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As doutrinas da graça e do livre-

arbítrio em Santo Agostinho


INTRODUÇÃO
O doutor de Hipona, muitas vezes, é usado por muitos protestantes como
bandeira a favor daquilo que é popularmente chamado de “reforma”
protestante. Com modos de pensar ultrapassados, tentam criar uma
conciliação inexistente entre Agostinho e os “reformadores” protestantes. Será
mesmo? Vejamos:
“(...) A doutrina agostiniana carrega, sobremaneira, uma marca católica e é
radicalmente oposta ao protestantismo. É importante estabelecer este fato,
principalmente pela mudança de atitude dos críticos protestantes a respeito de
Santo Agostinho. Na verdade, nada é mais merecedor de atenção do que este
desenvolvimento altamente meritório para a imparcialidade dos escritores
modernos. A tese dos antigos protestantes é bem conhecida. As tentativas de
monopolizar Agostinho para torna-lo um reformador de antes da Reforma
foram certamente rejeitadas. (...) Na verdade, eles vão até o extremo, quando
dizem que ele [Agostinho] é o criador do catolicismo. É assim que H. Reuter
conclui seus importantes estudos sobre o doutor de Hipona: ‘Eu considero
Agostinho o criador do catolicismo romano no ocidente... Esta descoberta não
é nova, como Kattenbusch parece acreditar, mas na verdade há muito tempo já
é reconhecida por Neander, Julius Köstlin, Dorner, Schmidt, etc.’ (...)”.
(Portalié, Eugène. O ensino de Santo Agostinho de Hipona. Enciclopédia
Católica, v. 2. New York: Robert Applenton Company, 1907.)
Depois de ver que diversos protestantes modernos confessam a catolicidade de
Agostinho, torna-se oportuno para o católico estudar um pouco daquilo que
Santo Agostinho ensinou em dois de seus mais famosos temas tratados em
suas obras: as doutrinas da graça e do livre-arbítrio. O estudo abaixo foi
retirado do Dicionário de Literatura Patrística, ed. Ave-Maria. Bom proveito,
e ótima leitura:
A DOUTRINA
Com Agostinho de Hipona a teologia cristã da justificação alcança seu
máximo grau de rigorismo e complexidade, realizando uma solução dialética
da relação entre liberdade e graça ao mesmo tempo eminentemente católica
(em sua intenção de ter em unidade perspectiva aparentemente inconciliáveis),
e, no entanto, de tal maneira paradoxal e revolucionária em relação à tradição
eclesiástica (na absoluta subordinação a liberdade e da mesma eclesiástica
economia da salvação a uma graça inteiramente gratuita) a resultar em
realidade catolicamente inassumível, a não ser através de censuras tácitas ou
banalizantes, desnaturadoras normalizações. Causa da secular ambiguidade da
recepção da teologia da graça de Agostinho é, de fato, sua exigência de
reinterpretar toda a tradição católica (que com substancial continuidade afirma
a unicidade do Deus da lei e do Deus da graça, a existência do livre-arbítrio, a
plena responsabilidade do homem como pecador, a universalidade do
chamado divino à salvação, a necessidade da mediação eclesiástica) a partir da
recuperação e da absolutização de uma lógica paulina rigorosa, corretamente
identificada como anúncio do caráter absolutamente indefinido do dom. A
teologia da graça agostiniana resolve, portanto, em uma paradoxal, porque
assimétrica, concordantia entre graça e liberdade, dom sobrenatural e dom
natural, redenção e criação, predestinação e presciência, Espírito e Verdade,
vontade e ordem, misericórdia e juízo, perdão e lei, poder e justiça, carisma e
doutrina, evento carismático e sua institucionalização eclesiástica, portanto,
entre paulinismo radical e antidualística (antimaniqueísta) ontoteologia
platonizante. Se, em nível de teologia da justificação, é dominante o
prevalecer do primeiro elemento da tensão dialética, que subordina a si o
segundo, negar a realidade deste segundo significaria ao mesmo tempo
afirmar uma niilística teologia irracional do acontecimento. Seria desconhecer
a intenção católica de Agostinho, que é salvar a bondade de Deus e da criação,
a liberdade da criatura e sua responsabilidade pela irrupção do mal no mundo,
portanto, a realidade da existência como (antimaniqueia) manifestação da
glória criadora de Deus. E veja-se que a radical paulinização à qual Agostinho
submete seu herdado e persistente origenismo platonizante se concretiza em
uma extraordinária capacidade de plena reativação da raiz semítica própria da
escatologia profética e apocalíptica, que o catolicismo pré-agostiniano não
tinha erradicado, ou minimizado em favor das componentes semíticas mais
legalístico-sapienciais, precocemente entrelaçados com as helenísticas. Desse
ponto de vista, a afirmação do absoluto da graça indevida não apenas reativa a
identificação paulina da graça com a dimensão carismática do Espírito (a nova
aliança escrita nos corações cf. 2Cor 3), melhor que com a lei ou a doutrina
salvífica (a letra da velha aliança escrita sobre tábuas de pedra por Moisés,
coincidindo com a lei natural própria de todos os pagãos, segundo Rm 1), mas
é capaz de reacender aquela espasmódica tensão escatológica própria
do kerigmaprimitivo: Deus é Senhor iminente e imprevisível; o amor de Deus
é eleição gratuita do último, daquele que não merece nada, de quem está
desesperado e agonizante; a irrupção da graça – acontecimento histórico-
econômico reduplicado em evento que transforma uma interioridade
platonicamente pensada – é o fim do velho mundo, do mundo do pecado, a
