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USOS LINGUÍSTICOS E DISCRIMINAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DA

VALORIZAÇÃO SOCIAL DA NORMA CULTA NO PORTUGUÊS DO BRASIL

Emílio Soares Ribeiro

RESUMO: A língua portuguesa usada no Brasil é um instrumento de poder. Por não dominar a chamada
“norma culta” da língua, grande parte da população é estigmatizada e discriminada, e se vê
impossibilitada de participar, de forma atuante, das decisões e de interferir nos padrões impostos pelos
grupos hegemônicos. Em educação, os bons e os maus alunos são definidos a partir do nível de domínio
da referida norma. Paradoxalmente, a maioria dos alunos, especialmente na rede pública de ensino, trazem
variantes linguísticas que contrariam as estruturas apresentadas pelos materiais didáticos e usadas pelos
meios de comunicação em massa, e que são motivo de segregação social. O presente trabalho revisita a
concepção de norma culta, tratando-a enquanto uma construção imposta historicamente e como uma
entidade que não foge às próprias variações linguísticas e suas complexidades. Nesse sentido, o trabalho
também questiona o monolinguismo que embasa o ensino da língua portuguesa no Brasil, contestando a
utilização de um padrão exclusivo de língua, uma norma artificial para a maioria dos alunos e que acaba
por negligenciar os diversos modos de se comunicar do brasileiro (seu sotaque, suas expressões regionais,
seus dialetos), conferindo à língua uma posição de fronteira que assinala a separação cruel entre os
capazes e os incapazes.

ABSTRACT: The Portuguese language used in Brazil is an instrument of power. As a large part of the
population does not dominate the so-called “standard language”, they are stigmatized and discriminated,
and are unable to actively participate in decisions and interfere with the patterns imposed by the hegemonic
groups. In education, the good and the bad students are defined according to the degree they master the
norm. Paradoxically, the majority of students, especially in public schools, bring language variants that
contradict the structures presented by the didactic materials and used by the mass media, and which are
reasons for social segregation. The current work thus revisits the conception of standard language, treating
it as a construction imposed historically and as an entity that does not escape its own linguistic variations
and their complexities. In this sense, the work also questions the monolinguism that bases the teaching of
Portuguese language in Brazil, contesting the use of an exclusive language standard, an artificial norm for
the majority of the students and that ends up neglecting the different ways through which Brazilian people
communicate (their accent, regional expressions, dialects), giving the language a border position that
marks the cruel separation between the capable and the incapable.

PALAVRAS-CHAVE: Norma culta. Preconceito. Poder.

KEY-WORDS: Standard language. Prejudice. Power.

INTRODUÇÃO

Por muitas décadas, no Brasil, a escola foi privilégio de uma minoria que, em geral,
incluía os brancos, os homens e aqueles com maior poder aquisitivo. Ainda hoje, apesar
de obrigatória a partir dos quatro anos de idade, ela não atende em número e em qualidade

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à totalidade do público-alvo, de forma que em 2015 o país ainda contava com cerca de
12,9 milhões de analfabetos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(Pnad), divulgada pelo IBGE.i Desde os primeiros anos escolares, diversos fatores
econômicos e sociais, entre eles a violência, a carência dos programas de assistência
social e a falta de investimento na educação básica, colaboram para que alunos
abandonem os estudos antes de alcançarem a universidade.

Os alunos que integram camadas menos privilegiadas e minoritárias da sociedade,


oriundos da rede pública de educação básica, e que conseguem ingressar no Ensino
Superior público brasileiro se deparam com mais um entrave: no âmbito da prática oral e
escrita com a língua portuguesa, seja nos cursos de letras ou nas graduações em geral, a
diversidade linguística e o prurilinguismo que caracterizam os vários públicos que ali se
relacionam são negligenciados e, muitas vezes, marginalizados.

Ao terem particularidades de suas variantes linguísticas estigmatizadas desde os


primeiros anos escolares, muitos alunos tendem a se sentir desprestigiados em suas
produções orais e escritas e a desenvolver bloqueios. Trata-se do reflexo de uma
sociedade que supervaloriza a capacidade de ler e escrever e que elege uma forma
privilegiada de língua, a norma culta. Desde a infância, com muita frequência, cada
indivíduo é avaliado e tem suas oportunidades na vida circunscritas pela intimidade que
tem com a norma culta. Divergências em relação a tais padrões imprimem um lugar fora
das fronteiras aceitas pelas instituições, entre elas a escola, a televisão e os aparelhos de
controle do Estado, de modo que às variantes linguísticas e dialetos das minorias reste a
marginalização.

