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História do Rosto

JEAN JACQUES COURTINE


CLAUDINE HAROCHE

História do Rosto
Tradução de
Ana Moura

Círculo de Leitores
© Éditions Rivages, 1988
Licença editorial por cortesia de Editorial Teorema, Lda.
Título original: Histoire du Visage • Exprimer et Taire ses Émotions
(du XVI' siècle au début du XIX' siècle)
Capa: Suposto Auto-Retrato de Antonello de Messina,
National Portrait Gallery, Londres
Impresso e encadernado para Círculo de Leitores
por SIG — Sociedade Industrial Gráfica, Lda.
no mês de Maio de 1997
Número de edição: 4322
Depósito legal número 110 525/97
ISBN 972-42-1535-0
«Não consigo lembrar-me do nome do Autor antigo
que, na presença de um Estrangeiro que não tinha aberto
a boca em sua companhia, lhe diz: “Fale, para que eu o
veja”; mas, com sua licença, parece-me que nos podem
conhecer melhor através do olhar do que pelas nossas
palavras...»
Addison, Le spectateur ou le Socrate moderne, 1716, T. I,
Discurso LXVIII, p. 439.

«O ar, o tom, o gesto, a entoação, o olhar estão submeti­


dos a costumes que se devem respeitar e as formalidades
recebidas enriquecem o prazer de estar juntos em vez de
o destruir.»
L.-S. Mercier, Tableaux de Paris, 1782-1788, T. IV,
Cap. CCCXXI, p. 102.
INTRODUÇÃO

«Há no rosto uma espécie de eloquência silenciosa que, mesmo


não agindo, age contudo», afirma o padre de Cressolles num tratado
de retórica editado no início do século xvn1. O rosto seduz com
maior segurança, mais subtilmente ainda do que as palavras. «A natu­
reza não deu ao homem apenas a voz e a língua, para serem intérpre­
tes do pensamento (...). Fez ainda falar a testa e os olhos», acrescenta
Marin Cureau de la Chambre na sua L'Art de connaitre les hommes2.
«E contudo conveniente compor o rosto segundo as circunstâncias
em que nos encontrarmos e as pessoas com as quais conversarmos»,
recomenda ainda Jean-Baptiste de la Salle no seu tratado de civilidade
cristã3. O rosto é objecto de um trabalho pessoal, indispensável à
conversação e às trocas entre os homens.
Manuais de retórica, obras de fisiognomonia, livros de civismo e
arte de conversação do século xvi ao século xvm lembram incansavel­
mente: o rosto está no centro das percepções de si, da sensibilidade a
outrem, dos rituais da sociedade civil, das formas do político. E um
conhecimento antigo que no entanto se reveste de uma tonalidade
nova desde o início do século xvi. Todos estes textos dizem e repe­
tem: o rosto fala. Ou de modo mais preciso: o indivíduo exprime-se
pelo rosto. Esboça-se um vínculo que se torna depois mais nitida­
mente marcado entre o sujeito, a linguagem e o rosto: um vínculo
crucial quanto à elucidação da personalidade moderna.
As percepções do rosto mudam lentamente, as sensibilidades à ex­
pressão desenvolvem-se progressivamente. Este é um dos traços
essenciais do crescimento do individualismo nas mentalidades. Um
«individualismo de costumes» que Philippe Ariès atribui a um processo
geral de privatização e que irá transformar profundamente a identida­
de individual entre os séculos xvi e xvm4, e reconfigurar de modo pa­
radoxal as relações entre comportamentos públicos e privados: por
um lado vai afirmar o predomínio do indivíduo, incitando-o à ex­

7
pressão pessoal. Se os finais do século xvm trazem consigo a vitória
política do indivíduo, esta vitória é também um triunfo da expressão,
de modo que Diderot pôde afirmar: «Num indivíduo cada instante
tem a sua fisionomia, a sua expressão»’. Doravante o indivíduo surge
indissociável da expressão singular do seu rosto, tradução corporal do
seu íntimo. Mas por outro lado, este mesmo movimento que o incita
a exprimir-se ordena-lhe ao mesmo tempo que se apague, que masca­
re esse rosto, que encubra essa expressão. O que Louis-Sébastien
Mercier, observador subtil das fisionomias do seu século, soube ob­
servar: «O homem (...) teme mostrar toda a sua alma; sabendo que
ela se refugia nos olhares, o homem oculta o seu movimento expres­
sivo»6. Exprimir-se, calar-se; descobrir-se, mascarar-se: estes parado­
xos do rosto são os do indivíduo7 e constituem o ponto de partida
deste livro.
Estão presentes elementos destes paradoxos sob diferentes formas
em numerosos trabalhos publicados desde o início do século e mais
ainda nos últimos vinte anos, sem que este carácter paradoxal tenha
constituído um argumento sempre manifesto. E o que se passa nos
trabalhos de Norbert Elias e de Max Weber: foi sob os termos gerais
de «civilização dos costumes», para o primeiro8, e, para o segundo,
de «racionalização de comportamentos práticos»9, que ambos pensa­
ram este processo de afirmação individual, mas mais ainda de contro­
lo de si próprio, de repressão das pulsões, de contenção. Para Elias,
no âmbito da sociedade da corte e do desenvolvimento da civilidade;
para Weber, ligado aos factores religiosos na gênese de uma psicolo­
gia burguesa e capitalista.
Michel Foucault, por seu lado, tinha empreendido o captar esta
racionalização dos comportamentos individuais através da extensão
da noção de «disciplina» nos séculos xvn e xvm10; supunha também
que o desenvolvimento do Estado implicava novas formas de «indivi-
dualização»11: transposição no espaço político de uma forma de po­
der muito antiga, nascida nas instituições cristãs, o poder pastoral.
Poder que se exerce sobre o corpo, os gestos, os comportamentos,
que pretende penetrar as almas e pôr a nu a interioridade de cada um.
Na análise destes poderes, disciplinares ou individualizantes, estão
ausentes à partida os paradoxos constitutivos da individualidade. Só
mais tarde Foucault voltará a estes textos, consagrados à educação do
príncipe, que dizem respeito à arte de governar e mostram que o go­
verno dos homens não é dissociável do governo de si próprio12.
Esta última preocupação vai ao encontro das que souberam ver na
cortesia ou na etiqueta mais do que uma simples maneira de estar
na sociedade; que souberam discernir, mesmo no centro das regras de

8
civilidade, os meios que contribuíram para a constituição do Estado
moderno, «os instrumentos políticos coercitivos através dos quais os
oficiais reais puderam aumentar o seu poder sobre a sociedade»13. Ri-
chelieu concretiza esta política absolutista que visa controlar, que
quer domesticar olhares, posturas e propósitos. Orest Ranum, quan­
do evoca a figura do cardeal «(...) preocupado a vida toda com o es­
tudo teórico e prático das relações entre linguagem, gestos e poder»,
tentou apresentar «(...) a carreira do cardeal como a de um filósofo
político e a de um praticante da cortesia»14; e diz em poucas palavras
o que nós pretendemos aqui: encontrar, para além do código de boas
maneiras que vela com uma atenção vigilante o rosto e a expressão, as
qualidades morais, as disposições psicológicas e mais ainda os funda­
mentos antropológicos e éticos do que liga os homens entre si, os
fundamentos da sociedade civil. E assim poder pensar a emergência
histórica de estruturas psicológicas específicas ligadas às regras e aos
rituais da sociedade civil, mas também aos poderes e às leis da socie­
dade política.
Roger Chartier parecer indicar uma perspectiva semelhante quando
põe em relevo, na «reformulação» do conceito de civilidade de Jaucourt
para a Encyclopédie, um encontro destes entre «as leis, os costumes e as
maneiras»15. Ranum ou Chartier assim fazem compreender que a ci­
vilidade, as suas regras, os seus gestos e as suas configurações podem
permitir englobar o político e aproximar deste modo a noção de civi­
lidade «do sentido original, comunitário e político, de civilitas»^.
Um certo número de trabalhos recentes partilham uma preocupa­
ção semelhante com o corpo, o rosto, a expressão, os olhares, os ges­
tos, as posturas. Nem sempre têm o mesmo alcance; nem sempre o
mesmo interesse. Vejamos os de Erving Goffman: ligam-se, na pers­
pectiva de uma psicologia interaccionista, ao estudo das interacções
pessoa a pessoa e consideram estas «interacções naturais» como um
objecto de estudo em si. Goffman vê no domínio do rosto um jogo
crucial para todo o indivíduo: «a manutenção de uma certa ordem
expressiva», de uma certa imagem de si à qual o indivíduo se deve
conformar. Situa-se inversamente no caso de «perder a face», de não
poder «guardá-la», «do risco de se trair ou de ser desmascarado»17.
De forma repetida Goffman utiliza os termos de «máscara», «ima­
gem», «representação de si»; de «porte», «constância», «formas ego­
cêntricas da territorialidade»: «o indivíduo que se comporta bem,
convenientemente, manifesta atributos entre os quais: discrição, mo­
déstia (...) controlo das palavras e dos gestos; controlo das emoções,
dos apetites e dos desejos; sangue-frio na adversidade»18. Estes ter­
mos não estão inscritos nem num quadro teórico nem num quadro
histórico preciso. Colocando-se num ângulo que se pretende estrita­
mente empírico, Goffman não tenta em momento algum elucidar estas
descrições à luz da racionalização dos comportamentos que vigoram
do século xvi ao século xix, tende a ignorar as regras da civilidade
que determinam o controlo de si e dos excessos. Talvez, sem dúvida,
como ele próprio confessa porque «a ideia subjacente ao [seu] objec-
tivo é a de que, mesmo com as suas diferenças culturais, os homens
são semelhantes por todo o lado»19.
A perspectiva de Richard Sennett, que ele apresenta como socio-
política, provém pelo contrário de uma aproximação mais profunda e
mais complexa; com efeito este autor elabora uma teoria da expressão
em público, e recorre para isso à história dos séculos xvm e xix. Sen­
nett toma por ponto de partida os comportamentos da classe burgue­
sa citadina do século xvm; a aparência exterior uniformiza-se; já não
se notam as diferenças sociais e os sinais distintivos, e «por este facto
o desconhecido é envolvido por um mistério maior»20. As pessoas es­
condem as emoções, os sentimentos; tornam-se mais reservadas, mais
prudentes e consequentemente menos expressivas.
Mas para além da necessidade de manter as distâncias perante os
desconhecidos, Sennett vê a razão desta inexpressividade no acento
posto na autenticidade psicológica. Quanto mais o indivíduo se vê in­
citado a exprimir o seu eu mais profundo, as suas emoções íntimas,
mais submetido fica a essa forma de poder que Foucault designa com
a expressão de «governo pela individualização», «forma de poder que
se exerce sobre a vida quotidiana (...) [que] designa (os indivíduos)
pela sua individualidade própria, e os liga à sua identidade (,..)»21;
quanto mais reservado se mostra, esforçando-se por proteger-se e
dissimular-se, mais inexpressivo se torna.
Sennett distingue assim uma expressão individual, natural e priva­
da de uma expressão pública ritualizada. Segundo ele é a confusão
entre uma expressividade que assenta nos rituais exteriores ao indiví­
duo e a expressão individual do eu «autêntico» que explica o declínio
da vida pública, da sociabilidade. O declínio da expressividade em
público, e o silêncio relativo do rosto, explicar-se-iam assim pelos
progressos de uma sociedade que ele qualifica de «intimista», de
«narcisística», uma sociedade centrada no eu. Julgado pela sua apa­
rência, o indivíduo é-o com efeito pela sua interioridade, uma vez
que o carácter se lê no rosto, a sua aparência é expressão directa do
eu profundo. Sennett dá assim uma inscrição histórica às formas mais
contemporâneas dos paradoxos do individualismo: «a sociedade inti­
mista favorece a incivilidade»22, o narcisismo é uma actividade ascéti­
ca; ao analisar psicologicamente todas as relações, julgando suprimir

10
convenções e artifícios, paradoxalmente entrava os poderes expressi­
vos do indivíduo.

Dever exprimir-se, dever calar-se — ponto de partida desta obra;


este paradoxo ordena a sua estrutura.
Com efeito, uma história do rosto seria em primeiro lugar uma
história do emergir da expressão, desta sensibilidade crescente, desta
atenção mais exigente incidindo sobre a expressão do rosto como sinal
da identidade individual, a partir do século xvi2}. A individualidade
expressiva será aí tomada nas formas de observação do homem natural,
na mudança da relação entre o homem exterior e o homem interior,
entre o homem físico e o homem psicológico. E por isso que reserva
um grande lugar à tradição fisiognomónica: recorre ainda a escritos
médicos e anatômicos, e também aos textos para pintores, a certos escri­
tos estéticos. Esta abordagem no entanto não se inscreve nas tradições
estéticas ou antropológicas de uma história da mímica, da caricatura,
da máscara, se bem que esses objectos aí possam figurar. Também
não se confunde com o modo essencial de representação do rosto: o
retrato. Se bem que uma história do rosto se cruze de várias maneiras
com a história do retrato, e siga muitas vezes um caminho paralelo,
por vezes até mesmo reforçando-a. Embora o retrato seja um indica­
dor principal das novas estruturas mentais e sociais, e da expressivi­
dade individual, os rostos de uma época não se esgotam no reflexo
que o retrato dá.
Uma história do rosto é ao mesmo tempo a história do controlo
da expressão, das suas exigências religiosas, das suas normas sociais,
políticas e éticas que contribuíram desde o Renascimento para o apare­
cimento de um tipo de comportamento social, sentimental e psicológico
baseado no afastamento dos excessos, no silenciamento do corpo24. Es­
tas exigências fizeram nascer um homem sem paixões com um com­
portamento moderado, medido, reservado, prudente, circunspecto,
calculado; muitas vezes reticente e por vezes silencioso. O homem
racional das elites e depois das classes médias. O homem das paixões,
o homem espontâneo e depois impulsivo, apagou-se progressivamente
por detrás do homem sem paixão. Mas no nível mais profundo deste
homem sem paixão abriga-se o homem sensível e expressivo. Aqui,
procuram-se os seus traços na observação do homem social. Recorre-
-se aos manuais de civilidade e de saber-viver, da arte de conversação,
aos tratados de retórica, mas também às memórias, correspondências
e escritos de moralistas2’ para captar as mudanças das sensibilidades
face ao rosto como expressão de si e de ligação entre os homens nas
circunstâncias da vida social: a troca, a conversação, o silêncio, as
formas que a sociedade civil requer.

11
Traçar uma história individual e social dos rostos, em que o político
se junta ao psicológico na questão da expressividade, é querer fazer aqui
a história desta paradoxal imposição à autenticidade e à conformida­
de, à expressão e ao apagamento, à espontaneidade das emoções e ao
silêncio das figuras26. E procurar a gênese do indivíduo moderno numa
antropologia histórica «dando a primazia ao movimento e à transfor­
mação, aos gestos e aos processos (,..)»27; uma antropologia histórica
que se esforçará por retomar e prolongar o programa que Michelet
propõe no seu prefácio de 1869 à Histoire de France*. «Estudar», es­
creve Le Goff, «a história material e moral das sociedades, a história
do biológico e a história do imaginário (...) procurando agarrar o
homem inteiro em sociedade e atender tanto ao escrito como ao oral
e ao gesto, integrando assim uma história do corpo dos homens em
sociedade»1*.

NOTAS

1 Padre de Cressolles, Vacationes autumnales sive de perfecta oratoris actione et


pronuntiatione, Paris, 1620; ver M. Fumaroli, «Le corps éloquent: une somme à'ac-
tio et pronuntiato rhetorica au XVIIC siècle, Les Vacationes Autumnales du père
Louis de Cressolles (1620)», em XVIIe siècle, n.° 132, Julho/Setembro 1981, p. 250.
2 M. Cureau de la Chambre, L’Art de connaitre les hommes, Paris, 1659, p. 1.
3J. B. de la Salle, Les Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne, 1703,
p. 4 (ed. de 1835).
4 Ph. Ariès, «Pour une histoire de la vie privée», em Histoire de la vie privée, to­
mo III, Paris, Seuil, 1986, pp. 7-19. Este processo tem origem nos progressos da bur­
guesia, do comércio, do espírito de empresa; na extensão do papel do Estado que cada
vez mais directamente legisla e controla o comportamento público dos indivíduos;
no desenvolvimento de práticas de linguagem privadas — a leitura silenciosa, o diário
íntimo — que favorecem o isolamento e a intimidade; e também nas reformas reli­
giosas que exigem dos fiéis uma devoção mais interior na confissão, o exame de
consciência.
5 Diderot, Essais sur la peinture, Paris, Hermann, 1984 (1795), p. 371.
6 L. S. Mercier, Tableaux de Paris, 1782-1788, tomo V, Cap. DXVII, p. 176.
7 A este respeito o rosto inscreve-se na ambivalência geral das manifestações indi­
viduais da expressividade que Michelle Perrot realça: «Não há nada menos espontâ­
neo que uma carta; nada menos transparente do que uma autobiografia feita tanto
para sancionar como para revelar (...), as subtis artimanhas do esconder/mostrar (...)»
{Histoire de la vie privée, op. cit., tomo IV, p. 11.)
8 N. Elias, La Dynamique de POccident, Paris, Calmann-Lévy, 1973 (1939); La
société de cour, Paris, Calmann-Lévy, 1974 (1969); La civilisation des moeurs, Paris,
Calmann-Lévy, 1982 (1939).
9 M. Weber, L’Éthique protestante et Pesprit du capitahsme, Paris, Plon, 1964
(1920).
10 M. Foucault, Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975.

12
11 H. Dreyfus e P. Rabinow, Michel Foucault: um parcours philosophique, Paris,
Gallimard, 1984, pp. 302-306.
12 Evoca nestes termos La Politique du Prince (1653), de F. de la Mothe le Vayer:
«Procurando fazer a tipologia das formas de governo, F. de la Mothe le Vayer (...)
dirá que essencialmente há três tipos de governo e cada um refere-se a uma forma de
ciência ou de reflexão particular. O governo de si próprio que se refere à moral; a ar­
te de governar oportunamente uma família que se refere à economia; e, por fim, a
ciência de bem governar o Estado que se refere à política» («Foucault hors les murs»,
Actes, n.° 54, 1986, p. 9). E nesta perspectiva que M. Foucault tinha abordado nos
seus últimos trabalhos esta «lenta formação, durante a Antiguidade, de uma herme­
nêutica de si», isto é, as práticas «pelas quais os indivíduos foram levados a incidir a
atenção sobre si próprios», a decifrar-se; nas morais da antiguidade grega ou greco-
-romana, «põe-se a tônica na relação consigo mesmo que permite não se deixar levar
pelos apetites e pelos prazeres, controlá-los e ser superior a eles, de manter os senti­
dos em estado de tranquilidade, de ficar livre de toda a escravidão interior com res­
peito às paixões e de atingir um modo de ser que pode ser definido pelo pleno gozo
de si ou pela perfeita soberania de si sobre si» (M. Foucualt, «Usage des plaisirs et
tecniques de soi», Le Débat n.° 27, Nov. 1983, pp. 48, 49 e 71; ver também L'Usage
des plaisirs e Le Souci de soi, Paris, Gallimard, 1984).
13 O. Ranum, «Courtesy, Absolutism and the rise of the French State 1630-
-1660», Journal of Modern History, n.° 52, 1980, p. 427.
14 Ibid., p. 432.
15 «Segundo Montesquieu, Jaucourt acaba o artigo dando o exemplo da China,
referência na medida em que a civilidade, que manifesta a ligação social fundamental,
foi aí regulamentada e imposta pelo legislador (...). Esta evocação de um Estado em
que as leis, os costumes e as maneiras foram fundidas num mesmo código fornece a
formulação mais radical para repensar o conceito de civilidade» (R. Chartier, Lectu-
res et lecteurs dans la France de VAncien Regime, Paris, Seuil, 1987, p. 71).
16 Ibid.
17 Ver em particular Erving Goffman, Les rites d’interaction, Paris, Minuit, 1974.
18 Ibid., p. 69. Formulações das quais se encontra um rasto mais antigo no trabalho
que Marcei Mauss tinha consagrado às «técnicas do corpo», quando evocava «a educa­
ção do sangue-frio»: «esta resistência à emoção avassaladora é uma coisa fundamental na
vida social e mental» (Soáologie et anthropologie, Paris, P.U.F., 1950, p. 385).
19 Goffman, op. cit., p. 41. Esta convicção junta-se a um outro conjunto de traba­
lhos sobre o carácter universal ou ao inverso culturalmente determinado das expres­
sões faciais. Tais trabalhos, que prolongam o programa outrora aberto por Darwin a
propósito da expressão humana, parecem ter chegado à conclusão: 1) que a expressão
facial das emoções é universal; 2) que a função das culturas, «as regras de expressão» das
emoções variam (ver sobre este ponto: P. Ekman, «Universal and cultural differences
in facial expressions of emotions», Nebraska Symposium on Motivation, 1972, Lin-
coln, Univ. of Nebraska Press; P. Ekman e H. Oster, «Facial expressions of emo-
tion», Annual Review of Psychology, 1979, n.° 30, pp. 527-554). Estes trabalhos tratam
geralmente as emoções na perspectiva de stimuli externos e unívocos. Na maior parte
ignoram este facto essencial: que um rosto, que uma expressão, possam não ser
transparentes; que um rosto alegre possa exprimir tristeza e o sorriso mais doce dis­
simular a raiva. O que só se pode pensar a partir das relações problemáticas entre ex-
terioridade e interioridade de um sujeito; e também a partir das ligações complexas
entre antropologia e história, indispensáveis para procurar elucidar os objectos sim­
bólicos e culturais.
2C Richard Sennett, Les Tyrannies de Pintimité, Paris, Seuil, 1979, p. 29.

13
21 H. Dreyfus, P. Rabinow, op. cit., p. 302.
22 Sennett, op. cit., p. 205.
23 Encontramos aqui as perspectivas estimulantes traçadas por C. Ginzburg no seu
trabalho de formulação de um «paradigma do indício», essa constelação tão antiga de
disciplinas baseadas na decifração dos sinais. A referência à fisiognomonia, central na
perspectiva de Ginzburg, é igualmewnte central aqui. Embora o ponto de vista difira
um poucochinho: o trabalho de Ginzburg privilegia uma perspectiva de identifica­
ção, a do médico, do fisiognomonista, do conhecedor de quadros, do detective. Que­
remos insistir aqui também na dimensão da expressão; tentar agarrar, para além dos
traços imóveis, o movimento de uma subjectividade; e colocar assim, a partir dos si­
nais que se manifestam à superfície do corpo, a questão da identidade individual que
os exprimiu e não apenas a da identificação que eles podem permitir; mesmo se estas
duas perspectivas são com toda a evidência indissociáveis. Pois, como observa A. Cor-
bin, «muitos indícios colocam com efeito como essenciais a história do olhar sobre si»
(«O segredo do indivíduo», Histoire de la vie privée, tomo IV, p. 421). O trabalho
de Ginzburg abre por outro lado a perspectiva de uma semiologia histórica. Compor­
ta elementos e sugestões que permitem voltar às próprias origens dos signos, como
mostrou admiravelmente Jean Brottéro a propósito dos adivinhos e médicos de Su-
mer. E de tornar a dar assim vida a um projecto semiológico que derivou para uma
semiótica a-histórica e formal preocupada unicamente com a dimensão textual dos
signos. Ver: C. Ginzburg, «Sines, traces, pistes. Racines d’un paradigme de 1’indice»,
Le Débat, Nov. 1980, n.° 6; J. Brottéro, «Simptômes, signes, écritures», Divination
et racionalité, Paris, Seuil, 1974, pp. 70-200.
24 Controlo da expressão, silêncio do corpo: esta procura vai ao encontro da de
A. Corbin quando ele resolve traçar «as etapas desta profunda modificação de natu­
reza antropológica» onde se instala progressivamente esse «silêncio olfactivo» que
responde a um acentuar da sensibilidade aos odores. Silêncio da expressão do rosto e
silêncio «olfactivo» do corpo são efeitos deste movimento de pôr em ordem, de vigi­
lância, de controlo das condutas e das sensibilidades (ver A. Corbin, Le miasme et la
jonquille. Lyodorat et 1'imaginaire social XVIIT-XIX' siècle, Paris, Flammarion,
1986, p. 2; ver igualmente R. Mandrou, Introduction à la France Moderne. Essai de
psychologie historique, 1500-1640, Paris, 1961, em particular no Cap. III, «L’Homme
psychique: sens, sensations, émotions, passions» e conclusão geral.
25 Voltamo-nos assim necessariamente para os textos «prescritivos», cujo objecto
essencial é formular as regras de conduta, como o sublinhou M. Foucault a propósi­
to dos seus últimos escritos, e R. Chartier a propósito da história da civilidade (op.
cit.); mas também para textos «descritivos», como se verá mais adiante.
26 História complexa, história «opaca» como observa muito justamente M. Perrot
«desde o momento em que se deseja ultrapassar uma história social do privado e fa­
zer, para além dos grupos e das famílias, uma história dos indivíduos, das suas repre­
sentações e das suas emoções (...)» (Histoire de la vie privée, tomo IV, p. 13).
27 Jacques Le Goff, «Conclusions» em Object et méthodes de Fhistoire de la cul-
ture, Actes du Colloque franco-hongrois de Tihany, 10-14 Outubro 1977, p. 247.
28 Ibid.
PRIMEIRA PARTE

A EMERGÊNCIA DA EXPRESSÃO
Preâmbulo:

A INVENÇÃO DO HOMEM EXPRESSIVO

Do século xvi ao século xvm vê-se desenvolver lentamente um


projecto fundamental. Iniciou-se em longínquas origens religiosas e
retóricas e os seus efeitos na formação das mentalidades bem como as
suas consequências políticas desenvolvem-se muito além na constitui­
ção do homem moderno. Tem em vista a transformação do homem, a
sua melhoria e a educação da sua natureza.

Formação do homem: civilidade e linguagem

A civilidade erasmiana aprende-se e adquire-se. Ao contrário da ci­


vilidade de origem aristocrática tal como a definem os tratados da corte,
contesta as hierarquias sociais e propõe-se enobrecer o homem através
da educação do comportamento e do espírito. Propõe uma aprendi­
zagem das boas maneiras e dos comportamentos corporais indissociá­
veis da linguagem: saber viver não pode ser concebido fora do saber
falar que assenta em dois talentos essenciais, eloquentia e sapientia, o
domínio da linguagem e o domínio de si próprio. Existe porém entre
civilidade — quer seja de origem erasmiana ou de essência aristocráti­
ca — e retórica, modelo Renascimento, uma estreita relação: prove­
niente das dependências que instauravam as regras de honra ou de
cortesia da vida cavalheiresca, esta relação liga-se com a emergência
de laços mais estreitos entre os homens e com a constituição de uma
sociedade civil. A civilidade manifesta-se nas maneiras, mas também
na conversação1. A civilidade está pois estreitamente ligada a uma arte
da linguagem em sociedade, ao ponto de La Civile Conversation de
Guazzo basear na conversação a própria identidade do homem:

17
Quem vir a interpretação da palavra «homem», a qual (segun­
do alguns pensam) significa em língua grega «conjunto», ime­
diatamente verá que ninguém pode ser um verdadeiro homem
se não conversar com os outros2.

A linguagem torna-se constitutiva da identidade de cada homem e


da ligação dos homens entre si. E necessário ver aqui a razão desta
sucessão ininterrupta de artes da linguagem que se estende ao longo
da idade clássica: arte de falar, mas também arte de calar-se, arte de
conversar, mas também arte de escrever, factores de moderação na
palavra, de comedimento na expressão; arte de se apresentar em so­
ciedade, arte de simular ou de dissimular quando a prudência o exige.
Todas estas artes tecem os mais finos laços da relação social quando
se trata de conhecer, convencer, dominar, governar, enganar; todas
estas artes são cultivadas por prazer, gratuitidade ou desinteresse, por
aborrecimento às vezes ou ainda por táctica, com fins políticos ou
utilitários.
Civilidade e conversação são portanto artes, quer dizer habilidades.
Com efeito, na idade clássica, as artes são disciplinas que pressupõem
um saber, mas que não são verdadeiramente ciências; que reclamam
de quem as pratica prudência e sabedoria, tacto e intuição, uma vez
que o saber é inseparável da ética e da conduta pessoal na existência
social: a arte supõe um cálculo do eu, uma medida do outro, o senti­
do da circunstância. Neste exercício, o uso da linguagem, o cuidado
na expressão, não fazem calar o corpo; a aparência, a boa presença e
a postura devem harmonizar-se com a elegância e a exactidão do ver­
bo. Um saber, uma ética e uma estética da linguagem e do corpo que
assim liguem a civilidade à conversação.

O aparecimento e o desenvolvimento da noção de civilidade, a sua


estreita associação com a educação da linguagem (compreendida no
sentido lato de linguagem do corpo, do gesto e do rosto tanto como
da palavra) e um domínio de si mesmo são portanto prova de uma
profunda transformação do vínculo social: enquanto pouco a pouco
se vão desfazendo a ordem do nascimento e a hierarquia do sangue,
no espaço da linguagem constroem-se práticas em que as relações en­
tre os homens vão encontrar uma outra expressão, sem dúvida mais
profunda e mais complexa. Assim, a violência física abandona pro­
gressivamente o terreno em que os corpos se chocam para ir subli-
mar-se na agudeza, a veemência retórica que irá embaraçar aquele
que visa. A chegada, ou melhor, o renascimento da «idade da elo­
quência», mais do que o de uma simples arte de convencer, marca um

18
/. <* /’//• A P/A’í/ Zí/./í

Figura 1 — (Foto B. N.).

19
deslocamento nas práticas: a dissolução das sociedades política e civil
medievais abre um tempo e um espaço em que, pouco a pouco, se vai
basear uma legitimidade nova sobre o uso e domínio do corpo e da
linguagem. E no âmbito da corte absolutista que realmente se consti­
tui tal legitimidade, num lugar em que a violência física foi banida e
onde se ergueu pouco a pouco entre os corpos o «muro invisível»
dos pudores e das distâncias3.

Observação do homem: civilidade e fisiognomonia

Com a civilidade surge um segundo imperativo: a observação das


posturas exteriores do corpo4. A civilidade depara então com a tradição
fisiognomónica5. Convém ainda notar aqui que aquilo que Erasmo
reserva dos enunciados fisiognomónicos constitui um deslocamento,
sublinha o olhar, o movimento, o gesto e mais geralmente prende-se
à expressividade do corpo, elemento marginal nas fisiognomonias
contemporâneas do seu tratado, que tendem a repetir as lições medie­
vais ou antigas, a privilegiar a morfologia em detrimento da expres­
são: e será preciso esperar a obra de Porta no fim do século xvi para
detectar um tal deslocamento no interior da própria fisiognomonia.
Assim, portanto, na observação externa do corpo humano, o tratado
de Erasmo não se contenta em retomar os preceitos imemoriais que,
desde a primeira fisiognomonia atribuída a Aristóteles, ligam o aspec­
to físico do corpo às qualidades morais da alma. Tem indubitavel­
mente, pela ênfase que confere à expressão e ao movimento do corpo
em detrimento da natureza e da fixidez dos traços, um novo tom.
Com efeito, a civilidade erasmiana, por oposição ao carácter impera­
tivo e, afinai, exterior ao homem, dos preceitos de cortesia medieval,
é baseada numa correspondência entre a aparência e o ser, o compor­
tamento e o carácter, o acto e a intenção. A civilidade possui, pois,
uma base comum com a fisiognomonia: a conduta e os costumes do
homem encontram-se ali definidos pela equivalência entre o homem
«exterior» visível e o homem «interior» escondido. R. Chartier iden­
tificou assim um «princípio ético universal como base da civilidade»:

Todos os capítulos da Civilidade pueril são baseados na equi­


valência entre o visível e o invisível, o exterior e o íntimo, o
social e o individual. As posições do corpo, as mímicas do
rosto, as condutas (...) em sociedade (...) não são portanto re-

20
guiadas apenas pelas exigências da vida em relação elas
possuem um valor moral que leva Erasmo a considerá-las nu­
ma perspectiva antropológica e não social6.

Consideremos agora alguns dos traços essenciais do projecto fi-


siognomónico. No frontispício da segunda edição de UArt de connaitre
les hommes (1660) de Marin Cureau de la Chambre (ver figura 1), há
um sábio frente a frente com um busto de gesso. Na parede, uma co-
lecção de cabeças moldadas. Não são realmente rostos, mas fácies, ti­
pos morfológicos de traços marcados: lábios carnudos, nariz arqueado
ou chato, olhos esbugalhados e testas fugidias numas, aparência negrói-
de noutra, evocam uma humanidade de proveniência longínqua ou de
origem «bestial», de estatuto inferior ou incerto. Esta série de fisio­
nomias grotescas — cabeças sem corpo, rostos sem expressão — su­
gere a ideia de uma classificação antropológica dos rostos. Sobre a
mesa, um compêndio de observações; na parede, uma representação
anatômica; no chão, instrumentos de medição. E um trabalho de na­
turalista que está sendo elaborado. E Cureau é mesmo médico e a sua
UArt de connaitre les hommes tem lugar num projecto de história
natural do homem. Esta história natural opera uma separação da hu­
manidade bárbara, uma subespécie inexpressiva e grotesca. UArt de
connaitre les hommes, como antropologia física, realiza uma divisão
dos rostos.
O saber ocupa assim o primeiro plano. Além dele, uma outra ce­
na: agora já não se está na penumbra da superfície silenciosa, solitária
e reflexiva em que o saber se constitui, mas no espaço claro e público
das práticas, do comércio dos homens. Um homem de porte nobre
ocupa o centro. Talvez um grande senhor, ou até o rei. O rei de
quem Cureau é o médico assistente. Cureau é médico mas também
cortesão; e isto assemelha-se muito a uma cena da corte onde se re­
presentam rituais de civilidade. O saber que se cria na penumbra do
gabinete não se destina, portanto, a permanecer ali; a ambição da arte
de conhecer os homens é fornecer a cada um um guia de conduta na
vida civil'.

É o guia mais seguro de que se pode dispor para se conduzir


na vida civil e aquele que dele se servir poderá evitar mil erros
e mil perigos em que se encontra em risco de cair a qualquer
momento (...). Quase não há acção na vida em que esta Arte
não seja necessária: a instrução das crianças, a escolha dos
servidores, dos amigos e das companhias não podem ser bem

21
feitas sem ela. Mostra a ocasião e os momentos favoráveis em
que se deve agir, em que se deve falar: ensina a maneira como
se deve fazer, e sendo necessário inspirar um conselho, uma
paixão, um desígnio, conhece todas as passagens que os po­
dem fazer entrar na alma. Finalmente, e querendo seguir a
opinião do sábio, quem nos defende ao falar com um homem
colérico ou um invejoso e ao encontrarmo-nos na companhia
de gente má, quem pode salvar-nos desses maus encontros se­
não a Arte de que falamos?7

A fisiognomonia reencontra então a civilidade: a observação do


rosto é um instrumento de domínio dos outros. O projecto fisiogno-
mónico inscreve-se assim no espaço da observação natural do ho­
mem, visando estabelecer uma antropologia física, mas também no
espaço das práticas civis, desta vez na dependência de uma antropolo­
gia política e social. Mas entre civilidade e fisiognomonia a acentuação
desloca-se: as fisiognomonias figuram mais na ordem das representa­
ções e do lado da natureza do homem, ao passo que os tratados de
civilidade surgem antes na das práticas e do lado dos comportamentos
humanos. Não se poderia, porém, pensá-los separadamente: «Para pra­
ticar a civilidade, é necessário ter o dom da observação. E preciso co­
nhecer os homens e descobrir o que os leva a agir»8. Desta conjunção
entre observação do homem e prática da civilidade, Cureau de la
Chambre foi, mais ainda que outros, uma figura emblemática. Médi­
co, cortesão e fisionomista, Cureau exercia junto de Luís XIV uma
espécie de função divinatória. Conta-se assim que o rei, quanto tinha
de atribuir uma função, interrogava Cureau, que apreciava o postu­
lante pela sua fisionomia, à maneira de um oráculo. Assim, a ambição
última de L’Art de connaitre les hommes é, para Cureau, editar «re­
gras para as Artes e as Ciências, leis civis para manter a sociedade dos
homens e máximas para a conduta de cada um em particular»9.

O paradigma da expressão

Observar, conhecer, educar, governar os homens; e mais ainda,


observar-se, conhecer-se, conduzir-se e dominar-se são uma só e
mesma preocupação, um só e mesmo gesto. Preocupação primordial
nos livros de civilidade, o conhecimento e domínio de si próprio se­
rão também imperativos continuamente recordados nos tratados de
fisiognomonia.

22
A partir do século xvi desenvolve-se assim um conjunto de conheci­
mentos e práticas que vão, durante mais de dois séculos, substituir a
pouco e pouco as forças obscuras e as marcas gravadas do destino, o
silêncio da presença divina, os impulsos súbitos e inarticulados do
corpo, os laços ditados pela origem e as permutas prescritas pela tra­
dição, uma racionalidade nova que privilegia a expressão do homem
pela linguagem. Apelando às ciências e às artes, ao mesmo tempo po­
lítica e ética, esta configuração supõe a instauração de laços sociais re­
forçados e a emergência de uma nova individualidade psicológica.
De uma tal configuração, o humanismo renascente constitui sem
dúvida o fermento intelectual, a subida da burguesia um elemento
histórico essencial e a representação clássica do homem um ideal éti­
co e estético: mas ela tem antes origem em fontes religiosas e filosófi­
cas longínquas que haviam feito do verbo a proveniência de tudo; ela
humanizou estas antigas origens e a sua influência prolongou-se bem
além do século xvm. A reconfiguração da identidade colectiva e indi­
vidual afirma em primeiro lugar que a linguagem é a própria natureza
do homem. Ou melhor ainda: a linguagem permite a apropriação pelo
indivíduo da sua própria natureza. O indivíduo retoma progressiva­
mente a palavra daquele que lha havia dado. E a expressão pela lin­
guagem, mais ainda a expressividade no sentido lato que define a hu­
manidade e a separa radicalmente do orgânico e da animalidade. Pode
falar-se, neste caso, de um paradigma da expressão.
Com efeito, há que falar de expressão e já não apenas de lingua­
gem. O paradigma da expressão não poderia ser entendido a partir de
uma problemática estreitamente delimitada: na categoria de «expres­
são» é preciso ver uma concepção das trocas linguísticas que não diz
apenas respeito ao uso da palavra, mas ao homem por inteiro. E, em
primeiro lugar, ao seu corpo: como o verbo, o corpo é expressão, in­
térprete do pensamento, linguagem natural da alma; é, como nos diz
Cureau, «toda a alma derramada no exterior».

Porque a natureza não deu apenas ao homem a voz e a língua


como intérpretes do seu pensamento; na desconfiança de que
delas pudesse abusar, fez ainda falar o seu rosto e os olhos pa­
ra as desmentir quando elas não fossem fiéis. Numa palavra,
ela derramou toda a sua alma no exterior e não é necessária
janela para observar os seus movimentos, as suas inclinações e
os seus hábitos porque eles mostram-se no rosto onde estão
escritos em caracteres bem visíveis e manifestos10.

23
O paradigma da expressão designa assim o processo pelo qual a
linguagem vai pouco a pouco passar a ser a medida de todas as coisas,
dar sentido aos comportamentos, penetrar profundamente a interiori-
dade subjectiva e fazer do corpo o lugar expressivo de uma voz íntima.
Inscrita na racionalização dos comportamentos e no desenvolvi­
mento do individualismo, a nova importância que a categoria de ex­
pressão toma durante a idade clássica apresenta no entanto aspectos
paradoxais: responde por um lado a um desejo de transparência polí­
tica e social que se manifesta na abundante literatura consagrada à de-
cifração do comportamento individual nos tratados de fisiognomonia
e na que visa a codificação das condutas através dos manuais de civili­
dade. Assim, Cureau, fisionomista de talento, cujo poder aguardava
um suplemento de olhar que desvendasse as qualidades ocultas e as
intenções dissimuladas, podia escrever:

Porque o conhecimento que se pode ter dos homens é enga­


nador (...) e perigoso: de forma que só aquele que esta Arte
permite não tem fraude ou perigo (...). Ensina a descobrir os
desígnios ocultos, as acções secretas e os autores desconhecidos
das acções conhecidas. Finalmente não há dissimulação tão pro­
funda onde ele não ache poder penetrar e a que não pretenda ti­
rar a maior parte dos véus de que se encontra coberta11.

Concebe-se que nas intrigas de corte a decifração do rosto tenha


ganho tanta importância que se tenha começado a criar artes para se
ser nelas exímio. Mais geralmente, este controlo de aparência mani-
festa-se, mediante a sensibilidade da expressão, pelo cuidado em des­
vendar o outro; pela vigilância quanto à dissimulação de que cada um
é susceptível.
Se as fisiognomonias expõem a expressão individual a uma obser­
vação detalhada, mesmo desconfiada, as civilidades, quanto a elas, vi­
sam codificar e dominar as expressões nos comportamentos. Espera-
-se assim que a parte íntima do homem venha a conformar-se com o
comportamento do seu exterior: o que A. de Courtin, por exemplo,
designará pelo termo «atitude»12.
Tais tentativas não são, no entanto, de forma unívoca, sinônimos
de sujeição a comportamentos conformes. Contribuem de maneira
paradoxal para o desenvolvimento do individualismo de costumes: se
codificam as condutas, tornam-nas igualmente complexas. E também
as tornam opacas. Com efeito, implicam da parte de cada um traba­
lho de diferenciação nas atitudes e sensibilidade do outro. Permitem a
constituição de um espaço interior individual. Exigem, portanto, to­
do um trabalho de controlo e de domínio individual das emoções, le­

24
vando cada um a virar-se para o interior de si próprio; procurando
fazer coincidir a cortesia com o exprimível, são levadas a separar o
espaço do permitido, do lícito, do legal, do que é preciso subtrair, ca­
lar, proibir ao olhar, enterrar no mais profundo de si no espaço pes­
soal do pudor, do silêncio ou do segredo.
A denúncia da hipocrisia do parecer e da mentira das máscaras
conseguiu, depois de Rousseau, fazê-lo esquecer: a consciência da
opacidade das aparências foi uma condição essencial do aparecimento
da categoria de pessoa (personâ) antes de acompanhar a emergência
progressiva do indivíduo.

NOTAS

1 Chartier indica-o: «A civilidade reconhece-se nas acções e também na conversa-


ção. As (...) obras sublinham esta definição da civilidade como arte da palavra em so­
ciedade: estar cheio de civilidade é saber “só dizer coisas honestas e a propósito”
(Richelet) ou ter “uma maneira honesta de conversar no mundo” (Academia).
O conceito parece pois estreitamente ligado a esta prática social particular, caracterís­
tica da sociedade policiada. O plural civilidades reforça de resto esta acepção munda­
na da palavra pois remonta aos usos e trocas de um código de delicadeza reconheci­
do pela sociedade distinta» (op. cit., p. 50).
2 S. Guazzo, La Civile conversation (1574), Paris, 1592, p. 38.
3 Segundo a expressão de N. Elias.
4 Elias, La civilisation des moeurs, op. cit., p. 92.
5 O que indica Elias citando Erasmo (Ibid., p. 93). «Olhos grandes abertos são
um sinal de estupidez; o olhar fixo uma marca de preguiça; o olhar demasiado pers-
crutador trai uma tendência ao entusiasmo; o olhar demasiado vivo e demasiado elo­
quente é o olhar dos impudicos; o melhor olhar é o que revela um espírito tranquilo
e uma amabilidade cheia de respeito. Não é por acaso que os antigos diziam, «a mo­
rada da alma encontra-se nos olhos». Sobre este ponto ver J. Revel, «Os usos da civi­
lidade», Histoire de la vie privée, tomo III, p. 174.
6 Chartier, op. cit., p. 53.
7 Cureau de la Chambre, op. cit., p. 6.
8 Elias, La civilisation des moeurs, op. cit., p. 6.
9 Cureau de la Chambre, p. 247.
10 Ibid., p. 1.
11 Ibid., pp. 6-7.
12 A. de Courtin, Nouveau traité de la civilité qui se pratique en France et ailleurs
parmi les honnêtes gens, Paris, 1671.
Capítulo 1

O ESPELHO DA ALMA
(Origens e renascimento da fisiognomonia no século xvi)

A fisiognomonia é uma ciência real, através da qual se conhe­


ce plenamente a condição dos homens livres de conjecturas,
pois o rosto normalmente prediz e indica (...) de tal forma re­
vela e desnuda o coração, sendo por ele conhecidas as vozes
dos pensamentos e cogitações íntimas, coisas que estão todas
contidas na verdade fisiognomónica1.

É nestes termos, extraídos da edição latina de 1504, que Le com-


pendion et brief enseignement de la physiognomonie, de B. Coclès,
formula o renascimento da fisiognomonia do século xvi2. Resumido e
simplificado, difunde-se largamente e consegue uma clientela mais
vasta que a dos simples eruditos3. Constitui-se assim, nos princípios
do século xvi, um público cujo gosto pela «ciência do rosto» não será
desmentido até aos finais do século xvn: as traduções francesas do li­
vro de Coclès são reeditadas até 1698. Igual sucesso para o tratado de
Jean d’Indagine4, que será reeditado treze vezes de 1531 a 1672, e as
suas traduções alemã, francesa e inglesa periodicamente publicadas ao
longo do século xvn. Além destas duas obras que vão ter, até à publi­
cação de La Physionomie humaine (1586), de G. B. delia Porta, a
maior difusão entre as obras de fisiognomonia, o assunto suscita, na
primeira metade do século xvi, um grande número de tratados inédi­
tos embora de interesse e originalidade muito desiguais5.
Este renascimento, depois de durante muito tempo se haverem
contentado com repetir os mesmos tratados antigos ou as lições de fi-
siognomonias medievais latinas e árabes, mostra que o corpo se torna
objecto de uma maior observação: mais pormenorizada, mas também
mais penetrante. Ao descobrir o corpo, a fisiognomonia ambiciona
«desnudar e revelar o coração», como «ciência das paixões naturais da
alma e dos acidentes do corpo, mudando e permutando o que envol­
ve uma e o outro»6. Uma ciência das paixões: a própria intenção que

27
Coclès fixa à fisiognomonia encontra definição em formulações mui­
to antigas atribuídas a Aristóteles7. O recrudescimento do interesse
pelo rosto no limiar do século xvi não apresenta ruptura com a tradi­
ção, mas reactualiza os termos de uma concepção da relação entre o
corpo e a alma que lentamente se elaborou nas obras antigas8. Esta
concepção possui alguns traços elementares constantes que os trata­
dos do Renascimento reavivam.

