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Ficha Técnica

Título original: GÉMEOS


Autor: Mário Cláudio
Design de capa: Atelier Henrique Cayatte
Revisão: Filipe Rodrigues
ISBN: 9789722044516
Publicações Dom Quixote
[Uma chancela do grupo Leya]
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© 2003, Mário Cláudio e Publicações Dom Quixote
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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A José Rodrigues

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What is essential is lived in
the present, objects in the past.

Martin Buber

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Estava ele pois naquele Verão encalhado na cidade peninsular, a fim de
empreender, munido de um problemático subsídio de estudos, uma certa
indagação sobre a fase última do pintor. Desde há anos que um arraigado
enamoramento, alimentado pelas renascenças a que as várias vanguardas
sujeitavam o trabalho dos anos terminais do artista, lhe fora tornando fatal
a decisão de uma permanência. Ali se achava ele então na hospedaria que
ocupava o piso mais alto de um prédio do centro, tentando habituar-se às
penumbras que transformavam a hora da sesta num corredor difícil de
percorrer. E interrompia-lhe de tempos a tempos aquele torpor a sacudida
paragem do ascensor ronceiro, o qual como que soltava o suspiro de um
animal nos limites da exaustão, condenado à mais implacável das
servidões. Na saleta, tendo relanceado o olhar pelo periódico da véspera,
abismava-se o recepcionista, um reformado de cabelo tão luzidio como a
carapaça de um besouro, num tédio de que só o telefone o despertava,
tocando num tinido imperceptível, e três vezes por dia. E nos apartamentos
em volta poderia jurar o mais escrupuloso que giravam as ventoinhas
empoeiradas, pondo a esvoaçar numa das suas rotações a roupa ligeira,
pendurada no cabide. Quase do outro lado da via, imperando no gabinete
onde o aparelho de ar condicionado emitia um murmúrio de discreta
satisfação, esperava-o o director do Museu, um cavalheiro fininho, de mãos
que se diriam amaciadas em talco, folheando os seus vastos volumes de
referência. Oferecia-lhe um café ignóbil, estudava-lhe com o olhar os
propósitos, perguntava sem um sorriso de que modo poderia ser-lhe útil. E
ele entregava-lhe as fichas que o acompanhavam, quadriláteros de
amarelada cartolina onde grafara títulos consabidos, «A Procissão», «A
Tomada», «O Manicómio». Acontecia porém que em torno um outro reino
se lhe descerrava, tocado por uma particular curiosidade livresca, lojas
sobreviventes do pífio comércio que cedera lugar às grandes superfícies, e
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que propunham ainda aos turistas a lindeza dos mantons de Manilla,
pretérito revestimento dos pianos de bordel sumptuoso, os leques onde se
representavam cenas do baile de tablado, reinvindicados pelas pré-
adolescentes como primeiro sinal do acesso às funções da feminilidade.
Nos bares mais reclamados, sobreviventes resíduos da época que terminara
pelo triunfo das alpercatas que calçavam os mais pobres dos pobres,
haviam-se acotovelado os correspondentes da guerra civil, redigindo um
linguado de frases curtas, a anteceder a queda na borracheira de caixão à
cova. E saíam estas personagens para que ingressassem os actores e as
actrizes da década de cinquenta, gente que entretinha com a sociedade dos
toureiros uma convivência de sinuosa sensualidade. Desciam ainda ao
princípio da tarde os casais da classe média, geralmente formando a
quadriga em que seguiam à frente as mulheres, vigiadas pelos respectivos
consortes, varonilmente destacados. E só mais tarde pisavam garbosamente
o passeio os travestis desconformes, deslocando-se como um altar
rematado pelo pente e pela mantilha.

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Chegámos com as três azémolas e as duas carripanas que transportavam
o resto dos trastes. Eram cinco e quarenta, e a tarde refrescara um pouco.
Mas eu continuava a ouvir, ou julgava continuar a ouvir, a zoeira dos
moscardos à roda da minha cabeça. Dona Leocadia apeou-se da cadeirinha,
e logo disparou a soltar ordens por aqui e por além com essa vontade de
quem se assegura de uma disciplina hipotética no meio de um caos de
árdua penetração. E recordo-me de ver uma das mulas, desajoujada enfim
dos seus fardos, lançar um zurro soluçado de triunfo, pondo-se depois a
urinar interminável e pacientemente.

Eu deparava-me mais moído do que o que previra, havendo optado por


uma égua contra os conselhos dos íntimos. Não se me afigurava correcto
que se apropriasse um homem da sua nova quinta, encafuado numa sege,
semelhante a um burguês que descesse a comprar queijos para o almoço
dominical. Queria sentir-me apesar da idade o terratenente que nunca fora,
circunscrevendo com a mirada a área alcançável da sua propriedade,
percorrendo-a a seguir, se lhe desse na veneta, a revolver torrões e
cascalhos com a altanaria dos que fazem o que lhes apetece do chão que
vão pisando. Mas fora-me fatal para as hemorróides a longa tirada. O
balanço da égua que se me antolhara sinal de gentileza na marcha
convertera-se-me na encarniçada maceração das misérias de que padecia, e
ansiava apenas pelo semicúpio de água salgada, a aliviar-me da
sanguinolenta ardência que me ia humedecendo os fundilhos das calças de
briche. Esforçava-me todavia por inculcar nos acompanhantes a ideia de
que me achava inteiramente senhor da situação. Nada existe que mais nos
roube o respeito dos comuns do que as mazelas que grassam abaixo da
cintura e acima dos joelhos, nem nada que nos torne a nossos próprios
olhos mais rebeldes a sofrer a piedade dos irmãos.

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Pedi por isso que me segurassem a arreata, e plantei-me no solo com
uma prestança que a mim mesmo não deixou de surpreender. Ali estava o
velho pois à frente do seu destino. Sacudi com o pingalim o pó de casaca,
clamei pelo chapéu alto, e dispus-me a tomar posse da Quinta. A luz
daquele Fevereiro invulgarmente quente adquirira o terreno um amarelo
sáfaro que não se me volvia especialmente antipático, amarelo a que os
vulgares chamariam «pardo», e a que aplicariam os de maior exigência o
adjectivo de «lamacento». «Cor de barrocal» aparecia-me como a
designação certeira, insusceptível de se confundir com outras tonalidades,
indesgarrável da região a que definitivamente pertence como marca
primeira da paisagem. Tratava-se de todo o modo de matiz com que me
familiarizara já, e quando o jardineiro Simón se abeirou, amparando-me
com esse gesto de servil solicitude que sempre provoca em mim algum
embaraço, só encontrei isto para lhe dizer, «Os que vinham à romaria
largavam estas paragens juncadas de ossos de borrego e de cascas de
melão, e não faltavam ligas amarfanhadas, nem lenços emporcalhados,
restos dos que se tinham entregue à grandessíssima desvergonha.»

Fiquei depois a contemplar o panorama da Cidade, reservando para outra


ocasião o ingresso na casa, momento que haveria de ser para mim, mas só
para mim, de singular solenidade. Pretendia observar entretanto o rio
nervoso e faminto que me separava da Capital, o aglomerado que se
garantiria coberto por um pó, através do qual se autorizava o vislumbre à
transparência de um certo ouro tímido, o céu constantemente sobrevoado
por milhafres, a proclamar a crueza dos humanos que vegetavam à sombra
das suas asas. E à esquerda, e no palácio de infinitas colunatas, sentar-se-ia
El-Rei na sua bergère favorita, agasalhados os pés numas pantufas
esburacadas, a fumar pelo longo cachimbo de fornilho de porcelana o
melhor tabaco que procedia das Índias.

Avancei para a casa, reparando em Dona Leocadia afadigadíssima, a


cirandar nas proximidades do poço por entre um relógio de parede, uma
arca e dois colchões. E fui-me lentamente aproximando do jardim que
principiava a ganhar feição, nobilitado pelo espelho de água com a fonte de
repuxo. Tinham escancarado as gelosias, o que conferia ao edifício algo de
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navio que desarvoradamente singrasse a caminho do mar. Mas nem então
me iludia eu sobre aquele passo decisivo da minha avançada vida. Que
significa de facto a morada a que nos habituamos, meus senhores, senão o
ataúde que nos há-de guardar? Um ventinho agudo retalhava-me o
pescoço. Penetrei nas quadras de baixo, já não com o arraganho do dono,
mas com o temor do eterno aprendiz. E juro que nunca como então
experimentei silêncio tão duro.

Dona Leocadia mandara espalhar luminárias pelas várias câmaras. E


para que a tal viração do fim da tarde, oriunda da meseta escalavrada, não
extinguisse as chamas, haviam começado os criados a fechar as vidraças. A
mulher cirandava por aqui e por ali, não parecendo atribuir-me uma precisa
atenção, arvorando aquele agastamento, mais fingido do que real, que
reputava de inseparável da eficiência dos seus ofícios. Reclamava uma
peça de mobiliário, deixada lá fora ao relento, determinava que se batesse
um tapete e se acendesse uma lareira, ordenava que se fizessem as camas,
perdidas na vastidão dos aposentos, como cavalos na planície, com
específicos lençóis que ninguém alcançava desencantar.

Eu ia percorrendo as divisões, e o meu vulto punha-se a projectar nas


paredes a silhueta de um enorme bobalhão, desses quase redondos e de
cabeça de abóbora onde fosse talhado um sorriso de orelha a orelha,
capazes de revolver à gargalhada uma inteira romaria. Inventava para ele
verdadeiros disparates, que pendurava das castanholas que tangia um par
de rostos de bruxas descabeladas, que assarapantava um avarento que
transportasse o próprio cadáver amortalhado, que comeria e beberia até lhe
tocar com o dedo, tornando-se necessário, a fim de o salvar da morte certa
e segura, introduzir-lhe ancha colher de pau pelas goelas abaixo,
conduzindo-o a que vomitasse uma vaza de salpicões e de vinho carrascão.

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Dona Leocadia desaparecia por instantes, ressurgia depois, acarretando
uma burra de pinho, presumindo de inculcar dessa forma um código de
bom governo doméstico. E a criadagem que lhe obedecia afectava uma
distracção perante os exemplos que a senhora lhe apontava, consciente de
que bem maior seria a pregação de São Tomás do que as obras em que a
sua santidade se exprimia. Eu procurava não interferir, indiferente à lufa-
lufa em torno de mim, desse modo sublinhando uma condição de único e
indisputável dono de quanto nos cercava. A Quinta fora comprada com o
meu dinheiro, vinte e seis hectares de terreno, moradia de duas águas, poço
e álamos, um jardim que haveria de se desenvolver, só a mim cabendo
estabelecer a sorte do que adquirira à minha custa exclusiva.

Penetrava nas estâncias de cima, noute cerrada, e dava com aquilo que
tanto me divertia, o toucador de Dona Leocadia, convencida ainda de que
dos requintes com que se pintava haveria de lhe resultar algum acréscimo
do interesse que lhe fosse eu dedicando. Era uma bancazinha estreita diante
de um espelho de moldura dourada, bem mais próprio para reflectir a
imagem de uma infanta de sedas, e um sortido de caixas de pó-de-arroz, de
boiões de kohle, de caixinhas de carmim, tudo por entre lápis inúmeros
para traçar o risco das sobrancelhas. Em que espécie de monstro
pretenderia transformar-se aquela criatura, esquecida de que não existe
avantesma que sobressalte o sono de um velho? Assim como assim sentar-
se-ia ela nos tempos a vir, afeiçoando uma touca à testa, mirada pela
rapariga que lhe acudisse como aia, tão muda esta como surdo sou eu, tão
intrigada como toda a juventude com a insistência dos que envelhecem a
quererem passar por moços.

Avançando para a alcova que eu próprio me destinara, lá topava com a


camisa e o barrete, embrulhados na botijinha de grés, e ao lado do leito
com a tina para o semicúpio amenizador das hemorróides. «O que arde
cura, e o que aperta segura», estatuiria Dona Leocadia, se a contemplasse
eu com o prazer de lhe consentir que assistisse ao banho de assento. E
despia-me lentamente no silêncio imensíssimo, pressentindo apenas que se
ia acalmando a lida daquela jornada difícil, imaginando que escarvariam os
cascos das alimárias no areão do pátio, de focinho metido no saco da
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forragem remuneradora, e de que se cobriria de estrelas o céu, anunciando
um belo dia seguinte.

E com infinitas cautelas, obstinando-se em crer na ingenuidade que o


Mundo ignora, lá se aproximaria Dona Leocadia, de trémula palmatória de
prata e de vela atiçada na mão, à procura do quente onde se julgava
esperada. Comunicando-se-me ao corpo deitado os estremeções do sobrado
que ela pisava, tossi para que se orientasse na meia escuridão, soergui-me
um pouco, e escarrei no penico à direita, voltando logo a inserir-me nas
mantas. Pelo termo daquela claridade que me atravessava as pálpebras
corridas apercebi-me de que havia assoprado a minha companheira a
chamazinha que a alumiava. E sereno por saber que nem miado de gato em
cio invernal, nem pio de mocho de mau agouro me perturbaria o descanso,
condescendi em que tentasse Dona Leocadia aquecer-me os pés de velhote
com seus pobres cepos descarnados.

Só de manhazinha me apercebi de que dormira Rosarito debaixo do


mesmo tecto. Ali estava a pequena à beira da minha cama, agarrada a uma
das suas monas de estimação, abrindo para mim os olhos azuis, primeiro
elemento em que se repara naquele rosto que as matronas enternecidas
garantem que «parece pintado em porcelana». E movendo perfeitamente os
lábios, de modo a que a entendesse o velho mouco a quem continuava a
chamar «tio», apressava-se ela a declarar ao que vinha, «Levanta-te lá,
vamos passear.» Impenitente madrugadora, já a mãe Leocadia a lavara,
refrescando-a com um borrifo de perfume, despachando-a para que
enxotasse o dorminhoco em que com os anos me andava a converter. E
adiantava-se a miúda a trazer-me o gorro de seda que por esse tempo eu
principiara a usar, esforçando-se por mo enterrar na cabeça, a fim de que
me dispusesse a sair.

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Rosarito ia crescendo dia a dia dentro de mim, apagava-me algumas
nuvens da memória, iluminava-me os pensamentos do giro matinal. Achá-
la-iam alguns demasiado viva, adivinhando na sua natureza uma garridice
futura, imprópria de mulher que quisesse ver-se respeitada. Muito
perguntona, mas sempre desatenta das respostas com que procurávamos
satisfazer-lhe a incessante curiosidade, revelava-se ela prontíssima a imitar
os adultos. E ora manifestava opinião sobre a graça de um corpete de
veludo que calhasse de avistar na filha de um notário, ora se botava a
abanar um leque com os requebros que supunha serem da mais alta
elegância.

Quantas e quantas vezes assistia eu, quase divertido, à irritação de Dona


Leocadia perante os ademanes da rapariguita, menos apreensiva com o
descomando do comportamento moral que os mesmos anunciavam do que
ciumenta da rendida atenção que eu não resistia a prestar-lhe. A mãe
puxava-a por um braço, ordenava-lhe desabridamente que se pusesse
quieta, desatava-lhe as fitas de seda que lhe ornamentavam o cabelo, e
atirava-se a penteá-la com um destempero em que não se mostrava difícil
dis cernir a intenção de lhe repuxar as madeixas eriçadas. A pobre
choramingava, dirigia-me no olhar um pedido de socorro, escapava-se
enfim, a correr, arrastando uma das tais bonecas. «Está perra como nunca
esta menina», desabafava Dona Leocadia sem que eu a escutasse, mas
conjecturando o que diria, «e a culpa é sua, Dom Francisco, que a
apaparica excessivamente, e não se preocupa nada em corrigi-la.»

Acalmara-se contudo a agitação da véspera, e ouviria quem ouvisse o


marulho da fonte do terreiro, jorrando do repuxo com o anjinho de pedra.
Dona Leocadia afastara-se no afã de não conceder um minuto de descanso
à criadagem, reaproximara-se Rosarito, atrelada sempre à sua mona
comparsa. «Se quer passear comigo», impus eu, «vá buscar outros sapatos
que estão os atalhos cobertos de lama, e a sua mamã não consente que
estrague esses que são novos e de cetim.» E a garota retrocedeu, regressou
com as botitas de carneira, pegou-me na mão, e deitámo-nos a caminho. De
início absteve-se de falar, muito achegada à mona, cuidando de ir
colocando os pés onde deveria, demasiado senhoril para o que era seu
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costume. Mas ao cabo de uns duzentos metros parou de chofre, e olhando-
me fixamente para que lhe decifrasse a fala, articulou isto, «O meu papá
que morreu não era velhote como tu».

Preferi não lhe ripostar, e à semelhança do que haveria de se tornar


tradição ia eu designando com a ponta da bengala o que admitia ser digno
de lhe merecer o interesse, uma lesma brilhante, um cogumelo mumificado,
um pedaço de quartzo puro. Mas não cessava de pensar na certeira frase
que se lhe soltara da boca. Ali seguia com a filha que nunca tivera, vivendo
por ela uma meninice que se me volvia espantosamente actual, bebendo a
existência começada pelo mesmo copo em que esgotara as borras da que
consumira. Rosarito distraíra-se entretanto com outras invenções. Entoaria
talvez esta cantilena que lhe ensinara uma dessas moças que passaritam
pela cozinha, e que lhe contavam cousas que ela ainda não compreendia,
levadas pela sagaz luxúria de desencadear confusões caseiras. «El pelele
está maio. / Qué le daremos? / Agua de caracoles / Que cria cuernos»,
estava eu seguro de que seria isto o que trauteava. E enchia-me semelhante
toada de um grande fastio, de uma ânsia absoluta de ficar só. Afigurando-
se-me então que tanto podia encantar-se-me a velhice com a infância como
ganhar-lhe o mais insuportável dos ódios, encontrei-me a disparatar com
isto, «Vamos embora, Dona Rosarito, está frio, doem-me os joelhos, sinto-
me cansado, cabrões que ainda não percebestes aquilo que tenho para vos
transmitir!»

Nada como o medo, o apaixonante medo, para espicaçar a invenção de


uma criança. Conte-se-lhe uma boa história de bruxas, e tê-la-emos
suspensa das suas brincadeiras, imóvel num temor gelado e quente.
Rosarito deu de caras com aquela enorme feiticeira, ao entrar-me pela
oficina ainda não inteiramente instalada na Quinta. A megera pontificava
no centro de uma velha tela, presidindo a um sabbath invernal. Dois
morcegos esvoaçantes erguiam-lhe nos ares o manto da cabeça, ela

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descerrava a boca de dentes ralos, projectava em volta os tições das pupilas
circundadas por viciosas olheiras, e espetava uma agulha fininha no
costado de um recém-nascido nu. A pequena ficou conquistada pelo que
depois lhe narrei, e que não ouso levar ao conhecimento de adulto algum.

A partir daí principiou Rosarito a esgueirar-se, sempre que apanhava a


porta entreaberta, para os dentros da oficina. Trazia do campo objectos
variadíssimos, folhas de álamo e seixinhos da beira-rio, a pele seca de uma
toupeira, o botão da farda de um soldado da guerra dos franceses. E eu
fingia de início não reparar em tais cousas, hesitando entre considerá-las
como dádiva silenciosa com que me quisesse contemplar e como
misterioso património que andasse ela entesourando. Pedia-lhe que se
sentasse, sossegadita no seu bibe, metia-lhe nas mãos um livro de
estampas. E enquanto se botava a fantasiar contarelos para a audiência de
um par de garotos boçais que seguira no seu encalço, punha-me eu a fazer
deslizar aquele gordo crayon numa laje de pedra, sombra aqui, claridade
além, espessura e transparência, juventude a romper, cercania da morte.
Inteirava-se Rosarito aos poucos daquilo que eu necessitava dela,
parecendo prestar-se com paciência, e até com certo orgulho, à função que
lhe fora confiada.

Mas não há como manter quieta por tempo bastante uma ganapa mexida
e cheia de sol. A breve trecho explorava-me os recessos da oficina, fardos
que haviam sido empilhados há anos, armações de madeira que a humidade
se votava a desconjuntar, pastas de papéis a esmo que o bolor ia picando.
Cedo começavam todavia a atraí-la outros encantamentos, os fólios que eu
mergulhava em aguarrás até se tornarem transparentes, a fuligem que
mandava retirar do topo das chaminés, os nomes que lhe ensinava para as
tintas que então me absorviam, «terra húmida», «giz encardido», «azeitona
esmagada». E Rosarito aninhava-se com os seus seixos no regaço, lavava-
os com um pano molhado, entretinha-se a desenhar neles o que lhe vinha à
ideia, e que eu me dispensava de fiscalizar.