Nesse sentido, o presente trabalho, ao defender a escola enquanto espaço de


democratização dos saberes em geral, traz reflexões sobre a concepção de norma culta,
questionando a sua homogeneidade e tratando-a como uma forma de manutenção do
poder hegemônico. Do mesmo modo, contesta o caráter de erro atribuído às variantes
menos privilegiadas e sugere um trabalho de conscientização da diversidade linguística,
com vistas à redução da segregação social que se dá por meio da linguagem. Para tal,
inicialmente, o trabalho discute relação entre a norma culta e a prática educacional no
Brasil. Em seguida, aborda aspectos que envolvem a discriminação das variantes e
dialetos menos prestigiados e propõe práticas democráticas de acesso à várias expressões
linguísticas.

1 REVISITANDO A SUPERVALORIZAÇÃO DA NORMA CULTA

Nos primeiros anos da história do Brasil, entre as práticas colonialistas e sua suposta ação
“civilizadora” estava a imposição do português ibérico, um modo perspicaz de
determinação de poder por parte do hegemônico. Atualmente, após séculos de

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envolvimento com práticas colonialistas, a sociedade continua importando modelos
culturais de forças dominantes, e o polo privilegiado brasileiro (em sua maioria, brancos
e ricos) continua estabelecendo padrões, entre os quais está a “norma culta” da língua
portuguesa, influenciada pelo português europeu escrito literário. Além disso, os próprios
instrumentos normativos adotados pela sociedade como um todo e, em especial, pela
escola, não coincidem com a norma culta praticada pelos indivíduos.

Para que se possa entender a complexidade que envolve a relação entre o domínio da
norma culta e as relações sociais, incluindo as forças discriminatórias que permeiam os
discursos puristas sobre alfabetização e ensino, deve-se atentar para a construção histórica
em torno do ideal da norma culta e refletir acerca de aspectos sociolinguísticos do
português brasileiro que se relacionam à valorização de certos padrões que nem mesmo
são utilizados pela grande maioria da população.

A discussão acerca da chamada “norma culta” da língua portuguesa do Brasil é envolta


em muitas questões ideológicas e históricas, e remonta ao século XIX. O ideal, por parte
de autores do romantismo literário brasileiro, de estabelecer uma independência das raízes
literárias e culturais portuguesas e, assim, buscar retratar mais a realidade sociocultural
nacional, era visto com preconceito por muitos intelectuais brasileiros e lusitanos, como
retrata Faraco (2015). À época, a língua falada e escrita no Brasil já apresentava várias
diferenças em relação à adotada pela antiga metrópole. Traços que diferenciavam o
português culto brasileiro daquele adotado pela elite portuguesa eram vistos como erros,
de modo que a proposta romântica de se retratar, na língua escrita, a língua falada pelos
letrados brasileiros era alvo de constantes críticas e de censura. Trata-se de um
preconceito vigente até hoje e que opõe o português brasileiro ao ibérico, relegando o
primeiro a um lugar de desprestígio, atribuindo-lhe supostos erros e apontando seus
falantes como incompetentes em sua própria língua.

Na primeira metade do século XX, escritores integrantes do movimento modernista no


Brasil fizeram ressurgir o desejo romântico pelo estabelecimento de uma literatura que se
voltasse para a língua culta efetivamente usada no país. Como consequência, a expressão
literária deixou para trás um pouco da preocupação com padrões e com o ideal purista de
língua. Igualmente, como aponta Faraco (2015, p. 24), algumas gramáticas e dicionários
“começaram a flexibilizar o discurso dogmático e passaram a acolher – mesmo que ainda
timidamente – algumas das características efetivas do português culto brasileiro”.

