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História do Rosto
Tradução de
Ana Moura
Círculo de Leitores
© Éditions Rivages, 1988
Licença editorial por cortesia de Editorial Teorema, Lda.
Título original: Histoire du Visage • Exprimer et Taire ses Émotions
(du XVI' siècle au début du XIX' siècle)
Capa: Suposto Auto-Retrato de Antonello de Messina,
National Portrait Gallery, Londres
Impresso e encadernado para Círculo de Leitores
por SIG — Sociedade Industrial Gráfica, Lda.
no mês de Maio de 1997
Número de edição: 4322
Depósito legal número 110 525/97
ISBN 972-42-1535-0
«Não consigo lembrar-me do nome do Autor antigo
que, na presença de um Estrangeiro que não tinha aberto
a boca em sua companhia, lhe diz: “Fale, para que eu o
veja”; mas, com sua licença, parece-me que nos podem
conhecer melhor através do olhar do que pelas nossas
palavras...»
Addison, Le spectateur ou le Socrate moderne, 1716, T. I,
Discurso LXVIII, p. 439.
7
pressão pessoal. Se os finais do século xvm trazem consigo a vitória
política do indivíduo, esta vitória é também um triunfo da expressão,
de modo que Diderot pôde afirmar: «Num indivíduo cada instante
tem a sua fisionomia, a sua expressão»’. Doravante o indivíduo surge
indissociável da expressão singular do seu rosto, tradução corporal do
seu íntimo. Mas por outro lado, este mesmo movimento que o incita
a exprimir-se ordena-lhe ao mesmo tempo que se apague, que masca
re esse rosto, que encubra essa expressão. O que Louis-Sébastien
Mercier, observador subtil das fisionomias do seu século, soube ob
servar: «O homem (...) teme mostrar toda a sua alma; sabendo que
ela se refugia nos olhares, o homem oculta o seu movimento expres
sivo»6. Exprimir-se, calar-se; descobrir-se, mascarar-se: estes parado
xos do rosto são os do indivíduo7 e constituem o ponto de partida
deste livro.
Estão presentes elementos destes paradoxos sob diferentes formas
em numerosos trabalhos publicados desde o início do século e mais
ainda nos últimos vinte anos, sem que este carácter paradoxal tenha
constituído um argumento sempre manifesto. E o que se passa nos
trabalhos de Norbert Elias e de Max Weber: foi sob os termos gerais
de «civilização dos costumes», para o primeiro8, e, para o segundo,
de «racionalização de comportamentos práticos»9, que ambos pensa
ram este processo de afirmação individual, mas mais ainda de contro
lo de si próprio, de repressão das pulsões, de contenção. Para Elias,
no âmbito da sociedade da corte e do desenvolvimento da civilidade;
para Weber, ligado aos factores religiosos na gênese de uma psicolo
gia burguesa e capitalista.
Michel Foucault, por seu lado, tinha empreendido o captar esta
racionalização dos comportamentos individuais através da extensão
da noção de «disciplina» nos séculos xvn e xvm10; supunha também
que o desenvolvimento do Estado implicava novas formas de «indivi-
dualização»11: transposição no espaço político de uma forma de po
der muito antiga, nascida nas instituições cristãs, o poder pastoral.
Poder que se exerce sobre o corpo, os gestos, os comportamentos,
que pretende penetrar as almas e pôr a nu a interioridade de cada um.
Na análise destes poderes, disciplinares ou individualizantes, estão
ausentes à partida os paradoxos constitutivos da individualidade. Só
mais tarde Foucault voltará a estes textos, consagrados à educação do
príncipe, que dizem respeito à arte de governar e mostram que o go
verno dos homens não é dissociável do governo de si próprio12.
Esta última preocupação vai ao encontro das que souberam ver na
cortesia ou na etiqueta mais do que uma simples maneira de estar
na sociedade; que souberam discernir, mesmo no centro das regras de
8
civilidade, os meios que contribuíram para a constituição do Estado
moderno, «os instrumentos políticos coercitivos através dos quais os
oficiais reais puderam aumentar o seu poder sobre a sociedade»13. Ri-
chelieu concretiza esta política absolutista que visa controlar, que
quer domesticar olhares, posturas e propósitos. Orest Ranum, quan
do evoca a figura do cardeal «(...) preocupado a vida toda com o es
tudo teórico e prático das relações entre linguagem, gestos e poder»,
tentou apresentar «(...) a carreira do cardeal como a de um filósofo
político e a de um praticante da cortesia»14; e diz em poucas palavras
o que nós pretendemos aqui: encontrar, para além do código de boas
maneiras que vela com uma atenção vigilante o rosto e a expressão, as
qualidades morais, as disposições psicológicas e mais ainda os funda
mentos antropológicos e éticos do que liga os homens entre si, os
fundamentos da sociedade civil. E assim poder pensar a emergência
histórica de estruturas psicológicas específicas ligadas às regras e aos
rituais da sociedade civil, mas também aos poderes e às leis da socie
dade política.
Roger Chartier parecer indicar uma perspectiva semelhante quando
põe em relevo, na «reformulação» do conceito de civilidade de Jaucourt
para a Encyclopédie, um encontro destes entre «as leis, os costumes e as
maneiras»15. Ranum ou Chartier assim fazem compreender que a ci
vilidade, as suas regras, os seus gestos e as suas configurações podem
permitir englobar o político e aproximar deste modo a noção de civi
lidade «do sentido original, comunitário e político, de civilitas»^.
Um certo número de trabalhos recentes partilham uma preocupa
ção semelhante com o corpo, o rosto, a expressão, os olhares, os ges
tos, as posturas. Nem sempre têm o mesmo alcance; nem sempre o
mesmo interesse. Vejamos os de Erving Goffman: ligam-se, na pers
pectiva de uma psicologia interaccionista, ao estudo das interacções
pessoa a pessoa e consideram estas «interacções naturais» como um
objecto de estudo em si. Goffman vê no domínio do rosto um jogo
crucial para todo o indivíduo: «a manutenção de uma certa ordem
expressiva», de uma certa imagem de si à qual o indivíduo se deve
conformar. Situa-se inversamente no caso de «perder a face», de não
poder «guardá-la», «do risco de se trair ou de ser desmascarado»17.
De forma repetida Goffman utiliza os termos de «máscara», «ima
gem», «representação de si»; de «porte», «constância», «formas ego
cêntricas da territorialidade»: «o indivíduo que se comporta bem,
convenientemente, manifesta atributos entre os quais: discrição, mo
déstia (...) controlo das palavras e dos gestos; controlo das emoções,
dos apetites e dos desejos; sangue-frio na adversidade»18. Estes ter
mos não estão inscritos nem num quadro teórico nem num quadro
histórico preciso. Colocando-se num ângulo que se pretende estrita
mente empírico, Goffman não tenta em momento algum elucidar estas
descrições à luz da racionalização dos comportamentos que vigoram
do século xvi ao século xix, tende a ignorar as regras da civilidade
que determinam o controlo de si e dos excessos. Talvez, sem dúvida,
como ele próprio confessa porque «a ideia subjacente ao [seu] objec-
tivo é a de que, mesmo com as suas diferenças culturais, os homens
são semelhantes por todo o lado»19.
A perspectiva de Richard Sennett, que ele apresenta como socio-
política, provém pelo contrário de uma aproximação mais profunda e
mais complexa; com efeito este autor elabora uma teoria da expressão
em público, e recorre para isso à história dos séculos xvm e xix. Sen
nett toma por ponto de partida os comportamentos da classe burgue
sa citadina do século xvm; a aparência exterior uniformiza-se; já não
se notam as diferenças sociais e os sinais distintivos, e «por este facto
o desconhecido é envolvido por um mistério maior»20. As pessoas es
condem as emoções, os sentimentos; tornam-se mais reservadas, mais
prudentes e consequentemente menos expressivas.
Mas para além da necessidade de manter as distâncias perante os
desconhecidos, Sennett vê a razão desta inexpressividade no acento
posto na autenticidade psicológica. Quanto mais o indivíduo se vê in
citado a exprimir o seu eu mais profundo, as suas emoções íntimas,
mais submetido fica a essa forma de poder que Foucault designa com
a expressão de «governo pela individualização», «forma de poder que
se exerce sobre a vida quotidiana (...) [que] designa (os indivíduos)
pela sua individualidade própria, e os liga à sua identidade (,..)»21;
quanto mais reservado se mostra, esforçando-se por proteger-se e
dissimular-se, mais inexpressivo se torna.
Sennett distingue assim uma expressão individual, natural e priva
da de uma expressão pública ritualizada. Segundo ele é a confusão
entre uma expressividade que assenta nos rituais exteriores ao indiví
duo e a expressão individual do eu «autêntico» que explica o declínio
da vida pública, da sociabilidade. O declínio da expressividade em
público, e o silêncio relativo do rosto, explicar-se-iam assim pelos
progressos de uma sociedade que ele qualifica de «intimista», de
«narcisística», uma sociedade centrada no eu. Julgado pela sua apa
rência, o indivíduo é-o com efeito pela sua interioridade, uma vez
que o carácter se lê no rosto, a sua aparência é expressão directa do
eu profundo. Sennett dá assim uma inscrição histórica às formas mais
contemporâneas dos paradoxos do individualismo: «a sociedade inti
mista favorece a incivilidade»22, o narcisismo é uma actividade ascéti
ca; ao analisar psicologicamente todas as relações, julgando suprimir
10
convenções e artifícios, paradoxalmente entrava os poderes expressi
vos do indivíduo.
11
Traçar uma história individual e social dos rostos, em que o político
se junta ao psicológico na questão da expressividade, é querer fazer aqui
a história desta paradoxal imposição à autenticidade e à conformida
de, à expressão e ao apagamento, à espontaneidade das emoções e ao
silêncio das figuras26. E procurar a gênese do indivíduo moderno numa
antropologia histórica «dando a primazia ao movimento e à transfor
mação, aos gestos e aos processos (,..)»27; uma antropologia histórica
que se esforçará por retomar e prolongar o programa que Michelet
propõe no seu prefácio de 1869 à Histoire de France*. «Estudar», es
creve Le Goff, «a história material e moral das sociedades, a história
do biológico e a história do imaginário (...) procurando agarrar o
homem inteiro em sociedade e atender tanto ao escrito como ao oral
e ao gesto, integrando assim uma história do corpo dos homens em
sociedade»1*.
NOTAS
12
11 H. Dreyfus e P. Rabinow, Michel Foucault: um parcours philosophique, Paris,
Gallimard, 1984, pp. 302-306.
12 Evoca nestes termos La Politique du Prince (1653), de F. de la Mothe le Vayer:
«Procurando fazer a tipologia das formas de governo, F. de la Mothe le Vayer (...)
dirá que essencialmente há três tipos de governo e cada um refere-se a uma forma de
ciência ou de reflexão particular. O governo de si próprio que se refere à moral; a ar
te de governar oportunamente uma família que se refere à economia; e, por fim, a
ciência de bem governar o Estado que se refere à política» («Foucault hors les murs»,
Actes, n.° 54, 1986, p. 9). E nesta perspectiva que M. Foucault tinha abordado nos
seus últimos trabalhos esta «lenta formação, durante a Antiguidade, de uma herme
nêutica de si», isto é, as práticas «pelas quais os indivíduos foram levados a incidir a
atenção sobre si próprios», a decifrar-se; nas morais da antiguidade grega ou greco-
-romana, «põe-se a tônica na relação consigo mesmo que permite não se deixar levar
pelos apetites e pelos prazeres, controlá-los e ser superior a eles, de manter os senti
dos em estado de tranquilidade, de ficar livre de toda a escravidão interior com res
peito às paixões e de atingir um modo de ser que pode ser definido pelo pleno gozo
de si ou pela perfeita soberania de si sobre si» (M. Foucualt, «Usage des plaisirs et
tecniques de soi», Le Débat n.° 27, Nov. 1983, pp. 48, 49 e 71; ver também L'Usage
des plaisirs e Le Souci de soi, Paris, Gallimard, 1984).
13 O. Ranum, «Courtesy, Absolutism and the rise of the French State 1630-
-1660», Journal of Modern History, n.° 52, 1980, p. 427.
14 Ibid., p. 432.
15 «Segundo Montesquieu, Jaucourt acaba o artigo dando o exemplo da China,
referência na medida em que a civilidade, que manifesta a ligação social fundamental,
foi aí regulamentada e imposta pelo legislador (...). Esta evocação de um Estado em
que as leis, os costumes e as maneiras foram fundidas num mesmo código fornece a
formulação mais radical para repensar o conceito de civilidade» (R. Chartier, Lectu-
res et lecteurs dans la France de VAncien Regime, Paris, Seuil, 1987, p. 71).
16 Ibid.
17 Ver em particular Erving Goffman, Les rites d’interaction, Paris, Minuit, 1974.
18 Ibid., p. 69. Formulações das quais se encontra um rasto mais antigo no trabalho
que Marcei Mauss tinha consagrado às «técnicas do corpo», quando evocava «a educa
ção do sangue-frio»: «esta resistência à emoção avassaladora é uma coisa fundamental na
vida social e mental» (Soáologie et anthropologie, Paris, P.U.F., 1950, p. 385).
19 Goffman, op. cit., p. 41. Esta convicção junta-se a um outro conjunto de traba
lhos sobre o carácter universal ou ao inverso culturalmente determinado das expres
sões faciais. Tais trabalhos, que prolongam o programa outrora aberto por Darwin a
propósito da expressão humana, parecem ter chegado à conclusão: 1) que a expressão
facial das emoções é universal; 2) que a função das culturas, «as regras de expressão» das
emoções variam (ver sobre este ponto: P. Ekman, «Universal and cultural differences
in facial expressions of emotions», Nebraska Symposium on Motivation, 1972, Lin-
coln, Univ. of Nebraska Press; P. Ekman e H. Oster, «Facial expressions of emo-
tion», Annual Review of Psychology, 1979, n.° 30, pp. 527-554). Estes trabalhos tratam
geralmente as emoções na perspectiva de stimuli externos e unívocos. Na maior parte
ignoram este facto essencial: que um rosto, que uma expressão, possam não ser
transparentes; que um rosto alegre possa exprimir tristeza e o sorriso mais doce dis
simular a raiva. O que só se pode pensar a partir das relações problemáticas entre ex-
terioridade e interioridade de um sujeito; e também a partir das ligações complexas
entre antropologia e história, indispensáveis para procurar elucidar os objectos sim
bólicos e culturais.
2C Richard Sennett, Les Tyrannies de Pintimité, Paris, Seuil, 1979, p. 29.
13
21 H. Dreyfus, P. Rabinow, op. cit., p. 302.
22 Sennett, op. cit., p. 205.
23 Encontramos aqui as perspectivas estimulantes traçadas por C. Ginzburg no seu
trabalho de formulação de um «paradigma do indício», essa constelação tão antiga de
disciplinas baseadas na decifração dos sinais. A referência à fisiognomonia, central na
perspectiva de Ginzburg, é igualmewnte central aqui. Embora o ponto de vista difira
um poucochinho: o trabalho de Ginzburg privilegia uma perspectiva de identifica
ção, a do médico, do fisiognomonista, do conhecedor de quadros, do detective. Que
remos insistir aqui também na dimensão da expressão; tentar agarrar, para além dos
traços imóveis, o movimento de uma subjectividade; e colocar assim, a partir dos si
nais que se manifestam à superfície do corpo, a questão da identidade individual que
os exprimiu e não apenas a da identificação que eles podem permitir; mesmo se estas
duas perspectivas são com toda a evidência indissociáveis. Pois, como observa A. Cor-
bin, «muitos indícios colocam com efeito como essenciais a história do olhar sobre si»
(«O segredo do indivíduo», Histoire de la vie privée, tomo IV, p. 421). O trabalho
de Ginzburg abre por outro lado a perspectiva de uma semiologia histórica. Compor
ta elementos e sugestões que permitem voltar às próprias origens dos signos, como
mostrou admiravelmente Jean Brottéro a propósito dos adivinhos e médicos de Su-
mer. E de tornar a dar assim vida a um projecto semiológico que derivou para uma
semiótica a-histórica e formal preocupada unicamente com a dimensão textual dos
signos. Ver: C. Ginzburg, «Sines, traces, pistes. Racines d’un paradigme de 1’indice»,
Le Débat, Nov. 1980, n.° 6; J. Brottéro, «Simptômes, signes, écritures», Divination
et racionalité, Paris, Seuil, 1974, pp. 70-200.
24 Controlo da expressão, silêncio do corpo: esta procura vai ao encontro da de
A. Corbin quando ele resolve traçar «as etapas desta profunda modificação de natu
reza antropológica» onde se instala progressivamente esse «silêncio olfactivo» que
responde a um acentuar da sensibilidade aos odores. Silêncio da expressão do rosto e
silêncio «olfactivo» do corpo são efeitos deste movimento de pôr em ordem, de vigi
lância, de controlo das condutas e das sensibilidades (ver A. Corbin, Le miasme et la
jonquille. Lyodorat et 1'imaginaire social XVIIT-XIX' siècle, Paris, Flammarion,
1986, p. 2; ver igualmente R. Mandrou, Introduction à la France Moderne. Essai de
psychologie historique, 1500-1640, Paris, 1961, em particular no Cap. III, «L’Homme
psychique: sens, sensations, émotions, passions» e conclusão geral.
25 Voltamo-nos assim necessariamente para os textos «prescritivos», cujo objecto
essencial é formular as regras de conduta, como o sublinhou M. Foucault a propósi
to dos seus últimos escritos, e R. Chartier a propósito da história da civilidade (op.
cit.); mas também para textos «descritivos», como se verá mais adiante.
26 História complexa, história «opaca» como observa muito justamente M. Perrot
«desde o momento em que se deseja ultrapassar uma história social do privado e fa
zer, para além dos grupos e das famílias, uma história dos indivíduos, das suas repre
sentações e das suas emoções (...)» (Histoire de la vie privée, tomo IV, p. 13).
27 Jacques Le Goff, «Conclusions» em Object et méthodes de Fhistoire de la cul-
ture, Actes du Colloque franco-hongrois de Tihany, 10-14 Outubro 1977, p. 247.
28 Ibid.
PRIMEIRA PARTE
A EMERGÊNCIA DA EXPRESSÃO
Preâmbulo:
17
Quem vir a interpretação da palavra «homem», a qual (segun
do alguns pensam) significa em língua grega «conjunto», ime
diatamente verá que ninguém pode ser um verdadeiro homem
se não conversar com os outros2.
18
/. <* /’//• A P/A’í/ Zí/./í
19
deslocamento nas práticas: a dissolução das sociedades política e civil
medievais abre um tempo e um espaço em que, pouco a pouco, se vai
basear uma legitimidade nova sobre o uso e domínio do corpo e da
linguagem. E no âmbito da corte absolutista que realmente se consti
tui tal legitimidade, num lugar em que a violência física foi banida e
onde se ergueu pouco a pouco entre os corpos o «muro invisível»
dos pudores e das distâncias3.
20
guiadas apenas pelas exigências da vida em relação elas
possuem um valor moral que leva Erasmo a considerá-las nu
ma perspectiva antropológica e não social6.
21
feitas sem ela. Mostra a ocasião e os momentos favoráveis em
que se deve agir, em que se deve falar: ensina a maneira como
se deve fazer, e sendo necessário inspirar um conselho, uma
paixão, um desígnio, conhece todas as passagens que os po
dem fazer entrar na alma. Finalmente, e querendo seguir a
opinião do sábio, quem nos defende ao falar com um homem
colérico ou um invejoso e ao encontrarmo-nos na companhia
de gente má, quem pode salvar-nos desses maus encontros se
não a Arte de que falamos?7
O paradigma da expressão
22
A partir do século xvi desenvolve-se assim um conjunto de conheci
mentos e práticas que vão, durante mais de dois séculos, substituir a
pouco e pouco as forças obscuras e as marcas gravadas do destino, o
silêncio da presença divina, os impulsos súbitos e inarticulados do
corpo, os laços ditados pela origem e as permutas prescritas pela tra
dição, uma racionalidade nova que privilegia a expressão do homem
pela linguagem. Apelando às ciências e às artes, ao mesmo tempo po
lítica e ética, esta configuração supõe a instauração de laços sociais re
forçados e a emergência de uma nova individualidade psicológica.
De uma tal configuração, o humanismo renascente constitui sem
dúvida o fermento intelectual, a subida da burguesia um elemento
histórico essencial e a representação clássica do homem um ideal éti
co e estético: mas ela tem antes origem em fontes religiosas e filosófi
cas longínquas que haviam feito do verbo a proveniência de tudo; ela
humanizou estas antigas origens e a sua influência prolongou-se bem
além do século xvm. A reconfiguração da identidade colectiva e indi
vidual afirma em primeiro lugar que a linguagem é a própria natureza
do homem. Ou melhor ainda: a linguagem permite a apropriação pelo
indivíduo da sua própria natureza. O indivíduo retoma progressiva
mente a palavra daquele que lha havia dado. E a expressão pela lin
guagem, mais ainda a expressividade no sentido lato que define a hu
manidade e a separa radicalmente do orgânico e da animalidade. Pode
falar-se, neste caso, de um paradigma da expressão.
Com efeito, há que falar de expressão e já não apenas de lingua
gem. O paradigma da expressão não poderia ser entendido a partir de
uma problemática estreitamente delimitada: na categoria de «expres
são» é preciso ver uma concepção das trocas linguísticas que não diz
apenas respeito ao uso da palavra, mas ao homem por inteiro. E, em
primeiro lugar, ao seu corpo: como o verbo, o corpo é expressão, in
térprete do pensamento, linguagem natural da alma; é, como nos diz
Cureau, «toda a alma derramada no exterior».
23
O paradigma da expressão designa assim o processo pelo qual a
linguagem vai pouco a pouco passar a ser a medida de todas as coisas,
dar sentido aos comportamentos, penetrar profundamente a interiori-
dade subjectiva e fazer do corpo o lugar expressivo de uma voz íntima.
Inscrita na racionalização dos comportamentos e no desenvolvi
mento do individualismo, a nova importância que a categoria de ex
pressão toma durante a idade clássica apresenta no entanto aspectos
paradoxais: responde por um lado a um desejo de transparência polí
tica e social que se manifesta na abundante literatura consagrada à de-
cifração do comportamento individual nos tratados de fisiognomonia
e na que visa a codificação das condutas através dos manuais de civili
dade. Assim, Cureau, fisionomista de talento, cujo poder aguardava
um suplemento de olhar que desvendasse as qualidades ocultas e as
intenções dissimuladas, podia escrever:
24
vando cada um a virar-se para o interior de si próprio; procurando
fazer coincidir a cortesia com o exprimível, são levadas a separar o
espaço do permitido, do lícito, do legal, do que é preciso subtrair, ca
lar, proibir ao olhar, enterrar no mais profundo de si no espaço pes
soal do pudor, do silêncio ou do segredo.
A denúncia da hipocrisia do parecer e da mentira das máscaras
conseguiu, depois de Rousseau, fazê-lo esquecer: a consciência da
opacidade das aparências foi uma condição essencial do aparecimento
da categoria de pessoa (personâ) antes de acompanhar a emergência
progressiva do indivíduo.
NOTAS
O ESPELHO DA ALMA
(Origens e renascimento da fisiognomonia no século xvi)
27
Coclès fixa à fisiognomonia encontra definição em formulações mui
to antigas atribuídas a Aristóteles7. O recrudescimento do interesse
pelo rosto no limiar do século xvi não apresenta ruptura com a tradi
ção, mas reactualiza os termos de uma concepção da relação entre o
corpo e a alma que lentamente se elaborou nas obras antigas8. Esta
concepção possui alguns traços elementares constantes que os trata
dos do Renascimento reavivam.
28
nifestamente as coisas que estão dentro do homem através de
sinais exteriores, como a cor, a estatura, a posição dos mem
bros e as figurações9.
29
Galeno cita a fisionomia e garante, sob a autoridade de Hipó-
crates, que se aqueles que se ocupam da medicina a ignoram,
encontram-se em perpétuas trevas de espírito, cometendo pe
sados erros (...). Assim, o médico que quisesse desprezar essas
regras e ensinamentos não se assemelharia à hera, que só pede
a queda do muro a que se agarra?12
30
homem descobre de tal modo os seus costumes, o seu caracter e
os seus desígnios, que parece penetrar nos recônditos mais
profundos da alma e, por assim dizer, nos lugares mais ínti
mos do coração15.
31
gregos e desenvolveu-se a partir do século x com Razès. Mantém-se
ainda no princípio do século xm no Kitab al Firãsa, de Fakhr Al-
-Din, em que se põe em evidência a especificidade da tradição árabe20.
A partir do século xin, a fisiognomonia liga-se progressivamente às
práticas divinatórias e à astrologia. Desde então, mais que a relação
entre fisionomia e carácter, observa-se os sinais impressos pelos as
tros no corpo: nas linhas do rosto ou da mão, as manchas naturais da
pele ou das unhas, o lugar dos nevos ou ainda os movimentos invo
luntários de certas partes do corpo21. Muito ligados ao modo de vida,
os tratados de fisiognomonia astrológica passam então a proliferar.
Esta hesitação sobre o estatuto da fisiognomonia — ciência natu
ral ou ainda prática divinatória — vai marcar profundamente a sua
história. Encontram-se os seus vestígios nos debates que vão pôr em
presença o prolongamento das correntes naturalistas e astrológicas, e
ver nelas duas formas conjuntas, ou complementares ou, finalmente,
opostas. Mas ainda no século xin, quando a medicina se tiver separa
do da astrologia, a fisiognomonia conterá o eco enfraquecido desta
dupla origem: quando Lavater quer estabelecer ao mesmo tempo uma
ciência natural do rosto e se preocupa continuamente com a sua im
possibilidade, celebrando então o «faro» do fisiognomonista, esse ta
lento pessoal, essa intuição fulgurante que põe imediatamente um
rosto a nu.
Existe assim, nas primícias gregas e sobretudo árabes da fisiogno
monia, uma dimensão essencial: a sua função prática.
E esta dimensão que permite compreender este enigma da sua his
tória: pouco a pouco abandonada pela ciência natural, deixada nas
margens dos saberes positivos e depois verdadeiramente desqualifica
da, nunca deixou, no entanto, de ter um interesse social, mundano ou
muito simplesmente anedótico. Não toma portanto assim unicamente
lugar no projecto de uma história natural do homem, como se inscre
ve profundamente na sua história social. E assim que, na época mo
derna, os dois momentos históricos em que vai suscitar mais interesse
(desde o princípio do século xvi aos dois primeiros terços do xvn por
um lado; dos anos 1780 ao fim da primeira metade do século xix
por outro) são períodos de reconfiguração política e social: estabe
lecimento do Estado absolutista e constituição progressiva de uma
sociedade civil concebida no modelo da corte; nascimento de um Es
tado democrático e de uma sociedade de massas. Momentos em que
se coloca de maneira crucial a questão da identidade individual em
estruturas sociais em plena transformação.
Com efeito, e voltando às sociedades tradicionais, verifica-se que
o fisiognomonista — que muitas vezes constitui com o médico e o
32
adivinho uma única e mesma pessoa — exerce junto dos poderes a
função prática destinada ao uso corrente da intuição na vida quotidia
na, quando é preciso saber reconhecer os sentimentos que um rosto
familiar exprime ou mesmo descobrir uma identidade por trás de
uma figura desconhecida. O homem vulgar é fisiognomonista sem o
saber quando baseia nesse exercício do olhar a escolha dos homens
a frequentar e a das companhias a evitar.
A figuração do homem
33
um carácter, uma inclinação, paixões, vícios e virtudes, emoções...)
através de um conjunto de indícios corporais e exteriores (formas,
marcas, traços, vestígios, sinais...). Não é pois tanto o rosto, mas a fi
gura, que é objecto da fisiognomonia; a figura é o que tem expressão
no rosto: o que se mostra e se decifra, o que nele se exprime e se es
conde, o que nele se pode reconhecer e descrever. Isolado da figura, o
rosto escapa como um enigma.
Assim, não se deve procurar na fisiognomonia apenas a verdade
dos rostos, mas, mais do que isso, a linguagem das figuras: a expres
são de uma relação entre a interioridade do homem e a sua aparência
e suas transformações: com efeito, tal relação não é imutável, ela foi
marcada entre os séculos xvi e xvm por um deslocamento lento, mas
contínuo.
Este deslocamento é o sinal de uma profunda evolução das identi
dades individuais e colectivas.
Primeiramente, no terreno do conhecimento científico do homem
natural: entre os séculos xvi e xvm a fisiognomonia vai separar-se
pouco a pouco da medicina. Desenvolve-se uma medicina autônoma
c racional que marginaliza progressivamente os conhecimentos tradi
cionais sobre a fisionomia. Há nela elementos do lento abandono dos
saberes acerca do homem, do fundo milenário de crenças cosmológicas
e biológicas que lhe davam sentido. A ruptura é profunda: a analogia
entre o corpo e a alma, que então se encontra refutada, era admitida
desde a noite dos tempos; uma ciência natural do homem afirma len
tamente a sua autonomia e liberta-se das artes divinatórias que a
acompanham desde a origem dos saberes.
