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livros

A orgia de
Tulio Carella
sai da
clandestinidade
Leusa Araujo

Orgia: os Diários de Tulio Carella, Recife 1960, tradução de Hermilo Borba Filho,
introdução e notas de Álvaro Machado, São Paulo, Opera Prima, 2011, 312 p.

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N
o prólogo “El Placer Glacial”, de Mario Vargas Llo-
sa, para a edição de Historia del Ojo1, de Georges
Bataille, o crítico adverte sobre a complexidade da
obra, feita de tantas camadas superpostas que, ao
serem separadas para análise, podem produzir o
mesmo efeito que autopsiar um corpo vivo: matá-lo.
O mesmo se aplica a Orgia, do dramaturgo e escritor
argentino Tulio Carella, escrita durante sua perma-
nência no Recife, nos anos 1960: o diário íntimo,
quase documental sobre as experiências homoeróti-
cas vividas com negros nordestinos, alterna-se com a
crônica social de uma América Latina à beira do precipício das ditaduras militares e a reflexão
sobre a atitude profana e livre do homem, tão caras à literatura e ao teatro produzidos sob
influência de André Gide, André Malraux, D. H. Lawrence, Miguel de Unamuno, Georges
Bataille e Jean-Paul Sartre. Como separar o vivido do inventado?
À maneira de Gide e do romance à clef, os apontamentos do escritor serão objeto constante
de reflexão no decorrer da própria obra: “Quem sabe por que escrevo este diário? Por amor
ao pecado, talvez? […] Ou tento justificar-me a mim mesmo com uma exagerada grandeza
no erótico?”. Em outro momento, acredita ser o diário “um modo prático de analisar suas
emoções, seus sentimentos. Infelizmente para ele, que, durante muitos anos, separou sua vida
intelectual de sua vida passional e essa cisão empobrece o diário”.
Essa cisão entre professor de teatro na Universidade Federal de Pernambuco, a convite do
teatrólogo Hermilo Borba Filho (no livro, Hermino) e do poeta Ariano Suassuna (no livro,
Adriano), e o homossexual das ruas de Recife criará o duplo narrador, distinto pela própria
tipologia gráfica usada desde a primeira edição. Em itálico, o narrador onisciente, Lucio Gi-
narte (Tulio): “um indivíduo contraditório. Tem austera formação católica, uma mentalidade
de puritano para os outros, e uma insaciável curiosidade intelectual […]. Pela primeira vez
em sua vida a vontade de ser abandona-o e é possuído pela vontade de viver”. E, somente a
partir do terceiro capítulo, surgirá, em redondo, a primeira pessoa: “Sou seguido por vários
invertidos. Cada vez que saio à rua forma-se uma espécie de cortejo atrás de mim”.
As duas vozes estabelecem, assim, de forma quase didática, a tensão permanente entre a
literatura e as ruas, a reflexão intelectual e a experiência carnal e, no limite, os dilemas do ser
e da existência: “Na atmosfera do Recife respira-se sexo puro e eu estou me intoxicando. Mas
não posso perder tempo sentindo-me culpado; é preciso viver. De repente, vejo que sei muito
menos acerca dos homens do que supunha”. LEUSA ARAUJO é
escritora, pesquisadora
e jornalista. É autora de,
A CIDADE DO DESEJO entre outros, Náufragos
Emergentes – Seis
Histórias Ordinárias
Se a prostituta, para Baudelaire, é a figura mais próxima do verdadeiro flâneur, Carella (Opera Prima) e Ordem,
aceitará o convite para essa orgia tropical, vestindo, nas ruas de Recife, uma nova pele: a Sem Lugar, Sem Rir,
Sem Falar (Scipione).
negra. O argentino, quase dois metros de altura, branco e um pouco flácido, deixa a sala de
aula da universidade para viver Lucio, o estrangeiro, o assediado pelos que buscam sexo com
“invertidos”. Lucio no mictório do Bar Deserto, espécie de quarto de encontros; Lucio nas 1 Georges Bataille, Histo-
pontes que cortam a cidade; no cais de Santa Rita; e, mais tarde, no seu quartinho alugado, ria del Ojo, ilustrações
de Hans Bellmer, pró-
alternando prazer e solidão. Enrabado, beijado, masturbado por negros nordestinos, pais de logo de Mario Vargas
família, trabalhadores braçais, marinheiros, biscates. Llosa, tradução de
Antonio Escohotado,
Essa sucessão de encontros fugazes aos poucos revelará ao leitor a verdadeira cidade de Barcelona Tusquets
Carella: a cidade do desejo pelo outro. Penetrar na alma da cidade é penetrar a carne de seus Editores, 1978.

