
Por Isabel Lucas
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 3
NEUZA RODRIGUES

Luís
Fechado sobre si mesmo, criou um álbum
que se abre à viagem e à contemplação.
Não deixa de ser o cantor do amor e da
cidade, mas agora é mais. Ascensão
completa em O Sol Voltou.

Severo em estado
de graça
O Retrato d
segurança via-o por ali a ci- dioactivo ou Éme. Cabe o fado dos sua geração, por criar canções sem
randar dia após dia. A en- poetas, como figuras tutelares suge- freio, alojando-as depois nessa pla-
trar para a sala onde estava ridas, cabe a vida esmiuçada a partir taforma pré-histórica chamada MyS-
instalado um piano, a aban- do centro nuclear de tudo: o eu e o pace. Enquanto Cão da Morte, en-
donar a sala, chave na mão, tu que se encontram. controu uma comunidade pela mão

jovem nu
chave entregue antes de sair O bordão ecoa, qual portão que se de João Coração, o autor de Muda
para as ruas quer fosse manhã cedo, abre. Deparamo-nos com a guitarra que Muda que o colocou na órbita
meio da tarde ou horas impróprias dedilhada, bucólica, e com uma voz da editora Flor Caveira. Lançou EP,
da madrugada. Saberá o segurança terna. O cantor do amor e da cidade, lançou dois álbuns e foi crescendo
do centro de artes Arquipélago — assim o ouvimos nos dois álbuns an- perante os nossos olhos, expondo as
Centro de Artes Contemporâneas da teriores, chegou a outro lugar. Segui- suas fragilidades e deixando antever
Ribeira Grande, na ilha açoriana de mo-lo desde os versos iniciais — “O as futuras virtudes. Há quatro anos,
São Miguel, que daquela rotina fo- sol já doira o teu cabelo, avermelha as confessava ao Ípsilon que Odissipo e
ram saindo músicas como A última tuas sardas, perfuma o alto da serra” Fim do Verão, editados em 2012 e
canção, Quem me espera ou Joãozi- —, quebramos com o crescendo emo- 2013, respectivamente, eram “mais
nho? Saberia ele que testemunhava cional que se seguirá — “Esquece o experimentais, uma sujeira do pior,
ali os novos passos de um diálogo de drama/ que o fim da tarde/ nunca vai e estavam mesmo a pedir que as pes- Cristina Branco,
si para si estabelecido por Luís Se- ser noite / que em cada peito/ há um soas não os ouvissem”. Foram o seu
vero, do qual resultou agora um ál- instante que canta liberdade”. período formativo. O Cão da Morte Filipe Sambado,
bum chamado O Sol Voltou? Não es- Primavera, estação de recomeços, estava quase a sair de cena para dele
pantaria que soubesse. Ou que dê de nova vida que floresce no seu ci- nascer Luís Severo. Manuel Palha e
por si, daqui a pouco tempo, a trau- clo interminável. Primeira canção do “Cara d’Anjo é o momento de vi-
tear essas canções que ali nasceram. álbum que Luís Severo lança hoje de ragem”, aponta Filipe Sambado [ver Coelho Radioactivo.
Afinal, Luís Severo já não é segredo surpresa em formato digital (a edição texto nas páginas seguintes], que
nenhum. Há dois anos, quando saiu física chega para a semana, dia 24 de integra a segunda comunidade, di- Quatro músicos
o seu álbum homónimo, classificá- Maio). Em palco será apresentado no gamos assim, em que Luís Severo se
mo-lo, de forma muito apropriada, B. Leza, em Lisboa, dia 22 de Maio, imiscuiu, formado pelos músicos e que se cruzaram
como um compositor e letrista em seguindo-se datas no Passos Manuel, bandas da Cafetra, da Maternidade
ascensão. Aqui chegados, podemos no Porto, dias 29 e 30, e no Salão Bra- e da Spring Toast reunidos nas salas com Luís Severo
reformular. Ascensão completa, eis zil, em Coimbra, a 14 de Junho. de ensaios do edifício Intrepress, no
Severo em estado de graça. Bairro Alto, em Lisboa. “Tinha feito falam ao Ípsilon
O Sol Voltou não foi gravado em Muda que muda Flamingos [a banda, autora de belís-
segredo, mas foi criação exclusiva- Há um vídeo na Internet bom de ver simos hinos pop estivais, que Severo da sua sensibilidade
mente sua (foi ele quem compôs, passados todos estes anos. Uma câ- partilha com Coelho Radioactivo],
quem escreveu, quem tocou tudo, mara segue músicos por camarins mas não fazia nada enquanto Cão da e acutilância, do seu
quem produziu), engendrada no iso- com história, assim o diz a antigui- Morte há alguns anos. Estava a aca-
lamento de casa, no isolamento da dade das paredes, assim o diz o es- bar a faculdade [licenciou-se em So- labor, da sua aura
residência açoriana, na reclusão sem pelho onde durante décadas gera- ciologia] e a sentir-se enclausurado
horas no estúdio da Cuca Monga, em ções de artistas terão lançado um em relação ao seu futuro”, recorda de “homem antigo”.
Alvalade, Lisboa, com quatro ouvi- último olhar sobre si mesmos antes aquele que seria co-produtor de Cara
dos disponíveis para aconselha- de subirem a palco. Ouvimos um d’Anjo.
mento, os do seu cúmplice musical bandolim (tocado por João Sarnadas, “Fez então uma daquelas apostas

Q
Diogo Rodrigues e os do manager o Coelho Radioactivo), o percussio- de tirar o sono, a de ficar no estúdio uatro músicos para um
Rodrigo Castaño. O Sol Voltou é Luís nista abana um chocalho, vemos o tempo que fosse preciso até ter um músico. Quatro pessoas que,
Severo a tentar perceber como enri- músicos que a câmara segue. O plano trabalho em que acreditasse convic- ao longo dos anos, se
quecer a sua música dentro das suas escala uma parede e a tinta rugosa tamente, um trabalho que poderia cruzaram com Luís Severo.
limitações, assim o diz, e soa a boa que a cobre. Vemo-la fixar-se no também ajudá-lo a ter um percurso Falámos com João Sarnadas,
modéstia. “Pus o disco a falar a lin- rosto que canta. Enfiado no chuveiro económico um bocado mais favorá- que assina como Coelho
guagem que tenho dentro da minha do camarim, Luís Severo canta de vel”. É então que o descobrimos ver- Radioactivo, seu primeiro cúmplice
cabeça”, diz depois da modéstia — e olhos fechados e o corpo há-de incli- dadeiramente: no travo clássico-mo- O Sol Voltou musical, com Filipe Sambado, que o
depois de ouvir o disco soa ainda nar-se para ênfase emocional (curio- derno da canção, portugalidade Luís Severo encontrou ainda Cão de Morte, com
melhor a constatação. samente, anos depois, as fotos de aberta ao mundo pop, na sensibili- Cuca Monga; Manuel Palha, guitarrista dos
Porque O Sol Voltou é a música promoção a Cara d’Anjo mostravam- dade lírica, no cuidado extremo com distri. Sony Capitão Fausto, que participou no
que sobejou de um “ano a tentar per- no também na intimidade de um a métrica e com a dicção, na capaci- Music álbum Luís Severo, e com Cristina
ceber do que queria falar”, forma de chuveiro). dade de ser cantor de intimidades Branco, a fadista certamente mais
encontrar nova “pertinência” depois Antes de a voz crescer em canto só partilhadas universalmente. do que fadista, para quem compôs
do ciclo fechado com Luís Severo — e som, corpo mais curvado ainda, Houve Cara d’Anjo e houve o Luís MMMMQ Alvorada e Minha sorte nos álbuns
como é pertinente este, de uma mãos a baterem palmas e a percuti- Severo que o revelou a um público Menina e Branco, respectivamente.
forma “mais contemplativa, menos rem a parede, antes de a canção ter- mais vasto, que levou as suas canções Compusemos um retrato do artista
ansiosa e impulsiva”, este álbum que minar e, som silenciado, o rosto se às rádios e que acabou destacado nas enquanto jovem que nunca foi
hoje nos chega. Porque a linguagem abrir num sorriso traquina — acabou listas de melhores do ano (foi o se- imberbe. Palavra de Filipe
deste homem que apareceu cenário a canção, caiu a máscara do perfor- gundo melhor álbum português na Sambado: “Conheci-o com 16 anos e
musical dentro com parcos 16 anos mer —, ouvimos um refrão que re- lista do Ípsilon). Houve, em paralelo, não era imberbe. Tem barba desde
e um outro nome — Cão da Morte, pete, catártico, “nós não valemos o estudo de fado com Ruy Vieira muito novo.”
chamava-se, mas não praticava mor- nada, eu acho-me lixo, tu achas-te Nery, consequência da grande pai- “É uma pessoa atenta, que vive
didelas fatais —, a verve deste músico lixo, nós não valemos nada”. Tem xão por, entre outros, Alfredo Mar- no mundo e que com muita
que, com Cara D’Anjo (2015) e, prin- nove anos esse vídeo. Foi feito por ceneiro e Argentina Santos — esta facilidade consegue responder aos
cipalmente, Luís Severo (2017), se Filipe Fernandes em camarins que, com direito a citação em Olho de medos dele, que são também os dos
tornou inspirado intérprete de um assim como os vemos ali, certamente lince, uma das canções do álbum ho- outros”, define João Sarnadas. “Nós
sentir geracional que a sua geração já não existem. Estávamos no Caba- mónimo —, houve a composição para temos a preocupação de falar do
não contém (é, afinal, algo mais ret Maxime, a histórica sala lisboeta genéricos de animação da RTP2 ou agora com a linguagem de agora e
vasto), é labor oferecido a gente agora engolida, como tantos outros de temas para programas de Herman ele tem transversalidade temporal”,
d’aqui e d’agora com o charme, o espaços da cidade, pela voragem tu- José. Houve os concertos a sucede- aponta Filipe Sambado. “Tem a
romantismo e a poética de cavalheiro rística. Luís Severo, então com 17 rem-se em bom ritmo, as canções a sensibilidade e a acutilância de
antigo (isto é um elogio, entenda-se). anos, dava pelo nome de Cão da fazerem o seu caminho, as pessoas a quem é inteligente. A eloquência
Essa linguagem, acrescentemos, de- Morte, baptismo retirado a uma can- chegarem-se a ele para lhe dizer que leva-me a pensar em cantores de
volve-nos o mundo bem pesado em ção dos Mão Morta e com o seu quê tal canção era a vida delas. outro tempo”, refere Manuel Palha.
canções onde cabem Fausto e Leo- de cómico perante a pequena figura Eis então a música a pagar a renda “Pertence a uma geração que se une
nard Cohen, outros cavalheiros anti- barbuda que o assumia, casaco bem de casa, o que, na sua visão do ao universo, que não está fechada
gos, onde pulsa o sangue bombeado vestido e lenço cruzado no pescoço. mundo, equivale a cumprir um so- nesta pequena condição geográfica.
no cenário musical português pela 2010 já lá vai, o Cabaret Maxime já nho. “Na minha adolescência, o meu As questões dele são pessoais, sobre
geração de Fachada ou João Coração não existe, o Cão da Morte está lá sonho nunca foi ser rico. O meu so- a diversidade, sobre o humanismo”,
e pela que se seguiu, a dos compa- longe. nho sempre foi ‘quem me dera daqui reflecte Cristina Branco.
nheiros Filipe Sambado, Coelho Ra- Severo começou, como tantos da a dez anos estar a fazer uma e Sobressai então a imagem de
6 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
RUI PALMA

do artista enquanto
mesmo”. O que antes poderia surgir
por “capricho” agora “nasce da
vontade de criar uma mensagem
que não exista no vazio, que ressoe
em alguém”.

unca imberbe
No ano passado, no Musicbox, no
concerto especial do Dia dos
Namorados montado por Severo,
Cristina Branco, sua convidada,
ficou “impressionadíssima”. Sabia
que a sala estaria esgotada, mas não
que iria deparar com “toda aquela
gente, muito, muito jovem, que
sabia as letras todas de fio a pavio”.
Remata: “Nesse momento,
alguém que fez o seu caminho
integrando-se em colectivos, mas
Praticamente não o vi.”
Manuel Palha, que o conheceu “É uma espécie de Angélica percebes a magnitude daquele
pequeno ser.” Cristina Branco
que definiu um percurso
“individual e singular”, diz
durante as gravações de Luís Severo
nos estúdios da Cuca Monga, Liddell, que diz que só se pode convidou Severo a colaborar
consigo quando se rodeou de um
Sambado, algo que se reflecte agora
na decisão de chamar a si toda a
editora fundada pelos Capitão
Fausto, ilustra-o com uma imagem falar de política através conjunto de autores de outros
contextos e gerações no álbum
responsabilidade pela gravação e
produção de O Sol Voltou. “Apesar
engraçada. “Não é um ditador, de
todo, mas é bastante transparente. do amor e da paixão” Menina. “Há uma intensidade nas
letras dele e uma pertinência social
de se ter juntado a algumas pessoas
ao longo dos anos [as da Flor
Caveira, Cafetra, Maternidade,
Está abertíssimo a que as pessoas
saiam fora do controlo dele, mas
fica a matutar às voltas no estúdio, a
Filipe Sambado em que me apetecia pegar”,
explica.
Cristina Branco insere-o numa
Spring Toast, Xita Records], nunca andar para trás e para a frente, a PEDRO MAIA/ARQUIVO
geração que “coincidiu com a
fez parte de uma cena.” deixar um buraco no chão como crise”, uma “série de miúdos que
Filipe Sambado, que se encontra nos desenhos animados.” Para estavam descontentes, que tinham
neste momento a preparar o Manuel Palha, “o momento da muito para dizer, que queriam
sucessor de Filipe Sambado & Os composição é muito pessoal e é de mais”. Topou-lhe também uma
Acompanhantes de Luxo, sob o título onde nasce tudo o que ele é”. singularidade. “Ele é um bocadinho
Revezo, acompanhou o processo Durante a gravação, recorda, como eu. É daquelas pessoas que à
desde o início. Conheceu Luís “estivemos a montar e a polir, mas, medida que o tempo passa se vão
Severo quando ajudou a produzir na verdade, o que estivemos a fazer, aproximar da sua juventude.
Muda Que Muda, o segundo álbum dado que as canções eram tão boas, Comparo-o com outro grande
de João Coração, em que Severo foi a tentar não estragar”. O que cantor, o Ricardo Ribeiro. São
participou. Depois disso, têm, afinal, as canções de Luís homens antigos. Um jeito de falar,
estreitaram relação em redor dos Severo? de se aproximarem dos outros…”
Passos em Volta, a banda da Cafetra, Foi há cerca de uma década. João Quando diz antigo, Cristina
e colaboraram em álbuns e EP um Sarnadas, então morador em refere-se a um certo classicismo que
do outro — Sambado foi, por Aveiro, hoje residente no Porto — se projecta. Não está sozinha na
exemplo, co-produtor de Cara
d’Anjo. Mesmo tendo em conta esse
integra a banda de palco dos
Glockenwise e a equipa da Favela “Comparo-o a outro grande constatação. Sambado fala de “um
certo tipo de humor” ou do
prazer no convívio, colaboração e
aprendizagem com os outros, há,
Discos —, estava em casa de João
Coração, em Lisboa, numa das cantor, o Ricardo Ribeiro. “fascínio por discos e filmes mais
clássicos”. Manuel Palha confessa
no reverso, uma procura solitária:
“O método de trabalho dele é
sessões musicais que o músico
promovia. Alguém toca à porta. São homens antigos” que, ao ouvi-lo, se sente como
perante “uma sabedoria superior à
meter-se no estúdio e desaparecer.
Com este disco foi a mesma coisa.
Coração diz-lhe uma coisa simples,
mas que, descontextualizada,
poderia dar ares de tirada
Cristina Branco idade”. Neste sentido: “Mesmo que
fale de alguns tormentos, há sempre
nele calma e uma certa ternura.”
mitológica: “Vai abrir a porta ao Cão PÚBLICO
Talvez tudo conduza à origem das
da Morte.” Ele, Coelho Radioactivo canções de Severo, àquele diálogo
(que editará este ano o sucessor de que se estabelece entre um eu e um
Canções Mortas, o seu álbum de tu, entes concretos transmutáveis
2014), e Luís Severo, Cão da Morte, para outros eus e outros tu. “É uma
aproximaram-se por afinidade espécie de Angélica Liddell
cronológica — eram os mais novos. [dramaturga e actriz espanhola],
Além do percurso em conjunto que diz que só se pode falar de
inicial, mantiveram uma política através do amor e da
proximidade que se estende dos paixão. É a sua ferramenta
Flamingos, a magnífica banda predilecta”, compara Filipe
autora de singles como Souvenir, ao Sambado. “A maneira de pensar as
facto de Sarnadas ser o autor da canções não é exactamente
capa de O Sol Voltou. alegórica, mas há nele a
Sambado deu-nos testemunho de necessidade de abordar os assuntos
alguém que “percorreu o tempo na perspectiva de um amor ou de

“O que antes poderia surgir necessário para encontrar uma


coesão que escondeu as fragilidades “Parece mostrar uma sabedoria uma relação, pode ser um amigo, a
mãe, o pai. É uma forma de se sentir

por capricho, agora nasce que tinha inicialmente na voz ou na


instrumentação”. João Sarnadas superior à idade dele. honesto nelas.”
Manuel Palha conta que,

da vontade de criar uma destaca a perseverança e o labor


como marca distintiva. “Ele mói Mesmo que fale de alguns enquanto trabalhavam canções no
estúdio, acontecia Luís Severo

mensagem que não exista muito as letras, não é uma coisa


imediata”, conta. “Uma coisa de tormentos, há sempre nele deixar as suas faixas de voz
inaudíveis. Fazia-o por insegurança,

no vazio, que ressoe em alguém” que gosto em Flamingos é a


seriedade. Estamos mesmo ali na calma e uma certa ternura” por não ter ainda certo que fosse
momento para se revelar. A voz