Que segredos da sua arte poderá comunicar um antigo aos que reputar de
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dignos de os receber? Que os aprendam os que forem chegando, tão
pomposos que se apresentam em sua sabedoria por comprovar, tão seguros
de ter descoberto a definitiva lição! Eu queria que a pequena se enganasse
no seu contorno, me pedisse ajuda no percurso dos dedos ineptos que
seguravam a mina, se domasse pelo pranto que haveria de transformar o
trabalho num grande e visível borrão. Mas ela teimava em não recorrer aos
meus préstimos. Deitava a língua de fora, traçava uma horizontal com
aquela aferrada concentração que empresta aos incipientes a expressão de
uma força igual à dos que se preparam para matar um boi. «Não, minha
filha», pensava eu, «assim nunca mais.»

E a meio da manhã acontecia assaltar-me uma soneira impossível.


Atrasava-se-me o pincel na amplidão de uma superfície, convertia-se-me o
buril num peso difícil de suportar. Acomodava-me então no fauteil que a
Duquesa me oferecera numa Quinta-Feira de Ascensão, e rapidamente
transitava para o outro lado. Estava aí Rosarito, mas não era ela mesma,
antes um catraio mal-amanhado, arvorando um buço quase animalesco,
exigindo do velhote que persistia em dormitar que o acompanhasse pelo
futuro. Ocupava-se o ancião em arrastá-lo por uns arreios que prendia ao
próprio dorso, o miúdo berrava numa perrice que não tinha fim. E eu
despertava num estremeção de pânico, afigurava-se-me tudo aquilo um
episódio há muito esquecido, procurava com o olhar fosco o paradeiro de
Rosarito.

Deparava-se-me a menina diante do esboço de uma corja infernal que


uivava enquanto a ia transportando pelos céus, e sobre as espáduas aladas,
um trasgo animado das piores intenções. Aparecia-me ela completamente
branca, revestida de alto a baixo de uma farinha que se lhe acumulava em
papa na comissura dos lábios, brandindo a chave dourada do Paraíso onde
eu jamais penetraria. E escancarando olhos de morta que de supetão
ressuscitasse, lançava-se a discursar, e de modo a que a compreendesse
pelo movimento dos lábios, «Bons dias, Dom Francisco, os rins já
funcionam?, e o catarro soltou-se?, e ainda lhe dói o joanete?, e o seu cu,
Dom Francisco, arde-lhe hoje como deve arder o cu dos macacos?, será
que não lhe serviram o purgante, Dom Francisco?»
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Ele percorria as quadras da nova casa, e o frio da serra mordia-lhe os
ossos emperrados. Assustavam-no as paredes nuas, alternando com a órbita
esvaziada das janelas que davam para a paisagem de galhos desfocados,
dos quais a chuva não parava de pingar. E revolviam-se-lhe os fígados
numa angústia torpe, homem sem destino, acossado pelos vigilantes de
capuz que não desistiam de o perseguir. Gelados os pés, não havia agasalho
que afastasse o desconforto, nem braseiro de Dona Leocadia que não lhe
agravasse a tosse em que se desarticulava.

E remexia na ideia o caldeirão das substâncias que esconjurassem os


espíritos maus, óleos pastosos sobre os estuques, amplos volumes
entenebrados, uma nuvem de sinistros visitantes. Não tardaria a que se
deitasse a confeccionar as poderosas tintas, todo um Inverno de pigmentos
surrados, de trapos e de carvões, de asfixias e de adormecimentos, de
mastodontes que na noute se esboçavam, mas que iam permanecendo,
comparsas em quem tropeçava, que o levavam de rastos para o seio dessas
broncas chusmas a que pertenciam.

Pensava no frade que vinha tocar à sineta da Quinta, que trazia ramos de
silvas colados às barbas brancas e ao hábito de burel em farrapos. Saíra
com o criado das ruínas do convento que as tropas haviam destruído, e
revelava-se o acompanhante um gebo amulatado, atirando-se a quantas
malgas de vinho pudesse escorropichar. E ficara o velhote com os tímpanos
estourados, tão à beira que de propósito o havia colocado a soldadesca de
um canhão, gritando-lhe que iria ouvir enfim, e alto e bom som, a voz do
Omnipotente. E foram entretanto crescendo as orelhas do servo que não o
largava, e que insistia em lhe bradar este discurso imparável rente à cabeça,
«Anda-me para a frente, meu grande néscio, não metas as patas no lodo,
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não tens fome, nem sede?, queres cagar, meu porcalhão?, não te atrases,
olha a borrasca que aí vem, firma-te nas pernas preguiçosas, meu fingido,
toca a andar!»

Apegado à bengala, não ousava o velho retirar dela, a fim de se coçar


das pulgas e dos piolhos que o atenazavam, as manápulas encordoadas. E
apenas de longe a longe expectorava um ganidozinho, esquecido da própria
fala, procurando acertar o olhar remeloso ao triste caminho que ia
calcorreando, barrancos onde se precipitavam grossos os regatos, pátios de
quinta onde ladravam os cães, veredas que se torciam por entre sebes de
espinheiros. E o criado resfolegava, exausto da verborreia que não
conseguia interromper.

Outro tolo entrava na cozinha, colhia um carapau cru, e punha-se a


comê-lo, sentado junto às brasas, arrotando no bem-estar em que se
instalava. E descia as calças ajustadas por um cordel, e levantava a camisa
surrada, e começava devagarinho a aliviar-se com a mão. Bisbilhotavam no
escuro as mulheres, afoitavam-se a acercar-se lentamente dele, virava-se o
trengo, piscava-lhes o olho de rato, continuava a rir, a rir, e a aliviar-se, a
aliviar-se com a mão. E debruçava-se a maior das duas, rosnando
brejeiramente, «Deixa lá ver, deixa lá ver», e aplicava uma cotovelada de
entendimento nas mamas da outra, e comprimia esta os beiços que
ressumavam a saliva do cio.

Escorregava a camisa enxovalhada do tolo, e acelerava ele o andamento,


rindo sempre, e já não continham as fêmeas as gargalhadas. E eis que ia
descaindo o paspalhão do seu assento de pinho, e crispava-se-lhe no rosto o
riso parvo, e resvalava para o chão de terra da cozinha, e rebolava-se à toa.
Incapazes de se aguentar, rompiam as curiosas a bater palmas. E
regressavam ao seu ofício de depenar uma galinha negra, e aquietava-se o
que se saciara, arfando por um instante, e terminava por ali mesmo dormir.

Por cima da porta da sala de baixo ia principiando uma velhota a comer


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a açorda. Vetusta leprosa, ameaçavam as falangetas cair-lhe dentro do
prato da ceia, mas nem assim o apetite se lhe extinguia. Chegava a comida
à bocarra, e à força das colheradas de pau soltavam-se-lhe das gengivas os
últimos dentes, pregos que se despegassem da madeira carunchosa, e
engolia-os a bruxa com a paparoca que lhe sustentava as cartilagens moles,
e ainda não ingurgitara tudo logo reclamava mais, e mais, e mais. E à luz
da vela que a alumiava ia-se-lhe formando a carantonha com que a
despachariam no caixão.

Muito sorrateiro, fazendo deslizar o tronco sem pernas, adossara-se a ela


um miserável decrépito. E implorava o direito de rapar o fundo, e babava-
se nisso, e era um velho como eu que não determinasse as horas que lhe
convinham. A comilona enxotava-o, afectava não o perceber, mastigava
ruidosamente, a desesperá-lo de inveja, mas já não sobrava na vasilha sinal
de comida alguma.

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Rosarito ia crescendo com os ademanes que a transformavam em uma
apreensão mais diante da minha vista cansada. Escapando-se-me à
vigilância, iludindo a mãe com uma obediência fictícia, entregava-se à
expansão dos sentidos que se lhe adivinhavam pelos meneios de criança
obstinada no cumprimento da própria vontade. E não se lhe tornando
declarada a rebeldia, a verdade é que se lhe ia denunciando ela no trejeito
da boca, na agitação dos dedos, na demora com que deixava cair as
pálpebras de pestanas longas. Eu sentia-me crucificado em semelhantes
desmandos, impotente para lhes dar cobro, fascinado pela observação que
empreendia. E se lhe recomendava, «Acalma-te aqui, Rosa-rito, folheia
este álbum tão lindo, são as Fábulas, de La Fontaine, olha os bichos,
estuda-lhes as matreirices, desenha-lhes a figura», aproveitava ela por um
instante a sugestão, mas eis que logo se suspendia, e desenvencilhava-se
das meias de renda, e expunha os pés ao sol, e estirava-se com o orvalhinho
de suor que lhe perlava a fronte.

De sociedade com os gatos da Quinta, os quais abundavam em


quadrilhas de autênticos salteadores, descendentes desses pretéritos linces
da meseta que costumavam atacar os rebanhos, girava a pequena numa
perpétua campanha de expectativa e de ardil. Dirigia os seus comparsas
felinos pelos carreiros que desembocavam no rio, auxiliava-os na
depredação das ratazanas que grassavam nos arbustos da margem, trazia-
lhes à gula os pássaros que apanhava nas armadilhas de visco. E se o
cansaço a acometia, deitava-se Rosarito à sombra de um olival, e
amochavam à sua volta os cúmplices de pêlo gorduroso, lambendo as patas
do festim recente, cerrando os olhos numa invencível soneira.

Criara ela entretanto uma corte de rapazes que acediam aos seus
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constantes caprichos. Tratava-se de meninos que iam medrando em torno
dos almocreves e das cozinheiras, órfãos quase todos, servindo de moços
de recado e de estrebaria, e a quem bastava um prato de feijão com
toucinho, ou um pedaço de enxerga à beira do lume, para que inteiramente
se considerassem contentes. E arquitectavam brincadeiras impagáveis,
afeiçoando engenhos de pau que lançavam a rodar numa correria, tangendo
instrumentos diabólicos da sua pura magicação. Seguiam-na por toda a
banda, apanhavam para ela as camarinhas com que topassem na beira dos
caminhos, desenvencilhando-a das ortigas que se lhe apegassem às vestes.
Rosa-rito comandava-os com autoridade militar, recompensava-os com o
privilégio da sua confiança, ou castigava-os com o ostracismo a que os
arremessava.

Chamava-se um deles Belchior, e conquistara lugar cimeiro no coração


da pequena. Filho de uma rameira que se dizia frequentada pelos noviços
de um convento dominicano, e de um artilheiro que abalara sem deixar
rasto, mostrava-se o ganapo particularmente adestrado para a caça à fisga, e
para artes que com semelhante engenho se relacionassem. Escoltava por
isso a catraia nas missões consideradas difíceis, as quais incluíam o
estrangulamento de uma fuinha ou o esmagamento de um lacrau, e eu
odiava-o por perceber que o mafarrico sabia de mais. Punha-se ele por isso
a mirar-me com uma insistência desafiadora, movia os beiços morenos de
forma a não ser compreendido por mim, e tombava-lhe na testa a madeixa
lisa, entenebrecendo-lhe o olhar de tão sinistra maneira que não raro me
fazia estremecer.

A partir de muito cedo principiara Rosarito a atrasar-se na atenção dos


vendedores ambulantes, e cristalizava-se a expressão destes num sorriso
que se quedava entre o pacóvio e o suspeitoso. Derivava disto a miúda
enorme comprazimento, puxava acima a cintura de modo a que
ressaltassem as mamitas que se lhe iam desenvolvendo. E saltitava com
essa traquinice de garotinha que conforma seguro sinal de que se empenha
desde já a inventiva mulheril em imprudentes especulações. Não podia eu
senão irritar-me perante tais quadros. Ia buscá-la por um braço, tocava-a
para casa, e espantava-se Dona Leocadia do meu agastamento, cominando-
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me de intolerante, de incapaz de aceitar as frescuras infantis.

Um dia resolvi espiar-lhe as passadas. Avistava-a de longe, a deslocar-se


por aquela estradinha conducente à cisterna que afirmavam alguns ser do
tempo dos mouros. Apajada pelo seu Belchior, afigurava-se possuir
Rosarito claríssima ideia do objecto do seu passeio, cumprindo uma
obrigação que conscientemente a si mesma impusera. Nada desses andares
em ziguezague, ou desses desatinados pinchos, atitudes que não falham de
acusar o desnorte infantil. Ao termo do percurso, e numa área arenosa da
ribeira, esperavam-na uns três homens. Vestiam dois deles com o donaire
chulo dos que não acertam no preenchimento do seu ócio, e apresentava-se
o outro modestamente arreado, ocupando-se dos aprestos dos cavalos, o
que lhe inculcava a pertinência às classes servis.

Destacou-se um dos machos, meteu na mão de Belchior o que me


pareceu uma saca de moedas, apartou-se com a garota para as cercanias de
um canavial. E agora ouçam o que vos conto porque nunca mais o
repetirei. Enquanto se enfiava Rosa-rito, apanhando as saias, pelos dentros
do maciço de canas, e o coração me batia no peito como nem sequer me
sucedera diante dos fuzilamentos de Maio, deteve-se o elegante, afastou as
pernas, desceu a parte da frente das calças, e botou-se a mijar. Do sítio
onde estava, fosse eu válido, escutaria o jorro daquele arrenegado, o
restolho que produzia a minha menina, libertando-se do traje com abelhas
de ouro que pela Páscoa eu lhe oferecera.

As noutes abismavam-se em pesadelos de que eu não possuía a chave, e


atravessava-os uma menininha com as faces tingidas de carmim,
arregaçando a camisa até ao alto das coxas. Seguia-lhe no encalço um
papagaio em voos rasantes, a falar nestes termos por ela do que a
consumia, «Quem me engomou o saiote que não o quero assim?, tragam-

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me os pós, desenredem-me os cabelos, grande cabra!» Sentava-me depois
na cama, e um mareio atirava com o quarto a navegar num oceano
tempestuoso, e rasgava-me um apito feroz o que me sobrava dos ouvidos.
Doía-me que dormisse tranquilamente na sua alcova Rosarito, autora de
tantos padecimentos, e reparava em Dona Leocadia, agarrada a um sono
babado, fechada à inteligência daquilo que tamanho sofrimento causava em
mim.

Confinara eu então a pequena ao trabalho, e obrigava-a a desenhar a


eterna cabeça de Octavia. Rosarito amuava, fazia deslizar o giz negro pela
superfície do caderno, interrompendo-se a cada instante para aquecer com
o próprio bafo os dedos comidos pelas frieiras. E eu mirava-a por cima das
lentes, sorria da austeridade com que a molestava, e que ela afinal
reconhecia, prometia a mim mesmo a adopção de brandura maior numa
segunda oportunidade. Que pode porém um velho diante da juventude que
desabrocha? Revolvia o passado, e apenas desenterrava cuidados,
concursos de que deveria sair vitorioso, retratos que se impunha concluir
dentro do prazo, mulheres que se me entregavam, mas a quem era
necessário conferir a vénia exigida pelo estatuto a que pertenciam.

Aconteceria então numa tarde o que de novo me iria precipitar na mais


negra das amarguras. Deixara-me adormecer no torpor em que me lançava
a contemplação das tonalidades espessas que me fascinavam, descuidando-
me de espiar as estratégias da minha querida cativa, e ao erguer as
pálpebras, despertado por um moscardo que se botara a zumbir-me em
torno, dei com ela inteiramente imóvel. No espelho convexo que a garota
suspendera um pouco acima do cavalete, e que afirmava aproveitar-lhe
para reflectir a luz do pátio, projectava-se a completa figura do macho que
eu avistara no canavial da beira-rio. Plantava-se ele como se ali se achasse
há tempos infinitos, de costas para nós, sempre de pernas abertas. E
desvanecia-se Rosarito num riso desbocado, mas silencioso, patentemente
esquecida de mim.

Alcei-me o bastante para cobrir com o corpo estremunhado a janela


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donde resultava quejanda relaxação. E a miúda estremeceu, e retomou o
contorno da cabeleira de Octavia. Não tive pulso em mim então que não a
arrancasse do banco, a sacudisse pelos ombros, lhe aplicasse as bofetadas,
menos da força que da intenção, em que se me desoprimia a alma. E não
era nela, mas em mim mesmo, que se desatavam as lágrimas, nem dela,
mas de mim mesmo, que se escapava este pranto, «Ai, Virgem do Pilar,
ajuda-me que perdi a razão!» Abateu-se Rosarito, semelhante a um
espantalho desengonçado. E retornei lentamente, ofegando como um perro,
ao cadeirão da sesta.

Atraída por uma estranha adivinhação, entrou de imediato Dona


Leocadia pela oficina. Mostrava mais pálido do que nunca o rosto debaixo
da touca branca. Nada inquiriu, nada declarou. Vi-a dirigir-se ao lugar da
filha, observar o desenho iniciado da cabeça de Octavia, descer para
Rosarito, a qual mantinha o rosto escondido nas mãos, a expressão que
hesitava entre o ódio e o pânico. E só após isto me enfrentaria aquela fúria
impávida, especada entre as telas como um inquisidor-mor, franzindo os
olhinhos de cavilosa fêmea, orientada pelas leis que presidem ao espírito
das cousas. Mexendo os beiços, articulou com vagar adequado a tornar-se
perfeitamente entendida, esta frase inspirada por antigos dissabores, «Não
foi apenas do siso que o senhor se despediu, foi da vergonha também,
única virtude que lhe restava.»

Decorreram duas semanas, prossegui nos empastes daquele Saturno que


me assombrava os dias. Ampliava-se o velho, louco como nunca, por
dentro de mim e para além do meu inferno. Mas não tirava a ideia de
Rosarito, nem dos passeios que os aguaceiros de resto não permitiam.
Arredada da minha presença, andaria a miúda por certo magicando outras
empresas, estabelecendo com as sabidas cozinheiras da casa confabulações
em que se principiava a dissertar sobre os mistérios menstruais. E eu
dilacerava-me de saudade, incapaz de descansar na horazinha da sesta.

A próxima vez que a enxerguei foi já às portas da Quaresma, quando os


narcisos bravos rebentavam pelos interstícios do empedrado dos carreiros
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do jardim. Encostada ao murinho do espelho de água, agitava ela um leque
que eu lhe oferecera como prenda pelos seus sete anos de idade. Tratava-se
de uma dessas brincadeiras gentis a que me devotara na época em que
começava a fatigar-me de produzir cartões para tapetes. Na folha de bom
papel, suportada por palhetas de marfim com gravações a ouro, pintara eu
um macho esguio, de colete de seda azul-celeste e de calção de veludo
verde, inclinado para uma jovem timorata, a quem oferecia um copo meio
cheio de vinho. Suspeitavam-se-lhe as feições iguaizinhas às do
desconhecido do canavial do rio, de testa como ele cingida por um lenço de
chita, como ele afastando as pernas de rufião. E não se cansava Rosarito de
pressurosamente se abanar.

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Se soubesse ele naquela manhã de fins de Julho que o nobre ingresso do
Museu haveria de ocupar na sua mitologia privada lugar idêntico ao que na
mitologia do Mundo preenchiam a escada angélica de Jacob e a corda
apaixonada de Romeu e Julieta, se tanto soubesse ele, é duvidoso que a
galgasse de diferente maneira. Do plano térreo que correspondia ao da
entrada principal até ao andar onde se poderiam alcançar as obras do seu
pintor não mediaria mais do que uma quarentena de degraus, capazes de
todavia lhe alterar por completo o rumo-da existência, e muito
especialmente o modo de a encarar. E o dito espaço vencê-lo-ia ele a pé, ou
porque outra estratégia não lhe ocorresse, ou porque se achasse fora de
serviço o elevador, ou porque simplesmente lhe houvesse apetecido, o que
traria como efeito que, ao chegar ao destino, lhe batesse o seu tanto o
coração, e ao lançar os olhos pela área das suas reflexões, se lhe afigurasse
que nunca mais haveria ele de parar. À sua frente, e num caos de linhas que
se entrecruzavam e se desfaziam, mesclavam-se as cores dos quadros
expostos, um rosto interrogativo, o aceno de um arvoredo, o derrube da
bandeira de uma batalha, e nada pertencia a nada, e tudo aquilo que ele
mentalmente fora lhe parecia ter chegado sem remissão ao termo. Era no
pavor infrene que se debatia como num mar imenso, destituído de tábua de
salvação, entregue ao furor que não lograva identificar senão como a
catástrofe final do Universo criado. E moviam-se-lhe à roda, e sem que
disso tomasse consciência plena, difusas formas de outras criaturas,
semelhantes à que havia sido, mas tão enquadráveis ainda no Mundo, e no
seu caixilho de valores rotuláveis, que não davam conta de que ali, e na
pessoa daquele visitante, a morte inexoravelmente se implantara. Acabava
de sofrer o primeiro ataque de pânico, de uma sinistra procissão de
centenas de outros que ao longo dos anos se repetiriam, confundindo os
clínicos gerais, inábeis para lidar com o fenómeno, imputando-o à
hipocondria, à criptotetania, a uma variante de epilepsia, ou a uma pitada
de esquizofrenia, e incitando os psiquiatras a projectar uma boa dose de
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sessões de divã. Embrulhada em tal pacote, o dos acessos paroxísticos,
vinha a caterva das habituais manifestações morbosas, a taquicardia e a
dispneia, a moleza das pernas e os espasmos do estômago, o frio das mãos
e o suor da testa, os desarranjos digestivos e a secura de boca, as tonturas,
as constrições, as cãibras, e o medo, sobretudo o medo, o medo, o medo.