Apesar dos avanços, atualmente grande parte das escolas, jornais, canais televisivos, e
editoras ainda tendem a ignorar a diversidade sociolinguística do Brasil e os estudos
linguísticos atuais e insistem em adotar preceitos e regras sem qualquer embasamento
teórico e cujos domínios não abrangem as variações que caracterizam as manifestações
linguísticas de grande parcela da população. A tradição cultural que permeia a escola, em
especial, recusa usos que determinadas camadas sociais fazem da língua, tratando-os
como erros. Constroem-se os mitos em torno da língua e, como consequência, os

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preconceitos linguísticos. A língua passa a ser uma forma de discriminação social e um
mecanismo que permite aos grupos privilegiados economicamente anular a diversidade
linguística e cultural.

Ao estabelecer um padrão como aceitável, natural, normal ou desejável, o grupo


hegemônico dita um modo privilegiado de hierarquização. Há sempre uma forma
“correta” que se opõe a uma forma “errada” de se falar ou de se escrever. “Em uma
posição binária, um dos termos é sempre privilegiado, recebendo um valor positivo,
enquanto o outro recebe uma carga negativa” (SILVA, 2012, p. 83). Esses modos de
imposição de padrões estabelecem as dicotomias que caracterizam o pensamento
moderno, em que o centro dominante busca apreender o real do modo mais “fiel” possível
por meio das representações. O prestígio derivado dessa valorização culminaria com o
apagamento do outro inferior.

Considere-se os Shem e seu desejo por transcendência, mito bíblico abordado por Derrida
em As Torres de Babel (2006) e The Ear of the Other (1985) e revisitado por teóricos
como Rodrigues (2000), Davis (2001) e Camacho (2013). Ao tentar construir uma torre
para chegar ao céu e impor a sua língua aos demais, os Shem desejavam estabelecer um
sistema fechado de referência, uma estrutura que dominaria o significado, fixando assim
uma relação inequívoca entre significado e significante. Porém Deus desconstruiu o
desejo do referido povo hebreu, atribuindo o nome Babel (Bab = porta em acadiano, EL
= Deus em hebraico/Elohím) ao monumento e instituindo a diversidade de línguas. Dessa
forma, ele condenou os povos à diversidade e proibiu o imperialismo linguístico, isto é,
impediu que os Shem impusessem o seu sentido como o único.

Desde a fracassada empreitada dos Shem até o presente, várias têm sido as tentativas de
domínio da razão e de imposição de valores por meio do apagamento do outro diferente.
Exemplos incluem a invenção das luvas AcceleGlove, pelo pesquisador mexicano da
Universidade George Washington (EUA), José-Luis Hernandez-Rebollar, ou das luvas
SignAloud, por Navid Azodi and Thomas Pryor, alunos da Universidade de Washington.
As duas criações traduzem em sons os movimentos da Língua de Sinais Americana
(ASL). Apesar do aparente progresso que as invenções representam na comunicação entre
surdos e ouvintes, elas denotam uma tentativa de apagamento da língua própria do grupo
minoritário que vem para dividir espaço com a língua inglesa.

No Brasil, o projeto de lei Nº 1676, de 1999, de autoria do então Deputado Federal Aldo
Rebelo, pretendia restringir o uso de estrangeirismos no país. Uma medida que, a priori,
“protegeria” a Língua Portuguesa da influência imperialista estadunidense,
paradoxalmente, atuaria como instrumento de dominação, controlando os usos da
linguagem e determinando padrões que, juntamente com a valorização da forma escrita,
reforçariam o domínio dos grupos que fazem uso mais frequente daquilo que eles chamam
de língua portuguesa pura.ii

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O mito dos Shem, as luvas AcceleGlove e SignAloud e o projeto de Rebelo são iniciativas
que denotam um interesse pela repressão das diferenças que constituem a língua do outro,
uma forma de imposição de um único padrão legítimo pelo dominante. Na modernidade,
o ser humano teve que encontrar mecanismos para lidar com a multiplicidade de culturas
e representações, o que inclui o estabelecimento de um parâmetro que fosse seguido pelos
demais e que garantisse estabilidade, racionalidade e unidade, daí o desejo por uma língua
pura, em oposição às variantes orais e escritas menos privilegiadas. Evitando qualquer
sinal de paradoxo, a língua instituída pelo hegemônico, a chamada “norma culta” se
caracterizaria por sua aparência acabada. As demais variantes, incluindo os sotaques, os
regionalismos e os dialetos e suas diferentes estruturas morfossintáticas, constituem uma
ameaça por sua diferença e, assim, são estigmatizados, de forma que os limites do sujeito
hegemônico moderno possam ser mantidos.