Coelho Radioactivo labuta. Só sai quando estamos


satisfeitos com a mensagem, com a
questão poética.” Olhando hoje
Manuel Palha ainda estava no espaço íntimo que é
exclusivamente seu. O eu que canta
ainda não estava preparado. O tu
para Severo, vê-o “muito mais que somos nós teria de aguardar
maduro e mais sóbrio, mas”, um pouco mais. Até agora,
acrescenta, “também vejo que a espera tem sido sempre
continua a ser exactamente o recompensada. M.L.
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 7
NEUZA RODRIGUES
coisa de que goste, em vez de estar aquilo. É como se tivessem ali um Severo carrega algum desencanto,
num trabalho em que passo os dias acto de confissão”, diz Cristina melancolia, vontade de olhar para
a pensar que o meu chefe é um otá- Branco, para quem Severo já com- dentro”, escrevíamos no Ípsilon há
rio”, diz ao Ípsilon com 26 anos bem pôs, dias depois do nosso encontro dois anos sobre o álbum que nos deu
contados, consciente do carácter com o músico [ver texto nas páginas Amor e verdade, Escola, Boa compa-
transitório desse sonho modesto que seguintes]. nhia e Olho de lince. Disco em que o
é o dele. A uma semana da edição de O Sol Voltou é uma expressão feliz amor, sempre o amor, tinha Lisboa
O Sol Voltou, reflecte: “Ainda tenho tendo em conta a aparição surpresa por centro e era sobressaltado por
muitos discos [em mim] e sei que do novo álbum e é expressão que se misérias do mundo com nome de
vou continuar a fazer discos. Quer adequa a este álbum em que as som- palavrões como precariedade ou
este disco corra muito bem ou muito bras da cidade perdem protago- gentrificação. Em O Sol Voltou, a in-
mal, não é o fim, é só mais uma ba- nismo perante a luminosidade do trospecção faz-se de olhos num
talha”. Pouco depois, acrescenta: “A espaço aberto. É um álbum de sóis mundo mais vasto.
minha continuidade profissional de- dourando madeixas de cabelo, de “O que senti sobre Lisboa foi que
pende do público. Enquanto tiverem tão lindas terras verdes, de geada e já cantei o que teria a cantar sobre a
paciência para ouvir as minhas can- de vento quente, de acácias e pores- cidade”, diz primeiro, para dizer,
ções…” do-sol, de amor em festa das flores. mais à frente: “Os momentos da mi-
Luís Severo a fazer novo caminho nha vida em que sinto mais luz, em
Pouco jeito para coisas sem deixar de ser quem é: um finís- que vejo mais sol, mais futuro, é
difíceis simo artesão do romantismo em quando saio da cidade”. Severo acre-
Maio de 2019. Caminhamos pelas forma de canção, um inspiradíssimo dita que cada vez mais gente “só vive
ruas do bairro de Alvalade, em Lis- trovador, não do tempo que passa, em cidades porque a vida assim o
boa. A nosso lado, Severo vai avan- mas do tempo que é. impõe”, porque o sustento é mais
çando com passo certo na sua incer- “Se Cara d’Anjo era, entre outras difícil fora delas. “Por sua vontade,
teza, enquanto mantém a conversa, coisas, sobre crescer, mais extrover- escapavam”.
alternadamente, com o jornalista e tido, insinuante e à flor da pele, Luís Cheguei bem, magnífica canção
com os restantes que os acompa- Faustiana, chula a assomar na volta
nham. Pára de tempos a tempos, da dança, fala precisamente desse
volta atrás, avança em passo apres- desejo e dessa impossibilidade —
sado enquanto contorna dois tran- “Terra verde tão linda, cheguei de
seuntes e aproxima-se de duas velho- noite e amanhã vou embora / (…)
tas sentadas num banco, importuna- Dá-me lucidez de minhoto e já não
das no descanso, mas pouco volto para a minha terra”. Fala tam-
chateadas com isso, a julgar pelo sor- bém daquilo que tem sido a vida de
riso e pelas festas. Qual versão mais Luís Severo desde que o álbum ho-
nova, mais desgrenhada e menos mónimo lhe deu o devido protago-
composta do eterno Hulot de Tati, nismo. “No último ano dei uns 50
Luís Severo faz por controlar a cadela concertos, o que comparando com
Nico — sem relação com a cantora de o Quim Barreiros é muito pouco, mas
fama Velvet Underground. Não sabe é um privilégio para um músico da
onde deixou a trela e isso podia ser minha dimensão em Portugal”. Esse
um problema, mas o bicho é natural- privilégio obrigou-o à existência nó-
mente bem-educado. “Não fiz nada mada de terra em terra, sem tempo
de especial para a educar, mas ela para as apreciar devidamente, essa
porta-se muito bem”, diz Severo, vida em viagem fez com que “conti-
mão segurando os costados da com- nuar a falar de Lisboa”, onde passou
panhia canina enquanto não abre o muito menos tempo, e o tempo que
semáforo. passou ocupou-o em estúdios ou em
Uma hora antes, quando faláva- casa a descansar, “fosse pouco para
mos do fado que adora mas de que
diz que nunca será cantor e da Socio-
“Ainda tenho aquilo que me tocou genuina-
mente”.
logia, na qual é licenciado, mas que
abandonou pelas canções, saiu-se
muitos discos O Sol Voltou vive entre o Campo
Santana de Acácia e o peso do pre-
com esta: “Na verdade, eu tenho
muito pouco jeito para coisas difí-
[em mim] sente sentido na exiguidade de um
quarto, dia passado na cama “à es-
ceis”. Di-lo e, após uma pausa de
milésimos de segundo para avaliar o
e sei que vou pera que uma luz desça no pijama”
(Rapaz). Entre isso e a exaltação:
efeito da frase, gargalha com von-
tade. Porque ele sabe, como nós sa-
continuar “terra verde tão linda”, canta ele na
ansiedade pela partida iminente, “só
bemos onze anos depois do nasci-
mento do Cão da Morte, quatro anos
a fazer discos. vou dormir quando os pássaros can-
tam”. “Manhãs, Inverno, noite, fim
e dois álbuns magníficos desde o
anunciar de Luís Severo, que a decla-
Quer este disco corra de tarde, todas essas coisas me afec-
tam especialmente, como afectam a
ração é, pelo menos, parcialmente
incorrecta.
muito bem ou muito todos. Há vários factores na natureza
que podem contribuir para que o
Os seus talentos em coisas comple-
xas como educação de canídeos po-
mal, não é o fim, meu dia seja melhor ou pior”, ex-
plica. Foi agora sua vontade incluí-las que dizem, como já escrevemos, “o
dem ser uma incógnita, já o jeito para
esse complexo ofício que é a escrita
é só mais uma também na sua lírica, forma, dize-
mos nós, de descentrar, de universa-
fim da tarde nunca vai ser noite/ que
em cada peito há um instante/ que
de canções, bem, esse é enorme. Sa-
bíamo-lo antes, temo-lo confirmado
batalha. A minha lizar, de desligar de um tempo espe-
cífico. “[O disco] Tem viagem, tem
grita liberdade”. Tem uma visão
adulterada da pop orquestrada dos
agora que chega o terceiro álbum,
ansiosamente aguardado por aque-
continuidade campo, tem cidade e tem também
um lado mais contemplativo”.
anos 1960, como se remisturada por
António Variações em noite de lua
les tantos, de norte a sul, que o abor-
dam no final dos concertos para lhe
profissional depende Tem mais. A ansiedade do pre-
sente a fazer caminho, matizada pela
cheia (a dos Iguanas, amigos da Ca-
fetra), no retrato de um quotidiano
dizer aquilo que referimos acima.
Que determinada canção não é sim-
do público. doçura da memória — “ser pateta é
ter um sonho/ vão rir dos males anti-
a dois que é Domingo. Tem Luís Se-
vero a fazer correr em paralelo o
plesmente uma grande canção:
“Aquela canção sou mesmo eu”, di-
Enquanto tiverem gos/ que o futuro desta terra/ já só
pode ser medonho”, ouve-se na ba-
ciclo natural e o da vida que é nossa.
Guitarra aberta em acordes lumino-
zem-lhe, e não espanta que o digam.
“A leitura que ele faz [das pessoas e
paciência lada do desencanto que é Rapaz,
solo de teclado de feira em tons néon
sos, deixa conselhos para estes tem-
pos predatórios: “Quem te quis dou-
do mundo] é verdadeira. Ele aproxi-
ma-se dos outros e das outras da sua
para ouvir as minhas a iluminar o encontro improvável
entre Tony de Matos e os Beach
rar a história/ em conquistas e vitó-
rias/ quanto te escondeu”, canta em
idade por aí. Porque é exactamente canções…” Boys. Tem aqueles versos belíssimos Joãozinho – “Vive sem pressa/ que há
8 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
Depois de Cara d’Anjo, Luís coisas neste mundo/ que se encantam no fim, “é o detalhe que abre mais dição habitual, como Sufjan Stevens, lado, a sua postura mais “contempla-
Severo tornou-se um dos mais só para ti”. possibilidades e é o detalhe que me José Mário Branco e, obviamente, tiva”, denota “tempo livre, coisa que
celebrados cantautores Estamos num sofá nos estúdios da massacra, mas estou contente por Leonard Cohen, um dos seus santos só os putos têm”. Fica ali a meio ca-
portugueses com a edição Cuca Monga, a editora/promotora co- ter tido a paciência para o trabalhar padroeiros. As marcas deste encon- minho, a pensar alto. “Não sei se ter
do álbum homónimo de 2017. fundada pelos Capitão Fausto. Foi neste disco”. Explica que sentiu ser traram caminho, por exemplo, para parado para me entregar à contem-
O Sol Voltou é o disco em que para aqui que Luís Severo se mudou fundamental trabalhar sozinho como Acácia — estão nos coros quase sin- plação seria, da minha parte, a coisa
procurou novos caminhos quando começou a preparar o álbum forma de se desafiar, depois dos ál- téticos, à I’m Your Man, o seu álbum mais madura a fazer”. Sorri nova-
homónimo de 2017, apoiado por buns em colaboração anteriores. favorito do canadiano, ou na forma mente, e é um sorriso calmo e se-
Diogo Rodrigues e por Manuel Palha, Ouve atentamente, contrapõe, como os acordes trabalham para en- reno.
guitarrista dos Fausto, e foi aqui que pergunta pela opinião do entrevista- caixar o tom grave da voz. A cadela já saiu e já subiu nova-
deu forma definitiva a O Sol Voltou de- dor em relação a uma ou outra can- No meio de tudo isto, há espaço mente ao sofá. Rodrigo Castaño entra
pois da residência na Ribeira Grande, ção. Fala da música de Steve Reich e para certezas, para dúvidas, para no estúdio. Traz café e uma reco-
onde começara a fechar canções e de Arvo Pärt que ouviu durante o entusiasmos, para gargalhadas, re- mendação. Não vale a pena vestir o
concluir letras — “estive muito sozi- processo, mas cujos traços procura- flexões sérias, contradições. Como casaco quando voltarmos à rua. Não
nho lá e não nego que esse momento remos em vão no resultado final. Fala quando diz que O Sol Voltou é um há nuvens no horizonte, a luz invade
foi muito importante”, refere. de “malta” cujas edições acompanha disco em que tentou sair um pouco tudo, o calor chegou forte e de sur-
Nico alapa-se no sofá e Luís Severo sempre — Filipe Sambado, Éme, Sa- mais de si próprio, o que “talvez seja presa. É oficial. O sol voltou. Deixe-
discorre sobre o processo criativo: muel Úria —, e daqueles que são au- uma coisa mais adulta”. Por outro mo-nos agraciar por ele.
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 9
Armand
Night
Sketches
Papooz
Half Awake
e Ulysse,
os dois da
Records

MMMMM

vida airada

São
frequentemente
incluídos numa
nova vaga da
música popular
francesa, embora
não acreditem
nela — talvez
porque já
estejam
demasiado
ocupados a fazer
música feliz para
o zeitgeist
sombrio. Há
pouca gente a
falhar com tanto
charme como os
Papooz.

Francisco
Noronha
10 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
JEAN PIERROT

H A próxima grande
á umas semanas atrás, tra- que fazemos esta espécie de rock clás- sumindo cada um deles o papel de lítica e na violência, mas não na mú-
zíamos aqui Alice et Moi sico com um twist de jazz, mais meló- anjo e demónio (ironicamente, é sica. Mas o punk, que é o meu movi-
como um dos mais estimu-
lantes rostos de uma nova cena musical, dico… Somos músicos de jazz falha-
dos! [risos]”. Conheceram-se, recorda
Ulysse quem encarna o diabrete).
A certa altura, ainda antes de o
mento favorito, está morto... De
qualquer forma, estou muito mais
vaga da pop francesa, res-
ponsável por uma reaproxi- acredita a Armand, “através de amigos comuns
que estavam a fazer uma fanzine de
anjo inverter a ordem moral das coi-
sas, a rapariga, desnuda, é disposta
próximo da cena do ‘Be yourself’ do
que da cena dos hippies de plantar
mação do público francês à música
cantada na sua própria língua — “a cara-metade dos música e uma revista de poesia. Nós
não fazíamos parte disso, mas andá-
como travessa para o banquete dos
dois mancebos. “Come on, man…”,
uma árvore e alimentar o planeta…
Se vamos todos morrer no fim, por-
música francesa a gostar dela pró-
pria”. Não cantando em francês, os Papooz, vai ser vamos com eles, íamos para o parque
fumar erva e começámos a escrever
desabafa Armand, “já alguma vez
olharam para um bom bife?! Deve
quê andar com flores na cabeça? [ri-
sos] Por isso é que gosto tanto do Lou
Papooz são, porém, um dos mais
entusiasmantes grupos da cena fran- inglesa. “Por causa canções. Mas só pela brincadeira, do
tipo ‘Dois tipos que vão pescar jun-
ser a frase mais anti-MeToo que já
disse na vida, mas o que quero dizer
Reed e dos Velvet, sinto-me mais
perto deles do que do ideal de salvar
cesa no presente — e se, ao ouvirmos
Alice, lhe reconhecíamos os ecos de do ‘Brexit’. Se o tos’… Depois colocámos umas demos
na Internet e chamámos a atenção de
é que um bom bife é bonito e apeti-
toso! A beleza é implacável! A beleza
o planeta. Porque eu acho que a na-
tureza humana é mesmo estúpida”.
Birkin ou France Gall, aqui, eles che-
gam de paragens outras: anglo-saxó- ‘Brexit’ realmente algumas editoras”. E não foi uma edi-
tora qualquer. Depois do EP Ulysses
é como uma flor: não tens que lidar
com ela de certa forma, é uma flor
Confrontamo-lo, porém, com o
actual recrudescimento de todo um
nicas, negras, brancas também.
Americanas, acima de tudo: Blue- acontecer, milhares And The Sea, editado em 2014 em for-
mato independente, seria a Sony (em
bela, nada mais interessa.É tão estú-
pido este puritanismo do YouTube,
intenso activismo social, político,
ambiental, se não estamos a viver,
eyed soul, então, filão que, muito em
voga nos setentas, parece estar hoje de pessoas vão ter conjunto com a editora parisiense
indie Half Awake) a carimbar o seu
uns tipos de Silicon Valley que dese-
nham trotinetes a controlar estas
em parte, uns novos sixties. “Sim…
Mas depois há a Internet. Todos estão
a atravessar um certo momento re-
vivalista, do qual os Papooz, mas algo contra o qual primeiro álbum. Ann Wants to
Dance foi o single que pôs o seu LP
merdas... Foi a minha namorada que
realizou o vídeo, a actriz é namorada
tão conectados, parecem cyborgs, a
informação disponível é tanta... Este
também os Soft Hair, os Silk Rhodes
ou os Young Gun Silver Fox, são be- lutar. Se pensarmos Green Juice (2016) no radar, fenómeno
de popularidade “viral” indissociável,
do Ulysse!… Se eu namoro com uma
rapariga linda, por que raio não a
é o problema. Perdemos, de facto,
todo o sentido de decência. Acho
líssimos exemplos (curiosamente,
todos eles duplas masculinas). na grande arte, ela claro, do seu castiço videoclip, no qual
Armand e Ulysse, os dois da vida ai-
posso filmar? É só um cartoon parvo
que fizemos para nos divertirmos! A
mesmo que o mundo está fodido…
mas faço música feliz! As pessoas pre-
“Sim, sim! Se estivéssemos na
América, seríamos etiquetados como está profundamente rada, andam à volta de uma miúda
loira numa sequência de peripécias e
maioria das pessoas vai ver o vídeo
e criticá-lo à luz do MeToo, mas de-
cisam de ser verdadeiramente arre-
batadas, mas hoje é muito compli-
blue-eyed soul ou soft rock! Mas tal-
vez seja demasiado específico para
nós… Eu não me considero suficien-
enraizada na raiva revezes (reminiscências de todo um
património cinéfilo francês, claro:
Jules et Jim, Les Valseuses…).
pois vai ao Pornhub masturbar-se…
What the fuck?! É tão injusto”.
Lembramo-nos novamente de
cado estar profundamente triste ou
feliz, porque o feed no Instagram e na
televisão não pára. Quando a música
temente bom para ser um verdadeiro Alice et Moi, que tão desassombrada- me toca, é como um orgasmo a per-
cantor soul! Isto somos nós a tentar God save the “Brexit” mente reclamava a atenção do ou- correr-me a espinha, sinto-me hu-
ser negros… mas falhando em parte! Um fenómeno que, por altura desses vinte/”espectador” em Filme Moi mano outra vez. Acho que esse é o
(risos)”, diz-nos Armand Penicaut (n. despreocupados dias na Grécia onde (para a sua voz, rosto, corpo), mo- propósito da música, o de nos fazer
1989), metade dos Papooz ( junta- O que significa, por arrasto, não filmaram o vídeo, os dois estavam mento em que aproveitamos para sentir conectados com a humani-
mente com Ulysse Cottin, voz e gui- cantar no francês materno, nada, longe de imaginar. Uma ingenuidade voltar ao actual momento da cena dade. Antes dos livros, as pessoas já
tarra), guitarrista que durante a ju- porém, que lhes tire muito o sono. diferente (não menos humorística, musical francesa. Ao contrário do que cantavam em África e contavam his-
ventude estudou obcecadamente o “Melodicamente, quando escrevo porém), portanto, daquela com que se tem dito, Armand não partilha da tórias. Precisamos de histórias para
flamenco do seu ídolo Paco de Lucía. em francês, penso sempre na Bar- agora se insinuam em You And I, sin- ideia de que se esteja a viver uma viver, não precisamos de Instagram
Fala-nos a partir da sua Paris natal, bara, no Aznavour, e sinto que não gle do novo álbum Night Sketches. “nova vaga” digna desse nome: “Para stories! Antes, existiam grandes pen-
oito da noite cá, mais uma lá, horas sei compor uma boa canção pop. “Trabalhámos apenas durante a mim, uma nova ‘cena’ é a new wave, sadores que escreviam livros extraor-
de começar a fazer o jantar. Os pre- Mas fiz uma canção com uma banda noite para este disco, dois meses a todas aquelas bandas de Manchester dinários. Por vezes, não eram boas
paros na cozinha não o impedem de, muito fixe, os Polo & Pan, chamada fazer canções todas as noites, foi e Nova Iorque que aparecem ao pessoas, mas não é o standard moral
enérgico, puxar da memória, na qual Canopée, e foi um grande hit… Eu muito intenso. O Ulysse fuma muito mesmo tempo. Ou o grunge. Não há que aqui interessa. Hoje em dia, um
o som da Califórnia tem um lugar consigo cantar em francês, baby!”, erva, por isso foi tudo muito desfo- uma ‘cena’ porque não há 10 bandas idiota no café a que vais de manhã faz
muito próprio: “Eu tenho um tio ri-se Armand com a mesma boa dis- cado… [risos]”. a fazer o mesmo tipo de som e com stories no Instagram e funciona como
americano que vive na Califórnia e posição que toda a proposta (sonora, Quando as gravações de Night letras em francês. Uma vez mais, é a uma tribuna. É doentio”.
os meus pais mandavam-me para lá visual) dos Papooz emana. Sketches terminaram, 12 canções ha- cena da Internet: cada um pode fazer A próxima grande cena musical,
todos os Verões. Ele era um grande “Quando se escreve numa determi- veriam de ficar de um total de quase o que lhe apetecer. Estás online, co- acredita a cara-metade dos Papooz,
fã de rock ‘n’ roll. Eu vi o Dick Dale nada língua, tem que se pensar sobre 20. “Escolhemos as que achámos que locas lá a música e as coisas podem vai ser, por isso — só pode —, inglesa.
ao vivo três ou quatro vezes! Mas as suas especificidades, há uma forma tinham uma conexão entre si, e que funcionar ou não”. “Por causa do ‘Brexit’. Se o ‘Brexit’
toda a música da Califórnia: Eagles, melódica de a abordar. É um tipo de vinha de um som ligado à noite de E poderão funcionar ao ponto de a realmente acontecer, milhares de
Doors, tudo isso. Mais tarde, a Inter- exercício diferente: escrever inglês é Paris. A night in the city… algo luxu- música cantada em francês vir a recu- pessoas vão ter algo contra o qual lu-
net tornou-se a minha biblioteca. como ir ao ginásio, o francês é uma riante e sexy. Era essa a vibe que que- perar o prestígio que a hegemonia do tar. Se pensarmos na grande arte, ela
Hoje, já não precisas de um irmão maratona. Como as palavras não têm ríamos, meio idealística, algo com inglês fez esquecer nas últimas duas está profundamente enraizada na
mais velho para te dizer: ‘Esta é a o mesmo som, a melodia que estás a que sempre sonhámos mas a que décadas? Armand, sempre de pensa- raiva. Na era Thatcher, as melhores
melhor música do mundo!’”. escrever não vai ser a mesma… As nunca fomos: as grandes noites do mento ágil e articulado, deixa a sua bandas do mundo estavam na Grã-
Foi ela, a Internet, a grande culpada palavras são, de certa forma, um ins- Palace Club da Paris dos anos 80, o impressão: “A música francesa já é Bretanha, era uma loucura! De certa
pelo distanciar da geração de Armand trumento. O cliché ‘baby’ atinge uma Studio 54 em Nova Iorque… O nosso respeitada o suficiente por causa da forma, é preciso haver opressão para
da música pátria, essa que, sensivel- certa nota, mas, se disseres ‘bébé’, amigo Adrien Durand produziu o ál- cena electrónica, o french touch, há se ter grande música. De outra forma,
mente até aos anos 80, antes do take fica flat”. Se, na música tocada, a har- bum todo — ele é um mestre do toda uma cultura de movie soundtrack está tudo bem, aburguesamo-nos,
over cultural protagonizado pelo in- monia entre Ulysse e Armand não groove, mas odeia sintetizadores! Ori- que é muito francesa. Mas nunca se- ‘Let’s have dinner’ e não há mais
glês, era objecto das maiores atenções podia ser mais sólida, visualmente, o ginalmente, tínhamos uns 10 synths remos os melhores na música porque nada… Mas sabe, o espírito francês
por todo o mundo (Aznavour, Gains- contraste dos dois dá-lhes uma graça diferentes por canção. Estava uma a melhor língua para uma canção é o está um bocado lixado. Nós tentamos
bourg, Barbara, etc.). “Em miúdo, imensa, quase de cartoon (não são o confusão, uma atrocidade! [risos] inglês! Os ingleses são sempre avant- sempre evitar aquilo a que chamamos
ouvia muita música clássica porque Bucha e Estica, mas o efeito é igual- Para mim, a melhor frase que alguém garde, está no ADN deles. Todos os de “esprit de sérieux”, sabe? A coisa
os meus pais tocavam piano. O meu mente divertido): um altíssimo, es- já disse sobre compor uma canção é movimentos musicais que acontece- de não nos levarmos a sério… é algo
pai cantava ópera e na igreja, no carro guio e moreno, o outro loiro e mais do Neil Young: ‘Man, if you want to ram na Grã-Bretanha foram uma re- muito enraizado na cultura francesa.
ouvíamos Edith Piaf, Jacques Brell… atarracado, gag físico que os seus vi- write a song, ask a guitar’”. Pedimos- volução poética contra o esta- Se se for a algum lado a jantar, não se
Os pais do Ulysse estavam mais a par deoclips enfatizam. lhe que volte ao videoclip de You And blishment. O punk nunca poderia ter deve falar de política, de filmes,
das modas, os Beatles, Rolling Stones, “Conheci o Ulysse há mais de 10 I, no qual, à semelhança do ménage a nascido em França porque não está de música… só fazer piadas. É o jan-
toda essa grande pop. E a bossa nova! anos atrás, quando começámos a ou- trois de Ann Wants to Dance, o par no nosso ADN acreditar que algo es- tar perfeito para o francês médio”.
A mãe dele é uma grande fã de bossa vir jazz juntos. Na altura, o jazz não ronda novamente uma miúda de doi- tranho pode ser grandioso! Os fran- Não é, como já se viu, o de Armand,
nova! Com a Internet, a minha gera- era uma cena fixe, toda a gente ouvia rados cabelos (Klara Kristin, namo- ceses são católicos, associá-lo-iam que acaba de servir o seu macarrão
ção cresceu a ouvir os Strokes, White techno. Mas nós estávamos a beber rada de Ulysse e uma das actrizes logo ao Diabo! [risos] Mas nós temos no prato. “Estive a conversar consigo
Stripes, essas coisas… é por isso que vinho, a ser super franceses e a curtir protagonistas de Love, famigerado a mania que matámos o rei, não é? ao mesmo tempo que cozinhava, mas
não cantamos a chanson”. Thelonious Monk! (risos) É por isso filme de Gaspar Noé), mas agora as- [risos] Somos revolucionários na po- ficou com óptimo aspecto!”.
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 11
Mark Fisher
e o futuro que no
continuamente
P
rolífico, lúcido e original, tica cultural, o ensaísmo, o jorna- Para alguns, o inglês Mark Fisher (1968- 2017) era
ensaísta, professor e confe- lismo, as ciências sociais, a cultura o mais importante teórico cultural em Inglaterra
rencista, ele sabia que es- popular, a música e as questões so- da última década, muito influente principalmente
tava tudo ligado, arte e polí- ciopolíticas — e que as prateleiras entre as novas gerações
tica, Freud e J.G. Ballard, dominantes tendem a esquecer por
Jurassic Park e Burial, Mar- preguiça, embora, ao mesmo tempo,