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Ao regressar à aldeia natal pela primeira vez, foi-se apercebendo Dom
Francisco de como cresce um homem à custa dos corações que consome.
Surpreendia-o a fumarada que se recusava a sair, o brilho vermelho que
adquiriam no meio dela as brasas perpétuas, os embiocados vultos que se
aninhavam nos ângulos das noutes de Inverno. A mãe curvava-se sobre
uma roca inútil, gabava-lhe o nutrido das faces de quem entrara já no
Palácio Real, desculpava-se dos pobres produtos rústicos que constituíam o
passadio diário. E ele adoptava uma distracção que o defendia de cair na
estranheza com que revisitava os lugares da infância, falava apenas o
bastante, e mesmo assim escolhendo palavras que os familiares
inteiramente compreendessem.

Recusavam-se as mulheres domésticas entretanto, e até a mãe com elas,


a sentar-se à mesa na sua companhia. Cirandavam em redor das refeições,
vigiando a exactidão dos objectos e das comedorias, propunham-lhe o naco
do acém e as alcachofras, mimos que julgavam convenientes ao estatuto
que lhe imputavam, não de príncipe por direito próprio, mas de lacaio de
reis. E postavam-se, muito concentradas, a observar-lhe as reacções. Dom
Francisco mastigava devagar, limpava os beiços com um lenço de cambraia
que tirava do bolso da casaca, aventurava-se a uma onomatopeia breve,
através da qual expressasse um agrado que o dispensasse de compridas
elocuções.

Haveria ele de decidir a partir daí que importava pôr cobro ao lúgubre
fatalismo com que vão devorando os filhos a vida dos progenitores. E
odiava essa lei que a Natureza lhe impunha, e parecia-lhe ela obscura e
horripilante como se devesse cada ninhada de láparos esventrar a coelha
que os amamentara. Mais conforme a uma norma de harmonia, decorrendo
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do respeito que merece quem concede a existência, e que portanto guarda o
direito de a retirar, afigurava-se-lhe o destino do pai do Tempo, ascendendo
nu de uma gruta de térreas humidades, esburgando num festim de
gigantesco pavor as carnes das crias que engendrara. E diante de Rosarito
muito mais tarde, sofrendo o irresistível ímpeto com que se ia evadindo a
menina do cárcere a que a condenara, erguera-se-lhe de súbito, a flanquear
uma das portas do piso inferior da casa da Quinta, a envergadura de
Saturno omnipotente.

O velho deus escancarava os olhos sanguinolentos, e toda a


monstruosidade do Planeta se quedava neles reflectida. E apertava entre os
dedos o corpo hirto de Rosarito, pronto a esquartejá-la antes de a levar à
boca, impedindo-a de conceber os que a votassem a uma sorte igual,
ínfimos números da eterna procissão dos que nascem para matar,
produzindo aqueles que na sua hora haverão de os assassinar também, de
tudo não restando mais do que o amarelado sulco de soro e de pus.

E participaria depois Dom Francisco de uma caravana de seges,


dirigindo-se para o Sul com uma pecadora altiva, de rendas negras, e
apeavam-se todos na margem de um regato, a fim de que as criadas dela
lhe mudassem a camisa suada da viagem. E consentia a tentadora em que
lhe espreitasse ele o seio muito alvo, de pele amaciada por uma infusão de
pétalas de rosa, e em que se apercebesse da quebra com que os quadris se
desenvencilhavam das saias de dentro. Escoltava-a Dom Francisco através
de um pátio revestido de azulejos árabes, e lançava-lhe a mulher uma
cravina para que a colhesse no ar, e deixava que se lhe desprendesse um
anel do indicador direito, o qual demoradamente rolaria, tilintando nas
lajes.

Para a outra parede iria alastrar por isso uma Judite implacável, saída dos
expectantes muros da sua cidade de Betúlia. Cobria ela de alvaiade o rosto,
abrigada pelo turbante que fora da época do seu defunto Manassés. E assim
a acolhia Holofernes em sua tenda, e pretendia na embriaguez em que se
afogava arrastá-la para o leito protegido por um mosquiteiro bordado a
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ouro e a esmeraldas. Levantava então Judite o alfange de degolar os
borregos, e fazia-se tudo de treva, e apenas o lume ardia, arfando como um
moribundo.

A sedutora não desistia dele. Ordenava-lhe que penetrasse na câmara


onde se estendia, de pés pousados no dorso de um dos seus peludos cães.
Descerrava os lábios, que semelhavam um morango acabado de morder,
suplicava-lhe que lhe achegasse o baralho de Tarot que havia espalhado
pelo tapete. E enquanto Dom Francisco se dobrava para aceder aos desejos
da dominadora, assobiava ela uma copla antiga, e respondia-lhe de longe o
corvo a que haviam cortado a trave, intercalando entre os silvos a sentença
que a dona não se cansava de recitar, «Las mujeres parirón, / si se
emprenan y pariren, / y los hijos que nacieren, / de cuyos fueren serán.»

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E foi assim que, buscando alarmadamente ajuda junto de quem se lhe
achava mais próximo, foi ter com um visitante japonês de meia-idade que o
arrastou, conforme pôde, para uma saleta esconsa, o fez sentar, e lhe falou
brandamente de como deve curar-se quem atravessa as escabrosas
paisagens do terror, e se julga à beira do colapso final. Olhados de soslaio
pelos circunspectos visitantes do Museu a essa hora ainda matutina,
percebeu ele que de todo aquele lance lhe sobrava uma suma experiência
de calma e de liberdade, e era como se a crise que atravessara obedecesse a
um plano que em absoluto o ultrapassava. Saiu para a avenida, tão
reconciliado consigo mesmo como se houvesse renascido, não entre choros
e dores, consoante biológica e simbolicamente ocorre, mas debaixo de uma
sombra benfazeja, a prometer-lhe o percurso da extrema claridade. Ali
estava a Cidade de novo ao alcance dos passos, e eis que não existia entre
ele e ela qualquer estridência, ou qualquer mal-entendido, susceptível de
lha tornar presença indesejável, ou inimiga condição. E não era ela agora
senão espaço do grande maravilhoso da Europa, percorrida por mulheres
que mantinham até à morte um casaco de peles, que visitavam as igrejas e
que jogavam ainda à canasta, por cauteleiros cegos e por chicos em busca
de protecção, por bebedores de orchata, e por turistas americanos que
desciam a uma fonda com a ideia difusa de ir assistir a uma rixa de
almocreves, medindo-se numa dança de navalhas despontadas. Apenas
ignorava o bolseiro recém-provado que testemunhara a primeira das
aparições do rosto de Medusa, e que outras, muitas outras, e em variados
lugares, se lhe seguiriam, isto sem que se apercebessem de tal fenómeno os
circunstantes, reduzindo-lhe a existência a um itinerário permanentemente
perseguido, senão ameaçado, pela máscara do desastre e da morte. E ora
apresentando-se por si só, ora assumindo o rosto das suas irmãs, Esteno e
Euríale, ascenderia ela dos abismos, levantando a cabeleira ensarilhada em
serpentes letais, fixando o olhar de mina brilhante no olhar da mais
indefesa das criaturas. E erguendo-se das cinzas do sepulcro onde
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estabelecera o ninho, estenderia as asas de ouro baço, arreganharia os
dentes de javali, torceria o pescoço de pele escamosa, ostentaria diante de
quem pretendesse escapar-lhe a implacabilidade das mãos de bronze
enormíssimas.

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Surgiria então uma leva de ciganos, encharcados até aos ossos, e com
três carroças trôpegas e de toldos esfarrapados pela ventania. Pediram
licença para acampar na Quinta, e designei-lhes o alto de um talude, não
muito longe da pedreira, para as bandas do Cerro Vermelho. Era uma gente
quieta, pouco atreita a berrarias e a desforços. Lá se dedicava aos seus
tráficos, saindo para a Cidade e voltando dela os homens, cuidando das
fogueiras e das panelas e da alimentação dos filhos as mulheres. E a
verdade é que não ousavam aqueles desgraçados, tementes de desagradar,
aproximar-se demasiado do nosso pátio. Escusarei de apontar entretanto
com que extrema curiosidade lhes vigiava Rosarito as andanças. Não fora
de facto a taxativa proibição que lhe impuséramos, Dona Leocadia e eu,
cedo se lançaria ela em completa sociedade com a ciganada, participando
das tropelias dos meninos, estimulando-os a acompanhá-la aos dentros da
casa.

De comandita com semelhante gentalha, escanzelado como ela, cocando


a oportunidade de deitar aos dentros da casa. O dente a um porco enfermo,
ou a um cabrito que se tresmalhasse, aparecera entre nós um cachorro
acastanhado, de focinho mais escuro do que a pelagem do resto do corpo, o
qual se afeiçoaria a Rosarito, detectando na pequena a criatura que lhe
derivava o que fosse capaz de lhe encher a barriga. Esquecido das misérias
do acampamento, seguia ele na peugada da garota por onde quer que esta
andasse, aninhava-se-lhe à beira com declarada familiaridade, e não
tardaria muito tempo a que não se transformasse em fiel guarda-costas da
que tão desvelada-mente se ocupava dele.

Pusera-se-lhe o onomástico de Dom Beltrán, o que ficara a dever-se à


vaga memória de um herói de histórias de cordel, uma dessas personagens
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que trotam pela vida fora, comandadas por uma astúcia especial, revelando
todavia a graça de convívio que as torna irresistíveis aos olhos de quem
primariamente lhes censura as falcatruas. De rabo em perpétuo levantado,
colocando as orelhas fitas diante de sinais que só ele percebia, alternava o
malandro a doçura com que se botava a lamber as mãos dos que dele se
acercavam, e que perante isso de imediato se sentiam rendidos, com a
malevolência que implicava em morder-lhes os dedos, gesto com que ia
explorando seus grandes ímpetos de amor.

E nos meus lazeres interrogava-me sobre o que poderia ter sido o


passado daquele valdevinos. Produto de uma cadela podenga, abandonada
num matagal, presa por um cordel a um castanheiro por se mostrar menos
do que medíocre na caça, e de um descendente de sabujos desclassificados,
oriundos de além-fronteiras, atrelara-se um dia ao eixo de uma carroça, em
consequência da insistente reclamação de um dos catraios do bando, o qual
nele projectara uma promessa de divertido companheirismo. Muito faceiro
nas atitudes, mas nunca afinal conquistando o direito a um nome,
correspondia o perro com digníssima resignação às atenções que,
ultrapassado o encanto da infância, iam fatalmente esmorecendo. Comia o
que lhe atiravam, afastava-se das zaragatas, procurava na vizinhança dos
ciganitos recém-nascidos a sorte de vir a deparar com um ou outro dono
providencial.

Não creio que se atravesse porém a incluir-me afoitamente no âmbito


das suas simpatias. Espreitava com suma cautela pela porta entreaberta da
oficina, e se me via adiantar-me na sua direcção, abanava hesitantemente a
cauda, e alongava-se-me da vista, meneando embaraçadamente as ancas
esqueléticas. De uma feita, menos castigado do que o usual pelo sono da
sesta, estendi para ele um naco de queijo de cabra, e fiquei a estudar-lhe a
reacção. O bicho farejou o ar, executou meia volta, voltou-se para mim,
baixando o focinhito, e rastejou até ao meu cadeirão. Ofereci-lhe o naco de
queijo que aceitou a medo, engoliu-o de um trago com a costumada
voracidade.

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Eu adoptara Dom Beltrán, se bem que não desejasse que o soubesse
quem quer que fosse. Nenhum velho realmente se torna menos respeitado
do que o que cede às fragilidades que dele se esperam. E a aliança que com
os irracionais estabelecem os que se reputam de adjacentes à morte,
acarretando-lhe a condescendência daqueles que se propõem enterrá-los, de
imediato os exclui dos campos de decisão. Engendram os herdeiros
inúmeros futuros, determinam o destino dos bens que ainda lhes não
chegaram à algibeira, falta apenas marcarem a hora para que entregue o
patriarca a sua alma ao Criador. Continuava Dom Beltrán por isso
ostensivamente hostilizado por mim.

Na estima que contudo ia eu dedicando ao cãozito construía


engenhosamente uma ponte que de novo me facultava a fruição da amizade
de Rosarito. Sorria a miúda, abstendo-se de difundir tal segredo, da
brandura das emoções que suspeitava em mim, e transigia em partilhar uma
tácita comunidade de ternura, sempre que afagava o animal, olhando-me
em simultâneo com óbvia cumplicidade. Dom Beltrán entendia tudo isto,
investigava nas minhas botas o cheiro do queijo de cabra, elegia como
esconderijo, e com crescente frequência, um corredor entre as telas
encostadas à parede. E na tarde em que os ciganos abalaram, empurrados
pela ânsia das feiras de Verão, alçou a perna, e urinou longamente,
mirando-me atónito, contra a base do cavalete onde experimentava eu um
certo tom de areia molhada, tão igual quanto possível ao que lhe vestia o
cachaço.

Pouco depois desapareceria Dom Beltrán sem deixar rasto,


abandonando-me imerso em oculta e envergonhada tristeza. Ao
postiguinho da minha oficina, e por detrás dos vidros sujos, assomava a
cabeça de Rosarito, e eu pressentia que me analisava as atitudes, intentando
discernir em mim a angústia que se lhe tornava indisfarçadamente
agradável. Comportava-se ela, e no respeitante à evasão do animal, com

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indiferença que desencadeava no meu íntimo mais do que uma fundada
dúvida. Prosseguindo nas aulas de pintura, afectava haver adquirido
empenho maior, escutando com patente interesse as minhas explicações,
aplicando-se depois a executá-las com rigor. E enquanto lançava eu
solertes miradas ao pátio, esperançado em ver trotar através dele o nosso
cão, não retirava Rosarito a atenção do trabalho que ia empreendendo,
absorvida na sua realização com inusitada intensidade.

Perdera eu entretanto, e por completo, o retemperador sono da sesta. E


mesmo de noute, rejeitando os desvelos de Dona Leocadia, a qual recolhia
à sua cama oficial com um amuo que se prolongava por todo o dia
seguinte, só intermitentemente é que a sonolência me visitava. Pelos
espaços da vigília despontava a imagem do triste do Dom Beltrán, a
vaguear sem tino pelos bairros da Cidade velha, perseguido por uma trupe
de meliantes, munidos de ferrinhos e de tampas e de tudo quanto
produzisse terrífico chinfrim. Enxotavam eles o desgraçado do perro em
direcção a um monturo onde apodreciam outros canídeos por entre restos
de comida estragada e resíduos de mobília sem serventia. E eu acordava
deste pesadelo, transpirado e aos brados, e lobrigava na escuridão o olhar
doce e lacrimejante do bicho a que surpreendentemente ganhara
tamanhíssima ternura.

Procurou-me por essa altura um rapaz ferreiro, hábil como poucos em


lidar com o casco dos cavalos remexidos, e desfiou um enredo que a
princípio não logrei elucidar. Falou-me de um manicómio que eu
conhecera muito bem, e dos doudos que pelos átrios dele vagueavam
desnudos, os quais andara eu outrora a pintar. E precisou-me que fora
conduzido até eles o infeliz do animal, e que o observaria quem quisesse,
usado para diversão dos alienados, puxado por uma cadeia enferrujada,
mais magrinho do que nunca, a vomitar uma baba que se não determinava
se era bílis ou pus. Acrescentou em conclusão que urgia pedir contas a
Rosarito, isto porque se encontrava ela, e a pandilha que lhe cumpria as
ordens, na raiz de semelhante patifaria.

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Negou tranquilamente o mafarrico da moça todas as acusações, e não se
lhe despegava o sorriso dos beiços. Fixada no papel do desenho, traçava o
risco com segurança, e sem que lhe tremesse a mão. E a fúria que em mim
crescia não achava limite. Arranquei-a do banco pelos cabelos, arrastei-a
pelo chão até ao pátio, agarrei numa vergasta, e zurzi-a até me doer o
braço. E ali a larguei, encostada ao poço, de rosto tapado pelas melenas que
lhe haviam descaído para a face, e à mercê do desrespeito da gente da
Quinta. Impus então que fossem de imediato por Dom Beltrán, que
pagassem pelo resgate dele o que se revelasse necessário, e dormi como há
muito não dormia um sono vazio de horrores, se não inteiramente
repousado. Alguém transportaria Rosarito para o quarto da mãe, e não se
lhe ouviria durante todo o tempo em que por lá se encerrou sinal de choro
ou de grito.

Ao cabo de três semanas sobre a data do desaparecimento, e dentro de


um cesto de vime onde se aninhava, trouxeram o infeliz Dom Beltrán os
que haviam ido por ele. Cobriam-no chagas em várias partes do corpo, e
rodeava-lhe ainda o pescoço esfolado um resto do cadeado que o prendera
à parede. Ao avistar-me, saltou molemente do cesto, e veio amochar-se-me
aos pés. E juro que tive de apelar a quanta genica me sobejava, a fim de
reprimir as lágrimas que ameaçavam subir-me aos olhos. Tão tonto se fazia
assim o velho que eu já era, ultrapassadas as sete dezenas de anos,
iluminado por desconformes fantasias, próximo do assalto dos vermes que
haveriam de o comer.

Saído do seu refúgio, afigurava-se desligada de tudo isto Rosarito,


procedendo como se não se reportassem a ela os sucessos que acabo de
descrever. Tentava reproduzir o que dos álbuns se lhe antolhava
significativo, o duende com cara de sabujo, a matilha enfurecida,
afrontando o touro, o ignóbil rafeiro da companhia das bruxas. E já não
reparava no nosso Dom Beltrán, o qual visivelmente se distanciava das
adjacências dela, buscando sob a minha protecção a confiança que lhe fora
dolorosamente roubada.

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Aconteceu então que reatámos os passeios campestres, Rosarito e eu,
mais determinados pelo meu desejo de firmar um armistício do que pela
disponibilidade para a fruição com ela da flora e da fauna, cujos encantos
costumavam apoiar-me como ilustração das lições que lhe transmitia. E ao
descermos certa tarde a uma pequena alverca, formada pelas chuvas do fim
da Primavera, começou Dom Beltrán a manifestar indícios de
extraordinário sobressalto. Passou-nos por cima uma nuvem, obscurecendo
a luz da manhã. E eis que se plantava ali, e rente às águas, imóvel como
estátua, e de pernas abertas, aquele macho tenebroso de colete verde,
aliviando-se detidamente, e num descaro que se não confundia ante o
avanço de pessoa alguma.

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E Dom Francisco situa a multidão a caminho da romaria de Santo Isidro,
e seguem num desconchavo de cânticos, e berram padre-nossos e
blasfémias. Amontoam-se na urgência de divisar um clarão que os guie, e
cheiram a fumo e a suor e ao azeite que fica nos pratos onde as moscas se
afogam. Há o que relata a história da irmã que sofre de um antraz que nada
sara, e de mês a mês retira as ligaduras, e apresenta uma fenda roxa na
perna, e descabela-se a pobre porque já não casa, e mete-se entre os
farrapos, a rogar pragas ao noivo que a substituiu por outra. E no santuário
está Santo Isidro à espera deles, muito pálido em sua excelência, e não há
ferida, nem sovaco, nem gengiva podre que diante dele tresande, e possui a
foice do seu ofício o condão de talhar os ares.

Marcha o pintor no meio da sua gente, embuçado para que não o


reconheçam os eguariços do Palácio, e troca com um parceiro estes
comentários malévolos, «Oh, como se desgarram eles em gritaria, infames
vitelos, e como deve temer-se do seu avanço o santinho, borrachões sem
remédio, fornicadores das próprias filhas, ratoneiros de vasos sagrados!» E
as duas mulheres que ambos trouxeram, Dom Francisco e o amigo, de um
café onde se joga o truque, e se bebe chocolate e anis escarchado, até às
cinco da madrugada, embrulham-se pudicamente nos seus mantos,
bisbilhotam ave-marias por um terço luxuoso de calêndulas de
madrepérola. E nas três cordas sobreviventes da guitarra arremeda o
tocador que vem à frente, e que pôs pela cabeça um lenço branco de
vendedeira para se tornar engraçado, um desconsolo de sílabas entoadas
que tratam de uma certa petimetra que nunca assoma à varanda.

