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Jean Zumstein
Resumo
Estabelecendo a hipótese da coerência do pensamento paulino, o artigo se interroga sobre o
princípio de sua constituição. Sendo herdeiro da tradição querigmática, que vê na confissão
da morte e da ressureição do Cristo o evento escatológico da salvação, Paulo constrói sua
teologia se concentrando neste evento fundador, porém, ele o interpreta de maneira original a
partir do conceito de “cruz”, de tal maneira que “a palavra da cruz” se torna o princípio
constitutivo de sua teologia. A palavra da cruz se expressa sobretudo em dois discursos,
fundamentais e ao mesmo tempo distintos: a teologia da cruz e o ensinamento sobre a
justificação.
1. Introdução
Jean ZUMSTEIN, « La croix comme principe de constitution de la théologie paulinienne », artigo publicado na
obra coletiva: Andreas DETTWILER, Jean-Daniel KAESTLI, Daniel MARGUERAT (org.), Paul, une théologie en
construction, Genève, Labor et Fides, 2004, p.297-318. Tradução livre de José Francisco Rodrigues Neto.
1 Constatação sobre a história da pesquisa emitida por Jean-Noël ALETTI, « Où sont les études sur Saint Paul? »,
RSR 90, 2002, p. 329-351. Sobre a situação atual da pesquisa paulina, ver: Samuel VOLLENWEIDER, art. “Paulus”,
RGG4 2, 2003, col. 1035-1066.
2 Par exemplo na série “New Testament Theology”, publicada sob a direção de James D.G. Dunn, edições
Cambridge University Press, a teologia de Paulo não é mais considerada como um fenômeno global, pois cada
carta é objeto de uma busca distinta. Um detalhe que chama a atenção é que se observa um fenômeno contrário
nos intérpretes “leigos” de Paulo, tais como Alain BADIOU, Saint Paul. La fondation de l’universalisme (Les essais
du Collège international de philosophie), Paris, PUF, 1997.
3 É ilusório pensar – isto seria sucumbir ao mito positivista do progresso – que a pesquisa, por exemplo paulina,
está em constante progresso de tal maneira que sabemos mais e melhor hoje que dantes.
4 Cf. a breve história da pesquisa em James D.G. DUNN, The Theology of Paul the Apostle, Edinburgh, T & T
1
apóstolo6. Nesta lista, a epístola aos Romanos – na medida em que pertence ao gênero
de um escrito de apresentação – ocupa um lugar particular7.
Hipótese literária II. O exame crítico das cartas paulinas conduz a uma dupla
constatação. Par um lado, é extremamente difícil, mesmo impossível, de reconstituir,
de maneira linear e certa, a ordem cronológica das cartas. A título de exemplo,
Gálatas foi escrita antes ou após a correspondência com a igreja de Corinto? 8
Filipense e Filêmon são o fruto de uma estadia em Éfeso ou do cativeiro romano? 9
Esta incerteza torna aleatória uma tentativa de reconstruir uma história do
desenvolvimento do pensamento paulino10. Por outro lado, o debate sobre a crítica
literária das cartas paulinas – a questão de saber se as cartas canônicas, claramente
2Cor e Fl, são escritos únicos ou frutos de uma compilação posterior – permanece
aberta11. Levando em consideração estas duas incertezas que, pelo estado atual da
documentação, deveriam ser necessariamente levantadas, trataremos as sete cartas
proto-paulinas como um corpo literário, ou seja, nós as leremos em sua versão
canônica, de maneira sincrônica.
Hipótese histórica I. É evidentemente exato pretender que Paulo pertença seja
ao mundo judaico seja ao mundo helenístico. É, portanto, legítimo se interrogar sobre
o contributo do mundo grego em seu pensamento (por ex. a retórica 12) ou sobre a
imagem, falsa ou exata, que ele tinha do judaísmo de seu tempo13. Ora – e neste ponto
me distancia da dita “nova perspectiva” iniciada por Sanders – em minha visão, mais
importante e decisivo é seu enraizamento no primeiro cristianismo, claramente
aquele vivenciado na comunidade de Antioquia sobre o Oronte. A estrutura
argumentativa praticada em suas cartas é, em primeiro plano, impregnada pelas
tradições vividas, discutidas e desenvolvidas no cristianismo helenístico de
Antioquia, comunidade de base do apóstolo, desde sua conversão até o segundo
incidente de Antioquia (Gl 2,11-14).
Hipótese histórica II. Por outro lado, o acontecimento de Damasco é
determinante para o nascimento e a constituição do pensamento paulino 14. Deste
6 Sobre este ponto, ver: François VOUGA, « Les lettres pauliniennes comme épîtres apostolique », em: Daniel
MARGUERAT (ed.), Introduction au Nouveau Testament. Son histoire, son écriture, sa théologie (Le monde de la Bible
41), Genève, Labor et Fides, 20012, p. 150-151 (bibliografia p. 155-156).