Origens e renascimento da «ciência das paixões»

O homem divide-se em dois: é ao mesmo tempo invisível e visí­


vel, homem interior e homem exterior. Mas existe um laço entre a in-
terioridade oculta do homem e a sua exterioridade manifesta. Os mo­
vimentos das paixões que habitam o homem interior são marcados à
superfície do corpo. A fisiognomonia antiga faz assim da relação
entre a alma e o corpo uma relação entre o interior e o exterior, o
profundo e o superficial, o oculto e o manifesto, o moral e o físico,
o conteúdo e o que contém, a paixão e a carne, a causa e o efeito.
O homem possui duas faces, das quais uma escapa ao olhar: a fisiog­
nomonia quer remediar isso tecendo uma rede apertada de equivalên-
cias entre o pormenor das superfícies e as profundezas ocultas do
corpo. A ciência das paixões é uma ciência do invisível.
Precisa dizer o que falta ao olhar: para tanto, baseia-se na tradição
antiga, isto é numa inferência directa quando o traço morfológico re­
mete sem mediação à qualidade psíquica; assim, o nariz chato é um
indício de impredicícia e de devassidão. Ou numa inferência indirecta,
quando é a analogia entre as formas humanas e animais que permite
predizer os caracteres. O do homem é enigmático, o dos animais, fami­
liar: deduzir-se-á um do outro. Os bois são lentos e preguiçosos, têm
a ponta do nariz grossa e os olhos grandes: são lentos e preguiçosos
aqueles que possuem o nariz espesso e os olhos grandes. A ciência
das paixões é uma técnica de observação das formas naturais.
A relação entre corpo e alma é um segundo traço desta tradição e
dá-se como uma linguagem. O corpo exprime a alma, fala a sua lin­
guagem e é o próprio objecto da fisiognomonia. A ciência das pai­
xões é uma ciência da linguagem da alma. Isto mantém-se verdadeiro
nos textos do século xvi:

A fisiognomonia consiste em duas coisas: a saber, composição


e compleição do corpo humano que declaram e mostram ma­

28
nifestamente as coisas que estão dentro do homem através de
sinais exteriores, como a cor, a estatura, a posição dos mem­
bros e as figurações9.

O corpo é ao mesmo tempo objecto assinalado e discurso proferi­


do, indício e palavra da alma. Desde a origem que as fisiognomonias
são maneiras de dizer e maneiras de ver o corpo humano: traduzem a
exterioridade, a aparência e o invólucro corporal, num conjunto de
sinais.
São nisso próximas no seu princípio e unidas na sua história à se-
miologia médica. Trata-se de realçar aqui e ali, por um exercício siste­
mático do olhar, indícios que afloram à superfície do corpo: traços
morfológicos ou expressivos aqui, sintomas acolá. Trata-se igualmen­
te de converter os indícios dados pelo percurso do olhar no corpo em
sinais, dotando-os de um sentido: os sintomas tornam-se então para
o médico sinais clínicos de doença; os traços morfológicos do corpo
— sobretudo os do rosto — são interpretados pelo fisiognomonista
como sinais, segundo a época, de vícios ou de virtudes, de inclinações
ou de paixões da alma, de propensões ou de caracteres, de pulsões ou
de formações psíquicas. Porém a analogia pára aí: a acção fisiogno-
mónica é semelhante no seu princípio à da semiologia médica, mas as
interpretações que propõe têm um outro objecto e uma outra exten­
são. Se continua a tratar-se de observar o homem exterior, é com
efeito para descobrir o homem interior, ou o homem psicológico mais
que o homem doente. A semiologia médica soube limitar pouco a
pouco no exercício do diagnóstico a arte de conjecturar, apurando o
olhar clínico: ligando-o a outros dados perceptivos10. A fisiognomo-
nia trai, em compensação, no seu propósito — alargando os seus juí­
zos à totalidade do homem psíquico, chegando muitas vezes a predi­
zer o destino individual — o que é a sua origem mais longínqua e que
dantes partilhou com a medicina: a adivinhação". Não põe assim
qualquer limite ao império do olhar sobre o corpo: a ciência das pai­
xões é apenas a ciência do olhar.
Assim, a divisão que parece tão clara actualmente — por um lado
a ciência médica, o seu saber rigoroso e sistemático, do outro, a falsa
ciência fisiognomónica, o seu saber duvidoso e as suas classificações
fantasistas — não se faz no início do século xvi: fisiognomonia e me­
dicina estão estreitamente ligadas, muitas vezes de forma indissociável, e
assim ficarão ainda durante mais de um século. Os tratados trazem a
marca da dupla origem, médica e divinatória, da ciência das paixões.
Porta aparenta-a à «arte de vaticinar» e Jean Taxil, médico e astrólogo,
acha-a ainda, no princípio do século xvn, indispensável ao médico:

29
Galeno cita a fisionomia e garante, sob a autoridade de Hipó-
crates, que se aqueles que se ocupam da medicina a ignoram,
encontram-se em perpétuas trevas de espírito, cometendo pe­
sados erros (...). Assim, o médico que quisesse desprezar essas
regras e ensinamentos não se assemelharia à hera, que só pede
a queda do muro a que se agarra?12

Ciência do olhar, a fisiognomonia será também ciência do rosto. E é


esse um dos traços essenciais que ressuscita o interesse do século xvi pe­
la fisiognomonia antiga. In fade legitur homo: o rosto é o sinal do ho­
mem. O renascimento da fisiognomonia traduz uma atenção nova pelo
rosto e por aquilo de que a face é teatro: a expressão humana. Retoma a
hierarquia dos sinais que a tradição antiga estabelece: Aristóteles dava
primazia aos indícios que têm por base a cabeça, a testa e os olhos;
Polémon iniciava a sua fisiognomonia por um capítulo consagrado ao
olhar. Os tratados da idade clássica acentuarão mais esta tradição des­
critiva que imprime uma ordem aos tratados antigos e medievais, per­
correndo o corpo de alto a baixo, à maneira de uma lista que fornece
sinais essenciais aos indícios secundários.
E necessário descobrir o homem por trás do seu rosto: um desejo
de transparência do corpo, diz-se nestas obras do século xvi; onde se
desenvolve a inquietação perante a dissimulação que já formulavam as
antigas fisiognomonias. A alma está coberta de véus, a palavra engana
abundantemente e a própria fisionomia é pouco segura. A duplicidade
obceca a fisiognomonia; nela, multiplicam-se os retratos de homens
dissimulados, pérfidos, mentirosos ou infiéis: figuras inquietantes de
homens duplos, destinados a enganar e cujos traços se aproximam da
morfologia dos macacos, da língua das víboras, do carácter das mu­
lheres ou, mais ainda, do negro temperamento da melancolia; fisiono­
mias desdobradas, acusando o desvio entre a superfície aparente e a
profundeza oculta, dado que a espessura de uma face «gorda» e «car­
nuda» cobre a alma de um véu opaco, ao mesmo tempo que os olhos
«pequenos» e «encovados» furtam o olhar e com ele o coração14.
Estes retratos são a «prova» de todo o poder que os textos reco­
nhecem ao olhar experiente do fisiognomonista: ele pode descobrir a
alma corrompida sob os artifícios da dissimulação, despojar as fisio­
nomias mentirosas da máscara que as abriga. Os rostos perdem o seu
segredo. A fisiognomonia toma útil a «janela» de que a tradição antiga
atribui a ideia por vezes a Momus, outras a Sócrates: aquela que, aberta
em pleno peito, permitiría observar os movimentos do coração.

A fisiognomonia, ciência quase divina, remediou esse mal (...).


Pois pelos sinais exteriores que se detectam no corpo do

30
homem descobre de tal modo os seus costumes, o seu caracter e
os seus desígnios, que parece penetrar nos recônditos mais
profundos da alma e, por assim dizer, nos lugares mais ínti­
mos do coração15.

A dissimulação torna-se difícil, senão mesmo impossível. E a ne­


cessidade de um controlo social do homem interior que exprime a
ressurgência da fisiognomonia. E onde se desvenda a dimensão práti­
ca da ciência do rosto. Os textos do século xvi citam fielmente as
anedotas que ilustram a perspicácia lendária dos fisiognomonistas an­
tigos: Zópiro descobrindo no rosto de Sócrates o sinal de um carácter
violento e de impulsos grosseiros16; Hipócrates adivinhando, na corte
de Alexandre, o inconfessado amor ardente em que Perdiccas, filho
do monarca, se consumia pela madrasta; Aristóteles aconselhando ao
mesmo Alexandre a escolha dos seus ministros, segundo o seu aspec­
to e prefigurando deste modo o papel que Cureau desempenhou jun­
to de Luís XIV. Esta arte da revelação do outro herda-a a renascença
fisiognomónica do século xvi dos textos gregos, mas mais ainda da
tradição árabe que registara e comentara estes últimos17.
A história da fisiognomonia árabe é de facto dominada por uma
ideia original, anterior ao seu contacto com a tradição grega; a fisiog­
nomonia, mais que uma ciência, poderia ser uma arte, o exercício de
um dom de «dupla vista» permitindo «julgar rapidamente e sem erro
possível uma pessoa (...) a partir de sinais exteriores (...) apenas visíveis a
um olhar experiente»18; o que os tratados árabes designam pelo nome de
firãsa. A firãsa é uma prática do golpe de vista e a arte do pormenor'.
o uso da intuição perceptiva infere em detalhes do rosto e do corpo
— um movimento furtivo do olhar, um traço apenas perceptível da
morfologia do nariz, certo espaçamento ínfimo dos dentes — a ver­
dade de uma alma ou os segredos de um coração. Este exercício do
olhar reveste, por outro lado, o carácter eminentemente prático: o fi-
siognomonista é chamado aos tribunais para atribuir paternidades e
estabelecer culpabilidades quanto à aparência; nos mercados de escra­
vos, aconselha o comprador quando é necessário apreciar a robustez
dos escravos do sexo masculino19 ou das aptidões sexuais das mulheres;
junto do sultão, recomenda a escolha de determinado conselheiro, ou
ainda de certo camelo, ou cavalo; e acontece-lhe predizer o futuro.
A dupla origem da fisiognomonia está assim claramente marcada
na tradição árabe: traduz-se pela coexistência de uma corrente natu­
ralista próxima das preocupações médicas e de uma corrente astroló­
gica voltada para a adivinhação. A primeira alimentou-se dos escritos

31
gregos e desenvolveu-se a partir do século x com Razès. Mantém-se
ainda no princípio do século xm no Kitab al Firãsa, de Fakhr Al-
-Din, em que se põe em evidência a especificidade da tradição árabe20.
A partir do século xin, a fisiognomonia liga-se progressivamente às
práticas divinatórias e à astrologia. Desde então, mais que a relação
entre fisionomia e carácter, observa-se os sinais impressos pelos as­
tros no corpo: nas linhas do rosto ou da mão, as manchas naturais da
pele ou das unhas, o lugar dos nevos ou ainda os movimentos invo­
luntários de certas partes do corpo21. Muito ligados ao modo de vida,
os tratados de fisiognomonia astrológica passam então a proliferar.
Esta hesitação sobre o estatuto da fisiognomonia — ciência natu­
ral ou ainda prática divinatória — vai marcar profundamente a sua
história. Encontram-se os seus vestígios nos debates que vão pôr em
presença o prolongamento das correntes naturalistas e astrológicas, e
ver nelas duas formas conjuntas, ou complementares ou, finalmente,
opostas. Mas ainda no século xin, quando a medicina se tiver separa­
do da astrologia, a fisiognomonia conterá o eco enfraquecido desta
dupla origem: quando Lavater quer estabelecer ao mesmo tempo uma
ciência natural do rosto e se preocupa continuamente com a sua im­
possibilidade, celebrando então o «faro» do fisiognomonista, esse ta­
lento pessoal, essa intuição fulgurante que põe imediatamente um
rosto a nu.
Existe assim, nas primícias gregas e sobretudo árabes da fisiogno­
monia, uma dimensão essencial: a sua função prática.
E esta dimensão que permite compreender este enigma da sua his­
tória: pouco a pouco abandonada pela ciência natural, deixada nas
margens dos saberes positivos e depois verdadeiramente desqualifica­
da, nunca deixou, no entanto, de ter um interesse social, mundano ou
muito simplesmente anedótico. Não toma portanto assim unicamente
lugar no projecto de uma história natural do homem, como se inscre­
ve profundamente na sua história social. E assim que, na época mo­
derna, os dois momentos históricos em que vai suscitar mais interesse
(desde o princípio do século xvi aos dois primeiros terços do xvn por
um lado; dos anos 1780 ao fim da primeira metade do século xix
por outro) são períodos de reconfiguração política e social: estabe­
lecimento do Estado absolutista e constituição progressiva de uma
sociedade civil concebida no modelo da corte; nascimento de um Es­
tado democrático e de uma sociedade de massas. Momentos em que
se coloca de maneira crucial a questão da identidade individual em
estruturas sociais em plena transformação.
Com efeito, e voltando às sociedades tradicionais, verifica-se que
o fisiognomonista — que muitas vezes constitui com o médico e o

32
adivinho uma única e mesma pessoa — exerce junto dos poderes a
função prática destinada ao uso corrente da intuição na vida quotidia­
na, quando é preciso saber reconhecer os sentimentos que um rosto
familiar exprime ou mesmo descobrir uma identidade por trás de
uma figura desconhecida. O homem vulgar é fisiognomonista sem o
saber quando baseia nesse exercício do olhar a escolha dos homens
a frequentar e a das companhias a evitar.

Al-Shafi costumava dizer: desconfiai do homem vesgo, do za­


rolho, do homem coxo, corcunda, ruivo ou com barba rala e
de qualquer pessoa com enfermidades corporais. Evitai aquele
que tem defeitos físicos, pois é vil, ignóbil, enganador e lidar
com ele só traz desgostos22.

Viver em sociedade implica, pois, saber decifrar a fisionomia. Os


textos do século xvi contemporâneos da formação de uma sociedade
concebida no modelo da civilidade vão reencontrar estes imperativos
antigos, acentuá-los e generalizá-los. E necessário escolher as compa­
nhias e é nisso que a fisiognomonia se impõe como uma necessidade.
Assim, o conhecimento do homem, como escreve Jcan Gosselin na
sua La Phisionomie (1549), é uma ciência útil e honrosa...

A saber conhecer (...) os outros homens com os quais é preci­


so viver e conversar’, a fim de escolher por amigo e atrair a
nós os homens de boa compleição e de hábitos úteis e huma­
nos. E evitar os homens formados ou alimentados por capri­
chos desagradáveis e mal temperados23.

E proceder, acrescenta Gosselin, à maneira dos antigos Árabes,


«à semelhança da maneira usada pelos homens (salvo a honra da cris-
tandade) que querem ter cavalos para deles se servirem tanto por ne­
cessidade como por prazer»24. Acrescenta, com toda a lógica, à sua
La Phisionomie uma LArt de connaitre les chevaux25.

A figuração do homem

Qual pode ser o sentido de uma história da fisiognomonia? Ten­


tar compreender as mutações da figura do homem: a figura é a repre­
sentação (discursiva ou icónica) do homem interior (uma natureza,

33
um carácter, uma inclinação, paixões, vícios e virtudes, emoções...)
através de um conjunto de indícios corporais e exteriores (formas,
marcas, traços, vestígios, sinais...). Não é pois tanto o rosto, mas a fi­
gura, que é objecto da fisiognomonia; a figura é o que tem expressão
no rosto: o que se mostra e se decifra, o que nele se exprime e se es­
conde, o que nele se pode reconhecer e descrever. Isolado da figura, o
rosto escapa como um enigma.
Assim, não se deve procurar na fisiognomonia apenas a verdade
dos rostos, mas, mais do que isso, a linguagem das figuras: a expres­
são de uma relação entre a interioridade do homem e a sua aparência
e suas transformações: com efeito, tal relação não é imutável, ela foi
marcada entre os séculos xvi e xvm por um deslocamento lento, mas
contínuo.
Este deslocamento é o sinal de uma profunda evolução das identi­
dades individuais e colectivas.
Primeiramente, no terreno do conhecimento científico do homem
natural: entre os séculos xvi e xvm a fisiognomonia vai separar-se
pouco a pouco da medicina. Desenvolve-se uma medicina autônoma
c racional que marginaliza progressivamente os conhecimentos tradi­
cionais sobre a fisionomia. Há nela elementos do lento abandono dos
saberes acerca do homem, do fundo milenário de crenças cosmológicas
e biológicas que lhe davam sentido. A ruptura é profunda: a analogia
entre o corpo e a alma, que então se encontra refutada, era admitida
desde a noite dos tempos; uma ciência natural do homem afirma len­
tamente a sua autonomia e liberta-se das artes divinatórias que a
acompanham desde a origem dos saberes.
Em segundo lugar e no campo das percepções do corpo com forma
simbólica: as fisiognomonias, as maneiras de dizer e de ver o corpo e
o rosto humanos, são então a tradução de uma mutação das imagens
do corpo. A pouco e pouco constitui-se um imaginário «clássico» do
corpo cuja representação vai libertar-se da visão astrobiológica do mun­
do que caracterizava as concepções medievais e as filosofias da natureza
no Renascimento; ao abandono dos discursos de um fundo antigo de
saberes corresponde assim um desencantamento do corpo-, a emergên­
cia progressiva da visão de um corpo referido a si próprio, ordenado
pela razão, habitado por um ser, individualizado pela expressão.
Finalmente, no que respeita ao comportamento tanto público co­
mo privado do indivíduo em sociedade, a fisiognomonia tinha por
fim essencial a observação dos outros e a escolha das companhias pela
aparência. Visará cada vez mais o conhecimento do eu e uma maneira
de se conduzir na vida civil. Vê-se constituir um espaço íntimo, sujei­
to ao mesmo tempo ao controlo social e tendendo a proteger-se des­

34
te. A fisiognomonia toma parte no reforço dos autoconstrangimen- —
tos, no controlo por cada indivíduo dos sinais manifestos das suas
paixões.
A figura humana, entre os séculos xvi e xvm, autonomiza-se e ra­
cionaliza-se; no mesmo espaço, torna-se mais interior, socializando-se
e individualizando-se ao mesmo tempo. Trata-se de um processo
complexo e multiforme e de que as fisiognomonias constituem um
dos traços, um indício entre outros. Há muitos mais discursos e mui­
tas outras práticas que são prova de semelhantes transformações. Co­
mo, por exemplo, os discursos sábios: o da anatomia, cujas transfor­
mações no decorrer da idade clássica ilustram à sua maneira esta lenta
mutação das visões do corpo; também aqui a representação se racio­
naliza, o olhar se agudiza, a perspectiva se afina e as figuras se desfa­
zem pouco a pouco de um fundo de imagens astrológicas ou de so­
brecargas estéticas que obstruíam o espaço anatômico26. Mas há ainda
outros modos de representação do rosto: o desenvolvimento da arte
do retrato prova igualmente o facto de que a figuração do corpo se
separa lentamente do seu contexto sagrado, que a fisionomia se defi­
ne e se naturaliza, que o corpo se individualiza enquanto a expres­
são27 se acentua mais claramente.
E existe finalmente todo um conjunto de práticas que não consis­
tem simplesmente em discursos, mesmo quando cada vez mais estrei­
tamente codificadas em tratados, mas que são práticas do próprio
corpo, que trabalham a sua postura, o seu aspecto, a sua mais fina ex­
pressão, o seu menor gesto: as regras de civilidade que então difun­
dem os tratados de cortesia favorecem, nas conveniências que pres­
crevem, o imaginário de um corpo fechado, estritamente delimitado,
objecto do domínio individual e do trabalho social da delicadeza.

Rosto, analogias e assinaturas

A fisiognomonia começa no Ocidente no século xn com as pri­


meiras traduções. Os Ocidentais, ao contrário dos Árabes, ignoram-
-na totalmente antes desta data28. No princípio do século xm29 surge
uma literatura propriamente medieval, que vai ter até ao século xv
uma audiência cada vez mais ampla. Não dá prova de originalidade;
fiel aos tratados gregos e árabes, herda a tensão que, no seio destes
últimos, opõe as tendências naturalistas e astrológicas.
As obras da fisiognomonia da Idade Média são, com efeito, a maior

35
parte das vezes, trabalhos de médicos e apresentam um duplo aspecto:
por um lado, detalham de forma precisa e exaustiva as diversas partes
do corpo humano. Prosseguem o trabalho de anatomia das superfícies
corporais levado a cabo pela tradição antiga. A visão médica encontra aí
as suas premissas. O médico precisa então de poder ler os sinais da
complexio — a unidade complexa de traços físicos e mentais próprios de
cada um — em cada parte do corpo. Isto organiza os tratados segundo
um primeiro conjunto de classificações: a lista ordenada dos órgãos do
corpo, a dos elementos, dos humores e dos temperamentos.
Estas tentativas de observação natural do corpo e do rosto baseadas
no humor, que se prolongarão nas obras de fisiognomonia ao longo
dos séculos xvi e xvn, são ainda ilustradas no Speculum Physiono-
miae, escrito antes de 1450 por Michel Savonarole. Um temperamen­
to quente tornará a alma audaciosa e violenta; se domina o frio, ela
será medrosa e pusilânime. E a alma pode mudar o corpo: a imagina­
ção modifica-a pondo em movimento os espíritos animais. O rosto é
pois o efeito das paixões que o temperamento suscita: desenha-lhe os
traços, molda-lhe as formas. Consideram-se os cabelos que o cercam
ou os pêlos que nele crescem: serão abundantes se o temperamento
for quente, raros se for frio, frisados se seco, lisos se húmido. Ou
ainda o nariz: o calor faz o nariz largo e o orgulho; a humidade ex­
cessiva do cérebro dá um nariz grosso e denota gente suja; o tempe­
ramento frio torna o nariz pequeno e significa espírito vil e baixo...
Mas este humor coexiste com elementos que, pela primeira vez,
são modernos: Savonarole faz preceder qualquer estudo fisiognomó-
nico de alguns princípios de anatomia que dizem respeito à parte do
corpo estudada. Dá assim grande importância à anatomia do olho, em
virtude do lugar que este ocupa no diagnóstico fisionômico. E apoia-se,
além disso, na teoria da localização dos sentidos internos30 para fazer
do homem interior um homem anatômico, prefiguração longínqua de
Gall. Assim, aqueles cuja parte posterior do ventrículo médio está
bem desenvolvida são dotados quanto à «virtude estimativa»: são de
bom conselho e é a esse gênero de homens que os príncipes deveríam
ter empenho em ligar-se, em vez de escutarem os tagarelas.
Savonarole junta, porém, a este conjunto de dados o enunciado
das bases astrológicas da adivinhação fisiognomónica e é esse o carác­
ter da maior parte destas obras: às observações e classificações do
médico sobrepõem-se logo as do astrólogo. Os órgãos, os humores e
os temperamentos remetem para os planetas, os homens-zodíacos po­
voam os tratados. A astrologia domina o pensamento medieval dos
séculos xiv e xv: as fisiognomonias são tomadas da massa dos escritos
astrológicos, onde estão a par com os conjuntos de predições, de ma­

36
nuais de quiromancia ou de oniromancia, ou ainda com as artes eso­
téricas da memória.
O renascimento e o desenvolvimento sem precedentes que a fi­
siognomonia adquire desde o princípio do século xvi vai primeira­
mente prolongar e depois transformar pouco a pouco estes dados ini­
ciais. Em primeiro lugar, em virtude do intenso trabalho filológico
realizado pelos humanistas do Renascimento: os autores antigos são
relidos, comparados, criticados, restabelecidos ou anulados e sistema­
ticamente interpretados. Essa será a obra essencial de G. B. delia Porta,
cuja La Physionomie humaine (1586) domina a produção do século xvi
e da primeira metade do xvn pela sua amplidão, a sua sistematicida-
de, a sua exaustividade, a extensão da sua influência. Mas esse traba­
lho de leitura não incide simplesmente sobre a tradição antiga; abarca
as fisiognomonias e medicinas medievais latinas ou árabes e regista
assim os saberes populares sobre o corpo31.
Encontra-se o mesmo princípio entre as fisiognomonias do sé­
culo xvi, tão sábias como populares: a analogia entre o microcosmos
humano e o macrocosmos natural ou cósmico. Assim, nas representa­
ções populares do corpo humano, este é interpretado num tecido
apertado de relações analógicas com a fisionomia e o carácter atribuído
aos animais: estas semelhanças retomam as comparações zoomorfas
que a tradição da fisiognomonia erudita repete desde o pseudo-Aris-
tóteles. Para uma como para outro, o homem que se assemelha ao
leão é «ousado como o leão», um outro «luxurioso como o porco»,
outro ainda «traidor como uma mula»; as semelhanças morfológicas
são prova do carácter, são a sua «assinatura». Pensamento popular e
fisiognomonia erudita partilham então a mesma crença na analogia que
as filosofias da natureza da Idade Média e do Renascimento teorizam
sob o nome de «doutrina das assinaturas»: cada coisa tem à superfície,
impressa no corpo, a assinatura pela qual se apreciarão as propriedades e
as forças que em si contêm. Estas determinarão, através da similaridade
das formas, o paradigma das correspondências entre um ser e uma coisa,
as suas mútuas «simpatias»32. O corpo humano é inteiramente habitado
pela analogia: é por ela que adquire sentido, se liberta da sua opacidade
e dá a conhecer os seus segredos. E um «pequeno mundo» que, em ca­
da uma das suas partes, das suas formas ou dos seus lugares, se asseme­
lha ao grande mundo da natureza e do cosmos.

Assim as veias do corpo humano pertencem de pleno direito à


fisiognomonia «como pequenos canais ou regatos que irrigam
esse pequeno mundo, à maneira dos ribeiros, fontes e torren­
tes que irrigam o grande corpo terrestre; e como pela irriga-

37
Figura 2 — R. Saunders, Physiognomonie and Chiromanàe, Metoposcopie,
The Symmetrical Proportions and Signal Moles of the Body, 2/ ed., Londres, 1671
(Foto B. N.).

38
ção ajuizamos da fertilidade de um lugar (...) pelas cores e
conteúdo das veias ficamos a conhecer as doenças e as infelici-
dades futuras (...). Se são grossas, especialmente as da testa
acima das têmporas, e a do meio, da fronte (...) significam um
homem livre e liberal, sujeito a certa escravatura por parte de
Vénus; e após alguma actividade será fácil sabê-lo, pois fica­
rão inchadas e cor de violeta, o que é sintoma de pleurisia e
de apoplexia33.

Este texto tardio de R. Saunders é prova disso: o pequeno mundo


é inseparável do grande e, no seio da fisiognomonia, a medicina está
inextrincavelmente ligada à astrologia. Neste mundo de analogias, em
que nada do corpo poderia separar-se dos astros, das plantas ou dos
animais, o rosto é um centro: a partir dele todas as semelhanças irra­
diam; para ele, todas as similitudes tornam; nele, todos os tipos de
analogias familiares à ideia das assinaturas se descobrem.
Porque o rosto é em primeiro lugar para o corpo o que o corpo é
para o mundo: qualquer parte do rosto está ligada a uma parte do
corpo (ver figura 2). O rosto resume o corpo e, portanto, condensa o
mundo. Mas a analogia joga ainda entre superfície e profundidade,
invólucro visível e alma invisível. O rosto é a parte princeps da cabeça
e a cabeça é a morada da alma. Esta última reside ali como numa ci­
dadela, um lugar elevado de onde domina o resto do corpo. Não é a
cabeça a «rainha» das partes do corpo, o membro que mais contém as
marcas da divindade? E por essa razão, diz Porta, que as estátuas de
Hipócrates estavam cobertas com um chapéu: isto para mostrar
«quanto cuidado havia com esta parte na qual, como num palácio, a
Alma rege este pequeno mundo como princesa, fazendo dela residên­
cia e sua corte»34. O rosto é assim metonímia da alma, a frágil porta
da sua morada, o acesso — como uma janela entreaberta — por onde
contemplá-la, mas de onde igualmente pode surgir de repente a via
das paixões.
Mas existem ainda outras razões para este centralismo e prepon­
derância do rosto. Se à sua superfície se declaram abertamente vícios
e virtudes, se as mais ocultas e mais secretas afeições da alma ali estão
muito inteligentemente marcadas, não é por uma simples contiguida-
de: próximo da alma, o rosto é também a sua imagem: o seu espelho.

É esta parte a que se chama com justa razão espelho da alma,


o seu quadro resumido, em que todas as suas cores singelas e
vivos delineamentos se vêem representados e onde se lêem
claramente os vícios e as virtudes que a possuem, ou que ela
possui35.

39
O rosto é a metáfora da alma. É a sua condensação, o seu «qua­
dro resumido», como era o seu deslocamento, o caminho da sua mo­
rada. Ao inscrever, como seu antigo antecessor, o rosto na ordem da
linguagem, o renascimento da fisiognomonia descobre-lhe as opera­
ções cardinais; aquelas que, justamente, são chamadas figuras. E neste
sentido que o rosto é a figura da alma e a fisiognomonia o repertório
de uma linguagem das figuras.

O homem sem expressão

Em 1658 eram tardiamente publicados os treze livros e oitocentas


figuras da face humana da Métoposcopie, de Jêrome Cardan36 (ver fi­
gura 3): esta publicação encerra uma tradição que o ensino do célebre
médico, matemático e ocultista iniciara um século antes. Com efeito,
a partir dos anos 1550, surgiam as «metoposcopias»37: estas obras de
fisiognomonia astrológica, de origem longínqua e obscura, hoje es­
quecidas, serão difundidas a despeito das interdições papais que vi­
sam as práticas divinatórias, as condenações de teólogos, a increduli­
dade ou as zombarias de alguns humanistas38.

Fica-se pois a saber que esta Arte, que é a parte principal da


fisiognomonia, se dispõe a predizer pela inspecção tanto da fi­
gura da fronte, como do seu comprimento, largura e linhas
diversas, e até marcas naturais que nela se encontrem, coisas
que causam admiração e frequentemente fazem pasmar aque­
les que a isso se dedicam39.

As metoposcopias são, para o rosto, o que a quiromancia é para a


mão. Todo o homem traz na fronte, à maneira de um hieróglifo, o seu
destino escrito: uma marca que é ao mesmo tempo sinal de boa ou má
fortuna, traço do carácter, sintoma de uma doença e estigma social.
A metoposcopia é considerada como pensamento das «assinaturas».
São os planetas que imprimem a marca: «Como por letras divinas, a
vida dos homens está escrita e marcada»40. A metoposcopia sabe deci­
frar esta escrita divina e atribuir ao homem as qualidades do astro
que o domina. Determinada linha de Júpiter tornará o homem pru­
dente, de sábio conselho e bom julgamento; a linha de Saturno deno­
ta memória e paciência, a do Sol a moderação e a magnificência, a de
Vénus inveja e complacência. A fronte traz assim uma inscrição cuja

40
Front marqud dei lignoa Front merque dea Itanee Front ftminin Front femiAi* Front ftfnmm
du voyage martitme du terveetre marque dei hgnei marque dei Itgnei marque de» i.gnei
de la «eneroiiie de <a miMrtcoede d u*e -ertv farouche

Froni rimimn Front de courtitam


marque de» ligrte» Frc«i de . owruiane
de i adultere d« ► aite «laiic
Front marque dei liqnm
de 1'ueuee et Oi la mendtciie

Front marque de» lifnei


Front merque doa li<ma ■Mtquani Front marque dei itgrtei
de la checam ia mon «toMnie J< <a debaucht

Figura 3 —J. Cardan, Métoposcopie, Paris, 1658 [extraído de: Grillot de Givry, Le
musée des sorciers, mages et alchimistes (1929), Paris, Veyrier/Tchou, 1966],

41
decifração é delicada e complexa: «Atenção a que as rugas não te en­
ganem e passem por linhas»41. Com a ruga, as pregas do rosto, o es­
trato deposto pelas emoções sentidas, assinatura pessoal contida na
expressão, a metoposcopia separa a gênese humana, interna e singular
da fisionomia. Com a linha, traço impresso por um astro à superfície
do corpo, diz a origem cosmológica e exterior da figura humana.
A metoposcopia é uma semiologia da marca. A marca é um indí­
cio superficial, dado à flor da pele; é também um traço manifesto e
estritamente localizado: parece o único ponto visível de um corpo
que o olhar apaga, de um rosto cujos traços se anulam. Como se a
marca viesse tomar o lugar do próprio indivíduo e reduzi-lo ao dese­
nho de um número. Porque, embora superficial, a marca parece
incrustada na carne, à maneira de uma escrita firmemente gravada
no pergaminho da pele. Parece ter a profundidade de uma incisão e
assim poder testemunhar do homem interior.

As cores e delineamentos que a natureza grava e escreve exte­


riormente em cada coisa mostram com certa proporção o que
se encontra no interior42.

A etimologia do que se chama o carácter do homem — que vem


do termo grego que significa sinal gravado, traçado ou escrito — ilus­
tra bem o que a metoposcopia retém da figura humana. E que tais si­
nais sejam gravados confere-lhes uma outra propriedade: são perma­
nentes e irreversíveis, acompanham todo o indivíduo da nascença à
morte. A marca distingue-se dos acontecimentos passageiros que po­
dem afectar a fisionomia — a metamorfose da emoção, o efêmero da
expressão ou até a marca acidental da cicatriz — pelo facto de mergu­
lhar a figura num tempo imóvel e irreversível^: nas linhas da fronte,
o destino e o carácter estão impressos à esquerda, ao meio e depois à
direita, marcando respectivamente a primeira, a segunda e a última
idade do homem.
Estática sob o olhar, imutável na sua relação com o tempo, a figura
humana reduz-se nos tratados de fisiognomonia astrológica às regras de
uma escrita cujas possibilidades se multiplicam ao infinito em nume­
rosos traços geométricos44. Esta escrita complica-se ainda com uma
cartografia dos sinais pretos no rosto que com ela se combina (ver fi­
gura 4). Decerto que se pode encontrar nestes caracteres regularida-
des parciais; mas o seu princípio fundamental continua a ser a acu­
mulação ilimitada dos traços num repertório aberto de figuras:
oitocentos «retratos» deste tipo ilustram a obra de Cardan. E podería
ter bastantes mais. Nada permite, assim, encerrar este sistema.

42
* jrn—T
•1BL-ri

Figura 4 — R. Saunders (op. cit.): carta astrológica dos grãos de beleza do rosto
(foto B. N.).

43
O mesmo acontece com as regras de interpretação da «escrita divi­
na»: ela é ao mesmo tempo altamente arbitrária, muitas vezes esotéri­
ca e banalmente analógica, quando as linhas rectas significam cons­
tância, as linhas tortas intemperança, as linhas quebradas perigos,
doença, morte: os destinos felizes registam-se em figuras regulares.
E como último traço das semiologias da marca estão as metoposco­
pias. Como todas as concepções do corpo como «assinatura», su­
põem uma relação ternária entre um indício externo, a propriedade
do homem interior e um poder exterior ao homem — Deus, astros
ou natureza — gravando no seu rosto as letras do seu destino.
Nada poderia melhor ilustrá-lo do que os retratos que decoram a
obra de Cardan. A representação obedece a uma regra essencial: apagar
tudo o que possa perturbar a legibilidade da região frontal. A morfo-
logia facial restringe-se, cai e esbate-se: resta um homem-fronte. Do
mesmo modo, todo o pormenor pessoal, individual ou singular está
destinado a desaparecer: a metoposcopia de Cardan é um catálogo de
figuras impessoais, indiferenciadas, substituíveis umas pelas outras,
que por vezes apenas se distinguem pela inscrição frontal. Isto supõe
um afastamento sistemático dos traços de expressividade: nada anima
essas faces imóveis, anônimas e impávidas. Fisionomias sem rosto, fi­
guras de um homem sem expressão*' (ver figura 5).
Sujeita à lei dos astros, a figura humana é-o também à dos ho­
mens. A utilidade da metoposcopia provém, segundo os tratados, do
facto de permitir predizer os destinos felizes ou funestos, de reconhe­
cer o homem são e separá-lo do homem doente, de finalmente identi­
ficar o homem de bem, distinguindo-o do homem perigoso: raptores,
ladrões, vagabundos, mendigos, prostitutas e assassinos, todos aque­
les cujos retratos ocupam um lugar considerável nas suas obras.
A marca astrológica é um estigma social. Aprender a decifrá-la é sa­
ber reconhecer a perigosidade do seu rosto. A lei da natureza e a or­
dem social confundem-se nos corpos.

Também os senhores jurisconsultos (tão prudentes como


doutos, sabendo bem que sendo o rosto o espelho das virtu­
des o é também dos vícios) remeteram tal peso para os sinais
existentes na face, e quando vários criminosos são acusados
de malvadez, se for o caso de conseguir a verdade pela violên­
cia, torturam o mais disforme de aspecto e de rosto, segundo
os preceitos da sua doutrina46.

O uso judicial da fisiognomonia astrológica não é mais, no mo­


mento em que Jean Taxil o recomenda, do que uma recordação passa-

44
Figura 5 — R. Saunders (op. cit.): metoposcopias (Foto B. N.).
da. Mas na sociedade civil, nos laços sociais que a troca de olhares te­
ce, persiste-se em julgar pelo rosto.

Da morfologia à expressão

O fim do século xvi vê desenvolverem-se exigências racionais nas


representações do corpo. Nos anos 1580 vão surgir várias tentativas
de fisiognomonia «natural» que se desviam da astrologia e da adivi­
nhação no exame da fisionomia. A separação da fisiognomonia e da
astrologia esboça-se assim no decurso dos últimos vinte anos do sé­
culo. Sem dúvida que é preciso ver nisso o efeito de um aumento ge­
ral da racionalidade, de uma lenta transformação das percepções do
mundo físico que a revolução científica do século xvn cedo confirma­
rá. Mas ela obedece igualmente a elementos específicos, um dos quais
reveste uma grande importância quanto ao destino da fisiognomonia:
o efeito da Contra-Reforma católica sobre as ciências ocultas, conde­
nadas por uma bula de Sixto V em 158647.
Isto obrigou muitos autores a serem prudentes. A igreja condena­
va a prática da astrologia judicial e divinatória, bem como a leitura ou
a posse de livros sobre o assunto: só Deus conhece o futuro e nem
homens nem demônios poderíam predizê-lo. Mas ela isentava da cen­
sura a predição dos acontecimentos que podem ser inferidos frequen­
te ou necessariamente de causas naturais. A predição astrológica
mantinha-se portanto possível quando ligada à agricultura, à navega­
ção e também à medicina48. E para a medicina que se volta então mais
claramente a fisiognomonia, bem como a quiromancia:

Se o papa Sixto (...) fez uma bula contra os quiromantes, não


se deve julgar que a intenção desta grande personagem tenha
sido excomungar os verdadeiros e simples quiromantes; de
outro modo poder-se-ia crer que a mesma bula excomungaria
os médicos, que normalmente procuram muitos indícios das
doenças do corpo através da observação da mão49.

Isto teve pois como consequência a diminuição das publicações


astrológicas na segunda metade do século xvi, particularmente em
Itália (ao passo que se desenvolviam nos países protestantes), e o
aparecimento de fisiognomonias «naturais»50. Este ponto de inflexão
da tradição fisiognomónica está registado em especial na obra de

46
Figura 6 — G. B. delia Porta, Delia Fisonomia delPHuomo^ Libri sei, éd. Tozzi,
Pádua, 1623 (1586) (Foto B. N.).

47
G. B. delia Porta. Para além de uma necessária prudência51, a ambiva­
lência que a obra de Porta conserva em relação à astrologia revela
uma tensão mais geral que caracteriza as representações da figura hu­
mana nesse fim do século xvi. La Physionomie humaine de Porta, a
sua superior contribuição para a «ciência do rosto», possui de facto
traços do pensamento mágico dos filósofos da natureza do Renasci­
mento, mas sob outros aspectos prepara o advento de uma razão
clássica do corpo e do rosto.
Porta é, sem contestação, um homem do Renascimento pelas suas
preocupações de «magia natural», em que mais se trata de desvendar
os segredos da natureza humana do que lhe descobrir as leis’2; é-o
ainda pela utilização que faz das comparações zoomorfas, fiéis às
doutrinas das assinaturas e das simpatias. «Não é verdade», pergunta
ele, «que o homem é ousado como o leão, medroso como uma lebre,
que se pode comparar ao galo pela liberalidade e ao cão pela avare­
za?»53. «Em resumo, que reúne e resume as compleições e caracteres
das diferentes espécies animais, que condensa toda a criação?» Deste
universo de semelhanças extrai o método que estabelece a semiologia
da relação entre o homem exterior e o homem interior54. Esta privile­
gia a inferência indirecta dos indícios do corpo humano e conserva
uma organização ternária: já não são os astros, mas as formas e os ca­
racteres atribuídos aos animais que fazem a ligação entre o homem de
fora e o homem de dentro, quer dizer entre o homem e ele próprio.
O que a obra de Porta ilustrou com uma iconografia em que se orga­
niza um diálogo das semelhanças entre o rosto humano e as faces ani­
mais e em que se descobre com demasiada frequência o essencial da
sua contribuição55 (ver figura 6).
Mas existe uma outra racionalidade na obra de Porta: o cuidado
no método, a precisão da observação, a sistematicidade e amplidão do
trabalho filológico que leva a uma reapropriação crítica dos trabalhos
antigos e medievais. Sob esse efeito, a figura humana naturaliza-se,
ainda que o saber fique dominado pelo pensamento das analogias e
das simpatias. La Physionomie humaine é o momento da história da
fisiognomonia em que a tradição naturalista proveniente de Aristóte­
les ganha pouco a pouco superioridade sobre a tradição astrológica e
divinatória ligada às interpretações da Idade Média árabe. E embora
se tenha considerado grandemente o bestiário humano que ilustra as
obras de Porta, é mais com a racionalização dos discursos do que com
a multiplicação das imagens que nos vemos confrontados. A compa­
ração com o tratado de Cardan e a tradição metoposcópica em geral é
a este respeito eloquente, uma vez que a relação entre texto e imagem
parece inverter-se. A metoposcopia inscrevia mais claramente a figura

48
Libro Tcrzo. 12^
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Libro Terzo. 120


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Tupiile pudole de gfoabi.

Figura 7 — G. B. delia Porta (op. cit.): detalhes do olho (Foto B. N.).

49
na representação icónica e no campo de visão. A fisiognomonia natu­
ral parece querer converter este olhar em discurso e mergulhar mais
profundamente o corpo no campo da linguagem.
La Physionomie humaine homogeniza e racionaliza os textos que
a tradição lhe lega: Porta é levado a distinguir entre os sinais, a classi­
ficá-los e a pensar as suas relações. Pouco a pouco organiza-se uma
semiologia da superfície corporal: indica os sinais comuns e deriva­
dos, ensina a localizá-los, a hierarquizá-los, a relacioná-los uns com os
outros no termo de um cálculo. Corpo e rosto são recobertos pouco
a pouco pela rede de um discurso que estabelece a ligação entre a
aparência e a interioridade. E as percepções da própria fisionomia
transformam-se sob o seu efeito: o discurso tende a ordená-las numa
lista hierarquizada de órgãos e de indícios que traduzem e comandam
o percurso do olhar sobre o corpo visível. A figura humana destaca-
-se pouco a pouco do universo das semelhanças. Um limite mais
franco parece separar o rosto das confusões iniciais com o universo
natural; a sua legibilidade torna-se mais rigorosa, mas também mais
abstracta: como se, insensivelmente, se afastasse, destacando-se das
percepções imediatas; como se lentamente se interpusesse entre o ros­
to e o olhar que o observa o véu silencioso e quase transparente da
linguagem. E entre o espaço metonímico da lista (qualquer órgão é
seguido e precedido de um outro órgão, qualquer traço morfológico
está ligado a uma qualidade psicológica) e o espaço metafórico da
imagem (todo o homem se assemelha a um animal), a fisiognomonia
de Porta hesita, o seu texto vacila e a percepção que ela oferece do
corpo tolda-se. Esta ambivalência é a de um momento histórico em
que as concepções do rosto ainda não saíram do universo mágico das
semelhanças naturais e ainda não entraram no universo racional das
forças, das causas e dos efeitos físicos56.
Mais racional e mais autônoma, a figura ganha por outro lado em
profundidade e em expressividade: tende a animar-se. E também aí a
obra de Porta é ambígua. Dá uma importância preponderante à mor-
fologia facial e persegue os seus detalhes mais aparentemente insignifi­
cantes: dá sentido e importância às comissuras dos lábios, aos cantos
dos olhos, enumera os grãos ou cálculos que ornam a íris do olho,
que logo compara com os traços semelhantes que pode apresentar es­
te ou aquele animal (ver figura 7). Mas este naturalismo atento aos
mínimos indícios morfológicos, esta dissecção infinita do pormenor
levam contudo Porta a consagrar um livro completo de La Physiono­
mie humaine ao órgão que excede a anatomia dos traços e parece tor­
ná-la vã: o olho. Porque no olho Porta quer agarrar o olhar; e no
olhar, dizer a expressão.

50
Está-se então longe das marcas gravadas desde tempos imemoriais
na superfície plana e lisa da fronte que as metoposcopias decifram;
como se está já longe das caracterizações morfológicas rudimentares
das primeiras fisiognomonias do princípio do século. E certo que
Porta não descura nenhuma observação morfológica, mas também
conclui que os olhos são para o rosto o que o rosto é para a alma. Os
olhos são a alma do rosto: chama-se-lhes ainda «as portas da alma,
pois é pelos olhos que ela se deixa ver de fora»57. Daí resulta que ma­
nifestam toda a perfeição da fisionomia e que por consequência os si­
nais dos olhos devem sobrepor-se aos de qualquer outra parte do
corpo. São a morada transparente da alma.

Sem dúvida que a alma faz dos olhos a sua morada, é onde as
lágrimas que mostram compaixão têm origem; quando baixa­
mos os olhos a alguém, parece que através deles lhe tocamos a
alma: é pela alma que vemos (...); os olhos, como faria uma
mesa lisa e transparente, recebem a parte visível da alma e fa-
zem-na passar para fora; acontece assim que um pensamento
profundo torna os olhos como que cegos, porque a vista se
retira para dentro58.

O longo estudo que Porta consagra aos olhos faz pois mais que
retomar a preponderância que a tradição antiga já lhes concedia.
«Mensageiros da alma», «janelas do coração», «encontro das graças»
ou ainda «luzes de amor»: sob estas antigas metáforas do olhar, as
percepções da figura humana deslocam-se sensivelmente. O olhar é o
sítio da superfície em que transparece o homem interior: dá-se uma
atenção mais exigente às profundezas do corpo. A interioridade, que
a fisiognomonia astrológica fixava num carácter externo, tende de fu­
turo a projectar-se no invólucro corporal à maneira de um reflexo.
O homem está menos separado de si mesmo.
Porque, com a observação do olhar, a fisiognomonia começa a fa­
zer do movimento um sinal: a análise de Porta leva-o de uma caracte­
rização morfológica do olho (a forma, a situação, a cor dos olhos...) a
uma avaliação do movimento («olhos que estremecem», «que piscam»,
«que se movem»...), e para além da própria expressão («olhos riso­
nhos», «olhos tristes»...). Um tempo novo, mais fugaz, penetra então
a figura: as fisionomias imóveis, hieráticas, indiferenciadas, animam-se
pouco a pouco, ainda que as semelhanças animais as liguem ainda a um
universo fechado e imutável de formas naturais. As figuras são ganhas
lentamente por uma dimensão psicológica que lhes era estranha.