GEORG GATSAS
garet Thatcher e Batman ou colapso essa singularidade lhe seja devol-
financeiro e música electrónica de vida, para o exaltar ou criticar.
dança. Uma multiplicidade de sinto- A multiplicidade de elementos
mas organizados, de forma intricada que lhe despertaram a atenção (dos
mas discreta, numa consistente vi- livros de Margaret Atwood aos filmes
são de um mundo contido pelo ca- de David Cronenberg) eram apenas
pital, perante o qual procurou alter- pontos de partida para criar refle-
nativas, formas de articular a zanga, xões sobre o nosso tempo. A música
comprometer-se politicamente e em particular (de Kode9 a Tim
reconstruir uma nova consciência Hecker, de Drake a Bowie), da mais
de classe. minoritária à de massas, serviu-lhe
Eis o inglês Mark Fisher. Para al- de espelho para pensar os efeitos do
guns, o mais importante teórico cul- capitalismo nas identidades, na eco-
tural em Inglaterra da última década, nomia ou na política. Era um pensa-
muito influente principalmente en- dor livre. E por isso também algo
tre as novas gerações. Morreu há solitário, apesar de ter pertencido
dois anos, suicidou-se aos 48 anos, ao importante Cybernetic Culture
e a sua marca nunca pareceu tão Research Unit (CCRU), do Departa-
presente como hoje. Recentemente, mento de Filosofia da Universidade
foi editado K-Punk: The Collection de Warwick, que se dedicava à cria-
and Unpublished Writings of Mark ção de híbridos teóricos, olhando
Fisher – 2004-2016 (Repeater, sempre para a realidade de uma
2019), primeiro de três extensos forma transversal.
volumes em torno de textos publica-
dos no blogue K-Punk ao longo dos Dilemas actuais
anos, com inéditos à mistura, entre Na compilação de ensaios que orga-
resenhas de livros, discos ou filmes, nizou, The Resistible Demise of Mi-
textos políticos, entrevistas e outro chael Jackson (Zero Books, 2009), é
tipo de ensaios. Como escreve, no abordada a ascensão e queda de Mi- Interessava-lhe o alcance político de um Älme
prefácio, o crítico Simon Reynolds, chael Jackson, pondo-a em relação
“ao estabelecer conexões entre cam- com diversos episódios do capita- de Kubrick ou a desolação da música de Burial
pos remotos, ele podia identificar a
metafísica de um programa de TV,
lismo tardio pós-queda do Muro de
Berlim. No magnífico conjunto de
como ponto de partida para reÅectir sobre os
as precisões psicanalíticas latentes ensaios Ghosts of My Life: Writings vazios das sociedades contemporâneas. Há
numa canção dos Joy Division ou as on Depression, Hauntology and Lost
ressonâncias políticas de um filme Futures (Zero Books, 2014) analisa dois anos morria o teórico inglês Mark Fisher,
de Kubrick.”
Em Portugal, é praticamente des-
os medos e nostalgias de cada época,
a partir dos espectros da literatura,
um dos mais brilhantes pensadores do nosso
conhecido, ao contrário, por exem-
plo, do que sucede na vizinha Espa-
arte ou música, numa abordagem
que lhe foi comum — as mudanças
mundo. Agora foi editada uma série de ensaios
nha, onde os seus livros estão tradu- traumáticas provocadas pelo neoli- que escreveu como K-Punk.
zidos e os seus artigos são motivo de beralismo, a partir da forma como
debate na imprensa de referência. É este se regista na cultura popular,
daquelas figuras que nos custam a
enquadrar — entre a academia, a crí-
12 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
face a uma sociedade de consumido-
res solitários e deprimidos incapazes Vítor Belanciano
os é
Várias obras de Mark Fisher,
entre as quais K-Punk: The
Collection and Unpublished
Writings of Mark Fisher
— 2004-2016, o primeiro de
três volumes em torno de textos
publicados no blogue K-Punk

negado
de imaginar alternativas ao sistema
dominante. Mais uma vez, trata-se
Jameson e Slavoj Žižek. O último é,
aliás, o autor do prefácio de Capita-
tcher — “Existem indivíduos, ho-
mens e mulheres, e existem as famí- Antes de morrer, vivia na Europa com a União Sovié-
tica antes da queda do muro de Ber-
de um conjunto de textos em que
explora as conexões entre cultura
lism Realism: Is There No Alterna-
tive? (Zero Books, 2009), a obra de
lias. Não existe essa coisa da socie-
dade” — para Fisher, muitos dos Mark Fisher estava lim. Nada parecia acontecer. Havia
uma espécie de paralisia, na qual
popular e política, identificando um
ambiente em que passado ou futuros
Fisher que lhe deu mais reconheci-
mento. “Um paciente trabalho teó-
problemas individuais resultavam
de causas políticas e económicas. E, a trabalhar num novo toda a gente fingia acreditar que
nada estava a acontecer. Uma nega-
nunca alcançados (em reflexões que
tanto podem começar pela música
rico orientado em procurar um fu-
turo que nos é sistematicamente
como tal, a sociedade, como um
todo, deveria saber providenciar livro que tentava ção da realidade. E, de repente, o
muro caiu.
de James Blake como pelos filmes de
Christopher Nolan ou Tarkovsky) se
negado, naquele que é o melhor dia-
gnóstico dos nossos dilemas ac-
soluções sociopolíticas para os pro-
blemas. E dava como exemplo a contrariar Um novo tipo
de humanidade
misturam, reconhecendo-se na no-
ção do filósofo Franco “Bifo” Berardi
tuais”, escreveu Slavoj Žižek .
Escrito sob os efeitos da crise eco-
individualização e despolitização da
saúde mental, argumentando que a a sensação Poucos dias depois de ter morrido,
de “lenta anulação do futuro.”
“O problema do nosso tempo é que
nómico-financeira iniciada algum
tempo antes, é uma reflexão devas-
desintegração dos serviços de saúde
pública, e a quebra dos laços de so- de declínio colectivo foi lançado The Weird and The Ee-
rie (Repeater, 2017), talvez o seu
a palavra futurismo já não tem qual-
quer ligação com o futuro que espe-
tadora em que indaga, de forma sis-
temática e rigorosa, os efeitos per-
lidariedade, perante o neolibera-
lismo, deixavam as pessoas abando- que não parou livro menos conseguido, e prepa-
rava um novo — Acid Communism,
ramos”, escreveu. “Temos que inven-
tar um novo futuro.” Na sua visão,
versos da ideologia do livre mercado
sobre a esfera social. O “realismo
nadas. Mero “lixo psicológico.”
Ele, que ao longo dos anos lutou de descrever nos em que iria propor um novo tipo de
humanidade, um novo pensamento.
esse sintoma não era novo, mas a In-
ternet veio acelerá-lo, consequência
capitalista”, assinala, “consiste
numa atmosfera global que condi-
contra a depressão, não negava as
manifestações neurológicas do pro- seus textos. “Hoje não temos futuro, apenas pe-
quenas actualizações ou simulacros
da simultaneidade temporal ao al-
cance de um clique. Passado e pre-
ciona a produção cultural e a regu-
lação do trabalho e educação: é uma
blema, as alterações químicas ou as
eventuais influências das experiên- O paradoxo é esse. de futuro”, escreveu ele, acen-
tuando o presente como mera ac-
sente confundem-se. A percepção de
criadores e consumidores também.
barreira invisível que impede o pen-
samento e a acção autênticas.” Ao
cias na infância, mas interessava-lhe
discutir também as condições socio- Apesar da sensação tualização circular onde, por mais
movimento que exista, nada acon-
O tempo cultural sincrético produz
um fenómeno de desgaste na música
longo dos anos, vivemos numa de-
pressão colectiva, sustenta, e em
políticas que permitiam essas desor-
dens — a insegurança no trabalho, a de perda de muitos tece. É como na nossa relação com
os telemóveis: ficam obsoletos e
ou cinema. Antes existia essa ideia de
que cada década havia promovido
parte porque o neoliberalismo se
tornou dominante apenas por ma-
precarização, o desemprego ou a
ansiedade, a depressão e desespe- dos seus ensaios, substituímo-los por um novo, que
oferece algumas melhorias, mas
formas inovadoras e estilos de vida
alternativos. A partir dos anos 2000,
nifesta desistência. Mark Fisher
observou essa resignação nos seus
rança que resultam dessas situa-
ções. “Pelo contrário, uma socie- existe um lado que, no essencial, é quase o mesmo
que o anterior, até que o próximo
argumenta, paira a sensação de ob-
soletismo, como se só existissem es-
alunos, nos filmes ou na música que
nos tenta distrair da depressão, mas
dade que é capaz de garantir alguma
estabilidade económica permite revitalizante fique obsoleto, perpetuando-se o
ciclo. Mudamos de telemóvel, nunca
pectros ou fantasmas do passado, na
esteira da assunção definida pelo fi-
lósofo Jacques Derrida. Na política,
que apenas a mascara, não a dissi-
pando. E vislumbrou isso também
na ascensão de Trump ou de nacio-
que as pessoas estejam mais relaxa-
das, que se desliguem de preocupa-
ções financeiras e sejam capazes de
em muitos deles mudando verdadeiramente. Em vez
de um futuro com algum esplendor,
temos um mero presente de peque-
algo análogo sucede. nalismos, como se fossem sinais de planear o seu futuro. Isso não erra- nas actualizações.
Depois da queda do Muro de Ber- fantasias revivalistas. dicará todos os sentimentos negati- Dois anos depois da sua morte, não
lim, o capitalismo tardio apresenta- E, já agora, também vislumbrou vos, mas estes não serão activados se pode dizer que o “realismo capita-
se como a única via possível. “Trinta essa resignação em alguma esquerda. ou exacerbados pelo neoliberalismo lista”, tal como foi descrito com luci-
anos deste sistema, convenceram- Apesar de esquerdista, criticou-lhe capitalista”, argumentava. dez por ele, se transformou muito.
nos de que não existem alternativas a ausência de criação de novos hori- Antes de morrer, estava a traba- Mas também é impossível não vislum-
e que a mudança não é possível”, zontes, a forma de agir e de se orga- lhar num novo livro que tentava brar que aquilo que antes era incon-
escreve, acabando por cunhar o nizar, como se tivesse abandonado contrariar a sensação de declínio testado e seguro da sua hegemonia
termo “realismo capitalista”, para a solidariedade social, as experiên- colectivo que não parou de descre- começa a abrir brechas por todos os
descrever a crença no mundo oci- cias partilhadas, as lutas comuns, ver nos seus textos. O paradoxo é lados. Há cada vez mais gente a per-
dental, de que, por mais crises que perdidos em combates fragmenta- esse. Apesar da sensação de perda ceber que algo tem de ser feito. Talvez
aconteçam, o velho sistema político dos, reagindo de forma difusa, sem de muitos dos seus ensaios, existe estejamos a testemunhar o início do
e económico capitalista é a única uma verdadeira consciência colec- um lado revitalizante em muitos de- fim de um ciclo, “mesmo que ainda
opção viável. “É mais fácil imaginar- tiva. E, para ele, esse era o desígnio les. Em 2015, escrevia Democracy não tenhamos os contornos definidos
mos o fim do mundo do que o fim do mais importante: o colectivo. Is Joy, comparando o momento de de tudo o que está a acontecer”, diria
capitalismo”, como glosaram Fredic Ao contrário do que postulou Tha- indefinição e de simulacro que se Mark Fisher.
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 13
H
á uns dias, Daniel Kehlmann dinária” escrita em alemão: “Na- de acordo com o The New York Times, nada mais do que o cenário do seu tinha tudo para saber apreciar os elo-
ainda caminhava de auscul- bokov disse aos seus alunos que, se foi o segundo livro mais vendido no mais recente romance e, garante, o gios, e agora é muito bom sentir que,
tadores nos ouvidos pelas queriam escrever prosa, deveriam mundo em 2006. Kehlmann tinha 29 melhor: Tyll. aconteça o que acontecer, já fiz
ruas de Nova Iorque. Andava ler muita poesia. Hölderlin ou Goethe anos e ganhava o estatuto de estrela Já lá vamos. Antes, Kehlmann deixa aquilo. Tenho um livro que está no
a ouvir as obras de Proust em fizeram coisas tão belas com o ale- da literatura. Não apenas na Alema- clara a sua relação com o sucesso da cânone! Claro que o cânone pode
audiolivro. Nunca tinha lido mão que são uma inspiração tre- nha, mas também na Europa. juventude. Acha que não o tornou mudar, mas escolhi ver esse sucesso
e optou por escutar Em Busca do menda.” “É maravilhoso ter escrito um ro- arrogante. A sua relação com a fama como uma grande sorte e um enorme
Tempo Perdido, aproveitando o dia- Daniel Kehlmann é um prosador. mance de que as pessoas gostam tinha, aliás, uma referência. O pai, um privilégio.”
a-dia na cidade para entrar na cabeça Romancista, dramaturgo, contista, tanto, que foi lido por tanta gente. E famoso encenador e director de tea-
do escritor francês e acompanhar a ensaísta, ouviu o seu nome ser mun- uma das coisas que mais me agra- tro, viu a sua carreira desabar ao não O riso
toada da sua escrita com todos os dialmente soletrado quando, em dam é que faz parte do currículo das fazer cedências no que era um dos Natural de Munique, onde nasceu
sentidos despertos. “Foi maravi- 2005, publicou A Medida do Mundo escolas por toda a Alemanha; já fo- seus princípios, indo contra as novas em 1975, Daniel Kehlmann cresceu
lhoso”, comenta num inglês de sota- [Presença, 2007], um romance his- ram escritos 12 livros sobre ele. Está vanguardas alemãs; para ele, o texto entre Viena e Berlim, seguindo o per-
que alemão, a língua com que cres- tórico, sátira à volta da vida de dois no cânone, o que é estranho porque estava acima de tudo. A hecatombe curso do pai, e tem nacionalidade
ceu e na qual escreve. “Adoro a língua cientistas célebres — o geógrafo Ale- não sou assim tão velho”, diz Kehl- paterna serviu-lhe para relativizar o alemã e austríaca. Dizer que a sua
alemã, não a trocaria por outra. Há xander von Humboldt [1769-1859] e mann, 14 anos depois, com uma gar- que A Medida do Mundo lhe trazia. obra é o resultado dessa síntese, é
muitos clichés sobre ela, dizem que é o matemático Carl Gauss [1777-1855] galhada aberta. Está sentado à mesa Isso, e a quase invisibilidade dos seus conferir-lhe uma dimensão redutora.
uma língua feia. Charlie Chaplin faz — unidos por uma obsessão: medir o de um restaurante cubano em West livros anteriores. Kehlmann começou Partindo da tradição das duas litera-
uma paródia a isso no filme O Grande mundo. Os dois encontram-se du- Village, o bairro de Manhattan onde a publicar aos 22 anos, Mahler’s Time, turas, construiu uma identidade re-
Ditador, mas há uma descrição muito rante uma viagem, em 1828, e com vive desde que foi dar aulas para a um “livro muito sério”, sublinha, re- conhecível por si mesma e A Medida
bonita de [Boris] Pasternak; conta eles, Kehlmann, evocando o classi- Universidade de Nova Iorque, a NYU. ferindo-se a si nesse tempo como al- do Mundo mostrava que o seu talento
que ao ouvir um homem falar alemão cismo de Weimar, explora o sentido Escolheu aquele lugar para a con- guém que considerava que o lado não era convencional. Ele era um
pensou: ‘Eu sabia ao que soava o ale- de deslocamento, temporal e espa- versa por ser perto de casa, “não mais lúdico da sua personalidade não alemão de língua alemã a usar o hu-
mão, mas não sabia que podia soar cial, numa paródia aos chamados muito caro”, ter comida “saborosa” devia passar para a literatura. Segui- mor para dissecar algumas feridas
assim’. E depois diz-nos que o ho- valores da alta cultura. O livro foi um e não ser preciso reservar mesa. En- ram-se quatro livros. “Não interessa- da Alemanha, da Europa, mas tam-
mem que ouviu falar era Rilke.” Kehl- bestseller imediato, primeiro na Ale- trou de mãos nos bolsos e sem aus- ram a ninguém”, afirma. Com eles bém do mundo. “Não consigo escre-
mann gosta de se saber herdeiro manha, e, a partir daí, no mundo, cultadores. A sua leitura actual é aprendeu, contudo, que, se olhava a ver nada que não tenha esse lado
dessa tradição e lembra um conselho tornando-se o segundo romance ale- uma não-ficção, um livro sobre o vida com humor, isso deveria passar humorístico. Não ensaio isso, mas
de Vladimir Nabokov depois de afir- mão mais vendido de sempre, atrás modo como a Alemanha se reergueu para o que escrevia. “Em 2005, acontece sempre. Mesmo num con-
mar que há muita literatura “extraor- de O Perfume, de Patrick Süskind, e, depois da Segunda Guerra Mundial, quando saiu A Medida do Mundo, eu texto de terror, não resisto.”