Em segundo lugar e no campo das percepções do corpo com forma
simbólica: as fisiognomonias, as maneiras de dizer e de ver o corpo e
o rosto humanos, são então a tradução de uma mutação das imagens
do corpo. A pouco e pouco constitui-se um imaginário «clássico» do
corpo cuja representação vai libertar-se da visão astrobiológica do mun
do que caracterizava as concepções medievais e as filosofias da natureza
no Renascimento; ao abandono dos discursos de um fundo antigo de
saberes corresponde assim um desencantamento do corpo-, a emergên
cia progressiva da visão de um corpo referido a si próprio, ordenado
pela razão, habitado por um ser, individualizado pela expressão.
Finalmente, no que respeita ao comportamento tanto público co
mo privado do indivíduo em sociedade, a fisiognomonia tinha por
fim essencial a observação dos outros e a escolha das companhias pela
aparência. Visará cada vez mais o conhecimento do eu e uma maneira
de se conduzir na vida civil. Vê-se constituir um espaço íntimo, sujei
to ao mesmo tempo ao controlo social e tendendo a proteger-se des
34
te. A fisiognomonia toma parte no reforço dos autoconstrangimen- —
tos, no controlo por cada indivíduo dos sinais manifestos das suas
paixões.
A figura humana, entre os séculos xvi e xvm, autonomiza-se e ra
cionaliza-se; no mesmo espaço, torna-se mais interior, socializando-se
e individualizando-se ao mesmo tempo. Trata-se de um processo
complexo e multiforme e de que as fisiognomonias constituem um
dos traços, um indício entre outros. Há muitos mais discursos e mui
tas outras práticas que são prova de semelhantes transformações. Co
mo, por exemplo, os discursos sábios: o da anatomia, cujas transfor
mações no decorrer da idade clássica ilustram à sua maneira esta lenta
mutação das visões do corpo; também aqui a representação se racio
naliza, o olhar se agudiza, a perspectiva se afina e as figuras se desfa
zem pouco a pouco de um fundo de imagens astrológicas ou de so
brecargas estéticas que obstruíam o espaço anatômico26. Mas há ainda
outros modos de representação do rosto: o desenvolvimento da arte
do retrato prova igualmente o facto de que a figuração do corpo se
separa lentamente do seu contexto sagrado, que a fisionomia se defi
ne e se naturaliza, que o corpo se individualiza enquanto a expres
são27 se acentua mais claramente.
E existe finalmente todo um conjunto de práticas que não consis
tem simplesmente em discursos, mesmo quando cada vez mais estrei
tamente codificadas em tratados, mas que são práticas do próprio
corpo, que trabalham a sua postura, o seu aspecto, a sua mais fina ex
pressão, o seu menor gesto: as regras de civilidade que então difun
dem os tratados de cortesia favorecem, nas conveniências que pres
crevem, o imaginário de um corpo fechado, estritamente delimitado,
objecto do domínio individual e do trabalho social da delicadeza.
35
parte das vezes, trabalhos de médicos e apresentam um duplo aspecto:
por um lado, detalham de forma precisa e exaustiva as diversas partes
do corpo humano. Prosseguem o trabalho de anatomia das superfícies
corporais levado a cabo pela tradição antiga. A visão médica encontra aí
as suas premissas. O médico precisa então de poder ler os sinais da
complexio — a unidade complexa de traços físicos e mentais próprios de
cada um — em cada parte do corpo. Isto organiza os tratados segundo
um primeiro conjunto de classificações: a lista ordenada dos órgãos do
corpo, a dos elementos, dos humores e dos temperamentos.
Estas tentativas de observação natural do corpo e do rosto baseadas
no humor, que se prolongarão nas obras de fisiognomonia ao longo
dos séculos xvi e xvn, são ainda ilustradas no Speculum Physiono-
miae, escrito antes de 1450 por Michel Savonarole. Um temperamen
to quente tornará a alma audaciosa e violenta; se domina o frio, ela
será medrosa e pusilânime. E a alma pode mudar o corpo: a imagina
ção modifica-a pondo em movimento os espíritos animais. O rosto é
pois o efeito das paixões que o temperamento suscita: desenha-lhe os
traços, molda-lhe as formas. Consideram-se os cabelos que o cercam
ou os pêlos que nele crescem: serão abundantes se o temperamento
for quente, raros se for frio, frisados se seco, lisos se húmido. Ou
ainda o nariz: o calor faz o nariz largo e o orgulho; a humidade ex
cessiva do cérebro dá um nariz grosso e denota gente suja; o tempe
ramento frio torna o nariz pequeno e significa espírito vil e baixo...
Mas este humor coexiste com elementos que, pela primeira vez,
são modernos: Savonarole faz preceder qualquer estudo fisiognomó-
nico de alguns princípios de anatomia que dizem respeito à parte do
corpo estudada. Dá assim grande importância à anatomia do olho, em
virtude do lugar que este ocupa no diagnóstico fisionômico. E apoia-se,
além disso, na teoria da localização dos sentidos internos30 para fazer
do homem interior um homem anatômico, prefiguração longínqua de
Gall. Assim, aqueles cuja parte posterior do ventrículo médio está
bem desenvolvida são dotados quanto à «virtude estimativa»: são de
bom conselho e é a esse gênero de homens que os príncipes deveríam
ter empenho em ligar-se, em vez de escutarem os tagarelas.
Savonarole junta, porém, a este conjunto de dados o enunciado
das bases astrológicas da adivinhação fisiognomónica e é esse o carác
ter da maior parte destas obras: às observações e classificações do
médico sobrepõem-se logo as do astrólogo. Os órgãos, os humores e
os temperamentos remetem para os planetas, os homens-zodíacos po
voam os tratados. A astrologia domina o pensamento medieval dos
séculos xiv e xv: as fisiognomonias são tomadas da massa dos escritos
astrológicos, onde estão a par com os conjuntos de predições, de ma
36
nuais de quiromancia ou de oniromancia, ou ainda com as artes eso
téricas da memória.
O renascimento e o desenvolvimento sem precedentes que a fi
siognomonia adquire desde o princípio do século xvi vai primeira
mente prolongar e depois transformar pouco a pouco estes dados ini
ciais. Em primeiro lugar, em virtude do intenso trabalho filológico
realizado pelos humanistas do Renascimento: os autores antigos são
relidos, comparados, criticados, restabelecidos ou anulados e sistema
ticamente interpretados. Essa será a obra essencial de G. B. delia Porta,
cuja La Physionomie humaine (1586) domina a produção do século xvi
e da primeira metade do xvn pela sua amplidão, a sua sistematicida-
de, a sua exaustividade, a extensão da sua influência. Mas esse traba
lho de leitura não incide simplesmente sobre a tradição antiga; abarca
as fisiognomonias e medicinas medievais latinas ou árabes e regista
assim os saberes populares sobre o corpo31.
Encontra-se o mesmo princípio entre as fisiognomonias do sé
culo xvi, tão sábias como populares: a analogia entre o microcosmos
humano e o macrocosmos natural ou cósmico. Assim, nas representa
ções populares do corpo humano, este é interpretado num tecido
apertado de relações analógicas com a fisionomia e o carácter atribuído
aos animais: estas semelhanças retomam as comparações zoomorfas
que a tradição da fisiognomonia erudita repete desde o pseudo-Aris-
tóteles. Para uma como para outro, o homem que se assemelha ao
leão é «ousado como o leão», um outro «luxurioso como o porco»,
outro ainda «traidor como uma mula»; as semelhanças morfológicas
são prova do carácter, são a sua «assinatura». Pensamento popular e
fisiognomonia erudita partilham então a mesma crença na analogia que
as filosofias da natureza da Idade Média e do Renascimento teorizam
sob o nome de «doutrina das assinaturas»: cada coisa tem à superfície,
impressa no corpo, a assinatura pela qual se apreciarão as propriedades e
as forças que em si contêm. Estas determinarão, através da similaridade
das formas, o paradigma das correspondências entre um ser e uma coisa,
as suas mútuas «simpatias»32. O corpo humano é inteiramente habitado
pela analogia: é por ela que adquire sentido, se liberta da sua opacidade
e dá a conhecer os seus segredos. E um «pequeno mundo» que, em ca
da uma das suas partes, das suas formas ou dos seus lugares, se asseme
lha ao grande mundo da natureza e do cosmos.
37
Figura 2 — R. Saunders, Physiognomonie and Chiromanàe, Metoposcopie,
The Symmetrical Proportions and Signal Moles of the Body, 2/ ed., Londres, 1671
(Foto B. N.).
38
ção ajuizamos da fertilidade de um lugar (...) pelas cores e
conteúdo das veias ficamos a conhecer as doenças e as infelici-
dades futuras (...). Se são grossas, especialmente as da testa
acima das têmporas, e a do meio, da fronte (...) significam um
homem livre e liberal, sujeito a certa escravatura por parte de
Vénus; e após alguma actividade será fácil sabê-lo, pois fica
rão inchadas e cor de violeta, o que é sintoma de pleurisia e
de apoplexia33.
39
O rosto é a metáfora da alma. É a sua condensação, o seu «qua
dro resumido», como era o seu deslocamento, o caminho da sua mo
rada. Ao inscrever, como seu antigo antecessor, o rosto na ordem da
linguagem, o renascimento da fisiognomonia descobre-lhe as opera
ções cardinais; aquelas que, justamente, são chamadas figuras. E neste
sentido que o rosto é a figura da alma e a fisiognomonia o repertório
de uma linguagem das figuras.
40
Front marqud dei lignoa Front merque dea Itanee Front ftminin Front femiAi* Front ftfnmm
du voyage martitme du terveetre marque dei hgnei marque dei Itgnei marque de» i.gnei
de la «eneroiiie de <a miMrtcoede d u*e -ertv farouche
Figura 3 —J. Cardan, Métoposcopie, Paris, 1658 [extraído de: Grillot de Givry, Le
musée des sorciers, mages et alchimistes (1929), Paris, Veyrier/Tchou, 1966],
41
decifração é delicada e complexa: «Atenção a que as rugas não te en
ganem e passem por linhas»41. Com a ruga, as pregas do rosto, o es
trato deposto pelas emoções sentidas, assinatura pessoal contida na
expressão, a metoposcopia separa a gênese humana, interna e singular
da fisionomia. Com a linha, traço impresso por um astro à superfície
do corpo, diz a origem cosmológica e exterior da figura humana.
A metoposcopia é uma semiologia da marca. A marca é um indí
cio superficial, dado à flor da pele; é também um traço manifesto e
estritamente localizado: parece o único ponto visível de um corpo
que o olhar apaga, de um rosto cujos traços se anulam. Como se a
marca viesse tomar o lugar do próprio indivíduo e reduzi-lo ao dese
nho de um número. Porque, embora superficial, a marca parece
incrustada na carne, à maneira de uma escrita firmemente gravada
no pergaminho da pele. Parece ter a profundidade de uma incisão e
assim poder testemunhar do homem interior.
42
* jrn—T
•1BL-ri
Figura 4 — R. Saunders (op. cit.): carta astrológica dos grãos de beleza do rosto
(foto B. N.).
43
O mesmo acontece com as regras de interpretação da «escrita divi
na»: ela é ao mesmo tempo altamente arbitrária, muitas vezes esotéri
ca e banalmente analógica, quando as linhas rectas significam cons
tância, as linhas tortas intemperança, as linhas quebradas perigos,
doença, morte: os destinos felizes registam-se em figuras regulares.
E como último traço das semiologias da marca estão as metoposco
pias. Como todas as concepções do corpo como «assinatura», su
põem uma relação ternária entre um indício externo, a propriedade
do homem interior e um poder exterior ao homem — Deus, astros
ou natureza — gravando no seu rosto as letras do seu destino.
Nada poderia melhor ilustrá-lo do que os retratos que decoram a
obra de Cardan. A representação obedece a uma regra essencial: apagar
tudo o que possa perturbar a legibilidade da região frontal. A morfo-
logia facial restringe-se, cai e esbate-se: resta um homem-fronte. Do
mesmo modo, todo o pormenor pessoal, individual ou singular está
destinado a desaparecer: a metoposcopia de Cardan é um catálogo de
figuras impessoais, indiferenciadas, substituíveis umas pelas outras,
que por vezes apenas se distinguem pela inscrição frontal. Isto supõe
um afastamento sistemático dos traços de expressividade: nada anima
essas faces imóveis, anônimas e impávidas. Fisionomias sem rosto, fi
guras de um homem sem expressão*' (ver figura 5).
Sujeita à lei dos astros, a figura humana é-o também à dos ho
mens. A utilidade da metoposcopia provém, segundo os tratados, do
facto de permitir predizer os destinos felizes ou funestos, de reconhe
cer o homem são e separá-lo do homem doente, de finalmente identi
ficar o homem de bem, distinguindo-o do homem perigoso: raptores,
ladrões, vagabundos, mendigos, prostitutas e assassinos, todos aque
les cujos retratos ocupam um lugar considerável nas suas obras.
A marca astrológica é um estigma social. Aprender a decifrá-la é sa
ber reconhecer a perigosidade do seu rosto. A lei da natureza e a or
dem social confundem-se nos corpos.
44
Figura 5 — R. Saunders (op. cit.): metoposcopias (Foto B. N.).
da. Mas na sociedade civil, nos laços sociais que a troca de olhares te
ce, persiste-se em julgar pelo rosto.
Da morfologia à expressão
46
Figura 6 — G. B. delia Porta, Delia Fisonomia delPHuomo^ Libri sei, éd. Tozzi,
Pádua, 1623 (1586) (Foto B. N.).
47
G. B. delia Porta. Para além de uma necessária prudência51, a ambiva
lência que a obra de Porta conserva em relação à astrologia revela
uma tensão mais geral que caracteriza as representações da figura hu
mana nesse fim do século xvi. La Physionomie humaine de Porta, a
sua superior contribuição para a «ciência do rosto», possui de facto
traços do pensamento mágico dos filósofos da natureza do Renasci
mento, mas sob outros aspectos prepara o advento de uma razão
clássica do corpo e do rosto.
Porta é, sem contestação, um homem do Renascimento pelas suas
preocupações de «magia natural», em que mais se trata de desvendar
os segredos da natureza humana do que lhe descobrir as leis’2; é-o
ainda pela utilização que faz das comparações zoomorfas, fiéis às
doutrinas das assinaturas e das simpatias. «Não é verdade», pergunta
ele, «que o homem é ousado como o leão, medroso como uma lebre,
que se pode comparar ao galo pela liberalidade e ao cão pela avare
za?»53. «Em resumo, que reúne e resume as compleições e caracteres
das diferentes espécies animais, que condensa toda a criação?» Deste
universo de semelhanças extrai o método que estabelece a semiologia
da relação entre o homem exterior e o homem interior54. Esta privile
gia a inferência indirecta dos indícios do corpo humano e conserva
uma organização ternária: já não são os astros, mas as formas e os ca
racteres atribuídos aos animais que fazem a ligação entre o homem de
fora e o homem de dentro, quer dizer entre o homem e ele próprio.
O que a obra de Porta ilustrou com uma iconografia em que se orga
niza um diálogo das semelhanças entre o rosto humano e as faces ani
mais e em que se descobre com demasiada frequência o essencial da
sua contribuição55 (ver figura 6).
Mas existe uma outra racionalidade na obra de Porta: o cuidado
no método, a precisão da observação, a sistematicidade e amplidão do
trabalho filológico que leva a uma reapropriação crítica dos trabalhos
antigos e medievais. Sob esse efeito, a figura humana naturaliza-se,
ainda que o saber fique dominado pelo pensamento das analogias e
das simpatias. La Physionomie humaine é o momento da história da
fisiognomonia em que a tradição naturalista proveniente de Aristóte
les ganha pouco a pouco superioridade sobre a tradição astrológica e
divinatória ligada às interpretações da Idade Média árabe. E embora
se tenha considerado grandemente o bestiário humano que ilustra as
obras de Porta, é mais com a racionalização dos discursos do que com
a multiplicação das imagens que nos vemos confrontados. A compa
ração com o tratado de Cardan e a tradição metoposcópica em geral é
a este respeito eloquente, uma vez que a relação entre texto e imagem
parece inverter-se. A metoposcopia inscrevia mais claramente a figura
48
Libro Tcrzo. 12^
IM U ***«#• dtl /rct CmbUU » cMjfxd* imiti*w *
49
na representação icónica e no campo de visão. A fisiognomonia natu
ral parece querer converter este olhar em discurso e mergulhar mais
profundamente o corpo no campo da linguagem.
La Physionomie humaine homogeniza e racionaliza os textos que
a tradição lhe lega: Porta é levado a distinguir entre os sinais, a classi
ficá-los e a pensar as suas relações. Pouco a pouco organiza-se uma
semiologia da superfície corporal: indica os sinais comuns e deriva
dos, ensina a localizá-los, a hierarquizá-los, a relacioná-los uns com os
outros no termo de um cálculo. Corpo e rosto são recobertos pouco
a pouco pela rede de um discurso que estabelece a ligação entre a
aparência e a interioridade. E as percepções da própria fisionomia
transformam-se sob o seu efeito: o discurso tende a ordená-las numa
lista hierarquizada de órgãos e de indícios que traduzem e comandam
o percurso do olhar sobre o corpo visível. A figura humana destaca-
-se pouco a pouco do universo das semelhanças. Um limite mais
franco parece separar o rosto das confusões iniciais com o universo
natural; a sua legibilidade torna-se mais rigorosa, mas também mais
abstracta: como se, insensivelmente, se afastasse, destacando-se das
percepções imediatas; como se lentamente se interpusesse entre o ros
to e o olhar que o observa o véu silencioso e quase transparente da
linguagem. E entre o espaço metonímico da lista (qualquer órgão é
seguido e precedido de um outro órgão, qualquer traço morfológico
está ligado a uma qualidade psicológica) e o espaço metafórico da
imagem (todo o homem se assemelha a um animal), a fisiognomonia
de Porta hesita, o seu texto vacila e a percepção que ela oferece do
corpo tolda-se. Esta ambivalência é a de um momento histórico em
que as concepções do rosto ainda não saíram do universo mágico das
semelhanças naturais e ainda não entraram no universo racional das
forças, das causas e dos efeitos físicos56.
Mais racional e mais autônoma, a figura ganha por outro lado em
profundidade e em expressividade: tende a animar-se. E também aí a
obra de Porta é ambígua. Dá uma importância preponderante à mor-
fologia facial e persegue os seus detalhes mais aparentemente insignifi
cantes: dá sentido e importância às comissuras dos lábios, aos cantos
dos olhos, enumera os grãos ou cálculos que ornam a íris do olho,
que logo compara com os traços semelhantes que pode apresentar es
te ou aquele animal (ver figura 7). Mas este naturalismo atento aos
mínimos indícios morfológicos, esta dissecção infinita do pormenor
levam contudo Porta a consagrar um livro completo de La Physiono
mie humaine ao órgão que excede a anatomia dos traços e parece tor
ná-la vã: o olho. Porque no olho Porta quer agarrar o olhar; e no
olhar, dizer a expressão.
50
Está-se então longe das marcas gravadas desde tempos imemoriais
na superfície plana e lisa da fronte que as metoposcopias decifram;
como se está já longe das caracterizações morfológicas rudimentares
das primeiras fisiognomonias do princípio do século. E certo que
Porta não descura nenhuma observação morfológica, mas também
conclui que os olhos são para o rosto o que o rosto é para a alma. Os
olhos são a alma do rosto: chama-se-lhes ainda «as portas da alma,
pois é pelos olhos que ela se deixa ver de fora»57. Daí resulta que ma
nifestam toda a perfeição da fisionomia e que por consequência os si
nais dos olhos devem sobrepor-se aos de qualquer outra parte do
corpo. São a morada transparente da alma.
Sem dúvida que a alma faz dos olhos a sua morada, é onde as
lágrimas que mostram compaixão têm origem; quando baixa
mos os olhos a alguém, parece que através deles lhe tocamos a
alma: é pela alma que vemos (...); os olhos, como faria uma
mesa lisa e transparente, recebem a parte visível da alma e fa-
zem-na passar para fora; acontece assim que um pensamento
profundo torna os olhos como que cegos, porque a vista se
retira para dentro58.
O longo estudo que Porta consagra aos olhos faz pois mais que
retomar a preponderância que a tradição antiga já lhes concedia.
«Mensageiros da alma», «janelas do coração», «encontro das graças»
ou ainda «luzes de amor»: sob estas antigas metáforas do olhar, as
percepções da figura humana deslocam-se sensivelmente. O olhar é o
sítio da superfície em que transparece o homem interior: dá-se uma
atenção mais exigente às profundezas do corpo. A interioridade, que
a fisiognomonia astrológica fixava num carácter externo, tende de fu
turo a projectar-se no invólucro corporal à maneira de um reflexo.
O homem está menos separado de si mesmo.
Porque, com a observação do olhar, a fisiognomonia começa a fa
zer do movimento um sinal: a análise de Porta leva-o de uma caracte
rização morfológica do olho (a forma, a situação, a cor dos olhos...) a
uma avaliação do movimento («olhos que estremecem», «que piscam»,
«que se movem»...), e para além da própria expressão («olhos riso
nhos», «olhos tristes»...). Um tempo novo, mais fugaz, penetra então
a figura: as fisionomias imóveis, hieráticas, indiferenciadas, animam-se
pouco a pouco, ainda que as semelhanças animais as liguem ainda a um
universo fechado e imutável de formas naturais. As figuras são ganhas
lentamente por uma dimensão psicológica que lhes era estranha.
51
Ser o fisionomista de si próprio
52
seus direitos. A figura decifrada pela fisiognomonia conserva o seu
estatuto de marca e de estigma social: convém sempre observar os
outros para os conhecer, para desmascarar as dissimulações e escolher
os amigos, «para que cada um, pensando na sua salvação, se associe a
homens fiéis e dotados de bons costumes, evitando a companhia dos
maus e dos perversos»60. Mas a fisiognomonia deve igualmente per
mitir a cada um observar em si mesmo o homem interior:
NOTAS
’ B. Coclès, Le compendion et brief enseignement de la physiognomonie, Paris,
1560, p. 1.
2 B. Coclès, Chyromantie ac Phisionomie Anastasis cum approbatione Magistrati
Alexandri de Achillinis, Bolonha, 1504. A obra é reeditada em 1515 em Pavia, em
1523 em Treviso aos cuidados de Tricasso, e depois em forma de compendium em 1533,
1534, 1551, 1554, 1555, 1597...
3 E muito traduzido desde 1525. Em italiano, em Veneza, em 1531; em alemão
em Estrasburgo em 1530 e 1537; em francês em Paris em 1550, e em inglês em Lon
dres no mesmo ano.
53
4Jean dTndagine, Introductiones apotelesmaticae in Chyromantian, Physiogno-
miam, Astrologiam Naturalem complextones hominum naturas planetarum, Estras
burgo, 1522.
5 Magnus Hundt, o Velho, Antropologium de hominis dignitate et propnetatibus,
Leipzig, 1501; C. Achillinus de Bologna, De subjecto physionomie et chyromantie,
Pavia, 1515; Michel Ângelo Biondo, De cognitione hominis per aspectum, Roma,
1544; Jean Gosseiin, La Phisionomie, Paris, 1549; Antoine du Moulin, Physionomie
naturelle, extraite de plusieurs philosophes anciens et mise en français, Lyon, 1550;
Guglielmo Gratarolo, Des préceptes et moyens pour recouvrer, augmenter, et contre-
garder la mémoire avec un oeuvre singulier qui démontre ã facilement prédire et ju-
ger des moeurs et de la nature des hommes selon la considération des parties du corps,
Lyon, 1555 (Ia ed. latina: 1544); Paulo Pintius, Fisionomia naturale, Roma, 1555.
6 B. Coclès, Le compendion..., p. 2.
7 «A fisiognomonia é a ciência das paixões naturais da alma e das repercussões
que elas têm no corpo transformando-se em sinais de fisionomia.»
8 Chega-lhe através dos tratados seguintes, relidos e reinterpretados pela Idade
Média latina e árabe: pseudo-Aristóteles, Physiognomonica, traduzido no século xm
por Bartolomeu de Messina; Polemonte de Laodiceia (século n depois de J. C.), De
physiognomonia liber; Anonymi de physiognomonia liber, tratado latino do século m
ou iv (pseudo-Apuleio); estes tratados foram retomados em: R. Foerster, Scriptores
psysiognomonici graeci et latini, Lipsiae, G. B. Teubner, 1893. A obra d’Adamantios
(século iv) foi traduzida por H. Boyvin du Vaurouy, La physionomie d'Adamantios, Pa
ris, 1635. A esta tradição é necessário acrescentar um opúsculo de Melampus (século iii)
sobre a interpretação dos nevos editado em: J. Cardan, Metoposcopie, Paris, 1658.
Sobre as origens da fisiognomonia e também sobre a relação destas origens nos trata
dos da era clássica, pode consultar-se: R. Foerster, Die Physiognomonia des Grie-
chen, Kiliae, 1884; G. J. Antonini, Precursori di Lombroso, Turim, 1900; L. Thomdike,
A history of magic and experimental sctence, 8 vols., Nova Iorque, Columbia University
Press, 1923-1958; P. Delaunay, «De la psysiognomonie à la phrénologie, histoire et évo-
lution des écoles», Le progrès medicai, n.c 29-31, Julho-Agosto 1928; Y. Mourad, La
physiognomonie arabe et le Kitab Al-Firãsa de Fakhr Al-Din Al-Rãzi, Paris, Librairie
orientaliste P. Geuthner, 1939; A. Denieul-Cormier, «La très ancienne physiogno
monie de Michel Savonarol», La Biologie médical, separata, Abril 1956; G. Lanteri-
-Laura, Histoire de la phrénologie, Paris, P.U.F., 1970; J. Baltrusaitis, Aberrations.
Essais sur la légende des formes, Paris, Flammarion, 1983, pp. 9-53; P. Dandrey, «La
physiognomie comparée à l’âge classique», Revue de Synthèse, III série, n.° 109, Ja-
neiro-Março 1983; e do mesmo autor: «Un tardif blason du corps animal: résurgences
de la physiognomonie comparée au xvne siècle». xvif siècle, n.° 153, Out.-Dez. 1986.
9 B. Coclès, op. cit., p. 2.
10 O que foi progressivamente adquirido e obtido pela medicina nos finais do sé
culo xvm: sobre estes pontos, ver: M. Foucault, Naissance de la clinique, Paris,
P.U.F., 1963.
11 Aparece muito claramente no estudo que J. Bottéro (pp. cit.) consagrou aos pri
meiros tratados de adivinhação mesopotâmica. Há toda uma fisiognomonia — em
que é visível o parentesco formal com os tratados da era clássica — nas técnicas de
observação do corpo próprias de uma das mais antigas adivinhações conhecidas.
E uma racionalização desta observação em que se elaboram as premissas do olhar
médico. Portanto não é próprio, como é costume, fazer começar a fisiognomonia
com a tradição aristotélica.
12 J. Taxil, L'Astrologie et la Physiognomonie en leur splendeur, Tournon, 1614, p. 2.
13 «Principalissimus autem locus est, qui est circa oculos et frontem, et caput, et
54
faciem, secundus autem, qui est circa pectus et spatulas, consequenter circa crura et
pedes, quae autem, circa ventrem, minime.» (Pseudo-Aristóteles, Physiognomonica,
em R. Foerster, op. cit., p. 91).
14 Ver, por exemplo, G. B. delia Porta, La Physionomie humaine, Rouen, 1655
(tradução da edição latina de 1598, em Nápoles), p. 550.
15 Ibid., pp. 1-2.
16 Os discípulos de Sócrates apresentam a Zópiro, célebre fisiognomonista grego,
um retrato do mestre. Tendo observado longa e silenciosamente o rosto do filósofo,
Zópiro concluiu: «Este homem deve ser mentiroso, ardiloso, sensual; é alguém que
ama a fornicação.» Furor indignado dos alunos que contaram a Sócrates. Este ainda
os confunde mais quando lhes responde: «Zópiro tem razão, este é com efeito o meu
carácter. Mas quando vejo que as minhas inclinações são más, não as sigo e a minha
razão leva a melhor sobre as minhas paixões. O filósofo cuja razão não comanda os
impulsos não é um filósofo.» (Cícero, De fato, V, 10).
17 Ver Y. Mourad, op. cit.
18 Ibid., p. 1.
19 Assim, no texto de Razès analisado por Y. Mourad, começa-se por observar a
cor e o brilho da pele do escravo para julgar o estado do fígado, do baço e do estô
mago: «Manchas brancas ou escuras que contrastem com a cor da pele indicam um
começo de herpes ou de lepra. E preciso desconfiar dos nevos, das tatuagens e dos
traços de cauterizaçào, pois podem ter sido feitos para esconder os traços da lepra.
Depois da inspecção da pele, procede-se ao exame dos olhos, das pálpebras, das so
brancelhas, do nariz, do hálito, da boca, da cor dos lábios, dos dentes. Ausculta-se
em seguida a barriga e as glândulas do pescoço. Depois faz-se correr o escravo para
saber da sua capacidade respiratória e para ver se tem tosse (...)» {Ibid., p. 56).