destruição do homem carnal, a redenção de uma natureza que, no mesmo
momento em que é transfigurada graças à cruz de Cristo sobre a qual Deus
morre (abissal escândalo ontológico!), é também condenada como corrupta,
como ser que está morrendo (evidente escândalo ontológico!). Além disso, a
teologia da graça agostiniana é do máximo interesse, visto que não se limita a
prospectar uma doutrina da justificação absolutamente original e de tal
profundidade e poder de revolucionar a história do pensamento ocidental, mas
porque ela se afirma mediante um complexo processo de retractatio de uma
perspectiva antes dominante, depois colocada em crise e superada, mas ao
mesmo tempo reinterpretada e conservada como claramente subordinada,
relativizada. É a questão do primeiro (dos diálogos de Cassicíaco ao De
doctrina christiana) e do outro ou segundo (dasConfessiones bem como
da Opus imperfectum) Agostinho: um otimista apologeta da racional
continuidade da real e íntegra capacidade da razão e do livre-arbítrio de se
elevar até Deus, universalmente amoroso e justo; o outro trágico confessor da
onipotência imperscrutável de Deus, da predestinada graça indevida e
universal, perversa impotência do livre-arbítrio. Esta nítida distinção entre
duas fases do pensamento agostiniano não é efetivamente uma mais ou menos
recente invenção historiográfica, mas o dado evidente que nos é testemunhado
pelo próprio protagonista (em Retractationes II, 1, 1; De praedestinatione
sanctorum 3, 7 – 4, 8), que confessa abertamente ter – com a redação
da quaestio do Ad Simplicianum dedicada à exegese de Rm 9 – mudado a
perspectiva graças a uma iluminação divina, enquanto compreendeu que o
homem é justificado pela graça absolutamente indevida, portanto, a própria fé
é um dom de Deus e não – como, por exemplo, no Ambrosiaster ou em
Ticônio – o único autêntico ato interior e meritório do homem que dá sua
anuência à graça. A dramaticidade e a radicalidade dessa conversão estão,
portanto, no passar de uma perspectiva cristã (aquela platonizante de um
“origenismo revisto e corrigido”) para outra perspectiva cristã (já apenas
recessivamente platonizante) inteiramente original que poderemos definir
como paulinismo carismático, culminante na noção da onipotência de Deus,
cujos decretos são imperscrutáveis para a razão humana. Finalmente, essa
revolução teológica cristã especifica a descoberta da graça indevida
predestinada e do escravo arbítrio como estrutura portadora de todo o
pensamento maduro de Agostinho (desde 397!) e nada, de fato, como excesso
polêmico confinável nos últimos vinte anos perturbados pela polêmica
antipelagiana.
Como escritos reveladores do primeiro Agostinho – no qual a teologia da
graça católica pré-agostiniana encontra perfeita realização, especulativamente
restituída – pode-se indicar, além de De ordine, o De libero arbitrio, o De
vera religione, e nos primeiros comentários paulinos, o próprio De
doct. chr. Interrompido em 397 (e por cerca de trinta anos!), porque metido
em crise pela revolução teológica de Ad Simpl. I, 2. Se a teologia da graça
testemunhada no De doctr. chr. interrompido é evidentemente arcaica em
relação à página das Confissões, a restituição da revelação cristã mediante
uma ontoteologia platonizante – que é intermédio entre o origenismo
capadócio e ambrosiano e o neoplatonismo pagão de Porfírio – é
precocemente afirmada e limpidamente teorizada. Deus, absolutamente
imaterial e imutável, é Ser, Verdade e Bem supremos (cf. De lib. arb II, 15,
39), onde tradição trinitária niceno-constantinopolitana e dialética
neoplatônica das primeiras hipóstases divinas se fundem harmonicamente. O
homem, criado à imagem de Deus-Trindade, é mens absolutamente imaterial,
ser que pensa e vive (cf. De vera rel. 44, 82; 55, 113; De lib. arb. II, 18, 47),
mas que pelo uso impróprio do mesmo bem que a identifica pessoalmente – a
liberdade – pode pecar, pervertendo a ordem ontológica que subordina as
realidades temporais, sensíveis e mutáveis a Deus eterno, imaterial e imutável;
assim fazendo, porém, a alma desordena a si mesma (cf. I, 1, 3; III, 7, 21; De
vera rel. 54, 104-106), tornando-se escrava das paixões, e por isso se torna
inferior (cf. De lib. arb. I, 11, 22; 16, 34-35; II, 19-53 – 20, 54; III, 1, 1). Por
outro lado, a liberdade da mensconserva a força de reconhecer a racional
ordem ontológica e de transcender as realidades criadas e imperfeitas (para
amar só relativamente), desejando conhecer e unir-se eternamente a Deus. O
pecado de Adão, de fato, mesmo sendo um péssimo exemplo, também um ato
que enfraquece a natural proximidade da mens em relação ao eterno modelo
da Trindade, não corrompe intimamente nem a capacidade de escolha, nem a
plenitude ontológica do próprio ser natural (cf. III, 5, 14-16; 18, 51 – 20, 55).
Certamente, é necessário que Deus se revele para que a liberdade se destaque
dos corpos e se transforme em verdades imateriais e em transcendência
absoluta que dela é a fonte (cf. II, 13, 36). O encarnar-se de Cristo (supremo e
imitável exemplum de virtude: cf. De fide e symbolo, 4, 6; De doct. chr. I, 11,
11) é o tornar-se sinal da Res absoluta, o devir sensível do Eterno (cf. De lib.
arb. III, 10, 30; De vera rel. 16, 30; De doct. chr. I, 11, 11 – 14, 13; 34, 38),
que permite à mens prisioneira dos sentidos acordar e retornar à própria pátria.