7 Sobre o estado da discussão em: Hans-Josef KLAUCK, Die antike Briefliteratur und das Neue Testament (UTM.W
2022), Paderbon, Schöning, 1998, p.228-230; Jürgen ROLOFF, Einführung in das Neuen Testament (Universal-
Bibliothek Nr. 9413), Stuttgart, Reclam, 1995, p.132.
8 Sobre este ponto, cf. Udo SCHNELLE, Einleitung in das Neue Testament (UTB.W 1830), Göttingen, Vandenhoeck
Bibelwerk, 1989; Ibid., Paulus, Leben und Denken (de Gruyter Lehrbuch), Berlin/New York, de Grueter, 2003,
p.11-25; Ferdinand HANH, “Gibt es eine Entwincklung in den Aussagen über die Rechtfertingung bei Paulus?”,
EvTh 53, 1993, p.342-366.
11 Sobre esta discrepância entre as pesquisas da geração precedente e as pesquisas atuais (px.: Udo SCHNELLE,
(WMANT 58), Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 19892 ; Udo Schnelle, Paulus (cf. nota 10), p. 77-94.
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fato, por um lado reteremos que se trata de uma cristofânia, ou seja, de uma aparição
do Crucificado ressuscitado e, por outro lado, que esta experiência de visão conduz
o apóstolo a uma falsificação de suas convicções religiosas, mais precisamente, a uma
inversão de seu sistema de convicções (nova avaliação da morte do Cristo, nova
concepção da apocalíptica, nova concepção da Lei).
Hipótese hermenêutica I. Mesmo se, a justo título, podemos sublinhar o aspecto
circunstancial e contextual das situações nas quais o apóstolo toma a palavra por
meio de uma carta, é, no entanto, falso considerá-las como puramente reativa15. Com
efeito, para quem quer profundamente refletir uma circunstância, a identificação de
uma crise e a tentativa de resolvê-la supõem a aplicação de uma concepção já traçada
e hermeneuticamente operativa. Existe crise em Corinto e na Galácia somente para
quem se apoia sobre uma intepretação bem definida da fé cristã. Diremos, pois, de
início, que a teologia paulina é consistente, mesmo se as crises e os desafios
afrontados permitam sua amplitude, seu aprofundamento e sua renovação.
Hipótese hermenêutica II. Colocar a questão do princípio de constituição da
teologia paulina equivale a se interrogar sobre o princípio hermenêutico que permite
ao apóstolo de decodificar seja o acontecimento “Cristo”, seja a realidade vivida. Não
se trata, de antemão, de um conteúdo doutrinal reputado como central (por ex. a
doutrina da justificação pela fé16), mas de um processo hermenêutico.
Problema de pesquisa. Como pôde afirmar, a justo título, Jürgen Becker17, a
correspondência paulina é marcada por três grandes campos teológicos. 1Ts é
dominada pela teologia da eleição. Já a correspondência corintiana é marcada pela
teologia da cruz. Porém, é a temática da justiça/justificação que modela Gl, Fl e Rm.
A questão levantada é a seguinte: é possível articular estes campos teológicos? Há
uma coerência entre eles?
Nossa hipótese: Paulo é herdeiro da tradição querigmática que vê na confissão
da morte e ressurreição do Cristo o evento escatológico da salvação. Ele desenvolve
assim a compreensão deste evento fundador o interpretando com a ajuda do conceito
de “cruz”, de maneira que a palavra da cruz se torna o princípio constitutivo de sua
teologia. A palavra da cruz se expressa sobretudo em dois discursos, fundamentais
e ao mesmo tempo distintos: a teologia da cruz e o ensinamento sobre a justificação.
2. Da morte à Cruz
15 De acordo com J. Christiaan BEKER, “Paul’s Theology: Consistent or Inconsistent?”, NTS 34, 1988, p. 364-377;
contra Ed P. SANDERS (Paulus. Eine Einführung [Reclam Universal-Bibliothek 9365] Ditzingen, Reclam, 1995,
p. 62-85) e outros que explicam o surgimento da temática da justificação pela fé sem as obras da Lei como
ferramenta circunstancial de resolução de um conflito.
16 Como afirma, por ex., Günter BORNKAMM, Paul, Apôtre de Jésus-Crist (Le monde de la Bible 18), Genève,
18 Sobre a presença e a função das confissões tradicionais na correspondência paulina, cf.: Jean ZUMSTEIN,
“Theologie als Credoausleung. Paulus und die urchristlichen Bekenntnisse”, em: Pierre BÜHLER, Emidio
CAMPI, Hans Jürgen LUIBL (ed.), Freiheit im Bekenntnis. Die Glaubensperspektive der Kirche im theologischer
Perspektive, Zürich, Pano Verlag, 2000, p. 93-108.