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habitantes negros e morenos – ser em outro DEUS NEGRO


e, assim, escapar do solipsismo.
Mas o desejo, ainda que o liberte da prisão “Aqui (no Recife) se diz que Deus é negro
da consciência, acaba por fazer dele um escra- e criou a luz para o universo: Ele não neces-
vo, convidando-o aos prazeres carnais de for- sitava dela […]. Tudo era negro no princí-
ma irrefreável: “É preciso certo heroísmo para pio e continua sendo assim. De onde, então,
mergulhar com tanta exclusividade no sexo, vêm os brancos?”. Nesses versos de Tulio
desprezando dinheiro, posição e uma obra que Carella, retirados do volume de poemas Ro-
poderia realizar. Sinto-me distante do passa- teiro Recifense2, editado no Brasil em 1965
do. Desprendi-me de meu país, de meus cos- (e, assim como Orgia, inédito na Argentina),
tumes, como a casca de um fruto que acaba já se revela a importância vital que o negro
de amadurecer. Creio que está nascendo outro terá na obra do argentino.
eu – mais um – que ainda não conheço […]”. Desde o momento da chegada ao Recife,
Seguindo o ensinamento de Bataille de Lucio Ginarte estranha que lhe perguntem so-
que o erotismo deve ser vivido religiosamen- bre a cor durante o preenchimento dos dados
te, Carella também fará dessa cópula diária pessoais no hotel. Sem entender uma palavra
sua ascese profana. Ou, então, por que seria em português, insiste: “Cor? Que significa?
enrabado por King Kong, o halterofilista sa- […] O rosto? Se tenho cicatrizes?”. Ao enten-
rará – personagem emblemático – justamen- der que se tratava da cor da pele, sente uma
te na Sexta-feira da Paixão para, em seguida, espécie de indignação: “E se fosse negro? Es-
ir à igreja ver imagens do Cristo morto? Po- taria proibido de hospedar-se nesse hotel?”.
rém, essa entrega absoluta – “como se o car- Em Orgia, o negro será retratado opon-
nal fosse deus” – não se dará sem conflitos. do-se à visão eurocêntrica do Ocidente, mas
Com o passar do tempo, o intelectual ainda sob um olhar estrangeiro: ora na pers-
afasta-se cada vez mais dos seus pares da pectiva quase mítica (“os deuses negros vão
universidade e da produção literária. Culpa o apoderando-se de mim”); ora sob o peso da
desejo por matar qualquer inspiração para a desigualdade social (“Vejo os pés descalços
atividade artística. Em compensação, torna- dos negros […]. Ninguém parece pensar ne-
-se figura conhecida no circuito homossexu- les; as coisas são assim e assim haverão de
al: “À noite, a rua Duque de Caxias é ponto continuar”); ou ainda replicando estigmas,
de reunião de homossexuais, que dão uma quando considera o negro ser próximo da
volta pela praça Dezessete, cais de Santa natureza para justificar a força do erotismo
Rita e voltam pela rua 1o de março. Começo (“Nelson, de roupa nova […] perdeu a anima-
2 Tulio Carella, Rotei-
ro Recifense, Recife, a fazer parte deste ambiente, mas o cortejo lidade que o fazia atraente”).
Imprensa Universi- que me segue se renova, contínuo, assíduo, A pergunta “Que é um negro?”, repetida
tária, 1965 – trecho
traduzido por Álvaro tenaz, obstinado”. Chega a sentir-se, em cer- muitas vezes em Orgia, aproxima Carella das
Machado no estudo tos momentos, cansado, vagando pelas ruas razões que levaram Jean Genet a fazer a peça
introdutório de Orgia,
Os Diários de Tulio Ca-
como um zumbi: “Este diário me esvazia, Os Negros, encenada em 1959. “Uma noite
rella (p. 23). não é uma obra. Também fazer amor todos um ator me pediu que escrevesse uma peça
3 Jean Genet, Os Negros, os dias não é amor”. Até o final de Orgia, para ser representada por pretos. Mas o que
tradução Fatima Sa- entretanto, persistirá na busca por uma cor- é afinal um preto? E, pra começar, de que cor
adi, Rio de Janeiro,
Sette Letras, 1998. respondência entre corpo e alma “para que o é?” – escreve Genet, na abertura da peça 3.
desejo se mantenha fresco e perdure”. Para ambos, o argentino e o francês, “o
4 Lucio Allemand
Branco, “O Duplo Te- Por mais que se sinta enfraquecido, ora negro é o outro que assume e interioriza
atral em Os Negros, “coração vazio” ou “cérebro oco”, acaba der- sua condição de ente estranho ao status quo
de Jean Genet”, in
Palimpsesto – Revista rotado pelo desejo: “Isto pode acarretar gra- branco”4. Mas, enquanto Carella depara-se
do Programa de Pós- ves consequências no meu futuro, mas agora, com a Ameráfrica ou Afroamérica – como
-Graduação em Letras
da UFRJ, n. 10, Ano 9, com este lindo corpo ao lado, por que pensar se referia ao Brasil. em que o sangue negro
2010. no amanhã?”. é comparado “à luz do sol”, “à substância