A Escritura, a Igreja, o próprio Espírito obedecem à mesma lógica amorosa de
socorro gratuito, de chamado persuasivo e de sustentação vivificante à
liberdade humana (cf. II, 6, 78; I, 15, 14-18, 17; De lib. arb. III, 22, 65; De
vera rel. 12, 24). O cristianismo, portanto, se resume na revelação da Lei, isto
é, da verdade salvífica e do dever espiritual (encarnados em Cristo), daqui
na doctrina do ordo amoris (cf. 16, 32 - 17, 33), à qual o homem deve
corresponder com aplicação intelectual e empenho moral (“bono studio
bonisque moribus”: De doct. chri. I, 10, 10), que se resume no dever da
“gemina dilectio”, o amor de Deus e do próximo (cf. III, 10, 14). Torna-se
evidente a polêmica antimaniqueia: 1) a criatura é livre e pode facilmente
readquirir a própria inalienável identidade espiritual (cf. De lib. arb. I, 13, 29;
III, 3, 7; 6, 19; 17, 48 – 18, 50); a salvação é alcançar de novo o homem
interior racional, cujo olhar está por natureza metafisicamente aberto para a
Luz – absolutamente transcendente, ou por graça do Criador imanente na
intimidade racional da imagem – da eterna Verdade divina (cf. De vera
rel. 39, 72; De magistro, 11, 38 – 12, 40; De lib. arb. II, 9, 26; 13, 36 – 15,
40). A doutrina da iluminação agostiniana (cf. De ordine, II, 2, 7; Soliloquia,
I, 6, 12 e 8, 15; De lib. arb. II, 13, 36; II, 9, 26) – tentativa de recuperação e
superação da reinterpretação cristã que Orígenes havia proposto da teoria
platônica da preexistência das almas - é, em última análise, uma doutrina da
graça ontológica. Insiste (com um sentimento de religiosa dependência e
um pathos que ooutro Agostinho reservará para a graça indevida) no evento
gratuito que faz com que em toda mens criada resplandeça a própria eterna
Verdade de Deus; de modo que ao assombro metafísico sucede o render
graças e louvores pela misericordiosa e miraculosa imanência de Deus
transcendente em todo ato intelectual de visão das verdades imutáveis. 2) O
pecado, pois, não contradiz nem corrompe de modo nenhum a positividade do
ser criado; antes, toda realidade é, não obstante a possibilidade de que a
liberdade criatural a degrade, manifestação da graça ontologicamente
operante: platônica e originariamente o mal não existe (a não ser como
alienação de um bem inferior do bem absoluto), porque todo ser é bom (cf. De
lib. arb. II, 20, 54), porquanto depende do Ser absoluto, Bem absoluto e
Verdade incontrovertível. 3) A graça do Deus de amor não está absolutamente
em contradição com a Lei, apesar de seu cumprimento espiritualizado, visto
que o cristianismo é a revelação da eterna, universal e nunca discriminante,
invariável justiça ontológica – “Lex summa ratio..., segundo a qual os maus
merecem a infelicidade e os bons merecem a felicidade” (De lib. arb. I, 6, 15)
– que, como Verbum ou Veritas, governa toda a realidade criada e
providencialmente organizada por Deus: “A Verdade está perto de todos
aqueles que de todo o mundo se convertem para ela porque a amam e para
todos é sempiterna... Admoesta de fora e ensina desde dentro” (De lib. arb. II,
14, 38). O Verbo, portanto, não atua potentemente a conversão interior das
criaturas, mas de todo modo chama, ensina, ordena e admoesta, não obstante,
de maneira amorosa e persuasiva, isto é, não irresistivelmente (cf. De vera
rel. 16, 31; De lib. arb. II, 14, 30 – 15, 31; 16, 41; III, 1, 3; sobretudo III, 19,
53; 25, 74-75; Epistolae ad Galatas expositio, I, 43, 8; 46, 6-9; 60, 2; 62,
1; Epistolae ad Romanos inchoata expositio, 9, 6; 15, 4; 16, 7-19, 11; De
diversis quaestionibus LXXXIII, LXVI e LXI, 7) para que a liberdade escolha
transformar-se de cupiditas para caritas (cf. De doct. chr. III, 10, 15-16; 15,
23; 21,31; I, 35, 39; II, 9, 14; Exp. Gal. 51, 4; 20, 5; 42, 12; 46, 6; 51, 1-6; De
div. quaest. LXXXIII, XXXV, 2; XXXVI, 1; LXXI, 1; De agone Christiano, 6,
6-7, 7; 13, 14; 33, 35), conhecendo e amando não mais as realidades tempoais
e materiais, mas aquelas eternas e inteligíveis (cf. De lib. arb. I, 15, 32). A
graça, pois, não é tanto um ato carismático, e sim essencialmente – ainda
origenianamente – um dom ontológico, que irradia eterna e universalmente a
maravilhosa luminosidade da Verdade, Mestre interior de cada mens, criada
como sua imagem (cf. II, 1, 3), luminosa refração. De maneira que a única
escolha autêntica que a liberdade pode realizar é a de reapropriar-se de si
mesma, dominando em si própria a possibilidade do pecado (cf. I, 8, 18-11,
23; 16,35; De vera rel. 41, 78; 46, 87; 48, 93).
Este coerentíssimo, racionalista e otimista sistema da graça, capaz de
harmonizar admiravelmente tradição católica e ontologia neoplatônica, é
colocado radicalmente em crise pela redação da resposta à II questio sobre Rm
9, 10-29 dada por Agostinho para Simpliciano, sucessor de Ambrósio como
bispo de Milão e ele mesmo intelectual platonizante: Ad Simpl. I, 2,
efetivamente, afirma teses revolucionárias, brotadas do impor-se do texto
paulino sobre as mesmas resistências de Agostinho (cf. Retr. II, 1, 1: “Eu me
irritei por defender o livre-arbítrio da vontade humana, mas venceu a graça de
Deus”) e interpretadas como iluminação gratuita de Deus em sua mente
(cf. De praef. Sanct. 4, 8): 1) A graça que escolhe a criatura (Jacó) é de todo
incondicionada, totalmente independente de qualquer mérito do homem; o
dom é tal somente se indevido, dado gratis, sem que o homem possa
identificar-lhe uma razão. Apenas a liberdade de Deus e não a liberdade do
homem distingue os chamados eleitos (cf. Ad Simpl. I, 2, 13). 2) A graça é,
portanto, predestinada e insondável (cf. 16; 22); a eleição é já claramente
distinta da presciência, visto que Deus escolhe Jacó sem que ele tenha tido
qualquer mérito, portanto, independentemente da presciência de seus atos (cf.