19 Sobre 1Ts 1,9-10 e 4,14 ver Traugott HOLTZ, Der erste Brief na die Thessalonicher (EKK 13) Zürich et al.,
an die Korinther (1 Kor 11,17 – 14,40) (EKK 7/3), Zürich/Düsseldorf/Neukirchener Verlag, 1999, p. 9-12.29-27;
Ibid., Der erste Brief na die Korinther (1Kor 15,1 – 16,24) (EKK 7/4), Zürich/Düsseldorf/Neukirchener Verlag,
2001, p.18-53.
21 Sobre esta passagem, ver Victor Paul FUNISH, II Corinthians (AncB 32A), New York et al., Doubleday, 1984,
p.309-311.325-329); Erich GRÄSSER, Der zweite Brief na die Korinter. Kapitel 1,1 – 7,6 (ÖTBK 8/1),
Gütersloh/Würburg, Gütersloher Verlgshaus/Echter Verlag, 2002, p. 213-217.
22 Cf. François Bovon « Une formule prépaulinienne dans l’épître aux Galates (Ga 4,1-5) » dans : Révélations et
Ecriture. Nouveau Testament et littérature apocryphe chrétienne (Le monde de la Bible 26), Genève, Labor et Fidei,
1993, p. 13-29.
23 Sobre o hino e sua contextualização, ver Joachim GNILKA, Der Philipperbrief (HThK 11/3),
Freiburg/Basel/Wien, Herder, 1968, p. 108-147; Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus. Ein Versch, über den
Geschictsbezug des christlichen Glaubens nachzudeken (FRLANT 125), Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1981,
p. 209-217.
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do Jesus terrestre, mas pela evocação do rebaixamento do Cristo, culminando em sua
morte e em sua elevação. Mais uma vez, o acento apocalíptico é fundamental.
(e) Finalmente, a célebre formulação tradicional que aparece no capítulo 3 da
epístola aos Romanos (v.25-26) dá conta da significação soteriológica da morte de
Cristo em termos expiatórios24. O ápice desta morte é a justiça de Deus que se
manifesta e se cumpre na morte do Filho.
A conclusão se impõe por ela mesma: para Paulo, a cruz (σταυρός) é o ponto de
referência seja de um discurso expondo a teologia da cruz, seja de um ensinamento sobre a
justificação.
3. A palavra da cruz28
27 Sobre Gl 3,1 e 5,11, ver Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 130-132.268.270; J. Louis MARTYN, Galatians
(AncB 33A), New York et al., Doubleday, 1998, p. 382-383.475-447; Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus (cf.
nota 23), p. 182-186.193-197.
28 A distinção entre a palavra da cruz e a teologia da cruz é uma das aquisições do seminário interdisciplinar
do 3º ciclo que acorreu em 2000-2001 nas Faculdades de Neuchâtel e de Zurique como o tema “Teologia da
Cruz”. Foi particularmente estuda por Konrad HALDIMANN, “Kreuz – Wort vom Kreuz – Kreuzestheologie”
(cf. nota 24), p. 1-25.
29 Cf. Ulrich LUZ, “Theologia crucis als Mitte der Theologie im Neuen Testament”, EvTh 34, 1974, p.116-141.
Ernst KÄSEMANN, “Die Heilsnedeutung des Todes Jesu bei Paulus” em: Paulinische Perspecktiven, Tübingen,
Mohr Siebeck, 1969, p. 67-107; Jürgen BECKER, Paulus, (cf. nota 17), p. 209-254.
30 “Paul et la théologie de la croix”, (cf. nota 25), p.481-496; e o volume consagrado a esta temática: Andreas
DETTWILER, Jean ZUMSTEIN (ed.) Kreuzestheologie im Neuen Testament, (cf. nota 24).
6
(a) A palavra da cruz não se constitui uma intepretação da morte de Jesus ao lado de
outras interpretações já disponíveis. Ela atesta uma inversão hermenêutica. A cruz
não é mais objeto de interpretação, mas se torna sujeito desta intepretação. Como
chave hermenêutica (ou para utilizar a terminologia de J. Christiaan Beker: sistema
simbólico31), ela permite decodificar o conjunto da realidade.
(b) A palavra da cruz é de natureza polêmica. Ela denuncia as concepções existentes
como invalidas e anuncia a irrupção de uma nova realidade. Ela dá testemunho da
criatividade divina, a qual se opõe à perdição humana.
(c) A palavra da cruz confere à linguagem uma tríplice afirmação;
- A palavra é, antes de tudo, uma palavra de julgamento. Diante da cruz se manifesta a
radical perdição de toda existência humana (o ser humano é deslocado em sua loucura
e em sua própria justiça).
- A palavra da cruz é teológica em sentido estrito, ou seja, ela é uma palavra sobre Deus:
ela manifesta um Deus livre e inesperado que questiona todas as expectativas humanas
(1Cor; Gl 3,10-13). Este aspecto é particularmente desenvolvido na teologia da cruz.
- A palavra da cruz tem uma dimensão soteriológica: ela revela e faz nascer uma nova
possibilidade de existência. Este aspecto é particularmente desenvolvido no
ensinamento sobre a justificação.