20 Durante este período, a fisiognomonia é considerada como uma verdadeira
ciência. Entra nas classificações das ciências; é um ramo secundário da física tal como
a medicina: Avicena coloca-a na terceira ordem das divisões secundárias da física, de
pois da medicina e da astrologia. Conserva no seio das ciências naturais uma autori
dade bem real, apesar da opinião de Averróis que a considera como uma disciplina
adivinhatória, perigosa e conjectural.
21 Esta figura também numa classificação das ciências do século xvi entre os onze
ramos das práticas adivinhatórias: ciência dos nevos, quiromancia, escapulomancia,
adivinhação pelas pegadas, ciência das genealogias pela inspecção dos membros e da
pele, arte de orientar-se no deserto, de descobrir as origens, os minerais, de predizer
a chuva, de predizer através das coisas passadas e presentes, ou enfim pelos movi
mentos involuntários dos membros (ver: Y. Mourad, op. cit., p. 29).
22 Ibid., p. 61.
23 J. Gosselin, op. cit., p. 4 (itálico nosso).
24 Ibid.
25 As referências ao saber do conhecedor de cavalos são frequentes na fisiogno
monia, principalmente na tradição naturalista. E também aos saberes da caça: Porta
vê aí uma das bases da sua ciência. Michelangelo Biondo junta à sua fisiognomonia
de inspiração médica e anatomista {De cognitione hominis...) um tratado sobre os sa
beres do caçador: De canibus et venatione libellus, Roma, 1543.
26 Ver nomeadamente: P. Dumaitre, A. Hahn e J. Samion-Contet, Histoire de la mé
decine et du livre medicai, Paris, 1962; A. S. Lyons e R. J. Petrucelli, Histoire illustrée
de la médecine, Paris, Presses de la Renaissance, 1979; R. Herrlinger, History of Medicai
Illustration from Antiquity to 1600, Nova Iorque, Nijkirk, 1970; J. L. Binet e P. Des-
cargues, Dessins et traités d^anatomie, Paris, Editons du Chêne, 1980; S. Edgerton Jr.,
«Médecine, art et anatomie», em Culture tecmque, n.° 14, Paris, CRCT, 1985,
pp. 165-181.
55
27 Ver: P. e G. Francastel, Le Portrait, cinquante siècles d^umanisme en peinture,
Paris, 1969.
28 Traduz-se ao mesmo tempo os tratados antigos e árabes. Nos finais do século xn,
o tratado latino atribuído a Apúlio chega ao Ocidente, em breve seguido pelas obras
árabes: o Liber Almansoris atribuído a Razès é traduzido em 1179 por Gérard de Cré-
mone e o Secret des Secrets, traduzido no início do século xm por Philippe de Tripoli; o
pseudo-Aristóteles é traduzido do grego para latim em 1260 por Bartolomeu de
Messina, antes de numerosos tratados de fisiognomonia astrológica árabe que inun
dam o Ocidente desde o final do século xm (ver: Denieul-Cormier, op. cit.).
29 Os trabalhos mais importantes são os de Michel Scott e de Pierre d’Abano (de
Pádua), que serão editados no século xv: P. d’Abano, Liber Compilationis physiono-
miae, Pádua, 1474; M. Scott, Liber physionomiae, Besançon, 1477; De procreationis
et hominis physionomia, Basiléia, 1480. Notemos ainda Aldebrandino de Siena, Le
Régime du corps (parte IV: «Phisionomie»), texto francês do século xin publicado
pelos Drs. Landouzy e Papin, Paris, 1911. E preciso acrescentar aí os comentários de
Albert Le Grand, Buridan e Bacon.
30 Reclama-se de Avicena para alojar o senso comum, a fantasia, a virtude imagi
nativa, a virtude cognitiva, a virtude estimativa nos três ventrículos anterior, médio e
posterior do cérebro; a propósito deste conjunto de pontos respeitantes ao Speculum
Physionomiae, ver A. Denieul-Cormier, op. cit.
31 A renovação da fisiognomonia está estreitamente ligada à difusão do livro, quer
seja sob a forma de tratados eruditos em língua latina destinados a um público letra
do quer sob a de brochuras em língua vulgar, mais breves, elementares e anedóticas
em intenção a um público popular: uma grande quantidade de compendia, de resu
mos, almanaques e calendários que difundem as crenças populares sobre o corpo es
tão repletas de máximas fisiognomónicas, lado a lado com as profecias, as predições
ligadas à passagem dos cometas, receitas de cozinha, conselhos de dietas e de saúde
do corpo. Encontrar-se-ão os elementos de tais representações fisiognomónicas na
cultura popular do corpo no livro de F. Loux, Le corps dans la société traditionnel,
Paris, Berger-Levrault, 1979; e também nos trabalhos que registam os saberes do
corpo na literatura popular da «biblioteca azul», prolongamento destes primeiros
manuais do século xvi (ver, por exemplo: La Bibliothèque bleue, La littérature popu-
laire en France du xvif au XIX6 siècle, Paris, Julliard-Gallimard, 1971).
32 Sobre a doutrina das assinaturas, ver a súmula de L. Thorndike, op. cit., ou ain
da certos trabalhos de A. Koyré, por exemplo: «Paracelse» em Mystiques, spirituels
et alchimistes du xvF siècle allemand, Paris, Gallimard, 1971; e obviamente M. Fou
cault, Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966.
33 R. Saunders, Physiognomonie and Chiromancie, Metoposcopie, The Symmetri-
cal Proportions and Signal Moles of the Body..., Londres, 1653. Trata-se de um texto
tardio, verdadeiro catálogo das fisiognomonias astrológicas dos séculos xvi e xvn.
34 G. B. delia Porta, op. cit., p. 68.
35 J. Taxil, op. cit., p. 6.
36 J. Gardan, Métoposcopie, Paris, 1658. Uma edição latina aparece no mesmo ano.
37 Thaddaeus Hagecius, Aphorismorum Metoposcopicorum libellus unus, Franco-
forte, 1560; Rodolphus Goclenius le Jeune, Uranoscopia, chiroscopia et metoposcopia,
Francoforte, 1603; Physiognomica et chiromantica specialia, Francoforte, 1621; J. Ta
xil, op. cit.; Samuel Fuchs, Metoposcopia et Ophtalmoscopia, Estrasburgo, 1615;
Christian Moldenarius, Exercitationes Physiognomicae, Wittenberg, 1616; Ludovico
Settala, De naevis, Milão, 1626; Ciro Spontone, La Metoposcopia, overo Commensu-
razione delle Linee delia Fronte, Veneza, 1626; Filippo Finella, De Methoposcopia
Naturali liber primus, Anvers, 1648; De Methoposcopia Astronômica, Anvers, 1650;
R. Saunders, op. cit.
56
38 A metoposcopia é condenada como prática adivinhatória por Pierre Nodé (Dé-
clamation contre Perreur exécrable des maleficiers, sorciers, enchantateurs et sembla-
bles observateurs des superstitions, Paris, 1578), ou ainda por Jean Bodin (De la dé-
monomanie des sorcters, Paris, 1580). Suscita a incredulidade de Montaigne («E uma
fraca afirmação que a destrói»; «De la phisionomie», Essais, III, 12, Ed. Stowski,
Nova Iorque, Verlag, 1981, pp. 353-354) e a ironia de Rabelais zombando a meto
poscopia de «Herr Trippa» (Agripa): «Quando o viu pela primeira vez, Herr Trippa,
olhando-o nos olhos disse: Tens a metoposcopia e fisionomia de um cornudo. Quer
dizer de um cornudo escandaloso e difamado.» (Tiers Livre, Ch. 25 em Oeuvres
Complètes, tomo III, Paris, Alphonse Demerre, 1870, p. 123).
39 J. Cardan, op. cit., p. 2.
40 Ibid., p. 5.
41 Ibid., p. 6.
42 J. Taxil, op. cit., p. 6 (itálico nosso).
43 «Notem que os sinais ou caracteres se diversificam segundo a variedade do
tempo; daí vem a grande modificação dos diversos acidentes que se observam na vida
dos homens. Mas as linhas mais notáveis, tal como os signos (principalmente aqueles
que levam o seu significado até ao fim da vida) permanecem» (J. Cardan, op. cit., p. 8).
44 Esta escrita possui caracteres de base — as sete linhas dos planetas — que for
mam uma espécie de partição contínua na qual as possibilidades significantes podem
desmultiplicar-se, as linhas variam em tamanho e em número; são contínuas ou que
bradas, largas ou finas, aparentes ou obscuras. Curvam-se, torcem-se, cruzam-se, ra
mificam-se, desenham uma grande quantidade de figuras geométricas, de letras, de
fórmulas simbólicas...
45 De maneira paradoxal, os traços expressivos que não foram completamente
apagados subsistem nas margens do retrato e muitas vezes vêm tornar legíveis as fi
guras cujos hieróglifos frontais são esotéricos e opacos: olhar direito e simétrico do
homem de bem, olhares dardejantes dos infortunados ou dos assassinos, olhar diver
gente e incerto do louco ou do vagabundo. Isto ilustra-se ainda melhor nos retratos
mais expressivos da metoposcopia de R. Saunders (op. cit.) (ver figura 5), particular
mente nas figuras negras dos assassinos, de traços que o acusam.
46 J. Taxil, op. cit., p. 6.
47 A bula de Sixto V é confirmada em 1613 por Urbano VIL As artes ocultas são
equiparadas a heresias e perseguidas sobretudo em Itália e em Espanha. Os tratados
de fisiognomonia astrológica são colocados no Index Expurgatorius, os autores são
perseguidos pela Inquisição, ainda que tais obras sejam consideradas formas menores
de heresia. Assim, Jérome Cardan não foi verdadeiramente perseguido quando ensi
nava na Universidade de Bolonha nos anos de 1570.
48 Sobre este conjunto de pontos, ver L. Thorndike, op. cit., vol. VI, pp. 145-178.
49 J. Taxil, op. cit., p. 128.
50 Recebem assim o impnmatur, as obras de Giorgio Rizza Casa, La fisionomia,
Carmagnola, 1588; e de Ioannes Paduanius de Verona, De singularum humani corpo-
ris partium significationibus, Verona, 1589. Tinham sido precedidos na via de uma fi
siognomonia natural no tratado de Paulo Pintius (op. cit), publicado em 1555. No
início do século xvn serão seguidos pela Fisionomia Naturale, de Giovanni Ingegneri
(Milão, 1607). O curto tratado de Livio Agrippa de Monferrato (Discorso di Livio
Agrippa da Monferrato, Medico et Astrologo, sopra la Natura e Complessione huma
na, Roma, 1601) é em contrapartida uma fisiognomonia de inspiração astrológica,
mas não uma metoposcopia. Em Espanha, a fisiognomonia astrológica foi menos es
tritamente colocada no index: a obra de Geronimo Cortês (Phisionomia y vários se
cretos de Naturaleza, Barcelona, 1601), de carácter astrológico nitidamente acentua
do, foi reeditada várias vezes no início do século xvn.
57
51 As posições de Porta com respeito à astrologia não são certamente exemplos de
uma componente táctica: os seis volumes da sua Physiognomonie céleste (Nápoles,
1603) oferecem todo um conjunto de considerações astrológicas ao mesmo tempo
que refutam as profecias baseadas nos planetas como um non-sense e condenam a as
trologia judiciária. O que os astrólogos atribuem aos planetas, sinais do zodíaco e
constelações deve ser inferido de qualidades, humores e particularidades do corpo
humano.
52 Sobre este ponto ver G. Simon: «Sur un mode de méconaissance au xvic siècle:
Porta e 1’occulte», em La Pensée, n.° 220, Mai.-Jun., 1981.
53 G. B. delia Porta, op. cit., p. 32.
54 E o «silogismo dos fisionomistas»; «E assim será preciso argumentar para con
cluir e inferir: tudo o que tem grandes extremidades é forte; o leão e alguns outros
animais têm grandes extremidades: portanto o leão e alguns outros animais são for
tes. O termo médio do silogismo que é (B): ter grandes extremidades, isto é, o signo,
converte-se com o termo principal que é (A); forte: a última proposição ou afirma
ção, ou seja (C) passa para além do leão pois ter grandes extremidades não inclui
apenas toda a espécie de leões, mas também outros como o homem, o cavalo, o tou
ro; assim poderá provar-se do mesmo modo que Heitor é forte, e como tudo o que
tem grandes extremidades é forte, Heitor que tem grandes extremidades é forte.»
{Ibid., pp. 65-66).
55 A propósito da zoomorfologia de Porta, ver: A. Bouchet, «J. B. Porta et la
physiognomonie au xvic et xvnc siècle», Cahiers lyonnais d'Histoire de Médecine,
1957, vol. II, n.° 4, pp. 13-42; J. Baltrusaitis, op. cit.; P. Dandrey, op. cit.; L. Van
Delft, «Physiognomonie et peinture de caractères; G. B. delia Porta, Le Brun et La
Rochefoucauld», L’Esprit crèateur, Spring, 1986, pp. 43-52.
56 Ver: J. J. Courtine, «Corps, regards, discours; typologies et classifications dans
les physiognomonies de l’âge classique», em Langue Française, n.° 74, Paris, Larous-
se, Maio 1987.
57 G. B. delia Porta, op. cit., p. 403.
58 Ibid.
59 Ver P. e G. Francastel, op. cit., p. 105. A obra dos Francastel sublinha ao longo
do tempo a animação progressiva da figura humana à medida que se distancia do hie-
ratismo das suas primeiras representações. A pessoa humana é cada vez mais valori
zada, a pouco e pouco a expressão ganha o rosto. E também o que nota G. Duby na
estatuária e no retrato dos séculos xn e xm: «Parece que, por volta de 1125-1135,
por exemplo no pórtico de Saint Lazare d’Autun, os talhadores de imagens recebem
(...) ordens para se distanciarem das abstracções e animarem cada personagem com
uma expressão pessoal; dez anos mais tarde, na fachada real de Chartres, os lábios e
os olhares tornam-se verdadeiramente vivos; depois são os corpos que por sua vez se
libertam do hieratismo; enfim, muito mais tarde, no último terço do século xm,
franqueia-se uma nova etapa decisiva quando irrompe na escultura o retrato, a pro
cura da semelhança.» {Histoire de la vie privé, t. II, p. 506).
60 G. B. delia Porta, op. cit., p. 1.
61 Ibid.
62 Ibid.
Capítulo 2
59
ele e que nada deve ser esquecido para tentar descobrir uma
coisa tão escondida como o coração do homem5.
O homem-orgamsmo
60
corpo são pensados na ordem das paixões. É neste esquema cartesia-
no que Le Brun baseia as suas conferências. Elas são bem mais uma
aplicação — ou, literalmente, uma ilustração — do tratado de Les
Passions de l’Ames do que um prolongamento da tradição fisiogno-
mónica anterior, que parecem conhecer, mas à qual não fazem refe
rência senão ocasional e alusiva9. Apoiando-se numa fisiologia dirigi
da a pintores, atestam preocupações largamente exteriores ao campo
de uma fisiognomonia que agitam. Na exposição e nos esboços de Le
Brun, a antiga concepção que faz do rosto a linguagem da alma perde
o sentido que tinha: o rosto vai deixar de ser o espelho da alma para
ser a expressão física das suas paixões. Nele, a figura humana desfaz-se
e recompõe-se, em todas as suas dimensões: na sua relação com o
mundo, no sinal, no movimento, no tempo; e, finalmente, na socie
dade dos homens.
A figura humana afastou-se do mundo das assinaturas. Nas Con-
férences, o homem só é referido a si próprio, ao mecanismo do corpo
e às paixões da alma. E esta encontra-se localizada na organicidade,
no lugar hipotético da glândula pineal.
61
Figura 8 — Ch. Le Brun: fisionomias de homens e de animais, 1671
(Foto Museu do Louvre).
62
As figuras de Le Brun afastaram-se consideravelmente das que
ilustram a tradição fisiognomónica até Porta e, para além ainda, nos
tratados do século xvn. No entanto, destaca-se muitas vezes da obra
do pintor, paralelamente aos esboços sobre a expressão das paixões, a
série de desenhos em que ele procedeu a uma comparação sistemática
das morfologias faciais dos homens e de certos animais. E inscreve-se
plenamente Le Brun na tradição fisiognomónica em virtude dessa
comparação11. E sem dúvida um erro: Le Brun deixou, por outro la
do, esboços de anatomia a partir dos quais se poderia mais justamen
te ler as suas Conférences como uma anatomia das paixões'2.
As representações zoomórficas em Porta e Le Brun em nada têm
o mesmo valor. São, no primeiro, um elemento indispensável à figu
ração humana: a relação entre o homem exterior e o homem interior
ganha a sua legitimidade pelas simpatias que mantêm com o universo
das formas e dos caracteres dos animais. Ao ponto de o homem e o
animal se compararem acabando por se assemelhar e ameaçarem con
fundir-se.
Nada disso se encontra em Le Brun: as comparações zoomórficas
são exteriores à representação das paixões, não são directamente neces
sárias à Conférences sur L’expression, ao lado da qual antes figuram
como um aditamento, uma concessão que Le Brun pôde fazer tanto à
tradição fisiognomónica como à que consiste para os pintores em reali
zar, a título de exercício, cabeças de expressão fortemente bestializada13.
E considerando estas últimas nos esboços de Le Brun (ver figura 8), as
suas formas híbridas patentes nas faces animais que os acompanham
supõem necessariamente uma representação apagada da figura humana.
Longe de a fazer depender da sua semelhança com o animal, situam-
-na como ponto de origem ou ponto terminal da analogia, à maneira
de um terceiro excluído, cuja própria ausência produz a omnipresen
ça: a figura humana povoa a representação, é a sua base, permite-a.
Os desenhos zoomórficos de Le Brun ilustram de maneira paradoxal
a autonomia adquirida pela forma humana em relação à animalidade.
E as Conférences sur L’expression atestam de facto a cessação da in
vestigação das correspondências exteriores entre homens e animais. Se
comparações ainda existem é a do homem consigo próprio. Se a ima
gem do homem e do animal podem futuramente separar-se, é porque
avança a ideia de que a sua ligação é de outra natureza do que a do
reflexo sem idade das semelhanças: o homem e o animal são organis
mos de que o século xvm cedo estabelecerá o quadro das identidades
e das diferenças. Expulsa de uma ciência natural do homem que pou
co a pouco se vai constituir, a zoomorfologia encontrará a partir do
século xvn o espaço que desde a origem nunca deixara de ser o seu e
que depois continua a ocupar o da fábula e da sátira social.
63
Figura 9 — Ch. Le Brun: estudos do olho (Foto Museu do Louvre).
64
As Conférences sur L’expression e a fisiognomonia animal de Le
Brun não são todavia estranhas uma à outra, sendo necessário procurar -
-lhes o parentesco em alguma outra parte: na sua construção ou na sua
arquitectura. Obedecem a um sistema semelhante de coordenadas, são
regidas por um modo de cálculo similar. E inscrevem-se numa mesma
perspectiva semiológica, profundamente diferente da de Porta.
Da marca ao sinal
65
Figura 10 — Ch. Le Brun, Conférences sur L’expression des Passions, 1668
66
abstracta, mas também mais rigorosa. E enquanto o olhar se impregna
de uma nova distância, o indício parece destacar-se do corpo morfo-
lógico onde se encontrava inscrito como marca. Parece — literalmen
te — desencarnar-se\ a marca passa a ser sinal e deixa de se confundir
com os traços morfológicos existentes na epiderme. Com o afasta
mento do olhar e a desencarnação do sinal, é todo o regime das per
cepções e das visibilidades corporais que se modifica: deixa de se ler
no corpo a inscrição gravada de um texto, vendo-se em acção as re
gras articuladas de um código.
O mesmo acontece nas Conférences: cada figura que representa
uma paixão (ver figura 10) é um conjunto de posições relativas dos
órgãos da expressão. Os esboços constituem, além disso, um inventá
rio fechado, um «alfabeto»15, passando-se de uma figura a outra por
uma série de transformações que afectam o conjunto das relações en
tre os traços morfológicos. A adição ilimitada das marcas foi substi
tuída por um conjunto fechado de signos. A semiologia de Le Brun,
mesmo que só o consiga imperfeitamente, tende a organizar os traços
corporais em rede de sinais, em sistema de identidades e de diferen
ças. O corpo esfuma-se sob o código: o que tem a ver com a tradu
ção plástica de uma retórica das torres e figuras. Partindo do rosto
em repouso, em «tranquilidade», espécie de «grau zero» do sistema16,
enumera e articula o conjunto dos desvios da expressão.
As relações entre significantes morfológicos e significados psíqui
cos também se transformaram. Com a dissipação do macrocosmos, o
corpo liberta-se das divindades tutelares que inscreviam na sua super
fície o seu destino bem como o seu poder: os sinais adquirem então
uma organização fundamentalmente binária e só têm significado por
inferência directa, quando a um conjunto de traços expressivos cor
responde sem mediação exterior uma paixão da alma. E deixam de
entrar em relação sobre o modo da analogia, mas sobre o da causali
dade. LArt de connaitre les hommes permite assim para Cureau ler
no rosto os sinais de uma linguagem das causas e dos efeitos.
Esta arte (...) pode descobrir um efeito oculto pela causa que
lhe é conhecida, ou uma causa obscura por um efeito mani
festo, e um efeito desconhecido por um outro que é evidente.
E estes meios são chamados sinais (...). As causas e os efeitos
servem de sinais à Arte de que falamos17.
67
marcas aguardavam, imóveis, que os olhos viessem fazê-las falar, é
agora necessário que o olhar capte o movimento de um rosto que se
exprime.
O tempo da expressão
68
sinal. A fisiognomonia reconsidera o privilégio que desde a origem con
cedera aos traços estáveis e imóveis — forma, ossatura, configuração
morfológica do rosto — em detrimento dos sinais moventes e passa
geiros da expressão, os «acidentes» da fisionomia. Assim, Cureau dá
uma grande importância à «postura» do corpo e ao «ar» do rosto,
pois ambos «pertencem principalmente ao movimento»24. Sensível ao
movimento, a figura inscreve-se numa nova temporalidade, penetra-a
uma duração reversível. Se o rosto ainda fala a linguagem da alma, é
agora a linguagem de um organismo vivo: destaca-se do tempo eterno
das marcas gravadas para dizer nos seus sinais o carácter efêmero e
momentâneo da paixão. Como se o corpo deixasse de ganhar sentido
num modelo de linguagem escrita para se tornar pouco a pouco o re
flexo da volatilidade da palavra. Com o tempo da expressão, é uma
duração subjectiva que envolve corpo e rosto.
Todos os movimentos do corpo individual parecem então tornar-
-se expressivos. A categoria de expressão generaliza-se e estende-se,
no decorrer do século xvn, a todo um conjunto de comportamentos
humanos a partir de então interpretáveis como manifestações codifi
cadas da expressividade. Em 1622, no prolongamento do seu comen
tário da fisiognomonia de Aristóteles, Camillo Baldi inventa a pri
meira grafologia23. Mas para além da marca dos movimentos deixada
pela mão, propõe o exame de todas as particularidades estilísticas da
letra como prova da natureza daquele que escreve. A fisiognomonia
da expressão subjectiva, que concebe o corpo pelo modelo da lingua
gem, estende-se pouco a pouco aos próprios comportamentos lin
guísticos, quer estes sejam escritos ou orais, e trata então a linguagem
à maneira do corpo: a palavra torna-se morfológica quando Wulson
de la Colombière26 considera como equivalente de indícios corporais
as características individuais do discurso verbal («da maneira de fa
lar», «do falar lento», «da temeridade e precipitação dos discursos»,
etc.); quando Prospero Aldorisio concebe uma fisiognomonia do ri
so27 ou quando David Laigneau28 elabora uma fisiognomonia da voz
que alarga a sua jurisdição às margens e refugos da linguagem: o so
pro, o suspiro; e até à sua própria supressão: o silêncio, nos interstí
cios da palavra. O homem mantém-se expressivo mesmo no silêncio.
Porque quando se cala, é então o seu corpo que fala.
69
siognomonia continua a ser o conhecimento dos outros e a escolha
das companhias, o olhar prossegue e intensifica o movimento de re
tomo a si próprio, de exploração do homem interior que havia iniciado.
A fisiognomonia tende a surgir como uma prática privada e íntima29,
e a observação de outrem como um desvio necessário ao conhecimen
to do eu. Em relação aos tratados anteriormente destinados ao exame
minucioso das superfícies corporais, as Conférences de Le Brun mar
cam uma inversão espectacular de perspectiva. Pela primeira vez, a
classificação elaborada é comandada «do interior» pelas exigências de
uma análise psicológica.
70
privada, ao mesmo tempo que um reforço dos constrangimentos liga
dos ao espaço público. A fisiognomonia é então tornada necessária
por um controlo cada vez mais apertado do espaço social pelo olhar.
Torna-se o «guia da conduta na vida civil», a arte de desvendar que
«ensina a descobrir os desígnios ocultos, as acções secretas e os auto
res desconhecidos das acções conhecidas»32, na atmosfera de conspiração
e de suspeição engendrada pelas intrigas e rivalidades da sociedade da
corte. Mas para além da corte, parece que a prática da fisiognomonia se
torna uma espécie de necessidade universal, indispensável a cada «esta
do» da sociedade. Participa da diversificação das formas de observação e
de controlo social por condição, ocupação e «dever de estado».
Ela é útil ao teólogo que quer detectar as causas do pecado; indis
pensável ao filósofo que reflecte sobre a natureza dos homens. Ne
cessária ao «médico da alma», é-o igualmente ao do corpo que dela
inferirá que paixão está agindo, que humor está em causa e, por con
sequência, o que do corpo deve ser expurgado. E ainda benéfica para
o bom cristão,
71
O sinal inclui, a marca exclui. É aqui que se encontra o objectivo
social desta conversão das marcas morfológicas em sinais de expres
são que podem ser traçados através das fisiognomonias da idade clás
sica: ela revela que a sociedade civil se baseou na necessidade parti
lhada de um código de comunicação tanto verbal como corporal, que
garante a individualização e a socialização pela expressão de cada um
dos seus membros. Condição para que possa surgir uma sociedade de
prazer recíproco, baseada numa conversação agradável e paixões mui
to moderadas. E nisso que a fisiognomonia se mostra um trunfo de
que o gentil-homem não poderia privar-se:
A política do olhar
72
é uma peça principal. Le Brun defende os princípios de uma arte nar
rativa, que aprendeu com Poussin: um quadro deve ler-se como um
discurso. As suas escolhas técnicas, que valorizam o traço em detri
mento da cor, e o seu ensinamento obedecem a este objectivo: as
Conférences sistematizam o estudo da expressão existente na fisiono
mia de forma a traduzir sem ambiguidade alguma as paixões e os ca
racteres que intervém nos quadros históricos que cantam louvores a
Deus ou ao rei, e dos quais é preciso ler claramente as lições para edi
ficação de todos.
73
o movimento. Os esboços naturalizam a paixão, fixam-lhe as espé
cies. O rosto esfuma-se por trás da figura, a natureza apaga-se sob a
convenção. É a preocupação de legibilidade das figuras que leva Le
Brun a privilegiar as sobrancelhas em detrimento dos olhos: o traço
capta com maior facilidade a disposição e o movimento dos músculos
da sobrancelha do que as delicadas tremuras do olhar39. As Conféren
ces de Le Brun libertaram as percepções e as representações do rosto
das superfícies imóveis em que as havia inscrito a tradição fisiogno
mónica, para as inscrever numa morfologia da expressão.
O enfraquecimento da fisiognomonia
74
mens como um quadro ou uma figura, por uma só e primeira vista;
existe um interior e um coração que é necessário aprofundar»45. O rosto
de um homem não se reduz à sua figura. O moralista advoga um co
nhecimento profundo do ser e condena a vaidade das aparências.
75
civil, indispensável à formação de uma norma de comportamento e
votada a atenuar-se, a tornar-se mais discreta quando tal norma en
trar efectivamente nos hábitos. Dar-se-ia então o declínio da fisiog
nomonia bem como o da noção de civilidade49: o seu enfraquecimen
to como modelo prescrito de conduta seria ao mesmo tempo o sinal
da sua generalização e da sua debilidade como prática; e ainda o indí
cio de um certo esgotamento do ideal do homem da corte que reinava
pela aparência.
Os escritos dos moralistas do fim do século xvn traduzem-no
quando os vemos marcar claramente a autonomia do homem privado
em relação à personagem pública. E então que surge sob a pena de La
Bruyère — facto «único» na literatura da época, fazendo fé em Auer-
bach53 — a descrição de um outro tipo físico que não o que se encon
tra na corte e na cidade: a da fisionomia dos camponeses.
76
1677 os pormenores das suas Dissertationes Physicae dedicadas à fi
siognomonia:
NOTAS
1 John Donne, Anatomy of the world, 1611; citado por A. Koiré, Du monde cios
à Punivers infini, Paris, Gallimard, 1973, p. 48.