Como se pode observar, o caminho histórico percorrido pela língua portuguesa desde o
seu início no Brasil promoveu e perpetuou a valorização de um padrão artificial e que não
encontra qualquer base científica a partir de dados sistemáticos sobre o real uso da língua
pelos indivíduos. O que se vê nas escolas de todo o país é uma diversidade que desafia as
normas arbitrárias promovidas por ideais colonialistas. Ilusoriamente, as instituições
escolares ainda entendem que a imposição de padrões gramaticais, de concordância e de
regência, por exemplo, são a saída para se chegar à conquista da norma culta pelos alunos.
Ignoram e/ou desconhecem que “o domínio da expressão culta é, de fato, subproduto da
imersão na cultura letrada e não seu pré-requisito” (FARACO, 2015, p. 27). Em outras
palavras, a aquisição de uma norma culta deve ser entendida como algo construído pelas
experiências propiciadas pelo contato com variados bens culturais do universo letrado.
Não é ignorando todo o arcabouço de conhecimento linguístico e cultural que os alunos
trazem consigo e impondo um padrão que para eles é artificial e incomum que se
conseguirá a sua admissão no mundo letrado e o acesso às manifestações culturais dele
provenientes.

Ao se partir do pressuposto de que a “norma culta” efetivamente não existe enquanto


instância uniforme, imutável e preponderante, visto que a língua é, antes de tudo, um
fenômeno social e heterogêneo, tem-se a consciência da importância de se refletir acerca
da discriminação que subjaz os usos linguísticos. Trata-se de discutir acerca da
necessidade de adoção de práticas que não busquem a recuperação de uma língua pura,
algo que nunca houve, mas que permitam, à sociedade como um todo, o acesso às
variações que constituem o chamado português culto, assim como o conhecimento acerca
das variações que abrangem o português popular, sem, no entanto, estigmatizar e
discriminar as últimas por sua condição social.

2 AS PRÁTICAS LINGUÍSTICAS E SEUS PRECONCEITOS

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Até hoje, o controle da norma culta pelas instituições sociais e a defesa do seu ensino
formal tem como base uma gramática supostamente natural, elaborada a partir de
preceitos idealizados e impostos por uma cultura hegemônica. “A norma idealizada a
partir de modelos literários do passado se encontra codificada na tradição da gramática
pedagógica transmitida [...] no ensino da língua portuguesa” (MATTOS E SILVA, 2004,
p. 12). Nas escolas, o trabalho de alfabetização, letramento e ensino de língua portuguesa,
em geral, se volta para o que se considera ser a norma culta, e ignoram-se os saberes, as
diferenças culturais e a diversidade linguística que existem em sala de aula. Porém, como
se observa, grande parte dos alunos apresenta uma gramática diferente da prescrita
oficialmente. Em sua fala e escrita, cada indivíduo traz traços que foram adquiridos no
decorrer do seu processo de socialização, apresenta normas dialetais que expressam a
diversidade social de sua comunidade, da cidade em que foi criado e das pessoas com
quem conviveu. Muitos desses traços integram os sotaques, os dialetos e as variações que
são identificadas e discriminadas por sua associação a grupos sociais menos
prestigiados.

Ao se vincular a certos contextos socioculturais e, assim, compartilhar determinados


valores e hábitos, cada indivíduo acumula conhecimento e cultura. Porém, muitos
carecem de acesso à variedade culta da língua, normalmente prestigiada e tida como
modelo a ser seguido (BAGNO, 2003). A norma culta representa exatamente o poder que
seus falantes exercem nas várias relações sociais. Ao buscar influenciar o espaço do ato
linguístico, o interlocutor também expressa a sua posição na sociedade, mas o que é
determinante na afirmação de uma variedade linguística sobre outras é a sua
transformação em uma norma utilizada na comunicação de dados políticos e culturais,
principalmente por meio da associação à forma escrita, como afirma Gnerre (1985). Se
determinado grupo social ascende político e economicamente, a norma a ele relacionada
passa a ser associada à escrita e torna-se um aspecto que confere certa identidade cultural
e poder aos que dela fazem uso.