Isabel Lucas,
em Nova Iorque
Daniel Kehlmann tinha 29 anos
quando ganhou estatuto de estrela
na literatura alemã com A Medida do
Mundo. Aos 44 anos, o escritor acaba
de publicar em Portugal Devias
Ter-te Ido Embora, história breve a
namorar com o cinema, e aperitivo
para Tyll, o romance que se espera
por cá. A sua obra vai ser
homenageada na edição deste ano
da Noite da Literatura Europeia.

“Porque é que
todos guardam
mensagens de texto
comprometedoras?”
14 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
Numa entrevista que deu em 2014
ao escritor americano Jonathan Fran-
çadas. É preciso entreter, ser irónico.
Mas se o nosso pai for um padre pro- “É maravilhoso ter muito parecido com Goethe. Eles
eram muito próximos, e antes de ir
zen para o site Salon, Kehlman dizia
que os alemães tinham uma relação
testante do século XIX, não há lugar
para piadas. Acho que é a grande di- escrito um romance para a América do Sul, ele foi, de al-
guma forma, uma espécie de embai-
neurótica com o humor. Estava a ex-
plicar o facto de um romance cómico
ferença entre a Áustria e a tradição
alemã.” Além da língua, Daniel de que as pessoas xador de Goethe; ao usar Humboldt
como personagem cómica, quero que
como A Medida do Mundo não ser lido
na Alemanha como uma sátira. Será
Kehmann gosta de se pensar também
herdeiro dessa ironia e chama Goethe gostam tanto, que foi represente toda a tradição do classi-
cismo de Weimar.”
então o humor de Daniel Kehmann
uma espécie de desvio à tradição
à conversa para mostrar que o oposto
do humor também existe; tão oposto lido por tanta gente. Aplicada ao fantasmagórico, ao
suspense, ao thriller, a ironia ganha
alemã? “É mais comum do que as
pessoas pensam. Sobretudo na tradi-
que chega a ser irónico. E explica:
“Ele é o grande escritor da língua E uma das coisas uma dimensão muito peculiar em
Kehlmann. Ele não é um escritor en-
ção austríaca, e talvez essa seja uma
influência”, admite. E dá exemplos.
alemã, o nível de beleza dos seus poe-
mas e das suas peças é incrível. Mas, que mais me graçado, mas alguém atento a lado
mais insólito da existência humana,
“Há um dramaturgo fantástico do
século XIX, Johann Nestroy; é apenas
por outro lado, não tinha nenhuma
relação com o humor, nunca foi en- agradam é que faz aos detalhes que conferem perplexi-
dade e inquietação diante do real. É
famoso na Áustria, mas é um génio
cómico; mas mesmo escritores do
graçado, mas há um lado divertido no
modo como ele fala e se comporta. É parte do currículo também o escritor que se aborrece
com as sagas tradicionais acerca de
modernismo clássico como Karl
Krauss. Ele é muito divertido. E Musil!
até engraçado como não tem o mí-
nimo de sentido de humor.” das escolas por toda famílias, e que, a propósito disso, de-
clarou que escreve romances familia-
A ironia de [Robert] Musil pode ser
muito divertida; Musil, quando que-
Essa ambivalência reflecte-se em A
Medida do Mundo. “A ambivalência é a Alemanha. Está no res para gente que não gosta de ro-
mances familiares. E é alguém que
ria, conseguia ser um escritor cheio
de humor; há momentos muito diver-
sempre uma óptima perspectiva para
escrever um livro, é sempre bom ter cânone, o que é gosta de usar a História como maté-
ria-prima de escrita. Tudo caracterís-
tidos em O Homem Sem Qualidades.
Creio que se deve a uma sociedade
uma posição ambivalente, pouco
clara, quando se está a escrever um estranho porque não ticas que manteve e solidificou nos
livros que se seguiram a A Medida do
moldada à volta de uma corte. Grande
parte da tradição alemã é moldada
romance. Sinto essa ambivalência em
relação à tradição clássica alemã, ad- sou assim tão velho”, Mundo: três romances, dois volumes
de ensaios, quatro de contos e quatro
pelo legado dos padres protestantes.
Na corte, as pessoas têm de ser engra-
miro-a, mas vejo-a como nada inten-
cionalmente divertida. Humboltd era diz Kehlmann peças de teatro. Com eles, coleccio-
nou elogios, prémios e tem a obra
traduzida por todo o mundo.
Daniel

ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES


Em Portugal, além de A Medida do
Mundo, estão publicados Fama (Pre- Kehlmann
sença, 2010) e, agora, chega Devias fotografado
Ter-te Ido Embora (ed. Bertrand), em Nova
uma novela de suspense sobre um Iorque, onde
escritor de argumentos televisivos vive
que vai parar a um lugar estranho. A
novela acaba de ter publicação em
Portugal e no cinema será protagoni-
zada por Amanda Seyfried e Kevin
Bacon, com realização de David
Koepp. Não há ainda data para a es-
treia. “Eu queria escrever um livro
pequeno. Estava a trabalhar no meu
último romance, Tyll, e interrompi
porque queria escrever esta histó-
ria”, diz Kehlmann sobre um trabalho
singular na sua carreira, uma ideia
com génese num género de filmes de
horror chamado Found Footage. “En-
contra-se a câmara de alguém e ela
contém uma gravação. A pessoa que
segurava a câmara é a pessoa da his-
tória; geralmente alguma coisa má
acontece a essa pessoa e é por isso
que a câmara é encontrada. Queria
fazer qualquer coisa assim; não se
pode fazer Found Footage num livro,
mas pode-se fazer um equivalente:
um Found Notebook [encontrar um
bloco de notas]. E o facto é que eu
estava a escrever a história de um
Found Notebook num bloco de notas,
à mão”, conta, revelando que foi a
forma a definir parte do conteúdo do
livro. Quem poderia ter um bloco de
notas onde anotar tudo o que se
passa à volta? Um escritor. Estava
encontrado o protagonista.
A comparação entre Devias Ter-te
Ido Embora e o ambiente dos filmes
de David Lynch é imediata. Assim que
o livro foi publicado na Alemanha,
isso foi sublinhado, bem como a ges-
tão do suspense muito próxima de
Shining, de Stanley Kubrick. Kehl-
mann não nega alguma influência,
mas diz que as principais inspirações
vieram da literatura. “A Maldição de
Hill House [1957], de Sherley Jackson,
e aquela que para mim é uma das
grandes histórias de horror de todos
os tempos The Willows [1907], de e
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 15
Algernon Blackwood. Pensei muito
nesse livro, porque ali o horror não
rente dos romances. “Escrever um
romance passa por tentar muitas
teratura americana, tão notável nos
últimos 45, 50 anos, 60 anos; os es- “O que vejo agora não pertence a nenhum grupo, nem
nunca o fez. Ian McEwan é um escri-
vem de fantasmas. Há fantasmas, mas
os fantasmas estão lá porque o tempo
coisas no início e estarmos prepara-
dos para as deitar fora se não resul-
critores foram sempre mais margi-
nalizados do que na Europa. Nunca acontecer com tor muito importante para mim, mas
ele pertence apenas a um grupo de
já não funciona da mesma maneira.”
Se o tempo já não é fiável, então o
tarem. Faço isso. Tenho muitos falsos
começos, capítulos que não uso. Mas
tiveram um estatuto tão importante
na sociedade. Alguém como Sartre muitos amigos amigos.” Kehlmann refere-se ao
“grupo” de que fazem também parte
mundo transforma-se, deixa de haver
lógica para as coisas e esse, segundo
no último terço de um livro longo,
muitas decisões já foram tomadas e
teria sido impensável na América. E
isso não é uma coisa má, porque tem e atrapalha e desfaz Martin Amis, James Fenton, o já de-
saparecido Christopher Hitchens, e o
Kehlmann, é o verdadeiro horror.
O lugar do livro é um lugar que
podemos avançar e então é muito
prazeroso. Ian McEwan disse que no
levado a muito bons livros e a gran-
des romances. A literatura ameri- as suas famílias próprio Rushdie. “Nunca foram um
grupo em termos de uma estética.
existe numa falha, espacial e tempo-
ral. E nele há uma família na sua ro-
último terço já aprendemos como
escrever aquele livro. Não um livro,
cana dos últimos 50 anos pode ensi-
nar-nos que o facto de os escritores ou as suas vidas Acho que isso já não existe.”
Existe Daniel Kehlmann, alemão,
tina doméstica. “Quando temos esse
material meio irreal e fantasmagó-
mas aquele livro específico, e quando
aquele está pronto é preciso apren-
serem mais marginalizados não é
muito bom para a auto-estima dos domésticas austríaco, europeu. O que é isso, en-
tão? “Acho que viver na América me
rico, o mundo humano tem de ser
muito real, como a relação com a
der a escrever outro. Acho que esta
é uma excelente maneira de pôr as
escritores mas parece não ser mau
para os livros. Na Alemanha, o escri- tem quase sempre ajudou a definir-me mais como eu-
ropeu. Estou certo de que sabe do
mulher e com a sua filha. Lembrei-
me aí de outro romance, O Aperto do
coisas. Aprende-se sempre muito,
mas para aquele livro, e depois é pre-
tor continua a ser olhado como al-
guém no topo da sociedade.” a ver com que estou a falar. As diferenças entre
a Europa e a América são grandes, e
Parafuso [1898], de Henry James.
James diz que o mais assustador,
ciso aprender para o livro seguinte.
Isso já não é tão verdade para os li-
Daniel Kehlmann é um desses es-
critores. Sorri. “Do meu ponto de mensagens quanto mais tempo se passa aqui,
mais percebemos isso.”
quando se tem uma criança, é que a
criança esteja em contacto com o
vros curtos. Nesses, pensamos neles,
temos uma ideia de como os fazer e
vista egoísta, isso é muito bom, as
pessoas continuam a achar que ser de telemóvel Recorre, mais uma vez, à situação
social e política como auxiliar de re-
horror. Tento dar a volta ao parafuso
— falando com Henry James —, di-
podemos realmente fazê-la. Se qui-
sermos comparar, é como um sonho,
escritor é uma coisa muito impor-
tante, que o que um escritor tem a ou de Facebook flexão. “Perante esta América, ser
europeu de alguma forma anima-me.
zendo que o mais assustador para
um pai é o facto de ele estar aterro-
uma fantasia de um escritor. Num
livro longo é tudo muito mais com-
dizer é muito importante, mas não
é o equivalente a fazer-se grande li- [risos]. A ideia Não é que a Europa esteja num
grande momento, mas não estou as-
rizado por ter à volta fenómenos
terríveis e precisar de fazer com que
plicado; tem de haver uma disciplina
e muitas decisões. E é muito refres-
teratura.”
Volta à experiência da leitura e de de que as pessoas sim tão pessimista. Acho que a União
Europeia se tornou mais forte depois
a criança sinta que nada de mal se
está a passar. Há que estar constan-
cante fazer uma pausa enquanto se
escreve uma coisa longa.”
vida noutro momento. “A literatura
americana tem mais livros importan- estão sempre do ‘Brexit’ e vemos alguns dos parti-
dos mais antieuropeus a não querer
temente a mentir à criança sobre o
facto de não a conseguir proteger. A O escritor e uma palavra
armadilhada
tes nos últimos 50 anos do que a
alemã. O que está a acontecer na a enganar-se umas às sair da UE porque viram a confusão
britânica. Por outro lado, pense-se
realidade humana do livro é essa.”
É mais uma história de família, ac-
tual, com uma atenção ao modo
Tyll, o romance grande em que estava
a trabalhar quando fez uma pausa
Europa é que os escritores estão a
ser mais marginalizados, de uma
forma muito semelhante ao que sem-
outras fascina-me “ nos emigrantes que chegaram à Amé-
rica no fim dos anos 40; acharam que
estavam a chegar ao futuro por causa
como as novas tecnologias moldam para Devias Ter-te Ido Embora, ficou pre aconteceu na América. A grande do desenvolvimento tecnológico e
os comportamentos humanos — outra pronto pouco depois. Saiu na Alema- alteração é que as pessoas lêem me- das infra-estruturas. E agora? Essas
marca de Kehlmann. “O que vejo nha em 2017, já teve edição em Espa- nos. Em todo o lado. Daqui a 30 anos estruturas parecem estar a ruir. O
agora acontecer com muitos amigos nha e na Holanda e será publicado talvez ninguém consiga viver só metro, os aeroportos, as ruas, as pon-
e atrapalha e desfaz as suas famílias nos Estados Unidos em Fevereiro de como romancista. Talvez como ar- tes. E um escritor tem de saber ler os
ou as suas vidas domésticas tem 2020. “Acho que é o meu melhor li- gumentista. Isso é triste, mas não grande conhecimento da literatura sinais. Os americanos continuam a
quase sempre a ver com mensagens vro”, afirma. Porquê? “Talvez por ser significa que deixe de haver grandes americana e muita cumplicidade li- achar que vivem no país tecnologica-
de telemóvel ou de Facebook [risos]. um romance de guerra tive de chegar romances, porque já foram escritos terária e artística com o mundo an- mente mais avançado! Isso já não é
A ideia de que as pessoas estão sem- a um maior nível de empatia. É um grandes romances com os autores a glo-saxónico. Pergunta-se pela iden- verdade. Mesmo os liberais nova-ior-
pre a enganar-se umas às outras fas- livro com muitas personagens e há terem outros meios de subsistência. tidade, sobretudo enquanto criador. quinos acreditam nisso.”
cina-me. Não digo que são todas, mais empatia face ao sofrimento, ao Posso ser um lobista e dizer, como Chama-lhe pós-modernista, mas será Está na América com a ambivalên-
claro. E não é só o fenómeno de as que lhes acontece, do que havia nos os meus amigos, que isso é terrível, que se sente assim? É europeu, mas cia de sentimentos de que também já
pessoas terem segredos umas para as meus livros anteriores.” mas, numa perspectiva mais alar- acha-se um autor europeu? “Sim, falou: a do homem e que serve ao es-
outras, mas de guardarem as mensa- Sabe que empatia é actualmente gada, isso não significa o fim da lite- sou um escritor europeu.”Não há critor. Viver em Nova Iorque é ter
gens que são a prova de que têm se- uma palavra armadilhada quando ratura. Haverá sempre pessoas que hesitação, mas tem necessidade de uma perspectiva diferente, mais com-
gredos.” No livro, com uma formula- aplicada à literatura. “Porque é querem ler romances, mas serão contextualizar. “Antes havia uma plexa do que se se limitasse a viver em
ção mais complexa, faz a pergunta usada como uma arma, em especial cada vez menos.” diferença mais clara, sabia-se que a Berlim, onde continua a manter casa,
determinante: porque é que simples- por alguns críticos. Isso é muito irri- Kehlmann confessa que também literatura americana tinha uma po- ou Viena, aonde vai com frequência.
mente não as apagam? Na conversa tante”, justifica. E acrescenta: já leu mais. As séries televisivas fo- derosa força realista. Falo dos tem- Mas sobre se a sua escrita se alterou,
com o Ípsilon, volta ao exemplo dos “Quando se lêem os grandes roman- ram-lhe desviando a atenção dos li- pos de Hemingway e de Faulkner. responde: “Muda o trabalho no sen-
amigos. “É um número espantoso, cistas, quando se lê Tolstoi, por vros, mas está a retomar o seu ritmo Acho que o escritor que mudou essa tido em que é uma cidade muito ins-
entre eles cinco, seis, sete pessoas, exemplo, sente-se que uma das ra- anterior. “Cortei um pouco nas sé- percepção foi Nabokov. Ele era eu- piradora. Adoro ir ao teatro aqui, os
não consigo precisar, terminaram zões pelas quais aquilo é tão bom é ries; como espectador, estou um ropeu, experimental, mas tornou-se espectáculos de música são fantásti-
relações porque alguém encontrou por ter um nível tão elevado de en- pouco aborrecido com o facto de muito importante para a literatura cos, há conversas muito enriquece-
uma mensagem de texto do outro. tendimento do outro, mas também serem sempre pretensamente inter- americana. Toda a literatura ameri- doras, mas não ao ponto de me fazer
Fico fascinado não apenas pelo facto de empatia. Não são a mesma coisa. mináveis. Uma das coisas boas de cana da última metade do século XX escrever sobre Nova Iorque. Deixo
de terem rompido, mas sobre o por- Podemos entender, mas continuar a uma grande história é o modo como e início do século XXI é extrema- isso para os americanos. A barreira
quê de todos guardarem mensagens achar que as pessoas são ridículas. termina, mesmo quando o final é mente modelada por Nabokov. Os da linguagem é real, e para entender
de texto comprometedoras. Porque Empatia em alemão é uma óptima aberto. É muito diferente de um final meus amigos escritores americanos um universo ao ponto de se poder
é que as pessoas não apagam as men- palavra, mitleiden, que significa so- ficar em aberto só porque se está a são muito influenciados por ele. E eu escrever ficção sobre ele é preciso ter
sagens? Parece um detalhe menor, frer com. Esse é, de alguma forma, o pensar numa nova temporada. Há também. Dele não se pode dizer se é um domínio total da linguagem desse
mas é incrível.” papel do romancista, mais do que de uma razão para um filme ter duas europeu ou americano. Ele era as mundo.” Faz uma pausa. Afinal... “A
O livro levou-lhe três meses a es- um dramaturgo ou do poeta. É par- horas e não 14. Muita da narração duas coisas e fez muito pelo atenuar única razão pela qual me sinto triste
crever. Quase nada comparado com tilhar o sofrimento da personagem. nestas séries é deliberadamente dessa distinção, mas ela existe. Mais por não ser um escritor americano é
o tempo longo dos romances. “Co- Não podemos deixar isto como o lenta para que se arraste. Mas conti- do que grupos literários.” que adoraria poder escrever um ro-
mecei numas férias de esqui, não põem alguns críticos. Há uma ver- nua a haver coisas muito boas. A úl- Sobre isso, sublinha: “É muito inte- mance sobre um jovem republicano,
numa casa solitária como a do livro, dade no facto de que essa é uma ta- tima que vi, Russian Doll, no Netflix, ressante o que estão a fazer alguns uma versão moderna de Bel Ami, de
mas num grande hotel, na Suíça, refa do escritor, alcançar essa empa- é uma obra de arte, como grande li- autores. As pessoas chamam-lhe au- Maupassant. Ou um que se passe
com muita neve. O hotel tinha uma tia. Num romance de guerra em que teratura.” Não descarta a hipótese toficção, mas acho que eles não se agora nos tribunais, entre juízes libe-
biblioteca muito bonita e eu sentava- as pessoas sofrem coisas terríveis, é de um dia experimentar escrever vêem a si mesmos como um grupo.” rais e juízes com forte pendor reli-
me lá, muito tarde, à noite, tipo uma, necessário ser empático.” para televisão, sabe que é uma porta É mais uma tendência, com maior gioso, alguma coisa assim. Mas não
duas, três da manhã; toda a gente a Estamos num momento sensível, que se abre para os escritores, mas, adesão na Europa, mas com reper- sou capaz, porque não se passa na
dormir e eu a escrever. Foi muito aquele em que se fala do papel do no seu caso, isso não será para já. cussão em toda a literatura ocidental. minha língua. A língua é precisa para
assustador, cheguei a ter um pouco escritor na sociedade — ou nas socie- “É muito empolgante. Acho que não entender e para escrever na língua
de medo.” O contágio do autor com dades — tema recorrente no actual A identidade é uma coisa que eu fosse capaz de em que essas pessoas falam; não se
a história que está a contar faz parte contexto político, intelectual. Que Já se disse, convém sublinhar, por- fazer. Adoro Emmanuel Carrière, pode escrever removido da sua lin-
do prazer da escrita. Cada livro, papel é esse? “Acho que o principal que isso se nota no seu discurso, no acho-o um grande escritor, leio tudo guagem. Acho que esse é um romance
afirma, é um permanente processo papel do escritor é continuar a tentar decorrer da conversa: Daniel Kehl- o que faz, mas não é um modelo para que tem de ser escrito, mas não posso
de descoberta. E este, muito dife- escrever bons livros. Olhe para a li- mann vive nos Estados Unidos com mim.” Cita nomes. “Salman Rushdie ser eu [a fazê-lo]”.
16 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
Esta história é uma armadilha, também para o leitor
instalar um sentimento de Dezembro, há entradas, como se
Depois de uma longa ausência em Portugal, mal-estar que ultrapassa o da fossem anotações num bloco de
relação entre os dois. apontamentos de um escritor, com
Daniel Kehlmann regressa com uma novela Numa ida à povoação mais frases por acabar, sentidos que se
próxima, para se abastecer de adivinham ou não. Ele vai
de suspense. Um ambiente de suspensão alimentos, o escritor depara-se esquecendo o argumento, para o
com um diálogo que classifica de qual tem alguma urgência no
do real anotado num diário por um escritor pouco verosímil e se instala como início, e ficando cada vez mais
elemento de perturbação no envolvido na interpretação do que
de televisão. Em Devias Ter-te Ido Embora “curso natural das coisas”. lhe acontece à volta, fingindo,
Começou com uma pergunta do diante da filha, uma normalidade e
há uma proximidade com o universo homem da mercearia: “Está a viver um controlo da situação que de
lá em cima?”. E continua com facto vai perdendo, confundindo
de David Lynch e a literatura de Henry comentários do mesmo homem — real e sonho. Tudo numa espiral
“Salve-o Deus...”. E também de que Kehlmann tece como se
James. Com humor. uma aldeã, que entra na loja e transportasse uma câmara que só
interfere na conversa, trazendo revela o mínimo para que o leitor
com ela um dialecto que torna o entre no máximo de expectativa,
lado lacónico do diálogo ainda fazendo-o dar saltos no mesmo
“Faz sentido começar um novo e isso faz diferença no modo como mais indecifrável para quem quer susto do protagonista da história. Devias Ter-te
caderno aqui em cima.” É o dia 2 o casal se relaciona. Susanna não chegar a um entendimento. Nessa Como ele, o leitor também quer Ido Embora
de Dezembro e o escritor chegou à respeita o trabalho do marido, perdição de sentido, protagonista e controlar a situação, ou seja, estar Daniel
montanha com a mulher, apenas o suporta. leitor são cúmplices. Um e outro em domínio do sentido da Kehlmann
Susanna (“Amo-a, e não gostaria O quotidiano do casal começa a ser têm a mesma perplexidade face à narrativa, mas partilhando da (Trad. Ana
de ter uma vida diferente. Porque traçado nas primeiras páginas de derradeira frase da mulher quando mesma perdição face ao modo Falcão Bastos)
estamos constantemente a Devias Ter-te Ido Embora, uma ele entrava no carro para regressar como o tempo deixa de obedecer a Bertrand
discutir?”) e com Esther, a filha que novela em forma de thriller que à casa: “Vá-se embora depressa”. uma lógica humana; o tempo que
acaba de fazer quatro anos. As marca o regresso de Daniel É um diálogo que desperta o confere sentido à vida e às suas
duas vão descansar enquanto ele Kehlmann (Munique, 1975) à escritor para a interpretação de rotinas e que se dilui. “A casa é mmmqm
aproveita para — ou finge — avançar edição em Portugal depois do uma série de circunstâncias que inofensiva. Encontra-se
no argumento da série, uma sucesso de A Medida do Mundo vêm cortar o “chamado curso simplesmente no sítio onde não
comédia romântica à qual a mulher (Presença, 2007). Tudo normal na normal das coisas”. É difícil, devia estar nada.” Que sítio é esse?
apenas dá crédito porque lhe serve vida de um homem e de uma enumerá-las sem risco de interferir Talvez um lugar de suspensão da
de boa ajuda no orçamento mulher com as tensões inerentes a no crescendo de tensão de que se realidade, onde espaço e tempo
familiar. Ela é uma intelectual, o quem transformou amor em rotina alimenta esta história breve, em não se encontram e o quotidiano se
marido não andou na universidade e depois em amargura, até se formato de diário. De 2 a 8 de perde? I.L.

ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 17


FOTOGRAFIAS DE ESTELLE VALENTE
Gonçalo Frota

Uma
opereta
para
afirmar
o São
Luiz
como D
a noite da inaguração do ral — que os dois reavivam agora na nalistas e de soberania que emergem A Filha do
Theatro D. Amélia, a 22 de comemoração dos 125 anos da sala de um texto escrito na ressaca da Tambor-Mor,
Maio de 1894, chegam até —, foram precisamente essas obser- guerra franco-prussiana. Aquilo que do compositor
hoje sobretudo relatos do vações acerca do ambiente da noite mais interessa aqui é, assim, a rebel- francês
acontecimento social. E era de estreia, chamariz para a nata da dia de uma jovem aristocrata (Stella, Jacques
realmente um aconteci- sociedade lisboeta, que encontra- interpretada por Ana Filipa Leitão), Offenbach

cidade
mento a abertura de uma sala lis- ram. Tanto assim que nem têm a entregue a um convento mas muito numa nova
boeta baptizada com o nome de D. certeza se as récitas terão decorrido pouco disponível para se aceitar a versão de
Amélia de Orleães, na data do oitavo em português (uma tradução portu- vida que alguém parece ter traçado palco pelo
aniversário do casamento da rainha guesa da peça, datada da época, e para si. Essa é, na verdade, a mais encenador
com o rei D. Carlos, fruto do investi- localizada na biblioteca da Sociedade intemporal e aguçada questão a es- António Pires
mento de cinco empresários locais Portuguesa de Autores parece indi- capar-se da absoluta leveza de A Fi- (na foto) e
que pretendiam elevar Lisboa ao car isso mesmo). O certo é que não lha do Tambor-Mor — a procura e a pelo maestro
mesmo frenesim cultural de Paris, quiseram também demorar-se de- reivindicação de liberdade de uma Cesário Costa
Na comemoração dos 125 Madrid ou Viena. As honras de aber-
tura ficariam a cargo da companhia
masiado com esses factos passados.
Até porque a encomenda da direc-
rapariga insubmissa.
“Este não é, de todo, um objecto
anos do São Luiz, o teatro italiana dos irmãos Gargano, espe-
cializada em operetas e comédias
tora do Teatro São Luiz, Aida Tava-
res, pedia-lhes que revisitassem esse
histórico”, confirma António Pires ao
Ípsilon. “Não é teatro de época, não
lisboeta regressa ao seu musicais, e presença habitual nos momento histórico de olhos postos fomos ali à Maria Gonzaga [atelier de
palcos da cidade. Nessa noite dar-se- no futuro. Era uma proposta que não guarda-roupa] alugar os fatos”, ri-se.
espectáculo inaugural: a ia a “récita de gala”, a primeira de 15 lhes pedia propriamente que forças- “Estou a tentar puxar a peça para re-
opereta A Filha do apresentações que marcavam o ar-
ranque da programação da sala —
sem uma modernização do texto ou
uma abordagem transgressora, mas
sultar numa coisa mais naturalista.”
Essa preocupação nota-se, por exem-
Tambor-Mor. Entre 22 e 26 que seria, mais tarde, rebaptizada antes que trabalhassem de preferên- plo, na forma como o francês das
como Teatro da República (em 1910) cia com estudantes de teatro e de partes cantadas (as falas seguem em
de Maio, 150 intérpretes e Teatro São Luiz em 1918 (na altura música (e de dança, sob a orientação português) é trabalhado para que as
levam a palco uma da morte do Visconde São Luiz de
Braga, um dos seus fundadores) —,
da coreógrafa Aldara Bizarro), con-
vidando toda uma nova geração a
palavras soem mais arredondadas,
“mais coloquiais e mais doces”, evi-
comédia que caminha para tendo a escolha recaído sobre A Filha
do Tambor-Mor, do compositor fran-
mostrar-se e afirmar-se neste re-
gresso da ópera ao São Luiz.
tando qualquer perigo de se tornar
algo pomposo — e que o pano de
a liberdade. cês Jacques Offenbach, com libreto Contornando qualquer rasteira fundo da aristocracia europeia pode-
de Alfred Duru e Henri Chivot, es- que o anacronismo do texto poderia ria reclamar. Em vez disso, rebate-se
crita em 1879. infligir a esta nova versão de palco, a afectação social, integra-se antes
Quando o encenador António Pi- António Pires escolhe focar-se no uma energia que pretende ser con-
res e o maestro Cesário Costa esgra- tom de “comédia de portas, comédia temporânea, em que a imagem do
vataram na história do São Luiz em de enganos” oferecido pela opereta palácio tenta equivaler-se o mais pos-
busca dos relatos dessa peça inaugu- e evita sublinhar as questões nacio- sível à de uma cidade.
18 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
DIA INTERNACIONAL
ser plena”, defende Pires. “Isso está
DOS MUSEUS
muito ligado a um povo oprimido por
outro [a acção decorre na cidade ita-
liana de Biella, tomada pelos prussia-
nos] e que vê nos franceses a espe-
rança da liberdade.”
A própria leveza da música faz com
que o contexto histórico não se sobre-
ponha às várias histórias colocadas
em palco. Para o encenador, a parti-
tura de Offenbach “orelhuda e popu-
lar, é de tal forma brincada que as
notas saltam”. Há até uma qualidade
melódica reconhecível na chanson
que o maestro Cesário Costa elogia
numa simplicidade de escrita propor-
cional à sua “eficácia na caracteriza-
ção das cenas e das situações”. Para
o maestro, a preocupação primordial,
“sem esquecer que estamos a traba-
lhar nesse contexto dos militares e das

“Este não é, de todo, lutas”, é a de concentrar-se no dese-


nho de cada personagem e que o pú-

um objecto blico possa extrair da música “uma


percepção clara da mensagem”.

histórico”, confirma Com aproximadamente 150 ele-


mentos em palco, A Filha do Tambor-

António Pires ao Mor é também um espectáculo em


que o São Luiz se abre à cidade: atra-

Ípsilon. “Não é teatro vés de cinco récitas de entrada gra-


tuita, entre 22 e 26 de Maio, mas

de época, não fomos também por via de um coro partici-


pativo (composto por cantores ama-

ali à Maria Gonzaga dores) que se juntará à Orquestra


Clássica Metropolitana e aos jovens

[atelier de intérpretes (cantores, actores e bai-


larinas, seleccionados por audição)
“Há uma passagem em que pus
uma data de pessoas com sacos de guarda-roupa] alugar provenientes da Universidade de
Aveiro, da Universidade de Évora, da
compras, gente de bicicleta a atraves-
sar o palco, muitos de um lado para o os fatos”, ri-se. ESART de Castelo Branco e das Esco-
las Superiores de Dança e de Teatro
outro, precisamente para dar essa
ideia de cidade”, diz o encenador. “É “Estou a tentar puxar e Cinema de Lisboa. Se toda esta
parca experiência gera “muita incer-
um pouco aquilo que acho que é o
São Luiz e apetecia-me celebrar isso.” a peça para resultar teza — não sabemos muito bem como
as coisas vão funcionar”, admite Ce-
Esse carácter do aqui e agora faz-se
também sentir através da assunção numa coisa mais sário Costa, por outro lado este é um
espectáculo construído sobre a ener-
de características como o sotaque
madeirense de Griolet— e que Antó-
nio Pires quis manter para se tornar
naturalista” gia e a vontade enormes de todos
aqueles que pisam o palco.
A esta intensa teia de cumplicida-
mais próximo do público. “Ele [o ac- des é ainda acrescentada a cenografia
tor Alberto Sousa] não está a fazer um a cargo do Teatro de Marionetas A
sotaque, aquilo não é construído; ele palco, as bailarinas torcem o vestido Tarumba, que leva quadros da mais
fala assim e eu deixei ficar”, explica. amarelo, “como se torcessem o des- nobre linhagem familiar a ganharem
“Vem desse jogo da verdade, mais tino”, compara o encenador. É para vida e um burro a assumir quase um
presente do que uma construção de aí que o espectáculo caminha, para lugar de protagonista. É uma forma
personagens.” E realça a existência esses desfechos sentimentais, numa de a comédia ganhar cores quase de-
destes intérpretes, que “estão vivos escolha clara de que entre qualquer lirantes e que ajudam à difícil tarefa
hoje”, a tomarem conta do palco e de sugestão bélica e as relações, entre a nas mãos de António Pires – que já
uma opereta lá longe no tempo. guerra e o amor, a escolha está to- encenara Tosca, Madame Butterfly e
mada e é tratada com a subtileza da- Elixir do Amor – de dirigir um elenco
Torcer o destino quele descomunal vestido amarelo maioritariamente estreante na pro- 17 E 18 MAIO
Griolet, além de tambor no exército,
é também costureiro e vai traba-
que ocupa quase todo o palco.
Caminha também, sempre, para a
dução de óperas a assumir uma pos-
tura fundamental para que a comédia
VISITAS ORIENTADAS E OFICINAS
lhando num vestido que quer ofere- auto-determinação de Stella, torcendo possa acontecer: a falta de vergonha MUSEU DO ORIENTE GRATUITAS
cer a Claudine, cantineira militar. ela mesma o seu destino, negando-se e a suspensão do pudor. Afirmando,
Enquanto faz o vestido, Griolet tenta
convencer Claudine de que irá tam-
a ser ela própria uma personagem na
vida de terceiros, cujo papel lhe pedi-
assim, um teatro sem medo e dispo-
nível para rir daquilo que acontece
18 MAIO | ENTRADA GRATUITA
bém conquistar o seu amor. E é por ria pouco mais do que ser uma exem- em palco e daquilo que se passa lá mecenas principal
esse vestido, numa réplica gigante plar aristocrata, carregando o peso da fora. Até porque a presença do coro
PROGRAMA COMPLETO | www.museudooriente.pt
que sinaliza a dimensão que as peri- família e das mais rígidas regras so- participativo nos lembra também de Av. Brasília Doca de Alcântara (Norte) | 1350-352 Lisboa
pécias amorosas tomam na sua ence- ciais. “Vejo nela uma personagem que que o palco e a rua não têm de estar
nação de A Filha do Tambor-Mor, que anseia a liberdade, e a aristocracia separados por qualquer fronteira. Às
António Pires inicia a opereta. Em como algo que a prende e não a deixa vezes são a mesma coisa.
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 19
A energia indomesticável de Lisboa
na pintura de Francisco Vidal
C
onversa de jornalistas. Ele, “lusofonia”, “afro-portugueses”, está, as percepções diferem. Este ano
Quem tem seguido o trabalho do inglês, de passagem para “afrodescendentes”, “afro-Lisboa” e a ARCOlisboa, a feira de arte contem-
artista plástico Francisco Vidal fazer mais um dos muitos
artigos sobre música afro-
outras nomenclaturas que na tenta-
tiva de legitimarem a diferença, tantas
porânea que decorre até 19 de Maio,
aproveitando a geografia transatlân-
percebe-lhe uma urgência portuguesa criada em Lis- vezes acabam por reforçá-la) e ao tica de Lisboa, destaca um contexto
boa que têm saído nos últi- mesmo tempo a desconstruir esses geográfico: África. Entre os vários
transbordante que agora se revela na mos anos na imprensa internacional, arquétipos porque a realidade é dinâ- programas paralelos há duas exposi-
exposição Fronteiras Invisíveis, pergunta-me às tantas quais os no-
mes que interessa conhecer. Lá lhe
mica e não se compraz com instru-
mentalizações teóricas. Talvez se te-
ções (podem ser vistas até 25 de
Maio) num edifício em Lisboa (Rua
integrada nos programas paralelos enuncio alguns: Batida, a editora
Príncipe e Marfox, Firmeza, Nídia ou
nha de aceitar essa tensão constante
entre nomear as coisas e essa tarefa
Castilho, nº3) intitulado Not a Mu-
seum. No 2.º e 3.º andar está a colec-
da feira ARCOlisboa. Nigga Fox, Branko e a Enchufada, de designação estar sempre a ser alvo tiva África Diversidade Comum, com
Fogo Fogo, enfim, por aí. E às tantas de reescrita. curadoria de Manuel Dias dos Santos,
aquilo saiu-me de forma espontânea. A presença africana em Lisboa é com obras de artistas de países afri-

Vítor Belanciano “Mas se queres mesmo saber o que


é essa eventual afro-Lisboa de que
andas à procura tens de ver os qua-
secular. Há dez ou quinze anos, pare-
cia importante falar de uma nova
geração (com expressão simbólica na
canos de expressão portuguesa (Ab-
del Queta Tavares, Gonçalo Mabunda,
Kiluanji Kia Henda, Yonamine ou Ma-
dros de Francisco Vidal.” música dos Buraka) que foi capaz de langatana) e no 1.º andar uma expo-
E no segundo seguinte arrependi- atribuir visibilidade a novos imaginá- sição individual de Francisco Vidal.
me. Passamos o tempo a criar arqué- rios do Portugal pós-colonial. Agora Chama-se Fronteiras Invisíveis. E para
tipos para tentar comunicar a reali- a realidade é outra. A Europa é ele tudo faz sentido.
dade (é daí que vêm expressões como crioula. Os Outros somos Nós. Mas, lá “Há uma estética africana em e

NUNO FERREIRA SANTOS

20 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019


Francisco Vidal, 40 anos, português, de de cores, linguagens, geografias ou Em 2007, dava a crise económica trabalho e do fazer e isso é impor-
ascendência angolana e cabo-verdiana, andou histórias. sinais de que iria chegar em força, tante”, dizia-nos há três anos. Agora
em trânsito por Berlim, Nova Iorque e Luanda, Quem tem seguido o seu trabalho resolveu deixar Portugal. “Fui pri- diz-se ainda mais próximo dessa as-
antes de se fixar definitivamente em Lisboa nos últimos tempos percebe-lhe uma meiro para Berlim, onde fiquei dois sunção. “A pintura a sério, com mús-
urgência transbordante. Em Março anos — entre museus, exposições, a culo, com ambição de ser grande,

NUNO FERREIRA SANTOS


era vê-lo, no MAAT, no lançamento desfrutar do que a cidade me oferecia quase desapareceu. Resisto a isso. O
do livro Atlantica: Art Today in Angola, —, mas a minha resistência em relação gesto da pintura começa como pul-
uma edição do centro de residências à língua alemã fez-me regressar para são intuitiva, diária e muito emotiva.
artísticas Hangar, a criar espontanea- voltar a partir, desta feita para Nova E depois do fazer— quando me co-
mente retratos de amigos que lhe Iorque, onde estive dois anos com loco no papel de espectador — tento
pediam que assinasse um exemplar uma bolsa de mestrado. Passado esse ler o que fiz.” Os meios, as técnicas
da obra. Em Abril, no Museu Colec- tempo senti que esgotei tudo o que e as pinturas a óleo podem ser algo
ção Berardo, lá estava representado vivi lá e regressei a Portugal para vol- que alguns vislumbrarão como ana-
na colectiva Constelações: Uma Carto- tar a partir. Desta vez para Luanda. Aí crónico, mas não ele. “Hoje pode-
grafia de Gestos Mínimos (até 30 de apeteceu-me ficar e não senti que ti- mos aparecer facilmente nas redes
Setembro), com uma tela com cata- vesse esgotado a procura.” sociais em espaços criados por nós.
nas coladas sob uma palete de cores Ali deu aulas de arquitectura e co- Quando percebi isso comecei a tra-
vibrantes, e no final do mesmo mês meçou a desenhar. Ao explicar aos balhar mais a matéria, o espaço da
inaugurou no espaço Espelho d’ Água seus alunos quem eram algumas das pintura, porque estava a competir
(até 25 de Maio) a exposição Padrão figuras mais marcantes da cultura com meios de comunicação mais
Crioulo, numa alusão com leituras africanas, optou por fazer retratos. E rápidos”, diz. “Daí também essa ur-
pós-coloniais, devido à vizinhança do nunca mais parou. São a tinta-da- gência de desenhar e pintar temas
Padrão dos Descobrimentos. china a maior parte deles, pintados a que fossem importantes para mim

Hoje o poder está Há semanas, na companhia de Fer-


não Cruz, Horácio Frutuoso e Tiago
pincel sobre folhas. Há heróis. Ami-
gos. Poetas. Políticos. Escritores. Al-
hoje em dia.”
Esses temas estão lá. Reflexões so-

nos artistas e Alexandre, criaram a mostra Canal


Aberto. Os visitantes dirigiam-se à
binos de Angola. Adolescentes do
Bairro da Outurela. Gente que para
bre o próprio acto de criar, mas acima
de tudo sobre o espaço e tempo pre-

criativos. Existe galeria Appleton e deparavam-se com


uma instalação vídeo, em tempo real,
ele contribui para produzir mudança
e fazerem a diferença.
sentes do ponto de vista sociopolítico
— o que nos une, e nos separa, nesse

menos mediação que mostrava os quatro a operar no


seu espaço, podendo de seguida diri-
gir-se ao atelier, contactando com os
Gente de diferentes gerações. “Há
aqui uma necessidade de transmis-
são de conhecimento. É preciso ter
cruzamento de fronteiras invisíveis,
nessa tensão constante entre utopia
e realidade. Ou, como às tantas é re-
tendente a pensar artistas em execução. sempre essa riqueza connosco. Mos- flectido no texto que acompanha a

num público ou A exposição contém algumas obras


dessas mostras. Mas é mais do que
trar aos mais novos quem é o escritor
Luandino Vieira, por exemplo. Há
exposição, estes são trabalhos que
nos remetem para “lugares imagina-

mercado. É algo mais isso. “Todas estas pinturas”, indica-


nos, “estavam no meu atelier e outras
coisas nele que me fazem lembrar
uma estética afro-futurista que pode
dos, situados algures entre o real que
se rejeita e o ideal que se espera e de-

genuíno e intenso. foram finalizadas mesmo agora. São


tudo coisas do último ano.” Há tam-
estar também nas minhas nas pintu-
ras ou na música da Príncipe. É pos-
seja.” Criar esperança, repensar a
nossa forma de estar no mundo atra-