2 Para além do conjunto de tratados de metoposcopia já assinalados, podem re-
censear-se numerosas obras de fisiognomonia de inspiração astrológica, muitas vezes
incorporadas em manuais de quiromancia: Jean Belot, Instruction familière et très fa-
cile pour apprendre les sciences de chiromancie et de physiognomonie, Paris, 1619;
Andreas Otto, Anthroposcopia, Konigsberg, 1647; Anselme Petit Douxciel, Speculum
physionomicum, Langres, 1648; Johann Sigismundi Elsholtz, Antropometria sive de
mutua memborum corporis humani proportione et naevorum harmonia, Francoforte,
1663; Philipp Mey (Meyens). Chiromantia medicia, Graven Haag, 1667; Jan Frederik
Schweitzer (Helvetius). Microscopium physionomiae, Amesterdão, 1676; Wulson de
la Colombière, Le Palais des Curieux, Paris, 1676.
3 Camillo Baldi, In physiognomica Aristotelis commentarii, Bolonha, 1621; Cor-
nelio Ghiradelli, Cefalogia Fisionômica, Bolonha, 1630; Estevan Pujasol Presbytero,
El Sol Solo, y para todos sol, de la filosofia sagaz y Anatomia de Ingenios, Barcelona,
1637; Honorat Niquet, Phisiognomonia humana, Lyon, 1648; Marin Cureau de la
Chambre, op. cit.; C. de la Bellière, Sieur de la Niolle, Physionomie raisonnée, Paris,
1664; François Bayle, Dissertationes physicae, Toulouse, 1677; David Laigneau, Trai-
té de la saignée, 2e éd., avec une Table de la Physiognomonie ou Description des par-
ties extérieures du corps, Paris, 1685. E conveniente acrescentar a estas obras novas
traduções dos textos antigos na primeira metade do século xvn e numerosas reedições.
A fisionomia humana de Porta terá assim 21 edições sucessivas em Itália até 1656.
4 Estevan Pujasol Presbytero, op. cit., p. 35.
5 Cureau de la Chambre, op. cit., p. 337.
6 O texto da conferência será publicado depois da morte do pintor, sucessivamen
te por Testelin, Picart, e depois Audran: Sentiments des plus habiles peintres sur la
pratique de la peinture et sculpture mis en table par Henry Testelin, Paris, 1696;
Conférence de Monsieur le Brun sur Pexpression générale et particulière, Paris, Picart,
1698; Expression des passions de Vâme, représentées en plusieurs têtes gravées d'après
les dessins de feu M. Le Brun par J. Audran, Paris, 1727. Este texto foi reeditado em:
G. Lavater, L’Art de connaitre les hommes par la physionomie, éd. Moreau de la
Sarthe, Paris, 10 vol., 1820; H. Jouin, Charles Le Brun et les Arts sous Louis XIV,
Paris, Imprimerie Nationale, 1889. E mais recentemente na Nouvelle Revue de Psy-
chanalyse, n.° 21, Paris, Gallimard, Primavera 1980. As notícias de Jennifer Montagu no
Catalogue de PExposition Charles Le Brun, Versalhes, 1963, têm observações preciosas.
7 Descartes, Traité de l'Homme, 1664, p. 202; em Oeuvres, publicadas por C. H.
Adam e P. Tannery, vol. XI, Paris, Vrin, 1974.
8 Para além de Les Passions de 1’Ame (Paris, 1649), as conferências de Le Brun si
tuam-se na perspectiva das obras consagradas às paixões da alma na primeira metade
do século xvn: N. Coffeteau, Tableau des passions humaines, Paris, 1620; J. F. Se-
77
nault, L’Usage des passions, Paris, 1641; M. Cureau de la Chambre, Les caractères
des passions, Paris 1640-1662; L. de Lesclache, L3Art de discourir des passions, Paris,
1660. Ver: G. Rodis Lewis. «Introduction» à edição de Les Passions de PAme, Vrin,
1970.
9 «A sobrancelha é a parte da cara onde as paixões se fazem conhecer melhor, em
bora alguns tivessem pensado que era nos olhos» (Ch. Le Brun, «Conférences...» na
Nouvelle Revue de Psychanalyse, p. 99). L. Van Delft {op. cit.} sublinhou a influência
menor que Porta exerceu sobre Le Brun, tal como sobre La Rochefoucauld, que se
libertaram francamente dele.
10 Charles Le Brun, op. cit., p. 96.
11 É o caso de J. Baltrusaitis {op. cit.}, entre outros. Para uma discussão sobre este
ponto, ver P. Dandrey e L. Delft {op. cit.}.
12 Ver Binet e Descargues, op. cit., p. 84.
13 São célebres as de Leonardo e de Ticiano, assim como as de Rubens que se po
dem observar em: P. P. Rubens, Theorie de la figure humaine, Paris, 1773.
14 Sobre este conjunto de pontos, ver J. Baltrusaitis, op. cit.
15 Ver H. Damisch «L’alphabet des masques», Nouvelle Revue de Psychanalyse,
n.°21, Paris, Gallimard, Primavera 1980.
16 Ibid.
17
17 Cureau de la Chambre, op. cit., p. 275.
18 Ibid., p. 7.
19 «A acção não é mais do que o movimento de alguma parte e a mudança não se
faz senão pela modificação dos músculos. Os músculos só têm movimento pela ex
tremidade dos nervos que passam através de si, os nervos só actuam através dos espí-
sangue que passa continuamente pelo coração, que o aquece e rarefaz de tal modo
que produz um certo ar subtil que se instala no cérebro e o preenche» (Ch. Le Brun,
op. cit., p. 96).
20 Ibid., p. 95.
21 Ver Binet e Descargues, op. cit., p. 132.
22 «Ei-lo. Todo o meu sangue se acumula no coração...
Esmorecí. Sequei os olhos, as lágrimas...
Vi-o, corei, empalideci à sua vista.
Surgiu uma perturbação na minha alma perdida.
Os meus olhos deixaram de ver, não conseguia falar.
Senti todo o meu corpo enregelar e queimar.»
{Phèdre, acto II, cena V, v. 581 e 690; acto I, cena 3, v. 273-276: ver G. Rodis-
-Lewis, op. cit., p. 33).
23 Bossuet, Conn, II, 12, que também acha a etimologia da palavra, pois o latino
horrore provém do sânscrito harsh-. «hérisser», eriçar.
24 Cureau de la Chambre, op. cit., p. 287.
25 Camillo Baldi, Trattato come da una lettera missiva si conoscono la natura e
qualità dello scritore, Capri, 1622.
26 M. Wulson de la Colombière, op. cit.
27 Prospero Aldorisio, Gelotoscopia, Nápoles, 1611.
28 D. Laigneau, op. cit.
29 «O meio que nos pode fazer conhecer os outros e fazer-nos conhecer aos ou
tros. Não falo do conhecimento público que toca os olhos do povo e que geralmente
está disfarçado; mas do que dá a vida privada, o quarto, o fundo do coração.»
(M. Cureau de la Chambre, op. cit., pp. 2-3).
30 Ch. Le Brun, op. cit., p. 98 (itálico nosso)
78
31 Descartes, Meditationes de Prima Philosophia (1641), Paris, Vrin, 1970, p. 34.
32 Ver supra, pp. 33-34.
33 M. Wulson de la Colombière, op. cit., p. 130
34 J. d’Indagine, op. cit., pp. 139-140.
35 M. Wulson de la Colombière, op. cit., p. 130
36 Ibid, pp. 128-129.
37 B. Lamy, Traité de la perspective ou sont contenus les fondements de la peintu-
re, Paris, 1701, pp. VIII-IX.
38 Ibid, pp. 11 e 16.
39 «Mas mesmo que se perceba facilmente estes movimentos dos olhos e se saiba
o que significam, não é fácil descrevê-los, pois cada um é composto de várias modifi
cações, que chegam ao movimento e ao aspecto do olho, os quais são tão particulares
e tão pequenos que qualquer deles não pode ser percebido separadamente se bem
que o que resulta da sua conjunção seja facilmente observável.» (Descartes, Les Pas
sions de PAme, p. 147).
40 Fisionomia: arte que ensina a conhecer o humor ou o temperamento do homem
pela observação dos traços do rosto e da disposição dos membros. Gian Battista Por
ta e Robert Fludd escreveram sobre a fisionomia: «A fisionomia é uma ciência bas
tante vaga mas mais sólida do que a quiromancia.»
41 Etienne Chauvin, Lexicon Rationae Sive Thesaurus Philosophicus, Roterdão,
1692.
42 Em 1667, o bacharel Claude Berger tinha dado uma resposta negativa à questão
seguinte: Estne imperfectus qui astrologiam ignorat medicus? Em 1707 a tese de Le
François {Estne atiquod lunae in corpora humana imperium?) dará uma achega defi
nitiva à questão (ver: P. Deluny, op. cit., p. 1211)
43 Ele declarava que a fisiognomonia só seria aprovada desde que «se encerre nos
limites da filosofia natural e que só adivinhe as coisas por conjectura e probabili
dades, mas não com certezas. Pois acontece muitas vezes que a razão corrige nos
homens as más inclinações que lhes podem ter sido imprimidas pela natureza e dá
às suas almas impressões completamente opostas às que aparecem nas caras e nas
outras partes do corpo. A graça faz ainda mais, pois transforma os lobos em car
neiros, os perseguidores em apóstolos e os criminosos em inocentes. Assim resol
ve todas as regras da fisionomia que, de resto, não se podem estender nem quanto
às acções particulares dos homens, nem quanto à sua liberdade, nem às coisas que
lhe são exteriores, uma vez que tudo isso não depende do seu temperamento nem
da disposição do seu corpo.» (Abade Thiers, Traité des superstitions, Paris, 1679,
pp. 194-195).
44 La Bruyère, Les caracteres ou les moeurs de ce siècle, Paris, 1688; ed. Garnier,
Paris, 1962, p. 362.
45 Ibid, p. 360.
46 Ibid, p. 362.
47 Boileau, Satyr., XI
48 La Bruyère, op. cit., p. 363.
49 Ver R. Chartier, op. cit.
>0 Erich Auerbach, Mimesis. La représentation de la realité dans la littérature oc-
cidentale, Paris, Gallimard, 1968 (1946), p. 371.
51 La Bruyère, Cap. «De PHomme», 128, ed. Grands Ecrivains citado por
E. Auerbach, Ibid. Sobre este ponto ver o que Roland Barthes escreveu nos Essais
critiques a propósito da distinção dos rostos dos burgueses e dos camponeses na pin
tura holandesa clássica. «Enquanto o rosto camponês é deixado aquém da criação,
o rosto burguês é levado ao grau último da identidade (...). Os camponeses de Van
79
Ostade têm faces abortadas, semicriadas Dir-se-iam esboços de homens (...)»
(Paris, Seuil, 1964, p. 24).
52 Ver E. Auerbach, Ibid, pp. 364-394.
53 La Rochefoucauld, Paris, 1664; ed. Garnier, Paris, 1967, pp. 203-206.
54 F. Bayle, op. cit., p. 77
Capítulo 3
A ANATOMIA DO SENTIMENTO
(Rosto orgânico e rosto expressivo no século xvm)
Mas como a alma não tem forma que possa ter relação com
qualquer forma material, não se pode julgá-la pela figura do
corpo, ou pela forma do rosto. Um corpo mal feito pode en
cerrar uma alma belíssima e não se deve julgar o bom ou o
mau natural de uma pessoa pelos traços do seu rosto, porque
esses traços não têm relação alguma com a natureza da alma
81
nem possuem uma analogia sobre a qual se possam sequer ba
sear conjecturas racionais3.
82
incriminadas das fisionomias pintadas por Hogarth anunciam-na, a
precisão do traço físico e a caracterização psicológica dos retratos de
Ingres prolongam-na; e também, de uma outra maneira, as caricatu
ras animalistas de Granville. Mas irá encontrar sobretudo um sucesso
popular considerável: as Physiognomische Fragmente, de 1755, são
rapidamente traduzidas e difundidas nas principais línguas europeias
e muitas vezes reeditadas8, especialmente sob a forma simplificada de
um Lavater portátil, companheiro inseparável do fisionomista ador
mecido em cada um9. Ao ponto de a fisiognomonia parecer flutuar
no ar neste fim do século xvm e alvorada do xix. Curiosa ressurrei
ção de uma disciplina de que a ciência havia pronunciado a condena
ção e anunciado a morte: isto basta para confirmar que os sucessos e
as desgraças da fisiognomonia não são de forma alguma explicáveis só
a partir da constituição de uma história natural do homem. Por um
lado, pelo facto de a fisiognomonia do fim do século xvm continuar
a ser um elemento do conhecimento comum, quando deixou de parti
cipar na racionalidade científica; por outro lado, porque a fisiogno
monia é uma prática de observação de outrem inscrita no campo das
práticas sociais; e que nesse sentido depende de uma história destas
últimas.
Vai ser porém necessário que os trabalhos sobre o rosto humano
publicados em todos os anos do século10 se legitimem perante a ciência
e respondam às críticas que esta lhes dirige. As suas respostas mos-
tram-nas como um conjunto heterogêneo em que se encontram dois
tipos de preocupações. Certos trabalhos como os de Parsons, Sue ou
Camper, deslocam a problemática da fisiognomonia no campo dos
objectos e dos métodos de uma história natural do homem; transfor
mam-lhe a perspectiva apoiando-se no desenvolvimento da osteolo-
gia, da mitologia e da anatomia comparada.
Pelo contrário, outros como Pernety, Lavater, Clairier ou Robert,
prolongam de facto a fisiognomonia tradicional, usando por vezes
formulações que parecem directamente retiradas de Jérôme Cardan:
83
de ciência: longe de a fazer calar, isto condu-la a uma permanente e
maior difusão. Será a «ciência das ciências» para Lavater, «ciência
universal» para Pernety. «A física», argumenta, «não será ela afinal
uma simples fisiognomonia da natureza, a astronomia do céu, a botâ
nica dos vegetais, a história do tempo passado, e a própria política
nada mais que a fisiognomonia do estado?»’2
Os trabalhos da fisiognomonia são assim atravessados, a partir
dos anos 1760, por uma tensão particular: inscrevem-se no aumento
da irracionalidade científica e constituem ao mesmo tempo um refú
gio do irracionalismo; sujeitos à ordem da razão, vão glorificar a vida
do sentimento; dedicam-se à observação do rosto orgânico e exaltam
o rosto expressivo.
Os sinais do anatomista
84
mutação do olhar fosse uma intervenção da sua orientação, como se o
olhar do anatomista considerasse a variedade dos traços humanos ins
talando-se no próprio interior do corpo; nesta mudança de perspecti
va existe literalmente uma revolução do olhar em relação àquele a que
nos havia acostumado a antiga fisiognomonia. O gesto de observar
transformou-se profundamente. Onde dantes bastava a acuidade do
olhar, a observação intrumentalizou-se: desenvolve-se a craniometria.
Onde o golpe de vista era um gesto único e isolado, o olhar decom-
pôs-se numa complexa cadeia de operações: dissecar, medir, compa
rar e classificar.
Que o sinal deve ser construído não é novo, mas ele abstraiu-se
até não ser mais que uma medida calculada: o ângulo facial é de 70 a
80 no homem e de 58 no orangotango. A quantificação dos sinais in
troduz a continuidade das espécies que se dispõem segundo a ordem
das variações numéricas. Mais ainda, nas formulações de Camper pa
rece ser a variação contínua dos sinais angulares que produz a diversi
dade das espécies.
85
Figura 11 — P. Camper: o ângulo facial, do macaco a Apoio (Dissertations sur les
variétés naturelles qui caractérisent la physionomie des hommes, Paris, 1791;
foto B. N.).
86
E logo que fazia inclinar a linha facial para a frente, obtinha
uma cabeça parecida com o antigo; mas quando dava a essa li
nha uma inclinação para trás, produzia uma fisionomia de ne
gro e, definitivamente, o perfil de um macaco, de um cão, de
uma galinhola, conforme fazia inclinar mais ou menos essa
mesma linha para trás.17 (Ver figura 11.)
87
e por atributos do sexo, mamas compridas e moles, a pele do
ventre caindo até aos joelhos; os filhos atolados no lixo e arras
tando-se às quatro patas, o pai e a mãe sentados nos calcanha
res, hediondos e cobertos de uma sujidade pestilenta19.
88
í J
89
Mas a ideia de uma identidade orgânica profunda traduzindo à
superfície as diferenças fisiognomónicas vai alargar-se, para além da
raça, à identificação da nacionalidade. Quando Camper percorre as
ruas e as praças públicas de Amesterdão, é-lhe «fácil distinguir, ao
primeiro golpe de vista, não apenas os negros dos brancos, mas ainda,
entre estes últimos, os judeus dos cristãos, os espanhóis dos franceses,
os franceses dos alemães e estes últimos dos ingleses»22. O exemplo
de Amesterdão é o de uma grande cidade de comércio cujas multi
dões reúnem homens de todas as origens. Permite compreender a ne
cessidade de dar à nacionalidade, à imagem da raça, a identidade or
gânica de que a morfologia facial seja reveladora: o cosmopolitismo
das grandes cidades começou a misturar os homens, surgindo a pou
co e pouco o risco de os rostos se tornarem indistintos, de se confun
direm os traços da sua primitiva figura:
90
Esta fisiognomonia prolonga a antiga tradição que, até ao sé
culo xvn, distinguia os povos pelos traços físicos e morais dos hu
mores e dos temperamentos. Ela aplica a morfologia aos caracteres
nacionais; no decurso do século xix, fundamentar-se-á na natureza
das distinções históricas e culturais, ao ponto de querer torná-las
irredutíveis.
Crânios expressivos
91
Figura 13 — J. G. Lavater (op. cit): máscara mortuária (Foto B. N.).
92
Figura 14 — J. G. Lavater (op. cit.)-. crânios expressivos... (Foto B. N.).
93
tudar as máscaras mortuárias, coleccionar os crânios, fazer falar os
mortos para compreender os vivos. A sabedoria do fisionomista é a
arte da natureza morta (ver figura 13).
Na brusca ressurgência da morfologia na renovação da fisiognomo
nia do fim do século xviii, é necessário ver a preponderância adquirida
pela história natural no espírito do tempo: à maneira de Camper, La-
vater produz a deriva morfológica do Apoio antigo em batráquio.
Mas a sua anatomia é uma pura fantasia que não tem por alcance a
classificação ordenada das espécies: o que ele procura na imobilidade
dos traços é a permanência do carácter; e na morfologia, a psicolo
gia30. Mais paradoxalmente ainda: nos ossos, uma expressão.
«Vejam as silhuetas da parte ossuda destas três cabeças», exclama
ele face a um alinhamento de caixas cranianas. «Não se vê aqui nem
cara, nem traço, nem movimento e, no entanto, estes três crânios não
deixam de ser expressivos»31. (Ver figura 14.)
A obra de Lavater é paradoxal se se relacionar com a lenta história
dos tratados de fisiognomonia, que viu pouco a pouco manifestar-se a
expressão na imobilidade do rosto. Mostra um entusiasmo pré-ro-
mântico pelo movimento que a leva a dar vida às formas inanimadas e
rígidas do corpo humano, exaltando a expressão. Mas no arcaboiço
ósseo do homem prossegue igualmente uma naturalização dos carac
teres psíquicos, no sentido que este termo pode ter para um taxider
mista. Está muito próxima, neste aspecto, da frenologia de Gall: com
efeito, que busca este último nas cavidades e bossas da parte superior
do crânio, senão dotar o homem de um verdadeiro esqueleto psíquico,
o das «propensões» que constituem a permanente arquitectura da sua
personalidade?
Este paradoxo que percorre a obra de Lavater é o efeito de uma
tensão mais geral que a sua época atravessa. Com efeito, no decorrer
do século xvm a anatomia do crânio é objecto de um conjunto de in
vestigações que, do ponto de vista das medições sistemáticas, revelam
a nova inteligibilidade da unidade e da variedade das espécies orgâni
cas; e dão lugar igualmente a exames de natureza fisiognomónica da
individualidade psíquica.
Abre-se assim, no último terço do século xvm, uma crise da legibili
dade do rosto. E a fisiognomonia de Lavater é o sintoma desta crise.
Os seus aspectos contraditórios, as orientações irreconciliáveis que a
rasgam e quebram a sua coerência, são manifestação de que para o fu
turo duas vias divergentes se afastam uma da outra e que o conheci
mento do homem seguirá: o estudo objectivo do homem orgânico
afasta-se então da escuta subjectiva do homem expressivo. Surge uma
94
divagem temática entre organicidade e expressividade, que é também
uma partilha discursiva, uma delimitação disciplinar: a objectivida-
de orgânica vai cair no domínio da ciência, enquanto a subjectividade
expressiva dependerá das artes e das letras. E o fim do paradigma
da expressão, isto é, da representação subjectiva concebida como lin
guagem unificada do organismo humano. As Conférences de Le Brun
haviam sido, no que respeita às representações do rosto, a última for
mulação geral coerente, porque tinham podido, ainda no fim do sé
culo xvn, manter a divisão já patente do orgânico e do expressivo sob
o império da retórica e do domínio do eu. Mas onde os dicionários
de Richelet (1680), Furetière (1690) e o da Academia (1694) se refe
rem, no artigo «rosto», ao movimento das paixões e às metáforas da
expressão, a Encyclopédie de Diderot só mencionará os elementos de
uma semiologia médica. O rosto é ali sintoma orgânico e já não ex
pressão subjectiva. Esta emigrou para as rubricas «paixão», «retrato»
e «expressão», remetida para as belas-letras, a ópera e a pintura.
E desta vez, no terreno, já não objectos, mas discursos cujas proprie
dades formais se dissociam e que o século xix separará definitivamen
te em dois gêneros distintos. Deverá ver-se no Discours sur le style,
pronunciado em 1753 por Buffon, uma última defesa, na perspectiva
clássica, pela unidade do homem orgânico e do homem expressivo?
Tentativa de um escritor para ordenar os movimentos do organismo
na racionalidade da expressão individual; resposta afirmativa de um
naturalista à pergunta: pode um sábio ter um estilo?
E pois a própria incoerência do trabalho de Lavater que lhe dá in
teresse quando parecia condená-lo: atravessado pela divagem que de
futuro vai cindir a racionalidade dos discursos sobre o homem e ain
da opô-los, recusa os termos dessa partilha e esforça-se por unir estes
elementos ontem indissociáveis e que a pouco e pouco se tornaram
estranhos um ao outro: o rosto orgânico e o rosto expressivo, a facialida-
de muscular e ossuda do homem e a face sensível do indivíduo. E deste
modo Lavater tenta escapar à crescente divisão do próprio homem em
homem orgânico e homem sensível, a fenda em que se constituíram os
traços da personalidade moderna.
Uma «ciência do rosto» que seja uma ciência do homem sensível,
eis o sonho, de futuro impossível, que Lavater persegue numa aliança
barroca do crânio e do sentimento.
A linguagem do sentimento
A imagem da alma está pintada na fisionomia. E calma? To
das as partes do rosto estão num estado de repouso que anun
cia a calma interior. A sua união prova a doce harmonia dos
95
pensamentos. Está a alma agitada? A face humana transfor-
ma-se num quadro animado, em que as paixões se manifestam
com tanta delicadeza como energia, em que cada movimento
da alma é expresso por um traço e cada acção por um carácter
que a revela33.
96
inserções ósseas. Este deslocamento das percepções anatômicas não
deixa de ter por sua vez efeitos estéticos. São disso testemunho as ob
servações dirigidas aos pintores por Sue nos seus Éléments cTAnatomie:
97
Se a alma de um homem ou a natureza deu ao seu rosto a ex
pressão da benevolência, da justiça e da liberdade esse
rosto é uma carta de recomendação escrita numa língua co
mum a todos43.
O tempo do sensível
98
do sentimento. Não existe pois, na expressão espontânea do olhar,
«um intervalo, por assim dizer, entre o sentimento e o seu efeito»,
nota Engel, que acrescenta:
99
num indivíduo, cada instante tem a sua fisionomia e a sua ex
pressão50.
O observador de si mesmo
100
É um dever imperioso, uma preocupação de cada instante, uma aten
ção sem falha. No seu diário, Lavater fala com o homem interior que
existe em si. Mas este homem mudou de rosto. Já não é uma simples
introspecção da consciência, o tradicional diálogo com a alma, mas
uma verdadeira conversa que empreende com o seu coração:
101
brar com o marquês de Caraccioli’8, alia por vezes a doçura do senti
mento íntimo aos rigores do emprego do tempo59.
Os rostos da multidão
102
Quanto a Mercier, descobre novas identidades que se desenham
nos modos das pessoas das cidades, nos rostos dos Parisienses; e ain
da nos dos jovens do Palais-Royal, de «fisionomias muito particula
res, onde se pintam almas insensíveis, corações frios, paixões sem
prazer e sem vigor»65. E Mercier, como Diderot, dedica-se a diferen
ciar a frieza exagerada das fisionomias aristocráticas ou burguesas
e de calor expressivo das camadas populares. Se quiserem poder ler e
pintar verdadeiras expressões — aconselha Diderot aos pintores —,
vão às tabernas e aos mercados. A expressão está na rua.
103
adquirido a fisionomia do mercado. À força de se irritarem,
de se injuriarem e de se baterem, de gritarem, de se desgre
nharem por nada, haviam contraído para toda a vida o ar do
interesse sórdido, da insolência e da cólera70.
104
facho da natureza. Ao dissipar-se, deixa ver o verdadeiro com
todo o seu brilho74.
Lavater, por sua vez, também insiste nisto: é preciso ter nascido
fisionomista, ainda que se espere vir a sê-lo, para possuir esse «senti
mento e, por assim dizer, essa intuição rápida do homem»75. Ressurge
então com uma nova força a antiga ideia segundo a qual a fisiogno
monia permitiría desvendar o ser, pôr a nu o homem interior:
«Aprendam a arte de conhecer os homens pelos traços dos seus ros
tos», assim exorta Pernety. «Arranquem essa máscara pérfida e que
não reste ao que a trazia senão a vergonha de a ter usado»76. Este
ideal de transparência de que a sinceridade e a franqueza devem ser
os frutos, é desde logo considerado como uma das condições daquilo
que as transformações políticas cedo vão reclamar: a fisiognomonia
será uma das bases da invenção deste homem novo, republicano e vir
tuoso, um dos instrumentos mais preciosos da fabricação do cidadão.
E assim que Clairier, padre constitucional, dirige à Sociedade dos
Amigos da Constituição de Estrasburgo uma fisiognomonia patrióti
ca e revolucionária. Uma obra «verdadeiramente nacional», embora
de um interesse universal, «de utilidade pública» porque redigida
«sob o império do civismo». Qual o seu objectivo? Propor, a partir
do conhecimento do homem físico e do homem moral, uma educação
meio esclarecida e mais sólida do cidadão. A fisiognomonia foi bem a
ciência dos reis. Porque não havia de ser de futuro uma ciência útil
ao povo, ao cidadão «chefe e rei da sua família», «encarregado da admi
nistração pública», «alma do departamento»?77 Dantes apresentavam-
-na como indispensável ao conhecimento dos «deveres de estado» na
sociedade do Antigo Regime, agora vão inscrevê-la na instrução cívi
ca. A fisiognomonia terá como tarefa contribuir para a formação das
elites da nação. Mais ainda, ela é o próprio futuro da nação revolu
cionária porque lhe ensinará a reconhecer e a educar as suas gentes.
Uma tal nação não deve sem dúvida descurar coisa alguma
para dar a conhecer à geração nascente de tantos cidadãos por
que sinais certos e fáceis ela pode distinguir os indivíduos
mais próprios pelas suas luzes e os seus talentos, a sua integri
dade e a sua coragem, para manterem com zelo a constitui
ção, tornando-se os seus suportes e o ornamento78.
105
nista confunde-se então pela primeira vez de maneira clara com a do
pedagogo. A fisiognomonia tornou-se um sacerdócio laico, o do pai,
do professor, do mestre esclarecido que, «por meio desta chave que
abre a porta dos espíritos e dos corações»80, conhecerá a arte de lhes
sondar os recônditos.
Quer seja laica ou impregnada de religiosidade, como a de Lava
ter, a fisiognomonia da alvorada do século xix deriva irresistivelmente
para a filantropia. Para Lavater, é o caminho que conduz ao amor dos
homens. Torna-se uma técnica de compaixão quando a arte de conhe
cer os homens é a «arte de os amar». E de facto este amor que justifi
ca querer-se penetrar no coração de cada um. A filantropia legitima
então a identificação.
106
os sinais precursores do grande homem85. Lavater vai mais longe
quando se propõe arrancar aos homens mais feios os filhos que são
deles o vivo retrato; criar essas crianças numa instituição pública bem
orientada; pô-las depois em circunstâncias que favoreçam a prática da
virtude e, finalmente, casá-las entre si. A «quinta ou sexta geração»
haverá
homens cada vez mais belos (...). Esta beleza progressiva no-
tar-se-á não apenas nos traços do rosto, na configuração óssea
da cabeça, mas também na pessoa por inteiro, em todo o seu
• Q/
exterior .
NOTAS
1 Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, 3.a
ed., Genebra e Neuchâtel, 1779, t. XXI, p. 767.
