Вы находитесь на странице: 1из 16

A CRUZ COMO PRINCÍPIO DE CONSTITUIÇÃO DA TEOLOGIA PAULINA

Jean Zumstein

Resumo
Estabelecendo a hipótese da coerência do pensamento paulino, o artigo se interroga sobre o
princípio de sua constituição. Sendo herdeiro da tradição querigmática, que vê na confissão
da morte e da ressureição do Cristo o evento escatológico da salvação, Paulo constrói sua
teologia se concentrando neste evento fundador, porém, ele o interpreta de maneira original a
partir do conceito de “cruz”, de tal maneira que “a palavra da cruz” se torna o princípio
constitutivo de sua teologia. A palavra da cruz se expressa sobretudo em dois discursos,
fundamentais e ao mesmo tempo distintos: a teologia da cruz e o ensinamento sobre a
justificação.

1. Introdução

Os estudos paulinos estão, atualmente, ameaçados pelo positivismo1. Por um


lado, uma impressionante série de pesquisas de detalhes é conduzida nos mais
diversos domínios (sabemos quase tudo sobre quase nada!)2. Por outro lado, a tarefa
hermenêutica é negligenciada e mesmo vista com ceticismo: considera-se como
ilusória toda tentativa que visa apresentar uma concepção de conjunto da teologia
paulina. Lá onde a erudição conduz à insignificância, lá onde o mundo do texto não
está em condições de ir ao encontro do leitor, a pesquisa exegética e teológica está
em declínio3. Tomemos, pois, o risco de propor uma leitura teológica do conjunto da
literatura paulina4 – isto corresponde ao intentio operis. Fazendo tal leitura, temos
consciência do caráter necessariamente falível de um tal empreendimento. Nossa
proposta se baseia em uma série de pressupostos que começamos por explicar.
Hipótese literária I. Nossa base literária é constituída pelas sete cartas paulinas
selecionadas pela crítica5 e que devem ser lidas como cartas apostólicas, isto é, como
escritos de circunstâncias, estando ao serviço da prática missionária e apostólica do


Jean ZUMSTEIN, « La croix comme principe de constitution de la théologie paulinienne », artigo publicado na
obra coletiva: Andreas DETTWILER, Jean-Daniel KAESTLI, Daniel MARGUERAT (org.), Paul, une théologie en
construction, Genève, Labor et Fides, 2004, p.297-318. Tradução livre de José Francisco Rodrigues Neto.
1 Constatação sobre a história da pesquisa emitida por Jean-Noël ALETTI, « Où sont les études sur Saint Paul? »,

RSR 90, 2002, p. 329-351. Sobre a situação atual da pesquisa paulina, ver: Samuel VOLLENWEIDER, art. “Paulus”,
RGG4 2, 2003, col. 1035-1066.
2 Par exemplo na série “New Testament Theology”, publicada sob a direção de James D.G. Dunn, edições

Cambridge University Press, a teologia de Paulo não é mais considerada como um fenômeno global, pois cada
carta é objeto de uma busca distinta. Um detalhe que chama a atenção é que se observa um fenômeno contrário
nos intérpretes “leigos” de Paulo, tais como Alain BADIOU, Saint Paul. La fondation de l’universalisme (Les essais
du Collège international de philosophie), Paris, PUF, 1997.
3 É ilusório pensar – isto seria sucumbir ao mito positivista do progresso – que a pesquisa, por exemplo paulina,

está em constante progresso de tal maneira que sabemos mais e melhor hoje que dantes.
4 Cf. a breve história da pesquisa em James D.G. DUNN, The Theology of Paul the Apostle, Edinburgh, T & T

Clark, 1998, p. 19-23.


5 Trata-se de 1Ts, 1Cor, 2Cor, Gl, Fl, Fm, Rm.

1
apóstolo6. Nesta lista, a epístola aos Romanos – na medida em que pertence ao gênero
de um escrito de apresentação – ocupa um lugar particular7.
Hipótese literária II. O exame crítico das cartas paulinas conduz a uma dupla
constatação. Par um lado, é extremamente difícil, mesmo impossível, de reconstituir,
de maneira linear e certa, a ordem cronológica das cartas. A título de exemplo,
Gálatas foi escrita antes ou após a correspondência com a igreja de Corinto? 8
Filipense e Filêmon são o fruto de uma estadia em Éfeso ou do cativeiro romano? 9
Esta incerteza torna aleatória uma tentativa de reconstruir uma história do
desenvolvimento do pensamento paulino10. Por outro lado, o debate sobre a crítica
literária das cartas paulinas – a questão de saber se as cartas canônicas, claramente
2Cor e Fl, são escritos únicos ou frutos de uma compilação posterior – permanece
aberta11. Levando em consideração estas duas incertezas que, pelo estado atual da
documentação, deveriam ser necessariamente levantadas, trataremos as sete cartas
proto-paulinas como um corpo literário, ou seja, nós as leremos em sua versão
canônica, de maneira sincrônica.
Hipótese histórica I. É evidentemente exato pretender que Paulo pertença seja
ao mundo judaico seja ao mundo helenístico. É, portanto, legítimo se interrogar sobre
o contributo do mundo grego em seu pensamento (por ex. a retórica 12) ou sobre a
imagem, falsa ou exata, que ele tinha do judaísmo de seu tempo13. Ora – e neste ponto
me distancia da dita “nova perspectiva” iniciada por Sanders – em minha visão, mais
importante e decisivo é seu enraizamento no primeiro cristianismo, claramente
aquele vivenciado na comunidade de Antioquia sobre o Oronte. A estrutura
argumentativa praticada em suas cartas é, em primeiro plano, impregnada pelas
tradições vividas, discutidas e desenvolvidas no cristianismo helenístico de
Antioquia, comunidade de base do apóstolo, desde sua conversão até o segundo
incidente de Antioquia (Gl 2,11-14).
Hipótese histórica II. Por outro lado, o acontecimento de Damasco é
determinante para o nascimento e a constituição do pensamento paulino 14. Deste

6 Sobre este ponto, ver: François VOUGA, « Les lettres pauliniennes comme épîtres apostolique », em: Daniel
MARGUERAT (ed.), Introduction au Nouveau Testament. Son histoire, son écriture, sa théologie (Le monde de la Bible
41), Genève, Labor et Fides, 20012, p. 150-151 (bibliografia p. 155-156).
7 Sobre o estado da discussão em: Hans-Josef KLAUCK, Die antike Briefliteratur und das Neue Testament (UTM.W

2022), Paderbon, Schöning, 1998, p.228-230; Jürgen ROLOFF, Einführung in das Neuen Testament (Universal-
Bibliothek Nr. 9413), Stuttgart, Reclam, 1995, p.132.
8 Sobre este ponto, cf. Udo SCHNELLE, Einleitung in das Neue Testament (UTB.W 1830), Göttingen, Vandenhoeck

& Ruprecht, 19993, p. 107-108.


9 Cf.: Ibid., p. 146-148.159-160 (cf. nota 8).
10 Contra, por exemplo, Udo SCHNELLE, Wandlungen im paulinischen Denken (SBS 137), Stuttgart, Katholische

Bibelwerk, 1989; Ibid., Paulus, Leben und Denken (de Gruyter Lehrbuch), Berlin/New York, de Grueter, 2003,
p.11-25; Ferdinand HANH, “Gibt es eine Entwincklung in den Aussagen über die Rechtfertingung bei Paulus?”,
EvTh 53, 1993, p.342-366.
11 Sobre esta discrepância entre as pesquisas da geração precedente e as pesquisas atuais (px.: Udo SCHNELLE,

Einleitung in das Neue Testament [cf. nota 8], passim).


12 Ver o comentário pragmático de Hans Dieter BETZ, Galatians (Hermeneia), Philadelphie, Fortress Press, 1979.
13 Ed P. SANDERS, Paul and Palestinian Judaism, London/Philadelphie, SCM/Fortress Press, 1977 ; Ibid., Paul,

the Law, and the Jewish People, Philadelphie, Fortress, 1985.