Sobe agora Dom Francisco em direcção à fonte da água miraculosa, e


vira-se para trás, e é na sala de jantar da casa da sua Quinta que se
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encontra, e avista um grupo de trôpegos, e arrasta-se entre eles um
inquisidor que segreda confidências ao ouvido de um frade comilão, tão
hidrópico que garantem alguns que nadam as rãs na sua barriga, e mais
uma velhota e outra velhota, muito achegadas aos clérigos, intentando
escutar a narração dos prodígios que a linfa preciosa perpetrou. E
adiantam-se, surgidos do horizonte, e através de uma vereda ladeada por
taludes cortados de tal modo que botam ao léu as raízes das carvalheiras,
magotes de romeiros, curvados sob o peso dos trastes, arrotando ao bodum
dos merendeiros, ofegando de uma sede que apenas a nascente misteriosa
se mostrará capaz de aplacar.

O velho afasta-se da turba que o persegue. Haverá de erguer os olhos do


vinho com canela, e de dar com o negrume que ensombra o olhar dos seus
fantasmas, e com o brilho oleoso da sua pele, e com o buraco sem fundo
das suas bocarras. Pedirá que o deixem dormir de um sono contínuo,
dispensando-o de se erguer para urinar de hora a hora, de se colocar de
bruços para expulsar os gases da cebolada de lebre, de se enroscar para que
o calor se concentre no corpo desamparado. Mas não lhe permitem
descanso os peregrinos de Santo Isidro. Saem da terra que os viu nascer,
paridos por uma fêmea que foi lançar a placenta na cisterna próxima, e que
se alimpou às ervas que a rodeavam, e que já nessa noute cederia às
exigências do macho. Acarretaram fenos e cevadas, centeios e trigos, e
voltaram a semear. E despejaram a lavagem da porca, e contaram-lhe os
bácoros, e apararam-lhe o sangue, e acolheram-se à treva do frio,
esquecidos de tudo, sobre a fartura da matança.

«Que homens», pergunta a si mesmo, «serão afinal mais desprezíveis?»


Aplica as tintas grossas com as broxas que se lhe volveram indispensáveis,
recorre a uma trouxa de trapos para as espalhar, e não mede, nem corrige,
nem analisa, nem se compraz. Iguais a ele, de carne e de fezes, serão os
seus parceiros de pesadelo. Cospe-lhes na cara o ódio que lhes devota,
guarda-se de que lhe escarrem no rosto, indignados com o retrato. E nem
assim o ódio se lhe esvai, crónico e excruciante, de pertencer à tribo
comum.

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Dispõe-se agora ao silêncio. Um rasgão dourado, desses que se
manifestam após as torrenciais chuvas da meseta, descerrou-se-lhe à
esquerda da pintura. Aflora ainda a procissão dos fiéis, mais limpos
entretanto da sua miséria, dignos de que por eles haja morrido um profeta
intrigante e interpelador. E as brutas mães parideiras empurram as crias
idiotas, e fazem com que batam com a testa no andor do Santo, e imploram
uma luzinha que cintile nas sombras da bronquidão. Ajoelham por fim,
magrinhas e marcadas pelas escrófulas, e prometem em nome do pequeno a
quem chamam «Menino Jesus», o qual se baba e se borra ali mesmo à
beira, passar uma semana a água-pé e a caroços de azeitona, jazendo
naquele chão onde nenhum bicho se deita.

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Ninguém ignora que aliança estabelece um velho com o seu jardim.
Percorre as estreitas alamedas como quem ruma ao Paraíso, remexe com
um graveto um canteiro em busca do bolbo donde nasceu, esboroa nos
dedos um torrão de humidade, enamorado do chão que há-de recebê-lo. Eu
dedicava ao meu jardim o coração de silêncio que ninguém pressentia.
Desenhara-lhe a geométrica estrutura, o lugar que caberia a cada espécie
floral, porfiava por ver na sua realização o decalque do único sonho que me
visitava entre a insónia e o pesadelo. E a delimitá-lo, plantara aqueles cinco
álamos brancos, os quais ficariam por sinal da vizinhança da morada de
Dom Francisco, ameaçando os toscos e os néscios, os cínicos e os
hipócritas, os covardes e os bajuladores, de que por sua conta e por seu
risco é que se atreveriam a avançar.

Nas proximidades do Entrudo em que ocupei a casa, e me assenhorei da


Quinta, pouco mais seria aquele ancho rectângulo, abençoado pelos poços
que lhe anunciavam a fertilidade, do que um tracto de mato onde
medravam as estevas e os codessos. Mas discernia já nele a minha fantasia
mimos condignos de um parque real, maciços de azáleas e renques de
buxo, uma palmeirinha oriunda das Índias Ocidentais, nardos e rosas,
açucenas e jasmins. E pelo meio dos arbustos vislumbrava eu Rosarito, a
passear, solevando a saia do vestidinho de abelhas bordadas a ouro que
haveria de lhe oferecer. Era um jardim sem tamanho inteligível, um
perpétuo aroma que não se explicitava.

Chamei então aquele Simón desafortunado, e mostrei-lhe o traçado que


executara. O homem limpou o ranho à manga da camisa, tossiu secamente,
e comprometeu-se logo ali a dar cumprimento a um plano que apenas os
como ele, sofredores do que nenhuma pena de escrita conseguiria
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descrever, ascenderam a contemplar. Natural de um povo de salteadores,
encravado nas falésias de uma rochosa montanha que fora baluarte de
mouros, empregara-se Simón, catraiinho ainda, num açougue que vendia a
carcaça dos touros, sobejante do regabofe em que após as corridas se
devoravam as postas melhores. Aos dezoito anos principiara a vomitar um
sangue, tão grosso como o que provinha do cadáver dos animais que
trasfegava, mas eis que, tendo feito uma novena ao Santo Cristo das
Batalhas, sararia de tal moléstia, e de um instante para o outro.

E eu registo a história deste desventurado, sobre o qual desastres e mais


desastres não cessariam de se abater. Casado com a camareira de uma
taverna que constituíra valhacouto de traficantes de mulas, engendraria
nela Simón quatro meninos enfermiços, os quais foram morrendo uns atrás
dos outros, e sem que corressem as cousas de feição a que sequer pudesse o
pai comprar-lhes os ataúdes. E tendo vindo os franceses, e aliciado a
megera da mulher com negaças de vida airada e de bucho sempre cheio,
abalou ela em continente, e nunca mais se lhe botou a vista em cima.
Persistiu o pobre diabo em alombar com o resto dos garraios que ainda
apareciam, arcabouços cada vez mais escanzelados, em consequência da
secura dos pastos e da fraca acorrência às praças onde os bichos se
lidavam.

E havendo-o conhecido eu por essa altura, fins da era funesta de mil


oitocentos e onze, dispôs-se ele a transportar-me o material, pastas de papel
e caixas de tinta, um cantil e uma lancheira, o que calhasse. Dentro em
pouco era Simón quem me guiava os passos, encaminhando-me para os
arredores da Cidade fumegante, apontando-me os fossos onde se
despejavam os cadáveres putrefactos. E em vária ocasião se me impôs fugir
à sanha dos soldados, procurar refúgio num palheiro, consumir uma inteira
jornada debaixo dos escombros de uma casa arrasada. Alcançavam-nos os
gritos das mulheres que galopavam como fúrias, de cria escarranchada
sobre a anca, brandindo um chuço terrível. E seguíamos, marcados pelo
fedor da podridão dos que não havia tempo de enterrar, e dividíamos com
os esfaimados, quando nos não assaltavam eles antes disso, o escasso
passadio que levávamos con nosco. Simón era bem mais do que o amigo, o
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perdigueiro fiel.

Observou como disse o projecto do jardim, e um sorriso de deleite ou de


troça arrepanhou-lhe o rosto tisnado. E para que o decifrasse perfeitamente
aproximou os olhos dos meus, tão de perto que quase só lhe distinguia eu a
floresta das sobrancelhas, e articulou isto sem tirar nem pôr, «Há-de ser o
jardim que merecermos os dois, tu que pintas o que não entendo, eu que
vivo o que não entendes tu, um jardim de frescura e de perfume, e nele
sepultaremos, meu irmão, a lembrança de tantos mortinhos, tantos e tantos
que formam uma fila que vai de nós ao princípio do Mundo, quando nos
inventou o Senhor à Sua imagem e semelhança, e como tu representou este
céu azul, e subirão para Ele os ramos do nosso jardim, e quem sabe se nos
não irá acolher, olha a primeira andorinha, acabada de chegar!»

Com Simón partilhava eu assim longínquos segredos de horror que


ninguém compreenderia. Eram muitíssimos mais do que esses que
reproduzira nas oitenta e cinco gravuras onde a guerra range e explode, e
que constituem código ao alcance de toda a gente. Saíamos pela calada da
noute, e se havia lugar aberto, distinguíamos o vulto das carroças
destroçadas, à volta das quais se abrigava um punhado de sobreviventes.
Aproximávamo-nos deles, e dávamos com a mãe em andrajos, espremendo
a teta, a fim de matar a fome da cria raquítica. E ao lado uma velha
descabelada ia rilhando pacientemente a tíbia do cão que assara nas brasas
que esmoreciam. Arrancavam-se ainda, e às tiras, as camisas dos soldados
cadáveres, e um grande torso, decepado e nu, branquejava atado aos ramos
esgalhados de uma amoreira.

Lembro-me do cheiro fétido da escuridão, de como progredíamos,


Simón e eu, evitando denunciar a nossa presença, de como o antiquíssimo
vento da meseta nos gelava o nariz e as orelhas. E eis que de repente ali

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deparámos com ele, jovem imenso, estirado de costas, e de pernas
afastadas, como se estivesse no potro. Jamais confessei, nem a tinta negra,
o pavor que nesse instante se apoderou de mim, ao acercar-me do morto, e
ao debruçar-me para o rosto de leite. Estampavam-se-lhe nos olhos,
escancarados como charcos enormes, as sete estrelas de Gémeos. E
semelhante a um deus voava ele na sua viagem, rente ao chão empedernido
que não o tragaria.

Destas cousas não falava com Simón, resguardando-me da memória que,


havendo por momentos reunido os nossos destinos, parecia apartá-los então
irremediavelmente. Manquejando sempre, em consequência da paulada que
lhe assentara na canela esquerda o açougueiro que o empregara em menino,
lá persistia na sua jardinagem. Ganhavam forma os canteiros, e assumiam
cor e perfume as espécies de que o homem cuidava. E se acontecia de eu o
pro curar, tratava ele do que quer que nos levasse a esquecer o motivo
daquele jardim, a morte colectiva e sangrenta que lhe justificava a
existência, chamando a minha atenção para a corola vermelha de um
rododendro, ou para o azul tocado de amarelo das gloriosas pétalas da íris.

Apareciam de quando em quando alguns hóspedes, e escutava na


distância Simón a guisalhada das caleches que traziam as partidas de
pândegos, convencidos de que me brindavam com a sua visita. E de
imediato se recolhia a lugares onde não fosse fácil topar com ele, as
traseiras de uma sebe, a loja dos aprestos do seu ofício, o centro do
bosquezinho de magnólias. Ali se mantinha quietíssimo e em silêncio,
aguardando que se retirassem os forasteiros após terem inspeccionado as
belezas florais, gabando-as com excessos que não me cabiam no apreço,
mas que supunham ser de indiscutível comprazimento meu. Só nessa altura
voltava ele às suas tarefas, parecendo colocar no afã com que encostava a
uma estaca uma roseira nova, ou com que encaminhava a ascensão de uma
buganvília, o desejo de purificar aquela área de intangibilidades da
incursão deletéria que a havia ofendido.

Ao cabo de três anos, fatigado de um mal que pertencia mais à alma do


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que ao esqueleto, principiou a manifestar Simón indícios de clara
degenerescência do comportamento. Em vez do assobio discreto com que
acompanhava as andanças do seu múnus, e que possuía o benéfico efeito
de me embalar a sesta, investia ele por uma verborreia de impropérios, com
os quais não cessava de zurzir a conduta deste ou daquele mimo vegetal
que lhe resistisse à vontade. E eu encontrava-o deitado de bruços, a
esmagar sob o peso do corpo um maciço de tulipas ou uma floração de
cinerárias. Verificava então que se encarniçava em esgravatar com as unhas
a pobre terra, exigindo dela a revelação de um mistério, ou a prestação de
uma conta, que não me achava em situação de determinar.

Numa manhã de Abril, magicando eu na precisão do sentido de uma


certa avantesma que a treva conduzira à cabeceira da minha cama, veio
Rosa-rito buscar-me, diria que quase alegremente, tomando-me pela mão.
Atravessei com a pequena o jardim do nosso amigo, e juro que se me
afigurou aquele espaço estranhamente frio e solitário. Um orvalho, pouco
usual em tais bandas, e tão perto do meio-dia, borrifava a vegetação como
se tivesse alguém acabado de a regar. E um melro cantava com uma euforia
nervosa, impaciente por estatuir o cumprimento de um presságio, ou o
advento de um cataclismo natural. Empurrou Rosarito a porta da loja dos
aprestos, e ficou a mirar-me com a concentração habitual da menina
curiosíssima. Pendente de uma corda que passava por um gancho na trave-
mestra, balouçava Simón inteiriço. Inclinava sobre o peito a cabeça de
cabeleira hirsuta, e esticava os dedos da mão direita como se quisesse
esbofetear-nos. Haviam-lhe caído entretanto as calças, mal presas pelo fio
de sisal, até à altura dos tornozelos encardidos.

Tornara-se-me insuportável a Quinta depois da morte de Simón. Fosse


porque se adiantara ele ao resultado de um propósito que há muito convivia
comigo, fosse porque simplesmente preludiava o trânsito a acto do meu
antigo projecto, não me sentia capaz de aguentar dias e dias na observação

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daquelas vistas, sempre as mesmas. Mandava portanto aparelhar a caleche,
e se não ouso dizer que me repimpava nela, seria isso porque apenas me
acomodava de lado, a evitar a maceração do eterno hemorroidal. Lá
ordenava que se batesse para a Cidade, e divertia-me a consternação que se
fazia frequente na catadura e nos gestos da Dona Leocadia, suspeitosa das
pessoas que viesse eu a frequentar, dos excessos em que não deixaria de
incorrer, do confronto que era fatal que estabelecesse entre as delícias que
os estranhos me proporcionavam e as agruras a que me condenava a
família.

Encaixava-me então numa das mesas do fundo de um determinado café,


bem protegido pelo véu que produziam os fumadores, e regozijava-me por
não ouvir o chinfrim dos filósofos e dos boateiros, entremeado pelo toque
das pedras do xadrez e pelo deslize dos dados do gamão. Não demorava
que avançasse uma tal que dançara num botequim, e que me implorava
agora ajuda para o filho que vomitava os pulmões, ou um que fora toureiro,
e que ficara coxo da perna direita, e que seguia afogado num tinto
espessíssimo, tentando esquecer a puta da vida. Eu acolhia-os com o
silêncio que supunham derivar da minha surdez, isto como se a
impossibilidade de os escutar me convertesse em impotente para lhes
descrever mágoas sem fim. Abria então para eles os cordões da bolsa, e
experimentava, ao alegrá-los com as minhas esmolas, o incomparável
prazer de conspirar contra Dona Leocadia, subtraindo-lhe ao futuro os
capitais com que planeava acomodar-se na minha ausência.

Mas uma certa e esplêndida mulher convidava-me para o seu salão de


maravilhas. Eu pisava os tapetes, mirava-me reflectido nos espelhos,
escolhia uma poltrona, e punha-me à espera, amigo da casa desde há longo
tempo. Ali viera outrora para a retratar, e irritara-me na altura o tiquetaque
dos relógios, e a barafunda de capoeira com que desatavam a tanger as
horas à compita. Assim como assim preferia aquele distanciamento,
sublinhado pelo frio mármore do tampo das credências. Dispusera-se a
receber-me de novo a esplêndida mulher, e encarava o nosso encontro
como quem fosse à procura do lamiré que lhe consentisse afinar o cravo
triste onde as teclas começavam a emperrar. E pressentindo sem dúvida a
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minha angústia, comprazia-se em manter-me interminavelmente na
expectativa.

Lembrava-me dela na arrogante elegância com que posara, muito branca,


erguendo o rosto de maçãs salientes e de lábios carnudos de caprichosa. A
verdade é que, não registando porventura desde o berço uma bateria de
criados ao seu serviço, deparara-se na condição que o matrimónio lhe
facultara, de exigir que lhe substituíssem, e sem que tivesse de se baixar, os
sapatos bordados. A grande mantilha negra, mais de quem pretendia
igualar-se a senhora do que de matrona efectiva, saindo do pente cravado
muito atrás, botava-lhe inteiramente a descoberto o cabelo cobreado,
torcido em vírgulas sobre as têmporas, emoldurando o brilho do olhar de
um cinzento imperativo.

E entrou por fim a esplêndida mulher, precedida por dois cachorros


malteses, claramente incorrigíveis, os quais logo se precipitaram a lamber-
me as botas. Sem me autorizar a que me levantasse, e lhe beijasse as mãos
de mecenas pretérita, cortou-me todo o arremedo de fala, mas não o poder
de constatar que se lhe abatera o peito, e que se lhe reduzira o tamanho dos
olhos, e que lhe perdera a pele o fulgor de açucena para adquirir a
opacidade do linho, mas que reinava ela com arreganho ainda maior do que
o que no passado a favorecera. Conhecendo porém que dera eu em mouco
definitivo, articulou apenas estas desculpas, aproximando-se de mim para
que a entendesse, «Mas que pena, que pena, querido amigo!, preveniu-me
Dom Juan de Villanueva que chegará a qualquer momento, e que traz
assuntos de família para considerarmos, e que acha se nos juntássemos
daqui a três semanas, festa do santo do meu filho Rafael?, apareça por cá
sem falta, querido amigo, e vá entretanto com a bênção de Deus.» Dito
isto, vi ingressar no salão um velho, encasquetado com uma peruca futrica
e mal empoada, a arrastar a lividez dos crónicos sofredores de disfunção
intestinal. Não ladraram os cachorrinhos desta feita, e eu desci devagar
para a solheira da rua.

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*

A Primavera seguinte ao suicídio de Simón, entrada como um terramoto


que nos revolvesse as entranhas, deixara-me completamente exausto de
intenções. Soprava a ventania as flores das amendoeiras que rodeavam a
casa, e eu preparava-me para assistir ao desabrochar das tulipas, as quais
cobririam a área, delimitada por uma meia dúzia de salgueiros, onde
impusera que fosse enterrado o nosso jardineiro. Imaginava que romperiam
as corolas como um hino triunfal, nutrindo-se da consternada substância do
crânio do meu amigo desaparecido, adejando sob a doçura da aragem que
costumava correr pelo fim da tarde. E não trabalhava, não transformava o
desprezo na única razão da minha continuidade.

As noites arrefeciam espantosamente, e por motivo que jamais


determinaria recusava-se o lume a erguer-se da lenha, crescendo
espontâneo e de modo a que nos acalentasse. E andavam murchos os gatos
domésticos, e devotava-se Rosarito aos prazeres do balancé com uma
avidez que me causava calafrios, e só a custo conseguia eu embeber os
pincéis nos pigmentos que rapidamente iam secando. Dormia muito, e
dormia em perpétuo sobressalto, naquele desconforto de me achar
desavindo dos antigos desejos. Fechava estrepitosamente a porta do quarto,
temeroso de que se afoitasse Dona Leocadia a vir experimentar-me a
constância da virilidade, e enroscava-me como quem se devolve ao ovo
onde nada principia e nada se conclui. E dentro da minha cabeça gania o
cão do cio, e enlaçava-me o seu lamento, seguro de que cumpriria uma
condenação inalterável.

A verdade, a verdade maior, é que não mais se me suscitava o


pensamento do baixo-ventre. E ao concluir isto mesmo, assaltava-me a
vontade desconforme de rir numa imparável gargalhada. Bebia então um
gole de água com tinturinha de flor de laranjeira, estirava-me de mãos
sobrepostas em cima do peito, soltava um longo traque libertador. Todo o
velho é um ser pacífico e um programa de revisitação. E se me acomodava
à falta de apetite de amor, presumindo-a de sobremaneira adequada ao
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necessário empenho no trabalho que tinha pela frente, irritava-me que não
me desgrenhasse o tumulto das vísceras, primeiro e inconfundível sinal da
caça predadora.