4-6; 8; 11; 22). 3) A fé mesma é um dom indevido de Deus e não a meritória
anuência do homem a seu chamado (cf. 7; 9; 21). 4) A onipotência de Deus
move a vontade do homem como e onde quer (cf. 12-13), tanto que a
mesma vocatio divina determina a vontade do homem, nada absolutamente
remetendo a seu consenso: “Nosso querer é obra de sua misericórdia... O
chamado divino a tal ponto é eficaz (effectrix) sobre a vontade, que todo
chamado a segue” (12-13). De fato, a eficácia da graça não pode estar em
poder do homem, de outra maneira isso tornaria sem sentido a vontade eterna
e absoluta de Deus, para a qual é absurdo não poder de algum modo realizar
seu objeto na vontade criada (“Com ninguém Deus usa de misericórdia em
vão”: 13), chamando-a de maneira adaptada a côngrua, portanto infalível e
irresistível (cf. 13-14 e 17). A operação interior do Espírito não é de modo
algum uma violência coercitiva, que constrinja a vontade do homem, mas sim
uma irresistível capacidade de enamorar (deletare), ascender, excitar,
apaixonar, arrastar a vontade (cf. 21), que age a partir de uma nova, dada,
espiritual concupiscência: “Nós não podemos nem querer nem correr se ele
não nos move e não nos estimula” (21). Se, pois, a obra da justificação é tanto
de Deus que chama quanto do homem que segue o chamado, esta é
determinada infalivelmente po aquela, tanto que o sinergismo tradicional é
inteiramente superado na afirmação da causalidade divina no próprio desejo
voluntário do homem (cf. 10; 12). 5) A humanidade pós-queda é uma massa
damnationis (cf. 17; 19-20; 22) e o livre-arbítrio do homem é naturalmente
prisioneiro do mal, de uma solipsística “concupiscência carnal” (20), portanto
incapaz do mínimo desejo de conversão a Deus, como do mínimo ato natural
de autêntico amor pelo próximo. Aqueles que não são eleitos são justamente
odiados por Deus (como Esaú: cf. 16), porque abandonados a seu natural,
voluntário pecar, que Deus não quis remir (é esta a obduratio Dei da qual fala
Paulo: cf. 15) e que não obstante pune: “Deus abandona quando não chama de
modo tal a estimular à fé” (14). 6) Contrariamente a tudo que afirmava
o primeiro Agostinho, inteligência metafísica e virtudes morais não são de
modo algum garantias ou condições meritórias do agir misericordioso de
Deus, mas sim, ao contrário, atos mais ou menos ocultos na soberba,
censurados por Deus, que escolhe Saulo, perseguidor e blasfemador, as
prostitutas, os ignorantes, não os oradores, os sábios, os ascetas (cf. 22). A
derrubada do primeiro Agostinho – e de toda a tradição católica precedente –
é sistemática e radical: a teologia do outro Agostinho se torna trágica, a
antropologia (do Adão decaído) profundamente pessimista. O que
oprimeiro Agostinho confiava ao livre-arbítrio do homem se torna, agora,
efeito da eterna, predestinada eleição, portanto da ação operante do Espírito
no eleito; a teologia “clara” de Deus como verdade universalmente irradiante
é substituída pela teologia “escura” de Deus como onipotência eletiva que
molda e ordena a seu gosto vasos de ira e vasos de misericórdia (cf. 18),
portanto como vontade insondavelmente discriminante, incondicionada e –
para a razão do homem – incompreensível, imperscrutáel, absolutamente
excedente, objeto da emudecida adoração: “Misteriosa justiça inacessível à
medida humana... Mas, se isso nos perturba, que ninguém resista a sua
vontade, porque ajuda quem quer e abandona quem quer, quando um e outro,
o ajudado e o abandonado, pertencem à mesma massa de pecadores e, embora
ambos mereçam o castigo, a um todavia é pedido contas do pecado e ao outro
é perdoado; se, pois, isso nos perturba, ‘ó homem, quem és tu, para discutir
com Deus?’ (Rm 9,20)” (16-17).
As próprias Confissões – obra que marcou uma época teológica e
antropologicamente revolucionária – podem ser compreendidas em
profundidade unicamente na base dessa nova doutrina: Agostinho, seguindo o
exemplo de Paulo, se confessa como perverso pecador (confessio pecati)
indevidamente salvo pela graça de Deus (confessio laudis ou gloriae), que
liberta instantaneamente (portanto sem qualquer mérito anterior) seu livre-
arbítrio, de todo impotente numa prisão de pecado mortal, dando-lhe um novo
desejo: “Com a tua mão, explorando a profundidade da minha morte, limpaste
desde o fundo do abismo de corrupção do meu coração. Isto aconteceu quando
mão mais quis o que queria eu, mas quero o que querias tu. Onde estava meu
livre-arbítrio durante uma série tão longa de anos? De quão profundo e tão
secreto abismo foi tirado num instante, a fim de que eu submetesse o pescoço
a teu jugo suave e as costas a teu fardo leve, ó Cristo Jesus, meu apoio e meu
redentor?” (IX, 1, 1). Obedecendo a uma estrutura cristológica (a salvação é o
Eterno que irrompe no tempo, libertando da morte e do pecado), os primeiros
dez livros da autobiografia do indigno eleito representam o singular
testemunho do eterno mistério da predestinação, que transforma Agostinho do
esquecimento de si e da alienação (inconsciente e perversamente trinitária!) no
nada, no erro, na concupiscência (cf. I, 20, 31) à memória de Deus Trindade
(cf. livro X). O abismo da memória humana, incapaz de conter e abranger a si
mesma, encontra-se eternamente contida na eterna Memória divina, portanto
“existencialmente” despossuída, invadida, arrancada de seu perverso, alienado
e imanente solipsismo. “Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te
amei. Sim, porque estavas dentro de mim e eu te procurava fora. ... Estavas
comigo, mas eu não estava contigo. ... Mas tu me chamaste e o teu grito
ressoou forte na minha surdez. Fulguraste e o teu esplendor dissipou a minha
cegueira. Difundiste a tua fragrância e respirei e anseio por ti, provei e tenho
fome e sede de ti, tu me tocaste e eu fiquei ardendo de desejo da tua paz. ...
Toda a minha esperança está colocada na imensa grandeza da tua
misericórdia. ... Ó amor, que sempre ardes sem jamais te extinguires, Amor,
Deus meu, inflama-me! Ordena a continência, eis te peço, concede-me o que
mandas e manda o que quiseres” (X, 27, 38 e 29, 40). A graça é um poder
absolutamente antigo, porque ato eterno de uma vontade que cria e predestina,
e sempre nova, porque ato escatológico, incondicionado, livre do devir e do
perseverar acontecendo, como subtrair-se. A interioridade da graça não é mais
aquela do iluminante ato ontológico que cria e mantém no ser o ato espiritual
da mens. É o desejo do próprio Espírito Santo que cria e move o desejo
convertido, convertendo-o violentamente de sua solipsística alienação, visto
que a origeniana doutrina dos sentidos espirituais não é mais a alegoria da
interioridade intelectual da mente imagem. É a revelação da passividade da
vontade do eleito, arrancado de si e tornado órgão, dócil instrumento da graça.