14 Cf. A monografia de Christian DIETZFELBINGER, Die Berufung des Paulus als Ursprung seiner Theologie

(WMANT 58), Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 19892 ; Udo Schnelle, Paulus (cf. nota 10), p. 77-94.
2
fato, por um lado reteremos que se trata de uma cristofânia, ou seja, de uma aparição
do Crucificado ressuscitado e, por outro lado, que esta experiência de visão conduz
o apóstolo a uma falsificação de suas convicções religiosas, mais precisamente, a uma
inversão de seu sistema de convicções (nova avaliação da morte do Cristo, nova
concepção da apocalíptica, nova concepção da Lei).
Hipótese hermenêutica I. Mesmo se, a justo título, podemos sublinhar o aspecto
circunstancial e contextual das situações nas quais o apóstolo toma a palavra por
meio de uma carta, é, no entanto, falso considerá-las como puramente reativa15. Com
efeito, para quem quer profundamente refletir uma circunstância, a identificação de
uma crise e a tentativa de resolvê-la supõem a aplicação de uma concepção já traçada
e hermeneuticamente operativa. Existe crise em Corinto e na Galácia somente para
quem se apoia sobre uma intepretação bem definida da fé cristã. Diremos, pois, de
início, que a teologia paulina é consistente, mesmo se as crises e os desafios
afrontados permitam sua amplitude, seu aprofundamento e sua renovação.
Hipótese hermenêutica II. Colocar a questão do princípio de constituição da
teologia paulina equivale a se interrogar sobre o princípio hermenêutico que permite
ao apóstolo de decodificar seja o acontecimento “Cristo”, seja a realidade vivida. Não
se trata, de antemão, de um conteúdo doutrinal reputado como central (por ex. a
doutrina da justificação pela fé16), mas de um processo hermenêutico.
Problema de pesquisa. Como pôde afirmar, a justo título, Jürgen Becker17, a
correspondência paulina é marcada por três grandes campos teológicos. 1Ts é
dominada pela teologia da eleição. Já a correspondência corintiana é marcada pela
teologia da cruz. Porém, é a temática da justiça/justificação que modela Gl, Fl e Rm.
A questão levantada é a seguinte: é possível articular estes campos teológicos? Há
uma coerência entre eles?
Nossa hipótese: Paulo é herdeiro da tradição querigmática que vê na confissão
da morte e ressurreição do Cristo o evento escatológico da salvação. Ele desenvolve
assim a compreensão deste evento fundador o interpretando com a ajuda do conceito
de “cruz”, de maneira que a palavra da cruz se torna o princípio constitutivo de sua
teologia. A palavra da cruz se expressa sobretudo em dois discursos, fundamentais
e ao mesmo tempo distintos: a teologia da cruz e o ensinamento sobre a justificação.

2. Da morte à Cruz

Para evocar a morte e a ressurreição de Jesus, Paulo recorre a dois registros


literários distintos. Por um lado, ele se apoia sobre os fundamentos tradicionais, por
outro lado, ele se utiliza de uma conceituação que lhe é própria.

15 De acordo com J. Christiaan BEKER, “Paul’s Theology: Consistent or Inconsistent?”, NTS 34, 1988, p. 364-377;
contra Ed P. SANDERS (Paulus. Eine Einführung [Reclam Universal-Bibliothek 9365] Ditzingen, Reclam, 1995,
p. 62-85) e outros que explicam o surgimento da temática da justificação pela fé sem as obras da Lei como
ferramenta circunstancial de resolução de um conflito.
16 Como afirma, por ex., Günter BORNKAMM, Paul, Apôtre de Jésus-Crist (Le monde de la Bible 18), Genève,

Labor et Fidei, (1971) 1988, p. 167-170.


17 Jürgen BECKER, Paulus. Der Apostel der Völker, Tübingen, Mohr Siebeck, 1989. Tradução brasileira: Apóstolo

Paulo: vida, obra e teologia, Academia cristã, 2007.


3
2.1 Os argumentos tradicionais

Paulo é o herdeiro e o inovador da corrente querigmática levada pelos


helenistas à Antioquia e desenvolvida nesta comunidade. Este fato é manifesto pelas
tradições às quais Paulo faz referência em cada uma de suas cartas18. Citemos, a título
ilustrativo, mas sem ser exaustivo, os exemplos seguintes:
(a) A referência à tradição é claramente perceptível em sua carta mais antiga
conservado no cânon, a Primeira carta aos Tessalonicenses. Assim, os argumentos
tradicionais da pregação missionária helenística, enriquecidos de uma forte
acentuação apocalíptica, transparecem em 1,9-10, se bem que em 4,14, Paulo cite uma
fórmula de fé como ponto de partida da argumentação19. Cada vez que a morte e a
ressurreição de Jesus são evocadas, elas o são num contexto apocalíptico.
(b) Na Primeira carta de Paulo aos Coríntios, o leitor descobre em 15,3-5 uma
confissão fé, clássica do cristianismo primitivo, em uso em Antioquia, articulada em
torno da morte e da ressurreição do Cristo. Além disso, a liturgia eucarística, citada
em 11,23-26, proclama a morte do Cristo e sua significação soteriológica20. Mais uma
vez, o acento apocalíptico é claramente perceptível. A expressão morrer por é
retomada em 2Cor 5,14-15, conotando a significação salvífica da morte do Cristo21.
(c) O prólogo da Carta aos Gálatas oferece um exemple suplementar desta
valorização da tradição evocando a morte de Cristo. No prólogo, a salvação é
ampliada pela adjunção de uma formulação tradicional (1,4) que evidencia a morte
de Cristo e seu retorno. O acento soteriológico e apocalíptico é presente (se entregou
por nossos pecados)22.
(d) Na epístola aos Filipenses, o célebre hino cristológico (2,6-11) serve como
fundamento à parênese23. A exortação ética não é, pois, motivada por uma pregação

18 Sobre a presença e a função das confissões tradicionais na correspondência paulina, cf.: Jean ZUMSTEIN,
“Theologie als Credoausleung. Paulus und die urchristlichen Bekenntnisse”, em: Pierre BÜHLER, Emidio
CAMPI, Hans Jürgen LUIBL (ed.), Freiheit im Bekenntnis. Die Glaubensperspektive der Kirche im theologischer
Perspektive, Zürich, Pano Verlag, 2000, p. 93-108.
19 Sobre 1Ts 1,9-10 e 4,14 ver Traugott HOLTZ, Der erste Brief na die Thessalonicher (EKK 13) Zürich et al.,

Benzinger/Neukirchener Verlag, 1986, p. 55-62.189-194; Abraham J. MALHERBE, The Letters to Thessalonians


(AncB 32B), New York et al., Doubleday, 2000, p.118-122.131-133; 265-267.271-272.
20 Sobre 1Cor 11,23-26 e 15,3-5 ver o estado da questão nos comentários de Wolfgang SCHRAGE, Der erste Brief

an die Korinther (1 Kor 11,17 – 14,40) (EKK 7/3), Zürich/Düsseldorf/Neukirchener Verlag, 1999, p. 9-12.29-27;
Ibid., Der erste Brief na die Korinther (1Kor 15,1 – 16,24) (EKK 7/4), Zürich/Düsseldorf/Neukirchener Verlag,
2001, p.18-53.
21 Sobre esta passagem, ver Victor Paul FUNISH, II Corinthians (AncB 32A), New York et al., Doubleday, 1984,

p.309-311.325-329); Erich GRÄSSER, Der zweite Brief na die Korinter. Kapitel 1,1 – 7,6 (ÖTBK 8/1),
Gütersloh/Würburg, Gütersloher Verlgshaus/Echter Verlag, 2002, p. 213-217.
22 Cf. François Bovon « Une formule prépaulinienne dans l’épître aux Galates (Ga 4,1-5) » dans : Révélations et

Ecriture. Nouveau Testament et littérature apocryphe chrétienne (Le monde de la Bible 26), Genève, Labor et Fidei,
1993, p. 13-29.
23 Sobre o hino e sua contextualização, ver Joachim GNILKA, Der Philipperbrief (HThK 11/3),

Freiburg/Basel/Wien, Herder, 1968, p. 108-147; Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus. Ein Versch, über den
Geschictsbezug des christlichen Glaubens nachzudeken (FRLANT 125), Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1981,
p. 209-217.
4
do Jesus terrestre, mas pela evocação do rebaixamento do Cristo, culminando em sua
morte e em sua elevação. Mais uma vez, o acento apocalíptico é fundamental.
(e) Finalmente, a célebre formulação tradicional que aparece no capítulo 3 da
epístola aos Romanos (v.25-26) dá conta da significação soteriológica da morte de
Cristo em termos expiatórios24. O ápice desta morte é a justiça de Deus que se
manifesta e se cumpre na morte do Filho.