Em tais horas, timbradas por zumbidos que me chegavam de muito


longe, e que me empurravam para voltas e mais voltas no colchão
enodoado pelos defluxos, juvenis e senis, que constituem a miséria e a
glória humanal, punha-me eu a folhear um caderno de prodígios
sensibilíssimos. Espraiava-se em mim o relento dos compridos cabelos
recém-lavados, aquecidos por um ferro em brasa, o frescor dos grandes
saiotes engomados que se despenhavam num rufo, o golpe de quase-
prestidigitação com que os leques se iam descerrando junto ao rego das
mamas, a levantar uma suspeita de levíssimo pó-de-arroz. E para mim se
desnudavam as soberbas figuronas, despregando os véus de tule negro,
retirando a rosa de moiré com que enfeitavam os caracóis, desapertando o
cinto com uma pérola de cultura, descendo as meias interminavelmente
translúcidas, ocultando com os dedos abertos em anémona a sombra que o
suor cintilantemente borrifava entre as pernas.

Não respondia a isto a ânsia do meu corpo, apenas o ditame da minha


inteligência. Em algumas ocasiões, é importante que o confesse, a extrema
duração de um chamamento larvar acabava por se concluir num êxtase
mais profundo, mais intenso, e bem mais afável, do que quantos me
haviam brindado a mocidade. Mas era o privilégio da contemplação que
em especial se me deparava agora, acompanhado pela vantagem de guardar
tais fantasias sem que a atenção se me obnubilasse pelo impulso da
propriedade. Regista estranhezas assim o destino dos faunos decrépitos, a
todo o instante sujeitos a distrair-se da sua cavalaria, e a enamorar-se tão-só
do ouro de uma madeixa ou da ligeireza de um artelho, quando não do
brilho que ostenta a agitada folhagem dos loureiros.

Dona Leocadia vigiava-me com redobrada severidade, remetendo-me


àquela categoria de idosos bonacheirões para os outros, e impossíveis para
os familiares, sempre atreitos a tentar seduzir por uma pilhéria dessorada o
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público fatigado pela incessante reposição da sua teoria dos labirintos do
sentimento. E eu fingia aceitar a suspeita, e calava-me como raramente
fazem os que há muito, muito tempo, tiveram de facto algo a dizer.
Observava as criadas novas, arregaçando as mangas e as saias para uma
esfrega lustral, oferecendo-me o volume de um traseiro de vaquinha
ardente, parecendo significar isto nos seus olhares ingenuamente
maliciosos, «Venha daí que ainda pode, a gente há-de arranjar-se como
convém, raio de pombas que cagam tudo!»

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A retomada das indagações a que o homem se devotava haveria de
operar-se no contexto daquela ameaça tácita que parecia rondá-lo,
semelhante a uma longa e nebulosa reticência. Não era que o pânico se
exprimisse então com a aguda dramaticidade que timbrara o acesso
inesquecível do Museu, mas tornava-se incontestável que não deixaria ele
de ressurgir, igual a um desses tubarões que nos relatos de aventuras se
aproximam da jangada dos náufragos em círculos concêntricos de
persistente ameaça. E a todo o instante, e no meio das suas obrigações,
punha-se-lhe a bater o coração, e corria-lhe o suor, e gelavam-se-lhe os
dedos das mãos e dos pés, e embrulhava-se-lhe o estômago, e rodopiava-
lhe a cabeça. Daí que se lhe fosse aos poucos transformando o quarto da
ordinária hospedaria num refúgio que se lhe volvia crescentemente difícil
de abandonar, e que a ele se restringisse na evitação da face corroída que
de longe o ameaçava. No seio de tal medo omnipresente, na verdade um
ninho de medos em que cada qual tomava alternadamente a dianteira, e ao
sabor de um mando que por absoluto lhe escapar à percepção se diria
pertencer a uma entidade autónoma, era o espectro da morte que
sobremaneira se destacava. E não se tratava de qualquer vago
aniquilamento, susceptível de vir a adiar-se para um futuro de incertezas,
mas da morte súbita, e de grande espectacularidade, desassistida de viático
e de redenção.

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Ele dispôs tudo para que se postasse Dona Leocadia, pensativa como
compete à guardadora do lume, ao lado da escada conducente ao piso de
cima. Viúva muito jovem, mais roubada da continuidade dos seus projectos
do que do conforto de um afecto profundo, haverá de ficar ela na
meditação dos escassos anos perdidos, não do sentido daqueles que vieram
a caber-lhe. Na tumba a que se encosta, zeladora da reputação de
inconsolável que melhor lhe servirá a consciência, dura um punhado de
ossos oxidados, duas botas carcomidas, os sete botões de alpaca da farda
com que foi honrosamente sepultado o defunto. Mas é na posição dos pés,
prontos a agitar-se em ulteriores andanças pelo Mundo, que se detecta a
mocidade da mulher. Dêem-lhe um salão, e dançará ainda a quadriga,
apontem-lhe um areal, e correrá descalça até ao mar.

Quando Dom Francisco retratou deste modo Dona Leocadia, exigiu não
a ver durante uma semana inteira. Importava-lhe a condição da amante, não
os dias que lhe competiam. E recusava-se a representá-la pitorescamente,
sorrindo da alegria das canseiras domésticas, exibindo os dedos inchados
pelas frieiras que resultam do constante mergulho na vinha-d’alhos onde se
meteram as carnes secas da matança. A personagem que aí está, não sendo
de forma alguma leitora dos discursos do Senhor de Voltaire, abjurou da
estupidez e da rotina, e deixou à vista um certo ângulo de culto da fantasia.
Peçam-lhe notícias do pintor velho que escolheu como companheiro, e irá
ela declarar, «O Senhor Dom Francisco é um homem merecedor do
absoluto respeito de qualquer um, generoso com a fraqueza humana,
tolerante com as crianças que dele se abeiram, impoluto na sua moralidade,
e se alguém afirmar que faz lembrar de longe a longe um ouriço-cacheiro,
convirá que se dê conta de que não correm os tempos para folguedos, e de
que sofreu muitíssimo este senhor, e de que espera que o acolham com a
vénia a que tem direito, sujeito que se habituou a atravessar à vontade as
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estâncias reais, e a lidar com ministros, e a conversar com as altas
dignidades da nossa Santa Religião, Deus o guarde, e nos permita viver
como até aqui à sua sombra benfazeja.»

Na parede do comedor, situada à direita da janela, aproveitando talvez a


ventania que por aí entrava, e que haveria de enfunar as vestes dos seus
figurantes, reproduziu Dom Francisco o grande demónio Asmodeu, guloso
de virgens como nenhum outro. E surgiu o malvado como um grosseirão,
pesado de concupiscência, arrebatando a sua donzela pelos ares. Olham-
nos de baixo as míseras populações, ignorantes dos desígnios infernais, e
não falta quem avance de espingarda, a tentar abater os que voam. Rosarito
consente que a raptem, envolvida no manto vermelho, e a mirada que
dirige ao seu passado ninguém saberá dizer se é de angústia ou de euforia.
Como quer que seja cobrou o demónio o rosto hipotético daquele macho
ubíquo, urinando de pernas afastadas, e na borda do rio.

Mais exausto do que nunca, drenado da energia indispensável à viagem


aérea das suas personagens, acomodou-se Dom Francisco na sua cadeira de
descanso. Penetrava pelas vidraças um sol oriental, dourado como o fim de
todas as cousas, promissor da eternidade sem sobressalto. E o velho tossiu
dolorosamente, e um escarro desceu em fio, a macular-lhe o colete. Lá fora
teimava Rosarito na sua cantilena sem parança, interrompendo-se a espaços
para transmitir uma ordem berrada a Dom Beltrán. E um mal, nascido no
estômago, começou vagarosamente a ascender até à cabeça do artista.
Confundida no sono em que se implicava, convertia-se-lhe aquela angústia
numa coroa de espinhos que já não o cingisse a ele, mas aos quadris da
menina, levada pelo imenso devorador de virgos.

Tremeu Dom Francisco como se a febre subisse de súbito, a


desorganizar-lhe as entranhas. E afastavam-se em direcção a uma falésia
rochosa os voadores, Asmodeu e Rosarito, e quedava-se o pintor
abandonado na sua Quinta, emurchecido em definitivo o instrumento da
sua virilidade. Do horizonte para onde se alongava transformava-se numa
risota o azedume de Asmodeu. E engrossando sempre, escorria a
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expectoração do velhote, e encharcava-lhe o peito, e não havia por onde
respirar o advento da manhã. Estremeceu por fim, ergueu-se a custo,
retomou o pincel. Nos dentros do crânio principiou a crescer de intensidade
aquele agudo assobio, esgaçando as fibras do surdo, botando a cacarejar os
galináceos na sua capoeira, reduzindo a longínqua vista da Cidade a um
deserto interminável de refulgente brancura.

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Dona Leocadia vivia obcecada pelos seus jogos de poupança,
precavendo-se contra a minha morte próxima, defendendo-se do que
insistiria em pintar aos seus íntimos como o seu «tão incerto futuro».
Queixavam-se os criados de que se atrasava sucessivamente no pagamento
dos salários, de que lhes vigiava as rações que punham no prato. E a
verdade é que a víamos amiúde no seu canto, operando cálculos aritméticos
com papel e lápis, contando e recontando pelos dedos numa lengalenga que
deveria ser divertida aos ouvidos de quem conservasse intacto o dom de
escutar a música do Universo.

Administradora de tudo quanto fosse arca ou caixa ou gaveta de fundo


falso, aí encafuava ela pressurosamente as quantias que ia amontoando, e
eu suspeitava de que andara numa certa fase a meter na bainha dos
reposteiros o que mais temia que lhe encontrassem, espécies estrangeiras
que teimava em supor valerem o triplo ou o quádruplo das nossas. Não
havia pobre que lhe merecesse a esmola, nem cão que dela recebesse a
buchinha de pão. E esgotava-se num contínua novena a Santo Onofre,
arvorando-o em conscencioso advogado dos seus capitais, em agente
expedito que os pudesse acrescer.

Começara com isso a ressentir-se o meu passadio diário. Serviam-me as


papas sem azeite porque se destinava o da Quinta por inteiro a ser vendido,
caíam-me os botões da sobrecasaca porque estavam caras as linhas de os
coser, arrefeciam-se-me os pés porque se mostrava o gasto da lenha
incomportável nas regras da mais estrita economia. Não nos visitavam já os
amigos demoradamente, e aos poucos que nos apareciam mantinha-os
Dona Leocadia sob apertada vigilância, não fosse contemplá-los eu com
algum trabalho da minha autoria. Tornara-se aquela senhora um leão
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ameaçador, não menos zeloso, nem menos ubíquo, do que o que guardava
o patriarca São Jerónimo na sua caverna meditativa.

Que megera seria esta, vinda dos quintos do Inferno, animada pela
exibida intenção de me adoçar a viuvez, empenhada de facto em realizar o
seu negócio de sanguessuga? Eu lançava os olhos pelo curso do rio, e
julgava-me abandonado pelos deuses. Que fora feito do mestre que
praticava lhana e carinhosamente com os discípulos, e lhes recolhia as
confidências, e lhes facultava o conselho? Os jovens atrofiavam-se diante
do estafermo de pêlo na venta que os desprezava, e os velhos irritavam-se
com o trambolho da sua constante presença. Dona Leocadia assentava-se
com o seu caderninho, fixava-me o preço das encomendas, fabricava nas
minhas costas os arranjos que lhe convinham.

Com Rosarito, arrebatada à medida que ia crescendo para os dentros de


semelhante tesouraria do deve-haver, não deixaria ela de confabular desta
maneira, «Ele que não pense que me engana, e que me vai largar na
miséria, sei muito bem o que tem, e de que beneficiou já a esposa legítima,
baixelas de porcelana e talheres de prata, roupeiro de que não se
envergonhavam na Corte, e ainda mais o que lhe sobra, as acções do Banco
Nacional, e outras assim, e as mãos, as mãos que até ao termo dos seus dias
haverão de produzir maravilhas, se se resolver a desistir dos monstros
incompreensíveis com que desatou a destruir as paredes desta casa, e
afeiçoar retratos, retratos e mais retratos, e voltar às tapeçarias que não
faltará quem as queira, não digo os príncipes, mas essa nobreza nova que
por aí ciranda, e que anseia por ombrear com os de sangue fidalgo.»

Atentava nestas palavras Rosarito, e pedia um xaile de seda bordada,


prenda que a mãe não ousava recusar-lhe. Mas não afrouxava Dona
Leocadia no discurso dos seus medos e das suas intenções, desconfiada de
todos, protegendo-se de cada um, recorrendo aos que futurava assisti-la no
caso de um desvalimento em cartas que afinavam por este diapasão,
«Sendo Vossa Mercê pessoa de letras e de talento, e como nem em fantasia
será capaz de figurar a minha triste situação, rogo-lhe que considere os
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apuros em que nos achamos, Rosarito e esta que lhe escreve, e a má sorte
que nos coube, e as forças que tenho de sacar da minha grande fraqueza.»

Entrava eu de repente na sala onde traçava a minha companheira estas


linhas, e onde principiava a executar as suas escalas uma Rosarito que o
mimo materno alçaria à posição ilusória de extremada pianista. A mulher
enrodilhava-se na sua visível traição, procurava esconder o papelucho
debaixo de uma rima de livros, falava-me de como passara tão rapidamente
o tempo, de como estava na hora exacta de me achegar o chá de camomila.
Mas não a isentava eu do azedume que o nauseabundo calculismo instilava
em mim. «Informe o seu destinatário», declarei alto e bom som, «de que
não tenciono brindá-la com uma migalha sequer, quando me for deste Vale
de Josafat, e quanto à sua menina observaremos de que lado sopra o vento,
se de cá, se da ribeira aonde costumam ir mijar os que lhe seguem no
rasto.»

Um dia, saindo da oficina, deparei com uma cena que, ouvisse eu como
qualquer outro, se produziria por certo entre esta grossa gritaria, «Ai que eu
mato-te, meu estupor!», «Ai não me faça isso, patroa!», grandes berros, o
ladrar excitado de Dom Beltrán, o espavorido esvoaçar do galinhame.
Zurzia Dona Leocadia, igual a um ogre furibundo, os costados do
desventurado de um criado velhote, um dos mais humildes e menos
safardanas, o qual, miserando como era, alombava sem um queixume com
os carretos mais pesados, contentando-se fora disso com rilhar uma côdea
tristíssima, escorraçado até pelos companheiros que nele topavam com a
imagem da sua infame servidão.

Empurrei a megera, arranquei-lhe das unhas o cacete com que exercia a


justiça do seu mando, e ajudei a erguer-se o pobretanas daquela vaza de
lodo de chuvas e de estrume de mulas. E não tive tento em mim que assim

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não desfeiteasse ali mesmo a que todos tinham por suma instância, sendo
como era minha instituída concubina, «A senhora não possui um resto de
vergonha, sua cabra?, será que se considera dona disto tudo, quando não
passa de uma reles manteúda, deixe lá viver em paz quem merece mais
respeito do que vossemecê, e trate de retirar-se de imediato da minha
presença.» Chisparam debaixo das farripas de cabelo desgrenhado os olhos
da fêmea em cólera. E eis que, apanhando as saias com um donaire de
mulher pública ofendida, disposta a ir pacientemente engendrar a sua
vingança, se despachou Dona Leocadia em direcção a casa. Aproximaram-
se de mim quantos a semelhante espectáculo haviam assistido, os
cozinheiros, um estribeiro em trânsito, uma magote de jornaleiros. E
auxiliaram-me a levantar o agredido, e conduziram-no a lavar as feridas
com a água de uma bica. Senti então que alguém, velho ou criança, me
beijava a mão direita, mas não dei com quem quer que fosse, ao voltar-me,
e ao procurar distinguir quem assim me homenageava.

Nessa noite tranquei mais firmemente a porta do quarto. E adivinhei, isto


embora nada pudesse ouvir, nefando surdo que já era, os pés descalços da
monstra, pata aqui, pata acolá, e a alterada respiração de quem se entrega
demasiado à própria mágoa, ou a finge no odioso espalhafato que rima com
o desnorte dos sentidos. Virei-me na cama, e escondi a cabeça sob os
cobertores. Sabia que Dona Leocadia encostava a orelha ao batente,
diligenciando determinar com que linhas me coseria eu, uma vez
dissipados os fumos daqueles sucessos. Conferi por isso livre curso aos
gases que me arrepanhavam os intestinos, esforçando-me por imprimir
àquilo que deveria ser uma assustadora rajada de peidos o carácter de um
insulto abjecto, capaz de a demover de tentar a mínima reconciliação. Mas
mesmo assim suspeitava de que o estafermo nutria o propósito de não se
arredar.

Botei-me afinal a proferir este discurso, expectorado dos fundos da


câmara às escuras, o qual não falharia, calculava eu, de surtir o seu efeito,
«Atente bem no que lhe quero dizer, Dona Leocadia, se já pensou em ir
delatar-me à Santa Inquisição, informe-os mais ou menos do seguinte,
“Dom Francisco é um herege, meus senhores, e eis que jamais obterá
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descanso este Reino Católico enquanto se não desfizer dele, meus
senhores, lê livros defesos, não frequenta a missa nas datas festivas, não se
mexe donde estiver, meus senhores, sempre que transita o viático, e pinta
aberrações que ofendem a Deus, e julgo até, abrenúncio e abrenúncio, que
mantém pacto com o que não pretendo nomear, meus senho res, e contem
Vossas Reverências com a lealdade desta que se assina Leocadia, padre-
nosso, ave-maria”.»

Diante de quejando ralhete terá caído no chão aquela bandida, chorando


copiosamente por me haver apropriado eu daquilo que já trazia ela na ideia.
E ter-se-á arrastado por fim rumo aos seus aposentos, esgrouviada como
um frango encharcado, enredando-se na camisa de fartas rendas, a
embrulhar-se nos lençóis bafientos do seu duro cio sem remissão.
Destranquei pois a entrada da minha alcova, e consenti em entreabrir uma
fendazinha, e por ela deslizou Dom Beltrán. Arranjei-lhe espaço para que
amochasse a meu lado, estirei-me de pança para o ar, um pouco abraçado a
ele, e permiti que o sono me conquistasse. «Assim é que dormem», ia eu
pensando, «os pintores velhíssimos, quando não lhes sobra o entendimento
do afecto.»

E o trambolazanas do criado que eu safara das garras daquela harpia


agigantava-se-me na treva. Escancarava a boca de fome dos que o tinham
precedido neste Mundo, coçava-se das pulgas e dos piolhos que o
atenazavam, arrotava a uma sopa azeda que nenhum ranço de unto adubara.
«Dom Francisco, meu amo», gemia o desgraçado de rastos, «autoriza-me
Vossa Senhoria a que lhe lamba os butes?» E eu enxotava o fantasma dos
homens todos, apertado ao ronco do meu perro querido.

A pequena recusava-se a trabalhar ao cavalete. Apoiava uma


pranchazinha nos joelhos, ia seguindo as instruções que eu lhe dava,

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escolher com cuidado a placa de marfim, escurecê-la de modo a conseguir
um fundo de homogeneidade, apor-lhe a aguada que permitisse o surto da
imagem final como um clarão que trespassasse a treva. Rosarito
entusiasmava-se com a sua arte, aplicando-se nela de lábios comprimidos,
consentindo que as madeixas lhe cobrissem a face, muito pálida pelo tempo
que ia correndo. E sem que insistisse eu em que aperfeiçoasse aquele
ofício, tão menor que a menina ainda era, ou em que se fosse
transformando numa «femme savante», manifestava iniludível curiosidade
dos álbuns que se amontoavam na oficina, de William Hogarth e de Pietro
Longhi, do grande Dürer que naturalmente não entenderia. Ai como me
irritava que nada perguntasse ela, nem sequer com o olhar, nada
respondesse às interrogações que com o olhar eu lhe dirigia!

Ia morrendo entretanto uma certa Rosarito. Tinha passado a tarde inteira


no seu novo mister, tentando retratar um senhor vestido com a farda dos
hussardos, quando de repente se deixou escorregar, assustadoramente
lívida, para o chão. Tombaram com ela os godés e as pastas, e eu senti-me
assustado de mais para ir pedir ajuda. Lentamente aproximei-me da garota,
despejei-lhe no rosto um jarro de água. E só então distingui a almofada
sobre que se sentara ela, manchada pelas espessas gotas de sangue que
resumiam o trânsito a mulher, distribuídas de forma a compor a figura da
constelação Gémeos. Não conduziria isto porém a que se desviasse
Rosarito da pintura que se lhe volvera ardente paixão. Muito ao contrário
parecia cobrar maior empenho e mais clara responsabilidade, afastando-se
do que lhe constituíra o receio usual, e até mesmo das antigas passeatas que
me incitava a realizar.