Portanto, a possibilidade de colocar em prática a lei e de realizar boas obras –
de conter na unidade da verdade e da vida virtuosa uma criatura
verdadeiramente dispersa na multiplicidade de seu pecaminoso vazio –
depende unicamente da graça, que dá a realização daquilo que Deus manda
(“Da quod iubes et iube quod vis” X, 29, 40; 31, 45; 37, 60).
A teologia do outro Agostinho, já perfeitamente colocada em evidência com
as Confissões, encontra, pois, seu rigorismo na controvérsia com os
pelagianos, surgida a partir do ano 411 e continuada até sua morte, em um
crescendo de recíproca violência polêmica. Desde opeccatorum meritis et
remissione se reforça com nitidez a identificação da humanidade com uma
universal massa damnationis. Daí a necessidade do batismo de crianças, sem
o qual também elas, que mesmo que não se possa dize serem responsáveis por
qualquer pecado pessoal, são destinadas à condenação pela culpa de Adão, a
elas transmitida desde a concepção. No ato procriador, de fato, se dá o cume
daquela concupiscentia sexual interpretada como desordem psicológica (as
paixões do corpo prevalecem sobre a natural hegemonia da mensracional),
evidente testemunho da perversão da natureza criada à imagem de Deus. Se,
portanto, em toda nova criatura humana a graça criadora de Deus coloca no
ser uma natureza boa, esta é contrariada desde sua concepção, porquanto
sexualmente contaminada pela culpa do pecado. Este corrompe o mesmo
espontâneo deseja, pervertido na raiz, onde evidente é a importância temporal
nefasta dessa doutrina sobre a valorização do corpo e da sexualidade na
cultura ocidental. A obra-prima de toda a controvérsia antipelagiana é, não
obstante, o De Spirito et littera: o espírito não é mais identificado com uma
realidade ontológica, divina pois absolutamente imaterial, ou com a qualidade
do desejo teologicamente orientado, livremente assumido pela criatura, mas
com o Spiritus, a Caritas como pessoal ao trinitário, que permite a
retacognitio de Deus e o reto amor Dei. Deus, pois, não e apenas objeto
absoluto, a suprema verdade ontológica e moral que realiza o natural desejo
do sujeito finito, mas o indisponível Sujeito do sujeito remido. A identidade
profunda do si mesmo é totalmente despossuída: no Dom que o move, o
sujeito é libertado de si e do todo colocado na liberdade do Outro, que nunca é
definitivamente possuído, mas sempre é confessado como acontecimento por
vir, inteiramente gratuito, portanto racionalmente incondicionado e
imprevisível. Se não se revela como Espírito intrinsecus operante, Deus
mesmo acaba por ser uma littera, uma realidade imperativa conhecida
apenas forinsecus conhecida e amada somente extrinsecamente, portanto
pervertida em ídolo da criatura, íntegra em seu perverso solipsismo. Assim,
através da mesmacognitio Dei, o livre-arbítrio decaído entende na realidade
absolutilizar a si mesmo, o próprio amor sui, relativizando o próprio Absoluto.
Mas se o Espírito é o indevido ato de graça que irrompe miraculosamente na
vontade perversa e a transforma para si, evidentemente o permanecer Deus,
simples, extrínseca littera para o conhecimento perverso da criatura depende
de seu misterioso não se revelar, de seu não querer se dar como graça
intrinsecamente operante, mas sim sobretudo unicamente como objeto
de doctrina lex suprema (veterotestamentária, mas racionalmente alcançada
pelas mesmas mentes pagãs), até mesmo como graça, mas simplesmente
persuasiva, não obstante extrínseca ao dinamismo perverso da liberdade
decaída. Isso significa que a oposição entre littera e Spiritus não se prende
apenas à relação cognoscitiva do homem com Deus, mas também da diferente
modalidade econômico-reveladora do próprio Deus, uma universal e
imperativa, a outra não universal, isto e, singular e gratuita. Por trás da
oposição littera/Spiritus esconde-se não apenas oposição entre a antiga (Deus
se limita a escrever sobre as tábuas de pedra da Lei, deixando que o coração
do homem permaneça de pedra: cf. De Sp. et litt.17,30; Contra duas epistulas
Pelagianorum, I, 18, 36 - 20, 38; De gratia et libero arbítrio, 14, 29; 16, 32) e
nova aliança (Deus escreve nocor lapideum humano para torna-lo cor
carneum: cf. De Sp. et litt. 16, 28 – 19, 32; 20, 35 – 21, 36; De grat. et lib.
arb. 7, 16-17; 14, 28 - 15, 31), mas a mesma oposição predestinada entre
eleitos e rejeitados, daí o eterno diversificar-se da vontade de Deus.