(d) Este sistema simbólico é desenvolvido em duas grandes formas de teologia: a teologia
da cruz e a o ensinamento sobre a justificação.
4. A teologia da cruz
31 J. Christiaan BEKER, “Paul’s Theology: Consistent or Inconsistent?” (cf. nota 15), que utiliza a expressão:
« symbolic univers ».
32 Sobre esta passagem, cf.: Wolfgang SCHRAGE, Der erste Brief an die Korinther (1 Kor 1,1 – 6,11), (cf. nota 26);
Andreas DETTWILER, Jean ZUMSTEIN (ed.) Kreuzestheologie im Neuen Testament (cf. nota 24); Hans WEDER, Das
Kreuz Jesu bei Paulus (cf. nota 23).
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conhecimento. Mais exatamente, a palavra da cruz é aplicada à crise radical da sabedoria
em sua forma desenvolvida. De fato, cai, pelo choque da crítica a sabedoria grega que visa
ordenar o conjunto dos fenômenos num quadro inteligível, a atribuir a cada elemento da
realidade um lugar preciso e, deste modo, a permitir ao sábio compreender o cosmos no
qual ele vive. O próprio Deus tem um lugar neste sistema, ele é a origem e o cume. Cai
igualmente, pelo choque desta crítica, a tradição religiosa judaica, marcada por uma longa
busca de sinais dados por Deus ao longo da história, que Ele partilha com seu povo. O fiel
tem orgulho de reconhecer o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, como Aquele que se revelou em
uma história de agora em diante conhecida. Seja na sabedoria grega, seja na piedade judaica,
o ser humana pretende identificar Deus e o colocar na palma de sua mão. Porém, fazendo
isso, Deus cessa de ser Deus e o ser humano aquele que espera tudo de Deus. O cadáver do
Crucificada é o “não-senso” que mostra o fracasso seja da sabedoria especulativa dos
Gregos, seja a espera religiosa judaica. Ele é escândalo que quebra todas as representações
de Deus.
Esta crise radical do conhecimento abre, no entanto, o caminho da revelação de Deus
em verdade. Subtraindo o fato de ser apoderado pelo conhecimento humano na medida em
que se manifesta pela cruz, Deus revela sua liberdade e sua alteridade. Sua manifestação
advém por uma inversão de valores (cf. vv. 27-29).
Esta afirmação paradoxal não deve, porém, ser separada do seu contexto. Deus
advém desta maneira porque os homens não souberam reconhecê-lo em sua sabedoria, afim
de que se mostre, sob a luz do dia, a loucura humana. Por isso, é preciso evitar a construção
de um novo sistema a partir do qual Deus se manifestaria exclusivamente nos valores
invertidos daqueles que os Gregos associavam ao divino. Argumentar desta maneira33 seria,
ainda mais uma vez, negar a alteridade de Deus e querer colocar a mão sobre Ele. Isso
significaria sucumbir ao perigo da contra-dependência. De fato, o Deus que renuncia toda
sabedoria, toda força, toda vida, é o mesmo que manifesta a verdadeira sabedoria e que é
criador da vida (1,24.30). A revelação do Deus da cruz tem uma consequência soteriológica
(cf. as ocorrências do verbo viver nos vv. 18-25). Devemos ser atentos, porém, ao fato de que
a problemática central dos vv. 18-25 é essencialmente teológica.
A crítica é unânime em reconhecer que se a palavra da cruz trabalha o problema do
conhecimento nos vv. 18-25, uma mudança significativa se opera nos vv. 26-31, depois em
2,1-434. Nos vv. 26-31, a palavra da cruz se aplica à realidade eclesial. As características que
valiam para a proclamação do Cristo crucificado – a escandalosa inversão de valores que
ela induzia – são transferidas à comunidade de Corinto. A eleição paradoxal dos “sem-
valores” em Corinto têm a vocação de colocar o mundo em crise, a fazer que ele abandone
toda pretensão e, por meio disto, a fazer que ele descubra o único fundamento sobre o qual
o ser humano é chamado a coloca sua confiança, afim de receber a vida em plenitude: o
Cristo crucificado (vv. 30-31). Uma última mudança se opera em 2,1-4. A palavra da cruz
não é mais relacionada ao conhecimento ou à realidade eclesial, mas à existência apostólica.
A orientação do apostolado paulino a partir da cruz e a inversão de valores que ela implica
dá forma à maneira como ele conduz seu ministério. Em síntese, estas pequenas mudanças
33 Ver por ex.: Wolfgang SCHRAGE, Der erste Brief an die Korinther (1 Kor 1,1 – 6,11), (cf. nota 26), p. 221-222, e
Jürgen Becker, Paulus (cf. nota 17), p. 220-221. Contra o perigo da contra-dependência, Hans WEDER, Das Kreuz
Jesu bei Paulus (cf. nota 23), p. 161.