51
Ser o fisionomista de si próprio

É o que diz o texto de Porta, muito mais do que o que mostra a


sua iconografia, que se mantém fixa no naturalismo imóvel das sim­
patias morfológicas. E necessário observar aqui que a fisiognomonia
manifesta uma sensibilidade adiada para uma evolução que foi primei­
ramente a do retrato pintado: também aí a figura humana se libertou
progressivamente desde o século xiv com o aparecimento do retrato
livre das potências tutelares, divindades e santos patronos que velavam
por ela. A figura deixa de ser sagrada; depois, ao longo do século xv,
o próprio rosto destacou-se num fundo neutro, girou lentamente no
plano do quadro para enfrentar o espectador; em Florença, no fim do
século xv, abandona-se o retrato hierático em medalha ou brasão a
favor do estudo fisionômico de frente, que permite a observação mais
precisa e mais completa da expressão, a decifração íntima. Esta deci-
fração do homem interior tomará um amplo lugar no século xvi,
quando o retrato se autonomizar como objecto e como mercadoria,
indo ao encontro do gosto de um público cada vez mais vasto; o hu­
manismo faz da figura humana um primeiro veículo do sentido e da
expressão e Dürer pinta olhares, o olhar interior de Erasmo, o olhar
reflexivo do auto-retrato. Enquanto Leonardo da Vinci afirma: «Fa­
rás as figuras de maneira que seja fácil compreender o que elas têm
no espírito, de outro modo a tua arte não será digna de louvor»59. A fi­
siognomonia de Porta atesta o eco mais tardio e ainda pouco perceptí­
vel que a sensibilidade na expressão encontra no que então era a ciên­
cia natural do homem.
Isto é de notar ainda na utilidade social que Porta atribui à fisiogno­
monia. Ele elabora um modelo de tratado, reproduzido ao longo do
século xvii e muitas vezes imitado depois, que encerra a descrição fi-
siognomónica dos órgãos e dos indícios com uma galeria de retratos
de caracteres. Também aqui a tradição é antiga: os retratos do sábio
ou do louco, do homem de bem ou do mau já figuram no tratado
pseudo-aristotélico. Adquirem com Porta um novo rigor que atesta
uma necessidade social: é necessário saber decifrar os sinais aparentes
do rosto e ainda saber predizer, a partir de uma origem psicológica, o
conjunto dos traços físicos que a manifestam. Adivinhava-se a alma
pelos indícios corporais; deduzir-se-á o corpo das qualidades espiri­
tuais. Aparentadas à literatura de «caracteres», estas leituras comple­
mentares devem garantir uma maior legibilidade dos corpos e das al­
mas na sociedade civil.
No seio desta última, a inspecção de outrem conserva todos os

52
seus direitos. A figura decifrada pela fisiognomonia conserva o seu
estatuto de marca e de estigma social: convém sempre observar os
outros para os conhecer, para desmascarar as dissimulações e escolher
os amigos, «para que cada um, pensando na sua salvação, se associe a
homens fiéis e dotados de bons costumes, evitando a companhia dos
maus e dos perversos»60. Mas a fisiognomonia deve igualmente per­
mitir a cada um observar em si mesmo o homem interior:

Esta espécie de ciência poderá também, não só pela inspecção


de outrem, mas também pela de nós próprios, servir-nos de
muito, de forma a que nós próprios possamos tornar-nos fi-
sionomistas de nós mesmos61.

Ser fisionomista de si próprio-, as formas de controlo social pelo


olhar devem estender-se ao homem interior; a fisiognomonia surge
então como uma disciplina pessoal.

Se alguém consulta o espelho para se ver e notar que o seu


corpo tem uma excelente constituição, que tenha cuidado pa­
ra que a dignidade do seu corpo não seja manchada pelos seus
feios costumes; e aquele que descobrir nos sinais do seu cor­
po que a sua alma não é de modo algum recomendável, que se
esforce com diligência por recompensar com o exercício da
virtude os maus sinais do corpo62.

Neste exercício do olhar para si que se resume a considerar-se co­


mo um outro, o homem interior pode conseguir, no final, desligar-se
um tanto da sua aparência: o espaço íntimo aumenta na prática de
uma tal disciplina; e com ele a possibilidade de cada um desmentir o
seu aspecto reformando a sua alma, como também mascarar sob exte­
riores amáveis os hábitos corrompidos.

NOTAS
’ B. Coclès, Le compendion et brief enseignement de la physiognomonie, Paris,
1560, p. 1.
2 B. Coclès, Chyromantie ac Phisionomie Anastasis cum approbatione Magistrati
Alexandri de Achillinis, Bolonha, 1504. A obra é reeditada em 1515 em Pavia, em
1523 em Treviso aos cuidados de Tricasso, e depois em forma de compendium em 1533,
1534, 1551, 1554, 1555, 1597...
3 E muito traduzido desde 1525. Em italiano, em Veneza, em 1531; em alemão
em Estrasburgo em 1530 e 1537; em francês em Paris em 1550, e em inglês em Lon­
dres no mesmo ano.

53
4Jean dTndagine, Introductiones apotelesmaticae in Chyromantian, Physiogno-
miam, Astrologiam Naturalem complextones hominum naturas planetarum, Estras­
burgo, 1522.
5 Magnus Hundt, o Velho, Antropologium de hominis dignitate et propnetatibus,
Leipzig, 1501; C. Achillinus de Bologna, De subjecto physionomie et chyromantie,
Pavia, 1515; Michel Ângelo Biondo, De cognitione hominis per aspectum, Roma,
1544; Jean Gosseiin, La Phisionomie, Paris, 1549; Antoine du Moulin, Physionomie
naturelle, extraite de plusieurs philosophes anciens et mise en français, Lyon, 1550;
Guglielmo Gratarolo, Des préceptes et moyens pour recouvrer, augmenter, et contre-
garder la mémoire avec un oeuvre singulier qui démontre ã facilement prédire et ju-
ger des moeurs et de la nature des hommes selon la considération des parties du corps,
Lyon, 1555 (Ia ed. latina: 1544); Paulo Pintius, Fisionomia naturale, Roma, 1555.
6 B. Coclès, Le compendion..., p. 2.
7 «A fisiognomonia é a ciência das paixões naturais da alma e das repercussões
que elas têm no corpo transformando-se em sinais de fisionomia.»
8 Chega-lhe através dos tratados seguintes, relidos e reinterpretados pela Idade
Média latina e árabe: pseudo-Aristóteles, Physiognomonica, traduzido no século xm
por Bartolomeu de Messina; Polemonte de Laodiceia (século n depois de J. C.), De
physiognomonia liber; Anonymi de physiognomonia liber, tratado latino do século m
ou iv (pseudo-Apuleio); estes tratados foram retomados em: R. Foerster, Scriptores
psysiognomonici graeci et latini, Lipsiae, G. B. Teubner, 1893. A obra d’Adamantios
(século iv) foi traduzida por H. Boyvin du Vaurouy, La physionomie d'Adamantios, Pa­
ris, 1635. A esta tradição é necessário acrescentar um opúsculo de Melampus (século iii)
sobre a interpretação dos nevos editado em: J. Cardan, Metoposcopie, Paris, 1658.
Sobre as origens da fisiognomonia e também sobre a relação destas origens nos trata­
dos da era clássica, pode consultar-se: R. Foerster, Die Physiognomonia des Grie-
chen, Kiliae, 1884; G. J. Antonini, Precursori di Lombroso, Turim, 1900; L. Thomdike,
A history of magic and experimental sctence, 8 vols., Nova Iorque, Columbia University
Press, 1923-1958; P. Delaunay, «De la psysiognomonie à la phrénologie, histoire et évo-
lution des écoles», Le progrès medicai, n.c 29-31, Julho-Agosto 1928; Y. Mourad, La
physiognomonie arabe et le Kitab Al-Firãsa de Fakhr Al-Din Al-Rãzi, Paris, Librairie
orientaliste P. Geuthner, 1939; A. Denieul-Cormier, «La très ancienne physiogno­
monie de Michel Savonarol», La Biologie médical, separata, Abril 1956; G. Lanteri-
-Laura, Histoire de la phrénologie, Paris, P.U.F., 1970; J. Baltrusaitis, Aberrations.
Essais sur la légende des formes, Paris, Flammarion, 1983, pp. 9-53; P. Dandrey, «La
physiognomie comparée à l’âge classique», Revue de Synthèse, III série, n.° 109, Ja-
neiro-Março 1983; e do mesmo autor: «Un tardif blason du corps animal: résurgences
de la physiognomonie comparée au xvne siècle». xvif siècle, n.° 153, Out.-Dez. 1986.
9 B. Coclès, op. cit., p. 2.
10 O que foi progressivamente adquirido e obtido pela medicina nos finais do sé­
culo xvm: sobre estes pontos, ver: M. Foucault, Naissance de la clinique, Paris,
P.U.F., 1963.
11 Aparece muito claramente no estudo que J. Bottéro (pp. cit.) consagrou aos pri­
meiros tratados de adivinhação mesopotâmica. Há toda uma fisiognomonia — em
que é visível o parentesco formal com os tratados da era clássica — nas técnicas de
observação do corpo próprias de uma das mais antigas adivinhações conhecidas.
E uma racionalização desta observação em que se elaboram as premissas do olhar
médico. Portanto não é próprio, como é costume, fazer começar a fisiognomonia
com a tradição aristotélica.
12 J. Taxil, L'Astrologie et la Physiognomonie en leur splendeur, Tournon, 1614, p. 2.
13 «Principalissimus autem locus est, qui est circa oculos et frontem, et caput, et

54
faciem, secundus autem, qui est circa pectus et spatulas, consequenter circa crura et
pedes, quae autem, circa ventrem, minime.» (Pseudo-Aristóteles, Physiognomonica,
em R. Foerster, op. cit., p. 91).
14 Ver, por exemplo, G. B. delia Porta, La Physionomie humaine, Rouen, 1655
(tradução da edição latina de 1598, em Nápoles), p. 550.
15 Ibid., pp. 1-2.
16 Os discípulos de Sócrates apresentam a Zópiro, célebre fisiognomonista grego,
um retrato do mestre. Tendo observado longa e silenciosamente o rosto do filósofo,
Zópiro concluiu: «Este homem deve ser mentiroso, ardiloso, sensual; é alguém que
ama a fornicação.» Furor indignado dos alunos que contaram a Sócrates. Este ainda
os confunde mais quando lhes responde: «Zópiro tem razão, este é com efeito o meu
carácter. Mas quando vejo que as minhas inclinações são más, não as sigo e a minha
razão leva a melhor sobre as minhas paixões. O filósofo cuja razão não comanda os
impulsos não é um filósofo.» (Cícero, De fato, V, 10).
17 Ver Y. Mourad, op. cit.
18 Ibid., p. 1.
19 Assim, no texto de Razès analisado por Y. Mourad, começa-se por observar a
cor e o brilho da pele do escravo para julgar o estado do fígado, do baço e do estô­
mago: «Manchas brancas ou escuras que contrastem com a cor da pele indicam um
começo de herpes ou de lepra. E preciso desconfiar dos nevos, das tatuagens e dos
traços de cauterizaçào, pois podem ter sido feitos para esconder os traços da lepra.
Depois da inspecção da pele, procede-se ao exame dos olhos, das pálpebras, das so­
brancelhas, do nariz, do hálito, da boca, da cor dos lábios, dos dentes. Ausculta-se
em seguida a barriga e as glândulas do pescoço. Depois faz-se correr o escravo para
saber da sua capacidade respiratória e para ver se tem tosse (...)» {Ibid., p. 56).
20 Durante este período, a fisiognomonia é considerada como uma verdadeira
ciência. Entra nas classificações das ciências; é um ramo secundário da física tal como
a medicina: Avicena coloca-a na terceira ordem das divisões secundárias da física, de­
pois da medicina e da astrologia. Conserva no seio das ciências naturais uma autori­
dade bem real, apesar da opinião de Averróis que a considera como uma disciplina
adivinhatória, perigosa e conjectural.
21 Esta figura também numa classificação das ciências do século xvi entre os onze
ramos das práticas adivinhatórias: ciência dos nevos, quiromancia, escapulomancia,
adivinhação pelas pegadas, ciência das genealogias pela inspecção dos membros e da
pele, arte de orientar-se no deserto, de descobrir as origens, os minerais, de predizer
a chuva, de predizer através das coisas passadas e presentes, ou enfim pelos movi­
mentos involuntários dos membros (ver: Y. Mourad, op. cit., p. 29).
22 Ibid., p. 61.
23 J. Gosselin, op. cit., p. 4 (itálico nosso).
24 Ibid.
25 As referências ao saber do conhecedor de cavalos são frequentes na fisiogno­
monia, principalmente na tradição naturalista. E também aos saberes da caça: Porta
vê aí uma das bases da sua ciência. Michelangelo Biondo junta à sua fisiognomonia
de inspiração médica e anatomista {De cognitione hominis...) um tratado sobre os sa­
beres do caçador: De canibus et venatione libellus, Roma, 1543.
26 Ver nomeadamente: P. Dumaitre, A. Hahn e J. Samion-Contet, Histoire de la mé­
decine et du livre medicai, Paris, 1962; A. S. Lyons e R. J. Petrucelli, Histoire illustrée
de la médecine, Paris, Presses de la Renaissance, 1979; R. Herrlinger, History of Medicai
Illustration from Antiquity to 1600, Nova Iorque, Nijkirk, 1970; J. L. Binet e P. Des-
cargues, Dessins et traités d^anatomie, Paris, Editons du Chêne, 1980; S. Edgerton Jr.,
«Médecine, art et anatomie», em Culture tecmque, n.° 14, Paris, CRCT, 1985,
pp. 165-181.

55
27 Ver: P. e G. Francastel, Le Portrait, cinquante siècles d^umanisme en peinture,
Paris, 1969.
28 Traduz-se ao mesmo tempo os tratados antigos e árabes. Nos finais do século xn,
o tratado latino atribuído a Apúlio chega ao Ocidente, em breve seguido pelas obras
árabes: o Liber Almansoris atribuído a Razès é traduzido em 1179 por Gérard de Cré-
mone e o Secret des Secrets, traduzido no início do século xm por Philippe de Tripoli; o
pseudo-Aristóteles é traduzido do grego para latim em 1260 por Bartolomeu de
Messina, antes de numerosos tratados de fisiognomonia astrológica árabe que inun­
dam o Ocidente desde o final do século xm (ver: Denieul-Cormier, op. cit.).
29 Os trabalhos mais importantes são os de Michel Scott e de Pierre d’Abano (de
Pádua), que serão editados no século xv: P. d’Abano, Liber Compilationis physiono-
miae, Pádua, 1474; M. Scott, Liber physionomiae, Besançon, 1477; De procreationis
et hominis physionomia, Basiléia, 1480. Notemos ainda Aldebrandino de Siena, Le
Régime du corps (parte IV: «Phisionomie»), texto francês do século xin publicado
pelos Drs. Landouzy e Papin, Paris, 1911. E preciso acrescentar aí os comentários de
Albert Le Grand, Buridan e Bacon.
30 Reclama-se de Avicena para alojar o senso comum, a fantasia, a virtude imagi­
nativa, a virtude cognitiva, a virtude estimativa nos três ventrículos anterior, médio e
posterior do cérebro; a propósito deste conjunto de pontos respeitantes ao Speculum
Physionomiae, ver A. Denieul-Cormier, op. cit.
31 A renovação da fisiognomonia está estreitamente ligada à difusão do livro, quer
seja sob a forma de tratados eruditos em língua latina destinados a um público letra­
do quer sob a de brochuras em língua vulgar, mais breves, elementares e anedóticas
em intenção a um público popular: uma grande quantidade de compendia, de resu­
mos, almanaques e calendários que difundem as crenças populares sobre o corpo es­
tão repletas de máximas fisiognomónicas, lado a lado com as profecias, as predições
ligadas à passagem dos cometas, receitas de cozinha, conselhos de dietas e de saúde
do corpo. Encontrar-se-ão os elementos de tais representações fisiognomónicas na
cultura popular do corpo no livro de F. Loux, Le corps dans la société traditionnel,
Paris, Berger-Levrault, 1979; e também nos trabalhos que registam os saberes do
corpo na literatura popular da «biblioteca azul», prolongamento destes primeiros
manuais do século xvi (ver, por exemplo: La Bibliothèque bleue, La littérature popu-
laire en France du xvif au XIX6 siècle, Paris, Julliard-Gallimard, 1971).
32 Sobre a doutrina das assinaturas, ver a súmula de L. Thorndike, op. cit., ou ain­
da certos trabalhos de A. Koyré, por exemplo: «Paracelse» em Mystiques, spirituels
et alchimistes du xvF siècle allemand, Paris, Gallimard, 1971; e obviamente M. Fou­
cault, Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966.
33 R. Saunders, Physiognomonie and Chiromancie, Metoposcopie, The Symmetri-
cal Proportions and Signal Moles of the Body..., Londres, 1653. Trata-se de um texto
tardio, verdadeiro catálogo das fisiognomonias astrológicas dos séculos xvi e xvn.
34 G. B. delia Porta, op. cit., p. 68.
35 J. Taxil, op. cit., p. 6.
36 J. Gardan, Métoposcopie, Paris, 1658. Uma edição latina aparece no mesmo ano.
37 Thaddaeus Hagecius, Aphorismorum Metoposcopicorum libellus unus, Franco-
forte, 1560; Rodolphus Goclenius le Jeune, Uranoscopia, chiroscopia et metoposcopia,
Francoforte, 1603; Physiognomica et chiromantica specialia, Francoforte, 1621; J. Ta­
xil, op. cit.; Samuel Fuchs, Metoposcopia et Ophtalmoscopia, Estrasburgo, 1615;
Christian Moldenarius, Exercitationes Physiognomicae, Wittenberg, 1616; Ludovico
Settala, De naevis, Milão, 1626; Ciro Spontone, La Metoposcopia, overo Commensu-
razione delle Linee delia Fronte, Veneza, 1626; Filippo Finella, De Methoposcopia
Naturali liber primus, Anvers, 1648; De Methoposcopia Astronômica, Anvers, 1650;
R. Saunders, op. cit.

56
38 A metoposcopia é condenada como prática adivinhatória por Pierre Nodé (Dé-
clamation contre Perreur exécrable des maleficiers, sorciers, enchantateurs et sembla-
bles observateurs des superstitions, Paris, 1578), ou ainda por Jean Bodin (De la dé-
monomanie des sorcters, Paris, 1580). Suscita a incredulidade de Montaigne («E uma
fraca afirmação que a destrói»; «De la phisionomie», Essais, III, 12, Ed. Stowski,
Nova Iorque, Verlag, 1981, pp. 353-354) e a ironia de Rabelais zombando a meto­
poscopia de «Herr Trippa» (Agripa): «Quando o viu pela primeira vez, Herr Trippa,
olhando-o nos olhos disse: Tens a metoposcopia e fisionomia de um cornudo. Quer
dizer de um cornudo escandaloso e difamado.» (Tiers Livre, Ch. 25 em Oeuvres
Complètes, tomo III, Paris, Alphonse Demerre, 1870, p. 123).
39 J. Cardan, op. cit., p. 2.
40 Ibid., p. 5.
41 Ibid., p. 6.
42 J. Taxil, op. cit., p. 6 (itálico nosso).
43 «Notem que os sinais ou caracteres se diversificam segundo a variedade do
tempo; daí vem a grande modificação dos diversos acidentes que se observam na vida
dos homens. Mas as linhas mais notáveis, tal como os signos (principalmente aqueles
que levam o seu significado até ao fim da vida) permanecem» (J. Cardan, op. cit., p. 8).
44 Esta escrita possui caracteres de base — as sete linhas dos planetas — que for­
mam uma espécie de partição contínua na qual as possibilidades significantes podem
desmultiplicar-se, as linhas variam em tamanho e em número; são contínuas ou que­
bradas, largas ou finas, aparentes ou obscuras. Curvam-se, torcem-se, cruzam-se, ra­
mificam-se, desenham uma grande quantidade de figuras geométricas, de letras, de
fórmulas simbólicas...
45 De maneira paradoxal, os traços expressivos que não foram completamente
apagados subsistem nas margens do retrato e muitas vezes vêm tornar legíveis as fi­
guras cujos hieróglifos frontais são esotéricos e opacos: olhar direito e simétrico do
homem de bem, olhares dardejantes dos infortunados ou dos assassinos, olhar diver­
gente e incerto do louco ou do vagabundo. Isto ilustra-se ainda melhor nos retratos
mais expressivos da metoposcopia de R. Saunders (op. cit.) (ver figura 5), particular­
mente nas figuras negras dos assassinos, de traços que o acusam.
46 J. Taxil, op. cit., p. 6.
47 A bula de Sixto V é confirmada em 1613 por Urbano VIL As artes ocultas são
equiparadas a heresias e perseguidas sobretudo em Itália e em Espanha. Os tratados
de fisiognomonia astrológica são colocados no Index Expurgatorius, os autores são
perseguidos pela Inquisição, ainda que tais obras sejam consideradas formas menores
de heresia. Assim, Jérome Cardan não foi verdadeiramente perseguido quando ensi­
nava na Universidade de Bolonha nos anos de 1570.
48 Sobre este conjunto de pontos, ver L. Thorndike, op. cit., vol. VI, pp. 145-178.
49 J. Taxil, op. cit., p. 128.
50 Recebem assim o impnmatur, as obras de Giorgio Rizza Casa, La fisionomia,
Carmagnola, 1588; e de Ioannes Paduanius de Verona, De singularum humani corpo-
ris partium significationibus, Verona, 1589. Tinham sido precedidos na via de uma fi­
siognomonia natural no tratado de Paulo Pintius (op. cit), publicado em 1555. No
início do século xvn serão seguidos pela Fisionomia Naturale, de Giovanni Ingegneri
(Milão, 1607). O curto tratado de Livio Agrippa de Monferrato (Discorso di Livio
Agrippa da Monferrato, Medico et Astrologo, sopra la Natura e Complessione huma­
na, Roma, 1601) é em contrapartida uma fisiognomonia de inspiração astrológica,
mas não uma metoposcopia. Em Espanha, a fisiognomonia astrológica foi menos es­
tritamente colocada no index: a obra de Geronimo Cortês (Phisionomia y vários se­
cretos de Naturaleza, Barcelona, 1601), de carácter astrológico nitidamente acentua­
do, foi reeditada várias vezes no início do século xvn.

57
51 As posições de Porta com respeito à astrologia não são certamente exemplos de
uma componente táctica: os seis volumes da sua Physiognomonie céleste (Nápoles,
1603) oferecem todo um conjunto de considerações astrológicas ao mesmo tempo
que refutam as profecias baseadas nos planetas como um non-sense e condenam a as­
trologia judiciária. O que os astrólogos atribuem aos planetas, sinais do zodíaco e
constelações deve ser inferido de qualidades, humores e particularidades do corpo
humano.
52 Sobre este ponto ver G. Simon: «Sur un mode de méconaissance au xvic siècle:
Porta e 1’occulte», em La Pensée, n.° 220, Mai.-Jun., 1981.
53 G. B. delia Porta, op. cit., p. 32.
54 E o «silogismo dos fisionomistas»; «E assim será preciso argumentar para con­
cluir e inferir: tudo o que tem grandes extremidades é forte; o leão e alguns outros
animais têm grandes extremidades: portanto o leão e alguns outros animais são for­
tes. O termo médio do silogismo que é (B): ter grandes extremidades, isto é, o signo,
converte-se com o termo principal que é (A); forte: a última proposição ou afirma­
ção, ou seja (C) passa para além do leão pois ter grandes extremidades não inclui
apenas toda a espécie de leões, mas também outros como o homem, o cavalo, o tou­
ro; assim poderá provar-se do mesmo modo que Heitor é forte, e como tudo o que
tem grandes extremidades é forte, Heitor que tem grandes extremidades é forte.»
{Ibid., pp. 65-66).
55 A propósito da zoomorfologia de Porta, ver: A. Bouchet, «J. B. Porta et la
physiognomonie au xvic et xvnc siècle», Cahiers lyonnais d'Histoire de Médecine,
1957, vol. II, n.° 4, pp. 13-42; J. Baltrusaitis, op. cit.; P. Dandrey, op. cit.; L. Van
Delft, «Physiognomonie et peinture de caractères; G. B. delia Porta, Le Brun et La
Rochefoucauld», L’Esprit crèateur, Spring, 1986, pp. 43-52.
56 Ver: J. J. Courtine, «Corps, regards, discours; typologies et classifications dans
les physiognomonies de l’âge classique», em Langue Française, n.° 74, Paris, Larous-
se, Maio 1987.
57 G. B. delia Porta, op. cit., p. 403.
58 Ibid.
59 Ver P. e G. Francastel, op. cit., p. 105. A obra dos Francastel sublinha ao longo
do tempo a animação progressiva da figura humana à medida que se distancia do hie-
ratismo das suas primeiras representações. A pessoa humana é cada vez mais valori­
zada, a pouco e pouco a expressão ganha o rosto. E também o que nota G. Duby na
estatuária e no retrato dos séculos xn e xm: «Parece que, por volta de 1125-1135,
por exemplo no pórtico de Saint Lazare d’Autun, os talhadores de imagens recebem
(...) ordens para se distanciarem das abstracções e animarem cada personagem com
uma expressão pessoal; dez anos mais tarde, na fachada real de Chartres, os lábios e
os olhares tornam-se verdadeiramente vivos; depois são os corpos que por sua vez se
libertam do hieratismo; enfim, muito mais tarde, no último terço do século xm,
franqueia-se uma nova etapa decisiva quando irrompe na escultura o retrato, a pro­
cura da semelhança.» {Histoire de la vie privé, t. II, p. 506).
60 G. B. delia Porta, op. cit., p. 1.
61 Ibid.
62 Ibid.
Capítulo 2

FIGURAS E ROSTOS DAS PAIXÕES


(Progressos da fisiognomonia no século xvn)

«This ali in pieces, ali coherence gone»1. Está tudo em pedaços,


desapareceu toda a coerência. O verso de John Donne dá toda a me­
dida das transformações da percepção do mundo físico que surgem
ao virar do século xvn. O homem perde o mundo fechado que dava
sentido à sua existência e constituía a referência do seu saber; abre-se
um universo infinito, em movimento, apenas perceptível na lingua­
gem das figuras geométricas.
Se uma tal transformação perturba as próprias estruturas do pen­
samento, ela não se realiza, no entanto, por uma mutação brutal. Os
seus efeitos sobre a percepção do homem e do seu corpo fazem-se
ressentir lentamente e de maneira desigual: a fisiognomonia continua
a aparecer no contexto da teoria das assinaturas e da astrologia, mesmo
na segunda metade do século xvn2. Progride, porém, a ideia de uma se­
paração clara entre esta fisiognomonia astrológica e uma fisiognomonia
natural: ao longo do século xvn surge uma série de obras que se vol­
tam para a medicina sujeitando a tradição astrológica a uma crítica
que se vai tornar mais viva3. Os tratados apoiam-se naturalmente não
só numa observação do invólucro corporal, mas também em elemen­
tos de anatomia. O olhar atravessa a superfície do corpo, a anatomia
penetra o homem interior: surge assim na obra de E. Pujasol Presby-
tero um corte anatômico do olho4, enquanto uma descrição anatômi­
ca precede cada caracterização fisiognomónica operada a partir deste
ou daquele órgão do corpo. Mas as duas correntes herdadas da tradi­
ção ficam muitas vezes confundidas: é o caso de Cureau de la Cham­
bre que, no entanto, na sua L’Art de connaitre les hommes, toma al­
gumas distâncias em relação à «quiromancia», pois importa ainda que
o médico tome em consideração os sinais astrológicos:

A arte que ensinamos não deve desprezá-los: é necessário que


recorra à sua ajuda uma vez que têm o mesmo desígnio que

59
ele e que nada deve ser esquecido para tentar descobrir uma
coisa tão escondida como o coração do homem5.

Se o homem exterior ganha sentido em relação às configurações


dos planetas ou ainda através da medicina dos humores, os textos de
fisiognomonia do século xvii oferecem, apesar de tudo, pouca dife­
rença dos seus antecessores do século xvi. Planetas e sinais do zodíaco
na fisiognomonia astrológica, humores e temperamentos na fisiogno­
monia natural, de forma alguma exclusivos uns dos outros, conti­
nuam a ser a garantia do fundamento da ciência do rosto: a analogia
da alma e do corpo.

O homem-orgamsmo

E este mesmo postulado que volta a pôr em questão o que cons­


titui o maior acontecimento de uma história da fisiognomonia no
século xvn: as célebres Conférences sur L’expression des Passions
que o pintor Charles Le Brun pronuncia em 1668 perante a Acade­
mia Real de Pintura e de Escultura6. As conferências de Le Brun fazem
com que a problemática da fisiognomonia sofra um deslocamento
considerável, introduzem-lhe um conjunto de dados novos e fazem
surgir uma outra representação do laço secular que unia o rosto à alma.
Em 1628, o tratado de Harvey que descreve a circulação sanguí­
nea agita a fisiologia do corpo humano. Sujeito ao direito comum das
leis físicas das forças e dos fluidos, este torna-se corpo entre os cor­
pos. Depende de um funcionamento rigorosamente autônomo e de-
sespiritualiza-se: é pura mecânica, um autômato.

Quero que considerem estas funções como produzindo-se na­


turalmente no seio da máquina em virtude da própria disposi­
ção das suas partes, como fazem nem mais nem menos os
movimentos de um relógio ou de outro autômato a partir dos
pesos e das rodas, de forma que não há necessidade de supor
interiormente uma alma vegetativa ou sensível, nem algum
princípio de vida além do seu sangue7.

Coube a Descartes tirar todas as consequências filosóficas e mo­


rais da nova fisiologia: o corpo é abandonado à mecânica, os direitos
da alma são salvaguardados na metafísica e os efeitos da alma sobre o

60
corpo são pensados na ordem das paixões. É neste esquema cartesia-
no que Le Brun baseia as suas conferências. Elas são bem mais uma
aplicação — ou, literalmente, uma ilustração — do tratado de Les
Passions de l’Ames do que um prolongamento da tradição fisiogno-
mónica anterior, que parecem conhecer, mas à qual não fazem refe­
rência senão ocasional e alusiva9. Apoiando-se numa fisiologia dirigi­
da a pintores, atestam preocupações largamente exteriores ao campo
de uma fisiognomonia que agitam. Na exposição e nos esboços de Le
Brun, a antiga concepção que faz do rosto a linguagem da alma perde
o sentido que tinha: o rosto vai deixar de ser o espelho da alma para
ser a expressão física das suas paixões. Nele, a figura humana desfaz-se
e recompõe-se, em todas as suas dimensões: na sua relação com o
mundo, no sinal, no movimento, no tempo; e, finalmente, na socie­
dade dos homens.
A figura humana afastou-se do mundo das assinaturas. Nas Con-
férences, o homem só é referido a si próprio, ao mecanismo do corpo
e às paixões da alma. E esta encontra-se localizada na organicidade,
no lugar hipotético da glândula pineal.

Embora a alma esteja junta a todas as partes do corpo, há to­


davia diversas opiniões quanto ao sítio em que ela exerce mais
particularmente as suas funções. Uns dizem que é uma peque­
na glândula no meio do cérebro Outros que está no co­
ração, pois é nesse lugar que se sentem as paixões; quanto a
mim, sou de opinião que a alma recebe as impressões das pai­
xões do cérebro, sentindo os seus efeitos no coração. Os mo­
vimentos exteriores que observei comprovam em muito esta
opinião10.

O lugar é, de facto, de pouca importância. Como pouco importa


que Descartes se tenha enganado e Le Brun depois dele. O essencial é
antes o efeito de uma tal concepção, uma vez esta admitida no campo
da fisiognomonia: o homem espiritual deve ser localizado no corpo
humano. O homem interior é também um homem orgânico e já não
simplesmente a imagem no espelho do corpo visível. O homem psi­
cológico é levado ao interior do homem mesmo enquanto o corpo se
despoja das presenças mágicas e das virtudes ocultas que o habitam.
Na fisiognomonia de Le Brun uma nova personagem entrou em cena:
o organismo. E com o seu aparecimento o homem-máquina sucede
ao homem-zodíaco. A representação da relação entre a interioridade
e a aparência, tal como se pode ler no rosto, ganha então sentido
num outro universo de referência: o da medicina, da anatomia, da
geometria e do cálculo.

61
Figura 8 — Ch. Le Brun: fisionomias de homens e de animais, 1671
(Foto Museu do Louvre).

62
As figuras de Le Brun afastaram-se consideravelmente das que
ilustram a tradição fisiognomónica até Porta e, para além ainda, nos
tratados do século xvn. No entanto, destaca-se muitas vezes da obra
do pintor, paralelamente aos esboços sobre a expressão das paixões, a
série de desenhos em que ele procedeu a uma comparação sistemática
das morfologias faciais dos homens e de certos animais. E inscreve-se
plenamente Le Brun na tradição fisiognomónica em virtude dessa
comparação11. E sem dúvida um erro: Le Brun deixou, por outro la­
do, esboços de anatomia a partir dos quais se poderia mais justamen­
te ler as suas Conférences como uma anatomia das paixões'2.
As representações zoomórficas em Porta e Le Brun em nada têm
o mesmo valor. São, no primeiro, um elemento indispensável à figu­
ração humana: a relação entre o homem exterior e o homem interior
ganha a sua legitimidade pelas simpatias que mantêm com o universo
das formas e dos caracteres dos animais. Ao ponto de o homem e o
animal se compararem acabando por se assemelhar e ameaçarem con­
fundir-se.
Nada disso se encontra em Le Brun: as comparações zoomórficas
são exteriores à representação das paixões, não são directamente neces­
sárias à Conférences sur L’expression, ao lado da qual antes figuram
como um aditamento, uma concessão que Le Brun pôde fazer tanto à
tradição fisiognomónica como à que consiste para os pintores em reali­
zar, a título de exercício, cabeças de expressão fortemente bestializada13.
E considerando estas últimas nos esboços de Le Brun (ver figura 8), as
suas formas híbridas patentes nas faces animais que os acompanham
supõem necessariamente uma representação apagada da figura humana.
Longe de a fazer depender da sua semelhança com o animal, situam-
-na como ponto de origem ou ponto terminal da analogia, à maneira
de um terceiro excluído, cuja própria ausência produz a omnipresen­
ça: a figura humana povoa a representação, é a sua base, permite-a.
Os desenhos zoomórficos de Le Brun ilustram de maneira paradoxal
a autonomia adquirida pela forma humana em relação à animalidade.
E as Conférences sur L’expression atestam de facto a cessação da in­
vestigação das correspondências exteriores entre homens e animais. Se
comparações ainda existem é a do homem consigo próprio. Se a ima­
gem do homem e do animal podem futuramente separar-se, é porque
avança a ideia de que a sua ligação é de outra natureza do que a do
reflexo sem idade das semelhanças: o homem e o animal são organis­
mos de que o século xvm cedo estabelecerá o quadro das identidades
e das diferenças. Expulsa de uma ciência natural do homem que pou­
co a pouco se vai constituir, a zoomorfologia encontrará a partir do
século xvn o espaço que desde a origem nunca deixara de ser o seu e
que depois continua a ocupar o da fábula e da sátira social.

63
Figura 9 — Ch. Le Brun: estudos do olho (Foto Museu do Louvre).

64
As Conférences sur L’expression e a fisiognomonia animal de Le
Brun não são todavia estranhas uma à outra, sendo necessário procurar -
-lhes o parentesco em alguma outra parte: na sua construção ou na sua
arquitectura. Obedecem a um sistema semelhante de coordenadas, são
regidas por um modo de cálculo similar. E inscrevem-se numa mesma
perspectiva semiológica, profundamente diferente da de Porta.

Da marca ao sinal

Toda a forma, todo o traço, todo o vestígio que aparecem à su­


perfície do corpo possuem na tradição fisiognomónica valor de in­
dício. De forma alguma exclusivos uns dos outros, os indícios adi­
cionam-se ao infinito, tão longe quanto o olhar pode perscrutar o
pormenor do corpo e a língua nomeá-lo.
Na semiologia de Le Brun, o traço morfológico já nada pode de
futuro significar directamente, independentemente dos outros e acres-
centando-os indefinidamente. Assim, na fisiognomonia animal, Le Brun
recorre a um modo de cálculo geométrico para distinguir os caracteres
dos animais a partir da sua morfologia facial: a natureza do animal pode
ser medida, de frente como de perfil, por um conjunto de coordena­
das, de ângulos e de rectas que denotam uma propriedade interna.
Relativo a uma configuração de traços, o indício deve ser de futuro
construído. O sinal tornou-se mais abstracto; aquém da literalidade
analógica do desenho, a semiologia de Le Brun constrói um animal
geométrico que pôs em relação com um animal psicológico: antecipa­
ção dos cálculos que levarão no século xvm à teoria do ângulo facial.
De forma geral, Le Brun multiplica os relacionamentos de traços
morfológicos: realiza séries de olhos humanos sem rosto, de expres­
são mutável (ver figura 9); implanta olhares humanos em várias espé­
cies animais, concebe paradigmas de órgãos isolados pertencentes a
espécies distintas14. As regras do que parece uma gramática visual seg­
mentam, desarticulam e reconfiguram o rosto. Interpõem-se entre o
olhar e o corpo visível e transformam as percepções deste último.
O olhar parece afastar-se do corpo. A fisiognomonia de Le Brun
liberta-se das percepções e das instituições imediatas da fisionomia:
torna-se-lhe necessário um certo recuo para apreciar simetria e pro­
porções. De repente, parece que o corpo já não fala uma linguagem
natural e imediatamente acessível; que perdeu o seu primeiro sentido,
a sua inocência literal, assumindo uma legibilidade mais regular, mais

65
Figura 10 — Ch. Le Brun, Conférences sur L’expression des Passions, 1668

66
abstracta, mas também mais rigorosa. E enquanto o olhar se impregna
de uma nova distância, o indício parece destacar-se do corpo morfo-
lógico onde se encontrava inscrito como marca. Parece — literalmen­
te — desencarnar-se\ a marca passa a ser sinal e deixa de se confundir
com os traços morfológicos existentes na epiderme. Com o afasta­
mento do olhar e a desencarnação do sinal, é todo o regime das per­
cepções e das visibilidades corporais que se modifica: deixa de se ler
no corpo a inscrição gravada de um texto, vendo-se em acção as re­
gras articuladas de um código.
O mesmo acontece nas Conférences: cada figura que representa
uma paixão (ver figura 10) é um conjunto de posições relativas dos
órgãos da expressão. Os esboços constituem, além disso, um inventá­
rio fechado, um «alfabeto»15, passando-se de uma figura a outra por
uma série de transformações que afectam o conjunto das relações en­
tre os traços morfológicos. A adição ilimitada das marcas foi substi­
tuída por um conjunto fechado de signos. A semiologia de Le Brun,
mesmo que só o consiga imperfeitamente, tende a organizar os traços
corporais em rede de sinais, em sistema de identidades e de diferen­
ças. O corpo esfuma-se sob o código: o que tem a ver com a tradu­
ção plástica de uma retórica das torres e figuras. Partindo do rosto
em repouso, em «tranquilidade», espécie de «grau zero» do sistema16,
enumera e articula o conjunto dos desvios da expressão.
As relações entre significantes morfológicos e significados psíqui­
cos também se transformaram. Com a dissipação do macrocosmos, o
corpo liberta-se das divindades tutelares que inscreviam na sua super­
fície o seu destino bem como o seu poder: os sinais adquirem então
uma organização fundamentalmente binária e só têm significado por
inferência directa, quando a um conjunto de traços expressivos cor­
responde sem mediação exterior uma paixão da alma. E deixam de
entrar em relação sobre o modo da analogia, mas sobre o da causali­
dade. LArt de connaitre les hommes permite assim para Cureau ler
no rosto os sinais de uma linguagem das causas e dos efeitos.

Esta arte (...) pode descobrir um efeito oculto pela causa que
lhe é conhecida, ou uma causa obscura por um efeito mani­
festo, e um efeito desconhecido por um outro que é evidente.
E estes meios são chamados sinais (...). As causas e os efeitos
servem de sinais à Arte de que falamos17.

Onde se distinguiam, pelo reflexo infinito das superfícies corpo­


rais, os traços acumulados das semelhanças, descobre-se mais facil­
mente agora o efeito de causalidades orgânicas e profundas; onde as

67
marcas aguardavam, imóveis, que os olhos viessem fazê-las falar, é
agora necessário que o olhar capte o movimento de um rosto que se
exprime.

O tempo da expressão

Porque o rosto animou-se sob o efeito da paixão. Os tratados de


fisiognomonia da segunda metade do século xvn continuam a repe­
ti-lo: a paixão é um movimento da alma. Há um capítulo essencial
de L’Art de connaitre les hommes: «(...) Dizer como a alma se move e
de quantas maneiras ela pode mover-se; e até como e porquê ela faz
mover o coração e os espíritos nas paixões»18. Todo o movimento da
alma arrasta com efeito mecanicamente uma acção do organismo e
por consequência um efeito manifesto à superfície do corpo19. E isso,
precisamente, o que Le Brun chama a expressão:

Tentarei fazer-vos ver que a expressão é também uma parte


que marca os movimentos da alma, o que torna visível os
efeitos da paixão20.

As representações do rosto são assim percorridas por um novo


movimento de que se podia já descobrir em Porta algum frêmito.
Com o estudo da expressão, o movimento ganha o conjunto da figura
humana. A evolução das percepções do corpo da topografia à cinética
tem no decurso do século xvn uma extensão mais geral: a anatomia
é-lhes sensível esforçando-se então — consequência da descoberta de
Harvey — por produzir o fenômeno dinâmico de que a rede da cir­
culação sanguínea é o canal e é a isso que Le Brun precisamente se
dedica nos seus esboços de anatomia21. O rosto, obrigado a uma im-
passibilidade imóvel pelas convenções do retrato de pompa, anima-se
porém de uma vida interior na maneira luminosa e fluida de Velás-
quez, no tenebrismo de Caravaggio. Rembrandt imprime-o de um
realismo piscológico, Frans Hals ou Le Nain de um naturalismo so­
cial. E o teatro dramatiza a paixão de Fedra como manifestação física
e orgânica que se apodera do corpo, o vence e o queima22. E também
quando Bossuet define o horror: «A pele, contraindo-se sobre si
mesma, porá em pé os cabelos, de que conserva a raiz, causando o
movimento que se chama horror»23.
Em todos os casos, trata-se de fazer do movimento corporal um

68
sinal. A fisiognomonia reconsidera o privilégio que desde a origem con­
cedera aos traços estáveis e imóveis — forma, ossatura, configuração
morfológica do rosto — em detrimento dos sinais moventes e passa­
geiros da expressão, os «acidentes» da fisionomia. Assim, Cureau dá
uma grande importância à «postura» do corpo e ao «ar» do rosto,
pois ambos «pertencem principalmente ao movimento»24. Sensível ao
movimento, a figura inscreve-se numa nova temporalidade, penetra-a
uma duração reversível. Se o rosto ainda fala a linguagem da alma, é
agora a linguagem de um organismo vivo: destaca-se do tempo eterno
das marcas gravadas para dizer nos seus sinais o carácter efêmero e
momentâneo da paixão. Como se o corpo deixasse de ganhar sentido
num modelo de linguagem escrita para se tornar pouco a pouco o re­
flexo da volatilidade da palavra. Com o tempo da expressão, é uma
duração subjectiva que envolve corpo e rosto.
Todos os movimentos do corpo individual parecem então tornar-
-se expressivos. A categoria de expressão generaliza-se e estende-se,
no decorrer do século xvn, a todo um conjunto de comportamentos
humanos a partir de então interpretáveis como manifestações codifi­
cadas da expressividade. Em 1622, no prolongamento do seu comen­
tário da fisiognomonia de Aristóteles, Camillo Baldi inventa a pri­
meira grafologia23. Mas para além da marca dos movimentos deixada
pela mão, propõe o exame de todas as particularidades estilísticas da
letra como prova da natureza daquele que escreve. A fisiognomonia
da expressão subjectiva, que concebe o corpo pelo modelo da lingua­
gem, estende-se pouco a pouco aos próprios comportamentos lin­
guísticos, quer estes sejam escritos ou orais, e trata então a linguagem
à maneira do corpo: a palavra torna-se morfológica quando Wulson
de la Colombière26 considera como equivalente de indícios corporais
as características individuais do discurso verbal («da maneira de fa­
lar», «do falar lento», «da temeridade e precipitação dos discursos»,
etc.); quando Prospero Aldorisio concebe uma fisiognomonia do ri­
so27 ou quando David Laigneau28 elabora uma fisiognomonia da voz
que alarga a sua jurisdição às margens e refugos da linguagem: o so­
pro, o suspiro; e até à sua própria supressão: o silêncio, nos interstí­
cios da palavra. O homem mantém-se expressivo mesmo no silêncio.
Porque quando se cala, é então o seu corpo que fala.

Individualização e socialização pela expressão

A subida da categoria de expressão, que no decurso do século xvii


chega a envolver o conjunto das condutas humanas, prova a extensão
adquirida pela do sujeito psicológico. Se a finalidade da prática da fi-

69
siognomonia continua a ser o conhecimento dos outros e a escolha
das companhias, o olhar prossegue e intensifica o movimento de re­
tomo a si próprio, de exploração do homem interior que havia iniciado.
A fisiognomonia tende a surgir como uma prática privada e íntima29,
e a observação de outrem como um desvio necessário ao conhecimen­
to do eu. Em relação aos tratados anteriormente destinados ao exame
minucioso das superfícies corporais, as Conférences de Le Brun mar­
cam uma inversão espectacular de perspectiva. Pela primeira vez, a
classificação elaborada é comandada «do interior» pelas exigências de
uma análise psicológica.

Falei destes movimentos interiores para fazer compreender


melhor depois a relação que possuem com os exteriores30.

Além disso, onde nos contentávamos com uma tipologia psicoló­


gica sumária dos «caracteres» à maneira do pseudo-Aristóteles, pro­
duz-se agora, com a análise das paixões, um conjunto de diferencia­
ções interiores no espaço psicológico. As paixões são outros tantos
estados do homem interior: o espaço íntimo percorrido pelo olhar
reflexivo da introspecção aumenta, diferencia-se e torna-se complexo:

Conversando apenas comigo próprio e considerando o meu


interior, tentarei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e
mais familiar a mim próprio31.