Qualquer doctrina da ordem ontoteológica (a judaica da lex, a platônica da
analogia e da transcendência do Fundamento, a origeniana, protoagostiniana e
pelagiana da Res per signa, que consideravam a natureza
como continuum positivo que permite ao homem elevar-se para Deus),
culminante em DeusVeritas, não revela a Deus como ato de misericórdia, mas
como ato de juízo, pois não revela Deus como filho crucificado e ressuscitado
(portanto, como aquele em que a natureza se revela morta e ressuscitada
apenas na graça de Deus) e como Espírito, Caritas absoluta interiormente
atuante. Portanto, não só a lex judaica, mas a própria doctrina christiana, ou
a lex espiritual biblicamente deduzida in De doct. chr. é apenas littera vã e
condenadora, signum incapaz de poder anagógico, se não operado
pelo Spiritus: a salvação “é obra da graça. Quem a recebe, se antes era do
inimigo da doutrina salutar revelada nas Sagradas Escrituras, torna-se amigo
delas; não é obra nem mesmo da própria doutrina revelada, porque todos
aqueles que a leem e a escutam, sem a graça de Deus tornam-se adversários
ainda mais ferozes. A graça de Deus não consiste, pois, no lire-arbítrio nem na
lei ou na doutrina, como devaneava a heresia pelagiana, mas nos é concedida,
para toda e qualquer ação, pela vontade de Deus... A lei ou a doutrina divina,
embora santa, justa e boa, mata se não a vivifica o Espírito que nos torna
capazes de segui-la, não já com o escutá-la, mas com o observá-la, não com o
lê-la, mas com o amá-la... Não devemos, pois, dizer que a graça é a doutrina,
mas devemos reconhecer que é verdadeira graça aquela que faz de maneira
com que a doutrina nos ajude, enquanto vemos que se ela falta, a mesma
doutrina se torna até mesmo nociva”(Ep 217, 3, 11 – 4, 12; cf. De gratia
Christi, I, 24, 25);
Pela primeira vez em toda história da teologia patrística a graça redentora é
concebida como irresistível: “Por isso, prestou-se socorro à fraqueza
(infirmitati) da vontade humana tanto que ela se moveu pela graça divina
inflexível e insuperavelmente (indeclinabiliter et insuperabiliter); por isso,
embora fraco, não faltou e não foi vencida por qualquer adversidade... Para os
fracos (infirmis: todos os homens remidos) cuidou para que graças a deu dom
invencivelmente (invictissime) quisessem o que é bom e invencivelmente
(invictissime) não quisessem abandoná-lo” (De corr. et grat. 12,38); a Deus
“nenhum arbítrio humano resiste se ele quer salvar qualquer pessoa” (14, 43).
Verdadeiramente Agostinho, autêntico cidadão romano, parece conceber o
domínio da graça sobre o livre-arbítrio como um verdadeiro e próprio
imperialismo teológico (frequentemente Cristo é definido imperator, enquanto
é sabido que a comunidade dos eleitos é concebida como civitas): “Ele, de má,
torna boa a vontade dos homens e, depois de tê-la tornado boa, dirige-a para
as ações boas e para a vida eterna... De fato, o Onipotente atua (agit) no
coração dos homens também o movimento de sua vontade... para inclinar sua
vontade para onde quer que queira.” (De grat. et lib. arb. 20, 41; 21, 42-43).
Por outro lado, é própria concepção bíblica de Deus como onipotente criador
que explica o caráter irresistível de seu dom interior, que cria a Jerusalém
celeste: “O Onipotente não pode querer em vão (inaniter) tudo aquilo que
quis” (Ench. 27, 103), portanto “a vontade do Onipotente é sempre invencível
(omnipotentis voluntas semper invicta est” (26, 102). Mas, com já se
salientou, a ação irresistível da graça não aniquila o livre-arbítrio, não subtrai
à vontade do homem a responsabilidade da fé, a obrigação de colocar em
prática a lei espiritual, portanto, de esforçar-se para a perfeição, de ensinar
a doctrina salvífica, exortando à virtude e à ascese cristãs (como se reforça
sistematicamente nos últimos tratados anti ou semipelagianos dirigidos aos
monges Adrumeto e aos provençais), todavia Agostinho não poderia de modo
algum dizer-se católico se tornasse vã toda a economia salvífica eclesiástica.
E, com efeito, o próprio crer (dom indevido da graça de Deus), que nutre
espiritualmente toda obra boa, é ato livre da vontade humana, mas tal ato é
realizado pelo Espírito, que invade o desejo espontâneo da criatura e
enamorando-se dela. Os crentes, pois, “não se tornam fieis senão com o livre-
arbítrio e, todavia, tornam-se tais em virtude da graça daquele que libertou do
poder das trevas seu livre-arbítrio”(Ep. 217, 3, 8; cf. De grat. et lib. arb. 1, 1-
3, 5; 9, 21; De pecc. mer. et rem. II, 5, 6; 17, 26 – 19, 33; De praed. sanct. 20,
42; De dono persev. 8,20). Assim, “é certo que somos nós a querer quando
queremos, mas a fazer que queiramos o bem é ele... É certo que somos nós a
fazer quando fazemos, mas é ele a fazer que nós façamos, fornecendo forças
eficacíssimas (vires eficacíssimas) à vontade” (De grat. et lib. arb. 16, 32);
“Nós, pois, queremos, mas é Deus quem atua em nós o querer; nós, portanto,
agimos, mas é Deus quem atua em nós o agir, segundo seu beneplácito” (De
dono persev. 13, 33). Essas evidentíssimas formulações dialéticas concordam
catolicamente graça e livre-arbítrio, mas segundo uma inovadora (nunca
proposta pela tradição católica precedente!) relação assimétrica, na qual
aquela recria este, atualizando-o e convertendo-o, dando-lhe o desejo e a
colocação em prática da lei. Deus realiza “seu intento também através da
vontade dos próprios homens, porque tem o poder onipotente de inclinar os
corações dos homens por onde quer... Age a partir de dentro, toma posse dos
corações, move os corações e atrai os homens por meio de sua vontade que ele
mesmo realizou neles” (De corr. et grat. 14, 45). Não apenas qualquer
insustentável interpretação sinergística, mas também alguma acusação de
incoerência ou de oscilação comprometedora é refutada pela rigorosa,
reforçada introdução dialética destas afirmações. A graça dá ao livre-arbítrio
do escolhido, no lugar da “concupiscentia mala” uma nova “concupiscentia
bona” (De sp. et litt. 4, 6), uma “ineffabilis suavitas” (De grat. chr. I, 13, 14),
uma “vitrix delectatio” (De pecc. mer. et rem.II, 19, 32). A “delectatio
caritatis”, capaz de substituir a “delectatio peccati” (Opus imperfectum
contra Iulianum, I, 107), determina um novo dinamismo espontâneo em seu
desejo, nunca coarctado. Por outro lado, a mesma inovadora doutrina
agostiniana do “servum arbitrium” (Contra Iulianum, II, 8, 23), do
“arbitrium... peccati servum” (De corr. et grat. 13, 42; cf. Contra Epp.