Não estou bém pinturas de uma exposição em


Macau, nas Oficinas Navais nº1, que
sível misturar técnicas de outras
áreas de criação para conseguir ter
vés de um pensamento não-alinhado
e falar a linguagem da verdade, eis a

preocupado com o Ípsilon teve oportunidade de teste-


munhar. “Enfim, são cinco salas, cada
uma riqueza maior na composição.”
Às vezes, numa mesa, começa a de-
sua proposta. A pintura como gesto
político, assumido na utilização de

galerias ou museus uma com um tema diferente. Há estas


experiências que estou a fazer com as
catanas, que eram instrumentos das
senhar quem com ele está a privar.
Foi assim que, é verdade, também
acabámos retratados. “Faço retratos
frases de artistas como Nina Simone,
Matisse, Coltrane, Miles Davis, Kurt
Cobain, Basquiat ou numa famosa de
revoltas africanas. Há desenhos a pre- de pessoas que me influenciam. E de Picasso — “A pintura não é feita para
to-e-branco de várias pessoas. Ou pessoas a quem quero chegar. Em decorar os apartamentos. É um ins-
uma sala com pinturas referentes a vez de lhes enviar uma carta, faço trumento de guerra ofensiva e defen-
Lisboa que nunca soube ler ou iden- um pensamento sobre a revolução um retrato.” siva contra o inimigo.”
tificar mas que agora está muito pre- industrial africana.” Quando também Luanda entrou “Todas as pinturas têm um subli-
sente. Está no caminho para casa. E Acaba por ter uma organização do em crise voltou a Lisboa, em 2015. A nhado de intervenção”, reflecte, com
é uma estética de várias pessoas. Há habitual, reflecte. “As temáticas, es- ideia era seguir para Londres, mas um tipo de letra que remete para al-
dez ou quinze anos, sentia-se algo téticas e ideias estão mais arruma- não aconteceu. “Lisboa tem os meus gumas obras de Jean-Michel Basquiat,
semelhante mas era mais difícil fazer das”, e isso deve-se a Namalimba códigos de estar, de pintar e de es- com quem por vezes é comparado.
acontecer. Hoje o poder está nos ar- Coelho, que sem querer assumir pro- crita, embora Luanda seja impor- “Durante uns tempos devolviam-me
tistas e criativos. Existe menos me- priamente um papel de curadoria, foi tante, e a minha estética é muito de que estava perto da estética dele e
diação tendente a pensar num pú- central nas ideias expostas. “Há um lá, mas acredito que Lisboa pode ser isso já me chateou. Mas agora não. É
blico ou mercado. É algo mais ge- lado politizado introduzido pelas fra- um ponto satélite para pensar esta apenas uma escola e corrente, a pin-
nuíno e intenso. Não estou ses que assistem as pinturas, o que estética africana que fala português. tura expressionista.” Curiosamente
preocupado com galerias ou museus, acaba por dar ao todo um lado meio E se calhar foi isso que me fez traba- essas analogias são-lhe apontadas em
mas estou a fazer isto e a sentir que punk. Foram ideias dela aquelas fra- lhar muito nestes últimos quatro Portugal. Internacionalmente não.
ao meu lado existem outros que es- ses, a néon e spray, nas pinturas.” anos. Correr atrás dessa estética. “Quando exponho fora de Portu-
tão a fazer algo análogo e com uma A primeira vez que contactámos Quando fui dar essa volta pelo gal, em Londres por exemplo, devol-
visão parecida.” com o seu trabalho foi há três anos, mundo estive mais a absorver do que vem-me que aquilo que faço é pin-
Pode ser um pouco abstracto o na exposição Marginal, na galeria a pintar. De alguma forma essa via- tura de Lisboa e de Luanda.” Talvez
diálogo de Vidal. Percebe-se que Underdogs. Logo aí percebia-se as gem fez-me ver que Lisboa era o local seja isso, então. Uma pintura do eixo
quer nomear uma realidade, mas os suas referências: punk, skate, hip- para ler e trabalhar os códigos que Lisboa-Luanda onde há tanto de
contornos ainda não estão definidos. hop, do-it-yourself, graffiti, o acto de estou a trabalhar.” afecto como de conflito, de heranças
Talvez porque é algo em construção. pintar como algo físico, suado, quase O que não significa deixar de olhar e vislumbres de futuro, de códigos e
Ainda não domesticado. É uma ener- coreográfico. Ele, português, mas para outros horizontes. Londres e referências intersectadas, muitas
gia que está no ar. O incrível é que também cabo-verdiano e angolano, Paris são os alvos. “É difícil em Lisboa encruzilhadas mas também vontade
aquilo que as palavras nem sempre através dos pais, integrou a repre- os artistas ganharem mundo. As três de as dissipar, com uma transbor-
traduzem, a pintura fá-lo. Entra-se sentação de Angola na Bienal de Ve- cidades onde estive abriram-me pos- dante energia criadora que Vidal não
nas salas que compõem a exposição neza em 2015, tendo crescido na li- sibilidades, mas é preciso trabalhar quer só para si.
e aquilo está lá, um território táctil nha de Cascais e vivido na última com as pessoas correctas. As galerias Há um mundo de gente diferente
mas também futurista, onde todos década entre Berlim, Nova Iorque e com quem trabalhei em Londres que é convocada nas suas exposi-
os hibridismos parecem possíveis, Luanda, explorando a pintura, de- olham para a arte africana com todos ções. Ele sabe que não se faz ne-
algo primitivo e fulgurante, feito de senho e instalação, em obras de co- clichés e isso não interessa. Então, nhuma mudança sozinho. Talvez a
gestos impetuosos mas também poé- res vigorosas, numa expressividade ainda estou a apalpar terreno, mas sua Lisboa, seja lá o que isso for, seja
ticos, expostos em pinturas carto- livre mas precisa. Uma pintura onde desejo trabalhar nessas cidades.” ainda mais desejo do que realidade,
gráficas que nem sempre reprodu- os padrões, colagens e repetições O que não mudou foi essa relação mas mesmo sem limites muito claros
zem algo existente, construindo uma nos convocam para uma singular manual da pintura. “É classe operá- ela está a acontecer. E esse é também
realidade paralela, numa polifonia expressão emocional. ria, obriga a valorizar a cultura do o seu feito.
22 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
CORTESIA DA CASA MUSEU JÚLIO POMAR

Exposições
peças, está próximo do riso, como
Corpo a corpo a história da literatura e a própria
psicanálise nos demonstraram
com a pintura tantas vezes. Noutros casos,
sobretudo nas telas que se inserem
Nas obras desta exposição, o nos grandes ciclos narrativos de
corpo, o sexo e o erotismo estilo expressionista dos anos 80 e
90, o nu feminino serve com o
são os suportes para pensar a mesmo humor a invenção de
própria pintura. Luísa Soares novas formas de tratar os mitos
de Oliveira gregos mais antigos. O rapto de
Europa de 1983-85, por exemplo,
Formas que se tornam outras mostra-nos um Zeus-touro que,
numa lambreta, leva uma rapariga
Júlio Pomar
nua na garupa. Não falta nem
mmmmm sequer um capacete de motarde
para a proteger de eventuais
LISBOA. Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC. quedas.
Rua do Vale, 7. De 3ª a domingo, das 10h às 13h
e das 14h às 18h. Até 29 de Setembro.
Às metamorfoses das formas deu
a história da arte o nome de
Um dos núcleos de obras mais anamorfoses. No caso de Júlio
conhecidos de Júlio Pomar ( 1926 - Pomar, estas últimas, pois é disso
2018) é aquele que o pintor que aqui se trata, servem sempre o
desenvolveu durante as décadas mesmo propósito: o de procurar
de 70 sobre a representação do nu captar incessantemente esse outro
feminino através de colagens. As sem o qual o pintor não pode
obras, fortemente sexualizadas e completar a obra. Procura esta que
imbuídas de um erotismo óbvio — se faz também na pintura — afinal,
a que não era decerto estranha a Saumon, Brune, Gris (1977) de Júlio Pomar é uma das obras que este é um instinto de vida que está
promessa de liberalização da pode ser vista na exposição Formas que se Tornam Outras na raiz de toda a criação. Júlio
sociedade que o tempo prometia Pomar representa o que não tem
—, contribuíram para reforçar a nem nunca nenhum grande pintor
etiqueta escandalosa, ou pelo Camponês (Évora), de 1945, e outro artistas seminais na representação teve: esse algo que o faz trabalhar
menos perturbadora dos de Alice Jorge, com quem foi da figura humana, ou sequer do na direcção da totalidade sempre
costumes instituídos na casado, revelam já esse interesse nu feminino. Autores e livros adiada. Por isso, esta capacidade
provinciana sociedade muito vivo e evidente pela figura picarescos, e mesmo a roçar o que aqui demonstra de se mover
portuguesa, da obra deste pintor. humana, quer em retratos, ou, obsceno, como o Pantagruel de entre linguagens plásticas tão
Na realidade, o tema que era mais tarde, em grandes Rabelais ou o Decameron de distintas não é afinal senão a
desenvolvido nesses trabalhos não composições complexas, em Bocaccio, entre outros, são definição, uma e outra vez, da sua
poderia ser mais clássico. O pintor cenas mitológicas e cenas de ilustrados com um sentido de própria obra. A forma, neste caso,
e o seu modelo, um modelo que se género. A montagem optou por humor óbvio. O sexo, nestas é secundária.
entendia feminino, oferecido à encher quase por completo uma
contemplação do olhar apreciador grande parede na sala principal,
do artista (e, mais tarde, do implicando isto o fecho de várias
coleccionador e do público) é um janelas, a oeste, de modo a poder
dos grandes clássicos da arte obter uma superfície de exposição
europeia, e isto desde os tempos de tamanho considerável. De
mais recuados. De certa forma, facto, com esta solução, é possível
para além de todas as leituras agora apreciar uma quantidade
literais a que se possa prestar, o impressionante de obras de vários
corpo, através da mediação da estilos e épocas praticamente lado
pintura e da escultura (e, depois, a lado, de modo a compreender
da fotografia e do filme) é a bem como este interesse pelo
metáfora mais próxima do próprio corpo é de facto a grande
acto de pintar. constante da obra do pintor. Tal
Ver, pensar, criar: estes três como Picasso o fez, Júlio Pomar
passos de toda a criação artística adapta o estilo ao tema, sendo-lhe
modernista encontram-se bem possível mudar da imagem
definidos na mais recente recortada, literal, à maneira de
exposição inaugurada no Atelier/ Matisse, ou figurativamente, para
Museu Júlio Pomar, a que os um traço expressivo e rápido, do
curadores, Sara Antónia Matos e mesmo modo que vai
Pedro Faro, deram o nome de reinterpretando artistas de outras
Formas que se tornam outras. épocas que lhe eram caros. Le bain
Note-se que, neste título, não turc, d’après Ingres, de 1968, que é
aparece a grande constante nas uma peça-chave de toda a
mais de oito dezenas de pinturas, exposição. O pintor português
gravuras, desenhos e assemblages realiza um processo de
expostas: a representação do desconstrução da obra-prima
corpo, que atinge a sua mais neoclássica, recompondo depois o
explícita expressão na série de que todo segundo um processo que
falávamos ao início. Mas não só; encontra ecos na obra de

YANG DIN
como bem assinalam os contemporâneos que trabalhavam
curadores, esta é uma constante na altura em Paris, como Adami e
em toda a obra do pintor, e isto outros. Mas este processo releva
desde que começa a trabalhar, nos também de outra intenção: a de se
anos 40. Na altura, a opção pelo apropriar de um clássico da www.museudooriente.pt
neo-realismo implicava a escolha história da pintura que, talvez não
da figuração, escolha essa que por acaso, representa a fantasia mecenas principal seguradora oficial
VIAGEM ATRAVÉS DA PINTURA
Pomar nunca renegará até aos muito masculina e ocidental da
últimos trabalhos que realizou. sensualidade do harém oriental. MUSEU DO ORIENTE | 17 MAIO A 25 AGOSTO
A exposição inclui algumas Este processo de apropriação Avenida Brasília, Doca de Alcântara (Norte) | 1350-352 Lisboa | (+351) 213 585 200 | info@foriente.pt
peças pouco vistas desses anos já encontra-se em boa parte das obras
distantes. Um Retrato de expostas, e não se restringe a
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 23
Livros
Com a fórmula “A vida era um defender-se, é o estado normal do Ragnarök ficciona, ou recria, um
Romance estado no qual decorria uma ser humano. Essa pulsão conjunto de episódios
guerra” (p.13), cria-se, desde logo, destrutiva encontraria um canal autobiográficos da romancista de
Deuses um ponto para onde confluem os
dois pólos deste livro — o conflito
privilegiado nas narrativas dos
deuses nórdicos. Estes habitavam
origem inglesa; no entanto, ao
reequacioná-los de encontro a um
nórdicos: dos deuses e a realidade da guerra. um mundo em que “não havia pano de fundo de tal modo
A opção pelos mitos nórdicos escala” (p.32), em que tudo é actuante, fez mais do que criar um
divinos, implica uma gesta de enorme desmedido e se hiperboliza. A romance, mas também não
demasiado violência, inscrita num estilo
impressivo, grandioso e enérgico.
única reacção possível da
narradora, perante esse
escreveu apenas a sua própria
biografia. Reconto mitológico,
humanos O que garante uma evocação manancial, é dada pelo “êxtase da ensaio ficcional, qualquer estádio
constante de cenários extremos e imaginação” (p.76). Ao mesmo intermédio poderia servir para
Uma hábil recriação avassaladores, de situações-limite. tempo que recria a sua própria categorizar este livro.
Por outro lado, a escolha desta história pessoal, reorganizando-a
autobiográfica que cruza as genealogia mitológica relaciona-se perante o padrão cronológico da
memórias da autora com a com uma ideia de base, Segunda Grande Guerra, a Biografia
saga dos deuses nórdicos, que a autora terá pretendido narradora vai sempre
tematizar: o destino reescrevendo a mitologia nórdica
numa ficção que alegoriza o
catastrófico dos deuses nórdicos como uma alegoria aterradora O sublime
terror da guerra. Hugo Pinto
Santos
(Ragnarök significa,
precisamente, “destruição dos
para os conflitos armados que
acossavam o seu mundo em
e o risível
Ragnarök deuses”), na sua sede de poder, na criança — “O sangue jorrava das
terrível húbris que os move, na feridas abertas pelo pescoço e Uma biografia brilhante que
A.S.Byatt
divindade demasiado humana que pelos ombros, deslizava como faz luz sobre a vida e a obra
(Trad. Paulo Tavares)
Elsinore é a sua. Que melhor material do uma peça de vestuário quente de uma das figuras mais
que este para alegorizar uma pelo peito e pelos flancos, fluía e perturbadoras do
mmmmm guerra que poderia ter acabado fluía” (p.31).
pensamento no século XIX:
com todas as guerras, como a A mitologia não é aqui utilizada
Com alguma Primeira Grande Guerra não como forma de explicar, mesmo Friedrich Nietzsche. José Riço
liberalidade no conseguira fazer, e só não pôs figuradamente, a origem ou a Direitinho
uso da gíria dos termo a tudo pelo cruzar de conclusão seja do que for. Os
estudos alguns filamentos da História? Mas deuses e o seu percurso letal Eu Sou Dinamite!
camonianos, a Segunda Guerra Mundial serve visam fornecer uma companhia
Sue Prideaux
poderia dizer-se ainda como cautionary tale. As metafórica que ilustra, mas não
(Trad. de Artur Lopes Cardoso)
que Ragnarök faz ondas de destruição, as consola, com explicações — “Eu Temas e Debates
uma fusão entre o ressonâncias ideológicas, as não ‘acreditava’ nos deuses
plano dos deuses, tensões multiplicáveis até ao nórdicos e, na realidade, vali-me mmmmq
o da História e o das considerações infinito, sabemo-lo bem, não se da percepção que tinha desse
pessoais. A. S. Byatt recua à sua extinguiram em 1945. É mundo para concluir que a O norueguês
própria infância, durante a precisamente desse legado terrível história cristã também era um Edvard Munch
Segunda Guerra Mundial, para que se lança mão em Ragnarök. mito” (p.137). Na sua senda através pintou o famoso
criar a sua visão peculiar dos Por fim, haverá ainda uma razão dos mitos, A. S. Byatt aproxima-se quadro O Grito
deuses nórdicos. É Byatt a “criança que se poderia apelidar de de um estado de coisas elementar tempos depois
magra” que percorre todo o livro, antropológica. O “estado” de e aterrador; há, em todo esse de o dramaturgo
seduzida pelo sortilégio da guerra que marca, epocalmente, a processo, gestos que dotam a sueco August
mitologia nórdica, encontrada num acção do presente histórico de linguagem de uma arrasadora Strindberg lhe ter
livro que é o refúgio de uma Ragnarök poderá ser um ponto de singeleza, esteja ela fixada na apresentado
infância passada na segurança da perturbante normalidade. “estável ordem das coisas” (p.56), parte da obra filosófica de
Inglaterra rural, longe dos perigos Conforme diz a autora, “Somos ou nas “vagas arqueadas pela água Nietzsche. A historiadora de arte, e
que ameaçavam a capital inglesa. É uma espécie de animal que fria” (p.65). Certo é que a escrita também escritora, Sue Prideaux
esta criança quem entrelaça a saga promove o fim do mundo em que de A.S. Byatt se despoja de (Londres, 1946) escreveu as
dos deuses e o conflito real do nasceu.” (p.142) A sede de poder, maravilhamento e timidez. Encara biografias dos dois artistas
mundo de então. de aniquilamento, pode os mitos com a segurança de quem nórdicos: Edvard Munch, Behind
parece conhecê-los desde sempre the Scream (2005) e Strindberg, A
— “A criança magra conhecia Life (2012). Foram ambos
contos de fadas suficientes para nietzschianos assumidos. Nada
saber que uma proibição numa seria mais natural do que meter
história apenas existe para ser também ombros à escrita da
desobedecida.” (p.29). biografia do poeta-filósofo, uma
Ragnarök é, como a própria das figuras mais carismáticas do
mitologia nórdica, uma história de pensamento no século XIX. E foi
destruição, uma narrativa do fim isso que fez em Eu Sou Dinamite! —
dos tempos, do fim de tudo — “os A Vida de Friedrich Nietzsche, que
deuses não caíam mortos, e, se o acaba de ser publicado em
mais adorável e gentil entre eles Portugal pela Temas e Debates.
podia ser morto durante um jogo, Sue Prideaux consegue afastar a
o pior ainda estava para vir” névoa que sempre pairou em
(p.84). O fim traduz, realmente, redor da lenda da vida de
um encerramento, sem aparente Nietzsche ao cruzar várias fontes,
redenção — “A criança guardou sobretudo diários de quem com
esta imagem do fim das coisas ele privou e correspondência
como se fosse uma lasca fina e oval trocada. É assim que chega a
de basalto negro ou ardósia, conclusões contrárias a ideias que
continuamente polida no seu durante décadas influenciaram
cérebro” (p.127). Pelo que a trabalhos académicos sobre a vida
“mensagem” será equívoca e de um homem que abanou os
esquiva. Inviabilidade de toda a alicerces do pensamento
tentativa, aviso e recomendação ocidental. Como por exemplo a
em contrário? Possibilidades que o lenda de que teria contraído sífilis
texto promove e incita, mas a que num bordel (o que teria sido a
não responde. Nesse sentido, a causa da sua loucura e morte),
A ficcionista e poeta britânica A.S. Byatt, pseudónimo literário de classificação deste livro como facto que Thomas Mann tornou
Antonia Susan Duźy, recebeu o Booker Prize 1990 por Possessão romance deverá considerar-se acontecimento fulcral no seu
meramente aproximativa. romance Doutor Fausto, em que
24 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
DOUGLAS FRY
um linguista, num casamento
“aberto” que durou 45 anos),
transformou logo aquele encontro
num projecto de uma “trindade”,
um ménage à trois. Vivendo com Rée
e tendo por perto o melhor amigo
do companheiro, tinha a “energia
erótica” de que precisava para
manter a relação com Rée.
Sue Prideaux dedica também
dezenas de páginas aos primeiros
anos de vida de Nietzsche, à sua
17’mai
precoce procura de conhecimento
universal e que sem dúvida o jovem
se inspirava em Goethe e em
Humboldt, e que tal como eles
estudou história natural. Foi um
período de vida a que ele mais
tarde chamou Selbstüberwindung
(auto-superação), em que
trabalhava até à meia-noite e se
levantava às cinco da manhã. Não
teria mais de doze anos de idade.
Depois estudou filologia clássica, a
A historiadora de arte e escritora Sue Prideaux escreveu também linguística do grego, do latim e do
as biografias de Munch e de Strindberg hebraico, em Pforta, uma escola
para rapazes (de muito exigente