Assim, a variedade utilizada pelas classes dominantes passa a ser vista


indiscutivelmente como algo que deve ser copiado, como um valor
natural incontestável, como se seus atributos remetessem à própria
natureza das coisas desde os primórdios da humanidade, e a variedade
usada pela maioria da população, repleta de erros, passa a não ser
considerada a língua padrão brasileira, numa contradição completa.
Entretanto, sabemos que, quando essas estruturas que fogem da norma
padrão da língua são incorporadas nas atividades linguísticas dos
falantes prestigiados, elas passam a não ser mais vistas como erros.
(RIBEIRO, 2005, p. 53)

Nesse sentido, a língua continua sendo um mecanismo de poder nas relações entre as
pessoas, nas relações de dominação, e tanto o sistema educacional brasileiro como os
veículos de comunicação em massa compartilham ideologias e valores determinados pelo

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uso e poder da modalidade culta, apagando qualquer subversão e diversidade. “A negação
de conflitos na área da linguagem parece estar de acordo com a negação de conflitos
sociais em geral, gerada por fatores de ordem histórica, sociocultural e ética”
(CAMACHO, 2013, p. 19).

Ao ensinar a língua portuguesa, a escola usa como única referência as regras gramaticais
presentes nos manuais, sem qualquer flexibilização das construções, de forma que opta
por prescrever a língua a partir de uma estrutura artificial de usos linguísticos baseada em
um corpus pretérito. Assumindo um monolinguismo fictício, a sociedade brasileira do
início do século XXI

supervaloriza o caráter simbólico nacional o padrão normativo; concebe


a existência de uma língua portuguesa correta, pura e perfeita e a
identifica com a língua de Estado calcada na descrição em moldes greco-
romanos da língua escrita com marcas lusitanas; vê na difusão da
correção gramatical a solução para o mau desempenho linguístico dos
alunos (faltam clareza/loquacidade/progressão temática/riqueza e
eficácia de estratégias argumentativas/compreensão àquele que lê, dentre
outras competências) e, principalmente vê como principal função do
professor de português a difusão dessa correção gramatical. (BARBOSA,
2015, p. 255)

Da mesma forma, os canais de comunicação, especialmente a televisão e seus noticiários,


trazem informações que se restringem a grupos reduzidos, visto as complexas construções
morfossintáticas e os conteúdos de caráter técnico com designações que exigem um vasto
aparato de conhecimentos políticos e econômicos. Paradoxalmente, a linguagem exclui
da comunicação aqueles que não compartilham do léxico e das estruturas gramaticais
apresentadas pela escola e pela mídia e, como consequência, reforça o poder das minorias
que estabelece e domina tais padrões. “A começar do nível mais elementar de relações
com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso
ao poder” (GNERRE, 1985, p. 22).

É ao redor da linguagem que os poderes se instauram. Os usos linguísticos considerados


“errados” estão bem atrelados à condição social ocupada pelo indivíduo. Palavras e
construções compartilhadas por classes privilegiadas, mesmo contrariando a gramática
tradicional, não geram desconforto. Porém, não há tolerância quando se trata de um
“desvio” promovido por integrantes de camadas com menor poder aquisitivo. Os próprios
analfabetos tendem a desvalorizar seu modo de comunicação, em uma atitude que deriva
da vergonha que a falta de domínio da escrita representa para eles.iii

No caso da língua escrita, o seu domínio pelos grupos hegemônicos é motivo de


preconceito contra a modalidade oral em suas diversas variações (KRESS, 1979, p. 53),
como se a grafia fosse mais natural do que a oralidade. Para autores como Bagno (2003,

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p. 66), tal “prestígio” (do latim, modo utilizado para encantar, para seduzir; fascinação,
atração) das variedades de que faz uso o polo hegemônico não advém de qualquer
qualidade natural que tais formas supostamente apresentariam (por exemplo, beleza,
elegância ou lógica), mas consiste em uma construção ideológica. “Por razões históricas,
políticas, econômicas é que determinadas classes sociais - e outras não - assumiram o
poder, ganharam prestígio ou, melhor, atribuíram prestígio a si mesmas (BAGNO, 2003,
p. 66).