34 Sobre esta sequência argumentativa, ver Hans CONZELMANN, Der erste Brief an die Korinther, (KEK 5),
Götingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1969, p. 54-72; Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus (cf. nota 23), p. 157-
165.
8
de perspectiva mostram como se opera a palavra da cruz; como ela se contextualiza, com
uma grande coerência, em registros de realidade diferentes.
35 Ver: Wolkgang SCHRAGE, « Kreuz und Eschaton. Die Peristasenkataloge als Merkmale paulinischer
theologia crucis und Eschatologie », EvTh 34, 1974, p. 141-175.
36 Análise de Jürgen BECKER, Paulus (cf. nota 17), p. 245-254.
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salvação. A passage-chave, que permite compreender esta conformidade é 2Cor 4,1037.
Desta declaração paulina, reteremos três afirmações capitais.
Primeira, mesmo se o velho homem está sepultado (Rm 6,4: συνετάφημεν οὖν αὐτῷ
διὰ τοῦ βαπτίσματος εἰς τὸν θάνατον - que se explicita pela linguagem da cruz em 6,6: τοῦτο
γινώσκοντες ὅτι ὁ παλαιὸς ἡμῶν ἄνθρωπος συνεσταυρώθη) pelo batismo na morte com
Cristo, isso não anula o fato de que a existência do novo homem se caracterize por um
“morrer” cotidiano (1Cor 15,31: καθ’ ἡμέραν ἀποθνῄσκω), por um “ir em direção à ruina”
(cf. 2Cor 4,16).
Segunda, as provas e os sofrimentos enfrentados não têm sentido neles-mesmos, mas
somente na medida em que eles se referem a Cristo (τὴν νέκρωσιν τοῦ Ἰησοῦ). Eles são, ao
mesmo tempo, sinal de pertença ao Cristo e efeito desta pertença.
Enfim, estes sofrimentos indicam que a morte do Cristo não é algo fadado ao passado,
mas com consequências diretas no presente. Não nos enganemos, esta presença da morte
do Cristo na existência do fiel não pode ser compreendida em sentido doloroso e trágico; ao
contrário, ela é marcada por uma atividade que construí vida (2Cor 4,12: “Assim a morte
trabalha em nós, mas a vida em vós).
4.2.3 O peso das experiências presentes dos fiéis
Após ter indicado como, em 2Cor, a cruz é o ponto de vista a partir do qual a
existência apostólica e, mais largamente, a existência do fiel são abraçadas, gostaríamos de
transpor mais uma etapa suplementar mostrando que alguns dos elementos típicos da
teologia da cruz, desenvolvidos no seu locus classicus de 1Cor 1,18 – 2,5, ressurgem em 2Cor,
porém, em um outro registro, aquele dos catálogos de perístases. Estes são doravante as
experiências presentes dos fiéis, no mundo e na história, as quais constituem o contexto no
qual se desenvolve a teologia da cruz.
(a) As provas e os sofrimentos dos fiéis e, em primeiro lugar, do apóstolo, atestam que
uns e outros estão em situação de seguimento de seu Senhor Crucificado38. Da mesma
forma que o Cristo foi crucificado na fraqueza e que seu destino é um escândalo para
a inteligência e a piedade (1Cor 1,18sss; 2Cor 13,3), assim também os fiéis que, à
imagem de seu Senhor, são loucos e fracos (1Cor 1,26ss; 4,13: tornamos como lixo do
mundo, a escória do universo). Esta miséria que eles suportam tem uma
consequência polêmica e critica e, mesmo, um caráter escandaloso. A fé confessada
não conduz a uma integração harmoniosa com o mundo e a uma aceitação de seus
valores, mas, ao contrário, a uma crise. Em lugar de gerar harmonia, integração,
popularidade, sucesso, a fé precipita o apóstolo nos conflitos e perseguições, o
fazendo objeto de zombaria, de galhofa para as elites. A crise e a inversão de valores
de honrarias na cultura e na religião são evidentes: é pelas fraquezas e derrotas que
os fiéis atestam, de uma maneira escandalosa e paradoxal, a presença do Crucificado.
Eles instauram uma distância crítica em relação à espera religiosa tradicional e os
valores reconhecidos no mundo; suas vidas se calam numa contra-linguagem
subversiva.
(b) Correr-se-ia, porém, o risco de desprezar a importância destes catálogos de perístases
se os compreendêssemos como sendo doloristas, mortíferos, os quais glorificam a
37 Sobre este ponto, ver a análise de Wolkgang SCHRAGE, “Kreuz und Eschaton”, (cf. nota 35), p. 160-169; Rudolf
BULTMANN, Der zweite Brief an die Korinther (KEK Sonderband), Götingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1976, p.
117-121; Erich GRÄSSER, Der zweite Brief na die Korinter. Kapitel 1,1 – 7,6, (cf. nota 21), p. 166-168 (uma exautiva
bibliografia, p. 160-161).