Nietzsche tem o “papel principal”:


na noite no bordel em que Fausto /
Lou ele adoecia por meio de
pensamentos e recuperava
acesso) considerada à época a
“escola mais rigorosa da Europa”.
O jovem Friedrich, “sem dotes
eliane elias
Nietzsche vende a alma ao também por meio deles. Mas é a atléticos, desajeitado,
demónio em troca da mulher que relação do filósofo com o super-inteligente”, não gozava de
deseja. compositor alemão o que mais popularidade na escola. Mas

06’jun
Uma razão para tal, conta marca a sua biografia, até ao espantava toda a gente com as suas
Prideaux, é o facto de, em 1889, e já momento em que começa a surgir improvisações “ofuscantes ao
depois de estar no manicómio, ele o “ressentimento filial”, uma teclado”.
ter afirmado que “se tinha infectado espécie de “morte do pai”. Eu Sou Dinamite! faz, de maneira
duas vezes”, presumiram os Quando Nietzsche assume a brilhante, um retrato de um homem
médicos que falava de sífilis. Mas cátedra em Basileia, sendo o mais genial, excêntrico e perturbado, e de
acrescenta a autora que se eles novo professor de sempre naquela como Nietzsche foi capaz de
tivessem consultado os registos universidade (“era um jovem que se transformar o sofrimento numa
médicos, “teriam descoberto que vestia como um velho para vantagem.
ele tivera gonorreia duas vezes”, e personificar a sabedoria”), Wagner
não sífilis, o que a ser verdade lhe vivia em Lucerna, na Villa
teria provocado a morte uns anos Tribschen. Em 1869, o compositor (a Crónica
antes. Outra das desmistificações quem chamavam o Mestre e era já
tem a ver com “o talento de
falsificadora” de Elisabeth
uma figura mundialmente
conhecida) tinha o dobro da idade A crónica
Nietzsche, a irmã, que, por
exemplo, sempre mentiu a
do filósofo, então com 25 anos.
Foram as ideias de Schopenhauer o
falhada e outras
propósito das razões que levaram ao que os aproximou, as ideias
afastamento entre Wagner e o
filósofo — que foi, segundo Prideaux,
uma carta que o compositor
publicadas num livro de 1818, O
Mundo como Vontade e
Representação, e em que o alemão
Uma antologia pessoal da
arte de bem cronicar. Uma
alegre campanha.
Velvet carpet de pedro prazeres
escreveu a um dos médicos de desenvolve a ideia de que toda a vida Mário Santos Palcos instáveis | Segunda Casa | Companhia Instável
Nietzsche (que acabou por se tornar é anseio por um estado impossível e,
pública) em que sugeria que a causa por isso, toda a vida é sofrimento; e O Que Eu Ouvi
das doenças (olhos e cabeça) era o
hábito da masturbação. Também foi
Elisabeth (assumidamente
anti-semita) que de certa forma, e
ainda que a música era a única arte
capaz de revelar a verdade acerca da
natureza do próprio ser. Wagner e
Nietzsche fazem grandes
na Barrica das Maçãs
Mário de Carvalho
Porto Editora
07’jun
muito depois da morte do filósofo, caminhadas pelos montes alpinos mmmmm
terá influenciado Hitler para o uso em redor. O filósofo foi a única
de alguns conceitos nietzschianos, pessoa, para além do rei Luís da Não pretendo
como o Übermensch (Super-homem) Baviera, a quem Wagner (“o artista confirmar,
e o nacionalismo über alles. tempestuoso e sofisticado do agravando-a, a
Nietzsche, como Hölderlin, o poeta sublime”) atribuiu um quarto “proliferação de
alemão que mais admirou na próprio na sua casa. Durante os três eus nos jornais”
juventude, tinha aversão a anos seguintes faria 23 visitas. (p. 67) —
nacionalismo — abdicou da A relação com a jovem Lou execrada por
cidadania prussiana e viveu sempre Salomé (“uma beleza russa Mário de
como um apátrida. clássica”) ocupa também dezenas de Carvalho numa
Uma característica evidente páginas na biografia. Lou (que mais crónica de Janeiro de 1996 — mas,
desta biografia é o recurso às tarde foi também amante de Rilke e não querendo também
biografias de algumas figuras com de Freud) foi apresentada a socorrer-me do “plural solidário
quem o filósofo privou: são vários Nietzsche pelo seu, à época, melhor do PCP” ou de uma qualquer
os capítulos em que a sua vida se
cruza amiúde com as vidas de
Wagner e da mulher Cosima, e
amigo, o filósofo judeu Paul Rée; e
escolheram para ponto de encontro
um dos menos expectáveis lugares:
prosopopeia, vejo-me levado a
dizer que me lembro de haver
entrevistado há uns anos — há uns
miguel araújo
também da então muito jovem Lou a Basílica de São Pedro, em Roma. bons anos, poderia dizê-lo casca de noz
Salomé. É, aliás, dela (mais tarde Lou, que era tão avessa à ideia de eufemisticamente — o autor do
psicanalista) a ideia de que casamento quanto Nietzsche, mas romance Um Deus Passeando pela Reservas | Bilheteira online Rua Belém do Pará 3810-066 Aveiro 234 400 920 | 924 405 544
Nietzsche “é a causa da sua própria que tempos depois viveria com Paul Brisa da Tarde. E lembro-me de www.teatroaveirense.pt | www.ticketline.sapo.pt INFORMAÇÕES Ligue 1820 (24H)
doença induzida”, pois segundo Rée (anos mais tarde casaria com Mário de Carvalho ter e
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 25
ENRIC VIVES-RUBIO/ARQUIVO
aquela mesma indiferença que a esperado dez anos (a 1.ª edição é o querem construir. É importante
siamesa Mafalda (grafada em de 2008) para ser publicada em perceber esta diferença dentro das
itálico talvez para melhor Portugal. Digo que tardou, porque perspectivas anti-racistas,
sublinhar o mau “hábito de pôr antes de cá chegar andou por todo reconhecer a importância da
nomes de gente a animais”) o mundo, em tantas línguas, para representatividade e do lugar de
costumava passear diante do só agora ser publicada, pela mão fala dos sujeitos racializados, para
escritor (cf. “Que fazes por aqui, ó da Orfeu Negro, no país onde que possamos evitar processos de
gato…?”, pp. 45-50). A ordenação Grada Kilomba nasceu (1968), apropriação e coisificação de um
não é cronológica, antes cresceu e se formou em psicologia movimento que se quer
obedecendo a uma distribuição e psicanálise. Como diz a própria emancipador e livre das velhas
por quatro núcleos autora, numa introdução redes coloniais que transformam o
“representando”, segundo o especialmente dedicada à edição sujeito negro em algo exótico,
editor, outras tantas “facetas do portuguesa, a obra não poderia ter capitalizável, um entertainer num
escritor: o ficcionista, o cidadão, o chegado antes. palco branco.
comunicador e o memorialista”. É sintomático que o livro chegue Assistimos hoje à emergência do
Neste último apartado, o menos pela porta do mundo das artes e feminismo negro português, com
extenso do volume, cabe uma cultura e que, simultaneamente, múltiplos colectivos liderados por
vénia a José Saramago no ano e no esteja, praticamente, ausente na mulheres negras, e é interessante,
mês do Nobel: “Eu, que sempre fui academia portuguesa. Quanto aliás, a conexão que este trabalho
um repentista-do-dia-seguinte, tempo demorará até que este livro de Grada Kilomba permite fazer
não podia deixar de admirar e de possa fazer parte da bibliografia de com o surgimento do feminismo
invejar uma arte de dizer que me referência de um cursos de ciências negro em Berlim na década de
parecia coisa de feiticeiro. E, ainda sociais e humanas? Mas regressa na 1980. Audre Lorde viveu nessa
por cima, num português hora exacta, num tempo em que já cidade entre 1984 e 1992,
impecável, capaz de ser posto logo existe algum espaço para a reflexão envolvendo-se num movimento de
em papel.” (p. 251) Há crónicas de e acção em torno da mulheres afro-alemãs que
intervenção política, clássicas descolonização da sociedade começavam a procurar formas de
crónicas sobre crónicas — com um portuguesa, apesar de todos os articulação da sua voz e da sua
espécime de rematada e gozosa silenciamentos, da violência do experiência. Desse movimento, no
execução intitulado A crónica racismo, do negacionismo que qual destacamos Katharina
falhada (pp. 37-43) — e crónicas glorifica e romantiza o passado Oguntoye e May Ayimm, surgirá,
Mário de Carvalho publicou a maior parte destas crónicas no Jornal sobre o campo literário e o ofício colonial, das fantasias em 1986, o livro: Mostrando as
de Letras, Artes e Ideias e no PÚBLICO entre 1987 e 1996 de escrever. Lê-se neste núcleo o lusotropicalistas, como se a Nossas Cores: Mulheres Afro-alemãs
texto mais extenso do volume, e expansão da “língua mais bonita” falam (tradução livre de Farbe
que é também um dos mais (The Most Beautiful Language, é o bekennen).
verrinado (em comentário que, se como anglicismo espúrio. Depois galhofeiros: Espelho de escritores. título irónico da 1.ª exposição É uma carta para pessoas negras,
não coube na entrevista publicada, encontrei-a repetidamente em Trata-se de um divertimento individual da autora em Portugal, como a autora, as entrevistadas e
ficou gravado na minha memória Francisco Manuel de Melo.” (p. taxonómico que inventaria e Galerias Municipais/EGEAC, 2017), como Philomena Essed, Frantz
e, talvez, em alguma cassete que 245). Pelo contrário, e para dar descreve 35 espécies de a dita “lusofonia”, tivesse sido e Fanon e bell hooks, referências
ainda exista lá por casa) incertos outro exemplo, o cronista até agremiados. Nem o autor escapa à fosse indolor. teóricas centrais deste trabalho. A
críticos literários, e talvez abomina, em texto de 1996, o benigna zombaria. Obviamente. A (des)construção que Grada mudança da pergunta “o que te
escritores, que se não lembrariam, famoso “copo com água” e outras Kilomba faz do racismo neste livro, fizeram?” ou “o que fizeste perante
aparentemente, de que a literatura pesporrências da hipercorrecção. ainda que escrito em Berlim e a isso?” para “o que te fez o
portuguesa vem desde Paio Soares Porque não se trata só da língua Ensaio partir das experiências de racismo?” possibilita uma narrativa
de Taveirós, e que nunca teriam escrita, mas também da mulheres afro-alemãs, tem tudo a que retira do centro a branquitude,
ouvido falar de Frei Amador “bem-falância do português” (p. ver com Portugal, com os segredos deixando de ser o princípio
Arrais, e que talvez nunca 155). E a rede lexical do autor tanto Uma carta para que tem por contar (Secrets to Tell, organizador do discurso. Escrita
houvessem lido A Brasileira de
Prazins e A Casa Grande de
pesca na escrita erudita quanto na
oralidade popular. Aliás, um dos
nós: racismo exposição da autora no
MAAT-Museu de Arte, Arquitectura
num estilo literário, com especial
atenção à língua e ao seu poder “de
Romarigães, e que nem sequer meus prazeres, ao ler um texto de quotidiano e Tecnologia, 2017) e, nesse criar, fixar e perpetuar relações de
saberiam quantas personagens Mário de Carvalho, é tropeçar em sentido, é uma carta para nós. poder e de violência” (pp.9), a obra
morrem de apoplexia fulminante vocábulos e locuções que já só e branquitude A carta chega a tempo não só disseca inúmeros episódios de
em O Crime do Padre Amaro. raramente vejo escritos e ainda porque a perspectiva pós-colonial e racismo quotidiano expondo os
E talvez me lembre agora disto mais raramente oiço, de viva e alta Memórias da Plantação: decolonial ganhou terreno, ainda mecanismos psíquicos que o
porque, se há prosa voz. Junte-se a isto uma Episódios do Racismo que marginal, mas porque o constroem. Sem deixar de
contemporânea que se inscreve apuradíssima e, sobretudo, próprio feminismo negro e o reconhecer a dimensão estrutural e
serena, metódica e impassível ironia, e eis o prazer
Quotidiano da artista plástica movimento negro portugueses são institucional do racismo, Grada
conscientemente, na mais dobrado e redobrado. Grada Kilomba é hoje hoje, finalmente, protagonistas, Kilomba desmascara os processos
estruturada tradição literária Por condição congenial do seu apresentado na Hangar, em sem procuradores, de uma psíquicos de reencenação
portuguesa, é, certamente, a do fabrico, condição que nem é Lisboa, com a presença da narrativa sobre quem são, que constante das relações coloniais
autor de O Que Eu Ouvi na Barrica defeito nem virtude, a crónica é futuro colectivo projectam e como nas interacções quotidianas.
das Maçãs. Mário de Carvalho um género, modalidade ou
autora, que vive em Berlim.
CORTESIA DA ARTISTA/ZÉ DE PAIVA
escreve ‘com’ a história da exercício de escrita inescapável a Chega às livrarias a 22 de
literatura portuguesa (e também certos marcadores temporais. O Maio. Cristina Roldão
‘com’ a herança de outras presente volume colige uma
literaturas, como bem o sinaliza, selecção de 40 crónicas (assumido Memórias da Plantação:
de resto, o título deste volume). o género com generosa e criativa Episódios do Racismo
Um refrigério contra a prosa latitude) escritas pelo autor entre Quotidiano
“internacional” aprendida à pressa 1987 e 1996 (uma delas estando
Grada Kilomba
num curso de “escrita criativa” e datada de Abril de 2014 e outras Orfeu Negro
também contra a paraliteratura surgindo sem data) e publicadas
sentimental, que ambas no Jornal de Letras, Artes e Ideias e mmmmm
continuam sendo abundantes. A no PÚBLICO. A selecção — afirma-o
literatura, aqui, não é mezinha o editor em “Nota” inicial — pôs de Memórias da
redentora de estados de alma ou parte “algumas crónicas mais Plantação:
de ansiedades de ‘expressão’, é um datadas” e manteve aquelas Episódios do
artefacto social e lúdico. Há na “capazes de ilustrar como a Racismo
obra do autor uma espécie de História é cíclica e alguns autores, Quotidiano de
fidelidade à língua portuguesa que proféticos”. Sobre profecias e mais Grada Kilomba é
se não escuda em purismo algum: ou menos eternos retornos não me como uma carta
“Recusei-me durante anos a usar a pronuncio, mas poderei afirmar que demorou
expressão ‘em ordem a’ porque que estes textos (ou a sua maior e muito tempo a
um mestre de Português, melhor parte) souberam manter chegar. Digo que tardou, não Grada Kilomba estará hoje em Lisboa para apresentar o seu livro
fortemente repugnado, a rejeitou com o tempo que sobre eles correu apenas pelo facto de a obra ter
26 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
Cinema
Essa reencenação representa um
choque profundamente traumático
para as pessoas negras, que no seu
dia-a-dia são sistemática e
violentamente reenviadas para os
lugares que lhes eram atribuídos
nas relações coloniais. Trata-se de
uma projecção do passado no
presente e do presente no passado,
repetida ad nauseam, através de
uma cadeia de imagens e
significados que se estendem de lá
para cá. Não são meros restos do
passado que se colam, já sem
sentido, aos gestos, categorias,
papéis e relações de hoje. A
reencarnação desse passado
colonial alimenta relações de
poder no quotidiano; define quem
é excluído do imaginário da nação Extremamente Perverso, Escandalosamente Cruel e Vil conta a história do assassino Ted Bundy
e da autoridade na produção de
conhecimento; define quem serve
e quem é servido, quem é limpo e Extremamente Perverso, outras dezenas durante a década
civilizado, quem é exótico e Estreiam Escandalosamente Cruel e Vil de 1970. Bundy manteve durante
sexualmente degradado, quem é todo o processo que rodeou a sua
Extremely Wicked, Shockingly
sujeito e quem é objecto, no fundo,
quem é humana/o.
Psicopata Evil and Vile
prisão e o seu julgamento
(dirigindo em parte a sua própria
Nesta constante captura nas americano De Joe Berlinger
Com Zac Efron, Lily Collins, Kaya defesa) que era inocente dos
fantasias coloniais projectadas crimes de que o acusavam e que
sobre si, a identidade das pessoas (versão original) Scodelario
era vítima de uma conspiração
negras fica como que suspensa à mmmmm governamental. O seu foi o
medida que são transformadas na A história verdadeira de Ted primeiro julgamento a ser filmado
tela de projecções dominantes e Bundy, assassino em série “Extremamente perverso, e transmitido em directo na
degradantes e que lhe é imposto escandalosamente cruel e vil”: eis televisão americana e Bundy
um olhar sobre si que não é o seu
dos anos 1970, como retrato as palavras usadas pelo juiz Edward aproveitou ao máximo a
próprio. Presas num jogo de da América: uma sociedade Cowart quando, em 1979, publicidade que recebeu,
interacções em que a única forma do espectáculo condenou à pena de morte Ted tornando-se numa daquelas
de existirem — e lembremo-nos que permanentemente seduzida Bundy, assassino em série que figuras que parecem só existir na
existir é sempre relacional — é confessou uma trintena de América — país que parece adorar
através das categorias coloniais, os
pela aparência. Jorge homicídios e que provavelmente deixar-se seduzir por vigaristas,
processos de alienação e Mourinha terá sido responsável por várias manipuladores ou, neste caso, e
despersonalização tomam lugar. A
autora deixa-nos não só um mapa
destes mecanismos, mas também
pistas para um processo de
descolonização interior.
É também uma carta para
pessoas brancas, que ao lerem este
livro, sentirão com certeza o
desconforto de, ao contrário do
que é costume, não serem o centro
da narrativa e mesmo as melhor
intencionadas encontrarão duras
facetas de si neste trabalho. É que,
para Grada Kilomba, o racismo é
branquitude, poder, não é falta de
informação. Através de
mecanismos psíquicos como a

muuseeu
muse
projecção, a dissociação, a

m ec _mu
repressão e a regressão as pessoas
brancas negam para si mesmas,
sem que se apercebam muitas
vezes, a existência do racismo e o

cm-sst rso ptt


privilégio que daí retiram, negam
facetas suas que recusam
reconhecer. m ec cm
Como refere a autora, “este
percurso de consciencialização
colectiva, que começa com a
negação — culpa — vergonha —
reconhecimento — reparação, não
é de forma alguma um percurso
moral, mas um percurso de
responsabilização. A
responsabilidade de criar novas
configurações de poder e de
conhecimento” (pp.6), e este livro
é, sem dúvida, parte desse
processo.

