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A temática
do adultério feminino no Realismo
O Realismo europeu enfatizou um tema bastante instigante na litera-
tura: o adultério feminino. Desde a Ilíada, de Homero, a traição feminina é
referida como causa de grandes conflitos.
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Dom Casmurro e a temática do adultério feminino
va, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto
da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-
lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo, para que entre ele
e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde
apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o
silêncio, mas não se deu por achada (MACHADO DE ASSIS, 1999, p. 45).
Esses são alguns exemplos dessa temática tão recorrente na obra do autor.
No entanto, foi com o romance Dom Casmurro (1899) que Machado de Assis
sedimentou o tema do adultério feminino em um tratamento original que vem
desafiando a crítica desde então.
O narrador-autor
Assim como Brás Cubas em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Bento Santiago,
o narrador de Dom Casmurro, empreende a escrita de um livro de memórias, mas
enquanto as Memórias Póstumas de Brás Cubas envolvem todo o curso de uma vida,
poderíamos considerar que em Dom Casmurro há apenas memórias amorosas.
A solidão do narrador é algo que marca o discurso, mas sua linguagem é con-
tida, não há auto-piedade em nenhum momento, ele não se lamenta aberta-
mente, apenas constata a própria solidão, como se fizesse isso com um certo
distanciamento emocional. O fato de ter reproduzido na casa em que mora na
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Capitu e Bento vivem bem, embora os ciúmes dele se manifestem aqui e ali,
principalmente quando a beleza de Capitu desperta a atenção em torno. A única
pequena frustração do casal é a demora pela chegada de um filho: esperam dois
anos, até que Capitu finalmente engravida e dá à luz ao menino Ezequiel.
A essa altura, o casal Sancha e Escobar já tem uma filha, familiarmente cha-
mada de Capituzinha, para diferenciar, já que ela tem o mesmo nome da esposa
de Bento.
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Realismo na Literatura Brasileira
O que interessa, claramente, é o modo como tudo isso é narrado. Bento San-
tiago, o narrador-autor, vai ao passado para tentar compreender os fatos de sua
vida. Tudo é lembrado e questionado, e em vários momentos ele coloca dúvidas
sobre a veracidade da traição. Em nenhum momento Capitu confirma que teve
alguma coisa com Escobar.
Como todos os outros morreram, Bento não pode mais – passados tantos
anos – deles extrair confissões, em qualquer sentido. Essa é a essência de sua
solidão: ele está sozinho com as decisões que tomou, não há como voltar atrás
ou pedir perdão. Disso resulta sua teimosia, sua contenção.
O texto sempre nos dá a impressão de uma emoção contida: Bento não revela
claramente o que sente. Podemos intuir seu sofrimento, mas não há um lamento
explícito e isso torna o relato ainda mais amargo. Vejamos o trecho em que ele, já
tomado pelo ciúme, decide comprar veneno para suicidar-se:
A ideia saiu finalmente do cérebro. Era noite, e não pude dormir, por mais que a sacudisse de
mim. Também nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando cuidava não ser mais
que uma ou duas horas.
Saí, supondo deixar a ideia em casa; ela veio comigo. Cá fora tinha a mesma cor escura, as
mesmas asas trépidas, e posto avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina,
não que me encobrisse as cousas externas, mas via-as através dela, com a cor mais pálida que
de costume, e sem se demorarem nada.
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Dom Casmurro e a temática do adultério feminino
Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma substância, que
não digo, para não espertar o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é verdade; o dono fez-se
banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria
como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se,
e a morte não se gasta. Fui à casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a título de visita.
Ou de verdade ou por ilusão, tudo ali me pareceu melhor nesse dia. Minha mãe menos triste,
tio Cosme esquecido do coração, prima Justina da língua. Passei uma hora em paz. Cheguei a
abrir mão do projeto. Que era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa ou prender
aquela hora a mim mesmo... (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 170, grifo nosso)
Mas também esse marido vê em Capitu um mistério. Muitas das falas dessa
esposa são incompreendidas pelo narrador e em algumas circunstâncias ele
adota uma percepção alheia para compreendê-la e só então ousa definir o que
vê conforme os próprios sentimentos. É o caso do capítulo 32, em que utiliza
pela primeira vez a expressão “olhos de ressaca”:
— Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada.” Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam
chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os
vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da
contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto
para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto
atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram
aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade
do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá
ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força
que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para
não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos
espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos
gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve.
(MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 55)
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Disso podemos concluir que Capitu era apaixonada por Bento? Mas depois,
quando Escobar morre, Bento diz surpreender esse mesmo olhar de Capitu diri-
gido ao cadáver do amigo. Seriam delírios de marido ciumento e inseguro ou de
fato Capitu se apaixonou por Escobar?
O embate interpretativo não resolve essa questão e não poderia querer fazê-
lo, pois Machado de Assis mantém Capitu como uma imagem diluída entre o
amor esmerado de Bento e os ciúmes destruidores que ele experimenta. Assim,
a genialidade desse romance de Machado está em atualizar constantemente
o mistério de Capitu, fazendo com que suas ações e sentimentos sejam todo o
tempo especulados – pelo narrador e pelo leitor.
Texto complementar
Disponibilizamos uma crônica de Machado de Assis para que você se fami-
liarize ainda mais com o estilo irônico e crítico do autor. Trata-se de uma crônica
que, com leveza e ironia, aborda a Abolição da Escravatura.
Bons dias!
(MACHADO DE ASSIS, 2008)1
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juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por
mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei
de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus 18 anos, mais ou menos.
Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por 1.000, perdido por 1.500, e dei
um jantar.
- Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhe-
cida e tens mais um ordenado, um ordenado que...
- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que
a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
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Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia
seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu
expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular
o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de
mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despe-
dido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta
quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humilde-
mente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei
aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em
casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda
a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escre-
ver e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das
Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são
os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és
livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos
e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
Boas noites.
Estudos literários
1. Em Dom Casmurro, temos um narrador
a) 1900.
b) 1960.
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c) 1899.
d) 1901.
3. Explique com suas próprias palavras as razões de Bento Santiago para escre-
ver um livro de memórias a que ele deu o nome de Dom Casmurro.
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