2 Ibid. (l.a ed.), vol. XII, pp. 538
3 Buffon, Oeuvres complètes, ed. Dumézil, t. IV, 1836, pp. 94-95.
4 Ibid.
5 Ibid.
6 G. Lichtenberg, Über Physiognomik, Gõttingen, 1788; E. Kant, Antropologie
du point de vue pragmatique, Paris, Vrin, 1979 (1801); G. W. F. Hegel, Phénoméno-
logie de 1'esprit, Paris, Vrin, 1939 (1832), t. I, pp. 256-263.
7 G. Sand, Lettves d’un voyageur, Paris, Garnier Flammarion, 1971 (1837), p. 208:
«Poesia, sabedoria, observação profunda, bondade, sentimento religioso, caridade
evangélica, moral pura, sensibilidade estranha, grandeza e simplicidade de estilo, eis
o que encontrei em Lavater, quando só procurava observações fisiognomónicas e tal
vez conclusões erradas, ocasionais e conjecturais.» E em Balzac entre uma grande
quantidade de exemplos: «A frenologia e a fisiognomonia, a ciência de Gall e a de
Lavater, gêmeas, em que uma está para a outra como a causa para o efeito, demons
travam aos olhos de mais de um fisiologista os traços do fluido inalcançável, base dos
fenômenos da vontade humana e de onde resultam as paixões, os hábitos, as formas
do rosto e do crânio» (Ursule Mirouet, em Oeuvres complètes, ed. La Pléiade, Paris,
Gallimard, t. III, p. 328).
8J. G. Lavater, Physiognomische Fragmente..., Leipzig, 1775-1778. A obra está
traduzida em francês e em holandês desde 1781, em inglês em 1789, e em espanhol
nos princípios do século xix. Surge em Paris em 1806 uma edição em dez volumes
por Moreau de la Sarthe com o título: L'Art de connaitre les hommes par la physio
nomie, que é reeditada em 1820.
9 Le Lavater portatif, ou précis de PArt de connaitre les homens par les traits du
visage, 2.a ed., Paris, 1808.
10 O trabalho de Lavater não é isolado, mas é antecedido e continuado por um
conjunto de trabalhos que a sua notoriedade tende a eclipsar. Para além da obra pu
blicada antes de 1760 do anatomista inglês Parsons (Human physiognomy explained,
107
Londres, 1747), sobressaem na conjuntura em que foram publicados os Physiogno-
mische Fragmente os seguintes livros: Antoine-Joseph Pernety, Discours sur la phy-
siognomonie, Paris, 1769; La connaissance de 1’homme moral par celle de Phomme
physique, Berlim, 1776; P. Camper, Dissertation sur les varietés naturelles qui carac-
ténsent la physionomie des hommes, Paris, 1791; Clairier, Le Tableau naturel de
1'homme, ou observations physiognomoniques, Estrasburgo, 1794; Jean-Joseph Sue,
filho, Eléments d'anatomie à 1'usage des peintres, Paris, 1788; Essai sur la physiogno-
monie des corps vivants, considérés de 1'homme jusqtSà la plante, Paris, 1797; D’Clé-
ment Forestier, Quelques considérations sur les traits de la face et sur les signes que le
médecin peut en retirer, Montpellier, 1799; Robert le Jeune, Essai sur la mégalanthropo-
génésie, ou 1'art de faire des enfants d'esprit qui deviennent des grands hommes; suivi
des traits physiognomoniques propres à les faire reconnaitre, décrits para Lavater et
du meilleur mode de génération, Paris, 1801.
11 A. J. Pernety, La Connaissance de 1'homme moral, p. 27.
12 Ibid., p. 23.
13 Oeuvres completes de Buffon avec les descriptions anatomiques de Daubenton,
Paris, Verdière et Lagrange, 1928, t. XIII, XIV, XV; P. Camper, op. cit.
14 P. Camper, ibid., p. 6.
15 Ibid., p. 10.
16 Ibid., p. 12.
17 Ibid.
18 F. Blumenbach. De 1'Unité du genre humain, Paris, 1814 (1795); ver sobre este
ponto: F. J. Gall e G. Spurzheim, Recherches sur le système nerveux en général et ce-
lui du cerveau en particulier, Paris, 1809; P. Broca, Instructions craniologiques et cra-
niométriques, Paris, Masson, 1875; e evidentemente: L'Homme criminel (Paris, 1895)
de César Lombroso.
19 Buffon, Oeuvres completes, ed. Pourrat, Paris, 1833-1834, vol. XIV, pp. 22-23.
Sobre a antropologia de Buffon ver: M. Duchet, Anthropologie et histoire au siècle
des Lumières, Paris, Maspero, 1971, pp. 229-280, que cita esta passagem.
20 Buffon, op cit., p. 23.
21 J.-J. Sue, op. cit., p. 6
22 P. Camper, op. cit. p. 15.
23 Ibid., p. 16.
24 J.-J. Sue, op. dt., p. VIII.
25 J. G. Lavater, op. cit., ed. de 1820, t. II, p. 39.
26 Ibid., p. 26.
27 Ibid.
28 Ibid., p. 38.
29 J. G. Lavater, op. dt., ed. L’Age d’Homme, Lausana, 1979, p. 254.
30 Assim, distingue três classes de rostos humanos conforme a sua inclinação; e
descreve em 25 subdivisões os caracteres correspondentes a estas formas: «Quanto
mais o rosto é fechado, curto e compacto, mais o carácter é concentrado, sólido, fir
me (...). Os rostos de linha direita e com uma posição oblíqua marcam igualmente a
violência e a vivacidade de espírito» {op. dt., ed. L’Age d’Homme, p. 175). O mesmo
se passa com os animais. Lavater inspeccionou a cabeça do elefante e viu nela «um
monumento de prudência, de energia, de delicadeza»; examinou os dentes do castor
que marcam «a bondade e a fraqueza»... As analogias antigas são bem tenazes.
31 J. G. Lavater, op. dt., ed. de 1820, t. II. p. 39.
32 Buffon, «Discours sur le style» (1753), em Un autre Buffon, Paris, Hermann,
1977, pp. 159-160: «As obras bem escritas são as únicas que passarão à posteridade:
a quantidade dos conhecimentos, a singularidade dos factos, e a própria novidade das
108
descobertas, não são garantes seguros da imortalidade: se as obras que as contêm não
tratarem de pequenas coisas, se forem escritas sem gosto, sem nobreza e sem gênio
perecerão porque os conhecimentos, os factos e as descobertas elevam-se facilmente,
transportam-se e ganham muito sendo feitas por mãos mais hábeis. As coisas estão
fora do homem, o estilo é o próprio homem.»
33 Buffon, citado por J.-J. Sue, op. cit., p. 15.
34 «Há razões para se distinguir fisiognomonia e patognomonia. A primeira, em
bora oposta à patognomonia, propõe-se conhecer os sinais sensíveis das nossas forças
e das nossas disposições naturais; a segunda liga-se aos sinais das nossas paixões.
Uma revela o carácter em repouso, a outra o carácter em movimento» (J. G. Lavater,
op. cit., ed. L’Age d’Homme, p. 6).
35 «O rosto é a principal morada dos movimentos da alma e os gestos tomam o
nome de fisionomia», escreve nas suas Idées sur le geste el Vobservation théâtral, Pa
ris, 1795 (1786), t. I, p. 53. Engel prolonga na sua obra o debate sobre a naturalidade
do jogo do actor, aberto nos anos 1750 por Pierre Rémond de Sainte-Albine (Le Co-
médien, Paris, 1747), debate em que participam Lessing e Diderot do Paradoxe.
36 «Chamo à Fisionomia uma arte semelhante à da Pantomima', porque as duas se
ocupam do captar a expressão da alma nas modificações do corpo; contudo, com a
diferença de que a primeira dirige as investigações sobre os traços fixos e permanen
tes, a partir dos quais se pode julgar do carácter do homem em geral, e a outra sobre
os movimentos momentâneos do corpo, que indicam tal ou tal situação particular da
alma» (op. cit., p. 5).
37 Diderot, Essais sur la peinture, Paris, Hermann, 1984 (1795), p. 348.
38 Ibid.
39 J.-J. Sue, op cit., p. 11.
40 Ibid, p. 16.
41 L. S. Mercier, op cit., t. II, cad. CLXI, pp. 164-165.
42 Diderot, op cit., p. 372.
43 Ibid, p. 373.
44 «São principalmente os olhos que espelham as nossas agitações secretas (...).
O olho pertence à alma mais do que qualquer outro órgão; parece que a toca e parti
cipa de todos os seus movimentos; exprime as emoções mais vivas e as paixões mais
tumultuosas, tal como os movimentos mais doces e os sentimentos mais delicados;
transmite-se em toda a sua força, toda a sua pureza tal como nascem; transmite-os
pelos traços rápidos que têm numa outra alma o fogo, a acção, a imagem daquilo que
falam. O olho recebe e reflecte ao mesmo tempo a luz do pensamento e o calor do
sentimento; é o sentido do espírito e a língua da inteligência. A vivacidade e o langor
do movimento dos olhos constituem um dos principais caracteres da fisionomia»
(Buffon, citado por J.-J. Sue, op. cit., p. 15).
45 E assim esta observação de Diderot: «O homem entra em cólera, é atento, curio
so, ama, odeia, despreza, desdenha, admira; e cada um dos movimentos da sua alma
aparece-lhe no rosto em caracteres claros, evidentes, que nunca podemos desprezar.
Quanto ao seu rosto? O que hei-de dizer? Na boca, nas faces, nos olhos, em cada
parte do rosto. O olhar acende, apaga, amortece, perde-se, fixa-se» (op. cit., p. 371).
46 J. J. Engel, op cit., t. I, p. 53.
47 Ibid., p. 55.
48 Ibid., p. 56.
49 J.-J. Sue, op cit., p. 5.
50 Diderot, op cit., p. 371.
51 J. J. Engel, op cit., t. I, p. 51.
52 J. G. Lavater, op cit., p. 143
109
53 J. G. Sulzer, Allgemeine theorie der Shõnen Kunste, Leipzig, 1771-1774 (artigo
«geste») citado por Engel, op. cit., t. I, p. 60.
54 J. G. Lavater, Journal d'un observateur de soi-même, Utreque, 1753.
55 Ibid., p. 2.
56 Z£ú/.
57 Ibid., p. 3.
58 Marquês de Caraccioli, La jouissance de soi-même, Utreque, 1753.
59 «Quer examinar-me todas as noites a partir destas resoluções, indicar no meu
diário lealmente todas as coisas a que terei faltado e perguntar sobre cada ponto co
mo cumpri as minhas obrigações, por exemplo: o que li; o que fiz; aquilo a que fal
tei; o que aprendi (Lavater, Journal..p. 6). A observação de si mesmo conduzirá
muitas vezes a esta literatura sobre a utilização do tempo, cujas origens são mais lon
gínquas (ver infra “A domesticação ds paixões”) que conhecerá um franco sucesso no
século xix. Tal como o extraordinário Essai sur PEmploi du temps ou méthode qui a
pour object de bien régler 1’emploi du temps, premier moyen d'être heureux, redigido
em 1810 por Julien, militar na reforma que (...) se reclama de Locke e de Franklin (e)
(...) recomenda cortar o dia em três partes de oito horas» (A. Corbin, «Le secret de
1’individu», op. cit., p. 457).
60 Mercier, op. cit., t. V. cad. CCCCXVIII, p. 186.
61 Ibid., t. II, cad. CLXII, p. 165.
62 Ibid., t. II, cad. CLXI, p. 164.
63 Diderot, op. cit., p. 374. A propósito das percepções do povo, da rua, do ate-
lier, da multidão no século xvm, ver os trabalhos de Arlette Farge: Vivre dans la rue
à Paris au XVIII' siècle, Paris, Gallimard/Julliard, 1979; La vie fragile (violences,
pouvoirs et solidarités à Paris au XVIII' siècle), Paris, Hachette, 1986.
64 A. Lhéritier, C. Pichois, A. Houon, D. Stremonkhoff, Les Physiologies, Paris,
Université de Paris, I.F.P., 1858.
65 Mercier, op. cit., t. X. cad. DCCCXX, p. 235.
66 Diderot, op. cit., p. 348.
67 Mercier, op. cit., t. V, cad. CCCCLX, p. 25.
68 Ibid., cad. CCCCXVIII, p. 187.
69 Ibid., t. XI, p. 117. O que Arlette Farge sublinhou a propósito das percepções
dos gestos e das expressões do povo das ruas: «Sabemos pouco sobre os gestos e a
expressividade dos pobres da rua. A historiografia aplica-se sobretudo a indicar as
impressões de conjunto e em primeiro lugar as mais ameaçadoras» (Vivre dans la
rue..., pp. 92-93).
70 Diderot, op. cit., p. 373.
71 Camper, op. cit., p. 32.
72 Sue, op. cit., p. 7.
73 Ibid.
74 Pernety, La connaissance de Phomme..., p. 30.
75 Lavater, op. cit., ed. l’Âge d’Homme, p. 22.
76 Pernety, op. cit., p. 44.
77 Clairier, op. cit., pp. 26-27.
78 Ibid., p. 28.
79 Ibid.
80 Ibid., p. 42.
81 Lavater, op. cit., pp. 24-25.
82 Assim na rubrica: «Algumas caras de idiotas que o solo da minha pátria nos
deus», pode ler-se a propósito de um camponês da região de Zurique: «E um imbecil
nato, incapaz de qualquer educação, de pensamento ingênuo ou original. A sobran
110
celha por cima deste olho duro e imóvel, a profundidade entre a testa e o nariz e
principalmente a boca, o queixo e o pescoço, são traços característicos de uma incor
rigível estupidez, que de resto bastariam as rugas da face para o reconhecer perfeita-
mente» {Ibid., p. 223). A imbecilidade para Lavater é um estado natural.
83 Ibid., p. 224.
84 O que sublinhou M. Dumont num artigo muito completo sobre Lavater:
«O sucesso mundano de uma ciência falsa: a fisiognomonia de J. G. Lavater», Actes
de la recherche en sciences sociales, Set. 1984, pp. 2-30; «As classificações que Lavater
faz dos homens, se seguem clivagens sociais que estão a decorrer, não respeitam a
distribuição social das ordens antigas (...). O ideal humano que Lavater proclama é o
de uma categoria social que se prospecta, de novos privilegiados à procura de uma
identidade que indique a sua distância tanto em relação ao povo como em relação aos
antigos privilégios» (p. 25).
85 A obra de Robert inscreve-se numa renovação das preocupações eugenistas que
florescem na segunda metade do século xvm em numerosos manuais de procriação
que se propõem aperfeiçoar a geração dos homens (ver P. Darmon, Le Mythe de la
procréation à l'ãge baroque, Paris, Seuil, 1979).
86 Lavater, op. cit., p. 61.
SEGUNDA PARTE
115
res médios como normas de comportamento desejável, de ideal de
mediocridade valorizada, de objecto de trabalho sobre o eu. Esta legi
timidade dos valores médios não é dissociável da elevação das classes
médias, nem do interesse que a Igreja tem pelo trabalho, da consagra
ção que lhe faz como santificação da regularidade quotidiana contra a
ociosidade. Tendo desde a origem reprovado o excesso e o luxo, en
coraja o bem-estar modesto; condena o enriquecimento e a prática da
usura. Continua a recear os excessos de prodigalidade e toma assim
parte na distinção dos comportamentos e das psicologias aristocráti
cas e burguesas, na oposição de dois tipos de «honestidade», bem co
mo na de dois tipos de civilidade.
A aristocracia tende a apreciar o espírito brilhante, mundano, po
lido, a graça, a ostentação, a exibição de si, preocupando-se menos
com o valor da alma; a burguesia, no que lhe diz respeito, valoriza a
virtude, a integridade, o esforço, a austeridade e as qualidades morais.
O olhar e a opinião dos outros parecem ter uma importância crucial
para o aristocrata; a consciência do valor das suas próprias acções, o
sentimento do seu valor, uma consciência parcimoniosa de si, «a re
cusa moral da exibição do eu»3, são sem dúvida o que para o burguês
tem importância determinante4. «Como em toda a parte em que a
burguesia exerce um poder político, verifica-se a surda vitória da
poupança sobre o desperdício, da simplicidade sobre o ornamento e
da austeridade sobre o frívolo»5.
A racionalização dos comportamentos faz assim surgir a diferença
entre a racionalidade aristocrática e a racionalidade burguesa. Mas
nos dois casos e embora de maneira distinta, são privilegiados a ra
zão, a medida e o conveniente. Isto leva-nos, portanto, às questões
iniciais levantadas pelos trabalhos de Weber ou de Elias: como enten
der, através dos saberes e das práticas do corpo e da expressão, no
cruzamento recíproco dos modos de troca e de produção econômica,
formas políticas de governo, laços e dependências na sociedade civil,
a maneira como se constitui um tipo de personalidade, uma estrutura
psicológica específica?
A medida e a poupança
116
deira apologia do comércio, denuncia essa atitude desprezadora em
Le Parfait négociant*; atitude que transparece precisamente na descri
ção física e moral, por um dos seus contemporâneos, o abade de
Choisy, de um dos mais célebres representantes da burguesia do sé
culo xvii, Colbert:
117
guês a partir do século xvi definem-se assim essencialmente a partir
da medida: medida do tempo, consciência do tempo; medida do eu,
medida dos outros. «A virtude principal do humanista é a temperan
ça»11. A exigência de um trabalho mais bem medido, o tempo novo,
diz Le Goff, nasce sobretudo das necessidades da burguesia: necessi
dades de dinheiro, preocupação com o tempo; surge uma prática e
uma mentalidade de calculadores: o tempo torna-se objecto de uma
espiritualidade calculada.
118
O meu espírito, o meu corpo e o meu tempo, só os utilizo
como deve ser. Procuro conservá-los cuidadosamente. Faço
de maneira que em nada se percam (...) na medida em que me
parecem extremamente preciosos e bem mais meus que qual
quer outra coisa15.
Comércio e urbanidade
O tom com que Savary, no século xvn, abre a sua obra, lembra o
dos enciclopedistas — um século mais tarde — no artigo «comércio».
Com a pequena diferença que Savary vê a origem do comércio na
providência divina:
119
o carácter libertino e a falta de assiduidade na educação dos colégios,
não é o trabalho como virtude principal que constitui o argumento
central da obra: é verdade que Savary insiste no «lucro e no desejo de
se elevar (...) aguilhão para obrigar a trabalhar no comércio». Mas
quando se podia esperar, no contexto religioso da época, uma apolo
gia do trabalho e da aplicação, Savary gaba mais a finura, a inteligên
cia de outrem, a subtileza, a habilidade nas negociações, a rapidez e
finalmente a imaginação. O comércio entende-se como urbanidade,
afabilidade, tanto laço social como laço econômico. Requer sem dúvi
da uma boa saúde, um corpo forte e robusto, mas também um físico
agradável. Para bem comerciar, é necessária uma boa figura
120
não se fosse ocioso»22. Mas reprova também a figura do homem de
negócios de quem o padre Crosset traça no século xvm o retrato
pouco invejável:
Egoísmos e compaixão
121
dade da obra. Apologia do olhar, da vigilância27, mais ainda que do
trabalho: prudência, circunspecção, desconfiança. O excesso de con
fiança é a certeza de uma própria ruína.
122
dro doméstico, Tocqueville verá no «círculo dos pequenos interesses
domésticos», na «sujeição às pequenas coisas» e no «amor da pro
priedade tão inquieto e tão ardente», a extinção das «grandes e pode
rosas emoções públicas»34 na democracia política.
E quando Franklin enumera as virtudes necessárias à vida privada
— temperança, silêncio, moderação, poupança, utilidade, posse de si
mesmo —, Tocqueville pressentirá numa tal domesticação das paixões
individuais a reserva das paixões públicas. Mas também saberá discer
nir, no declínio das paixões políticas, o progresso das paixões comer
ciais: «As paixões que mais profundamente agitam os Americanos são
paixões comerciais e não políticas, ou antes, transportam para a polí
tica os hábitos do negócio»35. Os homens ver-se-ão paradoxalmente
incitados a uma sempre mais acentuada consciência da medida, a uma
delimitação egoísta do eu, a um gosto inegável pela solidão, ao mes
mo tempo que pela compaixão, a sensibilidade à aflição de outrem.
123
NOTAS
1 Ver sobre este ponto R. Banhes, Essais critiques. Paris, Seuil, 1964, pp. 19-29.
2 Ver Elias, op. cit.
3 Ph. Perrot, «La richesse cachée: pour une généalogie de 1’austerité des apparen-
ces». Communications, n.° 46, Outubro 1987, p. 157.
4 Ver Ch. Normand, La Bourgeoisie française ao XVII' siècle. Paris, Alean, 1908;
J. Avnard, La burgeoisie française: essai de psychologie, Paris, 1934.
5 Perrot, op. cit., p. 157.
6 J. Savary, Le Parfait négociant ou instruction générale pour ce qui regarde le
commerce, Paris, 1675.
7 Abade de Choisy, citado em Ch. de la Roncière, Colbert, Paris, Plon, 1919, p. 8.
8 Ph. Besnard, Protestantisme et capitalisme. La controverse post-wéberienne, Pa
ris, A. Colin, 1970, p. 68.
9 Ibid., p. 70 (itálico nosso).
10 Perrot, op. cit, p. 160.
11 Le Goff, Pour une autre Moyen-Age, Paris, Gallimard, 1978, p. 79.
12 Ibid., p. 77. Ver também a este respeito D. S. Landis, Revolution in time,
Clocks and the making of the modern world, Cambridge, Harvard University
Press, 1983.
13 «Façam como eu: de manhã organizo o dia todo, emprego-o como é preciso, e
à noite, antes de tomar a última refeição, examino tudo o que fiz durante o dia; e en
tão, se cometi a menor negligência que possa remediar imediatamente, atiro-me logo
ao trabalho. E prefiro perder o sono a perder o tempo, quero dizer a hora própria
das ocupações. Dormir, comer e coisas desta ordem, posso recuperá-las no dia se
guinte e satisfazê-las, mas as ocasiões do tempo não (...)», L. B. Alberti, Libri delia
Famiglia, livro III, ed. C. Grayson, Opere Volgari, t. I, Bari, 1960, traduzido em
Cad. de la Roncière, Ph. Contamine, R. Defort, LfEurope au Moyen Âge, Paris, Co
lin, 1971, t. III, pp. 348-349.
14 W. Sombart, Le Bourgeois. Contribution ã Phistoire morale et intellectuelle de
Phomme économique moderne, Paris, Payot, 1966, p. 106.
15 Alberti, op. cit., citado em La Roncière e al., op. cit., pp. 348-349.
16 E o que se vê no trabalho de Baxandall («L’oeil du Quattrocento», Actes de la
recherche en sciences sociales, n.° 40, Novembro 1981, pp. 10 a 50). Com efeito mostra
como a aritmética comercial, bagagem escolar de todos os florentinos do século xv, esta
va profundamente implicada nas representações do corpo pela pintura. A técnica da me
dida ligada ao facto de as mercadorias serem transportadas em recipientes de tamanho
irregular era utilizada para medir as formas físicas dos corpos pintados. «O que é im
portante é que haja uma mesma capacidade no princípio do contrato, ou dos problemas
de troca por um lado e da elaboração da visão dos quadros por outro (...). Fazia-se na
turalmente a relação entre as proporções no interior de um contrato e as proporções de
um corpo físico» (op. dt., p. 45). Os estudos de proporção de cabeças humanas nos tra
tados sobre a pintura (por exemplo: Lomazzo, Trattato delPArte de la Pintura. Milão,
1584), mas também o seu surgimento nos manuais de fisiognomonia, como em Porta,
testemunham esta estetização de exigência de medida no Renascimento. Os tratados de
fisiognomonia consideram a simetria como princípio essencial da figura humana: na
sua Anthropometria (op. cit.) Elsholtz desenha em 1663 o tipo ideal (homo synnetrus)
e inventa-lhe mesmo um aparelho de medida (anthropometron).
17 M. Fumaroli, «La Rhétorique et son histoire», lição inaugural no Colégio de
França.
124
18 Savary, op. cit., p. 1.
19 Ibid.., p. 38.
20 B. Groethuysen, Les origines de Pesprit bourgeois en France, Paris, Gallimard,
1977.
21 Ibid., p. 38.
22 Croiset, Parallèle des moeurs de ce siècle, 1745, t. I. p. 81.
23 Croiset, Réflexions chrétiennes sur divers sujeis de morale, 1752, t. II. p. 261.
24 São as interpretações puritanas do calvinismo original que contribuíram mais
activamente para fazer do «relaxamento um sinal inquietante de maldição e da pros
peridade laboriosa um sinal de eleição» (Ph. Perrot, art. cit., p. 160).
25 Sombart, op. cit., p. 114.
26 B. Franklin, La Science du bonhomme Richard ou le chemin de la fortune
(1732), edição de 1879, p. 6.
27 Trata-se aqui de um dispositivo utilitarista célebre: o panóptico de Bentham.
Este último glorificava o amor pela ordem, o trabalho e a vigilância que Franklin
preconizava. O que talvez permita precisar a sua origem: cópia de um campo de tra
balho estabelecido na Rússia pelo irmão, o panóptico de Jeremy Bentham também
não deverá a invenção do seu princípio às formas e aos rituais econômicos e domésti
cos — vigilância e autocontrolo — que organizam a vida pessoal da burguesia purita
na e comerciante do século xvn? O panóptico instalado nas tradições e nas consciên
cias seria então a projecção arquitectural de tais dispositivos, visando estendê-los até
incluir aí a sociedade inteira (ver em particular J. Bentham, Le Panoptique, precedido
de «L’oeil du pouvoir», conversa com M. Foucault, seguido de «L’Inspecteur Bent
ham», posfácio de M. Perrot, Paris, Belfond, 1977; ver igualmente Michelle Perrot
L3impossible prison, Paris, Seuil, 1980; e J. A. Miller, «La machine panoptique», Or-
nicar, n.° 3, 1973, p. 19).
28 Franklin, op. cit., p. 7.
29 Ibid., p. 8.
30 Ibid.
31 Ibid., p. 15.
32 Ph. Perrot, op. cit.
33 Franklin, op. cit., p. 9. Estas «estratégias da poupança de si», como observa
Corbin, «testemunham uma compatibilidade da existência, de uma aritmética das horas
e dos dias que atormentam o homem do século xix (...), provêm do mesmo fantasma
da perda que conduz à existência de livros de contas domésticos de uma extrema mi
núcia, os quais engendram a angústia do desperdício (...)» (A. Corbin, «Le secret de
1’individu», op. cit., p. 456).
34 A. de Tocqueville, De la démocratie en Amérique, Paris, UGE, 1963, pp. 363
e 343.
35 Ibid., p. 167
36 J. M. Goulemot, «Les pratiques littéraires ou la publicité du privé», Histoire de
la vie privée, t. III, p. 389.
37 Tocqueville, op. cit., p. 307. Ver sobre este ponto: H. Arendt, Essai sur la Ré-
volution, Paris, Gallimard, 1967. Se a «compaixão (...) foi descoberta e compreendida
como emoção e sentimento» por Rousseau, Arendt insiste também no facto de que
foi Rousseau que «introduziu a compaixão na teoria política» {ibid., pp. 126 e 115).
Ver também: D. Cochart, D. Davoult, C. Haroche, «A questão da solidariedade no
século xix», comunicação ao colóquio «Psychisme et histoire», Aix-en-Provence,
Nov. 1987.
125
Capítulo 4
O AR DA CONVERSAÇÃO
(Debates sobre a conversação, a companhia e a solidão,
séculos xvi e xvii)
127
obras destinadas aos cortesãos que são outras tantas variantes da arte
de agradar na conversação. Mas para além dos tratados que lhe são
explícita e inteiramente consagrados, a arte da conversação atravessa
os livros da civilidade, constitui um capítulo obrigatório das conve
niências e delicadezas mundanas, suscita a preocupação dos moralis
tas que temperam esta arte e a inquietação das críticas religiosas que a
reprovam. Porque, no fundo, estas dissertações constantes sobre a con
versação delimitam o quadro de um debate crucial quanto ao papel da
linguagem como expressão do eu e laço social entre os homens.
Deve-se então preferir a solidão à companhia, o silêncio à conver
sação? Mas não é o silêncio contrário à natureza do homem e a con
versação a sua própria natureza? E inversamente não permite a soli
dão o conhecimento do eu, enquanto o comércio com o mundo leva
à ignorância do eu e à dissipação? Quando falar, quando escutar,
quando calar-se? E como? Na conversação, como exprimir-se através
da boca e também do corpo, do rosto e dos olhos?...
As respostas dadas a estas perguntas traduzem um deslocamento
do sentimento do eu e das sensibilidades ao outro: a esfera privada
aumenta e a individualização ganha progressivamente terreno nas
práticas da conversação, enquanto o indivíduo se afirma perante os
outros. Mas mais profundamente ainda, é uma redefinição da identi
dade subjectiva na sua relação com a linguagem que aqui está em jo
go, a gênese do indivíduo moderno como ser de linguagem.