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vital dos trópicos alegres” –, o francês vai a literatura do final do século XIX e a ante-
debruçar-se sobre uma África fictícia, liberta véspera do movimento de liberação sexual
do jugo europeu, num ritual de morte simbó- dos anos 1960-70: “A afirmação do desejo
lica da opressão branca. homoerótico de que suas obras dão testemu-
Importante lembrar que, na época, tanto nho era uma etapa vencida. O desafio agora
Genet quanto Carella testemunhavam o pro- era trazer a afirmação desse desejo para o
cesso de descolonização da África e da for- espaço da vida cotidiana de pessoas comuns
mação do que viria a ser o movimento pelo […]”. Na literatura finissecular, o homoero-
orgulho negro. É inegável a influência do tismo aparece, em geral, como elemento
filme Os Mestres Loucos, de 1954, de Jean integrado a um estilo de vida sui generis,
Rouch (uma alegoria do processo colonial extremamente requintado ou profundamen-
inglês em Gana), sobre o enredo de Os Ne- te abjeto. “[…] Nos anos 1950, vamos en-
gros, de Genet5. Mas no ambiente intelectu- contrar um esforço notável de uma série de
al do Nordeste brasileiro, entretanto, Carella autores de variada procedência para trazê-
sentia-se isolado: de um lado, intelectuais -lo para o espaço da vida cotidiana e das
de direita dizendo “que a raça negra era um relações sociais corriqueiras”7.
estorvo e que o Brasil não progrediria nunca Escrito em 1960, Orgia também se va-
por causa da mistura de raças”; de outro, a lerá do registro quase documental para ana-
esquerda, que teimava em não tomar a ques- lisar o comportamento sexual masculino.
tão racial como decisiva para as reformas Arriscando-se a considerações de natureza
estruturais. O argentino discordava: “Não sociológica, revela alguns contrastes entre
compreendem que sem o negro o Brasil se o meio homossexual da Argentina e de ou-
enfraqueceria e sua civilização seria com- tros países da Europa e o do Nordeste: “Pelo
pletamente diferente”. que vejo, o problema sexual da juventude é
Não se trata de exagero, portanto, afirmar árduo. São pobres e o amor é caro; não tem
que Carella alinhava-se com o novo status como pagar uma mulher; voltam-se, então,
que o negro assumia na vanguarda das artes para o invertido. Mas, ao mesmo tempo em
latino-americanas – especialmente no tea- que gozam e normalizam o funcionamen-
tro e nas artes visuais. Basta lembrar que, to de suas glândulas, querem dinheiro. Os
em 1949, o Teatro Experimental do Negro psicanalistas falaram muito da relação sexo-
(TEM) marcara o memorável encontro com -dinheiro, mas na realidade não esclarece-
o escritor franco-argelino Albert Camus com ram nada”.
a encenação de Calígula6. Em 1956, seria a Ele próprio continuará a investigar as
vez da premiação da peça Orfeu da Concei- razões para o fato de ser seguido por uma 5 Idem, ibidem, p. 3.
ção – uma Tragédia Carioca, de Vinícius de multidão de pederastas quando sai às ruas: 6 Abdias do Nascimen-
Moraes, com um ator negro no papel princi- “Quase sempre procuram tirar algum pro- to, “Na Gafieira com
Camus”, in Ilustríssi-
pal; a sua adaptação para o cinema, Orfeu do veito, embora pequeno: uma cerveja, uma
ma, Folha de S. Paulo,
Carnaval, dirigida pelo francês Marcel Ca- entrada de cinema, cigarros. Mas fazem 20/5/2011.
mus e filmada no Rio de Janeiro, ganhará em amor porque lhes interessa o amor em si. 7 José Carlos Barcellos,
1959 a Palma de Ouro em Cannes e Oscar Não têm remorsos nem intenções ocultas, “Entre o Passado e
o Futuro: Configu-
de melhor filme estrangeiro em Hollywood. como acontece em países que pensam ser rações do Homoe-
mais civilizados. Em Buenos Aires ou Paris rotismo Masculino
em Narrativas dos
A FEIÇÃO AMOROSA DA um encontro desta espécie pode terminar em
Anos 1950”, in Ma-
assalto, roubo, crime”.
HOMOSSEXUALIDADE traga, Programa de
Pós-Graduação em
Embora Lucio evite gastos dispendiosos
Letras da UERJ, pp.
No artigo “Entre o Passado e o Futuro: e outras demonstrações de riqueza – espe- 157-75. Disponível
Configurações do Homoerotismo Masculino cialmente quando passa a levar alguns aman- e m : h t t p : // w w w.
pgletras.uerj.br/ma-
em Narrativas dos Anos 1950”, José Carlos tes ao seu quarto –, não se sente ameaçado t r a g a /m a t r a g a17/
Barcellos considera Gide o grande elo entre pela violência, como o personagem Gonzalo, matraga17a12.pdf.