Entre as manifestações orais da língua portuguesa no Brasil estão aquelas variantes


oriundas de áreas com um maior número de analfabetos, contextos normalmente
associados à pobreza e quase sempre estigmatizados, como a zona rural, as áreas
indígenas ou a região nordeste, vítimas de uma discriminação ainda maior. Ao
identificarem suas origens, marcas como os sotaques, as construções morfossintáticas e o
léxico atuam como motivo de depreciação desses grupos, e raramente são compreendidos
enquanto aspectos que integram a diversidade linguística brasileira e que, portanto,
apresentam uma complexidade e uma riqueza que também merecem atenção.
Negligencia-se o caráter plurilíngue do país, e os falantes são estratificados de acordo
com o modo como usam a língua. Como consequência, as variantes entendidas como
“erros” terminam por afastar os indivíduos dos processos produtivos. Excluem-se e
estigmatizam-se as diferenças em prol do estabelecimento de uma norma culta e do
consequente fortalecimento de poder dos grumos hegemônicos.

Assim, o preconceito linguístico está associado ao preconceito social, visto que todo o
jogo de interesses que gira em torno da língua leva à depreciação do falante enquanto ser
social. Como a língua está relacionada à própria identidade do sujeito e de seu grupo, sua
discriminação é um mecanismo de depreciação da própria comunidade que dela faz uso.
Antes de condenar certa variação e tentar apagá-la ou associá-la a aspectos como
incapacidade, a sociedade deve atentar para algumas questões. Uma delas é o fato de que
nenhuma língua é imparcial ou neutra. Por meio da língua são veiculados valores e
ideologias e, visto que os detentores do “poder da palavra” são os que gerenciam a
educação e a difusão de informação no país, prima-se pela norma culta exclusivamente.
A língua também não é cristalina. A ideia de um meio de comunicação sem qualquer
barreira e particularismos atenderia apenas aos interesses dos hegemônicos e culminaria
com a promoção de mecanismos visando o apagamento das demais variações. A suposta
imparcialidade ou neutralidade da língua guarda discursos discriminatórios e distorcidos
do outro diferente e de sua língua.

Na ilusão da “superioridade linguística” ou da “pureza idiomática”, assim, tenta-se apagar


as marcas do plurinlinguismo no Brasil, como se cada variação pudesse fugir à natureza
mutável da linguagem e às regularidades que caracterizam a heterogeneidade de cada
língua. A própria expressão culta utilizada, em contextos urbanos, por brasileiros
instruídos e/ou que tiveram acesso à educação básica completa e à cultura letrada
apresenta diferenças em suas mais variadas manifestações. São mudanças em nível

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lexical, dialetal e morfossintático, observáveis na fala e na escrita de pessoas de mesmo
nível de escolaridade. Alguns paulistas letrados, por exemplo, omitem o -s nos plurais,
algo que pode ser explicado pela influência que a língua italiana (na qual o plural se faz
com declinações e não com o acréscimo de -s) exerceu sobre a língua portuguesa em
algumas regiões de São Paulo. Do mesmo modo, em Minas Gerais e nas regiões norte e
noroeste do Estado de São Paulo, é comum a exclusão, mesmo por parte de indivíduos
com alto grau de escolaridade, do pronome reflexivo em frases como “ela se formou no
mês passado”, estrutura que contraria a “norma culta” adotada pelos materiais didáticos
escolares e pelas mídias em geral. Igualmente, observa-se que mesmo as variações menos
prestigiadas funcionam segundo uma premissa que embasa o enfoque social da linguagem
e que é abordada por Camacho (2013, p. 32-33), a de que qualquer variação é “um
fenômeno regular e sistemático regido por princípios de organização estrutural emanados
das próprias regras do sistema linguístico”. Assim, as próprias variações linguísticas
discriminadas não acontecem aleatoriamente, mas seguem padrões construídos histórico
e socialmente.

É engano acreditar que as estruturas morfossintáticas, os sotaques e os regionalismos que


caracterizam as variações menos prestigiadas socialmente e que são comumente
chamadas de “erros” são utilizadas apenas por aqueles com pouca escolaridade. Enquanto
um nordestino, seja qual for a sua escolaridade, preserva o uso do subjuntivo em frases
como “você quer que eu apague a lousa?”, em várias cidades do Sudeste é comum letrados
substituírem o subjuntivo pelo indicativo (“você quer que eu apago a lousa?”). Outro caso
é o r- retroflexo em final de sílaba que caracteriza a oralidade dos indivíduos do norte,
nordeste, noroeste e oeste do estado de São Paulo, da região sudoeste de Minas Gerais,
além de algumas cidades do Paraná e do Mato Grosso do Sul. Embora seja comum na
língua oral tanto de analfabetos quanto de letrados das referidas regiões, tal variação
regional é comumente associada ao falar e à cultura caipira e a uma condição econômica
inferior. Como não coincide com o padrão de pronúncia estabelecido e adotado pelos
detentores do poder, tal variação é por eles estigmatizada e considerada errada.