O conhecimento do eu que Descartes preconiza — e com ele o


renascimento do estoicismo no decorrer da primeira metade do sé­
culo xvn — tem por fim, para além da «familiaridade» a respeito
de si próprio, o controlo individual das paixões. Para poderem ser
«preparadas» e «conduzidas», as paixões devem ser observadas e dis-
tinguidas. E a figura da tranquilidade nos gráficos de Le Brun, se re­
presenta um «grau zero» de retórica em relação ao qual as paixões
registam os seus desvios, é também o rosto calmo da moderação, a fi­
gura serena da paixão dominada, em relação à qual os esboços do
pintor vêm enumerar os excessos, as deformações que as paixões fa­
zem o rosto sofrer. A figura da tranquilidade é a representação ideal
de uma unidade psicológica suficientemente estável e senhora de si
para poder revestir as diferentes máscaras da paixão — e livrar-se dela
de seguida, à maneira de um actor que encarna personagens e paixões.
A vida social é uma cena em que se é constantemente observado e
em que é preciso saber estar. As fisiognomonias do século xvn reflec-
tem um aumento do espaço íntimo, um desenvolvimento da esfera

70
privada, ao mesmo tempo que um reforço dos constrangimentos liga­
dos ao espaço público. A fisiognomonia é então tornada necessária
por um controlo cada vez mais apertado do espaço social pelo olhar.
Torna-se o «guia da conduta na vida civil», a arte de desvendar que
«ensina a descobrir os desígnios ocultos, as acções secretas e os auto­
res desconhecidos das acções conhecidas»32, na atmosfera de conspiração
e de suspeição engendrada pelas intrigas e rivalidades da sociedade da
corte. Mas para além da corte, parece que a prática da fisiognomonia se
torna uma espécie de necessidade universal, indispensável a cada «esta­
do» da sociedade. Participa da diversificação das formas de observação e
de controlo social por condição, ocupação e «dever de estado».
Ela é útil ao teólogo que quer detectar as causas do pecado; indis­
pensável ao filósofo que reflecte sobre a natureza dos homens. Ne­
cessária ao «médico da alma», é-o igualmente ao do corpo que dela
inferirá que paixão está agindo, que humor está em causa e, por con­
sequência, o que do corpo deve ser expurgado. E ainda benéfica para
o bom cristão,

(...) aquele cujo estudo principal consiste em desenraizar o ví­


cio e plantar a virtude (...). Esse homem pode conhecer me­
lhor onde se encontra o ninho de serpentes e basiliscos que
sugam o sangue doce da sua alma, podendo ver onde está cra­
vada a espinha que lhe fere o coração33.

A fisiognomonia acompanha assim o movimento da sociedade ci­


vil. Alargou-se e particularizou-se ao mesmo tempo ao conjunto das
posições, papéis, classes e funções que estruturam o espaço social.
Participa mais profunda e diferentemente no vínculo social: serve
mais facilmente para produzir e reconhecer os sinais de um código fi­
sionômico, corporal, que garante a integração de cada um na sua clas­
se e no seu justo lugar na sociedade civil. Tem mais tendência para
incluir o indivíduo no grupo social, fazendo-o participar na troca de
um conjunto combinado de posturas e de expressões que são outros
tantos sinais, do que para o excluir, o pôr de parte em virtude de uma
marca, de um estigma indelével a ele ligado. A maneira da antiga fi­
siognomonia:

Não posso deixar de dizer a todos os que devem evitar fre­


quentar os que são mutilados e imperfeitos de algum membro
(...). Exemplo para o que digo: os que têm olhos mutilados
ou imperfeitos, nariz, boca, pés ou mãos e coxeiam de um
dos pés, ou aqueles que sabemos serem melancólicos34.

71
O sinal inclui, a marca exclui. É aqui que se encontra o objectivo
social desta conversão das marcas morfológicas em sinais de expres­
são que podem ser traçados através das fisiognomonias da idade clás­
sica: ela revela que a sociedade civil se baseou na necessidade parti­
lhada de um código de comunicação tanto verbal como corporal, que
garante a individualização e a socialização pela expressão de cada um
dos seus membros. Condição para que possa surgir uma sociedade de
prazer recíproco, baseada numa conversação agradável e paixões mui­
to moderadas. E nisso que a fisiognomonia se mostra um trunfo de
que o gentil-homem não poderia privar-se:

O gentil-homem e político prudente, ao penetrar a natureza e


qualidade das suas afeições e abandonados os seus impulsos
desordenados, vai adquirir uma postura e maneira muito
agradáveis, podendo por esse meio insinuar-se corajosamente
na amizade dos outros homens (...). Na conversação, importa
muito conhecer exactamente a inclinação da companhia em
que nos encontramos e a sociedade só pode ser agradável com
quem tem paixões muito moderadas35.

A política do olhar

Finalmente, para além da sociedade civil, a fisiognomonia é da


maior utilidade política, dizem os textos. Assim, não se poderia reco­
mendá-la em demasia ao devoto pregador:

Conhecendo perfeitamente por estes sinais a idade, o sexo, a


natureza e propriedade dos homens com quem conversa, ele
pode sem dúvida fazer coisas estranhas no entendimento dos
seus auditores (...). O mesmo proveito pode ser recolhido por
todos os oradores, como embaixadores, advogados, magistra­
dos, capitães e por todos os que desejem persuadir a multidão36.

A arte de conhecer os homens diz respeito, em primeiro lugar,


aos representantes de Deus e do poder real. As Conférences sur L’ex-
pression, de Le Brun, são então indissociáveis do lugar em que foram
pronunciadas e do público a que se dirigem. Tomam parte na política
do olhar, de múltiplas formas, estabelecida por Richelieu em proveito
do estado absolutista. Política de que a academia que Le Brun dirige

72
é uma peça principal. Le Brun defende os princípios de uma arte nar­
rativa, que aprendeu com Poussin: um quadro deve ler-se como um
discurso. As suas escolhas técnicas, que valorizam o traço em detri­
mento da cor, e o seu ensinamento obedecem a este objectivo: as
Conférences sistematizam o estudo da expressão existente na fisiono­
mia de forma a traduzir sem ambiguidade alguma as paixões e os ca­
racteres que intervém nos quadros históricos que cantam louvores a
Deus ou ao rei, e dos quais é preciso ler claramente as lições para edi­
ficação de todos.

Estas figuras falam; e quase sem discurso, fazem ver sensivel­


mente ao leitor o que ele precisa conceber37.

É pois assim com a pintura como com a eloquência; e com o co­


nhecimento da anatomia pelo pintor como o da gramática pelo retó­
rico: é a própria base da arte de persuadir, uma vez que garante a in­
teligibilidade do discurso.

Poderá um pintor ser excelente se não conhecer o homem?


Refiro-me ao exterior do corpo humano e ao que pode surgir
sob esse exterior, as veias, os músculos e os tendões. Ele deve
pois conhecer perfeitamente a anatomia do exterior do corpo
(...). Cada movimento tem uma atitude própria, cada paixão
tem no rosto um sinal, cada idade, cada sexo, cada condição,
um certo ar que é necessário conhecer e saber exprimir38.

A sua analogia com a retórica revela o conteúdo normativo da


pintura de Le Brun, bem como o carácter ambíguo do termo «ex­
pressão». Porque a expressão é ao mesmo tempo movimento aparente
das paixões no rosto, mas também prescrição das regras que o pintor
deve seguir a fim de as imitar. As Conférences de Le Brun contribuem
assim para estabelecer uma norma estética de comportamento facial,
válida para a pintura, próxima da arte dramática, mas que além disso
toma parte numa estetização da vida social. Estas representações pic-
turais e teatrais da facialidade são ao mesmo tempo o reflexo e a nor­
ma das fisionomias que se encontram na corte: a impassibilidade do
rosto real, as máscasras de respeito ou de sedução dos cortesãos, o jo­
go dos espelhos, dos ares e dos olhares de que a corte é o teatro.
A preocupação de movimento que animava as figuras é aqui curiosa­
mente contrariada: os retratos de pompa pintados por Le Brun imobili­
zam os rostos numa expressão estática. As próprias Conférences, que
querem exprimir toda a agitação da alma, prendem, detêm e dissecam

73
o movimento. Os esboços naturalizam a paixão, fixam-lhe as espé­
cies. O rosto esfuma-se por trás da figura, a natureza apaga-se sob a
convenção. É a preocupação de legibilidade das figuras que leva Le
Brun a privilegiar as sobrancelhas em detrimento dos olhos: o traço
capta com maior facilidade a disposição e o movimento dos músculos
da sobrancelha do que as delicadas tremuras do olhar39. As Conféren­
ces de Le Brun libertaram as percepções e as representações do rosto
das superfícies imóveis em que as havia inscrito a tradição fisiogno­
mónica, para as inscrever numa morfologia da expressão.

O enfraquecimento da fisiognomonia

O trabalho de Le Brun ficaria sem futuro: assiste-se a um quase


desaparecimento da fisiognomonia nos últimos anos do século. Du­
rante tanto tempo ligada ao pensamento divinatório e à astrologia, a
fisiognomonia sofre o descrédito que atinge estes últimos com o pro­
gresso do racionalismo científico no decurso da segunda metade do
século xvn. A «ciência do rosto» desaparece pouco a pouco dos léxi­
cos e das enciclopédias. Furetière no seu Dictionnaire universel consi­
dera-a como uma «ciência bastante vã»40. No «léxico racional» de
Étienne Chauvin, publicado em 1692, não existe tratamento algum da
fisiognomonia ou da quiromancia, como aliás nem da magia ou da
adivinhação41. A medicina não a trata de melhor maneira. São os efei­
tos de um movimento que, na segunda metade do século xvn, levou a
medicina a expulsar de igual modo a astrologia dos bancos da esco­
la42. E os teólogos renovam a condenação da fisiognomonia, sobretu­
do quando esta continua associada à adivinhação: a razão «corrige»
as regras da fisionomia e a graça «inverte-as», argumenta em 1679 o
abade Thiers no seu Traité des superstitions^.
O fim do século vê generalizar-se o cepticismo quanto ao rigor
das leis fisiognomónicas. Também os moralistas a julgam incerta:
«A fisiognomonia», adianta La Bruyère nos seus Les Caractères, «não
é uma regra que nos seja dada para julgar os homens; ela pode servir-
-nos de conjectura»44. Nas percepções do rosto no seio das práticas e
dos costumes da sociedade civil, como nas representações do homem
natural, a antiga analogia entre as qualidades da alma e os traços mor-
fológicos do corpo desfaz-se. O homem interior parece separar-se do
homem exterior, ser objecto de um novo reconhecimento, escapar ao
olhar que se deita à superfície das coisas: «Não se deve julgar os ho­

74
mens como um quadro ou uma figura, por uma só e primeira vista;
existe um interior e um coração que é necessário aprofundar»45. O rosto
de um homem não se reduz à sua figura. O moralista advoga um co­
nhecimento profundo do ser e condena a vaidade das aparências.

O ar espiritual é nos homens o que a regularidade dos traços


é nas mulheres: é o gênero de beleza a que os mais fúteis po­
dem aspirar46.

A fisiognomonia é talvez vítima do seu sucesso. Participou na


constituição da sociedade civil, fornecendo às práticas de observação
de outrem o apoio da sua tradição. Favoreceu desse modo a falsifica­
ção generalizada das aparências que constitui, no teatro da sociedade
da corte, um desmentido permanente ao que ela ambiciona: mostrar
o coração do homem.

O mundo, na minha opinião, é como um grande teatro.


Onde em público cada um, é pelo outro enganado.
Muitas vezes do que é desempenha um papel oposto.
Todos os dias se vê, adornado com um falso rosto,
o louco representar imprudentemente o sábio47.

A multiplicação das máscaras torna-a necessária, mas vota-a ao


mesmo tempo à ruína, no momento em que vê, para cúmulo, a sua
legitimidade racional desmoronar-se. O seu recuo dá então lugar a
outras representações possíveis da relação entre a interioridade e a ex-
terioridade do homem. A ideia — amplamente estranha à perspectiva
da antiga fisiognomonia — que avança entre os moralistas é a de que
o conhecimento do ser íntimo pode modificar a percepção da sua
aparência externa e chegar a anulá-la ou a invertê-la. E a vingança de
Sócrates:

Um homem de muito mérito e espírito e por tal conhecido,


deixa de ser feio, mesmo possuindo traços disformes; e se é
feio, a sua fealdade não produz impressão48.

E a advertência de que convém observar o outro e observar-se


— que está no próprio princípio da fisiognomonia — torna-se menos
imperativa à medida que as práticas de civilidade se instalam nos gestos,
nas palavras, no coração e na razão dos homens. Talvez esta observa­
ção atenta da aparência de outrem que persegue o homem interior
não seja senão uma primeira fase da constituição de uma sociedade

75
civil, indispensável à formação de uma norma de comportamento e
votada a atenuar-se, a tornar-se mais discreta quando tal norma en­
trar efectivamente nos hábitos. Dar-se-ia então o declínio da fisiog­
nomonia bem como o da noção de civilidade49: o seu enfraquecimen­
to como modelo prescrito de conduta seria ao mesmo tempo o sinal
da sua generalização e da sua debilidade como prática; e ainda o indí­
cio de um certo esgotamento do ideal do homem da corte que reinava
pela aparência.
Os escritos dos moralistas do fim do século xvn traduzem-no
quando os vemos marcar claramente a autonomia do homem privado
em relação à personagem pública. E então que surge sob a pena de La
Bruyère — facto «único» na literatura da época, fazendo fé em Auer-
bach53 — a descrição de um outro tipo físico que não o que se encon­
tra na corte e na cidade: a da fisionomia dos camponeses.

Vêem-se certos animais ferozes, machos e fêmeas, espalhados


pelo campo, negros, lívidos e todos queimados do sol, agarra­
dos à terra que cavam e que remexem com uma obstinação
invencível: têm como que uma voz articulada e quando se er­
guem sobre os pés mostram uma face humana e são com efei­
to homens. Retiram-se à noite para as tocas, onde vivem de
pão escuro, água e raízes; poupam aos outros homens o tra­
balho de semear, de lavrar e de recolher para viver, merecendo
assim não ter falta do pão que semearam31.

Terrível descrição de um homem que no entanto, no seu século,


manifesta uma preocupação profundamente ética. Estes animais fero­
zes são homens: a sua voz, o seu andar e o seu rosto — que ainda é
apenas uma face — esboçam uma percepção antropológica que distin­
gue formas humanas para além da sociedade culta das pessoas hones­
tas. Mesmo quando o povo dos campos continua a ser uma sub-hu-
manidade e o das cidades grotesco e disparatado52.
Também quando La Rochefoucauld retoma nas suas Maximes a
questão da relação dos homens com os animais’3, toda a correspon­
dência morfológica desaparece. Se alguma analogia se mantém, deve-
-se procurá-la na similaridade dos comportamentos entre humanos e
animais. A sociedade civil é uma comunidade e uma diversidade de
espíritos, de costumes e de linguagem. Nisso se distingue das diferen­
ças de morfologia e de temperamento, de carne e de sangue que
opõem as espécies animais. E nos tratados do renascimento fisiogno-
mónico do princípio do século xvi que celebravam a analogia das for­
mas e dos caracteres dos homens e dos animais, François Bayle dá em

76
1677 os pormenores das suas Dissertationes Physicae dedicadas à fi­
siognomonia:

Homo animal dicitur politicum et ad societatem naturri*.

NOTAS

1 John Donne, Anatomy of the world, 1611; citado por A. Koiré, Du monde cios
à Punivers infini, Paris, Gallimard, 1973, p. 48.
2 Para além do conjunto de tratados de metoposcopia já assinalados, podem re-
censear-se numerosas obras de fisiognomonia de inspiração astrológica, muitas vezes
incorporadas em manuais de quiromancia: Jean Belot, Instruction familière et très fa-
cile pour apprendre les sciences de chiromancie et de physiognomonie, Paris, 1619;
Andreas Otto, Anthroposcopia, Konigsberg, 1647; Anselme Petit Douxciel, Speculum
physionomicum, Langres, 1648; Johann Sigismundi Elsholtz, Antropometria sive de
mutua memborum corporis humani proportione et naevorum harmonia, Francoforte,
1663; Philipp Mey (Meyens). Chiromantia medicia, Graven Haag, 1667; Jan Frederik
Schweitzer (Helvetius). Microscopium physionomiae, Amesterdão, 1676; Wulson de
la Colombière, Le Palais des Curieux, Paris, 1676.
3 Camillo Baldi, In physiognomica Aristotelis commentarii, Bolonha, 1621; Cor-
nelio Ghiradelli, Cefalogia Fisionômica, Bolonha, 1630; Estevan Pujasol Presbytero,
El Sol Solo, y para todos sol, de la filosofia sagaz y Anatomia de Ingenios, Barcelona,
1637; Honorat Niquet, Phisiognomonia humana, Lyon, 1648; Marin Cureau de la
Chambre, op. cit.; C. de la Bellière, Sieur de la Niolle, Physionomie raisonnée, Paris,
1664; François Bayle, Dissertationes physicae, Toulouse, 1677; David Laigneau, Trai-
té de la saignée, 2e éd., avec une Table de la Physiognomonie ou Description des par-
ties extérieures du corps, Paris, 1685. E conveniente acrescentar a estas obras novas
traduções dos textos antigos na primeira metade do século xvn e numerosas reedições.
A fisionomia humana de Porta terá assim 21 edições sucessivas em Itália até 1656.
4 Estevan Pujasol Presbytero, op. cit., p. 35.
5 Cureau de la Chambre, op. cit., p. 337.
6 O texto da conferência será publicado depois da morte do pintor, sucessivamen­
te por Testelin, Picart, e depois Audran: Sentiments des plus habiles peintres sur la
pratique de la peinture et sculpture mis en table par Henry Testelin, Paris, 1696;
Conférence de Monsieur le Brun sur Pexpression générale et particulière, Paris, Picart,
1698; Expression des passions de Vâme, représentées en plusieurs têtes gravées d'après
les dessins de feu M. Le Brun par J. Audran, Paris, 1727. Este texto foi reeditado em:
G. Lavater, L’Art de connaitre les hommes par la physionomie, éd. Moreau de la
Sarthe, Paris, 10 vol., 1820; H. Jouin, Charles Le Brun et les Arts sous Louis XIV,
Paris, Imprimerie Nationale, 1889. E mais recentemente na Nouvelle Revue de Psy-
chanalyse, n.° 21, Paris, Gallimard, Primavera 1980. As notícias de Jennifer Montagu no
Catalogue de PExposition Charles Le Brun, Versalhes, 1963, têm observações preciosas.
7 Descartes, Traité de l'Homme, 1664, p. 202; em Oeuvres, publicadas por C. H.
Adam e P. Tannery, vol. XI, Paris, Vrin, 1974.
8 Para além de Les Passions de 1’Ame (Paris, 1649), as conferências de Le Brun si­
tuam-se na perspectiva das obras consagradas às paixões da alma na primeira metade
do século xvn: N. Coffeteau, Tableau des passions humaines, Paris, 1620; J. F. Se-

77
nault, L’Usage des passions, Paris, 1641; M. Cureau de la Chambre, Les caractères
des passions, Paris 1640-1662; L. de Lesclache, L3Art de discourir des passions, Paris,
1660. Ver: G. Rodis Lewis. «Introduction» à edição de Les Passions de PAme, Vrin,
1970.
9 «A sobrancelha é a parte da cara onde as paixões se fazem conhecer melhor, em­
bora alguns tivessem pensado que era nos olhos» (Ch. Le Brun, «Conférences...» na
Nouvelle Revue de Psychanalyse, p. 99). L. Van Delft {op. cit.} sublinhou a influência
menor que Porta exerceu sobre Le Brun, tal como sobre La Rochefoucauld, que se
libertaram francamente dele.
10 Charles Le Brun, op. cit., p. 96.
11 É o caso de J. Baltrusaitis {op. cit.}, entre outros. Para uma discussão sobre este
ponto, ver P. Dandrey e L. Delft {op. cit.}.
12 Ver Binet e Descargues, op. cit., p. 84.
13 São célebres as de Leonardo e de Ticiano, assim como as de Rubens que se po­
dem observar em: P. P. Rubens, Theorie de la figure humaine, Paris, 1773.
14 Sobre este conjunto de pontos, ver J. Baltrusaitis, op. cit.
15 Ver H. Damisch «L’alphabet des masques», Nouvelle Revue de Psychanalyse,
n.°21, Paris, Gallimard, Primavera 1980.
16 Ibid.
17
17 Cureau de la Chambre, op. cit., p. 275.
18 Ibid., p. 7.
19 «A acção não é mais do que o movimento de alguma parte e a mudança não se
faz senão pela modificação dos músculos. Os músculos só têm movimento pela ex­
tremidade dos nervos que passam através de si, os nervos só actuam através dos espí-

sangue que passa continuamente pelo coração, que o aquece e rarefaz de tal modo
que produz um certo ar subtil que se instala no cérebro e o preenche» (Ch. Le Brun,
op. cit., p. 96).
20 Ibid., p. 95.
21 Ver Binet e Descargues, op. cit., p. 132.
22 «Ei-lo. Todo o meu sangue se acumula no coração...
Esmorecí. Sequei os olhos, as lágrimas...
Vi-o, corei, empalideci à sua vista.
Surgiu uma perturbação na minha alma perdida.
Os meus olhos deixaram de ver, não conseguia falar.
Senti todo o meu corpo enregelar e queimar.»
{Phèdre, acto II, cena V, v. 581 e 690; acto I, cena 3, v. 273-276: ver G. Rodis-
-Lewis, op. cit., p. 33).
23 Bossuet, Conn, II, 12, que também acha a etimologia da palavra, pois o latino
horrore provém do sânscrito harsh-. «hérisser», eriçar.
24 Cureau de la Chambre, op. cit., p. 287.
25 Camillo Baldi, Trattato come da una lettera missiva si conoscono la natura e
qualità dello scritore, Capri, 1622.
26 M. Wulson de la Colombière, op. cit.
27 Prospero Aldorisio, Gelotoscopia, Nápoles, 1611.
28 D. Laigneau, op. cit.
29 «O meio que nos pode fazer conhecer os outros e fazer-nos conhecer aos ou­
tros. Não falo do conhecimento público que toca os olhos do povo e que geralmente
está disfarçado; mas do que dá a vida privada, o quarto, o fundo do coração.»
(M. Cureau de la Chambre, op. cit., pp. 2-3).
30 Ch. Le Brun, op. cit., p. 98 (itálico nosso)

78
31 Descartes, Meditationes de Prima Philosophia (1641), Paris, Vrin, 1970, p. 34.
32 Ver supra, pp. 33-34.
33 M. Wulson de la Colombière, op. cit., p. 130
34 J. d’Indagine, op. cit., pp. 139-140.
35 M. Wulson de la Colombière, op. cit., p. 130
36 Ibid, pp. 128-129.
37 B. Lamy, Traité de la perspective ou sont contenus les fondements de la peintu-
re, Paris, 1701, pp. VIII-IX.
38 Ibid, pp. 11 e 16.
39 «Mas mesmo que se perceba facilmente estes movimentos dos olhos e se saiba
o que significam, não é fácil descrevê-los, pois cada um é composto de várias modifi­
cações, que chegam ao movimento e ao aspecto do olho, os quais são tão particulares
e tão pequenos que qualquer deles não pode ser percebido separadamente se bem
que o que resulta da sua conjunção seja facilmente observável.» (Descartes, Les Pas­
sions de PAme, p. 147).
40 Fisionomia: arte que ensina a conhecer o humor ou o temperamento do homem
pela observação dos traços do rosto e da disposição dos membros. Gian Battista Por­
ta e Robert Fludd escreveram sobre a fisionomia: «A fisionomia é uma ciência bas­
tante vaga mas mais sólida do que a quiromancia.»
41 Etienne Chauvin, Lexicon Rationae Sive Thesaurus Philosophicus, Roterdão,
1692.
42 Em 1667, o bacharel Claude Berger tinha dado uma resposta negativa à questão
seguinte: Estne imperfectus qui astrologiam ignorat medicus? Em 1707 a tese de Le
François {Estne atiquod lunae in corpora humana imperium?) dará uma achega defi­
nitiva à questão (ver: P. Deluny, op. cit., p. 1211)
43 Ele declarava que a fisiognomonia só seria aprovada desde que «se encerre nos
limites da filosofia natural e que só adivinhe as coisas por conjectura e probabili­
dades, mas não com certezas. Pois acontece muitas vezes que a razão corrige nos
homens as más inclinações que lhes podem ter sido imprimidas pela natureza e dá
às suas almas impressões completamente opostas às que aparecem nas caras e nas
outras partes do corpo. A graça faz ainda mais, pois transforma os lobos em car­
neiros, os perseguidores em apóstolos e os criminosos em inocentes. Assim resol­
ve todas as regras da fisionomia que, de resto, não se podem estender nem quanto
às acções particulares dos homens, nem quanto à sua liberdade, nem às coisas que
lhe são exteriores, uma vez que tudo isso não depende do seu temperamento nem
da disposição do seu corpo.» (Abade Thiers, Traité des superstitions, Paris, 1679,
pp. 194-195).
44 La Bruyère, Les caracteres ou les moeurs de ce siècle, Paris, 1688; ed. Garnier,
Paris, 1962, p. 362.
45 Ibid, p. 360.
46 Ibid, p. 362.
47 Boileau, Satyr., XI
48 La Bruyère, op. cit., p. 363.
49 Ver R. Chartier, op. cit.
>0 Erich Auerbach, Mimesis. La représentation de la realité dans la littérature oc-
cidentale, Paris, Gallimard, 1968 (1946), p. 371.
51 La Bruyère, Cap. «De PHomme», 128, ed. Grands Ecrivains citado por
E. Auerbach, Ibid. Sobre este ponto ver o que Roland Barthes escreveu nos Essais
critiques a propósito da distinção dos rostos dos burgueses e dos camponeses na pin­
tura holandesa clássica. «Enquanto o rosto camponês é deixado aquém da criação,
o rosto burguês é levado ao grau último da identidade (...). Os camponeses de Van

79
Ostade têm faces abortadas, semicriadas Dir-se-iam esboços de homens (...)»
(Paris, Seuil, 1964, p. 24).
52 Ver E. Auerbach, Ibid, pp. 364-394.
53 La Rochefoucauld, Paris, 1664; ed. Garnier, Paris, 1967, pp. 203-206.
54 F. Bayle, op. cit., p. 77
Capítulo 3

A ANATOMIA DO SENTIMENTO
(Rosto orgânico e rosto expressivo no século xvm)

A história da fisiognomonia dos três primeiros quartos do sé­


culo xvm pode ser prontamente escrita, pois parece muito simples­
mente não existir: assim, não há em França nenhuma nova obra nem
mesmo reedições, até aos anos 1770.
A fisiognomonia parece definitivamente desacreditada. Fronti nulla
fides — adverte o abade Mallet no artigo «Metoposcopia» da Encyclopé-
die, que acha a sua ciência «muito incerta, para não dizer inteiramen­
te vã»1. Uma fantasia. Uma ciência imaginária — acrescenta Jaucourt
a propósito da fisiognomonia, no artigo «Physionomie»: nunca se de­
ve julgar pela fisionomia, tanto os seus traços estão misturados e con­
fusos. E há ainda quem se engane na interpretação do carácter das
paixões. Recusando alargar-se sobre esta «pretensa arte», o artigo re­
mete para Buffon «que disse tudo o que se pode pensar de melhor
sobre esta ciência ridícula»2.

Morte e ressurreição da fisiognomonia

As formas tradicionais de legibilidade do rosto estão de facto em


crise. Buffon recusa categoricamente a analogia das formas da alma e
do corpo, e com ela a fisiognomonia:

Mas como a alma não tem forma que possa ter relação com
qualquer forma material, não se pode julgá-la pela figura do
corpo, ou pela forma do rosto. Um corpo mal feito pode en­
cerrar uma alma belíssima e não se deve julgar o bom ou o
mau natural de uma pessoa pelos traços do seu rosto, porque
esses traços não têm relação alguma com a natureza da alma

81
nem possuem uma analogia sobre a qual se possam sequer ba­
sear conjecturas racionais3.

Para o naturalista, o rosto deixa de ser o reflexo da alma e o ho­


mem de ser prisioneiro da sua conformação natural. Buffon volta a
insistir:

A forma do nariz, da boca e dos outros traços não tem mais a


ver com a forma da alma ou o natural da pessoa do que o ta­
manho ou a grossura dos membros com o pensamento. Será um
homem menos sábio por ter olhos pequenos e boca grande?4

Esta simples questão destitui a tradição fisiognomónica de qual­


quer fundamento, desqualifica-a como «quimera» e remete-a às suas
origens mágicas:

Os antigos, porém, estavam muito ligados a esta espécie de


preconceito e em todos os tempos houve homens que quise­
ram fazer uma ciência divinatória dos seus pretensos conheci­
mentos de fisiognomonia5.

A antiga fisiognomonia já não é admissível nesta história natural


do homem constituída do decurso do século xvm, por supor que
possa ser lançado um outro olhar sobre o rosto. O olhar de Lineu, ao
dispor a natureza humana no quadro das espécies, e o de Buffon ao
inscrevê-la na cadeia contínua dos organismos vivos. Pouco a pouco,
surge a via da antropologia, a de uma «ciência do homem» que esta­
belece a relação do homem físico e do homem moral.
Poder-se-ia então pensar que a ruína da fisiognomonia era defini­
tiva. Mas não é assim: desqualificada como ciência, a fisiognomonia
volta a florescer no fim dos anos 1760, tanto como «teoria» como
prática. Vai ter um considerável sucesso popular que ficou ligado ao
nome de Johann Gaspar Lavater e que se prolongará durante toda a
primeira metade do século xix, a par com o entusiasmo suscitado pela
frenologia de Gall. A obra do pastor zuriquense torna-se objecto de
controvérsias filosóficas: Lichtenberg mete-a a ridículo. Kant vê ape­
nas nela um «conhecimento sem conceito», crítica que Hegel refor­
mulará6. Outros, homens de letras ou artistas, aderem a ela: Goethe
participa na sua redacção. Fussli na sua tradução inglesa. Mais tarde,
George Sand irá celebrá-la com um fervor muito romântico e Balzac
verá nela a base realista da arte literária da descrição física e moral
dos rostos7. A sua história cruza a do retrato pintado: as morfologias

82
incriminadas das fisionomias pintadas por Hogarth anunciam-na, a
precisão do traço físico e a caracterização psicológica dos retratos de
Ingres prolongam-na; e também, de uma outra maneira, as caricatu­
ras animalistas de Granville. Mas irá encontrar sobretudo um sucesso
popular considerável: as Physiognomische Fragmente, de 1755, são
rapidamente traduzidas e difundidas nas principais línguas europeias
e muitas vezes reeditadas8, especialmente sob a forma simplificada de
um Lavater portátil, companheiro inseparável do fisionomista ador­
mecido em cada um9. Ao ponto de a fisiognomonia parecer flutuar
no ar neste fim do século xvm e alvorada do xix. Curiosa ressurrei­
ção de uma disciplina de que a ciência havia pronunciado a condena­
ção e anunciado a morte: isto basta para confirmar que os sucessos e
as desgraças da fisiognomonia não são de forma alguma explicáveis só
a partir da constituição de uma história natural do homem. Por um
lado, pelo facto de a fisiognomonia do fim do século xvm continuar
a ser um elemento do conhecimento comum, quando deixou de parti­
cipar na racionalidade científica; por outro lado, porque a fisiogno­
monia é uma prática de observação de outrem inscrita no campo das
práticas sociais; e que nesse sentido depende de uma história destas
últimas.
Vai ser porém necessário que os trabalhos sobre o rosto humano
publicados em todos os anos do século10 se legitimem perante a ciência
e respondam às críticas que esta lhes dirige. As suas respostas mos-
tram-nas como um conjunto heterogêneo em que se encontram dois
tipos de preocupações. Certos trabalhos como os de Parsons, Sue ou
Camper, deslocam a problemática da fisiognomonia no campo dos
objectos e dos métodos de uma história natural do homem; transfor­
mam-lhe a perspectiva apoiando-se no desenvolvimento da osteolo-
gia, da mitologia e da anatomia comparada.
Pelo contrário, outros como Pernety, Lavater, Clairier ou Robert,
prolongam de facto a fisiognomonia tradicional, usando por vezes
formulações que parecem directamente retiradas de Jérôme Cardan:

Tudo tem no interior um sinal distintivo, um sinal hieroglífi­


co por meio do qual um observador pode conhecer-lhe as vir­
tudes secretas e as propriedades”.

Num fim de século dominado pelas idéias científicas, esta fisiogno­


monia vai ter de conciliar-se com a racionalidade da história natural e
da medicina. Lavater justifica-a demoradamente a partir da experiên­
cia e da observação. Pernety sacrifica a metoposcopia «muito incerta»
para salvar a fisiognomonia que acha «certa». Recusam-lhe o estatuto

83
de ciência: longe de a fazer calar, isto condu-la a uma permanente e
maior difusão. Será a «ciência das ciências» para Lavater, «ciência
universal» para Pernety. «A física», argumenta, «não será ela afinal
uma simples fisiognomonia da natureza, a astronomia do céu, a botâ­
nica dos vegetais, a história do tempo passado, e a própria política
nada mais que a fisiognomonia do estado?»’2
Os trabalhos da fisiognomonia são assim atravessados, a partir
dos anos 1760, por uma tensão particular: inscrevem-se no aumento
da irracionalidade científica e constituem ao mesmo tempo um refú­
gio do irracionalismo; sujeitos à ordem da razão, vão glorificar a vida
do sentimento; dedicam-se à observação do rosto orgânico e exaltam
o rosto expressivo.

Os sinais do anatomista

A anatomia do século xvm possui um conhecimento muito com­


pleto da osteologia do crânio. A caixa craniana tornou-se objecto de
medições sistemáticas: aplicada à anatomia, a geometria permite re­
conduzir a uma medida angular uma conformação anatômica. O ân­
gulo occpital de Daubenton, o ângulo facial de Camper13, são os efei­
tos de uma mutação do olhar sobre a fisionomia humana.
Professor de anatomia, Camper destinava aos pintores o seu ensi­
no. E nestes termos que relata a intuição que devia conduzi-lo à sua
descoberta:

O meu mestre, M. Charles de Moor (...) deu-me a copiar um


belo quadro de Van den Tempel no qual havia um negro, cuja
representação me deu prazer. Ele tinha na verdade a pele ne­
gra; mas essa pele cobria um corpo de arcaboiço europeu (...).
Depois de haver estudado atentamente as gravuras de Guide,
de Carl Marate, de Seb. Ricci e de Rubens, achei que eles ha­
viam, como Van Tempel, representado homens negros e não
negros14.

É a ossatura que permite distinguir a fisionomia do «homem ne­


gro» da do «negro». O olhar que o anatomista lança às camadas su­
perficiais do rosto humano atravessa-as e descobre nas profundezas
do corpo uma nova inteligibilidade. E de repente surgem à superfície
do rosto os traços de uma estrutura interna do organismo: como se a

84
mutação do olhar fosse uma intervenção da sua orientação, como se o
olhar do anatomista considerasse a variedade dos traços humanos ins­
talando-se no próprio interior do corpo; nesta mudança de perspecti­
va existe literalmente uma revolução do olhar em relação àquele a que
nos havia acostumado a antiga fisiognomonia. O gesto de observar
transformou-se profundamente. Onde dantes bastava a acuidade do
olhar, a observação intrumentalizou-se: desenvolve-se a craniometria.
Onde o golpe de vista era um gesto único e isolado, o olhar decom-
pôs-se numa complexa cadeia de operações: dissecar, medir, compa­
rar e classificar.

Para fazer as minhas observações, dividia exactamente ao


meio várias cabeças, tanto de homens como de quadrúpedes,
e julgava ver distintamente que a cavidade destinada a conter
o cérebro era, em geral, de uma conformação regular; mas
que o lugar das maxilas superiores e inferiores era a causa na­
tural da espantosa variedade que se verifica nas fisionomias15.

Sob o efeito de um tal ponto de vista, o rosto humano como ob­


jecto vê a sua própria percepção transformar-se profundamente: o
que Camper distingue na multidão variegada dos rostos que povoam
os cais do porto de Amesterdão é a proeminência do maxilar superior, a
largura de um rosto e a quadratura do maxilar inferior. Ele colecciona
as «cabeças descarnadas de diferentes nações» e apaga da fisionomia o
conjunto dos órgãos móveis das camadas superficiais da expressão.
Lê-se então no rosto já não o temperamento ou os humores, o carác­
ter ou as paixões, mas as ordens subjacentes da espécie, a raça, a na­
cionalidade e a idade.
A natureza do sinal fisionômico já não é a partir de então a mesma:

Colocando ao lado das cabeças do Negro e do Calmuco as do


Europeu e do macaco, verifiquei que uma linha traçada da
fronte ao lábio superior indicava uma diferença na fisionomia
destes povos e mostrava uma marcada analogia entre a cabeça
do negro e a do macaco16.

Que o sinal deve ser construído não é novo, mas ele abstraiu-se
até não ser mais que uma medida calculada: o ângulo facial é de 70 a
80 no homem e de 58 no orangotango. A quantificação dos sinais in­
troduz a continuidade das espécies que se dispõem segundo a ordem
das variações numéricas. Mais ainda, nas formulações de Camper pa­
rece ser a variação contínua dos sinais angulares que produz a diversi­
dade das espécies.

85
Figura 11 — P. Camper: o ângulo facial, do macaco a Apoio (Dissertations sur les
variétés naturelles qui caractérisent la physionomie des hommes, Paris, 1791;
foto B. N.).

86
E logo que fazia inclinar a linha facial para a frente, obtinha
uma cabeça parecida com o antigo; mas quando dava a essa li­
nha uma inclinação para trás, produzia uma fisionomia de ne­
gro e, definitivamente, o perfil de um macaco, de um cão, de
uma galinhola, conforme fazia inclinar mais ou menos essa
mesma linha para trás.17 (Ver figura 11.)

O sinal fisionômico era dantes uma marca incrustada na própria


carne que o olhar ia procurar na superfície do corpo. Nas descrições
que Camper produz do rosto humano, o realce do sinal em relação
aos acidentes da morfologia facial prossegue: o sinal quantificado
existe, independentemente do corpo, mas parece ao mesmo tempo
inscrever-se mais profunda e completamente na sua estrutura; já não
é um simples traço de superfície, mas uma lei orgânica. Uma lei que
exprime a unidade e a variabilidade das espécies e prediz o seu lugar
na série ordenada dos organismos. Há nesta racionalização do olhar
uma inversão de perspectiva semiológica. Onde o rosto exibia indí­
cios externos, morfológicos ou expressivos que lhe pertenciam pro­
priamente e mostravam qualidades psíquicas, está agora o produto
mais ou menos contingente, o efeito derivado, o traço obscurecido de
um sinal orgânico profundo. Sobre o aspecto do rosto, sobre o senti­
do da sua expressão, flutua a lei dos crânios.
Blumenbach irá prolongar estas quantificações iniciais para traçar
nos últimos anos do século o programa de uma antropologia de que
a craniometria constituirá, ao longo do século xix, uma das bases e
muitas vezes um verdadeiro credo18. Camper precede Gall e já anun­
cia Lombroso.

Apoio, o negro e o orangotango

A cabeça coberta de cabelos eriçados ou de uma lã frisada; a


face velada por uma longa barba em que se sobrepõem dois
crescentes de pêlos ainda mais grosseiros que, pela sua largura
e saliência, encurtam a fronte, fazendo-lhe perder o seu carác­
ter augusto, e que não só sombreiam os olhos, como os afun­
dam e arredondam como os dos animais; os lábios espessos e
salientes; o nariz achatado; o olhar estúpido e feroz; as ore­
lhas, o corpo e os membros peludos; a pele dura como couro
negro ou curtido; as unhas compridas, grossas e recurvadas; a
sola dos pés calosa, em forma de corno, sob a planta dos pés;

87
e por atributos do sexo, mamas compridas e moles, a pele do
ventre caindo até aos joelhos; os filhos atolados no lixo e arras­
tando-se às quatro patas, o pai e a mãe sentados nos calcanha­
res, hediondos e cobertos de uma sujidade pestilenta19.

Não se trata da observação de qualquer espécie de macaco, mas


sim do retrato de um homem. E «um retrato lisonjeiro», comenta
Buffon, seu autor: o do Hotentote. Na descrição sistemática do ho­
mem selvagem à qual se dedicará a antropologia nascente, debate-se a
questão de saber se o «negro» não constituirá uma espécie equívoca,
uma forma média entre a do homem e do animal, ou até uma mistura
monstruosa, o produto híbrido entre o homem branco e o orango­
tango. A resposta dada por Buffon é, sem ambiguidade, negativa: o
Hotentote é um homem, porque pensa e fala. A distância que o separa
do macaco é imensa, «pois interiormente está cheio com o pensamen­
to e por fora com a palavra»20. Com a marcha vertical, a linguagem é
o sinal da humanidade, a fronteira para além da qual se encontra o
animal na «ordem de dignidade decrescente» das espécies estabeleci­
das por Buffon, do homem europeu civilizado aos animais selvagens.
Mas se o homem negro se afasta do animal na proporção da sua
linguagem, aproxima-se no entanto dele na proporção da sua figura.
Enquanto o uso dos sinais é um limiar que distingue irremediavel­
mente a humanidade da animalidade, em contrapartida na facialidade
essa clara distinção tolda-se na confusão dos seus traços. O homem,
no que se assemelha ao animal, entende-se pela linguagem; o animal,
no que se assemelha ao homem, adivinha-se pelo rosto.
Quer dizer que a morfologia facial, espaço de transição entre as
espécies, torna-se um dos pontos em que vão reunir-se os sinais que
traduzem a degenerescência que leva, de forma contínua, do ideal fí­
sico e moral do homem ocidental, às formas mais primitivas da ani­
malidade, via homem selvagem. As considerações fisiognomónicas do
século xvm estão penetradas destas concepções que fazem da fisiono­
mia o indício da raça e do rosto o sinal privilegiado da decrepitude.
E de que fala Jean-Joseph Sue nos seus conselhos fisionômicos desti­
nados aos pintores:

Nos quadros, o Francês e o Circassiano surgirão com a bele­


za própria de cada um, enquanto o Gronelandês e o Calmuco
mostrarão um rosto de uma largura disforme, com olhos pe­
quenos e dois buracos em vez de narinas; e nas Caraíbas des­
cobre-se um crânio achatado na parte de cima e olhos com
falta de expressão21.

88
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Figura 12 — J. G. Lavater: UArt de connaitre les hommes par la physionomie Paris


1820 (Foto B. N.).

89
Mas a ideia de uma identidade orgânica profunda traduzindo à
superfície as diferenças fisiognomónicas vai alargar-se, para além da
raça, à identificação da nacionalidade. Quando Camper percorre as
ruas e as praças públicas de Amesterdão, é-lhe «fácil distinguir, ao
primeiro golpe de vista, não apenas os negros dos brancos, mas ainda,
entre estes últimos, os judeus dos cristãos, os espanhóis dos franceses,
os franceses dos alemães e estes últimos dos ingleses»22. O exemplo
de Amesterdão é o de uma grande cidade de comércio cujas multi­
dões reúnem homens de todas as origens. Permite compreender a ne­
cessidade de dar à nacionalidade, à imagem da raça, a identidade or­
gânica de que a morfologia facial seja reveladora: o cosmopolitismo
das grandes cidades começou a misturar os homens, surgindo a pou­
co e pouco o risco de os rostos se tornarem indistintos, de se confun­
direm os traços da sua primitiva figura:

O povo de cada país oferece (...) algo de particular que se


transmite de geração em geração, até que, pela mistura de vá­
rias nações, os traços característicos ficam alterados ou intei­
ramente destruídos. As guerras, as migrações, o comércio, a
navegação e os naufrágios misturaram de tal modo os habi­
tantes da terra, que só no interior de alguma região inacessível
aos estrangeiros se encontram homens que ainda possuem a
sua figura original primitiva, que os distingue de uma maneira
visível das nações limítrofes23.

O cosmopolitismo muda a natureza dos rostos como, à sua maneira,


a civilização, condenada ao mesmo tempo por Rousseau. E preciso ver
também nesta nostalgia do homem primitivo que se sente no fim do sé­
culo xvm os efeitos da irrupção, no seio de formas sociais tradicionais,
de uma modernidade que ultrapassa, reúne e agita as populações; que
apaga progressivamente a coincidência milenar entre fronteiras geo­
gráficas dos países e fronteiras morfológicas dos tipos físicos; e que,
por conseguinte, esfuma as particularidades fisionômicas dos rostos,
continuando a homogeneizá-los. Torna-se então necessária uma fi­
siognomonia que investigue a identidade orgânica da nacionalidade
na morfologia facial ou craniana. Se os pintores têm de representar
indivíduos de origem diferente, «Lavater, segundo Vésale, ensinar-
-lhes-á que existem além disso, de nação para nação, diferenças sur­
preendentes nas formas; que o crânio de um holandês, por exemplo,
é mais arredondado em todos os sentidos, que os seus ossos são mais
largos, mais uniformes, que têm menos curvatura e, em geral, a forma
de uma abóboda menos achatada dos lados (...)»24.

90
Esta fisiognomonia prolonga a antiga tradição que, até ao sé­
culo xvn, distinguia os povos pelos traços físicos e morais dos hu­
mores e dos temperamentos. Ela aplica a morfologia aos caracteres
nacionais; no decurso do século xix, fundamentar-se-á na natureza
das distinções históricas e culturais, ao ponto de querer torná-las
irredutíveis.

Crânios expressivos

O vós que adorais a sabedoria infinita que forma e dispõe to­


das as coisas, detei-vos mais um momento a considerar comi­
go o crânio do homem25.

Lavater partilha de facto esta paixão de fim de século pelos esque­


letos, que cedo irá culminar na craniomania desencadeada pela frenolo-
gia. Considera o sistema ósseo como o esboço mais estável e o crânio
como «a base, o resumo deste sistema, como o rosto é o resultado e o
sumário da forma humana em geral»26. Para compreender o rosto, é
preciso estudar o crânio e descurar a carne que é, de certo modo,
apenas «o colorido que realça o desenho»27. Este gosto pronunciado
de Lavater pela morfologia craniana, encorajado por Goethe, é tal
que ele acaba por ver aí «o objecto principal» das suas investigações;
a craniometria é o futuro radioso da ciência do rosto.

O fisiognomonista sábio deveria pois fixar toda a sua atenção


na forma da cabeça (...). Deveria e podê-lo-á um dia; e será
apenas então que a fisiognomonia estará solidamente apoiada
na sua base natural, criando profundas raízes28.