2.2 As expressões paulinas

2.2.1 A semântica da cruz


Deste modo, mesmo que Paulo seja o herdeiro e o inovador das formulações
querigmáticas, sua criatividade teológica se manifesta na utilização de um novo
campo semântico para falar da morte de Cristo: trata-se da semântica da cruz25. Tal
semântica, diferentemente dos sinóticos, não descreve o instrumento de suplício de
Jesus, o modo de sua execução. Ela revê uma dimensão metafórica que precisa de
explicitação. Esta inovação semântica tem uma dimensão decisiva, posto que deixa
entrever a maneira pela qual Paulo interpreta “o Evangelho”.
2.2.2 A cruz, único evento de salvação
A retomada da confissão da cruz e da ressurreição a partir de uma semântica
da cruz mostra que, para Paulo, a cruz é único evento de salvação. A ressurreição é
segunda em relação à cruz. Aquela manifesta a significação desta.
2.2.3 A cruz, ponto de referência para a argumentação paulina
A cruz constitui o ponto de referência em relação ao qual se constrói a
argumentação paulina. Para que isso seja demonstrado, me limito, por princípio de
economia, ao campo textual da primeira epístola aos Coríntios, paradigma da
teologia da cruz, e à epístola aos Gálatas, paradigma do ensinamento sobre a
justificação pela fé.
(a)Em 1Cor, duas passagens chamam nossa atenção26:
1Cor 1,17: οὐ γὰρ ἀπέστειλέν με Χριστὸς βαπτίζειν ἀλλ’ εὐαγγελίζεσθαι, οὐκ ἐν σοφίᾳ λόγου,
ἵνα μὴ κενωθῇ ὁ σταυρὸς τοῦ Χριστοῦ: “pois, o Cristo, não me enviou para batizar, mas para
anunciar o Evangelho, e isto sem usar de uma sabedoria eloquente afim de que a Cruz
de Cristo não seja vazia”. Este versículo dá uma definição polêmica do evangelho:
uma pregação, que recorre aos argumentos da sabedoria e da retórica para se impor,
termina por esvaziar a cruz de seu sentido. De maneira profundamente interessante,
para se exprimir, Paulo utiliza a expressão: “a cruz de Cristo”.
1Cor 2,2: οὐ γὰρ ἔκρινά τι εἰδέναι ἐν ὑμῖν εἰ μὴ Ἰησοῦν Χριστὸν καὶ τοῦτον ἐσταυρωμένον.
“De fato, é meu firme propósito não saber nada no meio de vós, a não ser Jesus Cristo
24 Sobre este ponto, ver Heinrich SCHLIER, Der Römerbrief (HThK 6), Freiburg/Basel/Wien, Herder, 1977, p.
109-114. Konrad HALDIMANN, “Kreuz – Wort vom Kreuz – Kreuztheologie. Zu einer Begriffsdifferenzierung
in der Paulusintepretation” em: Andreas DETTWILER, Jean ZUMSTEIN (ed.) Kreuzestheologie im Neuen Testament
(WUNT 151), Tübingen, Mohr Siebeck, 2002, p.13-16.
25 Sobre este ponto, cf. minha análise em: “Paul et la théologie de la croix”, ETR 76, 2001, p.481-496 (em

particular p. 486-487); Udo SCHNELLE, Paulus (cf. nota 10), p. 486-492.


26 Sobre estas duas passagens, cf.: Wolfgang SCHRAGE, Der erste Brief an die Korinther (1 Kor 1,1 – 6,11) (EKK

7/1), Zürich/Braunschweig /Neukirchen-Vluyn, Benzinger/Neukirchener, 1991, p. 151-161.227-229; Hans


WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus (cf. nota 23), p. 125-137.162-165.
5
e eu preciso: Jesus Cristo Crucificado”. Toda pregação que escolhe um outro ponto
de referência que não seja o Cristo Crucificado ou o dilui é rejeitada. A escolha
terminológica é, mais uma vez, típica: ἐσταυρωμένον; vemos que se trata de um
particípio perfeito, o qual invoca um evento que de fato ocorreu no passado, porém
que determina o presente.
(b) Ora, fato interessante é que na epístola aos Gálatas, que não recorre de
antemão ao registro da teologia da cruz, mas que utiliza aquele da justificação, temos
duas passagens de mesma coloração27:
Gl 5,11: Ἐγὼ δέ, ἀδελφοί, εἰ περιτομὴν ἔτι κηρύσσω, τί ἔτι διώκομαι; ἄρα κατήργηται τὸ
σκάνδαλον τοῦ σταυροῦ. “Quanto a mim, irmãos, sr prego ainda a circuncisão, por que
sou ainda perseguido? Neste caso, o escândalo da cruz é abolido”. Nestes dois
versículos, a cruz é apresentada como o único ponto de referência possível em
oposição à circuncisão. Uma amplificação desta perspectiva terminaria por reduzir
ao nada a cruz. De fato, a circuncisão e, por conseguinte, a Lei fazem parte do mundo
antigo que foi abolido pela cruz, a qual marca a inserção da nova criação. Mais uma
vez o apóstolo se exprime em termo que lhe são próprios: “o escândalo da cruz”.
Gl 3,1: Ὦ ἀνόητοι Γαλάται, τίς ὑμᾶς ἐβάσκανεν, οἷς κατ’ ὀφθαλμοὺς Ἰησοῦς Χριστὸς
προεγράφη ἐσταυρωμένος; “Oh Gálatas estúpidos, quem vos enfeitiçou, dado que Jesus
Cristo crucificado foi exposto diante dos vossos olhos”. De maneira característica, a
expressão escolhida para falar da morte de Cristo é: Χριστὸς ἐσταυρωμένος. Neste sentido,
mesmo que ele comece sua argumentação visando a oposição entre a Lei e o evangelho,
Paulo convida seus leitores a dirigir seu olhar sobre a cruz, centro da pregação apostólica.

A conclusão se impõe por ela mesma: para Paulo, a cruz (σταυρός) é o ponto de
referência seja de um discurso expondo a teologia da cruz, seja de um ensinamento sobre a
justificação.

3. A palavra da cruz28

Se a cruz de Cristo torna-se o ponto de referência a partir do qual o discurso teológico


se desenvolve, seria possível caracterizar este discurso, esta palavra da cruz (1Cor 1,18: ὁ
λόγος ὁ τοῦ σταυροῦ)? É possível evidenciar os elementos de sentido que constituem este
ponto e vista, o qual organiza e estrutura a reflexão teológico do apóstolo? Este trabalho foi
realizado de maneira programática por Ulrich LUZ, Ernst KÄSEMANN e Jürgen BECKER29. Eu
o prossegui em um artigo consagrado à teologia da cruz30. Destes trabalhos resultam as
seguintes conclusões:

27 Sobre Gl 3,1 e 5,11, ver Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 130-132.268.270; J. Louis MARTYN, Galatians
(AncB 33A), New York et al., Doubleday, 1998, p. 382-383.475-447; Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus (cf.
nota 23), p. 182-186.193-197.
28 A distinção entre a palavra da cruz e a teologia da cruz é uma das aquisições do seminário interdisciplinar

do 3º ciclo que acorreu em 2000-2001 nas Faculdades de Neuchâtel e de Zurique como o tema “Teologia da
Cruz”. Foi particularmente estuda por Konrad HALDIMANN, “Kreuz – Wort vom Kreuz – Kreuzestheologie”
(cf. nota 24), p. 1-25.
29 Cf. Ulrich LUZ, “Theologia crucis als Mitte der Theologie im Neuen Testament”, EvTh 34, 1974, p.116-141.