Em educação, trata-se daquilo que Mattos e Silva (2004, p. 33) chama de “tradição
dialetofágica” para se referir aos mecanismos que tendem a ignorar, apagar e estigmatizar
as variantes menos prestigiadas da língua oral e escrita, uma marca das instituições
organizadas pelo polo hegemônico, entre elas, a escola. Assim, por meio da língua se
desenvolvem e se nutrem manifestações de preconceito. Enquanto mecanismo
normalizador e universalizante, o ideal da norma culta traz consigo o desejo bíblico dos
Shem e promove a valorização dos seus detentores e a marginalização dos que falam e
escrevem outras línguas portuguesas no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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À medida que professores consideram a diversidade linguística do Brasil e se tornam mais
cônscios das questões envolvendo a relação histórica entre o domínio da norma culta e o
poder, eles passam a figurar como agentes de mudanças desse paradigma. A valorização
de variedades orais não dominantes em ambientes escolares, por parte dos professores,
não impede que aos alunos seja ensinada a norma socialmente exigida. Infelizmente não
é o que ocorre em grande parte das salas de aula do país, nas quais os educadores ensinam
exclusivamente um português que não pertence ao dialeto que permeia as práticas sociais
discursivas das quais fazem parte aqueles indivíduos desde os seus primeiros contatos
com a língua e trabalham no sentido de apagar os traços que caracterizam as diferentes
variantes, oriundas dos variados contextos sociais, culturais e regionais dos alunos.

O convívio com a norma culta e dominante poderia ser acompanhado de atividades que
permitissem aos alunos contrastá-las com os demais dialetos, de modo que não se fizesse
qualquer juízo de valor entre as formas, mas que se voltasse para os usos de cada estilo e
variação em determinados contextos. Assim, o conhecimento da língua formal adviria
não da sistematização e prescrição de regras que constituem uma gramática baseada em
um ideal de língua, mas da própria experiência que os indivíduos têm com o vernáculo e
da visão crítica em relação ao uso da língua e sua adequação às mais variadas situações.
Em vez de consistir em um aspecto marginalizante, o aprendizado da norma culta seria
um instrumento de integração e permitiria ao aluno contato com novas manifestações
culturais.

O espaço escolar, incluindo o de Ensino Superior, promoveria experiências de


intercâmbio das diferenças, de modo que cada dialeto fosse valorizado em suas
peculiaridades, ressaltando-se o seu papel agregador e seu emprego na sociedade. Ao
conhecer as variadas formas linguísticas e seu uso, cada indivíduo poderia dispor das
variantes, inclusive, da norma culta, de acordo com cada situação comunicativa. Tal
perspectiva proporcionaria a democratização não apenas da gramática e das formas
linguísticas socialmente prestigiadas, mas também dos saberes que integram os dialetos
e as formas de falar do brasileiro. Além disso, permitiria ao aluno ser um indivíduo mais
atuante e crítico de seu próprio processo de letramento, alfabetização e aprendizagem e
desenvolveria no aluno uma maior autoestima.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GNERRE, Maurizzio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

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2012. p. 73-102.


Professor adjunto do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN), Mestre em Linguística Aplicada pela UECE e Doutorando em Estudos Linguísticos pela
UNESP.
i
O IBGE disponibiliza a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2015) na página eletrônica
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98887.pdf. Último acesso em 20 de maio de 2017.
ii
Para reflexões linguísticas feitas a partir do referido projeto de lei, ver Faraco (2001).
iii
Para um estudo sobre a associação entre o analfabetismo e as relações sociais, e sobre a imagem que o
analfabeto tem de si próprio, ver Ribeiro (2005).

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 6 Edição número 26, Outubro/2017 a Março/2018 - p


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