Lavater estuda os gessos, realiza cortes de contornos do rosto que


lhe permitem «determinar com uma exactidão quase matemática as si­
lhuetas»29 (ver figura 12). Com a anulação da carne, a supressão da
expressão, desvendando o esqueleto que materializa a silhueta, Lava­
ter aprofunda os traços morfológicos estáveis que, sem erro, irão pre­
dizer a alma. A silhueta é a sombra do carácter, o claro recorte da na­
tureza, a efígie das inclinações e também o pedestal inalterável em
que a ciência fisiognomónica se enraiza. Perturbado pela instabilidade
da expressão, volta-se para a observação das fisionomias em repouso;
o fisionomista aprendiz terá muito a aprender com o rosto calmo do
homem adormecido, saberá observar a fisionomia dos cadáveres, es-

91
Figura 13 — J. G. Lavater (op. cit): máscara mortuária (Foto B. N.).

92
Figura 14 — J. G. Lavater (op. cit.)-. crânios expressivos... (Foto B. N.).

93
tudar as máscaras mortuárias, coleccionar os crânios, fazer falar os
mortos para compreender os vivos. A sabedoria do fisionomista é a
arte da natureza morta (ver figura 13).
Na brusca ressurgência da morfologia na renovação da fisiognomo­
nia do fim do século xviii, é necessário ver a preponderância adquirida
pela história natural no espírito do tempo: à maneira de Camper, La-
vater produz a deriva morfológica do Apoio antigo em batráquio.
Mas a sua anatomia é uma pura fantasia que não tem por alcance a
classificação ordenada das espécies: o que ele procura na imobilidade
dos traços é a permanência do carácter; e na morfologia, a psicolo­
gia30. Mais paradoxalmente ainda: nos ossos, uma expressão.
«Vejam as silhuetas da parte ossuda destas três cabeças», exclama
ele face a um alinhamento de caixas cranianas. «Não se vê aqui nem
cara, nem traço, nem movimento e, no entanto, estes três crânios não
deixam de ser expressivos»31. (Ver figura 14.)
A obra de Lavater é paradoxal se se relacionar com a lenta história
dos tratados de fisiognomonia, que viu pouco a pouco manifestar-se a
expressão na imobilidade do rosto. Mostra um entusiasmo pré-ro-
mântico pelo movimento que a leva a dar vida às formas inanimadas e
rígidas do corpo humano, exaltando a expressão. Mas no arcaboiço
ósseo do homem prossegue igualmente uma naturalização dos carac­
teres psíquicos, no sentido que este termo pode ter para um taxider­
mista. Está muito próxima, neste aspecto, da frenologia de Gall: com
efeito, que busca este último nas cavidades e bossas da parte superior
do crânio, senão dotar o homem de um verdadeiro esqueleto psíquico,
o das «propensões» que constituem a permanente arquitectura da sua
personalidade?
Este paradoxo que percorre a obra de Lavater é o efeito de uma
tensão mais geral que a sua época atravessa. Com efeito, no decorrer
do século xvm a anatomia do crânio é objecto de um conjunto de in­
vestigações que, do ponto de vista das medições sistemáticas, revelam
a nova inteligibilidade da unidade e da variedade das espécies orgâni­
cas; e dão lugar igualmente a exames de natureza fisiognomónica da
individualidade psíquica.
Abre-se assim, no último terço do século xvm, uma crise da legibili­
dade do rosto. E a fisiognomonia de Lavater é o sintoma desta crise.
Os seus aspectos contraditórios, as orientações irreconciliáveis que a
rasgam e quebram a sua coerência, são manifestação de que para o fu­
turo duas vias divergentes se afastam uma da outra e que o conheci­
mento do homem seguirá: o estudo objectivo do homem orgânico
afasta-se então da escuta subjectiva do homem expressivo. Surge uma

94
divagem temática entre organicidade e expressividade, que é também
uma partilha discursiva, uma delimitação disciplinar: a objectivida-
de orgânica vai cair no domínio da ciência, enquanto a subjectividade
expressiva dependerá das artes e das letras. E o fim do paradigma
da expressão, isto é, da representação subjectiva concebida como lin­
guagem unificada do organismo humano. As Conférences de Le Brun
haviam sido, no que respeita às representações do rosto, a última for­
mulação geral coerente, porque tinham podido, ainda no fim do sé­
culo xvn, manter a divisão já patente do orgânico e do expressivo sob
o império da retórica e do domínio do eu. Mas onde os dicionários
de Richelet (1680), Furetière (1690) e o da Academia (1694) se refe­
rem, no artigo «rosto», ao movimento das paixões e às metáforas da
expressão, a Encyclopédie de Diderot só mencionará os elementos de
uma semiologia médica. O rosto é ali sintoma orgânico e já não ex­
pressão subjectiva. Esta emigrou para as rubricas «paixão», «retrato»
e «expressão», remetida para as belas-letras, a ópera e a pintura.
E desta vez, no terreno, já não objectos, mas discursos cujas proprie­
dades formais se dissociam e que o século xix separará definitivamen­
te em dois gêneros distintos. Deverá ver-se no Discours sur le style,
pronunciado em 1753 por Buffon, uma última defesa, na perspectiva
clássica, pela unidade do homem orgânico e do homem expressivo?
Tentativa de um escritor para ordenar os movimentos do organismo
na racionalidade da expressão individual; resposta afirmativa de um
naturalista à pergunta: pode um sábio ter um estilo?
E pois a própria incoerência do trabalho de Lavater que lhe dá in­
teresse quando parecia condená-lo: atravessado pela divagem que de
futuro vai cindir a racionalidade dos discursos sobre o homem e ain­
da opô-los, recusa os termos dessa partilha e esforça-se por unir estes
elementos ontem indissociáveis e que a pouco e pouco se tornaram
estranhos um ao outro: o rosto orgânico e o rosto expressivo, a facialida-
de muscular e ossuda do homem e a face sensível do indivíduo. E deste
modo Lavater tenta escapar à crescente divisão do próprio homem em
homem orgânico e homem sensível, a fenda em que se constituíram os
traços da personalidade moderna.
Uma «ciência do rosto» que seja uma ciência do homem sensível,
eis o sonho, de futuro impossível, que Lavater persegue numa aliança
barroca do crânio e do sentimento.

A linguagem do sentimento
A imagem da alma está pintada na fisionomia. E calma? To­
das as partes do rosto estão num estado de repouso que anun­
cia a calma interior. A sua união prova a doce harmonia dos

95
pensamentos. Está a alma agitada? A face humana transfor-
ma-se num quadro animado, em que as paixões se manifestam
com tanta delicadeza como energia, em que cada movimento
da alma é expresso por um traço e cada acção por um carácter
que a revela33.

O rosto é movimento. O século xvm prolonga esta concepção


surgida no século xvii e vai dar-lhe uma amplidão e uma intensidade
novas: se a expressão continua a ser movimento do rosto, acentuar-
-se-á mais a sua vivacidade, a sua energia.
Desenvolve-se assim, na segunda metade do século xvm, uma es­
tética da mímica e do rosto como gesto facial. Nela se encontra o
sensualismo dos filósofos, atravessando a fisiognomonia, o teatro e a
pintura. Elabora-se todo um pensamento de oposição entre corpo em
repouso e corpo em movimento, privilegiando o segundo em detri­
mento do primeiro. Assim, Lavater distingue a «fisiognomonia» que
revela o «carácter em repouso», da «patognomonia» que revela o «ca­
rácter em movimento»34, acentuando toda a importância desta última.
Assim, ainda para Johann Jakob Engel, ao tomar parte no debate so­
bre a representação do actor de teatro, o rosto é um gesto que toma o
nome de «cara»35. Concebe então a mímica do actor como uma ver­
dadeira linguagem do movimento facial, que resolve demonstrar sob
a forma de um sistema ordenado de gestos ao mesmo tempo sensíveis
e enérgicos. E do mesmo modo que Lavater opõe à «fisionomia» que
ajuiza do carácter segundo os traços estáveis, a «pantomima» que
pretende captar segundo os «movimentos momentâneos» do corpo36.
A mesma preocupação existe em Diderot quando nos seus Essais sur
la peinture critica o convencionalismo e o maneirismo do retrato de
pompa: onde privilegia a estética da acção, «bela a verdadeira», con­
tra a da atitude «falsa e diminuta»37, isto é, de novo o movimento
contra a pausa. A expressão não é a atitude do rosto, não é nem más­
cara imóvel nem a careta fixa. Laocoon sofre, não faz caretas.

Não confundam as momices, a careta, os cantinhos da boca


levantados, as boquinhas comprimidas e mil outras denguices
pueris com a graça e ainda menos com a expressão38.

Finalmente, fora das considerações literárias e estéticas, o movimen­


to ganha as representações científicas do corpo: em anatomia progri­
de, paralelamente à osteologia, uma miologia que analisa a contracção
e o relaxamento muscular, quando a maior parte da anatomia do sé­
culo xvn não conhecia dos músculos senão a sua topografia e as suas

96
inserções ósseas. Este deslocamento das percepções anatômicas não
deixa de ter por sua vez efeitos estéticos. São disso testemunho as ob­
servações dirigidas aos pintores por Sue nos seus Éléments cTAnatomie:

Tudo o que provoca na alma uma emoção comunica ao rosto


formas características produzidas pelos músculos, dos quais
uns incham e outros se relaxam; todos concorrem para es­
tes efeitos, segundo a diferente energia de que goza o sistema
vital39.

Um laço energético entre as emoções do homem moral e as ex­


pressões do homem físico substitui progressivamente o laço causai
entre os movimentos das paixões e as figuras do corpo. Acentua-se
então o vigor, a vitalidade do movimento; observa-se a energia e a
elasticidade do corpo. E no registo literário ou estético, a vida do
corpo orgânico na expressão facial continua a ser vista como uma lin­
guagem:

Ao observar estes movimentos e sobretudo as mudanças que


se manifestam no rosto, pode-se quase sempre avaliar o que se
passa no princípio vital. Pode-se, por conseguinte, garantir
que cada paixão tem o seu carácter particular e uma lingua­
gem que lhe é própria40.

Na expressão, o rosto fala ainda e sempre. Já não, claro, à maneira


da inscrição dantes gravada de um texto imóvel. Mas também não é à
maneira das figuras codificadas de uma retórica: antes seria à maneira
das expressões sensíveis de uma linguagem.
A representação e a percepção da maneira como «fala» a expres­
são facial transformaram-se. A sua linguagem é uma linguagem inte­
rior. A pintura do retrato ilustra-a, quando a «maneira particular», o
leve tremor do pastel nos retratos de Quentin de la Tour ou Chardin,
nos falam da delicadeza do movimento fisionômico e também da sua
carga sensível, íntima e profunda. Como Quentin de la Tour teria di­
to numa frase que o século muitas vezes refere: «Eles julgam que eu
só capto os traços do seu rosto, mas eu desço ao fundo deles pró­
prios sem que o saibam e desvendo-os totalmente»41. E para Diderot
a expressão «fraca ou falsa, se deixa incerteza quanto ao sentimen­
to»42, é a imagem indissociável deste último. A linguagem da expres­
são tornou-se linguagem do sentimento.

97
Se a alma de um homem ou a natureza deu ao seu rosto a ex­
pressão da benevolência, da justiça e da liberdade esse
rosto é uma carta de recomendação escrita numa língua co­
mum a todos43.

Quais os meios dessa linguagem? O olho é o seu instrumento pri­


vilegiado. O século xvni exprimentou intensamente os efeitos do
olhar — «calor do sentimento» e «língua da inteligência», diz Buf­
fon44 — como o órgão do sentimento, a voz do sensível. Observada
pelo naturalista, examinada e imitada pelo pintor45, a linguagem dos
olhos fala ainda no teatro sobre a figura do actor: é para Engel «a
parte mais eloquente do rosto»46, e contradiz então Le Brun e as van­
tagens que este último atribuía às sobrancelhas. Porque a eloquência
do olhar não é da mesma natureza que a jaodiam descrever as tradi­
ções picturais e retóricas do século xvn. É mais facilmente posta em
relação com a vivacidade do movimento do que com a sua medida.
E sobretudo já não é tão considerada em relação com o domínio in­
dividual do corpo como com as qualidades do substrato orgânico: a
volubilidade dos órgãos é função da elasticidade dos tecidos.

A alma fala a maior parte das vezes, e da maneira mais fácil e


mais clara, pelas partes em que os músculos são mais móveis;
assim, exprime-se a maior parte das vezes pelos traços do ros­
to, principalmente pelos olhos47.

O tempo do sensível

A linguagem do sentimento possui uma tonalidade e uma tempo-


ralidade que lhe são próprias. Assim, cada paixão tem a sua cor; e ca­
da paixão decompõe-se numa miríade de instantes que se distinguem
pelas subtilezas das suas tonalidades. Um tempo sempre mais fugaz
passa pelo rosto e modifica-lhe as percepções. Como se, entre os sé­
culos xvi e xvm, as representações da figura humana passassem por
uma lenta aceleração do quadro e dos ritmos temporais em que ga­
nham sentido, de uma temporalidade eterna a uma temporalidade efê­
mera; de uma figura de sempre ao rosto de um momento; e deste a
uma expressão do instante.
Este tempo do sensível que o fim do século xvm vê tremer na fi­
sionomia é um tempo complexo, que não se reduz à sombra fugitiva

98
do sentimento. Não existe pois, na expressão espontânea do olhar,
«um intervalo, por assim dizer, entre o sentimento e o seu efeito»,
nota Engel, que acrescenta:

A arte mais exercitada em mascarar os pensamentos secretos


não pode deter-lhes a explosão, embora domine todo o resto
do corpo. O homem que quer esconder as afeições da sua al­
ma deve sobretudo ter cuidado em não se deixar fixar nos
olhos; e não deve vigiar menos cuidadosamente os músculos
vizinhos da boca que, quando de certos movimentos interio­
res, muito dificilmente se dominam48.

Um domínio absoluto do rosto é impossível, pois há na orgânica


alguma coisa que escapa ao império da vontade. A máscara do ho­
mem da corte deteriora-se e cai pouco a pouco em bocados. O rosto
é por vezes iluminado pelo relâmpago do movimento interior, numa
instantaneidade que não se poderia ainda nomear, mas que já se assi­
nala. Com efeito, são várias as temporalidades que entrecruzam os
seus períodos na fisionomia: tempo fulgurante da agitação involuntá­
ria, tempo súbito da emoção, tempo efêmero da paixão; e ainda o
tempo dos ciclos mais longos da evolução orgânica; tempo irreversí­
vel das metamorfoses da idade sobre o rosto orgânico que lentamente
arrasta o corpo para o seu fim.

Então a gordura desaparece insensivelmente e deixa um vazio


na pele; esta, sem bastante elasticidade para se comprimir,
abate e faz pregas (...). Daí as rugas que aparecem na fronte e
na pane inferior das faces. Vem em seguida a velhice imprimir
o seu triste cunho em todo o exterior do homem: fronte cal­
va; multiplicação das rugas; faces que, de cavadas, atestam a
queda de quase todos os dentes; olhos meio apagados, um
rosto desbotado49.

Cada uma destas temporalidades deposita um traço no rosto, cri­


vado de indícios permanentes ou fugazes como um mosaico. Desta-
cando-se dos tempos imóveis, cosmológico ou divino, o corpo tomou
progressivamente sentido numa duração mais curta, mais efêmera e
mais complexa: o tempo humano. O do indivíduo.

Em cada parte do mundo, em cada região; numa mesma re­


gião, em cada província; numa província, em cada cidade; nu­
ma cidade, em cada família; numa família, em cada indivíduo;

99
num indivíduo, cada instante tem a sua fisionomia e a sua ex­
pressão50.

A expressão é então o próprio indivíduo. E no indivíduo, a ex­


pressão é ao mesmo tempo universal e singular. Nada existe no ho­
mem que não seja expressão — assim argumenta Lavater —, da forma
dos ossos à cor dos cabelos, da maneira de andar à de chorar. «Não
deveria eu talvez», interroga-se ainda Engel a propósito dos gestos
expressivos, «servir-me da palavra gesto senão para esta última espé­
cie?»51 Universal, a expressão é também infinitamente singular. Não
existem — afirma o conhecimento comum — dois rostos que se asse­
melhem absolutamente; o que Lavater teoriza fazendo do rosto o si­
nal da insubstituibilidade do indivíduo.

Nenhum homem pode ser substituído por outro homem. Es­


ta crença (...) é ainda um dos pontos óptimos da fisiognomo­
nia... Todo o homem deve ser avaliado segundo ele próprio.
Cada um é um eu à parte e não poderia passar a ser outro eu
como não poderia passar a ser um anjo52.

Mais um paradoxo das considerações de tipo fisiognomónico que


o século xvm produziu: aqui, a expressão é pensada como irreduti-
velmente singular, sendo ao mesmo tempo objecto de classificações
que pretendem fixá-la. Também ele atento ao movimento da expres­
são humana, Sulzer não só concebe o projecto de elaborar «uma co-
lecção de gestos expressivos» como considera «possível e igualmente
útil uma colecção de desenhos de conchas, de plantas e de insectos»53.

O observador de si mesmo

A importância decisiva que o século xvm atribui ao indivíduo é


ainda visível nas formas de observação do eu. Estas obedecem a um
imperativo já não simplesmente evocado, mas verdadeiramente exal­
tado: o da sinceridade, condição, o próprio princípio e efeito pro­
curado desta observação interior. «A sinceridade principia quando o
nosso coração começa a notar que é observado por ele próprio» — é
assim que Lavater se exprime no Journal d’un observateur de soi-
-même^ que constitui a componente reveladora da sua fisiognomo­
nia. E necessário observar os outros, mas igualmente observar-se.

100
É um dever imperioso, uma preocupação de cada instante, uma aten­
ção sem falha. No seu diário, Lavater fala com o homem interior que
existe em si. Mas este homem mudou de rosto. Já não é uma simples
introspecção da consciência, o tradicional diálogo com a alma, mas
uma verdadeira conversa que empreende com o seu coração:

Mas tu, meu coração, sê sincero, não dissimules as tuas pro­


fundezas na minha frente, quero estabelecer amizade, fazer
uma aliança contigo5’.

Esta conversa assemelha-se à que se pode ter com um amigo pró­


ximo. Para Lavater não existe maior bênção que «a amizade e a con­
fiança de um coração humano consigo próprio»56.
O homem sensível vê-se reconciliado com o homem orgânico
neste curioso diálogo interior. O coração encontra-se ali representado
como um elemento que é ao mesmo tempo o próprio indivíduo e de
quem porém se destaca, uma vez que pode ser tratado à maneira de um
amigo, de um igual, de um confidente. Na observação interior de si
próprio como na observação exterior dos rostos humanos, Lavater não
pode aceitar a oposição sempre mais clara que distancia o homem or­
gânico do homem sensível. Na observação dos crânios como na longa
apóstrofe dirigida ao seu próprio coração, ele espiritualiza o organis­
mo. Não se deveria no entanto concluir que esta glorificação do diá­
logo e do sentimento interior seja pura exaltação do homem sensível.
A sinceridade que leva o homem à confissão a si próprio, que o leva a
fugir da hipocrisia como do pior dos males, é uma regra estrita e até
uma regulamentação de todos os instantes da vida. Os progressos da
intimidade são também inseparáveis do desenvolvimento dos auto-
controlos.
Lavater faz um registo minucioso, pormenorizado e quotidiano
dos seus sentimentos, dos artifícios mais secretos das suas paixões;
com uma tal exactidão que se o próprio Deus tivesse de ler este diário
no dia da morte do seu autor não teria de mudar-lhe uma linha. Rela­
tar exactamente a sua vida, vem acompanhado da multiplicação e da
observação contínua de regras e de resoluções que não deixarão um
único instante o observador de si próprio em paz:

Resoluções de todos os dias: as resoluções seguintes devem


estar diariamente perante os meus olhos; devem estar pendu­
radas no meu gabinete para que eu as leia em cada noite e em
cada manhã57.

A «satisfação de si próprio», que o fim do século xvm vai cele­

101
brar com o marquês de Caraccioli’8, alia por vezes a doçura do senti­
mento íntimo aos rigores do emprego do tempo59.

Os rostos da multidão

L. S. Mercier mostra-se admirado: «Os Parisienses não passeiam.


Correm, precipitam-se. O jardim mais belo encontra-se deserto a
certa hora, em certo dia, porque é hábito haver reunião noutro lu­
gar»^. Essa admiração é bastante para dar a razão da ressurgência de
uma fisiognomonia que se julgava irremediavelmente condenada. Este
renascimento tardio e espectacular é de facto indissociável das pertur­
bações e reconfigurações sociais do fim do século. Acompanha o de­
senvolvimento da cidade, a eclosão da multidão. As massas citadinas
que reúnem e multiplicam os rostos são ao mesmo tempo a sua maté­
ria e a sua necessidade. Nos jardins do Palais-Royal que Mercier per­
corre, nas ruas dos bairros populares que Diderot observa, pode-se
ter de futuro a certeza de saber com quem se está a lidar?

Porque o senhor Lavater, médico zuriquense que tanto tem


escrito sobre a ciência da fisionomia, não se encontra no Pa-
lais-Royal à sexta-feira, para ler nos rostos o que se esconde
no abismo dos corações61,

acrescenta então Mercier. Mas não é ele próprio um desses «fisiono-


mistas que exerce a sua sagacidade no meio de uma multidão tão
grande (...), que têm prazer em estar nessa multidão?»62 Se Mercier
acredita em Lavater, é porque no lugar onde se encontra lhe desco­
bre «naturalmente» a necessidade prática. De facto, surge no fim do
século xvm uma preocupação ligada à entrada em cena das multi­
dões: a da identificação.
A multidão de fisionomias, ao anunciarem-se as sociedades de
massas, torna de facto mais difícil a percepção das identidades. Co­
meça-se então a ficar sensível, pela primeira vez com muita clareza,
ao efeito que as condições sociais podem produzir no rosto. Diderot
perscruta, ao acaso das ruas, as fisionomias das diferentes classes da
sociedade: o artesão, o nobre, o plebeu, o eclesiástico ou ainda o ma­
gistrado possuem traços e expressões que lhes são próprios; e entre
os artesãos há que distinguir ainda «os hábitos de grupo, as fisiono­
mias de loja e de oficina»63 como dentro em pouco saberão fazê-lo os
pequenos romances populares do século xix, as fisiologias64.

102
Quanto a Mercier, descobre novas identidades que se desenham
nos modos das pessoas das cidades, nos rostos dos Parisienses; e ain­
da nos dos jovens do Palais-Royal, de «fisionomias muito particula­
res, onde se pintam almas insensíveis, corações frios, paixões sem
prazer e sem vigor»65. E Mercier, como Diderot, dedica-se a diferen­
ciar a frieza exagerada das fisionomias aristocráticas ou burguesas
e de calor expressivo das camadas populares. Se quiserem poder ler e
pintar verdadeiras expressões — aconselha Diderot aos pintores —,
vão às tabernas e aos mercados. A expressão está na rua.

Procurem as cenas públicas, observem as ruas, os mercados,


as casas, e ficarão com a ideia justa do verdadeiro movimento
nas actividades da vida66.

Os observadores da rua e da multidão do fim do século xvm ofe­


recem assim uma percepção contrastada do rosto do povo. Se lhe
realçam a expressividade, sabem porém adivinhar nela os sinais de
novos perigos. O povo de Paris, se abandonado alguma vez «ao seu
primeiro impulso (...), não poria nenhuma medida à sua desordem»67.
Elabora-se assim uma fisionomia da populaça onde há que distinguir
as espécies: os traços das «raparigas por conta», que «será preciso co­
nhecer para não haver enganos e para as distinguir de uma burguesa
honesta»68. Poder ainda reconhecer os homens perigosos pela sua
morfologia: quanto a Mercier, identifica-os pela sua pequena estatura.

Os celerados que vi passar para o suplício, os assassinos pérfi­


dos e os envenenadores, eram todos de pequena estatura; (...)
as almas cruéis moram em corpos exíguos69.

As classes laboriosas tornam-se pouco a pouco classes perigosas.


E esta equivalência entre o povo e a perigosidade já não é simples­
mente da ordem dos factos, mas também do da gênese. São as con­
dições sociais que produzem este efeito, que transformam rostos
encantadores em fisionomias patibulares, crianças inocentes em adul­
tos brutais e corrompidos:

Vi ao fundo do bairro Saint-Marceau, onde vivi durante mui­


to tempo, crianças de rosto encantador. Com a idade de doze
ou treze anos, aqueles olhos cheios de doçura tornaram-se
ousados e ardentes; a boquinha agradável adquiriu um con­
torno curioso; o pescoço redondo inchou de músculos; as fa­
ces largas e lisas estavam semeadas de saliências duras. Tinham

103
adquirido a fisionomia do mercado. À força de se irritarem,
de se injuriarem e de se baterem, de gritarem, de se desgre­
nharem por nada, haviam contraído para toda a vida o ar do
interesse sórdido, da insolência e da cólera70.

A fabricação do rosto virtuoso

Impõe-se mais geralmente a ideia de que as condições sociais e


culturais são elementos decisivos na compreensão dos traços físicos
dos organismos. Da mesma maneira que Buffon atribui as diferentes
variedades da espécie humana ao clima, à alimentação, aos usos e cos­
tumes, mais frequentemente se considera que o rosto e o corpo tra­
zem a marca da educação que receberam. «A educação, os exercícios
corporais, uma vida regrada, tornam o homem mais belo de rosto e
de corpo»71.
Mais belo, mas também mais feio, quando se trata dos costumes
bárbaros dos povos selvagens:

Uns esmagam o nariz dos filhos; outros alongam-lhes prodi­


giosamente as asas, colocando-lhes anéis de metal muito pesa­
do. Outros ainda usam-nos mais pesados nas orelhas, o que
as torna de um tamanho surpreendente; estes achatam a cabe­
ça dos filhos, comprimindo-a entre duas tábuas; aqueles alon-
gam-na excessivamente72.

Não há porém necessidade de ir procurar nos povos distantes cos­


tumes estranhos. Os textos da fisiognomonia do século xvm realçam
os efeitos que a própria civilização imprime ao corpo. O fardo das
boas maneiras, o constrangimento do vestuário e o suplício da civili­
dade impedem o vigor fisiológico do corpo natural. E estes textos
concluem com Rousseau que a civilização adultera, corrompe e amo­
lece a natureza; que é uma «prisão do corpo»73 e uma máscara para os
rostos.
E a este mal que a fisiognomonia deste fim de século quer precisa­
mente dar remédio. Com efeito, se para o homem comum a máscara
das aparências pode iludir, não será

para um homem que nasceu fisionomista (...) senão um vapor


subtil que se dissipa à aproximação dos raios luminosos do

104
facho da natureza. Ao dissipar-se, deixa ver o verdadeiro com
todo o seu brilho74.

Lavater, por sua vez, também insiste nisto: é preciso ter nascido
fisionomista, ainda que se espere vir a sê-lo, para possuir esse «senti­
mento e, por assim dizer, essa intuição rápida do homem»75. Ressurge
então com uma nova força a antiga ideia segundo a qual a fisiogno­
monia permitiría desvendar o ser, pôr a nu o homem interior:
«Aprendam a arte de conhecer os homens pelos traços dos seus ros­
tos», assim exorta Pernety. «Arranquem essa máscara pérfida e que
não reste ao que a trazia senão a vergonha de a ter usado»76. Este
ideal de transparência de que a sinceridade e a franqueza devem ser
os frutos, é desde logo considerado como uma das condições daquilo
que as transformações políticas cedo vão reclamar: a fisiognomonia
será uma das bases da invenção deste homem novo, republicano e vir­
tuoso, um dos instrumentos mais preciosos da fabricação do cidadão.
E assim que Clairier, padre constitucional, dirige à Sociedade dos
Amigos da Constituição de Estrasburgo uma fisiognomonia patrióti­
ca e revolucionária. Uma obra «verdadeiramente nacional», embora
de um interesse universal, «de utilidade pública» porque redigida
«sob o império do civismo». Qual o seu objectivo? Propor, a partir
do conhecimento do homem físico e do homem moral, uma educação
meio esclarecida e mais sólida do cidadão. A fisiognomonia foi bem a
ciência dos reis. Porque não havia de ser de futuro uma ciência útil
ao povo, ao cidadão «chefe e rei da sua família», «encarregado da admi­
nistração pública», «alma do departamento»?77 Dantes apresentavam-
-na como indispensável ao conhecimento dos «deveres de estado» na
sociedade do Antigo Regime, agora vão inscrevê-la na instrução cívi­
ca. A fisiognomonia terá como tarefa contribuir para a formação das
elites da nação. Mais ainda, ela é o próprio futuro da nação revolu­
cionária porque lhe ensinará a reconhecer e a educar as suas gentes.

Uma tal nação não deve sem dúvida descurar coisa alguma
para dar a conhecer à geração nascente de tantos cidadãos por
que sinais certos e fáceis ela pode distinguir os indivíduos
mais próprios pelas suas luzes e os seus talentos, a sua integri­
dade e a sua coragem, para manterem com zelo a constitui­
ção, tornando-se os seus suportes e o ornamento78.

A fisiognomonia é, para Clairier, um «método anatómico-moral»


que servirá de «bússola» aos revolucionários, permitindo-lhes exercer
um «feliz discernimento»79 entre os homens. A figura do fisiognomo-

105
nista confunde-se então pela primeira vez de maneira clara com a do
pedagogo. A fisiognomonia tornou-se um sacerdócio laico, o do pai,
do professor, do mestre esclarecido que, «por meio desta chave que
abre a porta dos espíritos e dos corações»80, conhecerá a arte de lhes
sondar os recônditos.
Quer seja laica ou impregnada de religiosidade, como a de Lava­
ter, a fisiognomonia da alvorada do século xix deriva irresistivelmente
para a filantropia. Para Lavater, é o caminho que conduz ao amor dos
homens. Torna-se uma técnica de compaixão quando a arte de conhe­
cer os homens é a «arte de os amar». E de facto este amor que justifi­
ca querer-se penetrar no coração de cada um. A filantropia legitima
então a identificação.

O fisiognomonista filantropo penetra com um secreto enlevo


o coração do homem81.

Este estranho amor ao próximo — amar o outro é desmascará-lo —


vai aplicar-se aos homens de maneira muito desigual. O olhar de La­
vater está assim particularmente pronto a captar os traços morfológi­
cos que marcam as fisionomias grotescas que atribui aos camponeses,
aos estúpidos e aos imbecis. Dedica-se longamente a estas fisionomias
«alteradas» e «degradadas» em que vê os traços da degenerescência
dos organismos vivos82. Mas também se detém a contemplar os rostos
cheios e laboriosos dos burgueses de Zurique que são um verdadeiro
hino facial à glória das classes médias.

Mais um perfil de um zuriquense, o perfil de um homem pro­


fundamente honesto, laborioso, bom e dedicado (...). O nosso
carácter nacional, o da classe média tão feliz e tão amada por
todo o mundo, manifesta-se sobretudo na forma distinta dos
nossos narizes. A boca anuncia o amor do trabalho e a bon­
dade do coração83.

Compreende-se assim melhor a brusca ressurgência da fisiogno­


monia. A obra de Lavater realiza uma naturalização das classes sociais
que surgem com a emergência de uma sociedade nova84. Ela acompa­
nha a revolução democrática e quer fundar naturalmente a nova or­
dem social, mas nas formas mais extremas, que são também as mais
perigosas da sua divagação, propõe-se mesmo produzir um mundo
novo que seria o da harmonia das almas e dos rostos. E esta a parte
de utopia da fisiognomonia dos últimos anos do século. Robert in­
venta a «megalantropogenesia», isto é, a arte de identificar na criança

106
os sinais precursores do grande homem85. Lavater vai mais longe
quando se propõe arrancar aos homens mais feios os filhos que são
deles o vivo retrato; criar essas crianças numa instituição pública bem
orientada; pô-las depois em circunstâncias que favoreçam a prática da
virtude e, finalmente, casá-las entre si. A «quinta ou sexta geração»
haverá

homens cada vez mais belos (...). Esta beleza progressiva no-
tar-se-á não apenas nos traços do rosto, na configuração óssea
da cabeça, mas também na pessoa por inteiro, em todo o seu
• Q/

exterior .

O eugenismo espreitava já o filantropo.

NOTAS
1 Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, 3.a
ed., Genebra e Neuchâtel, 1779, t. XXI, p. 767.
2 Ibid. (l.a ed.), vol. XII, pp. 538
3 Buffon, Oeuvres complètes, ed. Dumézil, t. IV, 1836, pp. 94-95.
4 Ibid.
5 Ibid.
6 G. Lichtenberg, Über Physiognomik, Gõttingen, 1788; E. Kant, Antropologie
du point de vue pragmatique, Paris, Vrin, 1979 (1801); G. W. F. Hegel, Phénoméno-
logie de 1'esprit, Paris, Vrin, 1939 (1832), t. I, pp. 256-263.
7 G. Sand, Lettves d’un voyageur, Paris, Garnier Flammarion, 1971 (1837), p. 208:
«Poesia, sabedoria, observação profunda, bondade, sentimento religioso, caridade
evangélica, moral pura, sensibilidade estranha, grandeza e simplicidade de estilo, eis
o que encontrei em Lavater, quando só procurava observações fisiognomónicas e tal­
vez conclusões erradas, ocasionais e conjecturais.» E em Balzac entre uma grande
quantidade de exemplos: «A frenologia e a fisiognomonia, a ciência de Gall e a de
Lavater, gêmeas, em que uma está para a outra como a causa para o efeito, demons­
travam aos olhos de mais de um fisiologista os traços do fluido inalcançável, base dos
fenômenos da vontade humana e de onde resultam as paixões, os hábitos, as formas
do rosto e do crânio» (Ursule Mirouet, em Oeuvres complètes, ed. La Pléiade, Paris,
Gallimard, t. III, p. 328).
8J. G. Lavater, Physiognomische Fragmente..., Leipzig, 1775-1778. A obra está
traduzida em francês e em holandês desde 1781, em inglês em 1789, e em espanhol
nos princípios do século xix. Surge em Paris em 1806 uma edição em dez volumes
por Moreau de la Sarthe com o título: L'Art de connaitre les hommes par la physio­
nomie, que é reeditada em 1820.
9 Le Lavater portatif, ou précis de PArt de connaitre les homens par les traits du
visage, 2.a ed., Paris, 1808.
10 O trabalho de Lavater não é isolado, mas é antecedido e continuado por um
conjunto de trabalhos que a sua notoriedade tende a eclipsar. Para além da obra pu­
blicada antes de 1760 do anatomista inglês Parsons (Human physiognomy explained,

107
Londres, 1747), sobressaem na conjuntura em que foram publicados os Physiogno-
mische Fragmente os seguintes livros: Antoine-Joseph Pernety, Discours sur la phy-
siognomonie, Paris, 1769; La connaissance de 1’homme moral par celle de Phomme
physique, Berlim, 1776; P. Camper, Dissertation sur les varietés naturelles qui carac-
ténsent la physionomie des hommes, Paris, 1791; Clairier, Le Tableau naturel de
1'homme, ou observations physiognomoniques, Estrasburgo, 1794; Jean-Joseph Sue,
filho, Eléments d'anatomie à 1'usage des peintres, Paris, 1788; Essai sur la physiogno-
monie des corps vivants, considérés de 1'homme jusqtSà la plante, Paris, 1797; D’Clé-
ment Forestier, Quelques considérations sur les traits de la face et sur les signes que le
médecin peut en retirer, Montpellier, 1799; Robert le Jeune, Essai sur la mégalanthropo-
génésie, ou 1'art de faire des enfants d'esprit qui deviennent des grands hommes; suivi
des traits physiognomoniques propres à les faire reconnaitre, décrits para Lavater et
du meilleur mode de génération, Paris, 1801.
11 A. J. Pernety, La Connaissance de 1'homme moral, p. 27.
12 Ibid., p. 23.
13 Oeuvres completes de Buffon avec les descriptions anatomiques de Daubenton,
Paris, Verdière et Lagrange, 1928, t. XIII, XIV, XV; P. Camper, op. cit.
14 P. Camper, ibid., p. 6.
15 Ibid., p. 10.
16 Ibid., p. 12.
17 Ibid.
18 F. Blumenbach. De 1'Unité du genre humain, Paris, 1814 (1795); ver sobre este
ponto: F. J. Gall e G. Spurzheim, Recherches sur le système nerveux en général et ce-
lui du cerveau en particulier, Paris, 1809; P. Broca, Instructions craniologiques et cra-
niométriques, Paris, Masson, 1875; e evidentemente: L'Homme criminel (Paris, 1895)
de César Lombroso.
19 Buffon, Oeuvres completes, ed. Pourrat, Paris, 1833-1834, vol. XIV, pp. 22-23.
Sobre a antropologia de Buffon ver: M. Duchet, Anthropologie et histoire au siècle
des Lumières, Paris, Maspero, 1971, pp. 229-280, que cita esta passagem.
20 Buffon, op cit., p. 23.
21 J.-J. Sue, op. cit., p. 6
22 P. Camper, op. cit. p. 15.
23 Ibid., p. 16.
24 J.-J. Sue, op. dt., p. VIII.
25 J. G. Lavater, op. cit., ed. de 1820, t. II, p. 39.
26 Ibid., p. 26.
27 Ibid.
28 Ibid., p. 38.
29 J. G. Lavater, op. dt., ed. L’Age d’Homme, Lausana, 1979, p. 254.
30 Assim, distingue três classes de rostos humanos conforme a sua inclinação; e
descreve em 25 subdivisões os caracteres correspondentes a estas formas: «Quanto
mais o rosto é fechado, curto e compacto, mais o carácter é concentrado, sólido, fir­
me (...). Os rostos de linha direita e com uma posição oblíqua marcam igualmente a
violência e a vivacidade de espírito» {op. dt., ed. L’Age d’Homme, p. 175). O mesmo
se passa com os animais. Lavater inspeccionou a cabeça do elefante e viu nela «um
monumento de prudência, de energia, de delicadeza»; examinou os dentes do castor
que marcam «a bondade e a fraqueza»... As analogias antigas são bem tenazes.
31 J. G. Lavater, op. dt., ed. de 1820, t. II. p. 39.
32 Buffon, «Discours sur le style» (1753), em Un autre Buffon, Paris, Hermann,
1977, pp. 159-160: «As obras bem escritas são as únicas que passarão à posteridade:
a quantidade dos conhecimentos, a singularidade dos factos, e a própria novidade das

108
descobertas, não são garantes seguros da imortalidade: se as obras que as contêm não
tratarem de pequenas coisas, se forem escritas sem gosto, sem nobreza e sem gênio
perecerão porque os conhecimentos, os factos e as descobertas elevam-se facilmente,
transportam-se e ganham muito sendo feitas por mãos mais hábeis. As coisas estão
fora do homem, o estilo é o próprio homem.»
33 Buffon, citado por J.-J. Sue, op. cit., p. 15.
34 «Há razões para se distinguir fisiognomonia e patognomonia. A primeira, em­
bora oposta à patognomonia, propõe-se conhecer os sinais sensíveis das nossas forças
e das nossas disposições naturais; a segunda liga-se aos sinais das nossas paixões.
Uma revela o carácter em repouso, a outra o carácter em movimento» (J. G. Lavater,
op. cit., ed. L’Age d’Homme, p. 6).
35 «O rosto é a principal morada dos movimentos da alma e os gestos tomam o
nome de fisionomia», escreve nas suas Idées sur le geste el Vobservation théâtral, Pa­
ris, 1795 (1786), t. I, p. 53. Engel prolonga na sua obra o debate sobre a naturalidade
do jogo do actor, aberto nos anos 1750 por Pierre Rémond de Sainte-Albine (Le Co-
médien, Paris, 1747), debate em que participam Lessing e Diderot do Paradoxe.
36 «Chamo à Fisionomia uma arte semelhante à da Pantomima', porque as duas se
ocupam do captar a expressão da alma nas modificações do corpo; contudo, com a
diferença de que a primeira dirige as investigações sobre os traços fixos e permanen­
tes, a partir dos quais se pode julgar do carácter do homem em geral, e a outra sobre
os movimentos momentâneos do corpo, que indicam tal ou tal situação particular da
alma» (op. cit., p. 5).
37 Diderot, Essais sur la peinture, Paris, Hermann, 1984 (1795), p. 348.
38 Ibid.
39 J.-J. Sue, op cit., p. 11.
40 Ibid, p. 16.
41 L. S. Mercier, op cit., t. II, cad. CLXI, pp. 164-165.
42 Diderot, op cit., p. 372.
43 Ibid, p. 373.
44 «São principalmente os olhos que espelham as nossas agitações secretas (...).
O olho pertence à alma mais do que qualquer outro órgão; parece que a toca e parti­
cipa de todos os seus movimentos; exprime as emoções mais vivas e as paixões mais
tumultuosas, tal como os movimentos mais doces e os sentimentos mais delicados;
transmite-se em toda a sua força, toda a sua pureza tal como nascem; transmite-os
pelos traços rápidos que têm numa outra alma o fogo, a acção, a imagem daquilo que
falam. O olho recebe e reflecte ao mesmo tempo a luz do pensamento e o calor do
sentimento; é o sentido do espírito e a língua da inteligência. A vivacidade e o langor
do movimento dos olhos constituem um dos principais caracteres da fisionomia»
(Buffon, citado por J.-J. Sue, op. cit., p. 15).
45 E assim esta observação de Diderot: «O homem entra em cólera, é atento, curio­
so, ama, odeia, despreza, desdenha, admira; e cada um dos movimentos da sua alma
aparece-lhe no rosto em caracteres claros, evidentes, que nunca podemos desprezar.
Quanto ao seu rosto? O que hei-de dizer? Na boca, nas faces, nos olhos, em cada
parte do rosto. O olhar acende, apaga, amortece, perde-se, fixa-se» (op. cit., p. 371).
46 J. J. Engel, op cit., t. I, p. 53.
47 Ibid., p. 55.
48 Ibid., p. 56.
49 J.-J. Sue, op cit., p. 5.
50 Diderot, op cit., p. 371.
51 J. J. Engel, op cit., t. I, p. 51.
52 J. G. Lavater, op cit., p. 143

109
53 J. G. Sulzer, Allgemeine theorie der Shõnen Kunste, Leipzig, 1771-1774 (artigo
«geste») citado por Engel, op. cit., t. I, p. 60.
54 J. G. Lavater, Journal d'un observateur de soi-même, Utreque, 1753.
55 Ibid., p. 2.
56 Z£ú/.
57 Ibid., p. 3.
58 Marquês de Caraccioli, La jouissance de soi-même, Utreque, 1753.
59 «Quer examinar-me todas as noites a partir destas resoluções, indicar no meu
diário lealmente todas as coisas a que terei faltado e perguntar sobre cada ponto co­
mo cumpri as minhas obrigações, por exemplo: o que li; o que fiz; aquilo a que fal­
tei; o que aprendi (Lavater, Journal..p. 6). A observação de si mesmo conduzirá
muitas vezes a esta literatura sobre a utilização do tempo, cujas origens são mais lon­
gínquas (ver infra “A domesticação ds paixões”) que conhecerá um franco sucesso no
século xix. Tal como o extraordinário Essai sur PEmploi du temps ou méthode qui a
pour object de bien régler 1’emploi du temps, premier moyen d'être heureux, redigido
em 1810 por Julien, militar na reforma que (...) se reclama de Locke e de Franklin (e)
(...) recomenda cortar o dia em três partes de oito horas» (A. Corbin, «Le secret de
1’individu», op. cit., p. 457).
60 Mercier, op. cit., t. V. cad. CCCCXVIII, p. 186.
61 Ibid., t. II, cad. CLXII, p. 165.
62 Ibid., t. II, cad. CLXI, p. 164.
63 Diderot, op. cit., p. 374. A propósito das percepções do povo, da rua, do ate-
lier, da multidão no século xvm, ver os trabalhos de Arlette Farge: Vivre dans la rue
à Paris au XVIII' siècle, Paris, Gallimard/Julliard, 1979; La vie fragile (violences,
pouvoirs et solidarités à Paris au XVIII' siècle), Paris, Hachette, 1986.
64 A. Lhéritier, C. Pichois, A. Houon, D. Stremonkhoff, Les Physiologies, Paris,
Université de Paris, I.F.P., 1858.
65 Mercier, op. cit., t. X. cad. DCCCXX, p. 235.
66 Diderot, op. cit., p. 348.
67 Mercier, op. cit., t. V, cad. CCCCLX, p. 25.
68 Ibid., cad. CCCCXVIII, p. 187.
69 Ibid., t. XI, p. 117. O que Arlette Farge sublinhou a propósito das percepções
dos gestos e das expressões do povo das ruas: «Sabemos pouco sobre os gestos e a
expressividade dos pobres da rua. A historiografia aplica-se sobretudo a indicar as
impressões de conjunto e em primeiro lugar as mais ameaçadoras» (Vivre dans la
rue..., pp. 92-93).
70 Diderot, op. cit., p. 373.
71 Camper, op. cit., p. 32.
72 Sue, op. cit., p. 7.
73 Ibid.
74 Pernety, La connaissance de Phomme..., p. 30.
75 Lavater, op. cit., ed. l’Âge d’Homme, p. 22.
76 Pernety, op. cit., p. 44.
77 Clairier, op. cit., pp. 26-27.
78 Ibid., p. 28.
79 Ibid.
80 Ibid., p. 42.
81 Lavater, op. cit., pp. 24-25.
82 Assim na rubrica: «Algumas caras de idiotas que o solo da minha pátria nos
deus», pode ler-se a propósito de um camponês da região de Zurique: «E um imbecil
nato, incapaz de qualquer educação, de pensamento ingênuo ou original. A sobran­

110
celha por cima deste olho duro e imóvel, a profundidade entre a testa e o nariz e
principalmente a boca, o queixo e o pescoço, são traços característicos de uma incor­
rigível estupidez, que de resto bastariam as rugas da face para o reconhecer perfeita-
mente» {Ibid., p. 223). A imbecilidade para Lavater é um estado natural.
83 Ibid., p. 224.
84 O que sublinhou M. Dumont num artigo muito completo sobre Lavater:
«O sucesso mundano de uma ciência falsa: a fisiognomonia de J. G. Lavater», Actes
de la recherche en sciences sociales, Set. 1984, pp. 2-30; «As classificações que Lavater
faz dos homens, se seguem clivagens sociais que estão a decorrer, não respeitam a
distribuição social das ordens antigas (...). O ideal humano que Lavater proclama é o
de uma categoria social que se prospecta, de novos privilegiados à procura de uma
identidade que indique a sua distância tanto em relação ao povo como em relação aos
antigos privilégios» (p. 25).
85 A obra de Robert inscreve-se numa renovação das preocupações eugenistas que
florescem na segunda metade do século xvm em numerosos manuais de procriação
que se propõem aperfeiçoar a geração dos homens (ver P. Darmon, Le Mythe de la
procréation à l'ãge baroque, Paris, Seuil, 1979).
86 Lavater, op. cit., p. 61.
SEGUNDA PARTE

O HOMEM SEM PAIXÕES


Preâmbulo

A DOMESTICAÇÃO DAS PAIXÕES

Comércio-. Entende-se por esta palavra, em sentido geral, a


comunicação recíproca. Aplica-se mais particularmente à co­
municação que os homens estabelecem entre si das produções
das suas terras e da sua indústria Toda a coisa que pode
ser comunicada a um homem por outro para sua utilidade ou
prazer é matéria de comércio
(Artigo Comércio: Encyclopédie générale et raisonnée
de Diderot et d'Alemberti)

Nos rostos, nos gestos, nas conversas, no silêncio; nas artes de


conhecer os homens, nos tratados de retórica ou nos livros de civilida­
de, nas artes de conversação, ou mesmo na arte de se calar, a individua-
lização pela expressão entre os séculos xvi e xvm remete difinitiva-
mente a uma representação do eu que talvez não se encontre em parte
alguma melhor representada do que na pintura holandesa clássica: o
quotidiano do individualismo burguês, a humanização última da ma­
téria pela classe patrícia dos negociantes, que estabelece a sua autori­
dade sobre as mercadorias e que, deste modo, faz sem dúvida de cada
homem um bem para si próprio’. O comércio e a conversação podem
provocar uma perda de si próprio; inversamente, a solidão e o silên­
cio preservariam a integridade do eu.
A individualização pela expressão inscreve-se assim na história da
interiorização progressiva, pelo indivíduo, das tensões que resultam
da sua imersão num conjunto de relações e de dependências sociais
mais íntimas e complexas. Participa no processo de constituição dos
autoconstrangimentos que modificam as sensibilidades e os compor­
tamentos humanos2. E neste processo em que se formam as estruturas
psicológicas do homem ocidental moderno há um elemento crucial, já
evocado: o domínio de si, que vai alargar gradualmente ao conjunto
dos comportamentos individuais e das diferentes actividades do ho­
mem uma exigência de medida. Esta age no reconhecimento de valo­

115
res médios como normas de comportamento desejável, de ideal de
mediocridade valorizada, de objecto de trabalho sobre o eu. Esta legi­
timidade dos valores médios não é dissociável da elevação das classes
médias, nem do interesse que a Igreja tem pelo trabalho, da consagra­
ção que lhe faz como santificação da regularidade quotidiana contra a
ociosidade. Tendo desde a origem reprovado o excesso e o luxo, en­
coraja o bem-estar modesto; condena o enriquecimento e a prática da
usura. Continua a recear os excessos de prodigalidade e toma assim
parte na distinção dos comportamentos e das psicologias aristocráti­
cas e burguesas, na oposição de dois tipos de «honestidade», bem co­
mo na de dois tipos de civilidade.
A aristocracia tende a apreciar o espírito brilhante, mundano, po­
lido, a graça, a ostentação, a exibição de si, preocupando-se menos
com o valor da alma; a burguesia, no que lhe diz respeito, valoriza a
virtude, a integridade, o esforço, a austeridade e as qualidades morais.
O olhar e a opinião dos outros parecem ter uma importância crucial
para o aristocrata; a consciência do valor das suas próprias acções, o
sentimento do seu valor, uma consciência parcimoniosa de si, «a re­
cusa moral da exibição do eu»3, são sem dúvida o que para o burguês
tem importância determinante4. «Como em toda a parte em que a
burguesia exerce um poder político, verifica-se a surda vitória da
poupança sobre o desperdício, da simplicidade sobre o ornamento e
da austeridade sobre o frívolo»5.
A racionalização dos comportamentos faz assim surgir a diferença
entre a racionalidade aristocrática e a racionalidade burguesa. Mas
nos dois casos e embora de maneira distinta, são privilegiados a ra­
zão, a medida e o conveniente. Isto leva-nos, portanto, às questões
iniciais levantadas pelos trabalhos de Weber ou de Elias: como enten­
der, através dos saberes e das práticas do corpo e da expressão, no
cruzamento recíproco dos modos de troca e de produção econômica,
formas políticas de governo, laços e dependências na sociedade civil,
a maneira como se constitui um tipo de personalidade, uma estrutura
psicológica específica?