Ernst KÄSEMANN, “Die Heilsnedeutung des Todes Jesu bei Paulus” em: Paulinische Perspecktiven, Tübingen,
Mohr Siebeck, 1969, p. 67-107; Jürgen BECKER, Paulus, (cf. nota 17), p. 209-254.
30 “Paul et la théologie de la croix”, (cf. nota 25), p.481-496; e o volume consagrado a esta temática: Andreas

DETTWILER, Jean ZUMSTEIN (ed.) Kreuzestheologie im Neuen Testament, (cf. nota 24).
6
(a) A palavra da cruz não se constitui uma intepretação da morte de Jesus ao lado de
outras interpretações já disponíveis. Ela atesta uma inversão hermenêutica. A cruz
não é mais objeto de interpretação, mas se torna sujeito desta intepretação. Como
chave hermenêutica (ou para utilizar a terminologia de J. Christiaan Beker: sistema
simbólico31), ela permite decodificar o conjunto da realidade.
(b) A palavra da cruz é de natureza polêmica. Ela denuncia as concepções existentes
como invalidas e anuncia a irrupção de uma nova realidade. Ela dá testemunho da
criatividade divina, a qual se opõe à perdição humana.
(c) A palavra da cruz confere à linguagem uma tríplice afirmação;
- A palavra é, antes de tudo, uma palavra de julgamento. Diante da cruz se manifesta a
radical perdição de toda existência humana (o ser humano é deslocado em sua loucura
e em sua própria justiça).
- A palavra da cruz é teológica em sentido estrito, ou seja, ela é uma palavra sobre Deus:
ela manifesta um Deus livre e inesperado que questiona todas as expectativas humanas
(1Cor; Gl 3,10-13). Este aspecto é particularmente desenvolvido na teologia da cruz.
- A palavra da cruz tem uma dimensão soteriológica: ela revela e faz nascer uma nova
possibilidade de existência. Este aspecto é particularmente desenvolvido no
ensinamento sobre a justificação.
(d) Este sistema simbólico é desenvolvido em duas grandes formas de teologia: a teologia
da cruz e a o ensinamento sobre a justificação.

4. A teologia da cruz

Precisamente, do fato de que a palavra da cruz é fundamentalmente um princípio


hermenêutico que permite interpretar a realidade em seu conjunto, ele se operacionaliza em
discursos teológicos definidos. Ela não existe como uma verdade geral e atemporal, mas só
pode ser apreendida nos atos de intepretações concretos. O primeiro dentre estes é a teologia
da cruz em sentido estrito. Ele se caracteriza pela predominância de uma semântica da cruz
e pelo recurso a uma argumentação de tipo paradoxal. No entanto, a teologia da cruz é não
um sistema fechado. Ela se modula em função das questões particulares que se colocam ao
apóstolo, engajado em sua atividade pastoral. Ela é desenvolvida, de maneira pragmática,
na literatura corintiana. Escolhemos dois exemplos para ilustrar nossa proposta. O primeiro
é dado no locus classicus da teologia da cruz, a saber: 1Cor 19 – 2,5. O segundo aparece no
tratamento que Paulo faz da figura do apóstolo em 2Cor. A cada vez, tentaremos mostrar
que a cruz é o princípio hermenêutico que organiza o discurso e que este utiliza os elementos
que anunciamos.

4.1 Primeira Coríntios 1,18 – 2,532

O programa fundamental da teologia da cruz é desenvolvido em 1,8 – 2,5. O leitor


atento não deixará de constatar que as características que temos atribuído à palavra da cruz
são utilizadas nesta passagem. É conveniente, de início, perceber que, nesta passagem, a
palavra da cruz não é tratada enquanto tal, mas que é aplicada ao problema do

31 J. Christiaan BEKER, “Paul’s Theology: Consistent or Inconsistent?” (cf. nota 15), que utiliza a expressão:
« symbolic univers ».
32 Sobre esta passagem, cf.: Wolfgang SCHRAGE, Der erste Brief an die Korinther (1 Kor 1,1 – 6,11), (cf. nota 26);

Andreas DETTWILER, Jean ZUMSTEIN (ed.) Kreuzestheologie im Neuen Testament (cf. nota 24); Hans WEDER, Das
Kreuz Jesu bei Paulus (cf. nota 23).
7
conhecimento. Mais exatamente, a palavra da cruz é aplicada à crise radical da sabedoria
em sua forma desenvolvida. De fato, cai, pelo choque da crítica a sabedoria grega que visa
ordenar o conjunto dos fenômenos num quadro inteligível, a atribuir a cada elemento da
realidade um lugar preciso e, deste modo, a permitir ao sábio compreender o cosmos no
qual ele vive. O próprio Deus tem um lugar neste sistema, ele é a origem e o cume. Cai
igualmente, pelo choque desta crítica, a tradição religiosa judaica, marcada por uma longa
busca de sinais dados por Deus ao longo da história, que Ele partilha com seu povo. O fiel
tem orgulho de reconhecer o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, como Aquele que se revelou em
uma história de agora em diante conhecida. Seja na sabedoria grega, seja na piedade judaica,
o ser humana pretende identificar Deus e o colocar na palma de sua mão. Porém, fazendo
isso, Deus cessa de ser Deus e o ser humano aquele que espera tudo de Deus. O cadáver do
Crucificada é o “não-senso” que mostra o fracasso seja da sabedoria especulativa dos
Gregos, seja a espera religiosa judaica. Ele é escândalo que quebra todas as representações
de Deus.
Esta crise radical do conhecimento abre, no entanto, o caminho da revelação de Deus
em verdade. Subtraindo o fato de ser apoderado pelo conhecimento humano na medida em
que se manifesta pela cruz, Deus revela sua liberdade e sua alteridade. Sua manifestação
advém por uma inversão de valores (cf. vv. 27-29).
Esta afirmação paradoxal não deve, porém, ser separada do seu contexto. Deus
advém desta maneira porque os homens não souberam reconhecê-lo em sua sabedoria, afim
de que se mostre, sob a luz do dia, a loucura humana. Por isso, é preciso evitar a construção
de um novo sistema a partir do qual Deus se manifestaria exclusivamente nos valores
invertidos daqueles que os Gregos associavam ao divino. Argumentar desta maneira33 seria,
ainda mais uma vez, negar a alteridade de Deus e querer colocar a mão sobre Ele. Isso
significaria sucumbir ao perigo da contra-dependência. De fato, o Deus que renuncia toda
sabedoria, toda força, toda vida, é o mesmo que manifesta a verdadeira sabedoria e que é
criador da vida (1,24.30). A revelação do Deus da cruz tem uma consequência soteriológica
(cf. as ocorrências do verbo viver nos vv. 18-25). Devemos ser atentos, porém, ao fato de que
a problemática central dos vv. 18-25 é essencialmente teológica.
A crítica é unânime em reconhecer que se a palavra da cruz trabalha o problema do
conhecimento nos vv. 18-25, uma mudança significativa se opera nos vv. 26-31, depois em
2,1-434. Nos vv. 26-31, a palavra da cruz se aplica à realidade eclesial. As características que
valiam para a proclamação do Cristo crucificado – a escandalosa inversão de valores que
ela induzia – são transferidas à comunidade de Corinto. A eleição paradoxal dos “sem-
valores” em Corinto têm a vocação de colocar o mundo em crise, a fazer que ele abandone
toda pretensão e, por meio disto, a fazer que ele descubra o único fundamento sobre o qual
o ser humano é chamado a coloca sua confiança, afim de receber a vida em plenitude: o
Cristo crucificado (vv. 30-31). Uma última mudança se opera em 2,1-4. A palavra da cruz
não é mais relacionada ao conhecimento ou à realidade eclesial, mas à existência apostólica.
A orientação do apostolado paulino a partir da cruz e a inversão de valores que ela implica
dá forma à maneira como ele conduz seu ministério. Em síntese, estas pequenas mudanças

33 Ver por ex.: Wolfgang SCHRAGE, Der erste Brief an die Korinther (1 Kor 1,1 – 6,11), (cf. nota 26), p. 221-222, e
Jürgen Becker, Paulus (cf. nota 17), p. 220-221. Contra o perigo da contra-dependência, Hans WEDER, Das Kreuz
Jesu bei Paulus (cf. nota 23), p. 161.
34 Sobre esta sequência argumentativa, ver Hans CONZELMANN, Der erste Brief an die Korinther, (KEK 5),

Götingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1969, p. 54-72; Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus (cf. nota 23), p. 157-
165.
8
de perspectiva mostram como se opera a palavra da cruz; como ela se contextualiza, com
uma grande coerência, em registros de realidade diferentes.