Exílios íntimos
128
res, os quais (...) se tornam senhores do espírito»5. É da natureza do
homem saborear a companhia, a sociedade e o comércio com outrem;
e odiar o isolamento: com efeito, que advém aos homens que por si
próprios se encerram na prisão da solidão? «Tornam-se macilentos,
sujos, magros, amarelados e balofos pela putrefacção do seu sangue»6.
O retrato que La Civil Conversazione pinta assim do solitário faz ao
mesmo tempo do isolamento um estado social condenável e uma
doença.
O texto de Guazzo tem ainda aqui o vestígio das concepções me
dievais: a célula social engloba os indíviduos de tal modo, que não há
lugar para a solidão pessoal.
129
ras: as atitudes atenuam-se, as percepções são menos nítidas perante
o isolamento. Pode assim acontecer que o homem não se sinta à par
te, mas que tenha a sensação de uma presença, que já não é necessa
riamente a de Deus. Mais parodoxalmente ainda, acontece viver-se
mais solitário em numerosa companhia do que no mais longínquo
exílio. E a isso que Guazzo chama a solidão do espírito, isto é, o sen
timento de estar só entre os outros, estranho exílio interior no meio
da sociedade mais frequentada. E então com o corpo e não com o es
pírito, «retirado em si próprio», que se estará.
130
silencioso não é o de Montaigne na sua torre, murmurando palavras
interiores, povoado de livros. No universo da mundanidade em que
La Civil Conversazione se inscreve, a linguagem continua a ser o lugar
do outro, da exterioridade. Conversa-se mas não se fala com alguém.
131
colarinhos tão direitos e rígidos, essas faces mal humoradas
serem detestadas por todos; pensam ser louvados por nunca
rirem, por enrugarem a fronte, ensombrarem os olhos, mos
trarem um rosto furioso e marcial, soltarem palavras de gran
de secura, fazendo que os declarem orgulhosos e desumanos
Conheço alguns tão duros, severos, graves e incivis que
não se dignam corresponder a quem os saúda; o que é sinal
de um coração bárbaro17.
O esquecimento de si
132
dos. Delimitam e prescrevem as formas da sociabilidade regulamenta
da e hierarquizada ali em uso. E onde a conversação ocupa um lugar
preponderante.
A codificação das trocas linguísticas prova então um reforço do
controlo social num universo em que o olhar é rei: o olhar do prínci
pe a quem é preciso saber agradar para obter favores; o olhar dos pa
res, a observação dos seus iguais aos quais se deve dar constantemen
te satisfação. A sociedade política acomoda-se por vezes mal a uma
certa autonomia da sociedade civil; e os tratados da corte que dão
grande lugar à conversação, como o de De Grenaile publicado em
164220, exortam a uma certa forma de transparência, «sendo certo que
não penetramos na sociedade civil senão para nos mostrarmos exte
riormente tal como somos por dentro»21.
De Grenaile, ao exaltar a sinceridade e denunciando a dissimula
ção, recusa o refúgio em si: convém nada esconder de si no espaço
público: que o homem não seja solitário por dentro, mas solidário
com o homem na aparência. O hino à transparência — ou pelo me
nos à coincidência entre o homem interior e o homem exterior —
que De Grenaile celebra é de um tom um pouco ingênuo. Não deve
esconder o facto de a constituição do espaço subjectivo se orientar
com efeito para formas mais complexas, que determinam ao mesmo
tempo as exigências de um controlo social maior e a afirmação pro
gressiva do indíviduo.
Também o cavaleiro de Méré, árbitro reconhecido da conversação,
recusa igualmente esse refúgio em si se isso significar o encerramento
em si próprio, um recolhimento demasiado distante, um «enterrar-se
em si mesmo»22. A sociedade de atractivo recíproco, de doce con
vivência de que os textos do século xvi desenham o ideal e os do sé
culo xvii codificam as regras, obriga a mostrar o carácter no rosto: os
que nela desejam ter lugar, partilhar as servidões e os prazeres, só po
dem consegui-lo ao fim de um esforço do seu corpo e da sua lingua
gem, de uma disciplina estrita e surda violência. A frase deve ser or
namentada com as flores da retórica, o corpo deve apresentar um
porte gracioso e o rosto um ar aberto. As artes de conversação repe-
tem-se ao longo do século xvn: «Não se pode pois agradar na con
versação se não se acompanhar o que se diz de um ar aberto»23.
Que cada um expulse portanto o ar sombrio e constrangido que o
recolhimento dá ao solitário. Os que desejam aparecer na sociedade
que se mostrem abertos! A imposição é paradoxal e os seus efeitos
complexos. Encoraja a conformidade das aparências, leva ao desapa
recimento da singularidade. «Vou a uma reunião para mostrar uma
paixão contrária à que ali possa reinar?», assim se interroga De Vau-
133
Figura 15 — O. de Vaumorière, L’Art de plaire dans la conversation, Paris, 1688
(Frontispício, Foto B. N.).
134
morière. «Nada mais oposto às máximas da sociedade civil que esta
conduta»24.
Mas a observação das aparências acentua a distância entre perso
nagem pública e o eu íntimo; o espaço interior cava-se e torna-se
complexo para além da superfície corporal que se oferece ao olhar.
135
século, um importante tratado como o de Vaumorière (ver figura 15),
inteiramente dedicado à conversação, assinala muito claramente as
suas contradições: é preciso respeitar as conveniências e «falar com
circunspecção é dizer precisamente apenas as coisas que convêm na
altura, ao lugar e à pessoa que fala e às que escutam»30. O quadro de
definição de boa conversa recorda aqui o carácter constrangedor da
regra das «três unidades» que define a dramaturgia clássica. As codi
ficações desenvolvem-se e penetram todos os aspectos, tanto verbais
como corporais, e que a enunciação individual não poderia infringir:
é preciso conhecer o nível do interlocutor, observar as circunstâncias,
escolher o lugar, esperar o momento para medir o tom e calcular a
frase. E ainda adivinhar a «capacidade» das pessoas, uma vez que a
prudência o exige e que não se deve «falar ousadamente diante de
pessoas mais hábeis do que nós». A fisiognomonia encontra então
nos tratados de conversação a sua razão prática: «Há mesmo alguma
arte em distinguir os rostos bonacheirões dos parvos, os severos dos
rudes, os maliciosos dos tristes (,..)»31. Se por vezes ali é criticada
(«As qualidades da alma», protesta Méré, «não provêm da tez nem
dos cabelos»), é sobretudo pelos seus preconceitos morfológicos. Es
tende-se, com efeito, à totalidade do comportamento expressivo na
conversação, para além do corpo e do rosto, à própria linguagem; até
passar a ser, em Méré, uma fisiognomonia, da palavra.
136
Convém ao burguês de província ter boa cara. O rosto do cortesão
está adornado de atractivos menos duros, de uma essência menos vi
sível, de um encanto de acesso menos fácil, ou muito simplesmente
definível: o ar, esse elemento natural e indispensável a uma conversa
ção agradável.
Os fugitivos do eu
137
os nossos sentimentos como os dissimulamos aos outros? (...) Como?
Nunca terei o prazer de falar dos meus verdadeiros sentimentos?»37,
interrogam-se as pessoas que dialogam na L’Art de platre dans la con-
versation. Ao tratar-se como um outro, o indivíduo corre o risco de
se afastar demasiado de si próprio, até desaparecer: «E verdade que se
deve falar menos de si que de qualquer outra coisa»38.
A conversação vai assim submeter-se no século xvn a uma du
pla crítica. A primeira é a dos moralistas; dá-se do ponto de vista
da própria sociedade civil e no seu interior, à maneira de um retorno
crítico do eu. Corresponde à elevação de um sentimento pré-rous-
seauista de sinceridade. Como, por exemplo, a de La Rochefou-
cauld39 ao recomendar o não esquecimento de si, o «não afasta
mento insensível» de si mesmo, mas também o não fechar-se em si.
É estreita a via deste sentimento de autenticidade que tende então a
libertar-se.
A segunda crítica é de origem religiosa. E exterior à mundanidade
e radical. Descobre-se assim no tratado de inspiração jansenista que
F. Lamy publica em 1644, De la connaissance de soi-même, uma
reprovação veemente tanto da vida civil como da conversação: os
tratados de conversação consideravam que «nada é mais importante
no comércio da vivência do que agradar na conversação»40, que os
homens nasceram para estarem em sociedade e que a conversa é o
seu laço mais natural; Lamy vê nisso apenas um comércio pouco
agradável «que consiste em cada um sair de si e derramarem-se uns
nos outros através dos olhos, da boca e dos ouvidos»4'. Mistura in
tolerável dos corpos. Apologia, ao contrário, da solidão, castidade
verbal: «A companhia rouba-nos a nós mesmos, a solidão restitui-
-nos» 42 .
Reinaria pois no mundo uma conjura contra o que os homens
têm de mais precioso, um bem inestimável que cada um tem em si, o
homem interior, «o eu real e verdadeiro». Todos os meios são bons
para evitar a vista de um dado objecto, para fugir se acontecer alguma
vez encontrá-lo, ou ainda para o fazer calar, sufocá-lo. E na primeira
fila destes meios, a conversa: através dela o homem espalha-se exte
riormente, dissipa-se e desvia-se «para evitar o encontro com o inimi
go comum de que toda a gente foge»43; ou então sepulta-o sob uma
onda de palavras inúteis. A conversação fez da sociedade civil «um
bando de fugitivos miseráveis», os fugitivos do eu. E desta deserção
de si próprio no comércio com outrem é o homem que deve ser cen
surado:
138
Não há pior estada que em si próprio. Foge-se eternamente
de si, nada se receia tanto como encontrar-se consigo mesmo.
Esse encontro é para um homem do mundo o mais desagra
dável que pode ter, é o objecto mais terrível que se pode apre
sentar a seus olhos. Não aguenta a sua vista (...) e não sei em
que sentido se pode dizer que o homem se ama e procura tan
to a si próprio, ele, que vejo evitar-se com tanto cuidado44.
139
de cortesia. Mas Lamy ignora sobretudo as novas aspirações que sur
gem no espaço social.
Cresce com efeito no decorrer do século xvn um desejo de fran
queza, um sentimento de liberdade na conversação; a convicção de
que a confiança no outro e um certo abandono de si são necessários:
tantas as condições para que de futuro se encontre prazer50. Cada vez
com mais frequência, Méré ou La Rochefoucauld falam da mesma
necessidade de intimidade, da escolha das companhias com quem se
conversa, da mesma recusa do tormento que causavam os fortes cons
trangimentos da etiqueta, dos olhares perscrutadores. E que são ou
tros tantos obstáculos a uma sociedade divertida, a sociedade civil
que se quer cômoda e agradável. «Para tornar a sociedade cômoda, é
preciso que cada um conserve a sua liberdade. Não se deve olhar para
si, ou olhar-se sem sujeição, para se divertir em conjunto»51.
Esta forma de pôr em causa os costumes, fora da sociedade políti
ca, e alguns constrangimentos da sociedade absolutista, é acompanha
da de uma maior sensibilidade ao outro. Assim, desenvolve-se na
conversação um sentimento do outro, das atenções que se lhe devem.
«E perigoso», observa pois La Rochefoucauld, «querer ser sempre o
senhor da conversa»52. Muitas vezes deve-se saber preferir o escutar à
eloquência; em matéria de conversa, acrescenta, «a regra mais segura
(...) é escutar, não falar e nunca se esforçar a falar»53. Em tais conside
rações a prudência táctica não está decerto ausente. Mas também não
convém procurar obrigar o outro a falar: «Não os pressionem a apro
var o que se diz, nem a responder»54.
Tudo isto prova o aprofundamento da exigência do diálogo na
conversação: a comunicação é uma troca verbal à qual a contenção, o
afastamento perante outrem e a reciprocidade são necessários; mas
também o sentimento do outro, como uma compaixão, que nos torna
sensíveis às suas alegrias e aos seus desgostos, como se se pudesse, em
certas circunstâncias, sentir algo como ele imaginando-nos no seu lu
gar. «Faltaria à boa educação se não me regozijasse com um amigo
que se casasse vantajosamente e cometería uma falta ainda mais consi
derável se não me mostrasse sensível à aflição de um dos meus paren
tes que acabasse de perder o seu único filho»55.
Na sociedade civil, ao nível mais subtil e mais pessoal dos proces
sos linguísticos, inventam-se, no meio de um sistema político e social
tão manifestamente desigual, tímidas e frágeis formas de reciprocida
de: «uma certa maneira de agir e de falar, doce e delicada, que dá o
nome de civil àqueles que vulgarmente delas se servem»56.
140
A conversa consigo próprio
Fora dela não poderia haver salvação: confidência que surge con
tinuamente na pena de Madame du Deffand: «Não tem necessidade
de apoio, mas eu não poderia passar sem ele; basta-se a si próprio e
eu não posso suportar ser de mim mesma (...) Não tenho pior com
panhia que a minha (...) Preciso da sociedade, quer dos vivos quer
dos mortos (prefiro a medíocre e até a má a ficar reduzida a mim
mesma (,..)»59. E isto numa época em que se aprofundou o gosto pela
solidão, o amor pelo recolhimento; ao que Julie de Lespinasse teria
podido responder-lhe: «Passo uma parte da minha vida sem poder fa
lar (...) Gosto do silêncio, do recolhimento, do refúgio»60.
141
Necessidade de companhia, necessidade de solidão: esta contradi
ção vivida na mundanidade do século xvm é o centro de uma obra
publicada em 1762 pelo teórico e prático assíduo da vida dos salões, o
marquês de Caraccioli: La Conversation avec soi-même6i. Critica
moderadamente a dissipação mundana, a inutilidade e a futilidade de
uma certa conversação. E entrega-se à apologia da solidão. Mas nou
tros termos que os de Lamy um século antes: companhia e solidão,
silêncio e conversação opõem-se agora ao fundo de um horizonte em
que a presença de Deus se tornou mais discreta.
O homem interior desligou-se do olhar divino: a alma é para Ca
raccioli uma «sociedade», uma «voz», um oráculo interior. Se é neces
sário mandar calar as paixões, é para poder ouvi-la e conversar com ela.
E esta conversa consigo próprio revela então ao indivíduo um mundo
inteiro no íntimo de si mesmo: «A medida que conversamos interior
mente, sentimos dentro de nós um mundo semelhante àquele que ha
bitamos»62.
Avaliam-se então melhor os deslocamentos efectuados no meio
dos debates sobre a conversa desde o tratado de Guazzo. A lingua
gem deixou de ser a ligação com o outro, o lugar do outro, e a inte-
rioridade já não está totalmente consagrada ao olhar. «Falar consigo»
era para Guazzo pura loucura; «olhar para o próprio íntimo», para
Lamy, um mandamento divino; «conversar consigo próprio» torna-se
para Caraccioli o exercício mais elevado, o bem mais precioso. A lin
guagem, em virtude da reflexão sobre a conduta, instalou-se no mais
profundo do indivíduo. Assim, de forma característica, já não se en
contra em Caraccioli expressão de observação do eu, da introspecção
concebida a partir de um puro olhar. Quando ainda se olha o íntimo
de si próprio, é para ler nele, «folhear-se» como se percorre o livro
mais pessoal. As práticas de leitura silenciosa, íntimas e privadas, de
puseram deste modo um vestígio reflexivo na consciência que de si
próprios têm os indivíduos. A alma é um gabinete, uma «biblioteca»,
dirá Caraccioli, uma voz conselheira. Exorta os homens a refugiarem-
-se ali frequentemente, «a fazerem uso da sua alma, a vê-la como a
primeira biblioteca que devem folhear e como o melhor conselho que
devem escutar»63. No momento em que o livro adquire uma tal im
portância, é preciso aprender-se, saber-se, ler-se e nunca deixar o seu
próprio volume fechado tempo de mais.
Porque esta biblioteca, este livro interior, contém riquezas inesgo
táveis. Existe em Caraccioli a apologia da singuxalidade, a valorização
absoluta do pensamento individual, «armazém inesgotável de rique
zas». Um apelo ao senso íntimo de cada um, que é o que nos guia na
consulta desse livro que em nós existe, na escuta da conversa interior.
142
E vêem-se surgir em La Conversation avec soi-même alguns dos te
mas essenciais do individualismo: autonomia e liberdade do indiví
duo, auto-suficiência e fruição de si. De facto, na conversa íntima,
(...) cada homem é rei; ele fala e tudo se cala (...). Ele determi
na a conversa, interrompe-a ou prolonga-a a seu gosto. Tor-
namo-nos pequenos centros em que sabemos bastar-nos a nós
próprios64.
143
O império do sentimento
144
O vosso Caraccioli visita-me muitas vezes, mas a minha sim
patia por ele não aumenta. Tem uma abundância de palavras
que não passam de um monte de folhas sem fruto algum (...).
Acho que o Caraccioli cedo estoirará dada a abundância de
fleumas e de palavras que o sufocam. Não nos aborrecemos
por conhecê-lo, ao encontrá-lo, por recebê-lo em casa, mas
no entanto ele fatiga e incomoda72.
145
coisas de movimento, quer dizer, acções, actos isolados; e não
é assim que procedem a sensibilidade e a ternura. Elas unem,
ligam, preenchem toda a vida, apenas dão lugar às doces e cal
mas virtudes, fugindo do tumulto77.
146
Pelo contrário, ao virar do século parece estenderem-se a cada indi
víduo os benefícios do comércio social através da linguagem. Madame
de Staél louva o «bem-estar» pessoal que uma conversação animada
faz experimentar. A palavra sugere então um estado individual, tanto
físico como moral, que se adorna subitamente de virtudes terapêuti
cas. Um leve fluido, uma nova energia, feitos de conversa e de prazer
recíproco, percorrem então vivamente o corpo social, «mesmerizam»
subtilmente os elementos: a conversação, essa maneira de «manifestar
o espírito em todos os matizes pelo acento, o gesto e o olhar e pro
duzir finalmente sem restrições uma espécie de electricidade que faz
brotar faíscas, alivia uns do próprio excesso da sua vivacidade e des
perta os outros de uma apatia incômoda»79.
Desta corrente benéfica que purifica uns e fortalece outros, desta
convivência calorosa e alegre da linguagem e do espírito, ninguém
poderia ser de futuro mantido à parte; nem mesmo aqueles que o
desvario da razão sempre votou ao isolamento e à exclusão. Numa
sociedade em que se afirma um ideal de conversação, a palavra é um
direito inalienável. Também os loucos o verão reconhecido, quando
Pinei começar, com o seu «tratamento moral dos alienados»80, a edu
cá-los e a tratá-los ao mesmo tempo; isto é, a «falar-lhes com doçu
ra», a escutá-los e a «compadecer-se dos seus males».
NOTAS
147
jours, Basiléia e Nova Iorque, 1965; D. Witcover, Les enfants de Saturne, Paris, Ma
cula, 1986).
10 Guazzo, op. dt., p. 13.
11 Ibid.., p. 41.
12 Ibid., p. 27 (itálico nosso).
13 Ibid.
14 Ibid., p. 379.
15 Ver mais longe, cap. V e VI.
16 Guazzo, op. dt., p. 380.
17 Ibid., p. 138.
18 Ibid., p. 46.
19 Ver J. Revel, op. dt.
F. de Grenaile, La Mode ou Caractère de la Religion, de la Vie de la Conversa
tion, de la Solitude..., Paris, 1642.
21 Ibid., p. 260.
22 «Quando se está com as pessoas é preciso ser aberto e comunicar (...). Não vejo
nada mais desonesto do que estar acompanhado e ser recolhido, fechado em si pró
prio», cavaleiro de Méré, complètes, Paris, 1668; ed. Fernand Roches, Paris,
1930, t. II, «De la conversation», p. 121.
23 O. de Vaumorière, L'Art de plaire dans la conversation, Paris, 1688, Entretien I,
p. 17.
24 Ibid., Entretien XVI, pp. 346-347.
25 Méré, op. dt., «Oeuvres posthumes», t. III («Du commerce du monde»), p. 158.
26 Ver, por exemplo: Ph. Beaussant, Versailles Opera, Paris, Gallimard, 1981.
27 Ver mais adiante, cap. VI.
28 Diderot, «Paradoxe sur le comédien» (1798), em Oeuvres esthétiques, Paris,
Garnier, 1976, p. 313.
29 «(...) Seja como for que se tenha o coração, a menos que o tenha bem prepara
do, quem é que pode responder pelos seus movimentos? Quem pode assegurar que
não cora quando comete uma falta contra a sua reputação ou que não empalidece
quando é surpreendido por uma morte?» De Méré, op. dt., t. III («Du commerce du
monde»), p. 158.
30 De Vaumorière, op. cit., Entretien X, p. 203.
31 Ibid., Entretien II, p. 28.
32 De Méré, op. dt., «Oeuvres posthumes», t. III («De 1’éloquence et de 1’entre-
tien»), pp. 111-112.
33 De Vaumorière, op. cit., Entretien XIV, p. 318.
34 Ibid.
35 L*Encyclopédie, artigo «Passion (peinture)», t. XII, p. 151.
36 De Vaumorière, op. cit., Entretien X, pp. 203-204.
37 Ibid., Entretien X, p. 210; Entretien XVI, p. 343.
38 Ibid., Entretien I, p. 11.
39 Ver cap. VI.
40 De Vaumorière, op. cit., Entretien I, p. 5.
41 F. Lamy, De la connaissance de soi-même, Paris, 1644, p. 234.
42 Ibid., p. 18.
43 Ibid., p. 31.
44 Ibid., pp. 27-28.
45 Em Nicole, nos seus Essais de morale (1671, t. III, p. 1), quando diz que o pre
ceito mais comum da filosofia é o de se conhecer a si próprio e quando observa que
«longe de trabalharem seriamente para adquirir este conhecimento, os homens estão
148
ocupados toda a vida a cuidar de o evitar. Nada lhes é mais odioso que a luz que os
descobre a seus próprios olhos e os obriga a verem-se tal como são».
46 F. Lamy, op. cit., p. 76.
47 Ver Duby, op. dt., p. 517; e capítulo seguinte.
48 «Quando se trata de palavras interiores, ou seja de pensamentos, o Santo Evan
gelho não diz que o Senhor os ouviu mas que os viu.» Santo Agostinho, De Trinita-
te, trad. P. Agaesse, Bibliothèque augustinienne, Paris, 1955, t. XVI, p. 468.
49 «O olho com que vejo Deus é o mesmo olho com que Deus me vê. O meu
olho e o olho de Deus sâo um único e mesmo olho, uma única e só visão, um único
e só conhecimento, um único e mesmo amor. O homem que permanece no Amor de
Deus deve estar morto para si mesmo e para todas as coisas criadas, de tal modo que
se preocupa tão pouco consigo próprio como com qualquer outro que esteja a mil
léguas. Este homem permanece na Igualdade e na Unidade; não entra nele nenhuma
desigualdade. Este homem deve ter renunciado a si mesmo e ao mundo inteiro (...).»
Maitre Eckhart, Traités et Sermons, Paris, Aubier, 1942, p. 179.
50 Em De Grenaile, op., cit., p. 264. «Principalmente desejo que a franqueza e a
liberdade reinem nas cerimônias mais constrangedoras. Que contentamento posso re
tirar do convívio social se aí vejo uma cruz a procurar prazer? Teria prazer em me
sentir incomodado? Gosto mais de estar em casa do que estar na companhia de al
guém que estuda os meus menores gestos.»
51 La Rochefoucauld, op. cit., p. 164.
52 Ibid., p. 170.
53 Ibid., pp. 170-171.
54 Ibid., p. 169.
55 De Vaumorière, op. cit., Entretien XVI, p. 346.
56 Ibid., Entretien II, p. 21.
57 Mme du Deffand, Lettres à H. Walpole..., Paris, Plasma, 1979; carta de 3 de
Agosto de 1769, p. 60.
2,8 E. e J. de Goncourt, La femme au XVIIIe siècle, Paris, Flammarion, 1982
(1862), pp. 87-88.
59 Mme. du Deffand, op. cit., respectivamente: carta de 13 de Novembro de 1777,
p. 78; 31 de Maio de 1778, p. 125; 23 de Março de 1776, p. 114.
60 J. de Lespinasse, Lettres..., Paris, Charpentier, 1876; carta XV, 16 de Agosto de
1773, p. 52.
61 Marquês de Caraccioli, La Conversation avec soi-même, Paris, 1762.
62 Ibid., pp. 41-42.
63 Ibid., p. 19.
64 Ibid., pp. 23-26.
65 Marquês de Caraccioli, La Jouissance de soi-même, p. 503.
66 Caraccioli, La Conversation avec soi-même, pp. 44 e 67.
67 «O tempo de estudo e da conversação é abandonado a alguns solitários, a que
chamam extravagantes ou inúteis, como se mais de metade do mundo que não faz se
não brincar, comer, dormir e passear prestasse grandes serviços à sociedade (...). Crê-
-se que merece o título glorioso de amigo da pátria quando se convive com os outros
unicamente para ver e ser visto?», ibid., p. 187.
68 Caraccioli, La jouissance de soi-même, pp. 295-296.
69 Ibid., p. 292.
70 E. e J. de Goncourt, op. dt., p. 274.
71 Segundo a expressão dos Goncourt que a apresentam assim: «Surpreendente,
miraculoso, divino, são os epítetos correntes da conversa (...). Só se fala de graças
inumeráveis, perfeições sem fim. A mínima fadiga está-se esgotado', ao mínimo con
149
tratempo está-se desesperado, obcecado prodigiosamente, está-se sufocado. Deseja-se
alguma coisa? Está-se a morrer por ela. Um homem é desagradável? É um homem a
deitar fora. Não se percebe alguém? E de uma palermice confrangedora. Aplaude-se
freneticamente, louva-se acerrimamente, ama-se miraculosamente. E essa febre de ex
pressões não fica por aqui; para ser uma mulher «perfeitamente na moda» é necessá
rio ciciar, modular, amolecer e efeminar a voz, pronunciando, em vez de percebe, pe-
ceebe» (op. cit., p. 71).
72 Mme du Deffand, op. cit., respectivamente: p. 80 (12 Fev. 1772) e p. 114 (23
Mar. 1776).
73 J. de Lespinasse, op. cit., carta VII, 21 de Junho de 1773, p. 17.
74 Ibid., cana XXXVI, 1774, p. 87.
75 «Meu amigo, parece-me que tendes direitos sobre todos os sentimentos da mi
nha alma. Conto-vos todos os meus pensamentos; só tenho a propriedade deles
quando vo-los comunico», ibid, carta LXIX, 7 de Novembro de 1774, p. 181.
76 Ibid., carta LVI, 3 de Outubro de 1774, p. 140; ou ainda: «Consegui moderar a
violência da alma; posso falar-vos... Ontem, não tinha expressão», ibid., carta VI, 20
de Junho de 1773, p. 15. São efeitos semelhantes que A. Vincent-Buffault observa na
sua Histoire des larmes (Paris, Rivages, 1986; ed. port. História das Lágrimas, Teore
ma, 1994, pp. 255-257), quando no fim do século xvm, «a regra passa a ser a efusão
(...). Na difusão das lágrimas o excesso é de regra (...) em que se chora beijando-se
sem poder falar».
77 J. de Lespinasse, op. cit., respectivamente: carta XXXIII, 1774, pp. 75-76, e
carta XI, 25 de Julho de 1773, p. 34.
78 Addison em L'esprit d'Addison ou les beautés du spectateur..., 1777, t. I, p. 19.
79 Mme de Staêl, citada em M. Glotz e M. Maire, Salons du XVIIT siècle, Paris,
Nouvelles Editions Latines, 1949, p. 57.
8C Ph. Pinei, Traité médico-psychologique sur 1'aliénation mentale et la manie, Pa
ris, An XI (1801).
Capítulo 5
151
«mediocridade» dos sinais: fronte regular, nariz direito, boca media
na, rosto simétrico, corpo bem proporcionado, constituem os mais
belos e os melhores dos homens2. Quando a partir do século xvi se
desenvolve uma maior sensibilidade à expressão, estas exigências
mantêm-se, enquanto uma outra é marcada de maneira cada vez mais
insistente: os movimentos do rosto devem ser estabilizados e domi
nados. As fisiognomonias, os livros de boa educação ou ainda os tra
tados de acção retórica dizem-no cada um à sua maneira: o controlo
da agitação do corpo, a conversão desta última em gestos medidos e
harmoniosos são outros tantos indícios em que o homem honesto se
reconhece. Uma atenção mais aguda é desde logo dada ao invólucro
corporal3, a todo o movimento susceptível de deformar ou fazer so
bressair a superfície; e ainda ao controlo dos seus orifícios e de tudo
o que deles possa sair, especialmente emissões linguísticas e mais ge
ralmente sonoras4. A fisiognomonia não se satisfaz com perserutar o
rosto, precisa agora de escutá-lo. E o corpo é incitado ao silêncio.
A língua, «demasiado ligeira a falar», denota desde logo para Co
clès o homem de pouco entendimento. Porta classifica estes acidentes
em que se perde o controlo da língua — gaguejar, hesitações, lapsos
— como sinais de imbecilidade. A sua vigilância vai até aos ruídos si
lenciosos dos gestos expressivos que acompanham a palavra: estigma
tiza aqueles que falam mexendo as mãos, «imundos» e «tagarelas».