38 Wolkgang SCHRAGE, “Kreuz und Eschaton”, (cf. nota 35), p. 164-165.
10
humilhação e a fraqueza39. Como o sublinha a dialética praticada em 2Cor 4,10, na
fraqueza se manifesta a força de Deus, no morrer dos fiéis surge a vida. Porque o
Crucificado é o Ressuscitado, o morrer, a νέκρωσις, estado no qual se encontra, não
é uma fatalidade que conduz à sua diminuição total, mas espaço no qual se manifesta
a vida, a alegria, o reconhecimento, a eleição e o amor divino. O projeto salvífico
permanece a última palavra do evangelho paulino. Porém, dado que o Ressuscitado
não é nenhum outro, mas o próprio Crucificado, a vida se manifesta neste mundo
sob a máscara da morte e da fraqueza. A força do Cristo continua se manifestando,
de maneira paradoxal, através do apóstolo e dos fiéis. A teologia da cruz é aqui
formulada em toda sua radicalidade.
Para que a hipótese proposta seja válida, convém mostrar que a palavra da cruz – tal
como foi definida – estrutura igualmente o discurso centrado sobre a justificação. Tomando
a epístola aos Gálatas como texto de referência, gostaria de chamar a atenção sobre dois
pontos.
39 Cf. Erhardt GÜTTGEMANSS, Der leidende Apostle und sein Herr (FRLANT 90), Göttingen, Vandenhoeck &
Ruprecht, 1996, p.94-126, em particular p.102-112.
40 É mérito de Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 14-26, de ter operado uma aproximação entre a
epistolografia e a retórica antiga e de ter aplicado consequentemente este modelo à epístola aos Gálatas.
41 Tradução de Andreas DETTWILER em: « De la malédiction à la bénédiction : une interprétation de Galates
3,10-14 » em : Florian BILLE, Andreas DETTWILER, Martin ROSE (ed.), « Maudit quiconque est pendu au bois ». La
crucifixion dans la loi e dans la foi (Publication de l’Institut romand des sciences bibliques 2), Lausanne, Edition
du Zèbre, 2002, p. 57-83, aqui, p. 66.
42 Para a exegese desta passagem, ver em prioridade: Andreas DETTWILER, “De la malédiction à la bénédiction”
43 Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus (cf. nota 23), p. 186-193, sobretudo p. 188-189.
44 Konrad HALDIMANN, “Kreuz – Wort vom Kreuz – Kreuztheologie (cf. nota 24), p. 10-12.
45 Andreas DETTWILER, « De la malédiction à la bénédiction » (cf. nota 41), p. 77-79.
12
libertação das forças alienantes, em particular daquela força da Lei, teve lugar sobre o
acontecimento passado na cruz (cf. v.1). O “nós” (respectivamente ὑπὲρ ἡμῶν) não designa
somente os judeo-cristãos, mas o conjunto dos fiéis (cf. o contexto comunicativo da carta e
as afirmações do contexto, pr ex. v. 14). A salvação, ou para usar o vocabulário da perícope,
a promessa, respectivamente a bênção, é estipulada de duas maneiras: por um lado, ela
advém, independentemente da Lei, pela fé e pelo dom do Espírito; por outro lado, ela tem
uma dimensão universal.
(h) Estabeleçamos um balanço intermediário das reflexões até aqui feitas: por este breve
esbouço, espero ter demonstrado, a exemplo de Gl 3,1-14, que a palavra da cruz é colocada
em prática, do fato mesmo que ela se apresenta como princípio de constituição do discurso,
não somente na correspondência dominada pela teologia da cruz, mas igualmente na
correspondência nas quais se reflete o ensinamento sobre a justificação. O complexo
argumentativo sobre a justificação não nasce, antes de tudo, de um problema particular –
que seria a necessidade de acolher os pagãos no povo de Deus (ainda que esta questão possa
ter tido a função de catalisador) – mas conduz a palavra fundadora da cruz a exprimir-se
em um campo semântico diverso. Para estabelecer ainda mais solidamente meu ponto de
vista, gostaria de evocar um argumento suplementar.
Que este princípio de constituição do discurso seja utilizado isto é atestado por um
fenômeno cuja importância não foi suficientemente sublinhado, a saber: em dois lugares
estratégicos da epístola aos Gálatas – a propositio e a recapitulatio – se intercambiam o
discurso sobre a justificação e afirmações concernentes à teologia da cruz.
5.2.1 A propositio
A propositio (Gl 2,15-21) tem, do ponto de vista retórico46, um papel preciso: ela
formula os argumentos que serão, em seguida, desenvolvidos na probatio. Ela condensa,
assim, de maneira programática, a mensagem central da carta. Ela se compõe de quatro
partes: os vv. 15-16 expõem o ponto de acordo entre Paulo e seus leitores gálatas; b) os vv.