4.2 Segunda epístola aos Coríntios

Afim de mostrar a fecundidade da palavra da cruz como príncipe hermenêutico de


constituição do discurso, gostaríamos de nos referir a um segundo exemplo que, do mesmo
modo, depende da teologia da cruz. Trata-se da maneira como a existência apostólica é
apresentada em 2Cor, particularmente na parte que convencionalmente foi chamada de “a
apologia do apostolado” (2,14 – 7,4) e na “carta entre lagrimas” (Tränenbrief, cap. 10 – 13).
Estas duas partes de 2Cor – pouca importa para nossa problemática se se trata de bilhetes
independentes ou que se defenda a unidade literária de 2Cor – a condição apostólica é
pensada a partir da palavra da cruz. Isto significa que a cruz é ponto de referência, o
horizonte hermenêutico que permite compreender a vida apostólica.
4.2.1 Dois gêneros literários a serviço da teologia da cruz
Nesta perspectiva, dois gêneros literários (que, por outro lado, se identificam
parcialmente) devem particularmente chamar nossa atenção, pois eles constituem, de
maneira privilegiada, a expressão literária da teologia da cruz em 2Cor. Por um lado, trata-
se dos catálogos de perístases (2Cor 4,7ss; 6,4ss; 11,21b-33; 12,10 [cf. também Rm 8; 1Cor 4];
 significa: circunstância adversas, dificuldades, vicissitudes), passagens nas quais
o apóstolo enumera as dificuldades que marcaram seu ministério35. Por outro lado, faz
necessário estabelecer o estado do discurso na loucura (Narrenrede: 11,16 – 12,13) onde Paulo
faz o elogio paradoxal do seu ministério apostólico36. Se fazemos abstração do quadro
literário (11,16-21a e 12,11-13), este elogio sub contrario compreende três elementos
característicos: primeiro, um imponente catálogo de perístases (11,21b-33) onde Paulo se
orgulha de sua fraqueza, depois as duas revelações das quais ele foi beneficiado. De maneira
típica, na medida em que a experiência extática que se concretiza pela subida celeste (12,1-
6) é, em definitivo, privada de pertinência (ela não leva a nenhuma palavra sobre nenhum
conteúdo revelador que modificaria o querígma), a segunda revelação (12,7-10), a qual
afirma a manifestação da força na fraqueza, é decisiva (“minha graça te basta: minha força
dá toda medida à fraqueza”). O procedimento hermenêutico é claro: a palavra da cruz é o
ponto de referência a partir do qual a existência apostólica é interpretada. O apóstolo é,
desta forma, conformado ao seu Senhor que foi crucificado na fraqueza, mas que está viva
pela graça de Deus (2Cor 13,14). Como é preciso compreender esta conformidade entre o
apóstolo sofredor e seu Senhor crucificado? Como interpretar esta conformidade entre
existência do fiel e a cruz? Como avaliar esta nova e impressionante expressão da teologia
da cruz?
4.2.2 A conformidade entre a cruz e existência cristã
Notemos, de início, um deslocamento interessante. Se em 1Cor 1,18 – 2,5, o objetivo
é essencialmente teológico (Deus se identifica com o Crucificado e se revele através dele),
em 2Cor, a atenção se concentra sobre a antropologia (o Crucificado se identifica com os
seus para dar sentido ao destino que eles terão).
Como compreender esta conformidade entre a cruz e a existência de fé? Não se trata
de uma piedade de imitação, pois só a morte de Jesus permanece o evento escatológico da

35 Ver: Wolkgang SCHRAGE, « Kreuz und Eschaton. Die Peristasenkataloge als Merkmale paulinischer
theologia crucis und Eschatologie », EvTh 34, 1974, p. 141-175.
36 Análise de Jürgen BECKER, Paulus (cf. nota 17), p. 245-254.

9
salvação. A passage-chave, que permite compreender esta conformidade é 2Cor 4,1037.
Desta declaração paulina, reteremos três afirmações capitais.
Primeira, mesmo se o velho homem está sepultado (Rm 6,4: συνετάφημεν οὖν αὐτῷ
διὰ τοῦ βαπτίσματος εἰς τὸν θάνατον - que se explicita pela linguagem da cruz em 6,6: τοῦτο
γινώσκοντες ὅτι ὁ παλαιὸς ἡμῶν ἄνθρωπος συνεσταυρώθη) pelo batismo na morte com
Cristo, isso não anula o fato de que a existência do novo homem se caracterize por um
“morrer” cotidiano (1Cor 15,31: καθ’ ἡμέραν ἀποθνῄσκω), por um “ir em direção à ruina”
(cf. 2Cor 4,16).
Segunda, as provas e os sofrimentos enfrentados não têm sentido neles-mesmos, mas
somente na medida em que eles se referem a Cristo (τὴν νέκρωσιν τοῦ Ἰησοῦ). Eles são, ao
mesmo tempo, sinal de pertença ao Cristo e efeito desta pertença.
Enfim, estes sofrimentos indicam que a morte do Cristo não é algo fadado ao passado,
mas com consequências diretas no presente. Não nos enganemos, esta presença da morte
do Cristo na existência do fiel não pode ser compreendida em sentido doloroso e trágico; ao
contrário, ela é marcada por uma atividade que construí vida (2Cor 4,12: “Assim a morte
trabalha em nós, mas a vida em vós).
4.2.3 O peso das experiências presentes dos fiéis
Após ter indicado como, em 2Cor, a cruz é o ponto de vista a partir do qual a
existência apostólica e, mais largamente, a existência do fiel são abraçadas, gostaríamos de
transpor mais uma etapa suplementar mostrando que alguns dos elementos típicos da
teologia da cruz, desenvolvidos no seu locus classicus de 1Cor 1,18 – 2,5, ressurgem em 2Cor,
porém, em um outro registro, aquele dos catálogos de perístases. Estes são doravante as
experiências presentes dos fiéis, no mundo e na história, as quais constituem o contexto no
qual se desenvolve a teologia da cruz.
(a) As provas e os sofrimentos dos fiéis e, em primeiro lugar, do apóstolo, atestam que
uns e outros estão em situação de seguimento de seu Senhor Crucificado38. Da mesma
forma que o Cristo foi crucificado na fraqueza e que seu destino é um escândalo para
a inteligência e a piedade (1Cor 1,18sss; 2Cor 13,3), assim também os fiéis que, à
imagem de seu Senhor, são loucos e fracos (1Cor 1,26ss; 4,13: tornamos como lixo do
mundo, a escória do universo). Esta miséria que eles suportam tem uma
consequência polêmica e critica e, mesmo, um caráter escandaloso. A fé confessada
não conduz a uma integração harmoniosa com o mundo e a uma aceitação de seus
valores, mas, ao contrário, a uma crise. Em lugar de gerar harmonia, integração,
popularidade, sucesso, a fé precipita o apóstolo nos conflitos e perseguições, o
fazendo objeto de zombaria, de galhofa para as elites. A crise e a inversão de valores
de honrarias na cultura e na religião são evidentes: é pelas fraquezas e derrotas que
os fiéis atestam, de uma maneira escandalosa e paradoxal, a presença do Crucificado.
Eles instauram uma distância crítica em relação à espera religiosa tradicional e os
valores reconhecidos no mundo; suas vidas se calam numa contra-linguagem
subversiva.
(b) Correr-se-ia, porém, o risco de desprezar a importância destes catálogos de perístases
se os compreendêssemos como sendo doloristas, mortíferos, os quais glorificam a

37 Sobre este ponto, ver a análise de Wolkgang SCHRAGE, “Kreuz und Eschaton”, (cf. nota 35), p. 160-169; Rudolf
BULTMANN, Der zweite Brief an die Korinther (KEK Sonderband), Götingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1976, p.
117-121; Erich GRÄSSER, Der zweite Brief na die Korinter. Kapitel 1,1 – 7,6, (cf. nota 21), p. 166-168 (uma exautiva
bibliografia, p. 160-161).
38 Wolkgang SCHRAGE, “Kreuz und Eschaton”, (cf. nota 35), p. 164-165.