E eu punha-me a observar o donaire com que cingia a cintura numa


écharpe de seda verde-mar, exigindo do torso essa elasticidade de cana-da-
índia, anunciadora de amplas frutificações. E suspeitava em torno da
miúda, igual a um zumbido de moscardos, a presença quebradiça dos
corpos masculinos, afeitos à feroz excitação das touradas e à concisa
crueldade dos jogos de pau. Retomava a minha tarefa, mas exasperavam-
me estas visões. E se não a tinha ao lado, a Rosarito, debatendo-se com o
rigor das miniaturas em que, bem vistas as cousas, a ia escravizando, um
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sobressalto de indignação crescia dentro de mim, despenhava-se na tosse
sem repouso, e no catarro sem tréguas que ao termo dela me sobrevinha.

Aquela súcia de ganapos que anteriormente a havia enquadrado acabara


por a abandonar, entregue ao esplendor de uma absoluta solidão.
Suspeitando na pretérita companheira o acesso a um plano de consciência
em que seria impossível escoltá-la, divergiam os catraios enfarruscados
para a irremediável boçalidade da sua natureza, à qual temporariamente
prestara ela alguma atenção. Rosarito apodava-os de «tratantes», de
«escumalha da terra» e de «raposos malcheirosos». E retiravam eles disto o
galardão que os reconhecia como dilectos comparsas de antanho. Sacudia
então a rapariga a bainha da saia das lamas que iam secando, e que se
evolavam em pó, e extraía desse gesto o certificado de se deparar
definitivamente adulta.

Mas a verdade é que perdera a graça com que articulava as palavras,


esforçando-se por mostrar-se entendível ao surdo que lhe saíra na rifa. No
silêncio é que se guardava, no silêncio é que medrava a despeito da minha
revolta. E eu debruçava-me para a tarefa que ela empreendia, detectando a
penugem cobreada que, iniciada na nuca, se entranharia sem dúvida pelo
início do desfiladeiro das nádegas. E apelava a toda a obediência a mim
mesmo, no intuito de que não se me convertesse o achado em loucura,
distraindo-me do respeito que me devia, e da urgência dos projectos que se
impunha concretizar antes que a morte me levasse. Como dizer então o que
aconteceria afinal? Corrigia-lhe o contorno de um rosto, experimentando o
aroma do soluto de jasmim com que persistia ela em borrifar-se. De súbito
apoderou-se-me Rosarito da mão, libertou-a da mina em que por defesa se
enclavinhara, colocou-a aberta sobre o seio esquerdo. E não sei que medo
me tomou que não ousei esbofeteá-la, não sei que soluço se me desfez no
peito, nem que lágrimas me inundaram os olhos apagados.

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Quando começa uma púbere a enfeitar-se com grinaldas de flores
campestres, é certo e sabido que se prepara para abrir as pernas, ou para
professar num convento de Carmelitas Descalças. Sucedeu isto com
Rosarito pela época de trovoadas daquele Outono acre em que principiara o
Rei, recentemente restaurado no trono, a dar mostras de esquisita
benignidade. Mas rapidamente se fartava a adolescente dos seus ademanes
arcádicos, evoluía com um estouvamento que lançava por terra os
tortulhos, e aninhava-se a um canto do pátio, trauteando umas coplas que,
ponteadas por inauditos requebros, assumiriam em quem as escutasse
ressaibos de brejeirice insuportável. De uma feita, descendo eu
pesadamente, e após a sesta, a fiscalizar os jornaleiros que varejavam os
oliveiras a nascente da Quinta, defrontei-me com a cena que ainda me
apavora recordar, mas de que não me retenho de inserir aqui a notícia.

Achava-se encostada a miúda ao tronco de um choupo, e jazia ao seu


lado Dom Beltrán, semelhante a um cabrito, atado das quatro patas. E ora
puxava ela as orelhas do bicho até que soltasse excruciantes latidos, ora
entre os gritos lamuriantes do infeliz lhe flagelava o ventre com um molho
de ortigas, as quais cautelosamente segurava, e de forma a não se ferir,
embrulhadas no xaile de caxemira. Do meu esconderijo atrás das ramas das
estevas despidas que o vento não deixava de agitar, e que por ali existirão
tal vez ainda, assistia eu a estas torturas infames, e não lograva formular,
nem para meu próprio uso, a mais primária das indignações. Regressando
porém a casa com os relâmpagos da tormenta seca, a estourar à minha
volta, caíam-me como bagas as lágrimas pela cara abaixo. E avantajava-se
aquela Hécate juvenil, imolando o seu cão mais fiel à tirania do desejo que
a avassalava, prometendo-se à eterna música dos prantos que ecoam nas
paredes dos círculos infernais.

A variados desmandos, botava-me eu a considerar, se entregaria sem


dúvida Rosarito. E dediquei-me a decalcar-lhe as passadas, cuidando de
que se sentisse mais liberta do que nunca, afectando implicar-me
profundamente nos trabalhos que trazia em curso, quando a verdade é que
se me tornava qualquer ocupação que não fosse a contínua, e cada vez mais
viciante, de a espiar, fardo a que ansiava por me subtrair. Aprendi a adoptar
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a velocidade de marcha que se conjugasse com a sua, estudei-lhe as
manhas com que fingia ela prescindir de um percurso para mais
afoitamente o retomar adiante. E descobri de que excitadas esperas, de que
aparentes recusas, de que furiosas entregas se tecia o padrão da sua
perversa existência. Não havia nela movimento de alma que eu não
detectasse, nem em mim projecto de a estrangular que esforçadamente não
reprimisse.

Presenciei então o quadro que tanta, tanta vez se me representara perante


os olhos fechados. O macho, tendo-a avistado, quando a douda emergia da
orla das giestas desabrochadas, foi caminhando em sua direcção. Mas a
rapariga prosseguira como se o não visse, permitindo que arrastassem pela
areia as fitas do chapéu de palha que retirara. E eu calculo que iria
cantarolando em surdina uma das suas modinhas. Quedaram-se enfim face
a face, estendeu o rapaz a mão direita, afastou-lhe do rosto o cabelo que o
vento espalhara. E passou uma cegonha, e eis que lhe seguiram ambos o
voo com o olhar. Vagarosamente ia-se desnudando Rosarito, primeiro o
vestido, depois os saiotes, e debaixo destes levara-se já inteiramente nua. E
o moço desfez-se da jaleca, baixou as calças na frente. Eu desviei a mirada
daquela monstruosidade, o coração pulava-me no peito, plantava-se a
morte além na outra margem do rio. Quando voltei a atentar neles, estava a
maldita deitada ainda, arrancando com algum destempero a erva que se lhe
estendia à beira. E o macho, o macho obstinava-se em urinar de costas para
o Mundo.

«Procura o cigano que me explicou como se amolam as navalhas»,


ordenei a um recoveiro, «e diz-lhe que estou muito velho, que necessito de
um entretenimento que me desvie destas telas e destas tintas que me
arruínam a saúde.» E acrescentei, «Pede-lhe que me arranje quem se
disponha a realizar um serviço que ainda não acertei com o que seja, retirar
a pele das víboras que por aqui se arrastam, ou cortar as coxas das rãs que
tanto aprecio, ou mesmo raspar o ouro de umas molduras que guardo, e que
não me satisfazem no brilho que exibem.» E concluí, «Pode ocorrer até que
o encarregue, ao tal homem que o cigano me conseguir, de ensinar um
certo macho, meu amigo, a socorrer-se de uma boa naifa de Sevilha, isto
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porque lhe haverá de ser semelhante lição de utilidade oportuníssima, tão
ameaçado que me afirmam andar o dito presentemente».

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Em certos momentos supor-se-ia ser esta aniquilação o termo de uma
agonia que fora vivida já, e cuja lembrança, materializando-se no presente,
se não acompanhava da sugestão de uma forma de recidiva. Insuportável se
lhe fazia entretanto o pânico da ausência de um horizonte, atingível pelo eu
consciente, ou o terror da sua presença, mas sob o aspecto que assume ele
na dedução de Aquiles, ao advertir Ulisses, aquando da descida ao Hades,
«Bem melhor será permanecer na Terra do que governar sozinho um reino
de fantasmas desencarnados.» Entretecia-se-lhe firmemente em semelhante
temor o da incapacidade física, e dava consigo aflito diante da expectativa
do ataque que o atingisse, tolhendo-lhe os membros, e afiguravam-se-lhe
atadas as pernas, ou insensíveis os braços, ou imobilizada uma das faces. E
o domínio que sobre ele exerciam tais terrores ia ao extremo de em última
instância se sentir impelido a solicitar a ajuda de quem passava, ocultando
a verdadeira origem do seu estado debaixo da alegação de que era
diabético, e que se achava prestes a desmaiar. Muito prontamente se
dispunham os abordados a prestar-lhe socorro, insistindo em chamar uma
ambulância, perspectiva que nele produzia o efeito de multiplicar o pavor
desembestado, desencadeando toda a consabida sintomatologia, fenómeno
que apesar de compreendido no seu mecanismo não deixava de se lhe
impor, dotado de intensidade proporcional à do esforço com que intentava
controlar-se. E se não eram as crises afinal que receava, ou a ansiedade de
que se declarassem, era o susto de se ver de novo na humilhante
contingência de ter de implorar auxílio, e de surpreender os outros, e de
pura e simplesmente projectar a imagem de um pobre de espírito, ou de um
cobarde, diante de uma ilusória ameaça que as criaturas a sério afastavam
por meio da mais elementar expressão da sua vontade. Onde se
implantaria, perguntava ele, o mecanismo que facultava à maioria o
reconhecimento do injustificado das suas reacções face ao que jamais se
configurava? Dar-se-ia a circunstância de se encontrar avariada no caso
dele a maquineta que permitia a qualquer um tranquilizar-se, quando enfim
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confrontado com o apagamento do risco, ou da sombra dele? Por que
estranha influência recrudescia no seu caso o medo, alimentando-se de si
mesmo, indiferente a toda a consideração de razoabilidade, a tudo quanto
ele próprio de antemão conhecia, e em virtude da experiência que ia
acumulando? Não se esconderia a resposta a tais questões nas páginas de
um remoto tratado da Escola de Viena, mas acontecia que diariamente ia
nele crescendo a insólita convicção de que a explicação da moléstia
suprema, denunciada pelo contínuo surto do rosto de Medusa, haveria de
depender de um agente que se implantava dentro e fora dele, e que se
conformaria numa altíssima revelação.

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Não leva muito tempo Dom Francisco a convencer-se da possessão de
Rosarito. A cada passo descortina no fundo mais fundo dos olhos da
pequena, sobretudo quando se revela esta menos precavida, aquele
relâmpago amarelo, vindo de um horizonte de tumbas descerradas, que se
nos depara no relance dos bichos em cólera. E adivinha debaixo do rosto
mimosinho da adolescente, ao destacar esta de súbito a atenção do lavor
das suas miniaturas, a caveira que alguns meses após a morte se há-de
cobrir tão-só de pele pergaminhada. Tudo isto configura na ideia do velho
iniludível sinal de compadrio com o Demo. E mesmo aquela extremada
frescura do gesto e da entoação com que expede a observada as suas frases
faceiras, «Ai como gostaria que me servisse alguém o chocolate bem
quente!», ou «Não sei que faça de um livro antigo que tenho, e que trata de
uma princesa que guardava patos», mesmo isso aparece ao pintor como
definitiva prova da dissimulação que se esmera nos que sustentam
entendimento com o Porco-Sujo.

Altas horas, revolvendo-se no convívio, entrecortado de sono, com os


monstros grosseiríssimos que o habitam, jurará Dom Francisco pressentir
Dona Leocadia e Rosarito, escapulindo-se ambas por uma das portas
traseiras, transportando ossadas com terra agarrada, embrulhadas num
xaile, sapos mortos, ceroulas que o velhote retirou, maculadas nos
fundilhos, ovos chocos, coisas assim. E segredando-se incentivos e
cumplicidades, tomarão as duas o caminho de um dos cerros vizinhos,
tropeçando não raro em seus próprios vestidos, rindo muito da escapa-dela.
Subirá a lua então entre nuvens que se abrem e fecham por acção de certos
corpos translucentes, e não ladram os cães, nem cantam os galos, só o
sopro se escuta de um raposinho amedrontado. E chegam à anfractuosidade
daquela rocha, e nela se entronizará o Grande Cabrão, rodeado por um
mulherio em escarcéu desenfreado, confabulando de moléstias deletérias e
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de amores transtornados, cosendo e descosendo bainhas, mordendo-se na
inveja do cuidado que o senhor a que obedecem dispensa a cada qual.

E salta precipitadamente Dom Francisco da cama, e rabisca a carvão na


folha branca que mantém sempre ao lado o esboço do espectáculo que lhe
sobreveio. E aproveita para aliviar a bexiga perra no penico de porcelana
de Talavera de la Reina, e despede a fiada de peiditos que o encantam,
provocando o laivo de sorriso que lhe adoça os beiços. Já distintas visões o
arrastam contudo, esquecido das bruxarias do femeeiro da Quinta, que as
empalme o Diabo, que rebentem no meio das suas danças descabeladas,
que o deixem em paz que para nada necessita delas! E emergem da sombra
aqueles que lêem um papel interessante, e que serão os que lhe
sobreviveram, e espantar-se-ão com os termos do testamento que Dom
Francisco largar, segundo os quais nem um chavo haverá de ir ter ao bolso
das megeras, que se arranjem, que ganhem a vida à própria custa como ele
a ganhou, que se encostem a outro que caia na esparrela! Parecem duvidar
os leitores do conteúdo do documento, mas não abandonam a releitura dele
como se nem tudo houvesse sido dito ainda, e ocorrem-lhes as injúrias que
o artista finado merece, ingrato filho da puta, cínico sem vergonha,
refinadíssimo traidor.

Manhã cedo, mascando vagarosamente, e de feição a não sobrecarregar


os quatro dentes que lhe restam, examinará Dom Francisco, esforçando-se
por atravessar a neblina das remelas que lhe marcam o início do dia, as
olheiras que sublinham a mirada tristíssima das suas amigas. De modo a
que o percebam falará, não sem a ironia dos que se incluem no número das
vítimas, das vantagens sociais do desempenho da Santa Inquisição. E
aduzirá ele, «É que senão já viram como enxamearia este Reino de bruxas,
ou de pobres de espírito que o julgassem ser, gente que terá nascido porém
para a sandice sem cura, e que melhor cobraria seu lugar no hospício dos
doudos, presa a fortes grilhetas, se fosse razão disso, ou contida numa
enxovia onde apenas vivessem os que lhe fossem semelhantes?» E
acercando da boca a tigela de leite com sopas de pão, não se esquecerá de
acrescentar, «Eu voto pela insultuosa condenação de todas as feiticeiras,
que valem elas, que nos importam, que querem de nós?»
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Não se entreolham as mulheres, e o pintor compreende exactamente
porquê. Levanta-se a custo, soergue uma das pernas, a aliviar o traseiro da
prisão dos calções que sempre terminam por lhe afectar o hemorroidal, e
abala para a oficina. Rosarito juntar-se-á a ele mais tarde, afigurando-se
muito cordata, muito aplicada à sua tarefa, muito pronta a executar as
cousas com perfeição. Quanto a Dona Leocadia, conforme aquilo que Dom
Francisco conjecturara, ajoelhar-se-á na seu genuflexório, baixará a fronte
que o Grande Cabrão beijou, e iniciará uma ladainha de medos e de
perdões, de longos desejos exaltados.

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Muito erecta, protegida pela touca que presumia defendê-la dos
resfriados, eu sabia exactamente o teor da carta que Dona Leocadia ia
redigindo, e que haveria de ser o seguinte, «Senhor Mister Hoogen, meu
muito senhor meu, perdoará Vossa Senhoria o estouvamento desta carta,
inspirada pelas provas de tanta e respeitosa afeição, patenteada por Vossa
Excelência a meu defunto marido, e recordada por mim e por minha pobre
filha Rosarito como uma espécie de abrigo bonançoso a que a nossa família
se remetia em tempos bem mais venturosos, oh quanto mais venturosos!,
do que os que correm ao presente. Não desconhecerá por certo Vossa
Excelência o estranho despacho que levaram as nossas vidas, a de minha
filha e a minha própria, as quais no desempenho de uma acção
misericordiosa, e porventura nem sempre compensada pelo
reconhecimento que de resto não buscávamos, colocámos ao serviço do
Senhor Dom Francisco, afamado pintor de Sua Majestade o Rei, achegado
àquela extrema velhice irresponsável, se bem que não raro consciente do
grande mal que pode provocar no coração e na alma dos que a apoiam
como bordão finalíssimo. Pois volveu-se-nos a existência, Excelentíssimo
Senhor Mister Hoogen, um constante vale de lágrimas, e não fora a penúria
em que de nós se despediu o meu finado, há muito já que teríamos trocado
esta deplorável condição dos nossos negócios por algum trabalho, se bem
que duro, que fosse honesto e capaz de nos prover ao termo da jornada com
o caldo bem quente, mas sobretudo com essa paz de espírito a que nada
verdadeiramente equivale. Confessar-lhe-ei apenas, e uma vez mais
imploro de Vossa Excelência a paciência de me escutar, que tantas e tão
bravas têm sido as crueldades de Dom Francisco, arrimado como parece a
uma vontade malfazeja, que até já nos tem surgido a morte como única e
redentora porta, susceptível de nos oferecer a evasão do inferno diário em
que nos debatemos. Ele converteu-se de facto no azorrague com que um
destino implacável nos brindou, mas que não se nos afigura justificado pela
menor das faltas contra a lei de Deus que houvéssemos acaso cometido. A
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todo o instante nos expulsa este senhor do seu convívio, nos desautoriza na
presença dos criados da Quinta das aforas da Capital onde nos
estabelecemos, nos fiscaliza os menores passos como se indagasse de
permanentes razões que alcançassem comprometer-nos a seus olhos. E o
triste anjinho imaculado que é a minha doce filhinha, castigada a toda a
hora pela tirania de um ancião que sobre ela não detém quaisquer direitos
naturais, e muito menos os que a moral referenda por nascerem da
caridade, cresce sem frescura neste leito de Procustes pois que outra cousa
lhe chamará a minha considerável ausência de letras? Senhor Mister
Hoogen, perdoai-me tanto e tão confuso desa bafo, e entregai-o à conta da
antiga amizade que uniu as nossas duas casas. Do desarranjo dos sentidos
do tirano que nos escraviza, e ao qual, e apesar de tanta desconsideração,
prosseguimos devotando, já não digo o carinho, mas os cuidados que
reclama de nós a sua provecta idade, e mais os achaques, e mais a surdez
completa com que a Providência Divina o quis castigar, do dito desarranjo
falariam as pinturas abjectas com que resolveu o implacável cavalheiro,
desprezando a beleza dos seus trabalhos de antanho, e os bons proventos
que deles sempre adviriam, cobrir as paredes desta morada de horrores.
Bem clara se nos torna na realidade a terrível paisagem que habitará a sua
cabeça, a avaliar pelos trechos dela que assim deixa ele transparecer.
Rosarito treme de pavor, ao contemplá-los, ensarilhando-se-lhe os dedos
no teclado do piano que constitui a sua única distracção do intervalo das
pinturinhas que o nosso carrasco a obriga a executar, e foge para o quarto
onde a esperam noutes que, devendo ser povoadas pelos sonhos cor-de-
rosa que em regra visitam as pequenas virgens, se lhe transmudam porém
em infindáveis corredores de insónia sem remédio. Não me permite o
respeito que me confiro, e uma promessa que fiz à minha menina, vir
suplicar-lhe, Senhor Mister Hoogen, seja o que for de material. O estado
destas duas infelizes mulheres haverá todavia de tocar o coração de Vossa
Excelência, e de o impelir a realizar para elas um futuro que as libere de
tamanhos padecimentos. Nada possuo de meu, nada espero receber por
morte daquele a quem sacrifiquei o que poderia ter sido o remanso de uma
digna viuvez. No momento em que escrevo estas linhas avisto-o, passando
por detrás da vidraça à minha direita que dá para o pátio, e arrepiam-se-me
as carnes, conforme sucede, e continuará sucedendo, ao inesperadamente o
descortinar. Lá segue ele, muito espesso, apoiado à bengala, de sobrecasaca
suja como usualmente do pingo do azeite das caldeiretas que teima em
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comer, saltando dos abismos da sua surdez as pragas e as blasfémias do
costume. E eu recolho-me a esta miséria, e dirijo ao Altíssimo uma prece
pelo futuro da minha filhinha, e choro copiosamente como todos, todos os
dias. Cumprimento com todo o respeito Vossa Excelência, e impetro enfim
as desculpas que possa dispensar-me pelo tempo que tão atrevidamente lhe
ocupei. Leocadia.»