17-18 formulam a questão que é objeto de controvérsia; c) os vv. 19-20 enunciam quatro teses
teológicas nas quais é condensado o ponto de vista do apóstolo; v.21 é consagrado à
refutação de uma objeção47. Ora, não escapará ao leitor atento que a propositio, em seu
conjunto, é dominada pela temática da justificação pela fé e que as teses propriamente
paulinas, e que são destinadas a serem demonstradas, recorrem à temática da cruz (cf. vv.19
– 20, sobretudo v.19b48).
Deste modo, a primeira tese (v.19a) opõe a Lei a Deus, e denuncia o caráter mortífero
da Lei, a segunda tese (v. 19b) formula o efeito da cruz para o fiel: pela cruz, o fiel é, ao
mesmo tempo, liberado da Lei e de seu “eu pecador”, mesmo que ele possa entrar na vida
nova, tal como ela é descrita na terceira e quarta tese (elas também centradas em torna da
morte de Cristo). Por isso, neste contexto, o ponto decisivo é que a crítica da Lei é fundada
em argumentos da teologia da cruz. Os dois discursos não são dissociados, mas articulados.
No momento em que o apóstolo conclui a apresentação de seus próprios argumentos, ele
une a temática da justificação à teologia da cruz e, se ele assim o faz, é porque uma e outra
46 Sobre a função retórica da propositio, ver: Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 114; no mesmo sentido,
Jürgen BECKER, Paulus (cf. nota 17), p. 292. Outra apreciação em François VOUGA, An die Galater (HNT 10),
Tübingen, Mohr Siebeck, 1998, p. 55-56.
47 Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 19.121-127.
48 Sobre este ponto, Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus (cf. nota 23), p. 175-182.
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se originam na palavra da cruz. Notemos, enfim, que a refutação do v.21, que conclui a
propositio, reafirma que a morte de Cristo é o único fundamento da salvação.
5.2.2 A recapitulatio
Nós encontramos um fenômeno análogo na peroratio/recapitulatio (Gl 6,12-17). A
peroratio/recapitulatio constitui, numa perspectiva retórica, a conclusão de um discurso. Sua
função, além de tentar ganhar, uma última vez, a simpatia dos destinatários, é de mencionar
uma ultima vez a questão debatida e os argumentos desenvolvidos para apoiar a posição
defendida pelo autor49. Percebemos de imediato a significação capital da passagem para
nossa problemática, pois podemos, sem exageros, discernir um resumo do conflito que opõe
Paulo e os Gálatas, bem como a posição que o apóstolo defende.
Se os vv. 12-13 evocam, uma última vez, a posição dos opositores – a exigência da
circuncisão – os vv. 14-15 formulam, em forma condensada, a posição teológica do
apóstolo50. Mais uma vez o leitor é surpreendido pela semântica da cruz. O ponto de
referência de Paulo, seu objeto de orgulho, é a cruz de Cristo (v.14: ἐμοὶ δὲ μὴ γένοιτο
καυχᾶσθαι εἰ μὴ ἐν τῷ σταυρῷ τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ). Esta referência conduz a
três afirmações:
(a) O efeito da cruz se dá na descontinuidade entre o eu e o mundo;
(b) Esta descontinuidade se concretiza, de antes de mais nada, pelo fato de que o mundo
é crucificado para mim (δι’ οὗ ἐμοὶ κόσμος ἐσταύρωται). Este mundo que morre aos
meus olhos é o mundo que se caracterize por seus valores morais e religiosos
definidos, por exemplo, pela linha de demarcação que existe entre circuncisos e
incircuncisos, pela separação entre Israel e as nações. Pela cruz, esta concepção do
mundo é definitivamente julgada e levada a nada;
(c) O efeito da cruz reside igualmente na morte do eu (κἀγὼ κόσμῳ). O eu que é
crucificado, o eu que morre na cruz, é o eu caracterizado pela própria gloria, pela
busca de reconhecimento diante do fórum do mundo.
Esta dupla morte, do mundo e do eu, que exprime a dimensão crítica da cruz, abre o
caminho a uma dimensão criadora e positiva da cruz, a uma nova criação (v. 15: οὔτε γὰρ
περιτομή τί ἐστιν οὔτε ἀκροβυστία ἀλλὰ καινὴ κτίσις). Lá, onde as antigas divisões
desapareceram, surge um novo espaço de vida de liberdade através da qual a articulação
entre o eu e o mundo se dá de maneira inteiramente nova. Para não deixar dúvidas sobre o
caráter fundamental desta recapitulatio, Paulo a apresenta como o “canon” (v. 16: κανών) da
mensagem paulina.
Apresentemos, mais uma vez, três aspectos fundamentais para nossa problemática.
Primeiro, todos os elementos característicos da palavra da cruz estão presentes. Segundo,
mesmo que a carta em seu conjunto desenvolva o ensinamento sobre a justificação, a
recapitulatio é formulada em termos próprios à teologia da cruz – estabelecendo a
compatibilidade e a familiaridade entre os dois discursos. Enfim a importância da palavra
da cruz é evidenciada pelo próprio Paulo na medida em que ele a eleva ao nível de “cânon”.