Pelag. I, 3, 6-7; III, 9, 25; IV, 3, 3;Op. imp. I, 79-82) restitui a liberdade do
homem como irresistivelmente atraída pelo pecado, portanto como prisioneira
de um dinamismo autístico e solipsístico, que Agostinho traduz na imagem
profética do coração de pedra: “Este coração de pedra não significa outra
coisa senão a vontade mais dura (duríssima), que absolutamente não se dobra
diante de Deus” (De grat. et lib. arb. 14, 29). Ao contrário, o livre-arbítrio
agraciado escolhe fazer espontaneamente (não invitus) apenas aquilo que
agora deseja unicamente por graça de Deus; nem obviamente pode resistir,
querer contra a graça que opera nele um novo querer, dando-lhe uma nova raiz
( = coração ou delectatio) do desejo. A graça, portanto, é ao mesmo tempo
“praeveniens” (cf. De nat. et grat. 31, 35; Contra Epp. Pelag. II, 10, 21-
22; De dono persev. 16, 41); “cooperans” (cf. De nat. et grat. 31, 35; De grat.
et lib. 17, 33; Enarr. in Ps. 77, 8); “subsequens” (cf. De nat. et grat. 31,
35; Contra Epp. Pelag. II, 10, 22): precavém indevidamente a liberdade,
atuando nela um novo dinamismo espiritual; coopera com o novo desejo
espiritual do livre-arbítrio por ela mesma aceso, realiza e aperfeiçoa os
esforços do livre-arbítrio por ela mesma aceso, realiza e aperfeiçoa os esforços
do livre-arbítrio por ela mesma movido para o bem, tornado portanto capaz de
merecer e de invocar um aperfeiçoamento posterior de seu desejo. Por isso
qualquer merecimento da criatura é dom de Deus (cf. De grat. et lib. arb. 6,
13 – 8, 20). “Ele faz, sim, que nós queiramos sem necessidade de nós, mas
quando queremos e queremos de maneira tal para agir, coopera conosco.
Todavia, sem ele que age a fim de que nós queiramos ou coopera quando
queremos, nós não somos competentes para nenhuma das boas obras de
piedade” (17, 33). Se cada ato do homem é obra e dom de Deus, dependente
da ação de sua graça que irresistivelmente inicia, desenvolve e realiza o
dinamismo da liberdade, a ação de graça – não universal: evidentemente nem
todos os homens querem o amor de Deus (genitivo subjetivo, mais que
objetivo), portanto não são queridos por Deus, que nunca quer em vão – não
pode senão depender de um decreto divino de predestinação (como
obsessivamente é reforçado por Ad Simpl. I, 2 para Op. imp.). Presciência e
predestinação, pois, não coincidem verdadeiramente: enquanto a presciência
de Deus é o conhecimento de tudo isso que acontece e que, todavia, Deus quis
que acontecesse, depois disto que ele mesmo pratica (o bem), e disso que
realiza espontaneamente a criatura (o bem e o mal), a predestinação se
identifica com a eterna vontade divina de praticar o bem, ou seja, é relativa
unicamente ao que o próprio Deus realiza pessoalmente: “Predestinar é para
Deus dispor suas obras futuras, exatamente isto e nada mais... Predestinar para
Deus é conhecer com precedência aquilo que ele mesmo fará” (De dono
persev. 17, 41; 18, 46).
O De natura et gratia é dedicado a aprofundar a conexão entre plano
ontológico e plano carismático, pensada segundo uma modalidade ainda uma
vez radicalmente inovadora em relação à tradição católica precedente. O
âmbito da criação, desgastado pelo pecado, não era de fato descrito com tanta
negatividade, daí a lição do Eclesiastes parecer reforçada por um eco
radicalmente cético, embora a mesma persistente afirmação da bondade da
natureza criada coexista com a confissão de sua paradoxal vacuidade por obra
do mal (cf. Ench. 4, 13) e com a amarguíssima ironia que liquida como vão
sofisma a platonizante objeção pelagiana (já origeniana e agostiniana) que o
mal não tem realidade, porque não pode corromper a natureza criada por Deus
(cf. 19, 21 – 23, 25). De fato, para o outro Agostinho, “a natureza foi ferida,
machucada, danificada, arruinada: tem necessidade de uma sincera confissão e
não de uma falsa defesa” (53, 62). Apenas a confissão dessa contradição
ontológica e o confiar qualquer esperança na graça de Cristo e na ressurreição
espiritual dada em seu Espírito podem cristologicamente manter juntos esse
verdadeiro e próprio niilismo do pecado com a fé na bondade onipotente de
Deus. De outro lado, se em Cristo o próprio Deus morre; se, pois, a natureza
tem a necessidade de uma tão abissal e paradoxal salvação, o dano que a
contradiz deve ser igualmente abissal e paradoxal. E, assim, a afirmação
pelagiana de uma natureza e de uma liberdade humana ainda íntegras, não
obstante o mau precedente do pecado de Adão, esvazia o mistério tremendo
da encarnação de Deus em Cristo, degradado (como o mesmo Agostinho
todavia havia feito até o De doct. chr. interrompido) como simples exemplo
imitável: “Considerai agora o ponto essencial: como (Pelágio) tenta apresentar
a natureza humana quase como se fosse absolutamente sem vícios... Nada foi
ferido, nada machucado, nada enfraquecido e estragado... Mas, se o poder
natural basta por si mesmo mediante o livre-arbítrio, seja para conhecer como
viver, seja para viver bem, então Cristo morreu em vão e é anulado o
escândalo da cruz... Vós, que procurais a justificação na natureza, decaíste da
graça” (De nat. et grat. 19, 21 e 40, 47). A morte de Deus em Cristo, portanto,
revela a morte da natureza (“natura moriens”: De gest. Pel. 9, 21), ou o Deus
redentor demonstra que o Deus criador pôde – e quis: voltamos ao mistério
impenetrável da predestinação! – ser contradito em sua vontade de plenitude
do bem pelo pecado de Adão. Nesse sentido, ainda uma vez, a vontade
redentora de Deus se revela não coincidente com a vontade criadora de Deus:
enquanto esta quer paradoxalmente entrelaçar-se com o mistério da eleição da
criatura escravizada ao pecado; enquanto esta quer provar, julgar e condenar
toda a humanidade (que, no único homem verdadeiramente livre para
determinar-se, precipita no nada da morte e do pecado), aquela quer absorver,
perdoar e assumir um número restrito de escolhidos, indevidamente subtraídos
de um universal destino de condenação. Note-se a forçada exegese de 1Tm 2,4
(in. Ench. 27, 103; Contra Iul. IV, 8, 22-24; De praed. sanct. 10, 19; Op.