E eu percebia que a mulher se alvoroçava diante do que quer que


surgisse como sinal do meu decaimento. Via-me erguer da cadeira com
uma torção do rosto, indício da punhalada que me perfurava os rins, e um
clarão de alegria atravessava-lhe o olhar. Mas não se fazia isto tão claro
como o digo porque a acometia também, ao adivinhar a minha próxima
partida, uma nervosa apreensão, uma espécie de pergunta atormentada
sobre o que sucederia depois a ela e à espevitada da pimpolha, que
laboriosíssimas estratégias adoptaria com os herdeiros, a fim de que
viessem a caber-lhe, e a título de imorredoira gratidão, algumas migalhitas,
caídas da mesa. Suspirava então Dona Leocadia, cruzava as mãos no
regaço, e calculo que se encomendaria a uma coorte de santos do exército
celestial, trocando por esmolas e novenas a especiosa protecção.

Durante os meus passeios, solitários depois que Rosarito me traíra, ia-me


apercebendo de como era ondulante e esfumada a paisagem, raramente se
precisando em suas linhas. E a tristeza descia-me à alma, amargurada pelo
que bem sabia significar aquela despedida dos contornos e das cores. Para
onde fora a concisão de antigamente, os volumes que, uma vez entrevistos,
logo se dispunham na tela projectada, as iniludíveis tonalidades do verde e
do azul e do amarelo, enquadradas pela chapada do vermelho, através das
quais se me arrumava o Mundo naquilo que ia pintando? E já não atinava
se procediam da enfermidade, se da mágoa, as lágrimas que me
assomavam. «Dom Francisco», haveriam de rosnar os garotos que me
avistassem, «tem um lenço tão grande, tão grande, que mais parece a

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mortalha em que embrulharam o arrenegado do jardineiro Simón, o que se
pôs ao dependuro de uma corda.»

Não me escasseava porém o apetite. Impelida pela ânsia de me


despachar prontamente, preparava-me a megera as grandes iguarias da
minha predilecção, leitões muito tenros, tostados a preceito, trutas de
escabeche, queijos de que nunca me fartava. Lá ia eu arrastando as pernas
cada vez mais pesadas, e atabafava debaixo das mantas, cheio até às goelas,
arrotava sem remédio, esvaía-me em diarreias. Espiava a avantesma da
viúva estes desarranjos, e acho que sorriria, comentando de si para si,
«Como vai refeitinho o Senhor Dom Francisco, que lhe dê bom proveito,
que lhe sirva, que lhe sirva!» E as bruxas reuniam-se à noite à volta da
minha cama. No dia seguinte repimpava-me ao almoço, jurava não me
deixar engodar por aquelas armadilhas, mas não tardava a que botasse a
mexer as mandíbulas, sempre em silêncio, sempre sozinho.

Quando uma fúria me arrebatava, ou porque não haviam metido as


broxas em diluente, ou porque tinham vendido um alqueire de azeitona sem
minha autorização, lançava-me a barafustar com maior raiva do que a que
dantes me assaltava. E observavarn-me os da casa como se eu fosse um
pobre de espírito, mas prosseguiam sossegadamente nas suas tarefas,
indiferentes ao desvario do patrão. Adiantava-se a mulher com o seu cesto
de roupa saída da barrela. E estendia-a a corar, movendo em sucessivas
caretas os beiços, isto para que entendesse eu que cantava a maldita a
plenos pulmões uma romanza que se referia aos galanteios de um cavaleiro
jovem, à sedução com que enlaçava a virgem que abalava para a fonte, de
cântaro enfiado no braço. Compreendiam os criados a provocação, e eu
imaginava que entrariam em coro com ela, e não faltava quem
arremessasse um calhau a Dom Beltrán, o qual disparava, ganindo como
um perdido.

Haviam-se tornado entretanto mãe e filha absolutamente inseparáveis.


Sempre em segredinhos, atirando-me miradas de revés, andariam
organizando, suspeitava eu, os magnos festejos da minha morte. «Não
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teremos muito que esperar agora, minha querida», avançava a matrona, «e
louvado seja o Senhor por nos trazer ao termo de tamanhos cuidados, o
velho está pronto, além de mouco vai ficando cego, bem se afirma que
castiga Deus, nosso Pai, sem pau nem pedra, e que lhe seja leve a terra, é
tudo quanto desejo, e não te aflijas que não nos quedaremos desvalidas,
conheço de que forma impor os direitos que nos assistem, e ademais
possuímos amigos poderosos». E retrucava a mais nova, «Que a Virgem do
Rosario a ouça, minha mãe, que por mim não descubro o que lhe responda,
assim como assim antes me quero casada com um traste qualquer do que a
receber as carícias daquele mostrengo.» Eu adormecia em cada sítio, e nos
dentros da cabeça escutava esta conversação. Enroscava-se Dom Beltrán
aos meus pés, todo chagado dos pedregulhos, e doía-me o resfolegar do
desgraçado bicho, meu companheiro sem queixas, nas fibras secretas do
coração.

E o desventurado Dom Beltrán não se volvia menos taralhouco do que


eu. Prolongava como o dono as sestas pesadíssimas, estremecendo em seus
pesadelos, os quais deveriam incluir gatos colossais que lhe apertassem o
pescoço com um garrote, trupes de ciganos que à chicotada o obrigassem a
executar uma pirueta. Já não retendo forças como dantes para se erguer nos
quartos traseiros, a apoiar as patitas da frente no meu joelho, contentava-se
com o calor que ainda me restasse nos tornozelos. E se com simuladas
falinhas mansas viesse a pequena tomá-lo ao colo, intentando levá-lo dali
sob o pretexto de que se impunha que comesse, ou de que encontrasse
ninho mais adequado, roncava-lhe o sabido, cravando nela o olhar onde
chispava o relâmpago do ódio.

Mas nem assim desistia Rosarito de pretender exercer sobre o cão


império igual ao que desejava impor às pessoas. Inventava uma linguagem
fagueira assim, «Deixa-te estar, meu tesouro, a menina gosta muito de ti,
ah como tens as orelhinhas frias!», e desempenhava os ritos que lhe

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inculcara a mãe como inseparáveis da histórica sedução feminina. Por duas
ocasiões estivera o bicho a pontos de lhe morder o pulso, mas nem por isso
abdicava a miúda dos seus propósitos, detestando reconhecer-se vencida
naquele jogo em que não colocava todavia Dom Beltrán a mais ligeira, a
mais disfarçada das astúcias. E de tal maneira iam lutando à minha vista a
lealdade e a hipocrisia.

A partir de certa altura cessaram de cicatrizar as feridas com que o


haviam brindado os excomungados que o execravam. Transformadas em
pústulas, supuravam horrendamente, e nem disso se queixava o pobre,
optando por jazer ofegante, de língua descaída e de olhar vidrado. Apenas
denunciava alguma consciência, ao aproximar-me eu, esforçando-se por
emitir através de um vago aceno da cauda o inconfundível sinal da sua
gratidão. Eu repelia as moscas que lhe zumbiam em torno, cobria-lhe com
a mão aberta a cabeça atormentada, segredava-lhe terníssimas cousas de
que jamais haveria de me arrepender, mas que nunca ousarei repetir seja a
quem for. E ficava de plantão, arvorado em guarda do meu amigo, sempre
que a catraia surgia, transportando a malga esbeiçada que garantia conter
um unguento curativo, com o qual ineficazmente borrifava as úlceras do
infeliz.

Um dia escorei-me na minha vontade, despachei Rosarito com as suas


tigelas, proibi o acesso de Dona Leocadia que teimava na proclamação
destes doutos conselhos, «O coitadinho precisa de ser sangrado, e não seria
melhor fazer um defumadouro?, para falar verdade melhor fora que Nosso
Senhor lhe retirasse a vida.» Sentei-me então à espera do físico que
mandara chamar, e não me envergonho de admitir que me atirei a dizer a
oração de socorro aos brutos que minha mãezinha costumava recitar,
quando andava a peste no gado, e que tanta, tanta vez desencadeara efeitos
prodigiosos.

Avançou o convocado, de chapéu de bico e de amplas golas à holandesa,


tirou um tubinho da mala, e pôs-se à escuta do que sucedia no interior do
peito do doente. Aplicou-lhe outro tubinho ao lombo, e realizou idêntica
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operação. Examinou então os olhos de Dom Beltrán, descerrou-lhe as
fauces, cheirou-lhe a bocarra. Só depois, e com suma cautela, foi
analisando à lupa, e uma por uma, as chagas que o rolam. E como se
percebesse a intenção destes passes, e se apiedasse da nossa ciência de
humanos que tudo julgam conhecer, prestava-se o coitadinho ao que quer
que fosse, não sem uma réstia, é necessário referi-lo, de divertida ironia.

Anunciou o entendido o termo da longa observação, e quedou-se por


instantes a mirar-me fixamente, futuro eu que resumindo as ideias, com
vista a atingir a afirmação conclusiva do movimento do seu espírito.
Regressara Dom Beltrán entretanto àquele sono de febre, e calculo que do
lado de lá da porta da oficina se postariam as duas cabras, muito atentas,
aguardando o que ardiam por que fosse uma sentença de pena capital. O
físico porém não se precipitava, antecipadamente medindo o peso das
palavras com que não ignorava ir traçando, não somente o destino de um
cão, mas o resto da extensíssima vida do próprio dono dele. «Sí sabrá mal
el discipulo», tartamudeei eu. «Que me conta, Senor Dom Francisco?»,
perguntou o homem. «Nada, Senhor Físico», respondi eu, «absolutamente
nada, cousas passadas que de longe a longe me alembram.»

E enquanto ia guardando os tubinhos, e limpando os dedos num lenço


tabaqueiro, maculado por outro pus, deitou-se ele a perorar, «Mas trata-se
de um perro, Senhor Dom Francisco, e um perro é um perro, um cavalheiro
um cavalheiro, e por muito que nos afeiçoemos aos irracionais é mister que
situemos, Senhor Dom Francisco, cada espécie em seu devido lugar, já
reparou em como parece um querubim a sua menina?, é Rosarito que se
chama?, Deus o guarde, Senhor Dom Francisco, enviar-lhe-ei o recibo dos
meus serviços, mas o bichinho vai morrer, não há que escondê-lo, vai
morrer, e bem depressa.»

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Lembrar-me-ia para o futuro daquela nefanda semana, acompanhando
Dom Beltrán no trânsito deste Mundo ao plano onde sobrevive a alma dos
brutos. E registo-a como o tempo da descida aos infernos, a qual jamais
perpetrara antes, nem por virtude do falecimento da minha fidelíssima
consorte Josefa, nem por razão do trespasse dos filhos inúmeros que os
deuses me haviam concedido, a fim de mos roubarem, tamanhinhos ainda,
e vergonhosamente. Deitava-se Dom Beltrán numa almofada que havia
servido de apoio à cabeça da duquesa da minha vida, e não me distraía eu
de o abanar com um leque que tinha pintado sobre papel o concerto de
flauta com que atrai Orfeu os animais benfazejos da Terra. E como
houvesse ordenado que ali mesmo à oficina me levassem as refeições,
munindo-me de infinitas cautelas, escolhia os nacos de carne que desfiava,
e que ensopava em leite, e conduzia-os à boca fastienta do meu pobre
moribundo.

Agravava-se-lhe porém o mal, conforme prognosticara o físico, de dia


para dia. Já não erguia o focinhito, nem agitava a cauda, nem mantinha
abertos os olhos. E inteiriçava-se-lhe o corpo contundido, e parecia ir
perdendo aquela pelagem que fora sedosa o encanto que lhe advinha da
vitalidade normal. A horas esconsas, e porque suspeitava de que o meu fiel
entendia quanto lhe dissesse, tomava eu um livro de fábulas, e lia-lhas
vagarosamente, intentando decifrar as letras que sempre se me afiguravam
miudíssimas através da densa neblina que me enchia os olhos. «Falavam
então as bestas», contava eu, «e viviam felizes com os homens que as não
perseguiam, e que com elas festejavam as maravilhas da Criação, e bebiam
da mesma fonte abundante, e concedia-lhes o Senhor a existência eterna, e
não havia dor de parto, nem canseira de trabalho, nem medo, nem
crueldade, nem doença.» Não dando sinais todavia o meu enfermo de
apreender o sentido de tais palavras, rolavam-me as lágrimas copiosamente
pelas faces, e assim adormecia, boiando num mar de angústia.

A meio da noite despertava-me um tumulto de festa nos recessos do


crânio. Assomava ao postigo, e deparava-se-me iluminado o pátio maior da
Quinta, e chegava-me às narinas o odor rançoso do azeite das luminárias, e
eram tudo sombras e sombras para além da vidraça. Mas eis que, firmando
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a vista, apercebia-me daquela louca verbena que Dona Leocadia e Rosarito
haviam organizado, a celebrar a agonia do que tão dedicado me fora, e que
jazia agora nas garras da velha indecente que nos há-de ceifar sem
distinção. Ouvia o rufo das pandeiretas e o claque-claque das castanholas, a
batida das tamanquinhas no empedrado. E como se uma longa vertigem me
assaltasse voltejavam diante de mim os vidrilhos das saias negras,
adejavam os xailes de ramagens vermelhas, giravam as faixas que
apertavam os quadris enxutos dos moços que o cio transtornava, e tudo se
me antolhava um novelo de fuligem e de sangue. Alheio à festança que
palpitava lá fora, abismava-se Dom Beltrán na sua modorra, penetrava nela
degrau a degrau, e seguia-o eu no árduo itinerário por desfiladeiros que
acediam ao rio frigidíssimo que nos corre ao fundo.

Regressava então ao sono, se é que alguma vez dele me isentara, e


projectava o que faria enfim, quando cessasse de ofegar aquele ser dorido,
e as moscas formassem sobre ele a chusma que costuma afluir aos
banquetes, sejam de nascimento, sejam de morte. Subiria de tom a música
do baile, e haveriam de esborrachar as duas bruxas o rosto, reluzente do
suor da folia e da gordura dos presuntos, contra a encardida vidraça da
oficina. E eis que, avistando a carcaça do meu cão, iriam descerrar elas os
beiços sobre os dentes apodrecidos pelo vício das guloseimas, e soltar três
vivas descarnados, deixando cair as pálpebras de puro deleite como se as
visitasse o paroxismo do amor.

Minuciosamente punha-me assim a preparar os funerais de Dom Beltrán.


Avançariam os frades capuchinhos de círio alumiado, de corda à cinta que
arrastasse pelo chão. E secundá-los-iam os grandes do Reino, de veludo e
de crepes, anunciados por pajens que arvoravam o pendão com as insígnias
das casas respectivas. Caminhariam depois os indigentes dos hospícios, e o
povo que desejasse agregar-se à procissão. E no seu ataúde, amortalhado
num pano de damasco amarelo, decorria perante o espanto dos
circunstantes Dom Beltrán, e encomendariam a sua alma os familiares do
Santo Ofício, balançando turíbulos donde ascendia o fumo do incenso.
Confundidos na sua arrogância, na sua inveja e na sua boçalidade,
assistiriam ao desfile as duas mulheres que me envenenavam os últimos
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momentos, mordendo-se de raiva e de despeito, de pulsos e de tornozelos
lacerados pelas grilhetas que as prendiam. E ao toque das doze badaladas,
quando o ar da meseta sob o quarto crescente se satura dos que andam
penando sem descanso, baixaria o cadáver do meu perro à pútrida cisterna
do panteão dos Reis.

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Viria aquele mal aos poucos, consultados variadíssimos oráculos, a
reduzir-se a uma etiqueta que possuía o efeito de o reorganizar. Falavam-
lhe por fim de uma condição de que lhe explicaram padecer uns quase
cinco por cento dos habitantes do Mundo, sendo a ampla maioria mulheres,
e na percentagem de oitenta por cento. Andava esta gente transida por um
acervo de queixas que envolviam as sensações de desmaio e de
desequilíbrio, a tontura e a palpitação, o engasgamento e a náusea, a
parentesia e o rubor, a cefaleia e a diarreia, a perda de sentido da realidade
e a tendência para a conduta obsessiva, tudo isto fundamentando a
radicação da agorafobia, ou seja, o receio da saída de casa, ou da
frequência das salas de espectáculo, de ambientes fechados ou de áreas de
socialização, contextos estes susceptíveis de despoletar a tormenta do
pânico. Bem diversa de tal fórmula seria a que lentamente iria ele
descobrindo, surgindo-lhe a partir daí como puros paliativos as terapêuticas
que lhe prescreviam. De uma questão de presenças, e da difusa energia do
artista que viera estudar, é que entendia tratar-se, o que pouco haveria de
dever-se ao circunstancialismo genético, e a despeito do eventual peso da
predisposição hereditária, ou ao condicionamento urbano, e isto apesar da
importância de clique da crise representada pelo stress e pela escassez de
espaço vital, ou ao efeito de qualquer oportuna desordem bioquímica,
induzida por um excedente de produção de catecolominas na extremidade
de uns quantos nervos do sistema nervoso central, ou por uma deficiência
de funcionamento dos neurotransmissores inibitórios em outros nervos do
mesmo sistema, o que tudo se mostraria consequência de um certo jogo de
aceleração e de travagem, no qual desempenhariam relevante papel as
prostaglandinas, os iões de cálcio, as membranas celulares, os enzimas, e
etc. e tal. E quase o fascinava saber que convocara um certo Eugene
Redmond de Yale como base operacional, a implicar a densidade dos
neurões de contentores de norepinefrina, responsáveis por semelhantes
desordens, um lugar da parte inferior do cérebro, e de nome infinitamente
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poético, o locus coerulus. Regressado ao cabo de duas semanas à sua sala
de trabalho, nem por isso saudoso do quarto da hospedaria barata,
começaria a escrever as primeiras páginas dos últimos tempos do pintor.

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Aconteceu-me aquilo como se de repente cessasse o Mundo de me
amparar os passos. Destacara-se-me a cabeça, e flutuava muito acima, irmã
da lua fosca que preside aos sabbaths das bruxas. E apartavam-se-me do
corpo os braços e as pernas, tornados independentes do que me pensava o
coração. Uma espécie de ouriço arrepanhava-me o bucho, e julgo que terei
vomitado uma aguadilha fedorenta. Não posso contudo dizer que fosse
aquela experiência uma grande aflição, mas uma espécie de ignorância do
lugar a que pertencia, o do alto ou o do baixo, o da direita ou o da
esquerda. E um assobio longo, idêntico ao dos salteadores que de penedo
em penedo se chamam entre si, atravessava-me o crânio de têmpora a
têmpora, convertendo-me num cabrito indefeso que assasse no espeto.

À minha volta desenvolvia-se entretanto um tropel agitadíssimo.


Arrastavam-se móveis, tiniam louças e talheres, acenavam ventarolas que
punham a mexer o ar muito quente. Não sei se antes disto, se depois,
abeirara-se de mim um padre gordo. O sujeito resfolegava como um touro
acabado de lidar, não garanto que arrotasse porque nem todos os clérigos
arrotam a alho, mas exigia de mim palavras que eu não conseguia oferecer-
lhe. Bateu então o relógio da sala as seis horas exactas. Saídas dos campos,
do celeiro e da adega, da cozinha e da copa, apinhavam-se à minha volta as
cabeçorras bestiais dos que labutavam na Quinta, tolhiam-me a respiração,
encarniçavam-se sobre mim. E admito haver sido esta a maior agonia que
me calhou.

À medida que ia mergulhando numa branda sonolência, e que se me


apagava o contorno das pessoas e das cousas que me circundavam,
fendiam-se-me na memória as pinturas que cobriam as paredes da casa,
regressando a essa nuvem de pó de carvão donde penosamente haviam
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emergido. Quedava-se Saturno suspenso na sua devoração dos que gerara,
afastavam-se um do outro os velhos sobre o seu prato de papas esfriadas,
caíam para trás as loucas observantes do que diante delas se aliviava do cio
que o possuía. Iam escorrendo entretanto os óleos, formando no chão uma
pocilga de gordura, e avançava um exército de centopeias que se botava a
patinhar sem rumo. Depois desta catástrofe eram os próprios muros da
residência que aluíam, e abatiam-se os telhados, e avistava-se o azul
puríssimo que me compensava de todas as consumições.