6. Conclusão
49Sobre a função retórica da peroratio/recapitulatio, ver Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 23. 313.
50Sobre este ponto, a contribuição decisiva de Wolfgang HARNISCH, “Einübung des neuen Seins. Paulinische
Paränese am Beispiel des Galaterbriefes”, ZThK 84, 1987, p. 279-296.
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plausível da teologia paulina, sem excluir outras leituras, na medida em que estas satisfaçam
o mesmo rigor. Nossa hipótese quer oferecer um fio condutor permitindo de apreender a
condição de possibilidade e a coerência do discurso paulino. No entanto, é
metodologicamente impossível de provar que esta leitura seja justa. Será, certamente,
possível demonstrar que ela é falsa, supondo que transgrida afirmações centrais do corpus
literário escolhido como corpus de referência, ou então que ela ignore o sentido obvio dos
textos evocados. Porém, enquanto tal refutação não for bem demonstrada, nossa hipótese
interpretativa tem sua reputada validade.
Para uma detalhada argumentação, ver nossa contribuição: “Paul e Jean: les deux premiers grands inteprète
51
du Jésus de l’histoire” em: Elian CUVILLIER (ed.), Sola Fide. Melanges offerts à Jean Ansaldi (Actes et Recherches),
Genève, Labor et Fides, 2004.
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oferecer um espaço de uma revelação autêntica com Ele. Mas – este é o segundo ponto –
tanto para Jesus como para Paulo, o Deus da Aliança não é nem reconhecido, nem
confessado. Ele é rejeitado ou instrumentalizado. O pecado, isto é, o mal conhecimento de
Deus e a ruptura que dele decorre, é universal. De agora em diante – e este é o terceiro ponto
– tanto para Jesus como para Paulo, Deus vem para o julgamento, mas este julgamento toma
uma forma surpreendente. A Boa Nova que está no centro da mensagem de Jesus consiste
em proclamar que Deus não vem para diminuir o mundo revoltado, mas para lhe abrir um
novo futuro. Sua sanção não consiste em rejeitar os pecadores, mas em acolhê-los
incondicionalmente. Da mesma maneira, Paulo, mesmo sendo silencioso no que tange à
mensagem do Jesus terrestre, propaga a mesma mensagem, mas recorrendo a uma outra
terminologia. Deus manifesta sua justiça, ou seja, sua fidelidade a Ele mesmo e à sua
Aliança, declarando o pecador justo por pura graça e independentemente de suas obras. A
cruz e a ressurreição são o espaço onde a graça de Deus é vislumbrada.
Assim, o que Jesus disse em sua proclamação do Reino que vem, Paulo o retoma em
seu anuncio do Evangelho da justiça de Deus ou em sua teologia da cruz. Todos dois estão
de acordo para discernir um Deus que é, ao mesmo tempo, Aquele que diz um não resolvido
diante do erro humano e suas consequências, os quais não têm a ultima palavra sobre a
vida, e um “sim incondicional a cada existência humana, onde quer que ela se encontre e
independentemente de suas qualidade e de seus benefícios.
6.2.4 A existência do fiel segundo Jesus e segundo Paulo
Contrariamente a João Batista, o anuncio da vinda de Deus para estabelecer seu reino
não é motivo de temor ou de contrição, mas de alegria e reconhecimento: ela dá acesso à um
caminho marcado pelo sinal da liberdade e da alegria.
Semelhantemente, os fiéis das comunidades paulinas se sabem beneficiários da
justificação pela Lei sem as obras da Lei. Tendo mostrado a tristeza de uma busca ilusória
de perfeição religiosa ou ética, eles são chamados a conduzir uma existência na liberdade –
libertados da morte, do pecado, da Lei, doravante livres para o mundo e para os outros.
Jesus chama aqueles que libertou a o seguir e, deste fato, a renunciar seus apegos
terrestres, que eles sejam de natureza familiar, profissional ou material. A palavra que
estrutura suas existências é, desde agora, o mandamento do amor. A mesma revisão da
existência se manifesta em Paulo quando fala do chamado a ser crucificado com o Cristo. É
imperativo não mais viver para si mesmo, mas para Deus. Trata-se de ser crucificado para
o mundo e para si mesmo, isso significa: ser libertado de um passado de erro, da
preocupação pelo êxito e o medo da morte.
6.2.5 A salvação pascal
Este profundo acordo teológico não deve, porém, esconder um significativo deslocamento:
todo o projeto de Jesus é articulado em torno do anúncio da proximidade do Reino de Deus.
Já aquele de Paulo tem sua referência na cruz. Jesus se coloca na perspectiva de um Deus
que vem, Paulo, naquela de Deus que já veio. Aquilo que Jesus diz sob o ângulo da
promessa, Paulo o anuncia como advindo. Ele é um teólogo pós-pascal. Ele reassume o
projeto de Jesus numa situação de releitura pascal. Ele nomeia a salvação advinda, uma vez
por todas, em Jesus de Nazaré.
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