10
humilhação e a fraqueza39. Como o sublinha a dialética praticada em 2Cor 4,10, na
fraqueza se manifesta a força de Deus, no morrer dos fiéis surge a vida. Porque o
Crucificado é o Ressuscitado, o morrer, a νέκρωσις, estado no qual se encontra, não
é uma fatalidade que conduz à sua diminuição total, mas espaço no qual se manifesta
a vida, a alegria, o reconhecimento, a eleição e o amor divino. O projeto salvífico
permanece a última palavra do evangelho paulino. Porém, dado que o Ressuscitado
não é nenhum outro, mas o próprio Crucificado, a vida se manifesta neste mundo
sob a máscara da morte e da fraqueza. A força do Cristo continua se manifestando,
de maneira paradoxal, através do apóstolo e dos fiéis. A teologia da cruz é aqui
formulada em toda sua radicalidade.

5. O ensinamento sobre a justificação

Para que a hipótese proposta seja válida, convém mostrar que a palavra da cruz – tal
como foi definida – estrutura igualmente o discurso centrado sobre a justificação. Tomando
a epístola aos Gálatas como texto de referência, gostaria de chamar a atenção sobre dois
pontos.

5.1 Gálatas 3,1-14

Segundo o modelo da análise retórica40, Gl 3 – 4 pode ser considerada como a probatio


(demonstração) da tese anunciada na propositio formulada em 2,15-21. No quadra desta
demonstração, o célebre argumento cristológico de Gl 3,13 (“Cristo nos resgatou da
maldição da Lei, tendo se tornado maldição em nosso lugar [ou em nosso favor], pois está
escrito: ‘Maldito todo aquele que for suspenso no madeiro’41) merece uma atenção
particular, pois, trata-se da primeira declaração cristológica, centrado na morte de Cristo,
neste contexto dominado pela temática da justificação pela fé. Examinemos este
argumento42:
(a) Contexto (3,1-14). A passagem se abre pela lembrança da experiência que foi aquela
dos Gálatas quando acolheram o Evangelho. Tal proceder permite de colocar a oposição que
vai ser desenvolvida nos vv. 1-14, a saber, a prevalência entre a escuta da fé e as obras da
Lei. Por isso, o tema “escuta da fé”, que suscita bênção, é explicitado nos vv. 6-9, enquanto
que o motivo “obras da Lei”, que provoca a maldição, é objeto dos vv. 10-14. O v. 13 retoma
a partir da cristologia, a maldição, ligada à Lei. É, pois, de suma importância perceber que
o v. 13 retoma, para o explicar, o v.1, o qual invocava, como ponto de referência, o Cristo
crucificado. Deste modo, a questão que se impõe é a seguinte: Como o Cristo crucificado,
invocado explicitamente como ponto de referência, é compreendido a partir de uma
linguagem cujo campo semântico é marcado pelos conceitos de Lei/fé/justificação?
Estamos diante de uma expressão teológica análoga àquela que se concretiza na teologia da

39 Cf. Erhardt GÜTTGEMANSS, Der leidende Apostle und sein Herr (FRLANT 90), Göttingen, Vandenhoeck &
Ruprecht, 1996, p.94-126, em particular p.102-112.
40 É mérito de Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 14-26, de ter operado uma aproximação entre a

epistolografia e a retórica antiga e de ter aplicado consequentemente este modelo à epístola aos Gálatas.
41 Tradução de Andreas DETTWILER em: « De la malédiction à la bénédiction : une interprétation de Galates

3,10-14 » em : Florian BILLE, Andreas DETTWILER, Martin ROSE (ed.), « Maudit quiconque est pendu au bois ». La
crucifixion dans la loi e dans la foi (Publication de l’Institut romand des sciences bibliques 2), Lausanne, Edition
du Zèbre, 2002, p. 57-83, aqui, p. 66.
42 Para a exegese desta passagem, ver em prioridade: Andreas DETTWILER, “De la malédiction à la bénédiction”

(nota 41), p. 73-80.


11
cruz? Gostaria de responder positivamente a esta questão mostrando que os elementos que
associamos à palavra da cruz são utilizados, em particular, no v.13.
(b) A cruz invocada no v.1 induz – e nisto ela mostra sua função hermenêutica – a uma
total reavaliação do papel da Lei e da Escritura (a passagem faz referência à promessa de
Abraão e contem numerosas citações do Antigo Testamento, inclusive Dt 27,26). A palavra
da cruz não é, pois, fechada em si mesma, mas permite uma releitura da tradição religiosa
judaica em suas expressões mais fundamentais.
(c) A palavra da cruz é de natura polêmica. Por um lado, o contexto comunicativo de
Paulo com seus destinatários é dominado pela denúncia, emitida pelo apóstolo, da
possibilidade de abandono do Evangelho (v.1: “Oh Gálatas estúpidos”; v.3: “vós sois
estúpidos?”; v.4: “Foi em vão que sofrestes tanto?”). Por outro lado, e isto é essencial, a Lei,
centro da fé de Israel, cessa de ser a expressão da revelação e da presença divina.
(d) Ademais, o caráter paradoxal do discurso, gerado pela palavra da cruz, é
manifestado na declaração do v.13. É no centro mesmo da maldição, da qual a cruz é sua
expressão, que resplandece a bênção e a promessa para o todos os homens. Poderíamos,
deste modo, evocar a surpreendente inversão na intepretação da figura de Abraão (o pai
dos filhos de Israel, torna-se o pai de todos os fiéis).
(e) A partir disso, retomemos os aspectos teológicos que são gerados pela palavra da
Cruz. A palavra da cruz suscita, por primeiro – ao menos é o que pretendemos -, uma
revelação do julgamento, da perdição que toca todos os seres humanos. Ora, em três
afirmações sucessivas, os vv. 10-12 mostram que a perdição concerne os seres humanos, os
quais têm a Lei como referência estruturante de suas vidas. A Lei é, com efeito, o vetor fatal
da maldição. Não é mais pela Lei, mas pela fé que o ser humano é justificado diante de Deus.
O v.13 apresenta um novo elemento a este quadro: a Lei se mostra em seu poder destrutivo
pregando o Cristo numa cruz. Porém, sua negatividade se volta contra ela mesma na exata
medida em que ela é impotente para impor a condenação ao Cristo. A maldição
pronunciada converte-se em promessa. Se ousamos uma afirmação audaciosa, diremos,
pois, que, se a sabedoria se torna loucura aos olhos de Deus em 1Cor 1, em Gl 3,13, a Lei é
desmascarada em sua negatividade e impotência. Como nos mostrou WADER43, ela é capaz
de provar, a partir de Dt 27,26, que Jesus é maldito. No entanto, ela falha ao descobrir que
tal maldição é, de fato, rica em bênção.
(f) A palavra da cruz – esta é nossa segunda tese – faz aparecer o rosto de um Deus
Inesperado: ela é fundamentalmente teológica. Certo, o v. 13 não tem o sentido estritamente
teológico, mas cristológico. Todavia, como demostrou HALDIMANN44, a maneiro pela qual o
Cristo é apresentado porta, mesmo que indiretamente, um testemunho sobre Deus. O
evento hermenêutico capital do v.13 – e isto foi bem afirmado por DETTWEILER45 – consiste
na dissociação entre Deus e a Lei. Ora, o Cristo foi condenado pela Lei, mas não por Deus.
Diante disso, a omissão da pessoa de Deus na citação de Dt 21,23 é sintomática. De fato,
como atesta a retrospectiva pascal, Deus se coloca ao lado do Crucificado. A constatação é
clara: segundo esta passagem, Deus se revela na cruz, independentemente da Lei, e distante
dela; independentemente da Escritura, aliás na subversão de sua leitura. Para se manifestar,
ele toma um caminho diferente, totalmente imprevisível e absolutamente novo.
(g) A palavra da cruz – esta era nossa terceira tese – tem, enfim, uma dimensão
soteriológica. O verbo “resgatar”, utilizado no v.13, faz, indiscutivelmente, jus a esta
dimensão. O aoristo utilizado (ἐξηγόρασεν) precisa que a salvação dada, e que consiste na

43 Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus (cf. nota 23), p. 186-193, sobretudo p. 188-189.
44 Konrad HALDIMANN, “Kreuz – Wort vom Kreuz – Kreuztheologie (cf. nota 24), p. 10-12.
45 Andreas DETTWILER, « De la malédiction à la bénédiction » (cf. nota 41), p. 77-79.