Lá se plantavam as duas malditas, esperando que o espírito se me


desgarrasse da gaiola que o prendia. E colocava Dona Leocadia o queixo
sobre a mão direita, e apoiava o cotovelo do mesmo braço na concha da
mão do lado oposto. Bisbilhotava um lundum que eu não entendia, e
escutava-a a menina com a atenção do costume. De vez em quando dirigia-
lhes a fala o padre gorducho, e sorriam ambas, e houve uma ocasião em
que retirou a megera velha o lenço da manga, a fim de alimpar uma lágrima
que não lhe notei. Mas logo se remetia ao lento exame da minha pessoa, ali
deitada na vasta cama que fora a das núpcias longínquas, na qual
engendrara a ninhada de que apenas uma cria sobreviveria. E o vento da
meseta sacudia as janelas, e relinchavam os cavalos, não atinava se de
desamparo, se de euforia. Começara um gelo então a ascender-me das
plantas dos pés, a emperrar-me as articulações, a molhar-me a testa de um
suor que me assustava. E pedi água, e foram por ela, e clamei por Dom
Beltrán, e eis que deslizou pelo soalho do quarto o pontual fantasma do
meu amigo idolatrado.

Nem tudo entretanto se transformara em mágoa na minha condição. Ao


termo de algum descanso, e quando pareciam ter-se aquietado em redor os
que assistiam ao que mais tarde designariam por «o grave insulto que
acometeu Dom Francisco», aparecia-me bem afável a existência. Partia em
passeio imaginário, acompanhado por Rosarito como no tempo antigo, e ia
saltando a pequena à minha frente, primorosamente calçada com uns
sapatos de verniz, e tão-só se detinha para procurar trevos de quatro folhas
na margem do caminho. E assim progredíamos em direcção ao rio, e
saudavam-me os rapazes, muito respeitadores, e abeirava-me das ribas, e
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via nadar à transparência peixes azuis e vermelhos e amarelos como nunca
de facto vislumbrara no curso barrento a que desde há muito unira o
destino.

Pouco a pouco abandonaram-me ali. Chegavam ao meu torpor os ruídos


domésticos, despejos de bacias, toques de ferraduras, discussões de moços
de estrebaria. E alargava-se a planície, acolhendo serenamente no seu seio
o artista que iria morrer. Prosseguiam os coveiros na escavação daquela
terra vermelha, e nela escolheriam o buraco para onde haveriam de me
despachar. Mas não me aterrorizava a proximidade do fim. Uma aragem de
violetas afagava-me a face, e se fechava os olhos, descortinava o tronco de
uma árvore, vestido de musgos, florindo numa última Primavera. Sozinho
como nunca, jamais me sentira tão acalentado.

Teimava apesar disto o padre gordo em arrancar-me a confissão


absoluta. Vinha ao cair da noite, sentava-se à minha beira, não sem ter
espevitado o pavio da candeia, a fim de ler as páginas de um breviário
ensebado. E afrontava-me com isto, «A duquesa, Senhor Dom Francisco, e
as outras damas casadas, não é verdade que teve trato com elas, e o fez
contra a lei de Deus, e contra a lei dos homens, e por exclusiva
concupiscência, da qual de resto jamais se arrependeu, como quer o Senhor
Dom Francisco que a Providência Divina lhe perdoe os pecados através
deste pobre vigário que porfia por A servir?» E eu lembro-me de haver
reunido toda a minha força, e de ter cuspido isto com a metade da boca que
me restava, «Cabrão mais infame do que os cabrões inumeráveis que
conheci!»

Recusei terminantemente quanto médico sabichão me propunham, capaz


de tratar o que se me afigurava intratável. Mas eis que me entrou uma
manhã pelo quarto adentro um cavalheiro alto, envergando uma bela

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sobrecasaca cor de pinhão, e se impregnou o ar de um aroma adorável a
alfazema. Ordenou o estranho que abrissem de par em par as janelas,
ignorando os meus protestos de que não aguentava a luz, e de que me
abafava a poeira que subia dos campos. Postou-se então à minha direita,
cruzou os braços, e apresentou-se quase em surdina, e de modo a que lhe
lesse eu facilmente o movimento dos lábios, «Arrieta, uma pessoa que
pretende ajudá-lo», remetendo-se logo ao silêncio que deveria ser
preenchido por mim. Olhei-o de soslaio, e pareceu-me o homem a viva
imagem do que seria, se acaso houvesse atingido aquela idade, uns
quarenta a quarenta e cinco anos viris, o meu irmão Juan, prematuramente
levado pelas escrófulas.

Estendeu-me a mão, e eu agarrei-me a ela, a fim de me soerguer nas


almofadas, e surpreendi-me não pouco, percebendo a minha própria voz,
despeitorando-me de acumuladas angústias com este discurso que há muito
se me enredava no coração, «Quando andava pelos quarenta e tal como o
senhor, antolhava-se-me a velhice interessantíssimo reino a descobrir,
povoado por sentimentos e atitudes que transitavam da serenidade à
contemplação, os quais nos compensariam dos desgarrados arroubos que
experimentávamos ao longo da existência, mas aconteceu que se me
extinguiu o ouvido, e que se me afunilou a vista, e que de cada vez que me
abaixava, a fim de apanhar o pincel que rolara para debaixo de uma arca,
uma dor feroz me abocanhava os rins, e principiei a encarar a alegria e a
frescura dos jovens como se não fossem mais do que um embuste, uma
espécie de inverosímil fantasia que de facto não ocorria a ninguém, e tudo
isto acompanhado pela inveja amarga de todos quantos pudessem ainda
com o corpo que tinham, e seguia apavorado ante a perspectiva de me
chegar aquela frase com que escutara zurzir os que haviam envelhecido
antes de mim, “Põe-te de pé, ó velhote, e vê lá se não voltas a cair das
pernas abaixo!”.»

O médico prestava-me a atenção que eu não discernia em mais ninguém,


e a verdade é que tinha dito eu já tudo quanto me atormentava. Uma brisa
animosa entrava agora por aquela câmara de pesadelos, e lembro-me de me
ter maravilhado com o azul dos ramos da buganvília que adejava defronte
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da janela. Tomou-me então o pulso o Dr. Arrieta, cuidando de não afastar
dos meus os olhos perscrutantíssimos. Fez-me entender por gestos que era
necessário que me assentasse comodamente, e que pedisse água com que
lavar o rosto, e sorriu com essa douta translucência dos seres que
presenciaram quanto merece a pena. Alçou-se depois calma mente, e foi
observar o quadrinho que eu suspendera na parede, e que representava um
grupo de canibais que preparavam as suas vítimas. Acenou com a cabeça
numa forma de assentimento, e voltou para junto de mim.

A partir daqui tornaram-se regulares as suas visitas. Trazia-me um


giguinho de frutos secos, um jornal francês, uma colecção de estampas de
Lucas Cranach que pertencera a um tio seu, e que, conhecidas desde
sempre por mim, me entretinha a reexaminar, tocadas agora pela aura da
oferta. Um dia declarou-me em condições de me levantar, e de ensaiar
algumas passadas em redor do leito. Suportou-me o bastante para que não
tropeçasse de início, e botou-se a vigiar-me de longe, e tal e qual o pai que
patrocina os primeiros exercícios da marcha do filho. Excluídas desta
intimidade, é claro que conspiravam Dona Leocadia e Rosarito por
despedir o físico, taxando de vagarosíssimos os progressos que me sentiam
ir fazendo, sugerindo outra sumidade em sua substituição. Mas vedava-lhes
eu mais do que nunca o acesso ao aposento, e folgava numa ausência que
se me volvia impagável privilégio.

Quatro meses decorridos, entretidas conversações inúmeras com aquele


anjo que o destino me proporcionara, descia eu ao estúdio. E uma tarde
houve em que não me contive, e o intimei neste tom que bem sabia não
admitir réplica, «Deixe-se ficar aí na minha frente, Arrieta, será o tempo
apenas de me fixar em três ou quatro traços do seu rosto, e o cenário, não
duvide, já o guardo eu, e religiosamente, na memória.» E pintei-o enfim,
amparando-me num quase abraço, quando me acamava ainda, e
arrepanhava eu o lençol no convulso gesto dos agonizantes, e me achegava
ele amorosamente o copo do soluto, e hesito entre a vontade que me
assistia, se a de beber o remédio que me ganharia a cura, se a de
permanecer sob a protecção de quem me interpelava. Declarando-me
definitivamente restabelecido, abalou aquele companheiro, rodeado pelo
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inconfundível aroma a alfazema. E mandei-lhe o retrato, envolvido num
lindo pano-de-arrás, e quedei-me a imaginar a breve cintilação da mirada
que tanto compreendia, e em suma sem que falasse, ao descobrir a
dedicatória que eu lhe opusera, «A seu amigo Arrieta pelo acerto e esmero
com que lhe salvou a vida.»

Rosarito prosseguia na senda da sua transtornada crónica de namoricos.


Um magote de galantes, enquadrados por muleteiros e pedintes, estanciava
defronte do portão da Quinta, e eram tudo entradas e saídas, bilhetinhos
trocados, rixas de vez em quando. Penteava-se a rapariga no seu toucador
adornado com fitas e colares, e não havia jornada em que por lá não se
demorasse alguma alcoviteira, dada a rezas e benzeduras, intrigando junto
da criadagem para que em absoluto lhe conferisse a patroa o direito de a
servir. Fiscalizava tudo isto uma Dona Leocadia pernóstica, não perdendo
o ensejo de proclamar as suas regras de moralidade, interessando-se por
cada enredo de amores e desamores como se disso dependesse a salvação
do Mundo.

Sucedeu então anunciar a catraia um dia, e de molde a que corresse


célere a notícia, a decisão de se casar com um tocador de rabeca da câmara
de música do Rei. Tratava-se de um pobre diabo que ia nos cinquenta e
cinco anos, macambúzio e de nariz que quase lhe chegava à ponta dos
sapatos de fivela, e que se apontava à boca cheia como implicado no tráfico
de virgos de menininhas. Mas eis que fizera finca-pé Rosarito, declarando
inabalável a sua resolução, reclamando que se encetassem sem demora os
trabalhos da costura do enxoval. E eu observava o rabequista, a arrastar-se
pelas salas, especando-se boquiaberto diante das pinturas das paredes,
deixando-se conduzir pela mão da noiva, a qual não se coibia de troçar do
infeliz por não alcançar ele equilibrar-se na garupa do mais manso dos
nossos cavalos. Ressentia-se Dona Leocadia porém daquelas núpcias em
projecto, verberando a desigualdade do enlace, mas sentia-se que era o

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ciúme, nada mais, que lentamente a corroía, isto diante da ameaça de vir a
adiantar-se a rapariga como protagonista de funções palacianas, acedendo
quem sabe aos serões onde se musicava, e nos quais sempre entretivera a
mãe o sonho de vir a obter cabidela.

Todas estas andanças contudo se revelariam sol de pouca dura. O noivo


velho foi expedido, eternamente ao dependuro da nariganga desconforme,
para o seio dos seus confrades orquestrantes, absor tos na continuada
execução das peças suavíssimas de Cimarosa. E voltou a reunir-se a
pandilha dos candidatos diante do portão da Quinta, e retomou a moça a
sociedade com as onzeneiras, consultando as cartas na perscrutação daquilo
que o futuro imediato lhe guardava em reserva. Lá recuperava Dona
Leocadia o ascendente de antanho, entretecendo tufos de malmequeres no
cabelo do seu anjo papudo, murmurando-lhe ao ouvido especiosos
conselhos sobre a melhor forma de se conduzir, a fim de lograr o êxito dos
intentos do seu coração.

Assomou o substituto do violinista taralhouco na pessoa de um trintão


italiano bem-parecido, declarando-se príncipe e proprietário de uma fiada
de mansões na margem do rio Amo, e tão influente nos negócios da sua
cidade de Florença que nada se decidia sem o seu consentimento. Relatava
o peralvilho as empolgantes viagens que empreendera pelas Índias
Orientais, e terminou por presentear Rosa-rito com um macaquinho que
baptizaram ambos, sufocados em frescas gargalhadas, com a graça
incomparável de Dom Francisco. Seguia a namoradeira alevantada com a
descrição das opulências que o cavalheiro assegurava corresponderem ao
seu trem diário no reino da Toscana, e prometia-lhe ele garridas
expedições, a Ceilão e a Bornéu, à Turquia e à China.

No Outono subsequente a estas excitações, porventura exausta de tanta e


tão díspar divagação, apareceu Rosarito com o firme propósito de tomar o
véu. Encheu-se a Quinta de freiras gananciosas, azafamadas na escrita do
rol das unidades da roupa de dentro e de cama que haveria de ser levada
para o Convento das Descalças. E incutindo as religiosas no espírito da
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desaustinada a embriaguez dos sacrifícios, era vê-la deslocando-se
dolorosamente sobre umas sandálias cravejadas de preguinhos, ou
emborcando a grandes goladas vinagre com assa-fétida, afastando-se
depois para um quarto esconso que se lhe preparara como uma cela, de
muros cobertos por dezenas de cruzes e de registos e de piinhas de água
benta.

Numa certa ocasião, deu-se isto em vésperas das Festas de Santo Isidro,
acordei para uma casa singularmente aquietada. Desci às quadras de baixo
sem me encontrar com velhotas embiocadas, nem com monjas de hábito
negro, e surpreendeu-me aquela santa ausência de criadas em corridinhas, a
transportar jarrões floridos e bacias fumegantes. Entrando no corredor,
deparou-se-me o espantalho de Dona Leocadia, muito lívida, agitando uma
carta acabada de ler. «Findou-se-nos a vida, Senhor Dom Francisco», terá
exclamado ela, a avaliar pela torção dos beiços, «abalou a nossa Rosarinho,
querida filha, para terras de França.»

Encontrava-me seguríssimo de como viria a ser o futuro da fugitiva.


Pertencendo àquela categoria de mulheres que vivem a mocidade como um
lampejo, e que desenham o resto dos seus dias como um acto de contrição,
calcorrearia Rosarito uma estrada longuíssima, na qual cilada alguma ao
fim de contas se adivinharia. E haveria de se lhe perder o rasto, dissolvida
na multidão deste Mundo, tão vulgar como as mais vulgares, tão anónima
como as mais anónimas. Anunciando-se no começo o seu percurso como
uma fantástica arquitectura do Demónio, acabaria por alcançar a filha de
Dona Leocadia um como que estatuto de santa, da turba daquelas de que
não fala o Calendário Romano.

Recorrendo a antigos conhecimentos do seu defunto pai, principiaria por


se estabelecer a aventureira no seio de um grupo de pequenos aristocratas

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parisienses, residentes nas cercanias da Conciergerie. Tratar-se-ia de
pessoas que pretendiam brilhar pelo reclame da cultura, e que organizavam
partidas em que se cantavam as áreas recentíssimas de Donizetti,
entremeadas pela recitação a destempero das poesias de Chénier.
Precavendo-se das transformações com que ameaçava o curso dos
acontecimentos políticos desestabilizar-lhes o teor da existência,
confinariam os fautores de tais reuniões a sua oferta a um punhado
selectíssimo de convidados, mas daqueles que se achavam aptos a propalar
o sucesso dos serões em que participavam. E sentar-se-ia Rosarito a um
canto do salão, muito abrigada na sua écharpe de musselina, afectando uma
curiosidade complacente, a qual não escondia senão a mais extrema das
revoltas.

Abeirar-se-ia dela então alguém que lhe reclamava os serviços. E tratar-


se-ia em geral de uma rapariga que ficara noiva, e que pretendia trocar com
o esposado um retratinho em oval. Pintá-lo-ia a artista com um mimo das
maçãs do rosto, e numa cintilação dos cachos do cabelo, que se
denunciavam completamente falsos, mas que possuíam o condão de
inspirar o ardor das linhas de uma carta, escrita diante de uma janela aberta
por onde se contemplava a lua cheia. Procurá-la-ia noutras ocasiões um
moço que assentara praça na semana anterior, e que desejava presentear a
mãe com a sua figura, tão varonil quanto possível, estreitada naquela farda
de artilheiro que acentuava a cintura, e que tornava larguíssimos os
ombros.

Dispor-se-ia Rosarito à tarefa com uma doçura que dentro em breve a


converteria no ornamento indispensável de qualquer assembleia. Trar-lhe-
iam não raro uma taça de champagne, propondo-se-lhe que a levasse à
boca nos intervalos do seu desempenho, e acorreriam as crianças da casa, a
admirar a finura com que fixava ela o contorno de um maxilar, e a
inventiva com que punha a luzir uma condecoração. «Mademoiselle
Rosario quase não toca no pincel e nas tintas, e é como se as imagens que
se formam sobre o marfim se originassem no ritmo da sua respiração»,
diria alguém de passagem. E nem sequer estremeceria a pintora, ao escutar
semelhante madrigal, prosseguindo na sua arte com o diáfano sorriso do
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costume.

Concluída a cavalgada dos seus amores de juventude, dos quais apenas


sobejaria um macinho de correspondência, apertado num laço de seda
escarlate, e no fundo de um escrínio de Limoges que ostentava na tampa o
julgamento de Páris, remeter-se-ia Rosarito a um deserto de afectos.
Descobriria um quarto na residência da viúva de um negociante de tapetes,
e aí acenderia à noute a lamparina, e prepararia um chocolate bem quente,
único hábito que lhe provocaria lembranças da Quinta onde crescera. Uma
suspeita de buço dera de sobrepujar-lhe o lábio de cima, e não tardaria
muito a que tivesse de socorrer-se de lunetas, com vista a imprimir
continuidade ás encomendas de miniaturas que não cessavam de chover.

Eu sentir-me-ia inteira e magnificamente vingado. Também a ela haveria


de alcançar a sombra da velhice, o esqueleto amarelento que habita um
invólucro de pele esburacada, e haveria de se prostrar por horas e horas na
cama estreitinha, contando as badaladas do relógio da torre próxima,
refugiando-se do vento que botava a tamborilar as vidraças mal presas nos
caixilhos de madeira. Recordar-se-ia do ancião surdo e mudo de que tanto
havia troçado, e da reinação a que o sujeitara, quando seguia atolambada na
pandilha dos machos que lhe cobiçavam o corpo. E visitá-la-ia a tosse,
exactamente quando o sono chegava, e eis que teria de se soerguer, e de
pedir ao Senhor que a não levasse tão cedo, isto porque não deixa de se
revelar infinitamente prematura a morte que nos espreita por detrás do
reposteiro do quarto.

Eu conservaria de Rosarito aquela imagem que com ninguém, ninguém


iria partilhar. Adormecera entrementes na oficina, imaginando que se me
enroscava ainda Dom Beltrán aos pés. Mas eis que pressenti levantar-se o
ferrolho, e penetrar aquele perfume a violetas que envolvia a inocência da
menina. Fingi permanecer dormindo, colocando-me astuciosamente à
espreita pelas pálpebras semicorridas. Aproximou-se de mim a miúda, e
aflorou-me a fronte com o ramalhete de flores bravias, rindo
silenciosamente enquanto executava o breve cerimonial. E como lhe
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houvesse atravessado o espírito a ideia de que rendera Dom Francisco
entretanto a alma ao Criador, desatou a cantarolar em surdina, usando a
melodia de uma jota da minha infância, «De profundis clamavi...» Implorei
ao Altíssimo que me amparasse no milagre que me devolvesse o ouvido,
que não consentisse que viesse eu a despertar.

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Deita-se o pintor sobre o lado direito, esse que lhe permite o desafogo do
coração. Convoca as presenças conciliadoras do sono, a carícia com que
dele se despedia a mãe no seu leito de morte, o rumor da rama das
laranjeiras que demarcavam o pátio onde se lhe inclinava no ombro a
cabeça ruiva da amante. Afasta do pensamento as bruxas, banindo-as para
as galerias escavadas na falésia, condenando-as aos morcegos e aos cardos.
Respira fundo o artista. Sabe que por detrás das lojas do gado principia a
raiar a manhã. Tenta recordar-se do latim da oração dos defuntos, mas
apenas lhe ocorre a melodia da jota da infância.

Numa das paredes do corredor, e no silêncio abafado, luta Dom Beltrán,


o cão, com o terrível pesadelo, porfiando por se libertar daquela duna
imensa onde mais e mais se vai enterrando. Batem-se numa outra
superfície os dois campónios obstinados, intentando escacar-se
mutuamente os redondos crânios de idiotas sem remissão. Volta Dom
Francisco a respirar muito fundo. Movem-se as três parcas no painel de
tintas lúgubres, trocam risos entre si, e avança a mais implacável, vogando
na extrema ligeireza. Estremece numa gargalhada, corta certeiramente o
débil fio de prata.

Porto, 2 de Setembro de 2002

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Índice
Ficha Técnica
A José Rodrigues

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