As percepções tornam-se pouco a pouco mais finas, até passarem a
ser sensíveis a estas marcas discretas da expressão que se situam fora
da linguagem articulada: em alguns destes tratados há uma fisiogno
monia da voz. muda, a da respiração, do suspiro, dos ruídos apenas
audíveis do corpo.
O registo dos ruídos ínfimos da expressão traduz um receio: que
algo surja de repente do corpo, se escape dele, e que ele corra o risco
de se espalhar fora de si próprio. Assim, aquele cuja respiração é for
te ao ponto de parecer a todo o momento sem fôlego «costuma di
vulgar tudo o que faz»6. As fisiognomonias inquietam-se então com o
suspiro, reprovam o bocejo tanto por causa de a boca ficar aberta co
mo pela sonoridade. E pelas mesmas razões condenam mais ainda as
gargalhadas em que uma muito antiga tradição vê indício certo da
loucura. Mais vale rir pouco e silenciosamente: é indício de constân
cia, de prudência e de temperança que agradará a toda a gente.
152
É este o paradoxo das observações fisiognomónicas que assim se
juntam às prescrições dos livros de civilidade: as produções vocais do
homem de bem devem ser medidas ao ponto de apresentarem uma
certa qualidade de silêncio. Assim, com a voz: recomenda-se um tim
bre mediano, nem demasiado agudo nem demasiado grave, nem de
masiado doce nem demasiado áspero, seguindo portanto o registo
«medíocre» do cantas obscurior em que os tratados de pronuntiatio
retórico inserem na mesma altura a voz do orador sagrado8. Passa-se
com as palavras o mesmo que com a voz: a sua saída demasiado
pronta ou demasiado abundante denota a loucura dos que têm «uma
torrente de palavras numa gota de razão».
153
O silêncio monacal do refúgio, o silêncio agitado do místico, o si
lêncio temente do pecador perante Deus é pouco a pouco substituído
pela arte de calar-se, de se refugiar em si próprio, de conter a língua
como bom cristão e indivíduo virtuoso, à medida que as práticas civis
se distanciam dos comportamentos religiosos. Os impulsos da fé mu
da dão lugar ao ensinamento das virtudes, de que os jesuítas foram os
principais artesãos, colocando-se deliberadamente no campo da socie
dade civil onde inculcaram a «civilidade» e a «honestidade». A ques
tão do silêncio é um sinal crucial da lenta transformação das práticas
religiosas cm práticas civis, um ponto de encontro do cristianismo e
da sociedade, um elemento essencial da civilidade cristã. O tema reli
gioso do silêncio cria então a pedagogia da contenção, da reserva, da
reticência na vida social. A partir de então convém meditar, reflectir,
falar pouco; fazer do silêncio uma disciplina quotidiana mais do que
um mandamento religioso; um imperativo moral mais do que um ac-
to de fé. Ao que o abade Dinouart incitava na sua UArt de se taire
que se inscreve nessa tradição:
154
de retórica humanista. Na sua L’Art de parler, Lamy confere assim
uma origem divina à sociedade civil e vê nos rituais silenciosos do
corpo cristão a origem das figuras retóricas.
155
conveniências reclamam um controlo estrito do movimento do corpo
e do rosto.
156
põe a atitude, e com a atitude a civilidade: como da falta de
atenção provém a falta de postura e dessa falta a incivilidade23.
157
uma vez que a civilidade «considerada em si mesma apenas consiste
em se sentir seu»26. Na origem do imperativo de silêncio difundido
no decorrer dos séculos xvn e xvm respeitante à civilidade e aos ges
tos, à conversação e às palavras, existe portanto um modelo muito
antigo do corpo como recipiente hermético, continuamente ameaçado
pelo facto de as matérias que encerra poderem escapar-lhe. As ori
gens da tradição naturalista de que provêm as representações do cor
po desenvolvidas pela fisiognomonia, as origens religiosas que estão
na base dos comportamentos civis, referem-se portanto a concepções
próximas. Este corpo receptáculo, cujo silêncio parece assegurar o
encerramento, ganha igualmente sentido num registo econômico-, como
se obedecesse ao modelo de uma economia arcaica, de uma acumula
ção primitiva em que convém juntar no interior do eu riquezas que
não se deveria de forma alguma deixar filtrar senão gota a gota, aten
dendo cuidadosamente ao que se gasta. E neste sentido que o silêncio
é de ouro e que o excesso de palavras é ao mesmo tempo a perda de
um bem, um esbanjamento e o derramamento de um líquido, uma in-
continência. Encontra-se assim, tanto na memória dos saberes popu
lares como na tradição naturalista das fisiognomonias ou na de uma
moral de origem religiosa, uma economia primitiva da palavra em que
a tagarelice é comparada a uma falta de energia do corpo bem como à
delapidação de um patrimônio. E assim a economia cristã da palavra
formulada por J.-B. de la Salle:
158
Estas regras, que levam ao conhecimento de si próprio e ao
dos outros, à observação dos lugares e do tempo, são tão ne
cessárias que, se uma das quatro faltar, todas as nossas acções,
partindo embora de uma boa intenção, parecem incivis e irre
gulares29.
159
promessa de uma reciprocidade. A regra de silêncio é clara: não deve
mos fechar-nos ao outro. O rosto taciturno só assenta aos espíritos
melancólicos e tristes. O ar aberto e amável, que tanto recomendam
as artes de conversação como os preceitos de silêncio, é a marca im
pressa no rosto de cada um pelos paradoxos de uma sociedade civil
em que se reforça o controlo social ao mesmo tempo que se autono-
miza o indivíduo, quando essa sociedade é concebida como espaço de
diálogo, de troca e de expressão. Deve-se, simultaneamente, num
mesmo tempo e num mesmo lugar, saber calar-se e exprimir-se. E por
isso que retóricos e teóricos da linguagem, Lamy ou Bouhours, fa
zem do silêncio «a arte de bem se calar» e consideram que ele tem os
seus princípios e as suas regras, tal como a arte de bem falar. Uma ar
te, mas também uma virtude. Assim, para Bouhours:
160
sobre o próprio indivíduo: corpo e linguagem são sujeitos a um tal
domínio que o silêncio e a palavra possam nele inscrever-se no natu
ral harmonioso da expressão; e participar assim nas múltiplas exigên
cias do laço social: alternada ou simultaneamente dizer e calar, através
da boca e do rosto.
Compreende-se assim como as artes do silêncio que acompanham
a tradição dos tratados de civilidade podem terminar em classificações
das maneiras de se calar através da língua, que sejam ao mesmo tem
po maneiras de falar através do rosto: uma laicização, uma generali
zação, um enfraquecimento progressivo dos modelos de gestualidade
religiosa. Uma classificação como a que nos deixou o abade Dinouart:
existe o silêncio «artificioso», silêncio de dissimulação, quando só nos
calamos para causar surpresa, quando não se responde «senão com
maneiras enganadoras»; o silêncio «complacente» da lisonja, a aplica
ção no ouvir sem contradizer aqueles a quem pretendemos agradar
«de forma que os olhares, os gestos, tudo supra a falta de palavras
para os aplaudir»; o silêncio «trocista», em que o rosto aprova en
quanto se goza o prazer secreto de enganar; o silêncio de «desprezo»,
uso táctico da reserva e da expectativa, o do rosto impassível, quando
calar-se é fazer falar o outro, levá-lo a declarar-se, a fazer o primeiro
movimento36.
Reconhecem-se aqui algumas molas essenciais da arte do cortesão,
sendo por vezes muito indecisa a fronteira que separa os manuais de
civilidade cristã dos tratados da corte. As práticas do silêncio assen
tam, nestas tradições, numa ética baseada na prudência e na aprecia
ção das circunstâncias: deve-se usar a língua oportunamente, con
soante o tempo e os lugares em que nos encontramos em sociedade, e
segundo as atenções devidas às pessoas com quem se conversa.
Derivação do silêncio-, lentamente, o primitivo silêncio de origem
religiosa, percepção interior, recolhimento e refúgio de si, laço essen
cial com Deus, exterioriza-se na linguagem. O silêncio que habitava o
espaço íntimo saturado pelo olhar, o «castelo interior» das Moradas
de Santa Teresa de Ávila — o «castelo de diamante» da alma, residên
cia luminosa de Deus37 — perde a sua transparência e torna-se opaco
na expressão e no gesto. Se o corpo continua a ser para J.-B. de la
Salle «o templo do Senhor», a maior parte das vezes é uma fachada
que dá a contemplar. O silêncio toma lugar entre as práticas civis, faz
a ligação entre os homens onde tecia a relação mais pessoal que unia
o homem a Deus. Ao dessacralizar-se, alinha entre as práticas sociais.
Destinos cruzados do silêncio e da conversação: ao mesmo tempo a
linguagem, dantes votada à exterioridade do comércio entre os ho
mens, torna-se mais interior, até estruturar pouco a pouco o espaço
161
íntimo à maneira de uma conversação consigo próprio. Assim, as de
rivações aparentemente contrárias do silêncio e da linguagem devem
compreender-se na base da transformação profana e civil das práticas
religiosas: interiorização da linguagem e exteriorização do silêncio
traduzem a socialização progressiva da esfera privada, a lenta indivi-
dualização do espaço público. O homem destaca-se de Deus, a vida
civil é impregnada de uma religião disseminada nas suas práticas, de
uma religiosidade moral. O homem silencioso espalhou-se pelo mun
do: o homem humilde passou a ser o homem prudente. Ao silêncio
da fé, ao isolamento da convicção ou do fervor sucederam as artes
discretas que se praticam em companhia: as da circunspecção, da ex
pectativa, da ocasião; que ensinam a reprimir as palavras, sem mascarar
excessivamente as que deixam escapar; a calar-se, sem fechar demasia
do o coração; a ser reservado, sem ser sombrio ou taciturno. E essa a
arte daquele que contemporiza, que não se compromete nem se reve
la. Arte do meio termo em que não se diz realmente a verdade nem se
esconde totalmente, ela ajuda as práticas de conversação e constitui,
mais gcralmente, um elemento essencial dos rituais da vida civil, de
que reflecte e realiza as sujeições. Mas remete ainda para um modelo
político, porque «quem não sabe calar-se é indigno de governar»38.
Os poderes do silêncio
162
demasiado rebeldes, pouco obedientes à pessoa do rei e ao Estado.
Ranum observa deste modo:
163
mente abertos para prever os mínimos inconvenientes que po
dem surgir47.
164
Os reis podem ser personagens mudas, sem que por isso, co
mo leis vivas, se execute no entanto o que sabiamente orde
nam que se faça. Recorrendo a esta característica da alma real
e à ressonância de Sua Majestade, mantêm os indivíduos nos
seus deveres53.
Os tormentos do silêncio
165
nefícios da efusão pessoal no diálogo. Sair do silêncio é libertar-se de
le pela palavra.
Passo uma parte da minha vida sem poder falar — confessa por
fim Julie de Lespinasse —; a minha voz extinguiu-se e é de to
das as incomodidades a que mais convém à disposição da minha
alma: gosto do silêncio, do recolhimento e do refúgio59.
NOTAS
1 Abade Dinouart, L'Art de se taire, principalement en matière de religion (1771),
J.-J. Courtine e Cl. Haroche, ed. Jérôme Millon, p. 65.
2 Ver Denieul-Cormier, op. cit., pp. XX-XXII.
3 Estas observações ligam-se com as finas análises que G. Vigarello fez deste sen
timento de porosidade dos invólucros corporais que participam na transformação das
práticas de higiene nos séculos xvi e xvn. Com efeito o temor, nessa época, era que a
água pudesse penetrar no corpo atravessando a sua superfície; temor ao mesmo tem
po inverso e similar do que se encontra no terreno da expressão quando se trata de
vigiar para que nada demasiado brutal surgisse do corpo (ver G. Vigarello, Le Propre
et le Sale, Paris, 1985). O invólucro corporal é uma fronteira simbólica essencial à
delimitação pessoal. G. Duby insiste na sua análise da emergência do indivíduo entre
os séculos xi e xm, na assimilação dos limites do corpo medieval às paredes de uma
casa íntima cujas aberturas devem ser rigorosamente defendidas: «O invólucro do
corpo é, no mundo dos homens, a mais profunda das clausuras, a mais secreta, a
mais íntima, e as interdições mais rigorosas impedem de a quebrar. Casa-forte, forta
leza, retiro, mas sempre ameaçado, cercado (...). E preciso vigiar o corpo especial
mente nas suas aberturas que furam a muralha e por onde se pode infiltrar o inimigo.
Os moralistas incitam à vigilância destes postigos, as janelas que são os olhos, a boca,
as orelhas, as narinas, uma vez que é por aí que penetram o gosto pelo mundo e o
pecado, a podridão: vigilância assídua, como nas portas dos mosteiros e dos castelos»
(op. cit., p. 517; ver igualmente: M.-Ch. Pouchelle, Corps et chirurgie à Papogée du
Moyen Age, Paris, Flammarion, 1983). Mas que o corpo seja apercebido como um
recipiente contendo a palavra de Deus ou como uma casa abrigo da alma. Tais análi
ses permitem dar uma inscrição histórica ao que a psicanálise denomina «imagem do
corpo», e precisar as transformações da percepção subjectiva das fronteiras do corpo
(ver por exemplo D. Anzieu, Le moi-peu, Paris, Dunod, 1985).
166
4 Este ponto foi desenvolvido em J.-J. Courtine e G. Vigarello («La physionomie
de 1’homme impudique: bienséances et impudeurs dans les physiognomonies au xvie
et au xvne siècle», Communications, n.° 46 Outubro 1987) a propósito do aumento
do sentimento de pudor na idade clássica. O controlo subjectivo do corpo orgânico e
o sentimento de pudor que se exprime pela racionalidade psíquica foi posto em rela
ção com esta transformação das representações do corpo que M. Bakhtine soube ex
pressar opondo um corpo grotesco e um corpo clássico. Esta oposição está de acordo
com o que queremos mostrar com o nascimento e o desenvolvimento da categoria
expressão: o corpo expressivo é o corpo clássico de Bakhtine. Neste, com efeito, co
menta Bakhtine, «o papel predominante pertence às partes individuais do corpo
assumindo funções caracterológicas e expressivas: cabeça, rosto, olhos (...)» (Bakhtine,
Uoeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen-Age et sous la Re-
naissance, Paris, Gallimard, 1970, p. 319).
5 Particularmente em Porta no século xvi, W. de la Colombière ou D. Laigneau
no século xvn {op. dt.).
6 Porta, op. dt., p. 247.
7 Ibid., p. 254.
8 M. Fumaroli, op. cit., pp. 257-259.
9 W. de la Colombière, op. cit., respectivamente p. 179 e p. 178.
10 Ibid., p. 182.
11 M. de Certeau, L'Ecriture de 1’histoire, Paris, Gallimard, 1975, p. 155 e p. 154 e
mais geralmente pp. 153-212.
12 Dinouart, op. dt., p. 59. LArt de se taire é o retomar de um tratado de civilidade
cristã publicado nos finais do século xvii por J.-B. Morvan de Bellegarde: Conduite
pour se taire et pour parler, prindpalement en matière de religion, Paris, 1696. Ver sobre
este ponto: J.-J. Courtine e Cl. Haroche, prefácio à edição de l'Art de se taire.
13 Ver sobre este ponto: Robert Ricard, «Notes et matériaux pour 1’étude du “so-
crastisme chrétien” chez sainte Thérèse et les spirituels espagnols», Bulletin hispani-
que, vol. XLIX, 1947, n.° 1, e Bulletin hispanique, vol. L, 1948, n.° 1.
14 B. Lamy, LArt de parler, Paris, 1676, p. 8.
15 Sobre as origens da actio na retórica da idade clássica, ver essencialmente:
M. Fumaroli, LAge de l’éloquence, Genebra, Droz, 1980, pp. 315 e segs. e igual
mente do mesmo autor «Rhétorique de la voix et du geste...», op. cit., assim como a
bibliografia do número da revista XVII* siècle onde se encontra este artigo.
16 Fumaroli, op. dt., p. 30.
17 «E a eloquência sagrada que desempenhou o papel de motor no renascimento
de uma actio rhetorica no século xvi e é a partir desta versão eclesiástica da actio que
as suas derivações profanas (etiqueta da corte, arte do comediante “reformado”) se
desenvolveram» (Fumaroli, op. cit., p. 315).
18 A. de Courtin, Nouveau traité de la civilité qui se pratique en France et ailleurs
parmi les honnêtes gens, 1671; J.-B. de la Salle, op. dt.
19 De la Salle, p. 4 e p. 29.
20 Ibid., p. 4.
21 Ibid., p. 5.
22 Ibid., prefácio, p. 1.
23 Courtin, p. 337 (itálico nosso).
24 Dinouart, op. dt., p. 65.
25 Courtin, op. dt., p. 323 e p. 322.
26 Ibid., p. 322.
27 De la Salle, op. cit., p. 35 (itálico nosso).
28 Courtin, op. cit., p. 105.
167
29 Ibid., pp. 17-18.
30 Dinouart, op. cit., p. 105.
31 Ibid., p. 70.
32 D. Bouhours, Entretiens d'Artiste et d'Eugène, Paris, 1683, p. 256.
33 Ibid., pp. 269-270.
34 Ibid., p. 271.
35 Ibid., p. 272.
36 Ver Dinouart, op. dt., pp. 69 a 71 («Différentes espèces de silence»). O silêncio
de desprezo é o que pratica, segundo os Goncourt, Mme. Geofrin, «hábil a apagar-
-se, a calar-se, a escutar, retirada em si mesma e conduzindo por trás a conversa dos
outros, tocando as pessoas como se fossem instrumentos, sabendo tirar daí o som»
(Portraits intimes du XVIIP siècle, 2.a série, Paris, 1858, pp. 157-182).
37 A imagem do «castelo interior» de Santa Teresa inscreve-se numa tradição mística
onde o retiro solitário se torna uma «fortaleza do silêncio». O que Ph. Braunstein co
menta assim: «Por entre todas as definições de alma que Mestre Eckart propõe nos
seus Sermões, uma das mais comoventes é a da praça forte: “Esta pequena praça forte
é tão elevada acima de tudo e de todo o poder que só Deus pode penetrá-la com o
seu olhar. E porque Ele E Uno e Simples, entra nesta unicidade a que chamo uma
pequena praça forte da alma”, como dizia a mística Matilde de Magdeburgo» {Histoi
re de la vie privée, t. II, p. 606). A propósito das «moradas» de Santa Teresa, remete
mos o leitor para as páginas essenciais que Michel de Certau lhe consagrou na sua
Fable mystique XVF-XVIT siècle, Paris, Gallimard, 1982, pp. 257-279.
38 Fénelon, Télémaque, III.
39 Dinouart, op. dt., p. 71.
40 Ranum, op. dt., p. 431. Ver também P. Ansart, La gestion des passions politi-
ques, Lausana, L’Age d’Homme, 1983, em particular o cap. II.
41 Ibid., p. 434.
42 Citado em Ranum, op. dt., p. 437.
43 Richelieu, Testament politique, Amsterdão, 1688; Mãximes d'État et fragments
politiques, Paris, ed. Hanoteaux, 1880.
44 Maximes d'État et fragments politiques, p. 778.
45 ZW., p. 770.
46 Testament politique, p. 19.
47 Ibid., p. 20.
48 Ibid., p. 217.
49 Ibid., pp. 213-214.
50 Ibid., p. 222.
51 Anedoctes, Scènes et Portraits, extraits des Mémoires du duc de Saint-Simon,
Paris, Tallandier, 1925, p. 221.
52 Fumaroli, op. dt., p. 250.
53 Ibid., p. 262.
54 Mme du Deffand, op. dt., p. 117.
55 Ibid., p. 128.
56 Julie de Lespinasse, op. dt., p. 55.
57 Ibid., p. 56 e p. 125.
>8 Ibid., p. 27 e p. 168.
59 Ibid., p. 52.
Capítulo 6
A sociedade da máscara
169
desenvolveram e codificaram as práticas da civilidade e da delicadeza
mundana. A sociedade da corte é a sociedade da máscara, onde reina
«uma vil e enganosa uniformidade». O homem segue-lhe o uso e «nun
ca o seu próprio gênio». Ele faz o que «a delicadeza exige e a conve
niência ordena». Detestáveis consequências: o rosto esbate-se por detrás
do constrangimento das figuras, da uniformidade das aparências. O in
divíduo desaparece na gregaridade. «Odeio as máscaras», exclama
Madame du Deffand.
170
depois para tornar frequentemente suspeito e sempre mitigado o
exercício da fruição narcísica; frequentes vezes preciosa e sempre difí
cil, a efusão do sentimento autêntico e sincero. A consciência do eu
do indivíduo contemporâneo deve muito à crítica que Rousseau fez
da sociedade da corte, crítica que participou no seu advento e que o
preparou. «Não se pode compreender realmente J.-J. Rousseau, a sua
influência, as razões do seu sucesso, se não for considerado como um
representante da reacção contra a racionalidade da corte», assim es
creve Elias8.
A leitura dos manuais de civilidade, dos tratados de delicadeza
mundana e dos moralistas do século xvn parece dar bem razão a
Rousseau. Por todo o lado e a despeito da diferença dos autores ou
dos projectos, encontram-se os grandes traços desta sociedade a par
tir dos quais ele conduziu a sua crítica: a afirmação de um homem
duplo, em que o ser se distingue do parecer; a preferência dada à apa
rência em nome da sua visibilidade; o domínio do eu e a repressão do
sentimento; o cálculo do comportamento na relação com outrem9.
O olhar sobre o universo da sociedade aristocrática e mundana do
século xvn formou-se através dos olhos de Rousseau. Da sociedade
da corte ficou a imagem, sem dúvida real, de um teatro de intriga em
que a máscara sufoca e reprime a fisionomia autêntica: o cortesão
permaneceu o símbolo da duplicidade e do servilismo.
Só alguns observadores perspicazes, em particular L.-S. Mercier,
souberam pressentir a dimensão paradoxal da etiqueta: ao mesmo
tempo sistema de constrangimento sufocante e sistema que permite
proteger um espaço de liberdade de todo o indivíduo. Mercier reco
nhece que
171
Os dois rostos do cortesão
172
nos, ao que parece, por razões morais do que práticas e estratégicas.
Como homem do seu século, Gracian desconfia do excesso. E, portan
to, do exagero:
Deixar-se penetrar por outrem e dar direito a por ele ser to
talmente governado é quase a mesma coisa (...). Se o homem
que desvendou um outro fica em situação de o dominar, tam
bém o homem que ninguém pode aprofundar fica sempre co
mo que numa região inacessível à dependência19.
173
A máscara fixa e imóvel do cortesão irá protegê-lo dos olhares
mortíferos. Nunca se expor, nunca deixar fenda por onde o olhar
possa vir a penetrar e apoderar-se do homem interior. E, inversamen
te — mas não será a mesma coisa? —, nada deixar sair de si, não tole
rar a irrupção de qualquer sentimento, senão calculado, nem o apare
cimento de qualquer paixão senão perfeitamente dominada. Também
aqui o perigo é mortal e perfeitamente simétrico com o precedente:
174
móvel. A finalidade é agora surpreender e desconcertar, desconcertar
o olhar do outro.
175
tre estas, Saint-Simon. Testemunha apaixonada e severa da corte, não
é todavia um moralista no sentido de La Bruyère ou de La Rochefou
cauld. Os seus retratos não são anônimos. Ele faz o retrato físico,
psicológico e moral da corte e dos seus actores28.
Acima de tudo, Saint-Simon dá valor ao comedimento, à modera
ção, à igualdade de humor:, ao desembaraço e à adaptação às circuns
tâncias. Assim, a duquesa de Borgonha, «invulnerável às surpresas e
aos contratempos, livre nos momentos mais inquietos e mais cons
trangedores»29, maravilha-o com a sua igualdade de humor. Admira,
pois, o sangue-frio do marechal de Boufflers, «igual no perigo», a
quem nunca coisa alguma «aquecia a cabeça». Inclina-se, portanto,
perante a maturidade do duque de Borgonha, embora arrebatado e
apaixonado na sua juventude. Verdadeiro elogio do domínio do eu:
Entre todos estes retratos, uma oposição tanto moral como física
parecia crucial: a de Fénelon e de Harley. Sobre o primeiro, não es
gota os elogios: uma fisionomia que não se pode esquecer — «era
preciso fazer esforços para deixar de o olhar»32 —, uma figura bem
feita, um trato encantador, desembaraço e moderação em todas as
coisas, uma delicadeza que «a cada um parecia não ser senão para
ele»33. Em contrapartida, para o segundo, só há desprezo pela sua hi
pocrisia. Tudo no retrato que traça do primeiro presidente do parla
mento é constrangimento, cálculo, falsidade:
Harley era um homenzinho magro, de cara em losango, o na
riz grande e aquilino, olhos de abutre que pareciam devorar
os objectos e perfurar as muralhas (...). A palavra lenta e pesa
da (...). Todo o seu exterior constrangido, pouco à vontade,
afectado; o odor hipócrita, o porte falso e cínico, reverências
lentas e profundas, destruindo sempre as muralhas com um ar
respeitador, mas através do qual cintilava a audácia e a inso
lência, e expressões sempre graves (...) sempre lacônicas, nun
ca contente, nem ninguém com ele, muito espírito natural,
muita penetração, um grande conhecimento do mundo, so
176
bretudo das pessoas com quem lidava (...) falso e hipócrita em
todas as suas acções34.
As maneiras de dissimular
177
Réflexions sur les caractères et les moeurs de ce siècle™, denuncia ener-
178
o trabalho está escondido atrás da tela; e em que a etiqueta
dispôs tão bem os respectivos movimentos, que as palavras,
os passos e as reverências não derivam uma linha43.
179
nal, anterior à corrupção dos costumes aristocráticos, crença numa
origem livre e ingênua onde a natureza e a virtude coincidem: na mo
ral do Grande Século existe um conjunto de temas pré-rousseauistas
que anunciam a transformação das concepções de sensibilidades no
Século das Luzes. Mas mais parodoxal ainda é poder-se encontrar
no século xvii, mesmo dentro da definição de civilidade, certos ele
mentos que, nas máscaras, nos rituais, nos constrangimentos e nas
hierarquias anunciam um ideal de indivíduos mais autônomos e tam
bém mais iguais. Nos costumes e nos corpos, nas fisionomias e nas
mentalidades, começam a inscrever-se essas regras de comedimento,
de distância, de respeito e de reciprocidade que preparam a emergên
cia do indivíduo moderno.
180
A delicadeza exige assim não desvendar o outro. A máscara do
parecer permite decerto o cálculo que Gracian elabora; a sua falsida
de desperta, para La Bruyère, a nostalgia de uma sinceridade perdida.
Mas não convém arrancá-la ao outro para pôr o coração a nu. A más
cara da civilidade tem aqui de precioso o proteger e de essencial pôr o
indivíduo ao abrigo do que, no olhar do outro, viria desapossar o eu.
Existe assim em La Rochefoucauld um modelo, baseado nas con
dutas e nas práticas de circunspecção e de civilidade, do sentimento e
da delimitação do eu face ao outro. Este modelo circunscreve o espaço
pessoal de cada um no espaço social. Exprime-se nele um conjunto
de exigências que definem atitudes perante o eu como comportamen
tos perante outrem: na relação de cada um consigo mesmo e com o
outro impõem-se a moderação, a reserva e a discrição. Constitui-se
para todo o indivíduo um espaço da medida do eu que deveriamos
aqui entender literalmente como delimitação, constituição de um es
paço privado, de uma dimensão interior, de um território do íntimo.
A civilidade é também um recinto em que o indivíduo é senhor de si,
ela é propriedade privada de um território íntimo, fronteira do que
respeita ao eu. Mas a constituição de uma esfera pessoal onde o indiví
duo é senhor de si e cujas regras de civilidade proíbem o acesso implica
a necessidade de «manter as distâncias» no trato com os homens.
O comedimento do eu impõe um certo afastamento do outro, uma
proximidade distanciada. As relações interpessoais são concebidas no
espaço de uma ética da distância que parece o inverso do espaço polí
tico do domínio de que Gracian desenhou os lugares, os contornos e
as artimanhas. O espaço da ética obedece a um outro olhar, o da vi
são longínqua do outro, de um ponto de vista distante que respeite o
afastamento entre os corpos e não procure esquadrinhar as consciên
cias através dos detalhes da fisionomia. Não pretende, ao contrário
do olhar que estrutura o espaço político de Gracian, fazer «a anato
mia perfeita da capacidade das pessoas», «decifrar todos os segredos
mais escondidos nos corações», visão aproximada que é influência so
bre o outro, um corpo a corpo.
181
Assim, para La Rochefoucauld, no espaço público deve constituir-se
uma ética do olhar baseada num ideal de comedimento, de distância e
de reciprocidade', «ter um ponto de vista» é escolher o ponto «de on
de se quer ser olhado». E ter liberdade de mostrar, mas sobretudo a
de não se deixar ver. A de reivindicar uma opacidade que protege, de
restituir ao rosto os seus direitos e a sua legitimidade. A máscara da
civilidade pode pois não ser o lugar dos artifícios, o instrumento dos
cálculos, o sinal de uma conformidade ou obstáculo à efusão das au-
tenticidades. Há em La Rochefoucauld a concepção de uma máscara
natural, isto é singular, no sentido que a cada um convém.