12
libertação das forças alienantes, em particular daquela força da Lei, teve lugar sobre o
acontecimento passado na cruz (cf. v.1). O “nós” (respectivamente ὑπὲρ ἡμῶν) não designa
somente os judeo-cristãos, mas o conjunto dos fiéis (cf. o contexto comunicativo da carta e
as afirmações do contexto, pr ex. v. 14). A salvação, ou para usar o vocabulário da perícope,
a promessa, respectivamente a bênção, é estipulada de duas maneiras: por um lado, ela
advém, independentemente da Lei, pela fé e pelo dom do Espírito; por outro lado, ela tem
uma dimensão universal.
(h) Estabeleçamos um balanço intermediário das reflexões até aqui feitas: por este breve
esbouço, espero ter demonstrado, a exemplo de Gl 3,1-14, que a palavra da cruz é colocada
em prática, do fato mesmo que ela se apresenta como princípio de constituição do discurso,
não somente na correspondência dominada pela teologia da cruz, mas igualmente na
correspondência nas quais se reflete o ensinamento sobre a justificação. O complexo
argumentativo sobre a justificação não nasce, antes de tudo, de um problema particular –
que seria a necessidade de acolher os pagãos no povo de Deus (ainda que esta questão possa
ter tido a função de catalisador) – mas conduz a palavra fundadora da cruz a exprimir-se
em um campo semântico diverso. Para estabelecer ainda mais solidamente meu ponto de
vista, gostaria de evocar um argumento suplementar.

5.2 A propositio e a recapitulation de Gálatas

Que este princípio de constituição do discurso seja utilizado isto é atestado por um
fenômeno cuja importância não foi suficientemente sublinhado, a saber: em dois lugares
estratégicos da epístola aos Gálatas – a propositio e a recapitulatio – se intercambiam o
discurso sobre a justificação e afirmações concernentes à teologia da cruz.
5.2.1 A propositio
A propositio (Gl 2,15-21) tem, do ponto de vista retórico46, um papel preciso: ela
formula os argumentos que serão, em seguida, desenvolvidos na probatio. Ela condensa,
assim, de maneira programática, a mensagem central da carta. Ela se compõe de quatro
partes: os vv. 15-16 expõem o ponto de acordo entre Paulo e seus leitores gálatas; b) os vv.
17-18 formulam a questão que é objeto de controvérsia; c) os vv. 19-20 enunciam quatro teses
teológicas nas quais é condensado o ponto de vista do apóstolo; v.21 é consagrado à
refutação de uma objeção47. Ora, não escapará ao leitor atento que a propositio, em seu
conjunto, é dominada pela temática da justificação pela fé e que as teses propriamente
paulinas, e que são destinadas a serem demonstradas, recorrem à temática da cruz (cf. vv.19
– 20, sobretudo v.19b48).
Deste modo, a primeira tese (v.19a) opõe a Lei a Deus, e denuncia o caráter mortífero
da Lei, a segunda tese (v. 19b) formula o efeito da cruz para o fiel: pela cruz, o fiel é, ao
mesmo tempo, liberado da Lei e de seu “eu pecador”, mesmo que ele possa entrar na vida
nova, tal como ela é descrita na terceira e quarta tese (elas também centradas em torna da
morte de Cristo). Por isso, neste contexto, o ponto decisivo é que a crítica da Lei é fundada
em argumentos da teologia da cruz. Os dois discursos não são dissociados, mas articulados.
No momento em que o apóstolo conclui a apresentação de seus próprios argumentos, ele
une a temática da justificação à teologia da cruz e, se ele assim o faz, é porque uma e outra

46 Sobre a função retórica da propositio, ver: Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 114; no mesmo sentido,
Jürgen BECKER, Paulus (cf. nota 17), p. 292. Outra apreciação em François VOUGA, An die Galater (HNT 10),
Tübingen, Mohr Siebeck, 1998, p. 55-56.
47 Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 19.121-127.
48 Sobre este ponto, Hans WEDER, Das Kreuz Jesu bei Paulus (cf. nota 23), p. 175-182.

13
se originam na palavra da cruz. Notemos, enfim, que a refutação do v.21, que conclui a
propositio, reafirma que a morte de Cristo é o único fundamento da salvação.
5.2.2 A recapitulatio
Nós encontramos um fenômeno análogo na peroratio/recapitulatio (Gl 6,12-17). A
peroratio/recapitulatio constitui, numa perspectiva retórica, a conclusão de um discurso. Sua
função, além de tentar ganhar, uma última vez, a simpatia dos destinatários, é de mencionar
uma ultima vez a questão debatida e os argumentos desenvolvidos para apoiar a posição
defendida pelo autor49. Percebemos de imediato a significação capital da passagem para
nossa problemática, pois podemos, sem exageros, discernir um resumo do conflito que opõe
Paulo e os Gálatas, bem como a posição que o apóstolo defende.
Se os vv. 12-13 evocam, uma última vez, a posição dos opositores – a exigência da
circuncisão – os vv. 14-15 formulam, em forma condensada, a posição teológica do
apóstolo50. Mais uma vez o leitor é surpreendido pela semântica da cruz. O ponto de
referência de Paulo, seu objeto de orgulho, é a cruz de Cristo (v.14: ἐμοὶ δὲ μὴ γένοιτο
καυχᾶσθαι εἰ μὴ ἐν τῷ σταυρῷ τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ). Esta referência conduz a
três afirmações:
(a) O efeito da cruz se dá na descontinuidade entre o eu e o mundo;
(b) Esta descontinuidade se concretiza, de antes de mais nada, pelo fato de que o mundo
é crucificado para mim (δι’ οὗ ἐμοὶ κόσμος ἐσταύρωται). Este mundo que morre aos
meus olhos é o mundo que se caracterize por seus valores morais e religiosos
definidos, por exemplo, pela linha de demarcação que existe entre circuncisos e
incircuncisos, pela separação entre Israel e as nações. Pela cruz, esta concepção do
mundo é definitivamente julgada e levada a nada;
(c) O efeito da cruz reside igualmente na morte do eu (κἀγὼ κόσμῳ). O eu que é
crucificado, o eu que morre na cruz, é o eu caracterizado pela própria gloria, pela
busca de reconhecimento diante do fórum do mundo.
Esta dupla morte, do mundo e do eu, que exprime a dimensão crítica da cruz, abre o
caminho a uma dimensão criadora e positiva da cruz, a uma nova criação (v. 15: οὔτε γὰρ
περιτομή τί ἐστιν οὔτε ἀκροβυστία ἀλλὰ καινὴ κτίσις). Lá, onde as antigas divisões
desapareceram, surge um novo espaço de vida de liberdade através da qual a articulação
entre o eu e o mundo se dá de maneira inteiramente nova. Para não deixar dúvidas sobre o
caráter fundamental desta recapitulatio, Paulo a apresenta como o “canon” (v. 16: κανών) da
mensagem paulina.
Apresentemos, mais uma vez, três aspectos fundamentais para nossa problemática.
Primeiro, todos os elementos característicos da palavra da cruz estão presentes. Segundo,
mesmo que a carta em seu conjunto desenvolva o ensinamento sobre a justificação, a
recapitulatio é formulada em termos próprios à teologia da cruz – estabelecendo a
compatibilidade e a familiaridade entre os dois discursos. Enfim a importância da palavra
da cruz é evidenciada pelo próprio Paulo na medida em que ele a eleva ao nível de “cânon”.