A medida e a poupança

Existem no século xvn numerosos livros de comerciantes; reina,


no entanto, um certo desprezo em relação ao negociante, o burguês.
Entre estas obras, está a de J. Savary que, ao entregar-se a uma verda­

116
deira apologia do comércio, denuncia essa atitude desprezadora em
Le Parfait négociant*; atitude que transparece precisamente na descri­
ção física e moral, por um dos seus contemporâneos, o abade de
Choisy, de um dos mais célebres representantes da burguesia do sé­
culo xvii, Colbert:

Jean-Baptiste Colbert tinha o rosto naturalmente desagradá­


vel. Os olhos encovados, as sobrancelhas espessas e negras
davam-lhe um aspecto austero e tornavam-no à primeira vista
selvagem e negativo. Mas com a continuação, familiarizando-
-se com ele, achavam-no bastante acessível (...). Uma infinita
aplicação e um desejo insaciável de saber substituíam nele a
ciência (...). Não havia para ele nada bem feito senão o que ele
próprio fazia e ele nada fazia senão à força de trabalho7.

Colbert é um típico representante da burguesia: nem título nem


privilégio de nascença; existe, porém, nele uma inclinação, uma dis­
posição para o saber, a expressão de uma vontade tenaz; e, sobretu­
do, o esforço e a austeridade, as duas qualidades, as duas virtudes
burguesas por excelência, essas mesmas em que insiste Savary, que
dedica a Colbert a sua célebre obra; qualidades que serão celebradas
mais tarde, no século xvm, por Benjamin Franklin, mas que se en­
contram muito antes, no Quattrocento italiano, em Leonce Battista
Alberti. Com uma diferença em que Weber não deixará de insistir:
mesmo reconhecendo a existência de um certo parentesco entre os
movimentos do Renascimento e mais tarde do Puritanismo, ele desta­
ca todavia que os primeiros «não determinaram da mesma maneira
que a ética protestante o modo de vida da burguesia nascente»8.
O que para Weber é de facto diferente entre os ideais do Renasci­
mento e o ideal do calvinismo da Reforma, é

a sistematização da conduta ética, «o controlo activo de si


próprio» que tendem a desenvolver as regras monásticas.
O que (portanto) a Reforma traz é, em primeiro lugar, uma
generalização do ascetismo metódico3.

O ascetismo torna-se assim com a Reforma um método de con­


dução racional, «uma moral da acção»10. Com efeito, no século xvi, o
ascetismo metódico como tal está ausente; é outra a preocupação que
surge: medir o tempo, conservá-lo, não o perder e não se perder com
ele, usá-lo bem e empregá-lo bem.
O comportamento e a mentalidade do cristão humanista e bur­

117
guês a partir do século xvi definem-se assim essencialmente a partir
da medida: medida do tempo, consciência do tempo; medida do eu,
medida dos outros. «A virtude principal do humanista é a temperan­
ça»11. A exigência de um trabalho mais bem medido, o tempo novo,
diz Le Goff, nasce sobretudo das necessidades da burguesia: necessi­
dades de dinheiro, preocupação com o tempo; surge uma prática e
uma mentalidade de calculadores: o tempo torna-se objecto de uma
espiritualidade calculada.

A partir da primeira metade do século xiv (...) perder tempo


torna-se um pecado grave (...). Por imitação do negociante,
que, pelo menos em Itália, passa a ser um contabilista do tem­
po, desenvolvem-se uma moral calculista e uma piedade avara.
Um dos propagadores mais significativos desta nova espiri­
tualidade — acrescenta Le Goff —, é um pregador em voga
no século xiv (...) Domenico Cavalca (...). Na sua Disciplina
degli Spirituali dedica dois capítulos à perda de tempo e ao
dever de conservar e considerar o tempo. A partir de conside­
rações tradicionais sobre a ociosidade, chega, por meio de um
vocabulário de negociante (...) a toda uma espiritualidade do
emprego calculado do tempo. O ocioso que perde o seu tem­
po, não o mede, assemelha-se aos animais, não merece ser
considerado como um homem (...). Nasce assim um humanis­
mo à base do tempo bem calculado'2.

É assim que Alberti, moralista e arquitecto, fundador da estética


clássica, amante da harmonia e da proporção, entra nas ordens para
se entregar ao estudo com menos distracção. As horas que dedica ao
trabalho são distribuídas de maneira que nenhuma lhe reste para a
dissipação15. No Libri delia Famiglia, manifesto de economia do­
méstica burguesa, arte de governar a casa, arte de orientar a família,
também ele condena a ociosidade; mas insiste muito mais ainda na
necessidade de poupar. A poupança é concebida como uma virtude, a
virtude econômica por excelência, ao ponto

de a noção de masserizia — diz Sombert — isto é da economia


doméstica em geral, se tornar quase sinônimo de poupança14.

A exigência de medida ligada ao desenvolvimento do comércio faz


sentir os seus efeitos para além da organização da vida doméstica: pene­
tra no mais profundo do indivíduo, envolve-o ao ponto de se confundir
com ele. Viver é poupar a sua alma, o seu corpo e o seu tempo.

118
O meu espírito, o meu corpo e o meu tempo, só os utilizo
como deve ser. Procuro conservá-los cuidadosamente. Faço
de maneira que em nada se percam (...) na medida em que me
parecem extremamente preciosos e bem mais meus que qual­
quer outra coisa15.

A personagem de Alberti é a este respeito exemplar uma vez que


o autor do tratado de economia doméstica é também o de trabalhos
celebrados como origem da perspectiva clássica. A preocupação de
medida proveniente do comércio contribuiu por um lado para mo­
delar as percepções e as representações das formas físicas, dos corpos
e dos rostos16. E passou a constituir a origem etimológica do verbo
«pensar».

Pensar, em várias línguas românicas, deriva (...) do latim tardio


pensare que significou primeiro «pesar». Este verbo — acrescen­
ta Fumaroli — evoca a imagem atenta daquele que pesa o ouro,
que experimenta o peso das peças numa balança (...). Pesar,
experimentar, são actividades muito concretas. Não incidem
em «idéias» evanescentes. Pensar, antes de falar, antes de es­
crever, é pesar as suas palavras17.

Comércio e urbanidade

O tom com que Savary, no século xvn, abre a sua obra, lembra o
dos enciclopedistas — um século mais tarde — no artigo «comércio».
Com a pequena diferença que Savary vê a origem do comércio na
providência divina:

Vê-se bem que (Deus) quis estabelecer a união e a caridade


entre todos os homens, uma vez que lhes impôs uma espécie
de necessidade de precisarem sempre uns dos outros (...).
E esta permuta contínua de todas as comodidades da vida que
faz o comércio, e é também esse comércio que faz toda a do­
çura da vida18.

Deus está na origem do comércio entre os homens, na troca de


bens produzidos, na necessidade de laços humanos. Mesmo quando
Savary denuncia a conversação mundana, a influência do nascimento,

119
o carácter libertino e a falta de assiduidade na educação dos colégios,
não é o trabalho como virtude principal que constitui o argumento
central da obra: é verdade que Savary insiste no «lucro e no desejo de
se elevar (...) aguilhão para obrigar a trabalhar no comércio». Mas
quando se podia esperar, no contexto religioso da época, uma apolo­
gia do trabalho e da aplicação, Savary gaba mais a finura, a inteligên­
cia de outrem, a subtileza, a habilidade nas negociações, a rapidez e
finalmente a imaginação. O comércio entende-se como urbanidade,
afabilidade, tanto laço social como laço econômico. Requer sem dúvi­
da uma boa saúde, um corpo forte e robusto, mas também um físico
agradável. Para bem comerciar, é necessária uma boa figura

porque (a boa figura) convém muitíssimo a um negociante e a


maior parte das pessoas gosta mais de tratar com um homem
de boa aparência porque isso se torna sempre mais agradável
do que com outro sem a mesma vantagem exterior19.

Preocupação com o aspecto exterior e preocupação com a fisiono­


mia. O homem de boa aparência é um trunfo em comércio, um atrac-
tivo necessário à permuta dos bens: o comércio ainda é agora indisso­
ciável da civilidade.
No trabalho do burguês, a Igreja encorajou portanto o esforço e o
constrangimento. Quanto ao resultado, parece não querer preocupar-se
nem com o enriquecimento nem com o prazer no trabalho; parece
sobretudo sensível ao elemento ordem, ao ideal de uma vida regular20.
No entanto, a Igreja inquieta-se: o burguês moderado e racional «age
e prevê», basta-se pouco a pouco a si próprio; insensivelmente afas-
tar-se-á de Deus e da Igreja.

Ele calcula, garante-se contra o imprevisto, elimina da sua vida,


tanto quanto possível, o desconhecido (...). Sente-se senhor do
seu destino e esquece a divina providência (...). A Previdência
vence a Providência, o cálculo racional a confiança em Deus; o
burguês prudente e atilado já não espera senão de si próprio a
prosperidade dos seus negócios e a felicidade dos seus filhos21.

A Igreja encontra-se assim confrontada com o pequeno comer­


ciante prudente, cordato e modesto que continua a encorajar, mas
também com o comerciante audacioso e empreendedor que quer fa­
zer fortuna: e a este dedica-se a ignorá-lo. Condena a figura do mun­
dano ocioso, ao mesmo tempo que observa com um pessimismo lúci­
do: «Ser-se-ia mal recebido na sociedade, onde se faria triste figura se

120
não se fosse ocioso»22. Mas reprova também a figura do homem de
negócios de quem o padre Crosset traça no século xvm o retrato
pouco invejável:

(...) um ar sonhador e inquieto, olhos sempre acesos, rosto de


solitário, maneiras embaraçadas e que tacitamente afastam lo­
go tudo o que não fale de empréstimo, de câmbio e de juro:
tudo isto dá direito a perguntar se existe no mundo uma si­
tuação mais penosa e austera, poder-se-ia até acrescentar se
haverá alguma mais trabalhosa e mais ingrata?23

O excesso de trabalho e o excesso de ócio: a Igreja reprova a azá­


fama e a actividade assim como a dissipação, encorajando por toda a
parte a mediocridade cristã. E necessário aguardar o fim do século xvm
e o desenvolvimento de certas formas de protestantismo anglo-saxão
para descobrir, especialmente sob a pena de Benjamin Franklin, uma
condenação mais clara da ociosidade e uma apologia sem limite do
trabalho24. Sombart considera assim que com o célebre utilitarista «a
concepção do mundo burguês atinge o seu ponto culminante (...) nele
tudo tem uma regra, tudo é exactamente pesado e medido»25.

Egoísmos e compaixão

Em La Science du bonhomme Richard ou le Chemin de la Fortu-


ne, Franklin coloca com efeito o trabalho sob o olhar de Deus
(«Deus nada recusa ao trabalho»), mas mais ainda sob o olhar do
mestre. Franklin, com efeito, baseia o império do autoconstrangi-
mento numa moral do trabalho; mais do que o medo, é a vergonha
de nada fazer que irá constituir o melhor aguilhão para incitar ao tra­
balho: a ociosidade é imoral.

Se estivesse ao serviço de um bom mestre, não teria vergonha


que ele o surpreendesse de braços cruzados? Mas sendo dono
de si mesmo, core ao surpreender-se sem nada fazer, quando
há tanto que fazer, para si próprio, para a sua família e para o
seu país26.

Franklin apura esse olhar, olhar para si próprio, incitando ao tra­


balho, olhar sobre outrem, garantindo regularidade, aplicação, quali­

121
dade da obra. Apologia do olhar, da vigilância27, mais ainda que do
trabalho: prudência, circunspecção, desconfiança. O excesso de con­
fiança é a certeza de uma própria ruína.

Independentemente do amor ao trabalho, precisamos ainda


(...) da ordem, do cuidado e velar pelos nossos negócios com
os nossos próprios olhos, sem os entregar a outros (...). Os
olhos do dono fazem mais trabalhos que as suas duas mãos.
Não vigiar os seus operários é dar-lhes para as mãos a bolsa
aberta28.

Verdadeiro manifesto da circunspecção burguesa que vem apagar


a fé que a Igreja, durante séculos, exigiu dos seus fiéis: o excesso de
fé pode perder; com esta circunspecção insistente e através desse
olhar sobre si mesmo e sobre os outros, Franklin exorta com paixão à
poupança: pôr de parte tanto quanto ganhar. «Ganhem o que pude­
rem», sim, mas «administrem bem o que ganharem»29. E Franklin
desfia os ditados da moral burguesa da poupança numa luta incessan­
te contra o gasto. Advoga a contenção e a abstinência: «Cozinha gor­
da, testamento magro»30. E, sobretudo, desconfiar do luxo que leva
ao gasto irreflectido, ameaçando a poupança: ao gosto do traje, do
brilhante, do artifício que, além do mais, suscita a inveja. Prefira-se a
sobriedade, a reserva, a discrição, todas as virtudes e todas as qualidades
apreciadas pelo burguês. «Seda e cetim, tecido vermelho e veludo extin-
guem o lume na cozinha»31. E toda a moral burguesa do século xix, a
que louva as virtudes da vida doméstica — moral austera, moral da
reserva, «recalcamento da aparência»32 — que aqui se desenha. Mas o
que mais surpreende ainda é a religiosidade de que o trabalho está
impregnado: parece que o tempo se desligou de toda a dependência
em relação ao religioso. Mais que um elogio do trabalho, é um canto
à glória do tempo que Franklin nos oferece, numa apologia que o
bom senso vulgar adorna:

Quanto tempo destinamos ao sono para além do necessário,


esquecendo que raposa que dorme não apanha galinha e que
teremos tempo para dormir na sepultura (...). Se o tempo é o
mais precioso dos bens, a perda de tempo, como diz o bom
Richard, deve ser a maior das prodigalidades33.

Uma tal transformação na relação pessoal com o tempo, com o


dinheiro e com o trabalho não ficará de facto sem efeito na esfera pú­
blica. Para além da descrição do comportamento burguês num qua­

122
dro doméstico, Tocqueville verá no «círculo dos pequenos interesses
domésticos», na «sujeição às pequenas coisas» e no «amor da pro­
priedade tão inquieto e tão ardente», a extinção das «grandes e pode­
rosas emoções públicas»34 na democracia política.
E quando Franklin enumera as virtudes necessárias à vida privada
— temperança, silêncio, moderação, poupança, utilidade, posse de si
mesmo —, Tocqueville pressentirá numa tal domesticação das paixões
individuais a reserva das paixões públicas. Mas também saberá discer­
nir, no declínio das paixões políticas, o progresso das paixões comer­
ciais: «As paixões que mais profundamente agitam os Americanos são
paixões comerciais e não políticas, ou antes, transportam para a polí­
tica os hábitos do negócio»35. Os homens ver-se-ão paradoxalmente
incitados a uma sempre mais acentuada consciência da medida, a uma
delimitação egoísta do eu, a um gosto inegável pela solidão, ao mes­
mo tempo que pela compaixão, a sensibilidade à aflição de outrem.

Estranho paradoxo — observa muito justamente Goulemot —


(deste fim do século xvin) que institui politicamente o indiví­
duo como unidade política e que, moral e socialmente, o julga
pela sua abertura ao outro36.

Que nos ensina pois esta breve genealogia do comércio? Que as


maneiras, o comércio civil, e bem assim o comércio dos bens, modifi­
cam as sensibilidades e a psicologia do homem público e privado e
acabam por fazer de todo o homem um homem sem paixões-, e o con­
vidam a uma compaixão comedida. Numa tal compaixão, Tocqueville
soube reconhecer um sentimento próprio do indivíduo das socieda­
des democráticas; e sem dúvida mais uma categoria política essencial
destas últimas: «Nos séculos democráticos, os homens raramente se
dedicam uns aos outros; mas mostram uma compaixão geral por to­
dos os membros da espécie humana»37.
Mas que nos ensinam ao mesmo tempo os progressos da privati­
zação e da intimidade? Que a exibição do comércio consigo próprio,
que a busca de um eu profundo e a sua exposição aos olhos do público
se inscrevem com toda a evidência ao lado do ser e não do ter. Que
existe paixão em querer «desvendar o seu íntimo», como diz Rous-
seau no prefácio das suas Confessions. Estranha época que procura
fazer do indivíduo, ao mesmo tempo, um ser isolado e autônomo e
um ser transparente e gregário. Estranha época que se compraz na
«austeridade espectacular».

123
NOTAS

1 Ver sobre este ponto R. Banhes, Essais critiques. Paris, Seuil, 1964, pp. 19-29.
2 Ver Elias, op. cit.
3 Ph. Perrot, «La richesse cachée: pour une généalogie de 1’austerité des apparen-
ces». Communications, n.° 46, Outubro 1987, p. 157.
4 Ver Ch. Normand, La Bourgeoisie française ao XVII' siècle. Paris, Alean, 1908;
J. Avnard, La burgeoisie française: essai de psychologie, Paris, 1934.
5 Perrot, op. cit., p. 157.
6 J. Savary, Le Parfait négociant ou instruction générale pour ce qui regarde le
commerce, Paris, 1675.
7 Abade de Choisy, citado em Ch. de la Roncière, Colbert, Paris, Plon, 1919, p. 8.
8 Ph. Besnard, Protestantisme et capitalisme. La controverse post-wéberienne, Pa­
ris, A. Colin, 1970, p. 68.
9 Ibid., p. 70 (itálico nosso).
10 Perrot, op. cit, p. 160.
11 Le Goff, Pour une autre Moyen-Age, Paris, Gallimard, 1978, p. 79.
12 Ibid., p. 77. Ver também a este respeito D. S. Landis, Revolution in time,
Clocks and the making of the modern world, Cambridge, Harvard University
Press, 1983.
13 «Façam como eu: de manhã organizo o dia todo, emprego-o como é preciso, e
à noite, antes de tomar a última refeição, examino tudo o que fiz durante o dia; e en­
tão, se cometi a menor negligência que possa remediar imediatamente, atiro-me logo
ao trabalho. E prefiro perder o sono a perder o tempo, quero dizer a hora própria
das ocupações. Dormir, comer e coisas desta ordem, posso recuperá-las no dia se­
guinte e satisfazê-las, mas as ocasiões do tempo não (...)», L. B. Alberti, Libri delia
Famiglia, livro III, ed. C. Grayson, Opere Volgari, t. I, Bari, 1960, traduzido em
Cad. de la Roncière, Ph. Contamine, R. Defort, LfEurope au Moyen Âge, Paris, Co­
lin, 1971, t. III, pp. 348-349.
14 W. Sombart, Le Bourgeois. Contribution ã Phistoire morale et intellectuelle de
Phomme économique moderne, Paris, Payot, 1966, p. 106.
15 Alberti, op. cit., citado em La Roncière e al., op. cit., pp. 348-349.
16 E o que se vê no trabalho de Baxandall («L’oeil du Quattrocento», Actes de la
recherche en sciences sociales, n.° 40, Novembro 1981, pp. 10 a 50). Com efeito mostra
como a aritmética comercial, bagagem escolar de todos os florentinos do século xv, esta­
va profundamente implicada nas representações do corpo pela pintura. A técnica da me­
dida ligada ao facto de as mercadorias serem transportadas em recipientes de tamanho
irregular era utilizada para medir as formas físicas dos corpos pintados. «O que é im­
portante é que haja uma mesma capacidade no princípio do contrato, ou dos problemas
de troca por um lado e da elaboração da visão dos quadros por outro (...). Fazia-se na­
turalmente a relação entre as proporções no interior de um contrato e as proporções de
um corpo físico» (op. dt., p. 45). Os estudos de proporção de cabeças humanas nos tra­
tados sobre a pintura (por exemplo: Lomazzo, Trattato delPArte de la Pintura. Milão,
1584), mas também o seu surgimento nos manuais de fisiognomonia, como em Porta,
testemunham esta estetização de exigência de medida no Renascimento. Os tratados de
fisiognomonia consideram a simetria como princípio essencial da figura humana: na
sua Anthropometria (op. cit.) Elsholtz desenha em 1663 o tipo ideal (homo synnetrus)
e inventa-lhe mesmo um aparelho de medida (anthropometron).
17 M. Fumaroli, «La Rhétorique et son histoire», lição inaugural no Colégio de
França.

124
18 Savary, op. cit., p. 1.
19 Ibid.., p. 38.
20 B. Groethuysen, Les origines de Pesprit bourgeois en France, Paris, Gallimard,
1977.
21 Ibid., p. 38.
22 Croiset, Parallèle des moeurs de ce siècle, 1745, t. I. p. 81.
23 Croiset, Réflexions chrétiennes sur divers sujeis de morale, 1752, t. II. p. 261.
24 São as interpretações puritanas do calvinismo original que contribuíram mais
activamente para fazer do «relaxamento um sinal inquietante de maldição e da pros­
peridade laboriosa um sinal de eleição» (Ph. Perrot, art. cit., p. 160).
25 Sombart, op. cit., p. 114.
26 B. Franklin, La Science du bonhomme Richard ou le chemin de la fortune
(1732), edição de 1879, p. 6.
27 Trata-se aqui de um dispositivo utilitarista célebre: o panóptico de Bentham.
Este último glorificava o amor pela ordem, o trabalho e a vigilância que Franklin
preconizava. O que talvez permita precisar a sua origem: cópia de um campo de tra­
balho estabelecido na Rússia pelo irmão, o panóptico de Jeremy Bentham também
não deverá a invenção do seu princípio às formas e aos rituais econômicos e domésti­
cos — vigilância e autocontrolo — que organizam a vida pessoal da burguesia purita­
na e comerciante do século xvn? O panóptico instalado nas tradições e nas consciên­
cias seria então a projecção arquitectural de tais dispositivos, visando estendê-los até
incluir aí a sociedade inteira (ver em particular J. Bentham, Le Panoptique, precedido
de «L’oeil du pouvoir», conversa com M. Foucault, seguido de «L’Inspecteur Bent­
ham», posfácio de M. Perrot, Paris, Belfond, 1977; ver igualmente Michelle Perrot
L3impossible prison, Paris, Seuil, 1980; e J. A. Miller, «La machine panoptique», Or-
nicar, n.° 3, 1973, p. 19).
28 Franklin, op. cit., p. 7.
29 Ibid., p. 8.
30 Ibid.
31 Ibid., p. 15.
32 Ph. Perrot, op. cit.
33 Franklin, op. cit., p. 9. Estas «estratégias da poupança de si», como observa
Corbin, «testemunham uma compatibilidade da existência, de uma aritmética das horas
e dos dias que atormentam o homem do século xix (...), provêm do mesmo fantasma
da perda que conduz à existência de livros de contas domésticos de uma extrema mi­
núcia, os quais engendram a angústia do desperdício (...)» (A. Corbin, «Le secret de
1’individu», op. cit., p. 456).
34 A. de Tocqueville, De la démocratie en Amérique, Paris, UGE, 1963, pp. 363
e 343.
35 Ibid., p. 167
36 J. M. Goulemot, «Les pratiques littéraires ou la publicité du privé», Histoire de
la vie privée, t. III, p. 389.
37 Tocqueville, op. cit., p. 307. Ver sobre este ponto: H. Arendt, Essai sur la Ré-
volution, Paris, Gallimard, 1967. Se a «compaixão (...) foi descoberta e compreendida
como emoção e sentimento» por Rousseau, Arendt insiste também no facto de que
foi Rousseau que «introduziu a compaixão na teoria política» {ibid., pp. 126 e 115).
Ver também: D. Cochart, D. Davoult, C. Haroche, «A questão da solidariedade no
século xix», comunicação ao colóquio «Psychisme et histoire», Aix-en-Provence,
Nov. 1987.
125
Capítulo 4

O AR DA CONVERSAÇÃO
(Debates sobre a conversação, a companhia e a solidão,
séculos xvi e xvii)

1574. Stefano Guazzo publica em Itália um tratado intitulado La


Civil Conversazione'. Menos de um século mais tarde, Charles Sorel
assinala o livro quando empreende recensear na sua La Bibliothèque
française1 uma série destas obras «feitas para ensinar o que é a vida
civil e a prática do mundo». Fazem parte de uma nova literatura da
corte que se desenvolve em Itália a partir da primeira metade do sé­
culo xvi. À cabeça destes tratados: o Corteggiano, de Baldassare Cas-
tiglione (1528) e também o Galateo de Giovanni delia Casa (1558)
cuja influência é grande ao ponto de «em alguns países, quando um
homem comete uma incivilidade, diz-se que não leu o Galateo», des­
creve Sorel.
A propósito de La Civil Conversazione, que se situa na esteira
destes dois clássicos, Sorel é mais lacônico; mas deixa adivinhar toda­
via a importância do livro. Não se trata de um simples manual de ci­
vilidade, mas de uma leitura mais árdua: «Mais elevado nos conheci­
mentos, pode ver-se La Civil Conversazione» 1.
Guazzo, menos acessível, não irá conhecer a fortuna do Corteg­
giano de Castiglione. La Civil Conversazione levanta todavia um
conjunto de questões fundamentais quanto à relação entre aparência e
interioridade, indivíduo e colectividade, esfera privada e esfera públi­
ca, sociedade civil e sociedade política. Mais ainda, Guazzo articula
esta série de oposições formulando-as a partir de uma experiência e
de uma exigência centrais das sociedades: a da conversação. A conver­
sação é a prática fundamental da sociedade civil, tal como esta se
constitui e se desenvolve entre os séculos xvi e xvn. A sua necessida­
de é constantemente recordada por toda a parte, desde os primeiros
tratados italianos do século xvi, a toda uma literatura que em França
terá por objecto descrever e prescrever os comportamentos expressi­
vos e linguísticos em primeiro lugar na corte e depois nos salões do
século xvm. Existe assim, sobretudo no século xvn, um conjunto de

127
obras destinadas aos cortesãos que são outras tantas variantes da arte
de agradar na conversação. Mas para além dos tratados que lhe são
explícita e inteiramente consagrados, a arte da conversação atravessa
os livros da civilidade, constitui um capítulo obrigatório das conve­
niências e delicadezas mundanas, suscita a preocupação dos moralis­
tas que temperam esta arte e a inquietação das críticas religiosas que a
reprovam. Porque, no fundo, estas dissertações constantes sobre a con­
versação delimitam o quadro de um debate crucial quanto ao papel da
linguagem como expressão do eu e laço social entre os homens.
Deve-se então preferir a solidão à companhia, o silêncio à conver­
sação? Mas não é o silêncio contrário à natureza do homem e a con­
versação a sua própria natureza? E inversamente não permite a soli­
dão o conhecimento do eu, enquanto o comércio com o mundo leva
à ignorância do eu e à dissipação? Quando falar, quando escutar,
quando calar-se? E como? Na conversação, como exprimir-se através
da boca e também do corpo, do rosto e dos olhos?...
As respostas dadas a estas perguntas traduzem um deslocamento
do sentimento do eu e das sensibilidades ao outro: a esfera privada
aumenta e a individualização ganha progressivamente terreno nas
práticas da conversação, enquanto o indivíduo se afirma perante os
outros. Mas mais profundamente ainda, é uma redefinição da identi­
dade subjectiva na sua relação com a linguagem que aqui está em jo­
go, a gênese do indivíduo moderno como ser de linguagem.

Exílios íntimos

A obra de Guazzo toma a forma de um diálogo bastante civil que


expõe e confronta os méritos respectivos, mas também as servidões
da solidão e do comércio com os homens.
O primeiro ponto de vista é o do solitário que, na conversação, só
vê sujeição. O domínio de si, o ouvir o outro, a atenção às circuns­
tâncias, são imperativos. E necessário, a todo o momento, acautelar-
-se, estar pronto a responder ou a calar-se. A solidão alivia portanto e
liberta. Oferece a cada um abrigo e repouso, em que é possível o
abandono a si mesmo. Elogio da solidão: «Amplio a minha liberdade
(...) não tendo de dar conta a ninguém»4.
O segundo protagonista do diálogo entrega-se pelo contrário a
uma apologia da conversação, que só traz prazer e bem-estar. E seve­
ra a condenação da solidão: ela segrega um «pesado fardo de humo­

128
res, os quais (...) se tornam senhores do espírito»5. É da natureza do
homem saborear a companhia, a sociedade e o comércio com outrem;
e odiar o isolamento: com efeito, que advém aos homens que por si
próprios se encerram na prisão da solidão? «Tornam-se macilentos,
sujos, magros, amarelados e balofos pela putrefacção do seu sangue»6.
O retrato que La Civil Conversazione pinta assim do solitário faz ao
mesmo tempo do isolamento um estado social condenável e uma
doença.
O texto de Guazzo tem ainda aqui o vestígio das concepções me­
dievais: a célula social engloba os indíviduos de tal modo, que não há
lugar para a solidão pessoal.

A sociedade feudal era tão granulosa, formada de grumos tão


compactos, que qualquer indíviduo que tentasse libertar-se da
estreita e abundantíssima convivência que então constituía a
privacy, isolar-se, erguer à sua volta a sua própria clausura,
encerrar-se no seu jardim fechado, era imediatamente objecto
quer de suspeita quer de admiração (...). Só se expunham des­
ta maneira os desencaminhados, os loucos ou os possessos:
vaguear sozinho era, segundo a opinião comum, um dos sin­
tomas de loucura7.

Assim, quando se escolhe a solidão, transpõe-se uma fronteira so­


cial, um limiar, muda-se de estado. O afastamento significa o perigo,
a estranheza e a exclusão. E mesmo que, antes do Renascimento, o
lento movimento da civilização tente pouco a pouco libertar a pessoa
de uma convivência gregária8, a desconfiança em relação à solidão
persiste no tratado de Guazzo. Isto por se encontrar, por outro lado,
firmada em origens médicas muito antigas: desde a Antiguidade que a
medicina dos humores soube reconhecer na propensão para os sítios
isolados um dos sintomas principais da melancolia, as culpas da
abundância de atrabílis num temperamento dominado por Saturno, a
doença dos coveiros, dos criminosos, dos mendigos; o estado do louco
errante, do possesso ou até do licantropo. Mas também soube descobrir
no «desprezo do mundo» o traço do artista e o carácter do gênio9.
Porém, num caso como noutro, a solidão faz o homem de excep-
ção quando a companhia dos homens deve ser a regra. Se para Guaz­
zo ela continua a ser um desvario, «inimiga da salvação e da saúde
dos homens»10, ele tende porém a imaginá-la numa antinomia menos
radical no comércio dos homens. Entre solidão e companhia, silêncio
e conversação, La Civil Conversazione põe em causa a clareza da
partilha; tende a deslocar e a confundir sensivelmente as suas frontei­

129
ras: as atitudes atenuam-se, as percepções são menos nítidas perante
o isolamento. Pode assim acontecer que o homem não se sinta à par­
te, mas que tenha a sensação de uma presença, que já não é necessa­
riamente a de Deus. Mais parodoxalmente ainda, acontece viver-se
mais solitário em numerosa companhia do que no mais longínquo
exílio. E a isso que Guazzo chama a solidão do espírito, isto é, o sen­
timento de estar só entre os outros, estranho exílio interior no meio
da sociedade mais frequentada. E então com o corpo e não com o es­
pírito, «retirado em si próprio», que se estará.

Conheço muitas pessoas que possuem certa virtude de saber


com os olhos, a face, gestos e outros sinais exteriores mostrar-se
muito atentos aos discursos de outrem pensando todavia noutra
coisa, de tal maneira que num mesmo ponto estão presentes e
ausentes, satisfazendo a uns, a outros e a si mesmos11.

O refúgio em si mesmo, a presença silenciosa, ausente do mundo,


é aqui prova das exigências paradoxais da privatização das condutas.
O indivíduo é progressivamente levado a obedecer a uma dupla obri­
gação: precisa separar em si mesmo o lugar exterior do corpo, a parte
de si que deve aos outros, do espaço interior a que pertence. Dá-se
uma separação no mais profundo do indivíduo, que pouco a pouco se
divide. O refúgio em si é o tempo da delimitação que circunscreve o
lugar do foro interior, domicílio e refúgio último da pessoa, ao abrigo
de um corpo que se oferece aos olhares, de um rosto que ao mesmo
tempo o protege e já não lhe pertence. Porque o rosto e os olhos são
sinais de uma troca, expressão exterior da partilha. E então necessário
unir num mesmo ponto o que foi separado, ultrapassar o sentimento
da sua divisão nas formas de desdobramento do eu, quando se refor­
çam ao mesmo tempo as disciplinas e os constragimentos sociais e a
individualidade se afirma. E esta a estranha ubiquidade num só lugar
que o texto de Guazzo reclama. E neste sentido que o fingimento e a
simulação serão legítimos e que a própria dissimulação poderá ser de­
clarada «honesta».
Foi assim que a fronteira, a clara separação que outrora opunha o
homem em sociedade ao homem solitário como habitantes de dois
mundos distintos, se deslocou pouco a pouco no próprio interior do
indivíduo; atravessa-o de futuro e tende a confundir-se com o senti­
mento de uma partilha entre a exterioridade do seu corpo e a interio-
ridade da sua alma. E, no mesmo movimento, separa a palavra do
silêncio.
A linguagem está de facto ausente deste refúgio do eu. Este abrigo

130
silencioso não é o de Montaigne na sua torre, murmurando palavras
interiores, povoado de livros. No universo da mundanidade em que
La Civil Conversazione se inscreve, a linguagem continua a ser o lugar
do outro, da exterioridade. Conversa-se mas não se fala com alguém.

Contra a solidão (...) a mesma natureza deu a palavra ao


homem, não para que só e consigo mesmo fale, pois seria lou­
cura, mas para que dela se sirva em relação aos outros12.

A palavra deve ser de uso externo; é só através dela que os ho­


mens «se amam, se aliam e se unem»13. Mas não faz calar o corpo: o
homem que conversa é inteiramente expressão e os seus olhos conju­
gam-se então com a língua para dar a conhecer a afeição íntima do
coração. Os olhos «fazem de tal modo que, sem nada dizerem nem
falarem, são entendidos de maneira que não se pode duvidar de que
são o retrato das nossas almas e que nelas se abriga inteiramente o
amor como seu refúgio e domicílio próprio»14.
A expressão através do corpo e do rosto, e mais singularmente
ainda através dos olhos, de que se viu aumentar a importância nas fi­
siognomonias e, como se verá, no lugar considerável que lhe reser­
vam a acção oratória e as civilidades15, é um elemento indissociável da
linguagem nas práticas de conversação. Numas como nas outras,
nunca o corpo se ausenta da linguagem. Mas as artes dc conversação
concedem um privilégio à palavra, quando as fisiognomonias instau­
ravam de maneira complementar o reino do olhar. Os tratados de
conversação são artes de conhecer os homens pela palavra; retiraram
a lição de Sócrates: «Fala, para que eu veja quem és tu!»

E bem podem acreditar que se os olhos eram testemunhas su­


ficientes e indícios certos do espírito, também Sócrates se
contentou outrora com olhar16.

Porquê tanta preocupação com a palavra, tanto cuidado na ex­


pressão, tanta contenção no corpo, tanto domínio do rosto ao longo
destes livros que codificam as trocas linguísticas desde o século xvi?
A harmonia pessoal na expressão, a das palavras pronunciadas ou do
ar que a fisionomia exibe, concorre nestes tratados para a elaboração
de uma sociedade civil, uma sociedade policiada, doce, composta de
troca, de satisfação e de prazer recíproco.

Não há coisa que mais nos afaste da natureza humana que o


rigor e a aspereza de costumes: e vê-se correntemente esses

131
colarinhos tão direitos e rígidos, essas faces mal humoradas
serem detestadas por todos; pensam ser louvados por nunca
rirem, por enrugarem a fronte, ensombrarem os olhos, mos­
trarem um rosto furioso e marcial, soltarem palavras de gran­
de secura, fazendo que os declarem orgulhosos e desumanos
Conheço alguns tão duros, severos, graves e incivis que
não se dignam corresponder a quem os saúda; o que é sinal
de um coração bárbaro17.

Longe de uma colectividade bárbara e marcial, a sociedade civil


quer responder ao ideal de uma sociedade pacificada com o atractivo
da linguagem e da expressão. Mas Guazzo vai ainda mais longe e está
aí sem dúvida a modernidade do seu propósito: a conversação como
base da sociedade civil garante a autonomia desta última perante a so­
ciedade política. Guazzo separa o espaço das práticas sociais do das
instituições políticas. E neste sentido que a conversação é civil-, a so­
ciedade civil não obedece tanto às leis da cidade como à qualidade
dos espíritos, isto é, ao atractivo da troca verbal dos homens ao con­
versarem.

Reparem quão amplo conhecimento damos ao vocábulo civil:


pois que concluímos e inferimos que viver civilmente não
depende das leis da cidade nem da qualidade do espírito dos
homens. Quero portanto falar da conversação civil não pelo
respeito apenas da sociedade das cidades, mas também por
consideração pelas maneiras de viver que tornam o homem ci­
vil e bem educado18.

O esquecimento de si

As artes de conversação vão ter no século xvn uma posteridade


duradoura. No uso sacralizado da conversação que primeiro se de­
senvolve, no princípio do século, nos meios aristocráticos e fechados
que as casas nobres frequentam longe da corte. A preciosidade mun­
dana que ali se elabora não está porém codificada em tratados: a gra­
ça, o encanto, não poderiam ensinar-se nem aprender-se19.
Porém, na segunda metade do século xvn, o reforço do poder real
e a extensão da corte favorecem a publicação de numerosos tratados
que têm por tarefa ensinar as regras da corte aos que ali são chama­

132
dos. Delimitam e prescrevem as formas da sociabilidade regulamenta­
da e hierarquizada ali em uso. E onde a conversação ocupa um lugar
preponderante.
A codificação das trocas linguísticas prova então um reforço do
controlo social num universo em que o olhar é rei: o olhar do prínci­
pe a quem é preciso saber agradar para obter favores; o olhar dos pa­
res, a observação dos seus iguais aos quais se deve dar constantemen­
te satisfação. A sociedade política acomoda-se por vezes mal a uma
certa autonomia da sociedade civil; e os tratados da corte que dão
grande lugar à conversação, como o de De Grenaile publicado em
164220, exortam a uma certa forma de transparência, «sendo certo que
não penetramos na sociedade civil senão para nos mostrarmos exte­
riormente tal como somos por dentro»21.
De Grenaile, ao exaltar a sinceridade e denunciando a dissimula­
ção, recusa o refúgio em si: convém nada esconder de si no espaço
público: que o homem não seja solitário por dentro, mas solidário
com o homem na aparência. O hino à transparência — ou pelo me­
nos à coincidência entre o homem interior e o homem exterior —
que De Grenaile celebra é de um tom um pouco ingênuo. Não deve
esconder o facto de a constituição do espaço subjectivo se orientar
com efeito para formas mais complexas, que determinam ao mesmo
tempo as exigências de um controlo social maior e a afirmação pro­
gressiva do indíviduo.
Também o cavaleiro de Méré, árbitro reconhecido da conversação,
recusa igualmente esse refúgio em si se isso significar o encerramento
em si próprio, um recolhimento demasiado distante, um «enterrar-se
em si mesmo»22. A sociedade de atractivo recíproco, de doce con­
vivência de que os textos do século xvi desenham o ideal e os do sé­
culo xvii codificam as regras, obriga a mostrar o carácter no rosto: os
que nela desejam ter lugar, partilhar as servidões e os prazeres, só po­
dem consegui-lo ao fim de um esforço do seu corpo e da sua lingua­
gem, de uma disciplina estrita e surda violência. A frase deve ser or­
namentada com as flores da retórica, o corpo deve apresentar um
porte gracioso e o rosto um ar aberto. As artes de conversação repe-
tem-se ao longo do século xvn: «Não se pode pois agradar na con­
versação se não se acompanhar o que se diz de um ar aberto»23.
Que cada um expulse portanto o ar sombrio e constrangido que o
recolhimento dá ao solitário. Os que desejam aparecer na sociedade
que se mostrem abertos! A imposição é paradoxal e os seus efeitos
complexos. Encoraja a conformidade das aparências, leva ao desapa­
recimento da singularidade. «Vou a uma reunião para mostrar uma
paixão contrária à que ali possa reinar?», assim se interroga De Vau-

133
Figura 15 — O. de Vaumorière, L’Art de plaire dans la conversation, Paris, 1688
(Frontispício, Foto B. N.).

134
morière. «Nada mais oposto às máximas da sociedade civil que esta
conduta»24.
Mas a observação das aparências acentua a distância entre perso­
nagem pública e o eu íntimo; o espaço interior cava-se e torna-se
complexo para além da superfície corporal que se oferece ao olhar.

Estou convencido — assim relata o cavaleiro de Méré — que


em muitas ocasiões não é inútil ver o que se faz como uma
comédia e imaginar que se representa uma personagem de tea­
tro. Este pensamento impede que se deseje por demais alguma
coisa e proporciona depois uma liberdade de linguagem e de
acção que não se tem quando se está perturbado, com receio e
inquietação25.

Abandona-se assim aos outros uma parte de si próprio para se


possuir com mais segurança. Nos tratados de conversação mundana
elabora-se, no decurso do século xvn, um trabalho dos modos de
presença e ausência simultâneas em sociedade, o pensamento e a prá­
tica do esquecimento de si que fazem do paradoxo do actor, da dis­
tância que separa esse actor da sua personagem, uma maneira de ser.
O refúgio em si de Guazzo reduzia a presença solitária em compa­
nhia a uma aprovação discreta, furtiva e muda. E agora o caso de fin­
gir perder-se para se ausentar mais radicalmente ainda. Os efeitos de
tal distanciação foram muitas vezes comentados26: uma teatralização
barroca da vida pública que fez de Versalhes um teatro onde o espectá­
culo nunca se interrompe; uma política da aparência que busca os seus
recursos em simulacros, em que o rosto se esfuma sob a máscara27.
Mais ainda: um afastamento do homem sensível, que «impede que
se deseje por demais alguma coisa». O cortesão, como o comediante
de Diderot, debate-se sem nada sentir. As suas lágrimas «descem do
cérebro, enquanto as do homem sensível sobem do coração»28. Esta
luta contra as paixões, combate contra si próprio de desfecho sempre
incerto29, tem assim lugar no modo de esquecimento, mais do que no
que poderia parecer um trabalho no eu. Trabalho que toma a forma
de negligência; um esforço elegante, um cálculo desinteressado, uma
intenção disfarçada de indiferença. Ao contrário da aplicação e da
perseverança burguesas que exibem o esforço sem decoro algum, a
governação do eu pelo esquecimento é uma forma de domínio que le­
va a tratar-se como a um outro, de alto, de longe; um afastamento de
si próprio, calculado não sem negligência.
A sociabilidade na corte, assente em tais paradoxos, verá aumen­
tarem progressivamente as tensões que a atravessam. Cerca do fim do

135
século, um importante tratado como o de Vaumorière (ver figura 15),
inteiramente dedicado à conversação, assinala muito claramente as
suas contradições: é preciso respeitar as conveniências e «falar com
circunspecção é dizer precisamente apenas as coisas que convêm na
altura, ao lugar e à pessoa que fala e às que escutam»30. O quadro de
definição de boa conversa recorda aqui o carácter constrangedor da
regra das «três unidades» que define a dramaturgia clássica. As codi­
ficações desenvolvem-se e penetram todos os aspectos, tanto verbais
como corporais, e que a enunciação individual não poderia infringir:
é preciso conhecer o nível do interlocutor, observar as circunstâncias,
escolher o lugar, esperar o momento para medir o tom e calcular a
frase. E ainda adivinhar a «capacidade» das pessoas, uma vez que a
prudência o exige e que não se deve «falar ousadamente diante de
pessoas mais hábeis do que nós». A fisiognomonia encontra então
nos tratados de conversação a sua razão prática: «Há mesmo alguma
arte em distinguir os rostos bonacheirões dos parvos, os severos dos
rudes, os maliciosos dos tristes (,..)»31. Se por vezes ali é criticada
(«As qualidades da alma», protesta Méré, «não provêm da tez nem
dos cabelos»), é sobretudo pelos seus preconceitos morfológicos. Es­
tende-se, com efeito, à totalidade do comportamento expressivo na
conversação, para além do corpo e do rosto, à própria linguagem; até
passar a ser, em Méré, uma fisiognomonia, da palavra.

A diferença dos espíritos e dos temperamentos conhece-se pe­


la linguagem; de facto, como só se fala para exprimir coisas
que se sentem, ou que se pensam, procura-se, por natural ins­
tinto, o som mais conforme aos sentimentos e as palavras
mais apropriadas para comunicar os pensamentos; assim, se o
gênio é subtil ou grosseiro, terno ou duro, civil ou rústico,
humano ou feroz, activo ou preguiçoso, tudo isso se descobre
nas palavras e nas maneiras de falar32.

Equivalência absoluta do corpo e da linguagem na expressão: os


tratados de conversação propõem uma fisionomia do estilo, indício
do carácter, como existe uma fisionomia das aparências corporais,
gravada com as acções interiores. A fisiognomonia observava uma
linguagem no corpo. A conversação parece por vezes distinguir a ex­
pressão de um rosto nas palavras.
Não basta, pois, para bem falar, ter boa cara. O divertimento de
outrem na troca verbal tem exigências mais subtis. «Vemos todos os
dias», assim troça De Vaumorière, «pessoas da província com bela fi­
gura e belos traços e que, no entanto, não achamos agradáveis»33.