182
junto dos preceitos morais que dão sentido a essas atitudes e a essas
condutas — numa palavra, aquilo a que se chama «civilidade» no sé
culo xvn —, são assim objectos complexos, que não se reduzem à ló
gica da disciplina ou à simples hipótese de recalcamento do sentimento.
Vê-se desenharem aí os traços de uma subjectividade moderna, em
particular sob a forma de uma partilha psicológica em cada um entre
as exigências do domínio do eu e da expressão do sentimento. Foi
sem dúvida no final do século xvm que esta divisão foi mais profun
damente sentida nas figuras opostas da impassibilidade e da efusão.
Assim, quando Madame du Deffand evoca Madame de Jonsac: «Ela é
um ser de uma espécie diferente da nossa; é impassível, isto é, sem
paixões, sem sentimentos»55. Espécie estranha à Madame du Deffand,
que confia a impossibilidade de governar humores e sentimentos:
183
Contudo a civilidade é necessária. Mercier considera as suas re
gras tanto como garantias como constrangimentos, entraves salutares,
os únicos que permitem a vida em sociedade e a constituição de uma
sociedade civil.
184
As virtudes civis, bem analisadas, resumem-se às da mais pura
razão. No fundo da alma de todos os homens está inscrita
uma cláusula secreta que os obriga a meditar nela. Tem-se ne
cessidade do acolhimento e das boas maneiras de outrem (...).
As leis já quase nada têm a fazer quando os costumes fazem
quase tudo65.
NOTAS
185
15 Maquiavel, Le Prince (1516), Paris, Garnier-Flammarion, 1980, p. 123.
16 Gracian, op. cit., p. 77.
17 Ibid., pp. 24-26.
18 Ibid., p. 168.
19 Gracian, Le Héros (1637), Paris, Champ libre, 1979, pp. 11-12.
20 Ibid., p. 15.
21 Ibid., pp. 11-12.
22 Ibid., p. 53.
23 Ibid., p. 135.
24 Ibid., pp. 7-8 (itálico nosso).
25 Pode reconhecer-se nesta passagem da máscara imóvel de inexpressividade à fi
gura móvel de expressividade regulada os dois modelos da dominação pela aparência
que E. Canetti pode discernir nas figuras do poder: a do soberano hierático, fixado
na imobilidade, a grandeza e a distância, e a do chamane, cujo poder reside nas
transformações metamórficas que ele sabe realizar. A impassibilidade do rosto do
cortesão provém de uma «interdição de metamorfose» que parece uma conformidade
ao primeiro modelo: identificação ao corpo imóvel e eterno do rei, inscrição numa
estética da dominação em que as representações se originam na pedra da estatuária
ou no bronze das esfinges, simbologia de uma forma de governo dominada pelo se
gredo e pelo silêncio. O jogo fisionômico sobre as aparências parece em contraparti
da aludir ao segundo modelo: alusão ao corpo terrestre e movível do rei, referência a
uma estética política do artifício em que o teatro fornece a representação, símbolo
talvez de formas políticas onde reina a conspiração. Ver E. Canetti, Masse et puissan-
ce (1960), Paris, Gallimard, 1966, pp. 405-407; ver igualmente E. Kantarowicz, The
King’s two bodies, a study in Medieval political theology, Princeton, 1957.
26 Gracian, L'Homme de cour, op. cit., p. 29.
27 Ibid.
28 E no retrato que traça de Mme. de la Vallière, tão contrário ao seu, que ele deixa
adivinhar melhor o que foi o seu projecto: observar, pintar o seu tempo no mínimo
pormenor. Confia até que ponto era estranho a Mme. de la Vallière «o seu afasta
mento constante de todo o convívio e de não se meter em nada, são coisas que em
grande parte não são do meu tempo ou de que gosto pouco» (Saint-Simon, Anédoc-
tes, Scènes et Portraits, extraits des Mémoires, Paris, Tallandier, 1925, p. 57).
29 Ibid., p. 196.
30 Ibid., p. 129.
31 Ibid., p. 136.
32 Ibid., p. 172.
33 Ibid., p. 114.
34 Ibid., pp. 172-173.
35 «O abade Dubois era um homem pequeno e magro, comprido, enfezado, de
peruca loira, com parecer de fuinha. Era da sua natureza dizer a mentira mais pesada
com ar simples, direito, sincero, muitas vezes envergonhado. Teria falado com graça
e sinceridade se com o desejo de penetrar nos outros quando falava não tivesse temor
de avançar mais do que queria, e isso não o tivesse acostumado a um gaguejar artifi
cial (...)» {Ibid., p. 190).
36 Ibid., p. 192.
37 Ibid.
38 Ibid., pp. 225 e 247.
39 Ibid., p. 245.
40 La Bruyère, op. cit.
41 Ibid., p. 202.
186
42 Ibid.., p. 203.
43 Mercier, op. cit., tomo V, cap. CCCXLIV, p. 259.
44 «... as rodas, as molas, os movimentos estão ocultos; é como se de um relógio
só aparecesse o ponteiro, que insensivelmente avança e dá a sua volta: imagem do
cortesão» (La Bruyère, op. cit., p. 217). E igualmente este retrato de Fontenelle: «Pa-
recia-se com uma pequena máquina muito delicada que duraria eternamente se a
pousassem a um canto e nunca lhe mexessem. Ele nunca tinha chorado, nunca entra
ra em cólera... Disse-lhe um dia: — Senhor de Fontenelle, nunca ristes? — Não,
nunca fiz ah, ah!... Eis a ideia que fazia do riso» (Mme. Geoffrin, citado em Glotz e
Maire, op. cit., p. 119).
45 Mercier, op. cit. tomo IX, cap. DCLXXVI, p. 13.
46 La Bruyère, op. cit., p. 232.
47 Ibid., p. 298.
48 La Rochefoucauld, op. cit., pp. 165-166.
49 Mercier, op. cit., tomo IX, p. 186 (itálico nosso).
50 La Rochefoucauld, op. cit., pp. 165-166.
51 Ibid., p. 166.
52 Ibid.
53 Ibid., pp. 168-169.
54 Sobre a sinceridade, La Rochefoucauld alarga-se longamente, e talvez mais ain
da sobre a confiança: «A sinceridade é uma abertura de coração que nos mostra tal
como somos; é um amor da verdade, uma repugnância em disfarçar-se... A confiança
não nos deixa tanta liberdade, as suas regras são mais rigorosas, exige mais prudência
e contenção» (op. cit., p. 171).
55 Mme. du Deffand, op. cit., p. 19.
56 Ibid., p. 130.
57 Ibid., p. 110.
58 Julie de Lespinasse, op. cit., p. 39.
59 Assim a oposição entre Mme. de Maintenon («continuo a achar que [Mme. de
Maintenon] não era falsa, mas era seca, austera, insensível, sem paixão») e Mme. de Sé-
vigné, em quem, pelo contrário «tudo é paixão, que tudo afecta» (Mme. du Deffand,
op. cit., pp. 41-42). Do mesmo modo a antinomia entre os retratos de Neckcr e dc
Rousseau (ver Glotz e Maire, op. cit. cap. IX).
60 Mme. du Deffand, op. cit., p. 160.
61 Mercier, op. dt., tomo VI, cap. DXVII, pp. 195-196.
62 Ibid., tomo IV, cap. CCCXXI, p. 102.
63 «Para além do encanto da cordialidade, encontra-se aí uma certa troca de idéias
e de pequenos serviços que aproximam a maneira de ver e de sentir, e que colocam
os homens em uníssono (...)» (Mercier, op. cit., tomo IV, cap. CCCXXII, p. 105).
64 Ibid., tomo VIII, cap. DCXIV, p. 66.
65 Ibid., tomo XI, pp. 188-189.
Conclusão
189
texto de Darwin toda a retórica é assim posta de parte. A linguagem
já não é constitutiva do saber. Tanto na observação da expressão hu
mana como nas suas formas de descrição, são esquecidas as recomen
dações de Buffon no seu Discurso sobre o estilo. A expressão humana
é agora colhida a partir da observação experimental, mas também de
rivada de um continuum que põe o homem em relação com a sua ori
gem animal: no próprio princípio da expressão das emoções não se
encontra já a linguagem, mas o organismo.
190
tomas; finalmente discurso procurando a conjunção problemática en
tre o indivíduo e o seu corpo.
A história da expressão o indica: sem dúvida que o indivíduo se
aproximou de si mesmo. O século xix vê estabelecerem-se novas pro
ximidades ao eu, feitas de escuta do homem singular e sensível6. Ao
mesmo tempo, porém, o homem, noutros aspectos, afastou-se de si
mesmo. A constituição de conhecimentos científicos e especializados
tornou mais clara a separação em cada um do homem orgânico e do
homem sensível. E mais ainda, o indivíduo sente e experimenta essa
separação sob a forma daquilo que Bichat analisa como um conflito
entre os movimentos «simpáticos» e os movimentos «voluntários»,
uma luta das vísceras e do cérebro, um corpo a corpo entre paixões e
vontade.
191
e de dependência social. A literatura é disso testemunha: onde La
Bruyère descrevia sob «caracteres» indivíduos definidos num mundo
fechado, a literatura do século xix descobre as massas. Sociedades
anônimas, massas operárias, multidões das grandes cidades, oferecem
nos romances naturalistas e nas «fisiologias» um novo universo de re
ferência; com as suas personagens saídas da massa, vindas dela e lu
tando por dela se libertarem8. Desenvolve-se o anonimato do número,
aberto e flutuante. A certeza quanto às identidades esbate-se. Dese
nha-se um medo do desconhecido que incita a manter-se à distância
de outrem. Na vida social, as classes sociais enfrentam-se pelo olhar:
cada um investiga o desconhecido no outro. Na multidão das ruas, é
preciso saber a quem se fala. Estamos a lidar com um burguês ou
com um proletário? Com um cidadão pacífico ou com um homem
perigoso? Com uma mulher honesta ou com uma mulher de má vi
da? Com alguém com quem nos podemos dar ou com alguém que
devemos evitar? E se acontece ao burguês analisar o homem do povo
com a distância do desdém, este último encara-o por sua vez: as clas
ses sociais observam-se, julgam-se e defrontam-se a partir das suas
aparências físicas, dos traços inscritos nos seus corpos e nos seus ros
tos como se se tratasse de caracteres raciais, em que o olhar procura
adivinhar o vestígio dos caracteres morais9.
Assim, o anonimato da multidão, mesmo que proteja, inquieta
outro tanto: obriga a decifrar a personalidade10. E preciso poder dis-
tinguir-se, e o corpo de outrem torna-se uma colecção de detalhes a
destacar, de índices a interpretar. Acentua-se deste modo a divisão
dos corpos e dos rostos na constituição e no antagonismo de um físi
co popular e de um físico burguês, de que o romance naturalista, as
«fisiologias», o realismo psicológico e social do retrato, a caricatura
de imprensa e a fotografia fixam os traços.
Tornam-se testemunhas da violência, da torpeza e da perigosidade
atribuídas ao físico popular. As classes trabalhadoras são classes peri
gosas: o tipo popular esconde o tipo assassino. Aos criminosos que
constituem as camadas miseráveis dos Mistérios de Paris, Eugène Sue
atribui os caracteres sob os quais Lavater e Gall descrevem o homem
degenerado. Na observação da fisionomia popular, cruzam-se de no
vo a história social e a história natural: enquanto nasce o romance
policial sob a pena do médico (Conan Doyle), o rosto criminoso é
objecto de uma investigação onde o inquiridor saberá ler os sintomas
do crime11. Os relatos do Journal de la Société Phrénologique de Paris
são popularizados pela imprensa por ocasião de casos de crime.
Constitui-se, ao mesmo tempo que o retrato antropométrico da fisio
nomia perigosa, o tipo popular da «cara de assassino». Não se dão
192
grandes crimes ou execuções capitais sem considerações fisiognomó
nicas: Lavater e Gall são sempre evocados pela acusação, testemunhas
de acusação da bestialidade da fisionomia criminosa, que eles pró
prios fazem derivar da animalidade12. As suas deformações são desta
cadas pelos esboços de audiência, os detalhes ampliados pela caricatura.
O universo da rua — o das velhas porteiras, dos ébrios, dos trapeiros
de Daumier ou Traviès — é o do anonimato das fealdades onde pode
sempre surgir o rosto da violência e do crime. Mas o físico burguês
também não é poupado: a burguesia vista pelo povo é barriguda e lu-
xuriosa, o seu rosto egoísta e hipócrita. As caricaturas do Charivari
exibem a fealdade burguesa do seu pessoal político.
Assim, as lutas políticas e sociais traduzem-se sobretudo pelo
conflito das aparências em que o rosto do outro daria, na ampliação
grotesca do detalhe visível, a natureza escondida da sua moralidade
corrompida. Século de conflitos sociais, de afrontamentos de classe, o
século xix viu no entanto desenhar-se lentamente um movimento que
leva todas as classes sociais, para além da burguesia e das classes mé
dias, ao individualismo. As camadas populares são decerto entendidas
como vivendo numa espécie de promiscuidade animal, mas, como
nota muito justamente Perrot:
193
« a.
194
observação cada vez mais minuciosa das classes trabalhadoras e so
bretudo das concentrações humanas das grandes cidades: com os pro
jectos filantrópicos, a medicina social, as grandes conquistas operárias
e o desenvolvimento da higiene, constitui-se uma antropologia das
populações operárias particularmente atenta à aparência popular, ao
corpo e ao resto do homem do povo. Passa-se então de uma observa
ção etnográfica do homem longínquo a uma inspecção filantrópica do
homem próximo14. A necessidade de identificação torna-se cada vez
mais forte. A antropologia e a estatística nascente classificam tipos e
enumeram populações; o uso do cálculo permite a identificação, ins
taurando desvios na massa.
Com o aparecimento das sociedades de massa, a identidade de ca
da indivíduo tende a apagar-se, os rostos a tornarem-se anônimos.
Assim, um gesto descritivo semelhante — o estabelecimento de uma
classificação dos rostos tal como a fisiognomonia tanto produziu —
pode então mudar de sentido. Classificavam-se figuras, identificavam-
-se paixões e caracteres; no fim do século xix, as gravuras de morfo
logia facial que ilustram as classificações da antropologia criminal de
Lombroso15 (ver figura 16) terão um outro significado. Os rostos
anônimos agrupados num quadro representam tipos na média anatô
mica dos seus traços: o degenerado, o melancólico, o matreiro, a
prostituta, o criminoso nato ou ainda o gênio. Trata-se presentemente
de identificar indivíduos. Os retratos já não têm um nome, mas um
número. A identidade de um indivíduo é então garantida pela identi
ficação com um tipo. Esta apreciação dos rostos mostra bem cm que
é que as investigações da aparência do corpo humano se relacionam
fundamentalmente com a questão da identidade. A história do rosto
permite assim elucidar uma parte assencial das transformações da re
lação entre identificação de um indivíduo e a sua identidade.
Uma tal relação subentende também os fragmentos de história na
tural do rosto de que falam as fisiognomonias quanto às práticas ime
moriais de decifração do outro na vida social. Num caso como noutro,
viu-se pouco a pouco reconhecer a expressão como singular. Atribui-
-se progressivamente cada vez mais sentido às suas manifestações in
dividuais.
No entanto, nem por isso se renunciou ao sonho arcaico de fazer
coincidir a identidade de um indivíduo com os traços morfológicos
estáveis e fixos — marcas divinas ou bossas do crânio — tidos por
desvendarem a natureza íntima.
Pode mesmo considerar-se que o século xix assistiu a um retorno
maciço da morfologia facial — que Camper e Lavater anunciavam à
sua maneira — nos processos de identificação tanto científicos como
195
jurídicos: à fisiognomonia vão suceder a antropologia de Bertillon e a
antropologia criminal de Lombroso. O «darwinismo social» deste úl
timo associa na morfologia do rosto a perigosidade, a origem étnica
ou social e a animalidade. E apaga dos rostos todo o vestígio da dúvi
da que levava Darwin a levantar a seguinte questão:
A genealogia da expressão
196
mites expressivos no espaço dos quais as representações e as práticas
do rosto adquirem todo o seu sentido. Por um lado, o de uma ex
pressividade súbita, brutal, incontrolada, quando o rosto manifesta
que o indivíduo está fora de si mesmo; por outro, o da impassibilida-
de de um rosto impenetrável. Trata-se evidentemente de duas possi
bilidades extremas que se podem encarnar em figuras opostas: as da
paixão, do arrebatamento, da privação da posse do eu, da «perturba
ção» de que falava Courtin; e, pelo contrário, as da temperança, da
moderação, do comedimento e da posse do eu.
Estas figuras adornam, em diferentes épocas, o rosto do doido ou
do sábio, do «possesso» ou do homem da corte e, mais perto de nós,
do histérico ou do burguês controlado e impávido. Elas organizam o
campo das representações literárias e picturais do corpo no século xix.
Perante o rosto de Emma Bovary, perdida pela paixão e pelos gastos,
privada da posse de si mesma, levantam-se as figuras do farmacêutico
Homais, «que só expressava a satisfação de si próprio»; ou ainda a do
senhor Bertin que Manet diz que Ingres escolheu para «estilizar uma
época, tornando-o o buda da burguesia farta, opulenta e triunfan
te»18. Figuras enigmáticas as destes burgueses vestidos de negro cujas
fisionomias impassíveis tanto podem anunciar «a morte dos senti
mentos» como conter «paixões de uma profundidade surpreendente».
197
Os homens no jogo enchem-se de estoicismo: frios e imóveis,
adquirem reputação de bons jogadores. As mulheres desfigu
ram os seus rostos encantadores como querem sem nada per
der da sua reputação21.
198
neira de agir e de falar, doce e polida, que atribui o nome de civil
àquele que dela se serve correntemente»25; e quando enfim se come
çou a ver em toda a manifestação espontânea o sinal individualmente
inquietante e socialmente condenável de perturbação: incivilidade dos
costumes, deformidade das figuras.
O domínio do eu e o controlo das paixões são elementos funda
mentais da herança psicológica da civilização progressiva dos costu
mes do homem moderno. Pretenderam, com a instauração e o respeito
de todas estas formas de vida civil, um ideal de sociedade mais suave,
mais agradável e mais civilizada, feita de permutas e de atenções recí
procas: uma sociedade pacificada pelo encanto da linguagem e da ex
pressão. Mas se o domínio do eu é uma das bases psicológicas de um
tal modelo de sociedade, não deixa de acontecer que já antes de
Rousseau a individualização pela expressão exige do homem que ele
se exprima, que o seu rosto fale, que os seus gestos tenham significa
do. Esta sociedade fez da conversação o seu fundamento, do trato o
seu princípio e da reciprocidade o seu ideal. Como vimos, ela conde
nou desde a sua origem, nas figuras do solitário e do taciturno, a re
cusa do laço social pela expressão, pois soube fazer do próprio silêncio
uma linguagem. Da mesma maneira reprova mais tarde a figura do
egoísta:
199
Talvez porque suspeitasse, sem poder verdadeiramente sempre re
conhecê-lo, que a sociedade civil é o fundamento da sociedade políti
ca. Que nas formas ao mesmo tempo pessoais e sociais de delimitação
do eu e da permuta com outrem, foram progressivamente inventadas,
no ideal de uma sociedade feita de diálogo e de abertura comedida a
outrem, no «suplemento às leis» e na «espécie de igualdade» que
constituem a urbanidade e a delicadeza, as premissas das formas polí
ticas da cidadania.
NOTAS
1 Ch. Darwin, L'Expression des émotions chez Vhomme et Panimal, Paris, 1874, p. 1.
2 Ibid., p. 5.
3 Apoia-se assim em L'anatomie et la philosophie de Pexpression (1806) de Sir
Charles Bell. La Physiologie ou le mécanisme de la rougeur (1839) pelo Dr. Burgess.
Le mécanisme de la physionomie humaine (1862) do Dr. Duchêne. De la physiono
mie et des mouvements d'expression (1865) de P. Gratiolet. Wissenschaftliches System
der Mimik und Physiognomic (1859) do Dr. Piderit. E enfim em Les Príncipes de
Psychologie (1855) de H. Spencer. Esta preponderância reconhecida à fisiologia e ao
efeito do fisiológico sobre o psicológico remonta com efeito à importância que lhe
deram no virar do século J.-G. Cabanis no seu estudo Rapports du physique et du
moral de Phomme (1802) e X. Bichat nas suas Recherches physiologiques sur la vie et
la mort (1800). O primeiro pretendendo fundar um «ciência do homem» que rompa
com o dualismo metafísico ou ontológico da alma e do corpo e que procure pensar
como um facto de observação natural, na tradição dos «ideólogos», a união das con
dições mecânicas e vitais do organismo com as manifestações da vida intelectual e
moral. Para Cabanis é precisamente essa a definição de antropologia: «Cidadãos,
permitam-me que hoje vos dê as relações de estudo físico do homem com os aspec
tos da sua inteligência; dos do desenvolvimento sistemático dos seus órgãos com o
desenvolvimento análogo dos seus sentimentos e das suas paixões: relações donde re
sulta claramente que a fisiologia, a análise das idéias e da moral, não são mais que os
três ramos de uma única e mesma ciência, a que se pode chamar, a justo título, «“a
ciência do homem”» (p. 59, ed. de 1844). Bichat, quanto a si, esforçar-se-á por pen
sar o mesmo problema nas relações entre o que ele denomina por vida «animal» (o
entendimento) e vida «orgânica» (as paixões) do homem.
4 Darwin, op. cit., p. 12.
5 Também aqui esta perspectiva já havia sido traçada por Cabanis: ao reinscrever
a antiga tradição fisiognomónica nas «relações do físico e do moral do homem», ele
soube insistir, à maneira de Condillac, na sua dimensão semiológica e na importância
dos «sinais pantomímicos, porque são os primeiros de todos, os únicos comuns a to
da a raça humana. E a verdadeira língua universal» {op. cit., p. 76).
6 «O indivíduo aprofunda-se e estrutura-se. Ao homem geral e sereno das Luzes,
o romantismo opõe a singularidade dos rostos, o espessamento da noite e dos so
nhos, a fluidez das comunicações íntimas, e reabilita a intuição como modo de co
nhecimento» (M. Perrot, Histoire de la vie privée, op. cit., t. IV, p. 416).
7 Bichat, op. cit., p. 63.
8 «A cidade (...) destrói os constrangimentos familiares ou locais, estimula as am
200
bições, atenua as convicções (...). Paradoxal, engendra ao mesmo tempo as multidões
e os indivíduos solitários» (M. Perrot, Histoire de la vie privée, op. cit., t. IV, p. 416).
9 Ver L. Chevallier, Classes laborieuses et classes dangereuses à Paris pendant la
première moitié du XIX' siècle, Paris, Plon, 1964.
10 Do mesmo modo que leva as classes burguesas a isolar-se, a pôr-se à distância,
a proteger-se das contaminações possíveis da promiscuidade popular: «As classes do
minantes que têm ódio à multidão estúpida e suja arranjam nichos protectores nos
lugares públicos e nomeadamente nos transportes em comum: balcões de teatro que
prolongam os salões, camarotes de barco ou cabinas de banhos, compartimentos de
primeira classe, evitam as promiscuidades e mantêm as distinções» (M. Perrot, His
toire de la vie privée, op. cit., t. IV, p. 307).
11 Ver R. Bonniot, E. Gaboriau ou la naissance du roman policier, Paris, Vrin,
1984. O aparecimento do romance policial como gênero literário, e a proximidade
do inquérito policial e da investigação médica, tomam sentido no surgimento deste
paradigma de indício que Ginzburg formulou (ver acima).
12 São assim as fisionomias dos forçados, tal como eram descritas na Gazette des
tribunaux em 1829, como conta André Zysberg: «Uma personagem, embora nascida
sob o céu de França, atraía os olhares porque tinha uma fisionomia sinistra que bas
tava ver uma vez para não mais se esquecer (...). De facto, tinha uma testa pequena e
caída, olhos ferozes e enfiados nas órbitas, faces salientes, um tom lívido, uma mons
truosa conformação de maxilares semelhantes às do orangotango. Estes traços são ca
pazes de sossegar a consciência timorata de um júri e o que pronunciou o veredicto
de culpabilidade pode dormir em paz» («Politiques du bagne, 1820-1850», em L'Im
possible prision, p. 169).
13 Histoire de la vie privée, t. IV, p. 320. «O desejo de um canto seu é a expressão
de um sentido crescente da individualidade do corpo e de um sentimento da pessoa
(...). Sem dúvida o homem interior precedeu o exterior» {ibid., p. 321).
14 Gerando, que no início quer observar as sociedades selvagens {Considérations
sur les diverses méthodes à suivre dans Vobservation des peuples sauvages, 1800) será
em breve constrangido a renunciar ao seu projecto devido às guerras napoleónicas.
Como nota G. Leclerc em L'Observation de Phomme {une histoire des enquêtes so-
ciales), Paris, Seuil, 1979, «passa-se da antropologia à filantropia, da observação do
homem longínquo ao amor do homem próximo (...). A sociologia vai substituir uma
etnologia impossível. Gerando vai passar do statu de “observador dos povos selva
gens” (1800) ao de “visitador do pobre” (1824) (...). O conhecimento do operário e
do indigente vai substituir o do indígena e do selvagem como ciência do homem»
(p. 56). Parent-Duchatelet {De la prostitution, 1836), Villermé {Etat physique et mo
ral des ouvriers, 1840) realizam grandes inquéritos operários; Quetelet {Du système
social, 1848) empreende observações estatísticas da sociedade.
15 C. Lombroso, op. cit., sobre a observação dos corpos e dos rostos na antropo
logia criminal de Lombroso, ver: La scienza et la colpa, Milão, Electra, 1985.
16 Darwin, op. cit., p. 17.
17 Como observa Corbin: «No final do século, este duplo problema está resolvi
do. Novas técnicas permitem conferir a cada indivíduo uma identidade invariável e
facilmente demonstrável. O sistema de reconhecimento torna logo impossível a subs
tituição da pessoa (...). Em breve interdita a metamorfose» («Le secret de 1’individu»,
Histoire de la vie privée, t. IV, p. 432). Sobre a fotografia no século xix ver as obras
recentes: Regards sur la photographie en France au XIX' siècle, Berger-Levrault, 1980;
Identités, de Disdéri au photomaton, Paris, Ed. du Chêne, 1985; «Photo/peinture»,
Critique, n.° 459-460, Ago.-Set., 1985; A. Rouillé e B. Marbot, Le corps et son ima-
ge, Photographies du XIX' siècle, Paris, Contrejour, 1986.
201
18 H. Mondor, Mallarmé, Paris, 1941, t. II, p. 393.
19 H. de Balzac, La paix du ménage, La Pléiade, t. I, p. 1000.
20 H. de Balzac, Ferragus, La Pléiade, t. V, p. 29.
21 L.-S. Mercier, op. dt., t. V, cap. CCCCLXVII, p. 44.
22 A Escola de Paio Alto (ver em particular Une logique de la communication, de
G. Bateson et. al., Paris, Seuil, 1972) soube agarrar os aspectos patológicos de tais si
tuações sem contudo se ligar à importância da gênese do processo que aí conduz; e
que permite estender os efeitos de um tal processo para além apenas das manifesta
ções patológicas.
25 A. Vincent-Buffault põe em relevo este carácter excepcional na sua História das
Lágrimas quando indica a coexistência da sensibilidade romântica e da contenção
burguesa no século xix: «As lágrimas da sensibilidade romântica (...) participam de
um processo geral de individualização da emoção do mesmo modo que o modelo de
contenção e de autoconstrangimento da burguesia do século xix, mesmo quando é
uma reacção a esta norma» (op. dt., ed. port., p. 259).
24 Ver Sennett, op. dt., e Ph. Perrot, «La vérité des apparences ou le drame du
corps bourgeois (XVIIIc-XIXe siècle)», Cahiers internationaux de sociologie,
vol. LXXVI, 1984, pp. 187-199).
25 De Vaumorière, op. cit., Entretien II, p. 21.
26 Mercier, op. cit., t. VIII, cap. DCXIII, p. 59.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO............................................................................... 7
PRIMEIRA PARTE:
A emergência da expressão............................................................. 15
203
Morte e ressurreição da fisiognomonia........................................ 81
Os sinais do anatomista................................................................. 84
Apoio, o negro e o orangotango.................................................. 87
Crânios expressivos......................................................................... 91
A linguagem do sentimento........................................................... 95
O tempo do sensível....................................................................... 98
O observador de si mesmo........................................................... 100
Os rostos da multidão...................................................................... 102
A fabricação do rosto virtuoso..................................................... 104
SEGUNDA PARTE:
O homem sem paixões................................................................... 113
204
Figuras da delicadeza: a medida e o cálculo.............................. 175
As maneiras de dissimular.............................................................. 177
Uma máscara «natural»................................................................... 180
Dos «entraves salutares»: civilidade e cidadania......................... 182