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RESUMO: A língua portuguesa usada no Brasil é um instrumento de poder. Por não dominar a chamada
“norma culta” da língua, grande parte da população é estigmatizada e discriminada, e se vê
impossibilitada de participar, de forma atuante, das decisões e de interferir nos padrões impostos pelos
grupos hegemônicos. Em educação, os bons e os maus alunos são definidos a partir do nível de domínio
da referida norma. Paradoxalmente, a maioria dos alunos, especialmente na rede pública de ensino, trazem
variantes linguísticas que contrariam as estruturas apresentadas pelos materiais didáticos e usadas pelos
meios de comunicação em massa, e que são motivo de segregação social. O presente trabalho revisita a
concepção de norma culta, tratando-a enquanto uma construção imposta historicamente e como uma
entidade que não foge às próprias variações linguísticas e suas complexidades. Nesse sentido, o trabalho
também questiona o monolinguismo que embasa o ensino da língua portuguesa no Brasil, contestando a
utilização de um padrão exclusivo de língua, uma norma artificial para a maioria dos alunos e que acaba
por negligenciar os diversos modos de se comunicar do brasileiro (seu sotaque, suas expressões regionais,
seus dialetos), conferindo à língua uma posição de fronteira que assinala a separação cruel entre os
capazes e os incapazes.
ABSTRACT: The Portuguese language used in Brazil is an instrument of power. As a large part of the
population does not dominate the so-called “standard language”, they are stigmatized and discriminated,
and are unable to actively participate in decisions and interfere with the patterns imposed by the hegemonic
groups. In education, the good and the bad students are defined according to the degree they master the
norm. Paradoxically, the majority of students, especially in public schools, bring language variants that
contradict the structures presented by the didactic materials and used by the mass media, and which are
reasons for social segregation. The current work thus revisits the conception of standard language, treating
it as a construction imposed historically and as an entity that does not escape its own linguistic variations
and their complexities. In this sense, the work also questions the monolinguism that bases the teaching of
Portuguese language in Brazil, contesting the use of an exclusive language standard, an artificial norm for
the majority of the students and that ends up neglecting the different ways through which Brazilian people
communicate (their accent, regional expressions, dialects), giving the language a border position that
marks the cruel separation between the capable and the incapable.
INTRODUÇÃO
Por muitas décadas, no Brasil, a escola foi privilégio de uma minoria que, em geral,
incluía os brancos, os homens e aqueles com maior poder aquisitivo. Ainda hoje, apesar
de obrigatória a partir dos quatro anos de idade, ela não atende em número e em qualidade
Nos primeiros anos da história do Brasil, entre as práticas colonialistas e sua suposta ação
“civilizadora” estava a imposição do português ibérico, um modo perspicaz de
determinação de poder por parte do hegemônico. Atualmente, após séculos de
Para que se possa entender a complexidade que envolve a relação entre o domínio da
norma culta e as relações sociais, incluindo as forças discriminatórias que permeiam os
discursos puristas sobre alfabetização e ensino, deve-se atentar para a construção histórica
em torno do ideal da norma culta e refletir acerca de aspectos sociolinguísticos do
português brasileiro que se relacionam à valorização de certos padrões que nem mesmo
são utilizados pela grande maioria da população.
Apesar dos avanços, atualmente grande parte das escolas, jornais, canais televisivos, e
editoras ainda tendem a ignorar a diversidade sociolinguística do Brasil e os estudos
linguísticos atuais e insistem em adotar preceitos e regras sem qualquer embasamento
teórico e cujos domínios não abrangem as variações que caracterizam as manifestações
linguísticas de grande parcela da população. A tradição cultural que permeia a escola, em
especial, recusa usos que determinadas camadas sociais fazem da língua, tratando-os
como erros. Constroem-se os mitos em torno da língua e, como consequência, os
Considere-se os Shem e seu desejo por transcendência, mito bíblico abordado por Derrida
em As Torres de Babel (2006) e The Ear of the Other (1985) e revisitado por teóricos
como Rodrigues (2000), Davis (2001) e Camacho (2013). Ao tentar construir uma torre
para chegar ao céu e impor a sua língua aos demais, os Shem desejavam estabelecer um
sistema fechado de referência, uma estrutura que dominaria o significado, fixando assim
uma relação inequívoca entre significado e significante. Porém Deus desconstruiu o
desejo do referido povo hebreu, atribuindo o nome Babel (Bab = porta em acadiano, EL
= Deus em hebraico/Elohím) ao monumento e instituindo a diversidade de línguas. Dessa
forma, ele condenou os povos à diversidade e proibiu o imperialismo linguístico, isto é,
impediu que os Shem impusessem o seu sentido como o único.
Desde a fracassada empreitada dos Shem até o presente, várias têm sido as tentativas de
domínio da razão e de imposição de valores por meio do apagamento do outro diferente.
Exemplos incluem a invenção das luvas AcceleGlove, pelo pesquisador mexicano da
Universidade George Washington (EUA), José-Luis Hernandez-Rebollar, ou das luvas
SignAloud, por Navid Azodi and Thomas Pryor, alunos da Universidade de Washington.
As duas criações traduzem em sons os movimentos da Língua de Sinais Americana
(ASL). Apesar do aparente progresso que as invenções representam na comunicação entre
surdos e ouvintes, elas denotam uma tentativa de apagamento da língua própria do grupo
minoritário que vem para dividir espaço com a língua inglesa.