136
Convém ao burguês de província ter boa cara. O rosto do cortesão
está adornado de atractivos menos duros, de uma essência menos vi­
sível, de um encanto de acesso menos fácil, ou muito simplesmente
definível: o ar, esse elemento natural e indispensável a uma conversa­
ção agradável.

O ar de que falo é a alma da boa cara; sem esse ar, é muito


difícil poder agradar; é esse ar galante ou delicado que espalha
encanto em todas as coisas que o podem pedir. No rosto, na
atitude e na conversação (...)34.

Do rosto deve pois desprender-se o ar que se respira na corte.


O leve e impalpável fluido da harmonia do corpo, do gesto e do ver­
bo, esse não sei quê em que as palavras se detêm, essencial ao ponto
de não poder ser nomeado. Objecto de todos os desejos, mas que re­
cua e se esfuma quando nos aproximamos: e ainda contradição, intrín­
seca das artes de conversação, que propõem uma pedagogia daquilo que
nunca poderia ser realmente alcançado ou possuído; contradição da
própria instituição curial, que integra e mantém à parte uma burgue­
sia desejosa de partilhar o poder; que promove, mas recorda a quem
quer elevar-se que é preciso atender às origens. Contradições da so­
ciedade de corte que virão a ser outras tantas razões do seu declínio.
Faz-se então ouvir uma queixa e depois, cada vez mais mais clara­
mente, cresce uma censura no próprio seio da literatura que fez do
encanto discreto da conversação o seu objectivo: as aparências torna-
ram-se opacas, já não se sabe com quem se trata. De Vaumorière
anuncia assim no fim do século o que o século xvm estigmatizará sob
a pena de Jaucourt, ao falar da impossibilidade de descrever a expres­
são das paixões num tempo em que «todos os homens estão de acor­
do em mostrar não sentir nenhuma»33.

Confesso que é difícil avaliar a disposição em que se encon­


tram as pessoas que compõem uma reunião. A maior parte
dessas pessoas ufana-se de estar sempre na defensiva e de es­
conder as suas intenções36.

Os fugitivos do eu

Sob um ar aberto os rostos fecharam-se e esfumaram-se seguida­


mente. Pior ainda: o esquecimento leva à perda do sentimento do eu.
«Não nos sentimos? Achamos ser preciso esconder de nós próprios

137
os nossos sentimentos como os dissimulamos aos outros? (...) Como?
Nunca terei o prazer de falar dos meus verdadeiros sentimentos?»37,
interrogam-se as pessoas que dialogam na L’Art de platre dans la con-
versation. Ao tratar-se como um outro, o indivíduo corre o risco de
se afastar demasiado de si próprio, até desaparecer: «E verdade que se
deve falar menos de si que de qualquer outra coisa»38.
A conversação vai assim submeter-se no século xvn a uma du­
pla crítica. A primeira é a dos moralistas; dá-se do ponto de vista
da própria sociedade civil e no seu interior, à maneira de um retorno
crítico do eu. Corresponde à elevação de um sentimento pré-rous-
seauista de sinceridade. Como, por exemplo, a de La Rochefou-
cauld39 ao recomendar o não esquecimento de si, o «não afasta­
mento insensível» de si mesmo, mas também o não fechar-se em si.
É estreita a via deste sentimento de autenticidade que tende então a
libertar-se.
A segunda crítica é de origem religiosa. E exterior à mundanidade
e radical. Descobre-se assim no tratado de inspiração jansenista que
F. Lamy publica em 1644, De la connaissance de soi-même, uma
reprovação veemente tanto da vida civil como da conversação: os
tratados de conversação consideravam que «nada é mais importante
no comércio da vivência do que agradar na conversação»40, que os
homens nasceram para estarem em sociedade e que a conversa é o
seu laço mais natural; Lamy vê nisso apenas um comércio pouco
agradável «que consiste em cada um sair de si e derramarem-se uns
nos outros através dos olhos, da boca e dos ouvidos»4'. Mistura in­
tolerável dos corpos. Apologia, ao contrário, da solidão, castidade
verbal: «A companhia rouba-nos a nós mesmos, a solidão restitui-
-nos» 42 .
Reinaria pois no mundo uma conjura contra o que os homens
têm de mais precioso, um bem inestimável que cada um tem em si, o
homem interior, «o eu real e verdadeiro». Todos os meios são bons
para evitar a vista de um dado objecto, para fugir se acontecer alguma
vez encontrá-lo, ou ainda para o fazer calar, sufocá-lo. E na primeira
fila destes meios, a conversa: através dela o homem espalha-se exte­
riormente, dissipa-se e desvia-se «para evitar o encontro com o inimi­
go comum de que toda a gente foge»43; ou então sepulta-o sob uma
onda de palavras inúteis. A conversação fez da sociedade civil «um
bando de fugitivos miseráveis», os fugitivos do eu. E desta deserção
de si próprio no comércio com outrem é o homem que deve ser cen­
surado:

138
Não há pior estada que em si próprio. Foge-se eternamente
de si, nada se receia tanto como encontrar-se consigo mesmo.
Esse encontro é para um homem do mundo o mais desagra­
dável que pode ter, é o objecto mais terrível que se pode apre­
sentar a seus olhos. Não aguenta a sua vista (...) e não sei em
que sentido se pode dizer que o homem se ama e procura tan­
to a si próprio, ele, que vejo evitar-se com tanto cuidado44.

A crítica jansenista do divertimento, tal como pode ler-se em Lamy,


Pascal ou Nicole45, combate o desenvolvimento de uma sociedade ci­
vil cujas práticas se desligam das práticas religiosas e de que perdem
progressivamente o sentido. A condenação da dissipação no comércio
e na conversação é a do esquecimento de si, porque este é a ruptura
com Deus. «Se estivermos de acordo com Deus, estamos em confor­
midade com nós próprios e podemo-nos encarar tranquilamente. Mas
quando se rompe com Deus, rompe-se consigo próprio; ao resistir a
Deus, dividimo-nos, combatemo-nos a nós próprios; numa palavra,
mais paz com nós próprios»46.
O texto de Lamy é uma chamada à ordem de uma concepção reli­
giosa tradicional da subjectividade e que o aumento da racionalidade,
os progressos do individualismo e a laicização das práticas sociais
perturbam gradualmente. O corpo funciona aqui como um território
fechado, casa, célula, receptáculo47 em que reside o homem interior.
Neste espaço interior, o homem pode ficar em paz se se mantiver sob
o olhar de Deus. O texto de Lamy volta continuamente a isto: o es­
paço interior é um espaço de olhar, não de palavras48; espaço de silên­
cio, espaço de solidão, em que o homem pode ultrapassar a divisão,
manter-se unido se o seu olhar se confundir com o olhar de Deus,
num só olhar49; é este modelo de tradição monástica de renúncia ao
mundo e à linguagem que vai apagar-se lentamente, enquanto o espa­
ço da consciência individual se transforma pouco a pouco sob as exi­
gências da razão, as lógicas e as práticas da linguagem e do comércio
social. A linguagem penetra mais profundamente o espaço reflexivo:
a introspecção, o exame de consciência reclama que nos observemos;
logo falaremos e conversaremos com nós mesmos. E a sociedade, a
sua opinião e a sua moral vêm ocupar o lugar do homem interior on­
de há muito tempo Deus reinava.
Chamada à ordem divina, a crítica de Lamy em relação à conver­
sação tem o tom radical dos conflitos exacerbados. Conhecem-se as
difíceis escolhas da Igreja e a profunda divisão que então a atravessa­
ram, pois no próprio momento em que Lamy se enfurece contra as
práticas da sociedade civil, os jesuítas redigem com aplicação tratados

139
de cortesia. Mas Lamy ignora sobretudo as novas aspirações que sur­
gem no espaço social.
Cresce com efeito no decorrer do século xvn um desejo de fran­
queza, um sentimento de liberdade na conversação; a convicção de
que a confiança no outro e um certo abandono de si são necessários:
tantas as condições para que de futuro se encontre prazer50. Cada vez
com mais frequência, Méré ou La Rochefoucauld falam da mesma
necessidade de intimidade, da escolha das companhias com quem se
conversa, da mesma recusa do tormento que causavam os fortes cons­
trangimentos da etiqueta, dos olhares perscrutadores. E que são ou­
tros tantos obstáculos a uma sociedade divertida, a sociedade civil
que se quer cômoda e agradável. «Para tornar a sociedade cômoda, é
preciso que cada um conserve a sua liberdade. Não se deve olhar para
si, ou olhar-se sem sujeição, para se divertir em conjunto»51.
Esta forma de pôr em causa os costumes, fora da sociedade políti­
ca, e alguns constrangimentos da sociedade absolutista, é acompanha­
da de uma maior sensibilidade ao outro. Assim, desenvolve-se na
conversação um sentimento do outro, das atenções que se lhe devem.
«E perigoso», observa pois La Rochefoucauld, «querer ser sempre o
senhor da conversa»52. Muitas vezes deve-se saber preferir o escutar à
eloquência; em matéria de conversa, acrescenta, «a regra mais segura
(...) é escutar, não falar e nunca se esforçar a falar»53. Em tais conside­
rações a prudência táctica não está decerto ausente. Mas também não
convém procurar obrigar o outro a falar: «Não os pressionem a apro­
var o que se diz, nem a responder»54.
Tudo isto prova o aprofundamento da exigência do diálogo na
conversação: a comunicação é uma troca verbal à qual a contenção, o
afastamento perante outrem e a reciprocidade são necessários; mas
também o sentimento do outro, como uma compaixão, que nos torna
sensíveis às suas alegrias e aos seus desgostos, como se se pudesse, em
certas circunstâncias, sentir algo como ele imaginando-nos no seu lu­
gar. «Faltaria à boa educação se não me regozijasse com um amigo
que se casasse vantajosamente e cometería uma falta ainda mais consi­
derável se não me mostrasse sensível à aflição de um dos meus paren­
tes que acabasse de perder o seu único filho»55.
Na sociedade civil, ao nível mais subtil e mais pessoal dos proces­
sos linguísticos, inventam-se, no meio de um sistema político e social
tão manifestamente desigual, tímidas e frágeis formas de reciprocida­
de: «uma certa maneira de agir e de falar, doce e delicada, que dá o
nome de civil àqueles que vulgarmente delas se servem»56.

140
A conversa consigo próprio

O ideal de uma sociedade que conversa e cujos termos se preci­


sam no decorrer dos séculos xvi e xvn, anuncia o que viria a ser a so­
ciedade dos salões do século xvm e a «arte de conversar» que foi ao
mesmo tempo o seu engano e a sua glória. Para tanto, foi necessário
esperar que a corte absolutista não absorvesse inteiramente a vida so­
cial, que a mundanidade se desligasse de Versalhes como seu único
centro e refluísse para Paris, disseminando-se pelos salões.
E então que a arte e o gosto de conversar no meio de uma compa­
nhia restrita estabelece uma forma de sociabilidade nova, privada e
muito electiva. Como diz Madame du Deffand: «Apenas me deleito
na minha carruagem na companhia de quatro ou cinco pessoas com
quem converso»37. A conversa é então uma necessidade absoluta, a
sociedade da linguagem. E a sua própria essência, o seu espírito, a re­
gra do que os Goncourt chamam «perfeitamente boa companhia», asso­
ciação de pessoas privadas, dos dois sexos, que desejam distinguir-se
do vulgar pela arte de agradar levada à perfeição, pela amabilidade
delicada, pelo conhecimento das deferências. A conversa é o seu pri­
meiro cuidado:

O ar e os costumes, as maneiras, a etiqueta exterior, fixava-os


a boa companhia; dava o tom à conversa; ensinava a louvar
sem ênfase e sem insipidez, a responder a um elogio sem o
desdenhar nem aceitar, a valorizar os outros sem parecer pro­
tegê-los; entrava e fazia entrar aqueles que reunia nas mil sub­
tilezas da palavra, do gesto, do pensamento, do próprio cora­
ção, e que nunca deixavam uma discussão chegar a disputa,
ornando tudo de uma leveza e sem nada acentuar mais do que
o espírito, impediam que a maledicência degenerasse cm negra
maldade58.

Fora dela não poderia haver salvação: confidência que surge con­
tinuamente na pena de Madame du Deffand: «Não tem necessidade
de apoio, mas eu não poderia passar sem ele; basta-se a si próprio e
eu não posso suportar ser de mim mesma (...) Não tenho pior com­
panhia que a minha (...) Preciso da sociedade, quer dos vivos quer
dos mortos (prefiro a medíocre e até a má a ficar reduzida a mim
mesma (,..)»59. E isto numa época em que se aprofundou o gosto pela
solidão, o amor pelo recolhimento; ao que Julie de Lespinasse teria
podido responder-lhe: «Passo uma parte da minha vida sem poder fa­
lar (...) Gosto do silêncio, do recolhimento, do refúgio»60.

141
Necessidade de companhia, necessidade de solidão: esta contradi­
ção vivida na mundanidade do século xvm é o centro de uma obra
publicada em 1762 pelo teórico e prático assíduo da vida dos salões, o
marquês de Caraccioli: La Conversation avec soi-même6i. Critica
moderadamente a dissipação mundana, a inutilidade e a futilidade de
uma certa conversação. E entrega-se à apologia da solidão. Mas nou­
tros termos que os de Lamy um século antes: companhia e solidão,
silêncio e conversação opõem-se agora ao fundo de um horizonte em
que a presença de Deus se tornou mais discreta.
O homem interior desligou-se do olhar divino: a alma é para Ca­
raccioli uma «sociedade», uma «voz», um oráculo interior. Se é neces­
sário mandar calar as paixões, é para poder ouvi-la e conversar com ela.
E esta conversa consigo próprio revela então ao indivíduo um mundo
inteiro no íntimo de si mesmo: «A medida que conversamos interior­
mente, sentimos dentro de nós um mundo semelhante àquele que ha­
bitamos»62.
Avaliam-se então melhor os deslocamentos efectuados no meio
dos debates sobre a conversa desde o tratado de Guazzo. A lingua­
gem deixou de ser a ligação com o outro, o lugar do outro, e a inte-
rioridade já não está totalmente consagrada ao olhar. «Falar consigo»
era para Guazzo pura loucura; «olhar para o próprio íntimo», para
Lamy, um mandamento divino; «conversar consigo próprio» torna-se
para Caraccioli o exercício mais elevado, o bem mais precioso. A lin­
guagem, em virtude da reflexão sobre a conduta, instalou-se no mais
profundo do indivíduo. Assim, de forma característica, já não se en­
contra em Caraccioli expressão de observação do eu, da introspecção
concebida a partir de um puro olhar. Quando ainda se olha o íntimo
de si próprio, é para ler nele, «folhear-se» como se percorre o livro
mais pessoal. As práticas de leitura silenciosa, íntimas e privadas, de­
puseram deste modo um vestígio reflexivo na consciência que de si
próprios têm os indivíduos. A alma é um gabinete, uma «biblioteca»,
dirá Caraccioli, uma voz conselheira. Exorta os homens a refugiarem-
-se ali frequentemente, «a fazerem uso da sua alma, a vê-la como a
primeira biblioteca que devem folhear e como o melhor conselho que
devem escutar»63. No momento em que o livro adquire uma tal im­
portância, é preciso aprender-se, saber-se, ler-se e nunca deixar o seu
próprio volume fechado tempo de mais.
Porque esta biblioteca, este livro interior, contém riquezas inesgo­
táveis. Existe em Caraccioli a apologia da singuxalidade, a valorização
absoluta do pensamento individual, «armazém inesgotável de rique­
zas». Um apelo ao senso íntimo de cada um, que é o que nos guia na
consulta desse livro que em nós existe, na escuta da conversa interior.

142
E vêem-se surgir em La Conversation avec soi-même alguns dos te­
mas essenciais do individualismo: autonomia e liberdade do indiví­
duo, auto-suficiência e fruição de si. De facto, na conversa íntima,

(...) cada homem é rei; ele fala e tudo se cala (...). Ele determi­
na a conversa, interrompe-a ou prolonga-a a seu gosto. Tor-
namo-nos pequenos centros em que sabemos bastar-nos a nós
próprios64.

Através da linguagem, a sociedade penetrou pouco a pouco no


coração do indivíduo, quer se chame a este processo «civilização dos
costumes» ou «racionalização das condutas». E cada indivíduo tende
a viver ele próprio como centro do espaço social. As oposições entre
esfera pública e esfera privada, companhia e solidão, conversa e silên­
cio foram assim deslocadas e redistribuídas. A companhia e a conver­
sa são essenciais, mas pode-se passar sem elas porque se possui em si
toda uma sociedade, porque podemos conversar com nós próprios.
Pode-se pois escolher a solidão, ficar em silêncio. Mas estaremos
assim ainda quando no nosso íntimo murmuram as mil vozes da lin­
guagem? Dizia-se que o lento movimento da civilização dos costumes
consagrava a queda do homem público e o triunfo do homem priva­
do. Sem dúvida. Mas decerto que, votando o homem à linguagem,
uniu e por vezes confundiu as esferas pública e privada, quando um
mesmo movimento fez do indivíduo um ser social e da sociedade
uma comunidade de indivíduos.
A partir daqui podem descobrir-se os efeitos do desenvolvimento
das práticas linguísticas e expressivas na constituição da sociedade ci­
vil; e compreender também, nas formas tomadas por esta última, cer­
tos elementos de transformação ulterior da sociedade política.
Porque nos seus tratados para uso da sociedade, Caraccioli dá conta
do triunfo político do indivíduo e consagra a soberania do burguês; so­
berania que consiste, como observa em La Jouissance de soi-même, «em
estudar o falar como se quer, não atrair os olhares de ninguém, não
excitar a inveja ou a piedade (...), numa palavra, não ter que dar con­
tas senão a si próprio»65. O indivíduo autônomo, suficiente, solitário,
tem porém acesso ao universal no seu próprio íntimo: «Entre em si
próprio e lerá sem auxílio do alfabeto os grandes princípios sobre os
quais se deve meditar (...). A conversa íntima faz de nós homens de
todos os séculos; a do exterior, homens de alguns dias»66. Autônomo,
soberano e apoiado pela sua universalidade, o indivíduo solitário
adquire uma legitimidade política nova que ao mesmo tempo desqua­
lifica o mundano ocioso e dissipador: vai ser «o amigo glorioso da
> • 67
patna» .

143
O império do sentimento

O encontro e a imbricação mais complexos no interior do indiví­


duo das esferas públicas e privadas faz dos homens da segunda metade
do século xvni a presa de uma sensibilidade exacerbada, de sentimentos
mais prontos a ser expressos, mas também mais confituosos que anun­
ciam a sentimentalidade romântica. Conflitos e tensões atravessam o
homem interior, em quem cresce o sentimento da divisão: «Se alguém
soubesse usar-se a si próprio (...) sentiría que existem disputas dentro
de nós, um não sei que que consente e por vezes não quer»68.
No universo no entanto mundano que o marquês de Caraccioli
descreve e pratica, esse não sei quê já não é simplesmente o ar exterior
que se deve saber usar como um ornamento gracioso, mas o antagonis­
mo de forças interiores do indivíduo que o agitam e o dividem, que
ele sente mas não pode verdadeiramente nomear. As percepções do
eu deslocaram-se e afinaram-se; aqui, trata-se menos de ver, de consi­
derar a sua pura exterioridade física, do que dc sentir, mesmo se se
tem de reconhecer que se ignora o que se sente; e menos de discorrer
em companhia, do que percorrer o espaço íntimo da conversa inte­
rior, terra incógnita a desbravar e reconhecer. «Quantas pessoas»,
assim zomba Caraccioli, «passam a vida a discorrer e não conhecem
de si senão o rosto, as mãos e os pés!»69.
A necessidade de uma exploração íntima, guiada pelo senso íntimo,
nunca fez com efeito desaparecer a dissipação do eu. Parece, pelo con­
trário, que no universo da mundanidade do século xvm os indivíduos
estavam ao mesmo tempo votados à interioridade e à exterioridade, tão
fortemente implicados na cena pública como no espaço privado. De
facto, no próprio momento em que Caraccioli escreve, estala a loucu­
ra do teatro em todos os cantos de Paris, o gosto pelas máscaras é le­
vado ao paroxismo com — dizem os Goncourt — a libertinagem e a
«astúcia» das mulheres, essa «falsidade natural, a dissimulação reco­
nhecida, o olhar sem restrições, a fisionomia controlada, a mentira
sem esforço de todo o ser, a observação profunda, o golpe de vista
penetrante e o domínio dos sentidos»70. Sente-se e procura-se a inti­
midade sentimental, mas também se alardeia. E a própria conversa
sofre o excesso das expressões, a língua «a escalada dos superlati­
vos»71, todos são atacados da febre de discorrer. Ninguém mais, sem
dúvida, do que o próprio Caraccioli exibiu o paradoxo de uma época
que incita ao mesmo tempo os indivíduos à conversa íntima e à taga­
relice mundana. Caraccioli é pois, para Madame du Deffand, um
«vociferador».

144
O vosso Caraccioli visita-me muitas vezes, mas a minha sim­
patia por ele não aumenta. Tem uma abundância de palavras
que não passam de um monte de folhas sem fruto algum (...).
Acho que o Caraccioli cedo estoirará dada a abundância de
fleumas e de palavras que o sufocam. Não nos aborrecemos
por conhecê-lo, ao encontrá-lo, por recebê-lo em casa, mas
no entanto ele fatiga e incomoda72.

É necessário discorrer, falar, falar sempre. E «falar» torna-se pouco a


pouco, neste fim de século pré-romântico, o equivalente a «sentir».
«Se não vos disser o que sinto, o que penso, não vos estou a falar»73,
confessa Julie de Lespinasse. A linguagem deixa então de ser, na comu­
nicação vivida, uma mediação neutra que de facto liga os indivíduos,
mas que também significa a sua distinção; a linguagem é penetrada do
sentimento íntimo ao ponto de perder toda a função descritiva em
proveito das suas potencialidades expressivas: «Só posso falar-vos do
que sinto e gostaria de vos dizer o que vi»74, suspira ainda Julie. E a
troca verbal, expressão de uma sensibilidade apaixonada, é então pri­
vação da posse do eu e dom do eu ao outro, conjunção das almas em
que toda a atitude, todas as distâncias dantes tão cuidadosamente
mantidas, parecem ter-se dissolvido. Para Julie de Lespinasse a verda­
deira conversação aproxima-se da permuta amorosa75. No seu paro­
xismo o assunto esboroa-se e a linguagem é abolida: «Já não tenho
palavras, apenas gritos»76.
A conversação é assim atravessada pela exaltação pré-romântica
do sentimento. Mas desenha-se então igualmente uma divisão mais
clara entre a esfera pública e o domínio privado da palavra, em que a
intimidade faz valer os seus direitos: à actividade, ao movimento, aos
ruídos da vida pública, aos costumes exteriores retóricos e especta-
culares da linguagem, opõem-se a calma interior da palavra íntima,
abrigo pessoal da conversa consigo próprio e as doces trocas da pala­
vra doméstica, tenra morada da conversa familiar. O universo bur­
guês da conversação separa assim, com os usos públicos e privados
das palavras, os comportamentos sociais, mas também os tipos psico­
lógicos da extraversão e da introversão e, finalmente, os papéis sexua-
dos do homem — arauto da palavra pública — e da mulher — guar­
diã da palavra privada. Sob o esquecimento público crescem as
ligações privadas.

Meu amigo — censura Julie de Lespinasse —, não o acho feito


para a intimidade: tem necessidade de se dispersar, o movimento
e o ruído da sociedade são-lhe precisos (...). Nunca fará senão

145
coisas de movimento, quer dizer, acções, actos isolados; e não
é assim que procedem a sensibilidade e a ternura. Elas unem,
ligam, preenchem toda a vida, apenas dão lugar às doces e cal­
mas virtudes, fugindo do tumulto77.

A oposição entre discurso público e palavras privadas, a divisão


do campo da linguagem entre homens e mulheres segundo as cliva-
gens da sociedade e da intimidade não são porém tão distintas como
aqui pode parecer. O silêncio da conversação interior e o murmúrio
da confidência não fizeram calar nas mulheres que arbitram a munda-
nidade dos salões o gosto pela palavra pública. Pelo contrário, os ho­
mens que declamam ou rivalizam em eloquência na praça pública não
são por isso levados a renunciar ao falar baixo da confissão ou do
sentimento íntimo. Impõe-se a cada um uma dupla necessidade que
faz crescer a ordem pública e o comércio privado da palavra, como
também a tensão que os liga e os separa. Deve-se participar da opi­
nião e salvaguardar ao mesmo tempo a sua privacidade. Não há então
melhor exemplo que o de Addison que mais que nenhum outro tra­
balhou no seu Spectator para o desenvolvimento da opinião pública,
olhar e discurso que a sociedade lança a si própria. Mas o considerá­
vel aumento de poder da palavra pública, a imprensa, a vocação para
a observação e informação que pode aplicar-se a todo o homem e a
todas as coisas, deve encontrar no respeito da individualidade o seu
limite, um limiar que não deveria ser transposto: assim, Addison ad­
voga que não deve aí figurar nenhum ataque ad hominerrr, e reivindi­
ca também ainda o seu direito pessoal ao anonimato:

Confesso que o meu objectivo é satisfazer o leitor em tudo o


que for razoável (mas), esta confissão tirar-me-ia da obscuri­
dade de que gozo há muitos anos e expor-me-ia nos lugares
públicos a mil saudações e civilidades que sempre me parece­
ram muito desagradáveis; porque o maior castigo que me po­
dem dar é falarem-me e olharem para mim com atenção78.

O indivíduo que fala é assim, no universo dos discursos, cidadão


de dois mundos que precisa habitar e nas obrigações dos quais con­
vém igualmente participar. Que a ligação entre as duas esferas possa
ser paradoxal, que faça passar no íntimo do indivíduo uma tensão que
possa ser vivida como um divisão, ou mesmo por vezes como uma rup­
tura do eu, não há dúvida nisso. Mas tal divisão não implica uma con­
tradição entre os seus termos ou a sua exclusão recíproca. A conversa­
ção não decai com a proliferação das palavras interiores ou íntimas.

146
Pelo contrário, ao virar do século parece estenderem-se a cada indi­
víduo os benefícios do comércio social através da linguagem. Madame
de Staél louva o «bem-estar» pessoal que uma conversação animada
faz experimentar. A palavra sugere então um estado individual, tanto
físico como moral, que se adorna subitamente de virtudes terapêuti­
cas. Um leve fluido, uma nova energia, feitos de conversa e de prazer
recíproco, percorrem então vivamente o corpo social, «mesmerizam»
subtilmente os elementos: a conversação, essa maneira de «manifestar
o espírito em todos os matizes pelo acento, o gesto e o olhar e pro­
duzir finalmente sem restrições uma espécie de electricidade que faz
brotar faíscas, alivia uns do próprio excesso da sua vivacidade e des­
perta os outros de uma apatia incômoda»79.
Desta corrente benéfica que purifica uns e fortalece outros, desta
convivência calorosa e alegre da linguagem e do espírito, ninguém
poderia ser de futuro mantido à parte; nem mesmo aqueles que o
desvario da razão sempre votou ao isolamento e à exclusão. Numa
sociedade em que se afirma um ideal de conversação, a palavra é um
direito inalienável. Também os loucos o verão reconhecido, quando
Pinei começar, com o seu «tratamento moral dos alienados»80, a edu­
cá-los e a tratá-los ao mesmo tempo; isto é, a «falar-lhes com doçu­
ra», a escutá-los e a «compadecer-se dos seus males».

NOTAS

1 S. Guazzo, La Civil Conversazione, Veneza, 1574. As referências remetem para


a edição francesa de 1592.
2 Ch. Sorel, La Bibliothèque française..., Paris, 1674.
3 Ibid., p. 53.
4 Guazzo, op. cit., p. 9.
5 Ibid., p. 10.
6 Ibid., p. 12.
7 G. Duby, «Situation de la solitude, xie-xne siècles», em Histoire de la vie privée,
op. dt., t. II, p. 504.
8 Cf. em particular: G. Duby e Ph. Braunstein, «L’emergence de 1’individu»,
ibid., pp. 503-622.
9 Desde o Corpus hippocraticum, que o estado solitário está ligado à melancolia,
efeito da abundância da bílis preta segregada pelo baço e responsável pelas paixões
tristes. «Os que são atingidos por uma melancolia que se instalou ficam cheios de an­
siedade e de mal-estar», diagnostica Celius Aurelanius, «com uma tristeza acompa­
nhada de mutismo e de raiva do circundante» (ver: D. Gourevitch, «La psychiatrie
de 1’Antiquité gréco-romaine», em Nouvelle histoire de la psychiatrie, J. Postei e Cl.
Quétel ed., Toulose, Privat, 1983). Mas muito cedo (Aristóteles, Problemas XXX~),
acreditou-se ver também um dos traços do homem de excepção nas artes ou na filo­
sofia (ver: J. Starobinski, Histoire du traitement de la mélancolie des origines à nos

147
jours, Basiléia e Nova Iorque, 1965; D. Witcover, Les enfants de Saturne, Paris, Ma­
cula, 1986).
10 Guazzo, op. dt., p. 13.
11 Ibid.., p. 41.
12 Ibid., p. 27 (itálico nosso).
13 Ibid.
14 Ibid., p. 379.
15 Ver mais longe, cap. V e VI.
16 Guazzo, op. dt., p. 380.
17 Ibid., p. 138.
18 Ibid., p. 46.
19 Ver J. Revel, op. dt.
F. de Grenaile, La Mode ou Caractère de la Religion, de la Vie de la Conversa­
tion, de la Solitude..., Paris, 1642.
21 Ibid., p. 260.
22 «Quando se está com as pessoas é preciso ser aberto e comunicar (...). Não vejo
nada mais desonesto do que estar acompanhado e ser recolhido, fechado em si pró­
prio», cavaleiro de Méré, complètes, Paris, 1668; ed. Fernand Roches, Paris,
1930, t. II, «De la conversation», p. 121.
23 O. de Vaumorière, L'Art de plaire dans la conversation, Paris, 1688, Entretien I,
p. 17.
24 Ibid., Entretien XVI, pp. 346-347.
25 Méré, op. dt., «Oeuvres posthumes», t. III («Du commerce du monde»), p. 158.
26 Ver, por exemplo: Ph. Beaussant, Versailles Opera, Paris, Gallimard, 1981.
27 Ver mais adiante, cap. VI.
28 Diderot, «Paradoxe sur le comédien» (1798), em Oeuvres esthétiques, Paris,
Garnier, 1976, p. 313.
29 «(...) Seja como for que se tenha o coração, a menos que o tenha bem prepara­
do, quem é que pode responder pelos seus movimentos? Quem pode assegurar que
não cora quando comete uma falta contra a sua reputação ou que não empalidece
quando é surpreendido por uma morte?» De Méré, op. dt., t. III («Du commerce du
monde»), p. 158.
30 De Vaumorière, op. cit., Entretien X, p. 203.
31 Ibid., Entretien II, p. 28.
32 De Méré, op. dt., «Oeuvres posthumes», t. III («De 1’éloquence et de 1’entre-
tien»), pp. 111-112.
33 De Vaumorière, op. cit., Entretien XIV, p. 318.
34 Ibid.
35 L*Encyclopédie, artigo «Passion (peinture)», t. XII, p. 151.
36 De Vaumorière, op. cit., Entretien X, pp. 203-204.
37 Ibid., Entretien X, p. 210; Entretien XVI, p. 343.
38 Ibid., Entretien I, p. 11.
39 Ver cap. VI.
40 De Vaumorière, op. cit., Entretien I, p. 5.
41 F. Lamy, De la connaissance de soi-même, Paris, 1644, p. 234.
42 Ibid., p. 18.
43 Ibid., p. 31.
44 Ibid., pp. 27-28.
45 Em Nicole, nos seus Essais de morale (1671, t. III, p. 1), quando diz que o pre­
ceito mais comum da filosofia é o de se conhecer a si próprio e quando observa que
«longe de trabalharem seriamente para adquirir este conhecimento, os homens estão

148
ocupados toda a vida a cuidar de o evitar. Nada lhes é mais odioso que a luz que os
descobre a seus próprios olhos e os obriga a verem-se tal como são».
46 F. Lamy, op. cit., p. 76.
47 Ver Duby, op. dt., p. 517; e capítulo seguinte.
48 «Quando se trata de palavras interiores, ou seja de pensamentos, o Santo Evan­
gelho não diz que o Senhor os ouviu mas que os viu.» Santo Agostinho, De Trinita-
te, trad. P. Agaesse, Bibliothèque augustinienne, Paris, 1955, t. XVI, p. 468.
49 «O olho com que vejo Deus é o mesmo olho com que Deus me vê. O meu
olho e o olho de Deus sâo um único e mesmo olho, uma única e só visão, um único
e só conhecimento, um único e mesmo amor. O homem que permanece no Amor de
Deus deve estar morto para si mesmo e para todas as coisas criadas, de tal modo que
se preocupa tão pouco consigo próprio como com qualquer outro que esteja a mil
léguas. Este homem permanece na Igualdade e na Unidade; não entra nele nenhuma
desigualdade. Este homem deve ter renunciado a si mesmo e ao mundo inteiro (...).»
Maitre Eckhart, Traités et Sermons, Paris, Aubier, 1942, p. 179.
50 Em De Grenaile, op., cit., p. 264. «Principalmente desejo que a franqueza e a
liberdade reinem nas cerimônias mais constrangedoras. Que contentamento posso re­
tirar do convívio social se aí vejo uma cruz a procurar prazer? Teria prazer em me
sentir incomodado? Gosto mais de estar em casa do que estar na companhia de al­
guém que estuda os meus menores gestos.»
51 La Rochefoucauld, op. cit., p. 164.
52 Ibid., p. 170.
53 Ibid., pp. 170-171.
54 Ibid., p. 169.
55 De Vaumorière, op. cit., Entretien XVI, p. 346.
56 Ibid., Entretien II, p. 21.
57 Mme du Deffand, Lettres à H. Walpole..., Paris, Plasma, 1979; carta de 3 de
Agosto de 1769, p. 60.
2,8 E. e J. de Goncourt, La femme au XVIIIe siècle, Paris, Flammarion, 1982
(1862), pp. 87-88.
59 Mme. du Deffand, op. cit., respectivamente: carta de 13 de Novembro de 1777,
p. 78; 31 de Maio de 1778, p. 125; 23 de Março de 1776, p. 114.
60 J. de Lespinasse, Lettres..., Paris, Charpentier, 1876; carta XV, 16 de Agosto de
1773, p. 52.
61 Marquês de Caraccioli, La Conversation avec soi-même, Paris, 1762.
62 Ibid., pp. 41-42.
63 Ibid., p. 19.
64 Ibid., pp. 23-26.
65 Marquês de Caraccioli, La Jouissance de soi-même, p. 503.
66 Caraccioli, La Conversation avec soi-même, pp. 44 e 67.
67 «O tempo de estudo e da conversação é abandonado a alguns solitários, a que
chamam extravagantes ou inúteis, como se mais de metade do mundo que não faz se­
não brincar, comer, dormir e passear prestasse grandes serviços à sociedade (...). Crê-
-se que merece o título glorioso de amigo da pátria quando se convive com os outros
unicamente para ver e ser visto?», ibid., p. 187.
68 Caraccioli, La jouissance de soi-même, pp. 295-296.
69 Ibid., p. 292.
70 E. e J. de Goncourt, op. dt., p. 274.
71 Segundo a expressão dos Goncourt que a apresentam assim: «Surpreendente,
miraculoso, divino, são os epítetos correntes da conversa (...). Só se fala de graças
inumeráveis, perfeições sem fim. A mínima fadiga está-se esgotado', ao mínimo con­

149
tratempo está-se desesperado, obcecado prodigiosamente, está-se sufocado. Deseja-se
alguma coisa? Está-se a morrer por ela. Um homem é desagradável? É um homem a
deitar fora. Não se percebe alguém? E de uma palermice confrangedora. Aplaude-se
freneticamente, louva-se acerrimamente, ama-se miraculosamente. E essa febre de ex­
pressões não fica por aqui; para ser uma mulher «perfeitamente na moda» é necessá­
rio ciciar, modular, amolecer e efeminar a voz, pronunciando, em vez de percebe, pe-
ceebe» (op. cit., p. 71).
72 Mme du Deffand, op. cit., respectivamente: p. 80 (12 Fev. 1772) e p. 114 (23
Mar. 1776).
73 J. de Lespinasse, op. cit., carta VII, 21 de Junho de 1773, p. 17.
74 Ibid., cana XXXVI, 1774, p. 87.
75 «Meu amigo, parece-me que tendes direitos sobre todos os sentimentos da mi­
nha alma. Conto-vos todos os meus pensamentos; só tenho a propriedade deles
quando vo-los comunico», ibid, carta LXIX, 7 de Novembro de 1774, p. 181.
76 Ibid., carta LVI, 3 de Outubro de 1774, p. 140; ou ainda: «Consegui moderar a
violência da alma; posso falar-vos... Ontem, não tinha expressão», ibid., carta VI, 20
de Junho de 1773, p. 15. São efeitos semelhantes que A. Vincent-Buffault observa na
sua Histoire des larmes (Paris, Rivages, 1986; ed. port. História das Lágrimas, Teore­
ma, 1994, pp. 255-257), quando no fim do século xvm, «a regra passa a ser a efusão
(...). Na difusão das lágrimas o excesso é de regra (...) em que se chora beijando-se
sem poder falar».
77 J. de Lespinasse, op. cit., respectivamente: carta XXXIII, 1774, pp. 75-76, e
carta XI, 25 de Julho de 1773, p. 34.
78 Addison em L'esprit d'Addison ou les beautés du spectateur..., 1777, t. I, p. 19.
79 Mme de Staêl, citada em M. Glotz e M. Maire, Salons du XVIIT siècle, Paris,
Nouvelles Editions Latines, 1949, p. 57.
8C Ph. Pinei, Traité médico-psychologique sur 1'aliénation mentale et la manie, Pa­
ris, An XI (1801).
Capítulo 5

CALAR-SE E SER SENHOR DE SI:


A ARQUEOLOGIA DO SILÊNCIO

Quando a conversação se extingue, quando a companhia se dis­


persa e cada um se retira, chega então a altura do silêncio. Mas será
que o silêncio é esse instante após a palavra, esse momento em que a
frase se quebra — recusa ou constrangimento da conversa, simples
quebra ou supressão da linguagem? «O tempo para calar-se deve ser
o primeiro na ordem e nunca se sabe falar bem quando não se apren­
deu antes a calar-se»1. O silêncio não poderia pois ser o único destino
do solitário e significar a ruptura do laço social. O homem de pala­
vras é um homem de silêncio: manuais de civilidade, artes de conver­
sação, tratados de retórica e livros de fisiognomonia vêm recordá-lo
entre os séculos xvi e xvm. A questão do silêncio ocupa um lugar
considerável nestas obras que regem os comportamentos corporais
e bem assim linguísticos na vida pessoal e pública. Mesmo quando ela
é feita, como deve ser, muito discretamente; sempre presente e muitas
vezes apenas audível. Os comportamentos do silêncio provêm de lon­
gínquas origens estóicas e cristãs e abrangem realidades complexas:
para alguns destes textos o silêncio é, em primeiro lugar, um impera­
tivo religioso, para outros uma regra social, para outros ainda uma
necessidade política. Para outros, finalmente, uma exigência «natural»
do corpo.

Ruídos e silêncios do corpo

É assim nos tratados de fisiognomonia: desde a origem que fazem


da moderação um imperativo moral essencial e das formas corporais
médias o sinal exterior de tal virtude. Para Aristóteles, como para as
obras latinas ou árabes da Idade Média, o sábio reconhece-se pela

151
«mediocridade» dos sinais: fronte regular, nariz direito, boca media­
na, rosto simétrico, corpo bem proporcionado, constituem os mais
belos e os melhores dos homens2. Quando a partir do século xvi se
desenvolve uma maior sensibilidade à expressão, estas exigências
mantêm-se, enquanto uma outra é marcada de maneira cada vez mais
insistente: os movimentos do rosto devem ser estabilizados e domi­
nados. As fisiognomonias, os livros de boa educação ou ainda os tra­
tados de acção retórica dizem-no cada um à sua maneira: o controlo
da agitação do corpo, a conversão desta última em gestos medidos e
harmoniosos são outros tantos indícios em que o homem honesto se
reconhece. Uma atenção mais aguda é desde logo dada ao invólucro
corporal3, a todo o movimento susceptível de deformar ou fazer so­
bressair a superfície; e ainda ao controlo dos seus orifícios e de tudo
o que deles possa sair, especialmente emissões linguísticas e mais ge­
ralmente sonoras4. A fisiognomonia não se satisfaz com perserutar o
rosto, precisa agora de escutá-lo. E o corpo é incitado ao silêncio.
A língua, «demasiado ligeira a falar», denota desde logo para Co­
clès o homem de pouco entendimento. Porta classifica estes acidentes
em que se perde o controlo da língua — gaguejar, hesitações, lapsos
— como sinais de imbecilidade. A sua vigilância vai até aos ruídos si­
lenciosos dos gestos expressivos que acompanham a palavra: estigma­
tiza aqueles que falam mexendo as mãos, «imundos» e «tagarelas».
As percepções tornam-se pouco a pouco mais finas, até passarem a
ser sensíveis a estas marcas discretas da expressão que se situam fora
da linguagem articulada: em alguns destes tratados há uma fisiogno­
monia da voz. muda, a da respiração, do suspiro, dos ruídos apenas
audíveis do corpo.
O registo dos ruídos ínfimos da expressão traduz um receio: que
algo surja de repente do corpo, se escape dele, e que ele corra o risco
de se espalhar fora de si próprio. Assim, aquele cuja respiração é for­
te ao ponto de parecer a todo o momento sem fôlego «costuma di­
vulgar tudo o que faz»6. As fisiognomonias inquietam-se então com o
suspiro, reprovam o bocejo tanto por causa de a boca ficar aberta co­
mo pela sonoridade. E pelas mesmas razões condenam mais ainda as
gargalhadas em que uma muito antiga tradição vê indício certo da
loucura. Mais vale rir pouco e silenciosamente: é indício de constân­
cia, de prudência e de temperança que agradará a toda a gente.

Sócrates diz que o riso desmedido e excessivo é sinal de lou­


cura e escreveu que Platão mostrava tal pudor e contenção
nos seus costumes e tão grande modéstia no rosto que nunca
o viram rir alguma vez em excesso ou desmedidamente7.

152
É este o paradoxo das observações fisiognomónicas que assim se
juntam às prescrições dos livros de civilidade: as produções vocais do
homem de bem devem ser medidas ao ponto de apresentarem uma
certa qualidade de silêncio. Assim, com a voz: recomenda-se um tim­
bre mediano, nem demasiado agudo nem demasiado grave, nem de­
masiado doce nem demasiado áspero, seguindo portanto o registo
«medíocre» do cantas obscurior em que os tratados de pronuntiatio
retórico inserem na mesma altura a voz do orador sagrado8. Passa-se
com as palavras o mesmo que com a voz: a sua saída demasiado
pronta ou demasiado abundante denota a loucura dos que têm «uma
torrente de palavras numa gota de razão».

Os loucos têm o coração na boca, mas os sábios têm a boca


no coração. Porque os loucos falam e depois resolvem, en­
quanto os sábios resolvem com razão e falam depois com cir­
cunspecção9.

Encontra-se assim subjacente à temática do silêncio nos tratados


de fisiognomonia uma concepção muito antiga em que o corpo se
compara a um recipiente e a palavra a um fluido. Guardar silêncio é
então garantir o encerramento do corpo, a sua contenção verbal. En-
tregar-se, como os tagarelas, à temeridade e à precipitação dos discur­
sos é comportar-se também à maneira do vinho novo, o qual sem ar
rebenta o tonel10.

Do homem cristão ao homem civil

Os imperativos de silêncio inscrevem-se assim numa longa tradi­


ção naturalista que incita, na perspectiva estóica, à moderação no uso
do corpo, reclamando domínio e contenção. Mas eles são tambcm de
origem cristã. Porém, no decurso dos séculos xvn e xvm a questão
do silêncio desloca-se progressivamente da fé aos costumes. Pouco a
pouco a religião deixa de envolver as condutas públicas e privadas e
de lhes dar sentido, enquanto se vê «romper-se a aliança institucional
entre a linguagem cristã, que enuncia a tradição de uma verdade reve­
lada e as práticas proporcionadas a uma ordem mundial (...). O sistema
que fazia das crenças o quadro de referência das práticas foi substituí­
do por uma ética social que formulava a “ordem” das práticas sociais
e relativizava as crenças religiosas como um objecto a utilizar»11.

153
O silêncio monacal do refúgio, o silêncio agitado do místico, o si­
lêncio temente do pecador perante Deus é pouco a pouco substituído
pela arte de calar-se, de se refugiar em si próprio, de conter a língua
como bom cristão e indivíduo virtuoso, à medida que as práticas civis
se distanciam dos comportamentos religiosos. Os impulsos da fé mu­
da dão lugar ao ensinamento das virtudes, de que os jesuítas foram os
principais artesãos, colocando-se deliberadamente no campo da socie­
dade civil onde inculcaram a «civilidade» e a «honestidade». A ques­
tão do silêncio é um sinal crucial da lenta transformação das práticas
religiosas cm práticas civis, um ponto de encontro do cristianismo e
da sociedade, um elemento essencial da civilidade cristã. O tema reli­
gioso do silêncio cria então a pedagogia da contenção, da reserva, da
reticência na vida social. A partir de então convém meditar, reflectir,
falar pouco; fazer do silêncio uma disciplina quotidiana mais do que
um mandamento religioso; um imperativo moral mais do que um ac-
to de fé. Ao que o abade Dinouart incitava na sua UArt de se taire
que se inscreve nessa tradição:

Desejo que a presente obra seja de utilidade neste tempo em


que o silêncio se tornou indispensável por ser, para muitas
pessoas, um meio seguro de conservar o respeito pela religião
e dar ao estado cidadãos fiéis, discretos e virtuosos12.

Há agora uma exigência de silêncio que se impõe na vida civil.


Entre as suas origens, descobre-se uma muito antiga concepção do eu
em relação a Deus: a da tradição ascética e mística do socratismo cris­
tão. Um eu abrigo, receptáculo, morada do Senhor, em que o indivíduo
silencioso se apaga e recolhe em êxtase perante Deus. Esta represen­
tação longínqua, omnipresente nos textos evangélicos, lugar-comum
da espiritualidade cristã13, ensina a humildade como virtude principal
e faz do conhecimento do eu — princípio fundamental do socratismo
cristão — o meio para lá chegar: devemos procurar Deus na sua mo­
rada, no mais profundo de nós próprios, no próprio íntimo da nossa
alma. As grandes escolas místicas saíram destes preceitos, mas tam­
bém as tradições moralistas que ensinam como se alcança a virtude:
não existe virtude sem humildade, nem humildade sem silêncio ínti­
mo, nem silêncio sem o conhecimento e a posse de si próprio que
permite o abandono contemplativo a Deus ou o respeito de uma con­
duta que nele se inspira. A virtude moral da humildade assenta no
controlo das aparências, do corpo e do gesto, na ascese da palavra.
Refúgio em si, retraimento do eu e silêncio: a sabedoria antiga
do socratismo cristão alimenta de maneira paradoxal certos tratados

154
de retórica humanista. Na sua L’Art de parler, Lamy confere assim
uma origem divina à sociedade civil e vê nos rituais silenciosos do
corpo cristão a origem das figuras retóricas.