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Reprodução
Vista do Recife

da prosa Trans-Atlantico, escrita pelo polo- blicos, agora erotizados – mictórios, becos
nês Witold Gombrowickz entre os anos de escuros, balaustradas de pontes, degraus do
1949-63, em Buenos Aires. Trata-se também cais onde homens se reúnem para “mijar e
de outro importante relato sobre a condição cagar” –, somos levados a sentir o cheiro
homossexual, mas numa paisagem urbana fétido da urina e a ouvir o som das subs-
hostil e violenta: “Para manter esse risco tâncias corporais. “Vejo as gotas de esperma
dentro de limites suportáveis, porém, Gon- brotando e caindo na calçada com um som
zalo finge ser seu próprio criado, de forma apagado, leve”.
que seus parceiros não percebam quão rico Longe de reivindicar uma aceitação para
ele, na verdade, é. Gonzalo acredita que, caso o homossexual nos moldes do que sucederá
não procedesse assim, já teria sido morto”8. mais tarde com as bandeiras do movimento
Em Orgia, apesar do olhar estrangeiro, gay dos anos 1970, o personagem-autor não
as observações às vezes clínicas das relações esconde a angústia provocada pela sucessão
homossexuais não se traduzem em lingua- de encontros, que se desgastam com rapidez,
gem afastada. As experiências sexuais são já que nem todos são capazes de proporcio-
narradas na intimidade, de maneira a con- nar a mesma vibração erótica. E, assim, cai
vencer o leitor de que Lucio é homem de car- num tema recorrente na literatura homo-
ne e osso e não personagem ficcional, o que erótica: a angústia resultante de uma vida
excita alguns e escandaliza outros. Nenhum dupla que requer permanente dissimulação.
leitor, entretanto, será poupado da narrativa Mas, então, o que há de novo nessa orgia
que se detém (e não por acaso) na obscenida- tropical? Seduzido pelos negros nordestinos,
de dos corpos e nas funções excremenciais, Carella introduz o tema da conciliação entre
8 Idem, ibidem, p. 164. de que tanto fala Bataille. Nos espaços pú- o homoerotismo e o verdadeiro afeto. Xa-