No Brasil, o projeto de lei Nº 1676, de 1999, de autoria do então Deputado Federal Aldo
Rebelo, pretendia restringir o uso de estrangeirismos no país. Uma medida que, a priori,
“protegeria” a Língua Portuguesa da influência imperialista estadunidense,
paradoxalmente, atuaria como instrumento de dominação, controlando os usos da
linguagem e determinando padrões que, juntamente com a valorização da forma escrita,
reforçariam o domínio dos grupos que fazem uso mais frequente daquilo que eles chamam
de língua portuguesa pura.ii
Como se pode observar, o caminho histórico percorrido pela língua portuguesa desde o
seu início no Brasil promoveu e perpetuou a valorização de um padrão artificial e que não
encontra qualquer base científica a partir de dados sistemáticos sobre o real uso da língua
pelos indivíduos. O que se vê nas escolas de todo o país é uma diversidade que desafia as
normas arbitrárias promovidas por ideais colonialistas. Ilusoriamente, as instituições
escolares ainda entendem que a imposição de padrões gramaticais, de concordância e de
regência, por exemplo, são a saída para se chegar à conquista da norma culta pelos alunos.
Ignoram e/ou desconhecem que “o domínio da expressão culta é, de fato, subproduto da
imersão na cultura letrada e não seu pré-requisito” (FARACO, 2015, p. 27). Em outras
palavras, a aquisição de uma norma culta deve ser entendida como algo construído pelas
experiências propiciadas pelo contato com variados bens culturais do universo letrado.
Não é ignorando todo o arcabouço de conhecimento linguístico e cultural que os alunos
trazem consigo e impondo um padrão que para eles é artificial e incomum que se
conseguirá a sua admissão no mundo letrado e o acesso às manifestações culturais dele
provenientes.
Nesse sentido, a língua continua sendo um mecanismo de poder nas relações entre as
pessoas, nas relações de dominação, e tanto o sistema educacional brasileiro como os
veículos de comunicação em massa compartilham ideologias e valores determinados pelo
Ao ensinar a língua portuguesa, a escola usa como única referência as regras gramaticais
presentes nos manuais, sem qualquer flexibilização das construções, de forma que opta
por prescrever a língua a partir de uma estrutura artificial de usos linguísticos baseada em
um corpus pretérito. Assumindo um monolinguismo fictício, a sociedade brasileira do
início do século XXI
Assim, o preconceito linguístico está associado ao preconceito social, visto que todo o
jogo de interesses que gira em torno da língua leva à depreciação do falante enquanto ser
social. Como a língua está relacionada à própria identidade do sujeito e de seu grupo, sua
discriminação é um mecanismo de depreciação da própria comunidade que dela faz uso.
Antes de condenar certa variação e tentar apagá-la ou associá-la a aspectos como
incapacidade, a sociedade deve atentar para algumas questões. Uma delas é o fato de que
nenhuma língua é imparcial ou neutra. Por meio da língua são veiculados valores e
ideologias e, visto que os detentores do “poder da palavra” são os que gerenciam a
educação e a difusão de informação no país, prima-se pela norma culta exclusivamente.
A língua também não é cristalina. A ideia de um meio de comunicação sem qualquer
barreira e particularismos atenderia apenas aos interesses dos hegemônicos e culminaria
com a promoção de mecanismos visando o apagamento das demais variações. A suposta
imparcialidade ou neutralidade da língua guarda discursos discriminatórios e distorcidos
do outro diferente e de sua língua.
Em educação, trata-se daquilo que Mattos e Silva (2004, p. 33) chama de “tradição
dialetofágica” para se referir aos mecanismos que tendem a ignorar, apagar e estigmatizar
as variantes menos prestigiadas da língua oral e escrita, uma marca das instituições
organizadas pelo polo hegemônico, entre elas, a escola. Assim, por meio da língua se
desenvolvem e se nutrem manifestações de preconceito. Enquanto mecanismo
normalizador e universalizante, o ideal da norma culta traz consigo o desejo bíblico dos
Shem e promove a valorização dos seus detentores e a marginalização dos que falam e
escrevem outras línguas portuguesas no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O convívio com a norma culta e dominante poderia ser acompanhado de atividades que
permitissem aos alunos contrastá-las com os demais dialetos, de modo que não se fizesse
qualquer juízo de valor entre as formas, mas que se voltasse para os usos de cada estilo e
variação em determinados contextos. Assim, o conhecimento da língua formal adviria
não da sistematização e prescrição de regras que constituem uma gramática baseada em
um ideal de língua, mas da própria experiência que os indivíduos têm com o vernáculo e
da visão crítica em relação ao uso da língua e sua adequação às mais variadas situações.
Em vez de consistir em um aspecto marginalizante, o aprendizado da norma culta seria
um instrumento de integração e permitiria ao aluno contato com novas manifestações
culturais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo:
Parábola Editorial, 2003.
______. Norma culta brasileira: construção e ensino. In: ZILLES, Ana Maria Stahl;
FARACO, Carlos Alberto. Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e
ensino. São Paulo: Parábola, 2015. p. 19-30.
GNERRE, Maurizzio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
KRESS, Gunther. The social values of speech and writing. R. Fowler et al, Language
and control, London: Routledge / Kegan Paul, 1979, pp. 46-62.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. O português são dois: novas fronteiras, velhos
problemas. São Paulo: Parábola, 2004.
Professor adjunto do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN), Mestre em Linguística Aplicada pela UECE e Doutorando em Estudos Linguísticos pela
UNESP.
i
O IBGE disponibiliza a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2015) na página eletrônica
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98887.pdf. Último acesso em 20 de maio de 2017.
ii
Para reflexões linguísticas feitas a partir do referido projeto de lei, ver Faraco (2001).
iii
Para um estudo sobre a associação entre o analfabetismo e as relações sociais, e sobre a imagem que o
analfabeto tem de si próprio, ver Ribeiro (2005).