6. Conclusão

6.1 O status epistemológico da hipótese apresentada


A título de conclusão metodológica, gostaria de desenvolver a seguinte reflexão. O
princípio de constituição da teologia de Paulo, que apresentamos, pretende ser uma leitura

49Sobre a função retórica da peroratio/recapitulatio, ver Hans Dieter BETZ, Galatians (cf. nota 12), p. 23. 313.
50Sobre este ponto, a contribuição decisiva de Wolfgang HARNISCH, “Einübung des neuen Seins. Paulinische
Paränese am Beispiel des Galaterbriefes”, ZThK 84, 1987, p. 279-296.
14
plausível da teologia paulina, sem excluir outras leituras, na medida em que estas satisfaçam
o mesmo rigor. Nossa hipótese quer oferecer um fio condutor permitindo de apreender a
condição de possibilidade e a coerência do discurso paulino. No entanto, é
metodologicamente impossível de provar que esta leitura seja justa. Será, certamente,
possível demonstrar que ela é falsa, supondo que transgrida afirmações centrais do corpus
literário escolhido como corpus de referência, ou então que ela ignore o sentido obvio dos
textos evocados. Porém, enquanto tal refutação não for bem demonstrada, nossa hipótese
interpretativa tem sua reputada validade.

6.2 Paulo e Jesus


A título de conclusão teológica, gostaria de, brevemente, sugerir que as diferentes
expressões da teologia paulina que se enraízam na palavra da cruz constituem uma
pertinente retomada da mensagem de Jesus51.
6.2.1 Paulo, intérprete de Jesus
Paulo é o intérprete mais antigo Jesus cujo testemunho o Novo Testamento
conservou. Há então uma continuidade entre Jesus e Paulo, a qual nos asseguraria que Paulo
está de acordo com a tradição de Jesus, de quem ele é fiel porta-voz? À esta questão, faz
necessário responder pela negativa: não há continuidade histórica entre Paulo e Jesus (Paulo
não encontrou, nem conheceu o Jesus da história), nem continuidade tradicional (Paulo não
é portador da tradição do Jesus terrestre, mas da tradição querigmática).
A questão sobre a possibilidade de continuidade entre Jesus e Paulo se radicaliza na
medida que sabemos que Jesus anunciou, em atos e palavras, a vinda iminente do Reino de
Deus, e Paulo, por sua vez, pregou a morte e a ressurreição de Jesus como sendo o evento
de salvação. Este deslocamento na formulação da mensagem seria uma traição ou, pelo
contrário, trata-se de uma melhor apreensão do “fato Jesus”?
Para abordar esta problemática de maneira fundamentada, é conveniente nos colocar
a seguinte questão: o apóstolo Paulo atribuiu a Jesus a mesma significação que este último
reivindicava para ele mesmo? Paulo compreendeu a figura de Deus e da condição humana
da mesma maneira? Ele concebeu a fé em termos equivalentes?
6.2.2 Jesus, Palavra última de Deus
O Jesus histórico atribuiu a seu ministério uma significação escatológica. Ele
considerava que, por suas palavras e seus atos, ele manifestava, de maneira decisiva e
última, o projeto de Deus para os seres humanos.
Paulo compreendeu profundamente este caráter último e decisivo da vinda de Jesus.
Também para ele, a vinda do Cristo, sobretudo por sua sua morte e ressurreição, manifesta
na metáfora da cruz, tem uma significação escatológica. A cruz marca uma virada decisiva
na história e no destino da humanidade. Se o “antes” de Jesus é marcado pela revolta e a
perdição dos homens, sua vinda, em particular a cruz, abre um novo espaço de vida.
Doravante, todos (as), sem exceção, são convidados (as) a viver a graça de Deus – e isto na
liberdade e responsabilidade. Para Jesus e para Paulo Deus pronunciou sua Palavra última
através do Nazareno.
6.2.3 O Deus de Jesus e de Paulo
Jesus e Paulo são igualmente unidos pela mesma concepção da pessoa de Deus, e isto
sobre um tríplice ponto de vista. Primeiro, tanto para Jesus como para Paulo, Deus é o
criador e o Deus da Aliança. Deus fez aliança com seu povo; Ele lhe deu a Lei para lhe

Para uma detalhada argumentação, ver nossa contribuição: “Paul e Jean: les deux premiers grands inteprète
51

du Jésus de l’histoire” em: Elian CUVILLIER (ed.), Sola Fide. Melanges offerts à Jean Ansaldi (Actes et Recherches),
Genève, Labor et Fides, 2004.
15
oferecer um espaço de uma revelação autêntica com Ele. Mas – este é o segundo ponto –
tanto para Jesus como para Paulo, o Deus da Aliança não é nem reconhecido, nem
confessado. Ele é rejeitado ou instrumentalizado. O pecado, isto é, o mal conhecimento de
Deus e a ruptura que dele decorre, é universal. De agora em diante – e este é o terceiro ponto
– tanto para Jesus como para Paulo, Deus vem para o julgamento, mas este julgamento toma
uma forma surpreendente. A Boa Nova que está no centro da mensagem de Jesus consiste
em proclamar que Deus não vem para diminuir o mundo revoltado, mas para lhe abrir um
novo futuro. Sua sanção não consiste em rejeitar os pecadores, mas em acolhê-los
incondicionalmente. Da mesma maneira, Paulo, mesmo sendo silencioso no que tange à
mensagem do Jesus terrestre, propaga a mesma mensagem, mas recorrendo a uma outra
terminologia. Deus manifesta sua justiça, ou seja, sua fidelidade a Ele mesmo e à sua
Aliança, declarando o pecador justo por pura graça e independentemente de suas obras. A
cruz e a ressurreição são o espaço onde a graça de Deus é vislumbrada.
Assim, o que Jesus disse em sua proclamação do Reino que vem, Paulo o retoma em
seu anuncio do Evangelho da justiça de Deus ou em sua teologia da cruz. Todos dois estão
de acordo para discernir um Deus que é, ao mesmo tempo, Aquele que diz um não resolvido
diante do erro humano e suas consequências, os quais não têm a ultima palavra sobre a
vida, e um “sim incondicional a cada existência humana, onde quer que ela se encontre e
independentemente de suas qualidade e de seus benefícios.
6.2.4 A existência do fiel segundo Jesus e segundo Paulo
Contrariamente a João Batista, o anuncio da vinda de Deus para estabelecer seu reino
não é motivo de temor ou de contrição, mas de alegria e reconhecimento: ela dá acesso à um
caminho marcado pelo sinal da liberdade e da alegria.
Semelhantemente, os fiéis das comunidades paulinas se sabem beneficiários da
justificação pela Lei sem as obras da Lei. Tendo mostrado a tristeza de uma busca ilusória
de perfeição religiosa ou ética, eles são chamados a conduzir uma existência na liberdade –
libertados da morte, do pecado, da Lei, doravante livres para o mundo e para os outros.
Jesus chama aqueles que libertou a o seguir e, deste fato, a renunciar seus apegos
terrestres, que eles sejam de natureza familiar, profissional ou material. A palavra que
estrutura suas existências é, desde agora, o mandamento do amor. A mesma revisão da
existência se manifesta em Paulo quando fala do chamado a ser crucificado com o Cristo. É
imperativo não mais viver para si mesmo, mas para Deus. Trata-se de ser crucificado para
o mundo e para si mesmo, isso significa: ser libertado de um passado de erro, da
preocupação pelo êxito e o medo da morte.
6.2.5 A salvação pascal
Este profundo acordo teológico não deve, porém, esconder um significativo deslocamento:
todo o projeto de Jesus é articulado em torno do anúncio da proximidade do Reino de Deus.
Já aquele de Paulo tem sua referência na cruz. Jesus se coloca na perspectiva de um Deus
que vem, Paulo, naquela de Deus que já veio. Aquilo que Jesus diz sob o ângulo da
promessa, Paulo o anuncia como advindo. Ele é um teólogo pós-pascal. Ele reassume o
projeto de Jesus numa situação de releitura pascal. Ele nomeia a salvação advinda, uma vez
por todas, em Jesus de Nazaré.

16

Вам также может понравиться