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vier, o matuto do interior do Rio Grande do ir até os camponeses para alfabetizá-los, ape-
Norte, caso amoroso que surge nos últimos sar de se ver impedido pela falta de domínio
capítulos do livro, é um exemplo dessa feição do português.
sentimental de Orgia: “Estava com ciúmes. Sem provas de seu envolvimento com
Jura novamente que gosta de mim mais do qualquer contrabando revolucionário, os ma-
que desejaria. Peço-lhe uma lembrança e, nuscritos de Orgia encontrados no quarto do
como não tem fotografias, corto uma mecha escritor em Recife acabaram por ser usados
de cabelo do seu sovaco. […] Juro-lhe – e sou como ameaça. “Por via das dúvidas, tiramos
sincero – que, se puder, o chamarei para meu cópias do seu diário. Se você contar essa
lado. […] Amanheço pensando em Xavier”. história [referindo-se à tortura e à reclusão],
publicaremos os trechos escabrosos do que
A VISÃO você escreveu”9.
De volta à pátria de origem, em 1962,
FÁUSTICA
Carella publica textos para teatro e ensaios
O sentimento de “não estar em nenhuma ao longo dos cinco anos seguintes – entre
parte” acompanhará o personagem Lucio os quais Picaresca Porteña10, estudo sobre
Ginarte até as vésperas de sua partida para prostíbulos e a vida sexual em Buenos Aires,
Brasília, onde é convidado a participar de de 1966.
um festival de teatro. Nesse ponto, a narra- Mas é com a publicação de Orgia, no
tiva é interrompida, sem nada sabermos do Brasil, pelo amigo Hermilo Borba Filho, em
desfecho trágico de Tulio Carella no Recife 196811, revelando a sua bissexualidade, que
– a não ser pelo trecho apontado no estudo será condenado ao ostracismo na vida literá-
de caso introdutório ao livro, de autoria do ria argentina. A faixa de honra que lhe havia
editor Álvaro Machado. Ou seja, há uma úni- sido consagrada pela Sociedade Argentina
ca pista no início do texto – não por acaso dos Escritores, em 1959, por Cuadernos del
colocada na boca da personagem Fausta, a Delírio (diário feito durante turnê cultural
9 Hermilo Borba Filho,
vidente gorda e suarenta. “Eu o vi num gran- na Europa nos anos 1950)12 será, então, subs- Deus no Pasto, São
de salão, rodeado de alunos. Depois numa tituída por uma espécie de apagamento da Paulo, Civiliz ação
casinha com janelas de grades, perto do mar, obra como escritor e dramaturgo dos anais Brasileira, 1972. Obra
citada na introdução
um mar onde há tubarões”. Seriam menções da literatura de seu país. e notas de Alvaro Ma-
feitas a posteriori referindo-se ao anfiteatro Orgia, Livro Primeiro, esgotados os chado (p. 14).

da universidade e, depois, à cela da prisão na minguados exemplares de uma única edi- 10 Picaresca Porteña.
Estudo sobre os Pros-
Ilha de Fernando de Noronha? ção, correrá de mão em mão em fotocópias tíbulos e os Costumes
A impressão que Orgia nos deixa é de e será conhecido de poucos leitores brasilei- Sexuais em Buenos
que Carella não poderia imaginar o quanto ros, por meio de trechos eróticos citados no Aires, Buenos Aires,
Ediciones Siglo XX,
ele próprio seria martirizado na vida real. livro Devassos no Paraíso13, de João Silvério 1966.
Preso por militares brasileiros, sob a absur- Trevisan, em 1986. Entre seus admiradores, 11 Tulio Carella, Orgia
da acusação de contrabando de armas para está a escritora Hilda Hilst, que se ocupará – Livro Primeiro, tra-
dução de Hermilo
Cuba em favor das Ligas Camponesas, foi do tema do homoerotismo, tanto em Peque- Borba Filho, Rio de
torturado, recluso em Fernando de Noronha, nos Discursos (1977) quanto em Rútilo Nada Janeiro, José Álvaro
até ser deportado informalmente, em colabo- (1993)14. Em ambos, o personagem homos- Editor, 1968.

ração com o comando militar do Recife. O sexual pagará o preço por sua transgressão 12 Tulio Carella, Cuader-
nos del Delirio, Buenos
episódio ainda é cercado de lacunas, espe- com a morte trágica. Aires, Editorial Goya-
cialmente quanto à reação do meio acadêmi- A atual edição brasileira, mais do que narte, 1959.
co e à participação do reitor da Universidade resgatar um clássico da literatura erótica, traz 13 João Silvério Trevisan,
Federal de Pernambuco. “Os alunos o ‘vene- ao leitor a chance de conhecer tanto a ferti- Devassos no Paraíso,
São Paulo, Record,
ravam’, “seu discurso provocava sensação”. lidade do pensamento latino-americano nos 1986.
Confessa-se obstinado pelas ideias de Paulo anos 1960, como mais esse horror de Estado: 14 Hilda Hilst, Rútilos, São
Freire, e de outros educadores mexicanos, de terem nos privado de Tulio Carella. Paulo, Globo, 2003.

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