imp.II, 135-136; 147-148; 175; 209; Ep. 217, 6, 19), daí o ditado bíblico que
afirma que Deus quer que todos os homens sejam salvos ser considerado
inaceitável e distorcido na interpretação de que Deus quer que sejam salvos
apenas todos aqueles que quis escolher, ou os homens de todos os gêneros de
categorias; ou se confronta a insistente polêmica agostiniana contra o
“paradisum Pelagianorum” (Op. imp. I, 67; II, 236; III, 160-162; IV, 114; V,
15; VI, 26-31), identificando com esta mesma existência não contrariada por
qualquer pecado radical. Somente a atribuição a Adão de um pecado
ontologicamente devastador, justamente punido por Deus, permite ter juntas
racionalmente a perfeição da criação originária e a arrasadora evidência da
morte e do mal na criação do Onipotente, concordando catolicamente (contra
marcionitas, gnósticos, maniqueus) a justiça do Deus criador e juiz da
liberdade do homem com a novidade do Deus redentor que, em Cristo, dá uma
graça paulinamente indevida. E, com efeito, o terrível paradoxo, ao mesmo
tempo eminente e subversivamente católico sobre o qual se funda toda a
teologia do outro Agostinho é que o único Deus revela uma universal graça da
criação inferior a uma não universal graça da redenção, isto é, o Deus cristão
não quis dar a todas as suas criaturas aquela “maior... potentior gratia” (cf. De
corr. et grat. 11, 29 e 31; 12, 32-33; Ench. 28, 106) que quis dar só aos
eleitos, embora algumas criaturas tinham sido queridas por Deus apenas para
revelá-las e puni-las – ainda que de modo totalmente justo – por sua livre
vaidade. Em De corr. et grat. 11, 32 e 12, 34 (cf. De grat. chr. I, 3, 3) é
exatamente afirmada a distinção entre:
a) a graça da criação (adiutorium sine quo non), necessária e suficiente, mas
não absolutamente eficaz, enquanto remetia a Adão a plena responsabilidade
do exercício do próprio livre-arbítrio, com o qual ele devia aceitar a ajuda de
Deus e merecer com isso a eternidade;
b) a graça da redenção (adiutorium quo), necessária e absolutamente eficiente
enquanto atuando irresistivelmente a boa vontade da criatura.
Certamente, se reapresenta a suprema questão da teodiceia: por que Deus não
deu sua graça redentora já para Adão, ou por que o Verbo não se encarnou no
primeiro homem criado? Por que tentar a humanidade, antecipadamente
conhecida como lapsa, para depois remir apenas uma parte? Por que dar a
Adão no éden apenas uma “umbra vitae” (Ench. 8, 25), para depois reservar a
autêntica construção da civitas Dei para sempre limitada (porque
historicamente e não protologicamente realizada) economia cristã da graça? A
única resposta agostiniana – honesta e desanimadora – é a confissão do
mistério da abissal predestinação divina eternamente disposta pelo
Incondicionado, que não deve ao homem razão nenhuma de seu querer
(cf. Ep. 186, 7, 22-24), mistério apenas iluminado (ou melhor, obscurecido!)
pelo terrível, recorrente argumento da harmonia dos contrários (cf. Ad
Simpl. I, 2, 18; De civ. Dei XI, 17-18; XVI, 26-27; Ench. 3, 11; 26, 100; De
grat. et lib. arb.20, 41 – 23, 45; De praed. sanct. 8, 16 - 19, 17; Ep. 190, 3, 9-
12), segundo o qual, através da analogia antitética entre Adão (e a civitas
ímpia) – lapso porque dotado de uma graça sinergisticamente atuante em
conexão com sua liberdade – e Jesus (e a civitas Dei) – o homem predestinado
indevidamente a unir-se com o Verbo – salientam a impotência condenadora
da liberdade e da natureza humanas e a onipotência redentora da graça de
Deus; daí, pois, a diferença entre o Deus criador e terrível juiz (ao criar uma
natureza abandonada a sua perversa autonomia e depois justamente
condenada) e o Deus redentor (que, em Cristo, se torna hipostaticamente um
com o homem; em seu Espírito, se torna um com o desejo escolhido).
Portanto, na cristologia agostiniana assiste-se à suprema verificação de sua
teologia da graça e à coerentíssima, completa transformação da cristologia
origeniana (cf. De princ.. II, 6, 3-6): se nenhuma liberdade preexiste ao
nascimento mundano e nenhum mérito pode condicionar o milagre supremo
da encarnação, com o qual o Verbo se une hipostaticamente a uma simples
criatura, só a predestinação pode explicar a eleição do homem Jesus para se
tornar hipostaticamente, inseparavelmente um com o Verbo:
“Praeclarissimum lumen praedestinationis et gratie ipse Salvator” (De praed.
sanct. 15, 30; cf. De Trin. XIII, 17, 22; XV, 19, 34; 26, 46; De pecc. mer. et
rem. II, 17, 27; De civ. Dei X, 29, 1; Ench. 10, 34 – 12, 41; De corr. et
grat. 11, 30; Op. imp. IV, 84-89).
FONTE:
Literatura patrística / sob a direção de Angelo di Bernardino, Giorgio Fedalto,
Manlio Simonetti; [tradução José Joaquim Sobral]. São Paulo: Editora Ave-
Maria, 2010. pp. 837 – 851.

PARA CITAR

BERNARDINO, A; FEDALTO, G; SIMONETTI, M (Orgs.). As doutrinas da


graça e do livre-arbítrio em Santo Agostinho. Disponível em:
<http://apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-
patristicos/840-a-doutrina-da-graca-e-do-livre-arbitrio-em-santo-agostinho>.
Desde: 15/12/2015.

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