Cristina Roldão vai estar à conversa


com Grada Kilomba nesta
sexta-feira, às 21h, no Hangar,
em Lisboa

ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 27


29 MAI
– 01 JUN
2019

DINH€IRO

M/12

Em Chamas mostra como mesmo na sua vertente mais industrial há autores interessantes a seguir no
cinema da Coreia do Sul

criminosos psicopatas que escandalosamente cruéis e vis” a


ninguém o diria serem-no. tornar-se num circo mediático que Sombra
É isso que torna inspirada a ideia antecipa muitas das polarizações
de colocar Zac Efron, há uns tempos sociais e das manipulações de uma dúvida
ai-Jesus adolescente à conta dos emocionais dos nossos dias.
High School Musical, a interpretar Bundy é o “psicopata americano” Um óptimo, e sobretudo

MALA
Bundy — o carisma é parte original, mestre da manipulação muito eficaz, puzzle de
integrante da equação, mas o actor capaz de tudo para atingir os seus
(fazendo lembrar um jovem Mark objectivos — espécie de negativo do
ambiguidade psicológica, a
Ruffalo) consegue aceder por trás Cavalheiro com Arma de Robert construir um ambiente de

VOADORA
da fachada a uma dimensão de Redford no filme de David Lowery. suspeita permanente e quase
chocante crueldade glacial. O E ao basear-se nas memórias de Liz paranóica. Luís Miguel
veterano documentarista activista Kendall, a mãe solteira que foi
Joe Berlinger (que acompanhou, durante anos companheira de
Oliveira
por exemplo, o controverso Bundy sem desconfiar da sua Em Chamas
julgamento dos Três de West culpabilidade (ou sequer da sua
Burning
Memphis numa série aclamada de psicopatia), Berlinger aborda
De Lee Chang-Dong
documentários) filma esta história também os dilemas de consciência Com Ah-In Yoo, Steven Yeun,
não como uma caça ao homem de uma mulher prisioneira dos seus Jong-Seo Jun
policial (que não deixa de estar próprios sentimentos e apaixonada
presente), mas sim como um olhar por alguém em quem nunca viu (ou mmmmm
para os abismos mais negros da nunca quis ver?) os “sinais
alma americana. Berlinger não exteriores”. Extremamente Baseado num conto de Haruki
pretende perceber o que ia na Perverso, Escandalosamente Cruel e Murakami, o filme do coreano Lee
cabeça do manipulador e calculista Vil não se coíbe de filmar esta Chang-ho (conhecido em Portugal
Bundy, mas sim detectar o que a história como uma espécie de por Poesia) foi um grande sucesso
figura e o seu contexto temporal “lição” do passado que só hoje global de estima crítica ao longo do
dizem sobre os Estados Unidos, começa a ser compreendida como último ano, desde a sua estreia no
verdadeira “sociedade do presciente. E nunca perde de vista a Festival de Cannes de 2018. Não
espectáculo” que inadvertidamente dimensão humana de uma história partilhamos as reacções mais
abriu uma caixa de Pandora, com que é muito menos sobre o entusiasmadas (o filme entrou em
um julgamento de homicídio por criminoso do que sobre as suas muitas listas de “melhores de 2018”
crimes “extremamente perversos, vítimas. de críticos do mundo inteiro,
frequentemente nas posições
cimeiras) mas não se deixa por isso
AS ESTRELAS Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara
de reconhecer que se trata de um

DO PÚBLICO óptimo, e sobretudo muito eficaz,


puzzle de ambiguidade psicológica,
a construir um ambiente de
suspeita permanente e quase
ESBOÇOS Agradar, Amar e Correr Depressa – mmmmm mmmmm paranóica, que nalguns momentos
DE TÉCNICAS The Beach Bum: A Vida numa Boa – mmmmm mmmmm não fica longe de lembrar o mestre
INTERIORES Em Chamas mmmmm mmmmm –
incontestado deste tipo de
ambientes, o velho Hitchcock, se
Extremamente Perverso... mmmmm – – não ao nível dos procedimentos
Hotel Império mmmmm – mmmmm pelo menos no ar que se respira.
É notável a forma como Lee
John Wick 3 – mmmmm –
Chang-ho compõe, sem nunca
Mar a – – explicitar em demasia, a relação
Ruben Brandt, Coleccionador mmmmm – – entre o seu trio protagonista,
sobretudo o esguio e perturbante
O Que me Ficou da Revolução mmmmm – –
Ben (é sobretudo esse que lembra
ATÉ O Silêncio dos Outros – mmmmm mmmmm Hitchcock, estamos perante ele
14 JUL Três Rostos mmmmm mmmmm mmmmm como estávamos perante Joseph
2019 Cotten no Shadow of a Doubt/
Sinónimos mmmmm – mmmmm
Mentira), e vai erguendo um
a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente
ambiente de thriller assente em
28 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
micro-acontecimentos, que são porque dadas as circunstâncias não
sobretudo sugestões para a se imagina que os seus filmes
imaginação (e inquietação) do circulem livremente pelo Irão). 3
espectador, e na sombra de um Rostos, aliás, que é interpretado
ressentimento de classe (porque pelo próprio Panahi enquanto
Ben é abastado, elegante, sedutor, Panahi (um daqueles “dispositivos”
ao contrário do outro rapaz de representação muito
protagonista). Evidentemente, há kiarostamianos, de que o filme até
também o grande “acontecimento” guarda mais lembranças), contém
do filme, o desaparecimento pelo menos uma cena em que a
inexplicado da rapariga. De forma condição do cineasta é sugerida. É
mais ou menos paradoxal, é quando quando a actriz que acompanha
passa a lidar essencialmente com Panahi mantém um diálogo com um
“factos” narrativos dessa aldeão (um diálogo bastante
importância que o filme de Lee divertido, sobre rituais de
Chang-ho parece mais maquinal, a circuncisão e o destino a dar aos
remeter-se mais defensivamentre à prepúcios dos rapazes
declinação (habilidosíssima) de uns circuncidados), que lhe fala de um
quantos estereótipos do thriller — actor célebre nos tempos de antes
acabando por dar a sensação, da Revolução Islâmica, dizendo a
quanto mais se aproxima do actriz que nem o “Sr. Panahi” pode
desfecho, que os pontinhos se vão ir ao estrangeiro nem esse actor
unir da maneira mais previsível (e, pode voltar ao Irão (percebemos
de algum modo, é o que acontece). imediatamente que se trata de
Mas é um bom filme, que mostra alguém exilado). Quando o velhote
como mesmo na sua vertente mais pergunta “porquê?” ela não
industrial (isto é: para além de Hong consegue explicar, ou percebe a
Sang-Soo) há autores interessantes a inutilidade de qualquer explicação.
seguir no cinema da Coreia do Sul. Nos confins rurais do Irão (o filme
passa-se perto da fronteira com o
Azerbaijão), as minudências
políticas do regime, e mesmo as leis
Pelos caminhos (islâmicas ou outras), são
do Irão incompreensíveis. É um pouco
como naquela frase de Kafka citada
no Trás-os-Montes de António Reis e
Um filme que usa o seu Margarida Cordeiro (de que nos
pretexto narrativo para um lembramos nem só por causa disto),
pequeno périplo por uma “longe da capital, longe da lei”, e o
filme até insiste na forma como os
zona isolada e remota da
aldeões inventam as suas próprias
província iraniana, como um regras (o seu próprio “código da
termómetro do sentimento estrada”, por exemplo), por
do Irão profundo. Luís Miguel ineficácia ou desinteresse da
Oliveira “capital”.
E isto é um pouco o nó do filme,
3 Rostos que usa o seu pretexto narrativo
De Jafar Panahi (uma mensagem a anunciar o
Com Jafar Panahi, Behnaz Jafari, suicídio iminente de uma jovem
Marziyeh Rezaei aspirante a actriz, que quer ir
estudar para o conservatório de
mmmmm Teerão mas a família não deixa)
para um pequeno périplo por uma
Não deixa de ser quase inacreditável zona isolada e remota da província
a maneira como Jafar Panahi, em iraniana, como um termómetro do
situação de liberdade condicionada sentimento (mas também da rotina
(e oficialmente proibido de filmar diária) do Irão profundo. Pensa-se
pelas autoridades do seu país), muito, de facto, em Kiarostami: o
consegue ainda assim, road movie, a câmara dentro do
clandestinamente, rodar novos automóvel, os diálogos (sobretudo
filmes com regularidade e fazê-los na sequência inicial) sobre o
chegar ao circuito internacional suicídio, que evocam fortemente O
(que é hoje, presumimos, o Sabor da Cereja, certas situações (o
principal destinatário da sua obra, boi tombado no meio da e

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aos primeiros 10 leitores e válida apenas para um convite por jornal e por leitor. Obrigatória
3 Rostos, um filme sobre como a liberdade pode ser inventada a apresentação do documento de identificação no acto do levantamento.

ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 29


Me Ficou da Revolução queda-se por
uma sensação de insatisfação, de
filme simpático e divertido com
meia-dúzia de óptimos momentos e
de verdades bem sacadas
desperdiçados num todo
relativamente insosso.

Missão
desenxabida
Francamente, um bocejo,
que passa de sequência “de
O Que me Ficou da Revolução deixa uma sensação de insatisfação acção” a sequência “de
acção” com a maior
estrada), e a forma de encenar para o patrão) e, sendo filha de indiferença. Luís Miguel
certos planos, com as personagens militantes activos que viveram o Oliveira
a perderem-se longamente na Maio de 1968, não quer abrir mão
paisagem, é uma reprodução dos seus ideais e da esperança num John Wick 3 — Implacável
bastante convincente, e à beira da mundo melhor. Angèle é, de muitas
John Wick Chapter 3:
“homenagem”, de elementos maneiras, Judith Davis: a actriz
Parabellum
característicos da “caligrafia” do francesa colocou na personagem
De Chad Stahelski
autor de Close Up. Os 3 Rostos do que escreveu e interpreta neste seu Com Keanu Reeves, Ian McShane,
título referem-se a três actrizes: a primeiro filme muito da sua própria Halle Berry, Anjelica Huston
que acompanha Panahi (Behnaz vivência pessoal, mesmo que
Jafari, que todos os aldeões Angèle seja uma chata de primeira mmmmm
conhecem por causa de uma série apanha, com o seu idealismo
de televisão), a miúda que quer ir utópico, purista e ortodoxo e a sua John Wick, que já vai aqui no
para o conservatório, e uma antiga recusa em vergar-se ao terceiro episódio (e acaba, claro, a
actriz dos tempos pragmatismo quotidiano do anunciar o quarto), está para Keanu
pré-revolucionários, que vive ali na sistema. Reeves como a Missão Impossível
aldeia, em recolhimento Angèle, que está sempre a para Tom Cruise, quer dizer, uma
parcialmente voluntário. Mas desta perguntar “porquê?” e a estragar espécie de recreio, bastante
velha actriz nunca vemos o rosto: ocasiões sociais com a sua rentável, para exibir os seus dotes
apenas uma silhueta através de uma verborreia ininterrupta, é, também, de action man. Mas a comparação é
janela iluminada, ou, no plano mais o grande achado desta comédia bastante desfavorável para John
bonito do filme, as suas costas, resmungona, muitas vezes Wick e para Keanu Reeves: este
filmadas ao longe, perante uma tela inspirada e outras tantas maçadora, filme é, francamente, um bocejo,
onde pinta a natureza que tem espécie de diagnóstico do estado do que passa de sequência “de acção” a
defronte. Por alguma razão, essa mundo e manifesto da impotência sequência “de acção” com a maior
personagem (que todos referem da cidadã média e da sua vontade indiferença, longe de partilhar
como algo amarga) parece a de inverter esse estado de coisas. alguma coisa daquele sentido da
personagem mais livre de todo o Inspirada sempre que confronta a plasticidade no tratamento do
filme. Que, finalmente, é dualidade idealismo/pragmatismo, espaço e do tempo que Christopher
exactamente sobre isso: a e que questiona a aceitação McQuarrie tem trazido à Missão
liberdade, e a maneira como ela resignada do “é assim que o mundo Impossível e que faz dela um dos
pode (ou não) ser inventada, em é”, com genica e ironia. Maçadora franchises mais interessantes da
tempos e lugares agrestes. quando procura (sem grande actualidade — e bem pelo contrário,
sucesso) integrar questões mais John Wick 3 abusa dos efeitos
sensíveis e pessoais, como a digitais, denunciando a “mentira” e
dificuldade de Angèle em tornando automaticamente
Os amanhãs já entregar-se ao amor ou a sua frieza desinteressantes (porque cheias de
não cantam para com a mãe que não vê há 15
anos. A mise en scène de Davis é
“batotas”) as supostas proezas
físicas da sua estrela. Salva-se da
puramente funcional, pensada nulidade total pelas presenças em
Uma comédia inspirada sobre apenas para transmitir o texto pequenos papéis de actores como
uma idealista resmungona, (adaptado de uma produção teatral Laurence Fishburne, Halle Berry ou
escondida pelo meio de uma do colectivo L’Avantage du doute, Anjelica Huston, que trazem algum
impulsionado pela actriz/ sal e pimenta a uma refeição que
comédia familiar pouco
realizadora) e valorizar as não deixa, apesar disso, de ser
entusiasmante. Jorge interpretações. É por isso que O Que profundamente desenxabida.
Mourinha

O Que me Ficou da Revolução


Tout ce qu’il me reste de la
révolution
De Judith Davis
Com Judith Davis, Malik Zidi, Claire
Dumas

mmmmm
Angèle está farta e já não tem mais
paciência para aturar as pequenas
humilhações do dia-a-dia: ela é uma
millennial precária que acaba de ser
despedida de um atelier de
arquitectura (que não tem dinheiro
para lhe pagar o salário mas tem John Wick 3 – Implacável abusa dos efeitos digitais
dinheiro para comprar café volluto
30 | ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019
Discos
a sua presença parece domar os anteriormente por Impressiveness
Pop instintos mais épicos e (balada quase aquática, muito ao
exuberantes que os Gift foram jeito de Brian Eno, cujo vagoroso
O longo Verão alimentando depois de Vinyl (1998)
— e que os conduziam, com
tom ambiental acaba submergido
por um arrebatamento de cordas),
dos Gift frequência, a um excesso aí sim os Gift conseguem a melhor
paredes-meias com o burlesco, sequência do disco. Depois de
com Brian Eno numa armadilha comum que resistirem quase meio disco a
consiste em confundir o grande e o acelerar as canções, Cabin e Vulcão
Verão não responde ainda à grandioso. arriscam um certeiro tom de pop
dúvida de quem serão os The Tal como acontecia com atravessada por estilhaços soul e
Primavera, Verão não começa gospel, com o casamento entre
Gift pós-Brian Eno. Gonçalo bem. O instrumental Blue parte de cordas e bases electrónicas a
Frota um esqueleto de tema ao piano e é sugerir uma progressiva
A vergonha Verão progressivamente adornado até aproximação aos Radiohead
da Europa The Gift
adquirir uma forma afectada pela pós-OK Computer. Logo a seguir,
La Folie tal perniciosa visão ambiciosa e aliás, Foggy dá ares de Pyramid
Mar enfática (como se assistíssemos a song, mas mantém a distância de
De Margarida Gil mmmmm um workshop de fabricação de segurança suficiente para fechar
Com Maria de Medeiros, Pedro uma canção do grupo), mas que esse inspirado trio de temas que
Cabrita Reis, Nuno Lopes Há dois anos, ao soa sempre inconsequente. E logo elevam a fasquia de Verão e
juntar-se ao a seguir, Haddock, de acordo com mostram uns Gift bem resolvidos:
a grupo português o tal mote intimista em que a voz com boas ideias num fluxo
na produção de de Sónia Tavares surge menos constante, a deixarem as canções
Desde Relação Fiel e Verdadeira, em Altar, Brian Eno esforçada em disputar todas as respirar, não as sufocando com
1987, Margarida Gil tem vindo a parecia salvar os atenções com os arranjos, avança arranjos que, no passado, soavam
construir uma carreira irregular e The Gift do naufrágio. Se os dois por uma linha melódica muitas vezes a uma demonstração
multifacetada que atinge com Mar álbuns anteriores (Explode e perigosamente próxima de Ryuichi de competências técnicas e não
o seu ponto mais baixo de sempre. Primavera), pareciam totalmente Sakamoto (é ouvir The wuthering tanto a decisões verdadeiramente
É que nada neste filme que perdidos, à deriva, tentando heights, de 1996). E chega-se a musicais.
pretende ser uma meditação sobre deixar-se levar por correntes que temer, mais uma vez, que os Gift Infelizmente, Verão prolonga-se
uma Europa à beira do naufrágio lhes eram estranhas — no que isso não consigam descolar de alguma para lá do necessário. O tema título
resulta como pretendido. As suas tinha de um saudável movimento banalidade. final, cantado em português (os
personagens são meros esboços de busca, mas que falhava nos Felizmente, passado esse Cabo títulos em português escondem,
sem rei nem roque, marionetas seus intentos —, Eno aparecia das Tormentas, em poucos outros quase sempre, letras em inglês) e
metafóricas que o mar arrasta sem então como personagem salvífica, momentos Verão volta a soar tão em jeito de arquétipo de Festival da
destino, com os quais mesmo capaz de garantir uma vida nova desolado. Segue em crescendo, na Canção é claramente uma peça
actores como Maria de Medeiros, ao grupo. E o facto é que Altar verdade, num primeiro bloco (o fora do baralho e Lowland (com o
Nuno Lopes e Catarina Wallenstein surgia uns furos acima de uma disco aparece dividido em três teclista/compositor Nuno
pouco ou nada conseguem criar. A criatividade que apresentava blocos, graças a dois interlúdios) Gonçalves na voz), apesar de
“comissária europeia” de Medeiros sinais de cansaço e de crise. A mais desnudo, em canções que simpático, nada traz de
é de uma ingenuidade questão que então se levantava era sabem existir sem esforço, até inesquecível. Sobretudo quando a
inacreditável, uma mulher à toa que caminho conseguiriam trilhar chegar a Books, ponto alto do óptima Sol, de linhagem pop/r&b
cujo acolhimento de um refugiado os Gift quando Brian Eno deixasse primeiro terço do álbum. A mesma (não ficaria mal num álbum do duo
à deriva tem qualquer coisa de mea de lhes amparar os passos. sobriedade que leva Serpentina a AlunaGeorge, por exemplo),
culpa para aliviar consciências; a Verão não responde ainda a essa crescer até um segmento de cordas merecia outra companhia. O
mulher fatal de Wallenstein passa dúvida, uma vez que Brian Eno herdado do Beck de Morning Phase pecado de Verão dos Gift é, por
de determinada e voluntariosa de volta a acompanhar o quarteto de é depois premiada com Books, isso, de uma outra ordem de
um momento para o outro para Alcobaça naquela que se poderá primeiro achado de Verão, excesso. Devidamente peneirados,
supersticiosa e ciumenta sem que o assumir que é a continuidade de irrepreensível na recusa em sair do estes 14 temas poderiam ter
filme justifique (ou sequer um ciclo de pendor mais intimista seu casulo de contenção. emagrecido para uns 10/11 e
explique) essa transformação. E iniciado em Primavera (2012). Mas Quando chegamos ao segundo resultado num álbum bem mais
tudo se passa a bordo de um iate de reconforta na confirmação de que bloco, já com pistas deixadas equilibrado e enxuto.
prazer com o qual um Wellesiano
Pedro Cabrita Reis faz contrabando
de obras de arte pelas costas de
uma Europa envergonhada.
E talvez aí esteja o porquê do
desastre de Mar: é um filme que
tem certamente boas intenções
(discutir o estado de uma ideia
europeia em crise) e o coração no
sítio certo, mas que depois não é
capaz de as concretizar com a
espessura que elas exigem,
refugiando-se em simbolismos
gastos e datados. Mesmo
assumindo que Margarida Gil
procura uma dimensão de fábula,
tudo em Mar são lugares-comuns
frágeis, tratados com uma sisudez
que raia pontualmente o ridículo.
Mar não é capaz de dar ao
espectador âncoras que lhe
permitam subir a bordo do seu
navio; refugia-se num
distanciamento teatralizado, numa
austeridade elíptica que
identificamos com uma certa ideia
autista de cinema de autor
português — tanto mais chocante
quanto Margarida Gil já provou
(repetidamente) ser capaz de mais, Estes 14 temas poderiam ter emagrecido para uns 10/11 e resultado num álbum bem mais equilibrado
e de melhor, que isto. J.M.
ípsilon | Sexta-feira 17 Maio 2019 | 31
CONTENEDORES 7” | CONTENEDORES 8” | JOSÉ MANUEL BALLESTER

(EURO)POLÍTICAS: FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA DEPOIS DE 1999

MUSEU DO DINHEIRO
LG. DE S. JULIÃO (BAIXA/CHIADO)
OBRAS DA COLEÇÃO DE FOTOGRAFIA
CONTEMPORÂNEA DO NOVO BANCO
CURADORIA DE LUÍSA SANTOS

O NOVO BANCO e o Banco de Portugal trazem até si uma exposição que retrata os últimos 20
anos do projeto europeu, sob a lente sensível de diversos artistas fotógrafos, através de 18 obras
pertencentes à Coleção de Fotografia do NOVO BANCO.
Com base em três temas centrais, a exposição “(Euro)políticas: fotografia contemporânea depois de
1999” propõe uma reflexão sobre a transformação social, económica e política na Europa, a partir da
introdução da moeda única.

museudodinheiro.pt nbcultura.pt

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