Deus ao fazer os homens para viverem juntos formou-os com


estas inclinações naturais (...). Vejo que tendo a natureza dis­
posto o nosso corpo de tal maneira que ele toma as posturas
próprias para fugir ao que pode prejudicá-lo e que natural­
mente se dispõe de maneira mais vantajosa para receber o que
lhe traz o bem, também a natureza nos leva a tomar certas
atitudes ao falar, capazes de produzirem no espírito daqueles
a quem falamos os efeitos que desejamos, quer queiramos le­
vá-los à cólera, à doçura, ao ódio ou ao amor. Essas atitudes
têm o nome de figuras™.

Estes modos de expressão e de relação através do corpo e da lin­


guagem constituem pois um laço entre os homens: posturas e figuras
são constitutivas da vida civil; tornam-na possível, organizam-na, go-
vernam-na e adoçam-na.
Ora, de 1570 a 1625, as retóricas eclesiásticas dão um lugar consi­
derável às técnicas de actio, à arte do gesto, considerada de novo como
um elemento essencial da arte da palavra pública15. O renascimento
da actio inspira-se das retóricas antigas, do trabalho silencioso do
corpo levado a cabo desde Cícero ou Quintiliano. Modela o corpo
do orador sagrado no do orador antigo, fazendo dele o tipo ideal de
todo o corpo eloquente. A retoma do interesse pela actio é indisso­
ciável do desenvolvimento da civilidade: o próprio Erasmo concorreu
para isso esboçando nos seus Ecclesiastes um modelo do corpo do
Cristo orador, para lutar contra os excessos góticos da eloquência
medieval16. A actio, arte silenciosa do corpo eloquente, que consegue
uma espectacular renovação no fim do século xvi e no começo do xvn,
acompanha e inspira os rituais profanos de civilidade17.
A tradição do socratismo cristão atravessa as civilidades da idade
clássica. Alimenta os preceitos de modéstia essenciais nos tratados de
civilidade cristã, tais como os de A. de Courtin ou de J.-B. de la Sal-
le18. Quanto a este último, as regras das conveniências e da civilidade
cristãs ordenam que se considere «o corpo como o templo do Espíri­
to Santo». Mas a exigência íntima que faz do corpo o lugar do culto
pessoal requer o exercício da vigilância minuciosa do aspecto, dos
olhares e das palavras; e impõe um silêncio relativo da expressão. Im­
porta ter um aspecto modesto, de que seja banido todo o excesso: de
rigidez ou de negligência, de grandeza ou demasiado retraimento. As

155
conveniências reclamam um controlo estrito do movimento do corpo
e do rosto.

É porém adequado compor o rosto consoante as circunstâncias


em que nos encontramos e as pessoas com quem falamos (...).
As pessoas que vivem em sociedade são obrigadas pelos seus ne­
gócios a verem-se e a falarem-se mutuamente; mas essas conver­
sas frequentes, por necessidade ou divertimento, devem sempre
ter em conta a circunspecção, a sabedoria e a modéstia cristã19.

Se se deve «compor» o rosto, será de maneira a torná-lo «amá­


vel»: não se mostrar severo nem afectado; e também não colérico ou
melancólico. Convém evitar uma expressividade demasiado ruidosa,
preferindo uma gravidade suave, uma sabedoria amável, uma modera­
ção bem temperada. «O homem sábio conserva, tanto quanto possí­
vel, um rosto sempre igual»20. Se De la Salle recomenda igualdade,
moderação, constância c domínio de si, é por serem indícios de virtude.
De facto, «(uma excessiva) mobilidade (do rosto) é prova de deixar-se
arrastar pela paixão e, por conseguinte, de ser pouco virtuoso»21. De
la Salle traça assim, no pormenor dos deveres do cristão e dos gestos
da vida civil, um verdadeiro retrato psicológico e moral do homem
cristão como do homem civil: um homem moderado, prudente, aten­
cioso, sempre circunspecto; um homem discreto e mesmo silencioso
quando as circunstâncias o exigem.

O homem, nascido para a sociedade, deve dedicar-se a conhe­


cer os deveres que lhe impõe a religião, a honra e a razão nas
diferentes circunstâncias da vida; a prudência no procedimento,
a discrição nas maneiras, a circunspecção nos discursos (...), as
atenções para com os seus iguais22.

A exigência de silêncio interior perante Deus insinua-se assim lenta­


mente no silêncio exterior da igualdade dos traços perante os outros.
E o sentimento religioso de humildade converte-se em sinais sociais
de prudência. A preocupação do conhecimento íntimo de Deus no eu
é substituída pelo exercício de uma vigilância constante na conduta,
nas expressões e nas frases. Na civilidade cristã, são a religião e a so­
ciedade em conjunto que reclamam mandar calar o corpo.

Deve-se pois recordar este princípio (...) que consiste em dar


continuamente atenção a nós próprios para ver se nos encontra­
mos na atitude que nos convém, pois com essa atenção se com­

156
põe a atitude, e com a atitude a civilidade: como da falta de
atenção provém a falta de postura e dessa falta a incivilidade23.

Esta imposição do silêncio que percorre a idade clássica baseia-se


num ideal de conservação do eu que vê na palavra o risco de privação
da posse.

Nunca o homem se sente mais dele do que no silêncio: de ou­


tro modo, parece espalhar-se, por assim dizer, fora de si pró­
prio e dissipar-se no discurso de maneira que é menos seu
que dos outros24.

O homem perde-se na palavra. Tanto nos tratados de fisiognomo­


nia como nos livros de civilidade, ela é o que escapa, derramamento,
ferida, efusão em que o corpo se esvazia e se espalha e dissipa no ex­
terior de si próprio. Assim, na L’Art de se taire, do abade Dinouart,
lê-se o medo da perda de substância corporal se a língua se soltar. As
probabilidades da palavra são o risco de deixar de pertencer a si pró­
prio, de se ver desviado do império do eu.
Distingue-se então nestas incitações ao silêncio o eco ampliado de
um receio em relação à conversação quando esta era concebida como
efusão recíproca em que os homens se espalhavam e perdiam uns nos
outros. As críticas religiosas da conversação como dissipação munda­
na são, como as exigências do silêncio, uma evocação das origens di­
vinas da representação que faz do corpo um receptáculo fechado on­
de coabitam silenciosamente o indivíduo e o seu Deus. Sentir-se seu é
então ser o guardião das fronteiras do seu corpo, «ficar contido» no
interior de si próprio. Do que ninguém deu uma descrição mais lite­
ral do que A. de Courtin na sua concepção de conter-se'.

A própria expressão conter-se o exprime por si, porque vindo


da palavra conter, a pessoa só é considerada como sabendo
conter-se por, em primeiro lugar, conter as suas paixões, de­
pois os seus membros ou as suas acções, a sua língua ou as suas
palavras nos limites em que todas as coisas devem sê-lo (...).
Não se diz de um homem (...) que ele se contém só por do­
minar o seu íntimo ou as suas paixões; mas porque estas, ao
reprimirem o exterior, tudo o que nos mostram desse homem
se nos afigura assente ou tranquilo25.

Sentir-se seu é, pois, conter-se, reprimir-se. A própria noção de


civilidade implica esta representação religiosa do eu dc que decorre;

157
uma vez que a civilidade «considerada em si mesma apenas consiste
em se sentir seu»26. Na origem do imperativo de silêncio difundido
no decorrer dos séculos xvn e xvm respeitante à civilidade e aos ges­
tos, à conversação e às palavras, existe portanto um modelo muito
antigo do corpo como recipiente hermético, continuamente ameaçado
pelo facto de as matérias que encerra poderem escapar-lhe. As ori­
gens da tradição naturalista de que provêm as representações do cor­
po desenvolvidas pela fisiognomonia, as origens religiosas que estão
na base dos comportamentos civis, referem-se portanto a concepções
próximas. Este corpo receptáculo, cujo silêncio parece assegurar o
encerramento, ganha igualmente sentido num registo econômico-, como
se obedecesse ao modelo de uma economia arcaica, de uma acumula­
ção primitiva em que convém juntar no interior do eu riquezas que
não se deveria de forma alguma deixar filtrar senão gota a gota, aten­
dendo cuidadosamente ao que se gasta. E neste sentido que o silêncio
é de ouro e que o excesso de palavras é ao mesmo tempo a perda de
um bem, um esbanjamento e o derramamento de um líquido, uma in-
continência. Encontra-se assim, tanto na memória dos saberes popu­
lares como na tradição naturalista das fisiognomonias ou na de uma
moral de origem religiosa, uma economia primitiva da palavra em que
a tagarelice é comparada a uma falta de energia do corpo bem como à
delapidação de um patrimônio. E assim a economia cristã da palavra
formulada por J.-B. de la Salle:

Em geral, deve-se ser reservado e econômico na distribuição


dos louvores, encarar sempre as coisas, apreciar o que valem,
para as julgar e louvá-las segundo as regras da prudência e do
discernimento27.

Ou ainda a economia civil do gesto, que obriga o homem honesto


a reprimir o que Courtin chama falta de serenidade, essa saída brutal
fora de si, o maior obstáculo ao cumprimento da civilidade:

Só se perde a serenidade quando o íntimo ou o espírito sain­


do dos seus limites perturbam o exterior e impedem que ele
responda às obrigações que lhe impõem as leis do dever de
homem honesto ou de homem civil28.

Depois enumera com exactidão as regras da vida civil, algumas


das quais se confundem com os próprios princípios do socratismo
cristão:

158
Estas regras, que levam ao conhecimento de si próprio e ao
dos outros, à observação dos lugares e do tempo, são tão ne­
cessárias que, se uma das quatro faltar, todas as nossas acções,
partindo embora de uma boa intenção, parecem incivis e irre­
gulares29.

Sem serenidade, fora de si próprio, o homem torna-se «incivil» e


— acrescenta Courtin — a sua aparência e as suas acções «irregula­
res», usando os dois termos à maneira de sinônimos.
E pois esta a lição antiga que as artes do silêncio retomam: na pa­
lavra, no gesto excessivo, o indivíduo pode deixar de pertencer a si
mesmo e ver o seu próprio corpo deformar-se, abrir-se e, a partir de
então, passar a ser bem de outrem. Convém economizar-se: o silên­
cio possui virtudes salutares que se deve cultivar. Virtudes mínimas,
sem dúvida, arte do pouco., próximo do nada.
O silêncio não é porém uma ausência. A arte de calar-se é uma
paradoxal arte de falar. Não basta, para calar-se, fechar a boca. O si­
lêncio do homem não é o mutismo do animal, pois o seu silêncio é
expressão-, ele fala a linguagem do rosto.

Um sinal, um sorriso que vos escape, pode tornar ainda mais


criminosos aqueles que se escapam porque acreditam que vos
divertem e agradam. Que o vosso rosto fale então pela vossa
língua. O sábio tem um silêncio expressivo, que se transforma
em lição para os imprudentes e castigo para os culpados30.

Maneiras de calar-se e maneiras de falar

O silêncio deve assim fazer-se «espiritual»: é o silêncio que se


mostra quando se apercebe no rosto de uma pessoa que nada diz «um
certo ar aberto, agradável, animado e próprio para fazer compreen­
der, sem o auxílio da palavra, os sentimentos que se quer dar a co­
nhecer»31. Reconhece-se então a propósito do silêncio aquele «ar
aberto» que os tratados de conversação preconizavam: Guazzo acom­
panhava o silêncio do «refúgio em si» de uma discreta aprovação ges-
tual das frases do interlocutor; Méré não admitia o «recolhimento em
si próprio» e recomendava que o rosto mostrasse uma expressão
aberta e alegre; desse mesmo ar de abertura ao outro, La Rochefou­
cauld fazia o sinal de uma escuta, a possibilidade de um diálogo, a

159
promessa de uma reciprocidade. A regra de silêncio é clara: não deve­
mos fechar-nos ao outro. O rosto taciturno só assenta aos espíritos
melancólicos e tristes. O ar aberto e amável, que tanto recomendam
as artes de conversação como os preceitos de silêncio, é a marca im­
pressa no rosto de cada um pelos paradoxos de uma sociedade civil
em que se reforça o controlo social ao mesmo tempo que se autono-
miza o indivíduo, quando essa sociedade é concebida como espaço de
diálogo, de troca e de expressão. Deve-se, simultaneamente, num
mesmo tempo e num mesmo lugar, saber calar-se e exprimir-se. E por
isso que retóricos e teóricos da linguagem, Lamy ou Bouhours, fa­
zem do silêncio «a arte de bem se calar» e consideram que ele tem os
seus princípios e as suas regras, tal como a arte de bem falar. Uma ar­
te, mas também uma virtude. Assim, para Bouhours:

Toda a vida civil decorre no segredo e como os particulares


não podem ser bons amigos nem pessoas honestas se não sou­
berem manter o silêncio, as personagens públicas não podem
desempenhar as suas funções se não forem senhoras da sua
língua32.

Uma sociedade de linguagem é uma sociedade de silêncio, mas


não deve ser uma sociedade de mistério. Os que preconizam o silên­
cio condenam o gosto excessivo do segredo: quando bem longe de
dizer o que se deve calar, ainda calam o que devem dizer. Bouhours
considera que tal dissimulação «choca (...) a sociedade civil que con­
siste na comunicação de todas as coisas; (...) que peca (...) contra a
sinceridade e a franqueza que é o laço de comércio que os homens
têm entre eles»33.
A arte de manter o silêncio é pois complexa. Existem coisas que é
preciso calar e outras que se devem dizer. Não poderiamos contentar-
-nos com saber dominar a língua. «Há pessoas que não falam; mas
por pouco que se observem, vê-se que morrem de desejo de falar (...).
Há pessoas discretas que mostram no rosto tudo o que lhes vai no
coração»34.
A sociedade civil é uma sociedade de silêncio e de linguagem, de
segredo e de diálogo; de dissimulação e de franqueza, de retraimento
e de permuta. Uma sociedade de refúgio em si e de preocupação do
outro, de reserva e de compaixão, simultaneamente fechada e aberta,
estado instável, equilíbrio precário. Bouhours soube condensar este
conjunto de paradoxos no resumo de uma fórmula: em sociedade,
«deve ter-se a boca fechada e o rosto aberto»35. Recolhe-se então de
maneira mais precisa os efeitos das transformações da sociedade civil

160
sobre o próprio indivíduo: corpo e linguagem são sujeitos a um tal
domínio que o silêncio e a palavra possam nele inscrever-se no natu­
ral harmonioso da expressão; e participar assim nas múltiplas exigên­
cias do laço social: alternada ou simultaneamente dizer e calar, através
da boca e do rosto.
Compreende-se assim como as artes do silêncio que acompanham
a tradição dos tratados de civilidade podem terminar em classificações
das maneiras de se calar através da língua, que sejam ao mesmo tem­
po maneiras de falar através do rosto: uma laicização, uma generali­
zação, um enfraquecimento progressivo dos modelos de gestualidade
religiosa. Uma classificação como a que nos deixou o abade Dinouart:
existe o silêncio «artificioso», silêncio de dissimulação, quando só nos
calamos para causar surpresa, quando não se responde «senão com
maneiras enganadoras»; o silêncio «complacente» da lisonja, a aplica­
ção no ouvir sem contradizer aqueles a quem pretendemos agradar
«de forma que os olhares, os gestos, tudo supra a falta de palavras
para os aplaudir»; o silêncio «trocista», em que o rosto aprova en­
quanto se goza o prazer secreto de enganar; o silêncio de «desprezo»,
uso táctico da reserva e da expectativa, o do rosto impassível, quando
calar-se é fazer falar o outro, levá-lo a declarar-se, a fazer o primeiro
movimento36.
Reconhecem-se aqui algumas molas essenciais da arte do cortesão,
sendo por vezes muito indecisa a fronteira que separa os manuais de
civilidade cristã dos tratados da corte. As práticas do silêncio assen­
tam, nestas tradições, numa ética baseada na prudência e na aprecia­
ção das circunstâncias: deve-se usar a língua oportunamente, con­
soante o tempo e os lugares em que nos encontramos em sociedade, e
segundo as atenções devidas às pessoas com quem se conversa.
Derivação do silêncio-, lentamente, o primitivo silêncio de origem
religiosa, percepção interior, recolhimento e refúgio de si, laço essen­
cial com Deus, exterioriza-se na linguagem. O silêncio que habitava o
espaço íntimo saturado pelo olhar, o «castelo interior» das Moradas
de Santa Teresa de Ávila — o «castelo de diamante» da alma, residên­
cia luminosa de Deus37 — perde a sua transparência e torna-se opaco
na expressão e no gesto. Se o corpo continua a ser para J.-B. de la
Salle «o templo do Senhor», a maior parte das vezes é uma fachada
que dá a contemplar. O silêncio toma lugar entre as práticas civis, faz
a ligação entre os homens onde tecia a relação mais pessoal que unia
o homem a Deus. Ao dessacralizar-se, alinha entre as práticas sociais.
Destinos cruzados do silêncio e da conversação: ao mesmo tempo a
linguagem, dantes votada à exterioridade do comércio entre os ho­
mens, torna-se mais interior, até estruturar pouco a pouco o espaço

161
íntimo à maneira de uma conversação consigo próprio. Assim, as de­
rivações aparentemente contrárias do silêncio e da linguagem devem
compreender-se na base da transformação profana e civil das práticas
religiosas: interiorização da linguagem e exteriorização do silêncio
traduzem a socialização progressiva da esfera privada, a lenta indivi-
dualização do espaço público. O homem destaca-se de Deus, a vida
civil é impregnada de uma religião disseminada nas suas práticas, de
uma religiosidade moral. O homem silencioso espalhou-se pelo mun­
do: o homem humilde passou a ser o homem prudente. Ao silêncio
da fé, ao isolamento da convicção ou do fervor sucederam as artes
discretas que se praticam em companhia: as da circunspecção, da ex­
pectativa, da ocasião; que ensinam a reprimir as palavras, sem mascarar
excessivamente as que deixam escapar; a calar-se, sem fechar demasia­
do o coração; a ser reservado, sem ser sombrio ou taciturno. E essa a
arte daquele que contemporiza, que não se compromete nem se reve­
la. Arte do meio termo em que não se diz realmente a verdade nem se
esconde totalmente, ela ajuda as práticas de conversação e constitui,
mais gcralmente, um elemento essencial dos rituais da vida civil, de
que reflecte e realiza as sujeições. Mas remete ainda para um modelo
político, porque «quem não sabe calar-se é indigno de governar»38.

O silêncio político é o do homem prudente que se poupa, se


conduz com circunspecção, que nem sempre se abre, que não
diz tudo o que pensa, que nem sempre explica a sua conduta
e as suas intenções; que, sem trair os direitos da verdade, nem
sempre responde claramente, para não se deixar descobrir39.

Os poderes do silêncio

A importância da civilidade transparece no uso que o Estado abso-


lutista vai fazer dos rituais da civilidade própria da Igreja para exercer
um controlo mais severo sobre a sociedade.
E um homem da Igreja e um homem de Estado a descortinar cla­
ramente toda a sua dimensão política, o cardeal Richelieu, que verá
no uso sistemático das regras de civilidade, no estabelecimento de um
ritual obrigatório e meticuloso que visa o menor gesto, o mínimo
olhar, o meio privilegiado de dominar, de domesticar; de controlar,
de disciplinar os corpos, as expressões e as frases. E ainda, se necessá­
rio, «pôr de joelhos» a sociedade e, em primeiro lugar, os senhores

162
demasiado rebeldes, pouco obedientes à pessoa do rei e ao Estado.
Ranum observa deste modo:

Durante toda a vida, não houve gesto, olhar ou movimento de


um músculo do rosto por pequeno que fosse que Richelieu não
perscrutasse e julgasse quanto ao seu respeito ou à sua irreve­
rência40. (...) Richelieu nunca permitiu à civilidade que fosse
simples «honestidade»: em vez disso, perscrutava qualquer gesto
ou «acto de linguagem» para reforçar a autoridade real41.

O que o cardeal descobre nos rituais de civilidade e de etiqueta são


os meios de instalar os pormenores minuciosos de um poder absolutis-
ta. Nada revela mais a importância que dá ao olhar do que a política
que seguem, por sua ordem, os intendentes que contribuem para a
sua aplicação. Entre eles, Laffemas, sem dúvida o mais autoritário,
declara: «Faremos guerra aos olhos»42.
O seu Testament politiquey as suas Maximes d'Etat et fragments
politiques^ fazem de Richelieu simultaneamente um filósofo do polí­
tico e um prático da civilidade: o teórico da política do olhar. Num
sentido mais amplo: possuir vistas sobre o futuro, prevê-lo; num sen­
tido restrito, constranger pelo olhar: o poder exercido pelo olhar so­
bre o olhar de cada um; o ter de baixar os olhos. As instruções que
preparou para se conduzir na corte, as recomendações que dirige ao
rei, as regras de conduta a impor aos indivíduos, obedecem às exigên­
cias de uma política de silêncio-, exercer controlo sobre o humor, o
temperamento, os instintos, as paixões, as palavras. Ser senhor de si:
«Deve-se ouvir muito e falar pouco para bem agir no governo de um
Estado»44. Se é agradável poder por vezes abandonar-se à franqueza,
primeira cautela: a corte está corrompida, é preciso mostrar prudên­
cia, moderação, circunspecção; adaptar-se às circunstâncias, saber
com quem se lida, «na sua conduta, comandar sempre o espírito»45.
Já no começo do Testament politique, Richelieu faz considerações
gerais sobre a conduta racional do príncipe em política: preferir a ra­
zão à autoridade brutal da força. A razão persuade, conquista insen­
sivelmente a vontade dos homens. E a «luz» que guia a conduta dos
príncipes. Ela ilumina onde a paixão cega, impede o exercício do
olhar, prejudica a previsão, perturba o governo dos homens.

Quem prevê de longe, nada faz com precipitação, uma vez


que pensa a tempo e é difícil fazer mal quando se pensou com
antecedência46. (...) Deve-se — prossegue Richelieu — dormir
como o leão, sem fechar os olhos, que devem estar continua­

163
mente abertos para prever os mínimos inconvenientes que po­
dem surgir47.

Se governar é calar-se, também é prever: deve-se saber conservar,


no exercício do poder como na vida civil, a boca fechada e os olhos
abertos. Richelieu arrisca-se então a pintar um retrato da pessoa do
rei e dos princípios da sua conduta. O rei é de «um humor inquieto e
impaciente (...)»48. A vontade é precisamente «o mais poderoso inimi­
go» de sua majestade. A vontade, ou antes o seu exercício, dificultado
pelo arrebatamento.

O espírito de Vossa Majestade domina de forma tão absoluta


o seu corpo, que a mínima das suas paixões se apodera do seu
coração, perturbando toda a economia da sua pessoa (...). Ini­
migo tanto mais perigoso quanto interno e doméstico49.

A paixão é o inimigo íntimo dos reis, portanto o dos Estados.


O rei deve proteger o seu exterior; deve também defender o seu espa­
ço interno: reprimir as suas palavras, abster-se de maldizer de al­
guém, saber fechar os ouvidos à calúnia e saber abrir os olhos; saber
conservá-los abertos mesmo quando parecem fechados. «E próprio
da grandeza dos reis serem comedidos nas suas palavras»50.

Nunca ninguém vendeu mais as suas palavras, o seu próprio


sorriso e até os seus olhares. Tornou tudo precioso pela esco­
lha e pela majestade, a que a raridade e a concisão das suas
palavras muito acrescentavam. Se as dirigia a alguém (...) toda
a assistência o olhava51.

Silencioso, o rei deve apresentar a todo o momento uma másca­


ra impenetrável... A fixidez, a opacidade e a vigilância do rosto real
são a marca constante do seu poder. A impassibilidade, o silêncio
do rosto, traço essencial da arte de ordenar, corresponde às exigên­
cias de um modelo político. Recorda-o a retórica jesuíta, acrescen­
tando que «é necessário não só calar a língua como também, e mais
ainda, a alma; e, com efeito, aconteceu muitas vezes que muitos
(...), só pela expressão do rosto, revelaram os seus desígnios secre­
tos»52.
O silêncio é então uma condição necessária ao brilho do rosto da­
queles que só com a sua presença muda impõem obediência e respei­
to. O silêncio é um privilégio de rei, a expressão íntima da lei.

164
Os reis podem ser personagens mudas, sem que por isso, co­
mo leis vivas, se execute no entanto o que sabiamente orde­
nam que se faça. Recorrendo a esta característica da alma real
e à ressonância de Sua Majestade, mantêm os indivíduos nos
seus deveres53.

Os tormentos do silêncio

Exigência religiosa, regra de conduta na vida civil, necessidade do


político: o império discreto do silêncio que no século xvn penetra
nas condutas privadas e públicas vai surgir cada vez mais claramente
no decorrer do século xvm como um jugo por vezes insuportável.
Queixam-se em primeiro lugar ser muitas vezes necessário, ao medir
as palavras, reprimir o pensamento. Que a economia do verbo faz ca­
lar a ideia, impondo silêncio ao sentimento. Para Madame du Def-
fand é um tormento pessoal «falar sem dizer o que (ela) pensa»54. Um
outro, para ela, é verificar em sociedade o retraimento do pensamento
nas palavras: «Quase ninguém pensa e quem quer que seja não diz o
que pensa»55.
O século xvm deplorou, como provam as confissões, memórias e
correspondências, poder-se falar para calar. Mas trouxe à luz do dia a
natureza complexa e paradoxal do silêncio: quando, na conversação,
falar se tornou equivalente a sentir, o silêncio do outro significa abor­
recimento, indiferença e por vezes crueza.

Como é que — interroga-se dolorosamente Julie de Lespinas­


se —, amando, nada tem a dizer-me? Sofre, tem esperança,
sente prazer, porque não diz nada sobre isso?56

Os poderes do silêncio passam através da troca amorosa. Parece


até desenharem-lhe a estrutura, quando à frieza impassível dos ho­
mens responde o abandono das mulheres, as suas palavras e as suas
preces. O silêncio é então um sofrimento, uma ferida, por vezes até
causa desespero.

O silêncio magoa-me (...). Meu amigo, se eu sentisse paixão,


o seu silêncio matar-me-ia; e se só tivesse amor-próprio,
ferir-me-ia57.

E a palavra é a sua consolação, o remédio, quando espalha os be­

165
nefícios da efusão pessoal no diálogo. Sair do silêncio é libertar-se de­
le pela palavra.

Nada pretendo, a não ser essa espécie de consolação, que tão


raramente se concede, de mostrar todo o seu pensamento (...).
Meu amigo, para me acalmar, para me libertar de um pensa­
mento que me magoa, tenho necessidade de falar-lhe58.

É esta toda a complexidade paradoxal dos laços entre palavra e si­


lêncio tais como se exprimem nos finais do século xvm: tanto quanto
a palavra, noutras circunstâncias, o silêncio alivia, permite encontrar
em si a calma e a moderação.

Passo uma parte da minha vida sem poder falar — confessa por
fim Julie de Lespinasse —; a minha voz extinguiu-se e é de to­
das as incomodidades a que mais convém à disposição da minha
alma: gosto do silêncio, do recolhimento e do refúgio59.

NOTAS
1 Abade Dinouart, L'Art de se taire, principalement en matière de religion (1771),
J.-J. Courtine e Cl. Haroche, ed. Jérôme Millon, p. 65.
2 Ver Denieul-Cormier, op. cit., pp. XX-XXII.
3 Estas observações ligam-se com as finas análises que G. Vigarello fez deste sen­
timento de porosidade dos invólucros corporais que participam na transformação das
práticas de higiene nos séculos xvi e xvn. Com efeito o temor, nessa época, era que a
água pudesse penetrar no corpo atravessando a sua superfície; temor ao mesmo tem­
po inverso e similar do que se encontra no terreno da expressão quando se trata de
vigiar para que nada demasiado brutal surgisse do corpo (ver G. Vigarello, Le Propre
et le Sale, Paris, 1985). O invólucro corporal é uma fronteira simbólica essencial à
delimitação pessoal. G. Duby insiste na sua análise da emergência do indivíduo entre
os séculos xi e xm, na assimilação dos limites do corpo medieval às paredes de uma
casa íntima cujas aberturas devem ser rigorosamente defendidas: «O invólucro do
corpo é, no mundo dos homens, a mais profunda das clausuras, a mais secreta, a
mais íntima, e as interdições mais rigorosas impedem de a quebrar. Casa-forte, forta­
leza, retiro, mas sempre ameaçado, cercado (...). E preciso vigiar o corpo especial­
mente nas suas aberturas que furam a muralha e por onde se pode infiltrar o inimigo.
Os moralistas incitam à vigilância destes postigos, as janelas que são os olhos, a boca,
as orelhas, as narinas, uma vez que é por aí que penetram o gosto pelo mundo e o
pecado, a podridão: vigilância assídua, como nas portas dos mosteiros e dos castelos»
(op. cit., p. 517; ver igualmente: M.-Ch. Pouchelle, Corps et chirurgie à Papogée du
Moyen Age, Paris, Flammarion, 1983). Mas que o corpo seja apercebido como um
recipiente contendo a palavra de Deus ou como uma casa abrigo da alma. Tais análi­
ses permitem dar uma inscrição histórica ao que a psicanálise denomina «imagem do
corpo», e precisar as transformações da percepção subjectiva das fronteiras do corpo
(ver por exemplo D. Anzieu, Le moi-peu, Paris, Dunod, 1985).

166
4 Este ponto foi desenvolvido em J.-J. Courtine e G. Vigarello («La physionomie
de 1’homme impudique: bienséances et impudeurs dans les physiognomonies au xvie
et au xvne siècle», Communications, n.° 46 Outubro 1987) a propósito do aumento
do sentimento de pudor na idade clássica. O controlo subjectivo do corpo orgânico e
o sentimento de pudor que se exprime pela racionalidade psíquica foi posto em rela­
ção com esta transformação das representações do corpo que M. Bakhtine soube ex­
pressar opondo um corpo grotesco e um corpo clássico. Esta oposição está de acordo
com o que queremos mostrar com o nascimento e o desenvolvimento da categoria
expressão: o corpo expressivo é o corpo clássico de Bakhtine. Neste, com efeito, co­
menta Bakhtine, «o papel predominante pertence às partes individuais do corpo
assumindo funções caracterológicas e expressivas: cabeça, rosto, olhos (...)» (Bakhtine,
Uoeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen-Age et sous la Re-
naissance, Paris, Gallimard, 1970, p. 319).
5 Particularmente em Porta no século xvi, W. de la Colombière ou D. Laigneau
no século xvn {op. dt.).
6 Porta, op. dt., p. 247.
7 Ibid., p. 254.
8 M. Fumaroli, op. cit., pp. 257-259.
9 W. de la Colombière, op. cit., respectivamente p. 179 e p. 178.
10 Ibid., p. 182.
11 M. de Certeau, L'Ecriture de 1’histoire, Paris, Gallimard, 1975, p. 155 e p. 154 e
mais geralmente pp. 153-212.
12 Dinouart, op. dt., p. 59. LArt de se taire é o retomar de um tratado de civilidade
cristã publicado nos finais do século xvii por J.-B. Morvan de Bellegarde: Conduite
pour se taire et pour parler, prindpalement en matière de religion, Paris, 1696. Ver sobre
este ponto: J.-J. Courtine e Cl. Haroche, prefácio à edição de l'Art de se taire.
13 Ver sobre este ponto: Robert Ricard, «Notes et matériaux pour 1’étude du “so-
crastisme chrétien” chez sainte Thérèse et les spirituels espagnols», Bulletin hispani-
que, vol. XLIX, 1947, n.° 1, e Bulletin hispanique, vol. L, 1948, n.° 1.
14 B. Lamy, LArt de parler, Paris, 1676, p. 8.
15 Sobre as origens da actio na retórica da idade clássica, ver essencialmente:
M. Fumaroli, LAge de l’éloquence, Genebra, Droz, 1980, pp. 315 e segs. e igual­
mente do mesmo autor «Rhétorique de la voix et du geste...», op. cit., assim como a
bibliografia do número da revista XVII* siècle onde se encontra este artigo.
16 Fumaroli, op. dt., p. 30.
17 «E a eloquência sagrada que desempenhou o papel de motor no renascimento
de uma actio rhetorica no século xvi e é a partir desta versão eclesiástica da actio que
as suas derivações profanas (etiqueta da corte, arte do comediante “reformado”) se
desenvolveram» (Fumaroli, op. cit., p. 315).
18 A. de Courtin, Nouveau traité de la civilité qui se pratique en France et ailleurs
parmi les honnêtes gens, 1671; J.-B. de la Salle, op. dt.
19 De la Salle, p. 4 e p. 29.
20 Ibid., p. 4.
21 Ibid., p. 5.
22 Ibid., prefácio, p. 1.
23 Courtin, p. 337 (itálico nosso).
24 Dinouart, op. dt., p. 65.
25 Courtin, op. dt., p. 323 e p. 322.
26 Ibid., p. 322.
27 De la Salle, op. cit., p. 35 (itálico nosso).
28 Courtin, op. cit., p. 105.

167
29 Ibid., pp. 17-18.
30 Dinouart, op. cit., p. 105.
31 Ibid., p. 70.
32 D. Bouhours, Entretiens d'Artiste et d'Eugène, Paris, 1683, p. 256.
33 Ibid., pp. 269-270.
34 Ibid., p. 271.
35 Ibid., p. 272.
36 Ver Dinouart, op. dt., pp. 69 a 71 («Différentes espèces de silence»). O silêncio
de desprezo é o que pratica, segundo os Goncourt, Mme. Geofrin, «hábil a apagar-
-se, a calar-se, a escutar, retirada em si mesma e conduzindo por trás a conversa dos
outros, tocando as pessoas como se fossem instrumentos, sabendo tirar daí o som»
(Portraits intimes du XVIIP siècle, 2.a série, Paris, 1858, pp. 157-182).
37 A imagem do «castelo interior» de Santa Teresa inscreve-se numa tradição mística
onde o retiro solitário se torna uma «fortaleza do silêncio». O que Ph. Braunstein co­
menta assim: «Por entre todas as definições de alma que Mestre Eckart propõe nos
seus Sermões, uma das mais comoventes é a da praça forte: “Esta pequena praça forte
é tão elevada acima de tudo e de todo o poder que só Deus pode penetrá-la com o
seu olhar. E porque Ele E Uno e Simples, entra nesta unicidade a que chamo uma
pequena praça forte da alma”, como dizia a mística Matilde de Magdeburgo» {Histoi­
re de la vie privée, t. II, p. 606). A propósito das «moradas» de Santa Teresa, remete­
mos o leitor para as páginas essenciais que Michel de Certau lhe consagrou na sua
Fable mystique XVF-XVIT siècle, Paris, Gallimard, 1982, pp. 257-279.
38 Fénelon, Télémaque, III.
39 Dinouart, op. dt., p. 71.
40 Ranum, op. dt., p. 431. Ver também P. Ansart, La gestion des passions politi-
ques, Lausana, L’Age d’Homme, 1983, em particular o cap. II.
41 Ibid., p. 434.
42 Citado em Ranum, op. dt., p. 437.
43 Richelieu, Testament politique, Amsterdão, 1688; Mãximes d'État et fragments
politiques, Paris, ed. Hanoteaux, 1880.
44 Maximes d'État et fragments politiques, p. 778.
45 ZW., p. 770.
46 Testament politique, p. 19.
47 Ibid., p. 20.
48 Ibid., p. 217.
49 Ibid., pp. 213-214.
50 Ibid., p. 222.
51 Anedoctes, Scènes et Portraits, extraits des Mémoires du duc de Saint-Simon,
Paris, Tallandier, 1925, p. 221.
52 Fumaroli, op. dt., p. 250.
53 Ibid., p. 262.
54 Mme du Deffand, op. dt., p. 117.
55 Ibid., p. 128.
56 Julie de Lespinasse, op. dt., p. 55.
57 Ibid., p. 56 e p. 125.
>8 Ibid., p. 27 e p. 168.
59 Ibid., p. 52.
Capítulo 6

AS FORMAS DA SOCIEDADE CIVIL


(Impassibilidade, distâncias, atenções — séculos XVII e XVIII)

A etiqueta, dirá um príncipe, é uma coisa pueril e de que eu


sou o primeiro a rir, mas é a única muralha que me separa dos
outros homens. Tirai-ma e eu não serei mais que um gentil-
-homem. A opinião faz tudo; os homens vivem de formas,
estão mergulhados nas formas. Cada Estado tem as suas...
(L. S. Mercier, Tableaux de Paris, tomo IX, cap. DCXCI, p. 78).

A sociedade da máscara

Quando em meados do século xvm, em l’Ami des hommes ou


traité de la population, e depois em l'Ami des femmes ou traité de la
civilisation, Mirabeau introduz na linguagem francesa o termo civiliza­
ção1, entrega-se a uma crítica severa desta «civilidade» do século xvii, de
que a sociedade da corte tinha feito uma arte.
Se perguntasse à maioria das pessoas o que considera civiliza­
ção, responder-me-iam: a civilização é o abrandamento dos
costumes, a urbanidade, a delicadeza e os conhecimentos di­
fundidos de maneira que as conveniências sejam observadas e
desempenhem o papel de leis de detalhe2.

E Mirabeau acrescenta então, severo:

Não vejo em tudo isso senão a máscara da virtude e não o seu


rosto e a civilização nada faz pela sociedade se não lhe der o
fundo e a forma da virtude3.
A civilização não é, decididamente, nesta segunda metade do sé­
culo xvm, a civilidade do século precedente. Ninguém teve palavras
mais duras que J.-J. Rousseau contra esta sociedade da corte onde se

169
desenvolveram e codificaram as práticas da civilidade e da delicadeza
mundana. A sociedade da corte é a sociedade da máscara, onde reina
«uma vil e enganosa uniformidade». O homem segue-lhe o uso e «nun­
ca o seu próprio gênio». Ele faz o que «a delicadeza exige e a conve­
niência ordena». Detestáveis consequências: o rosto esbate-se por detrás
do constrangimento das figuras, da uniformidade das aparências. O in­
divíduo desaparece na gregaridade. «Odeio as máscaras», exclama
Madame du Deffand.

Não se ousa já parecer o que se é; e neste constrangimento


perpétuo, os homens que formam este rebanho que se chama
sociedade, colocados nas mesmas circunstâncias, farão todos a
mesma coisa (...). Assim, nunca se poderá saber com quem li­
damos4.

A origem do mal, para Rousseau, vem do olhar. Do desejo de ser


olhado, da exigência de consideração nasceu a estima pública: será
então o mais hábil ou o mais eloquente aquele que melhor sabe falar
ao olhar, o que se torna mais considerado. «Primeiro passo para a de­
sigualdade e, ao mesmo tempo, para o vício»5, ruptura com esse esta­
do da natureza onde antigamente a postura exterior era a imagem das
disposições do coração. E origem da civilidade. Porque desde que a
ideia de consideração se formou no espírito dos homens, «cada um
pretendia ter direito a ela, não sendo possível a ninguém faltar-lhe
impunemente. Daí saíram os primeiros deveres da civilidade»6.
Então o rosto isolou-se, distanciado da figura; perdeu-se sob a
máscara condensada e enganadora que o olhar público dispôs sobre
cada um. As aparências tornaram-se opacas, as virtudes enganosas; as
qualidades desvaneceram-se e os vícios dissimularam-se. Cada indiví­
duo se tornou outro, estranho a si mesmo.

Sendo estas qualidades as únicas que podiam atrair a conside­


ração, era preciso tê-las ou simulá-las, e mostrar-se, para van­
tagem sua, outro do que era realmente. Ser e parecer torna­
ram-se duas coisas inteiramente diferentes e desta distinção
saíram o fausto imponente, a astúcia enganadora7.

A denúncia rousseauista da sociedade da corte como sociedade


dominada pela máscara teve consequências consideráveis quanto à
formação do sentimento do eu do indivíduo moderno. Contribuiu

170
depois para tornar frequentemente suspeito e sempre mitigado o
exercício da fruição narcísica; frequentes vezes preciosa e sempre difí­
cil, a efusão do sentimento autêntico e sincero. A consciência do eu
do indivíduo contemporâneo deve muito à crítica que Rousseau fez
da sociedade da corte, crítica que participou no seu advento e que o
preparou. «Não se pode compreender realmente J.-J. Rousseau, a sua
influência, as razões do seu sucesso, se não for considerado como um
representante da reacção contra a racionalidade da corte», assim es­
creve Elias8.
A leitura dos manuais de civilidade, dos tratados de delicadeza
mundana e dos moralistas do século xvn parece dar bem razão a
Rousseau. Por todo o lado e a despeito da diferença dos autores ou
dos projectos, encontram-se os grandes traços desta sociedade a par­
tir dos quais ele conduziu a sua crítica: a afirmação de um homem
duplo, em que o ser se distingue do parecer; a preferência dada à apa­
rência em nome da sua visibilidade; o domínio do eu e a repressão do
sentimento; o cálculo do comportamento na relação com outrem9.
O olhar sobre o universo da sociedade aristocrática e mundana do
século xvn formou-se através dos olhos de Rousseau. Da sociedade
da corte ficou a imagem, sem dúvida real, de um teatro de intriga em
que a máscara sufoca e reprime a fisionomia autêntica: o cortesão
permaneceu o símbolo da duplicidade e do servilismo.
Só alguns observadores perspicazes, em particular L.-S. Mercier,
souberam pressentir a dimensão paradoxal da etiqueta: ao mesmo
tempo sistema de constrangimento sufocante e sistema que permite
proteger um espaço de liberdade de todo o indivíduo. Mercier reco­
nhece que

a etiqueta faz parecer sereno quando se arde de ambição, cal­


mo quando se está devorado pelo fogo da vingança. O olho
fixa o inimigo com tranquilidade (...). Evita-se mesmo o tom
da indiferença que poderia marcar e dizer alguma coisa10. (...)
Não há minuto em que não se lhe pague tributo11.

Mas também que a etiqueta instaura «entraves salutares»12 que, re­


freando os egoísmos, mantendo as distâncias e assegurando as aten­
ções, também protege o indivíduo. Â sua maneira, a civilidade, seja
ela de inspiração erasmiana, de origem cristã ou se inscreva na tradi­
ção barroca dos tratados da corte13, contribuiu para a emergência das
formas psicológicas, sociais e políticas da individualidade moderna.

171
Os dois rostos do cortesão

Em mais nenhum lado do que em 1’Homme de cour, de Balthazar


Gracian, se poderia encontrar matéria para alimentar a denúncia
rousseauista da sociedade da corte. Gracian, jesuíta espanhol, retóri­
co, é sem contestação um dos autores mais representativos da tradi­
ção barroca. Os escritos de Gracian parecem desligados de toda a in­
tenção moral. A seu propósito não se pode deixar de pensar, embora
os separe um século, nos de Maquiavel, pois L’Homme de cour pare­
ce a réplica mundana da política de Le Prince. O mesmo tom, frio e
indiferente, racional e pragmático. A mesma filosofia quanto ao fun­
do, embora, onde Maquiavel é mais geral e mais teórico, Gracian seja
mais empírico e prático. E nisso, justamente, que reside o interesse:
Gracian é o analista meticuloso do comportamento do cortesão, des­
crevendo e prescrevendo até as expressões do rosto. Em parte alguma
mais explicitamente do que no seu tratado se vê desdobrar o uso da
fisionomia em manipulação e controlo do outro.
Governar pelas aparências, tirar toda a vantagem da máscara: a sua
política anuncia-se claramente, mesmo quando os seus lados secretos
são obscuros; a sua filosofia junta-se à de Maquiavel. Partilha uma série
de oposições entre categorias fundamentais: oposição entre o homem
vulgar e o homem da corte, entre o mundo das profundezas e o mundo
das superfícies; oposição das paixões e da razão, da sinceridade e da dis­
simulação, do natural e do artifício. Mas as oposições invertem-se, os
seus limites tendem a apagar-se. Assim, «as coisas não passam pelo
que são, mas pelo que aparentam». «Não há ninguém que veja o inte­
rior, quase toda a gente se contenta com as aparências»14.
Maquiavel tinha-nos prevenido: «Toda a gente vê bem o que pa­
reces, mas bem poucos têm o sentimento do que tu és»15.
L'Homme de cour é pois um tratado, uma arte do parecer. A apa­
rência é sempre superior à sinceridade das intenções e leva Gracian a
uma apologia do visível, do olho e do olhar.

A habilidade e o saber mostrar são um duplo saber. Aquilo


que nunca se vê é como se não existisse16.

De ora em diante a verdade será contingente, ligada à superfície


das coisas, às eventualidades e às ilusões do olhar. Poder-se-á manipulá-
-la com uma indiferença cínica. Preferir-se-lhe-á a habilidade. A maior
parte das vezes, a táctica é superior à ética. Estas artimanhas só têm um
limite, só conhecem um freio: a prudência, que impõe moderação me­

172
nos, ao que parece, por razões morais do que práticas e estratégicas.
Como homem do seu século, Gracian desconfia do excesso. E, portan­
to, do exagero:

Mostra-se ser homem prudente, nunca falando em superlati­


vos, porquanto essa maneira de falar fere sempre a verdade ou
a prudência (...). O homem prudente procede com circuns­
pecção e gosta mais de errar por pouco do que por muito (...).
O exagero é uma espécie de mentira17.

É menos a própria mentira que Gracian condena do que nesta o


exagero. Porque o exagero torna a mentira visível, frustra os seus cál­
culos e volta-se contra ela. E também a desconfiança do excesso que
leva ainda Gracian a recusar a perfeição. A perfeição é perigosa: ela
isola, com efeito, pois é singular; votando o indivíduo à singularida­
de, condena-o à solidão. Aos olhos da opinião, do juízo da corte (e é
este o único que verdadeiramente conta), mais vale ser moderado, isto
é, medíocre, em tudo fugir de ser notado.

Sendo em demasia, as próprias perfeições serão defeitos: isto


vem da singularidade e a singularidade sempre foi censurada.
Quem se mostra singular permanece só18.

A solidão... o maior medo do mundano; o exílio entre os seus, o


castigo supremo para o homem da corte. Aos excessos de uma perfei­
ção que distingue, mas que isola, é mais prudente e mais hábil prefe­
rir em todas as circunstâncias o muito pouco da awrea mediocritas.
Eis quanto aos príncipes, e à filosofia... Todo um conjunto de
práticas vem conformar-lhe o corpo, ajustar-lhe o rosto. Há em Gra­
cian uma política do rosto. Que se agarra a uma fórmula: «dissimular
é governar». O cortesão terá de se tornar impenetrável. E a regra e o
apanágio de quem quer governar os homens, do príncipe, do herói,
do homem da corte. A inescrutabilidade da fisionomia corresponde a
uma dupla necessidade. Nada mostrar de si, constranger-se à impassi-
bilidade, é, em primeiro lugar, recusar deixar-se penetrar pelo olhar
de outrem. Porque o homem olhado com insistência, o homem a
quem o olhar de outrem trespassa e destrói o rosto, está perdido.

Deixar-se penetrar por outrem e dar direito a por ele ser to­
talmente governado é quase a mesma coisa (...). Se o homem
que desvendou um outro fica em situação de o dominar, tam­
bém o homem que ninguém pode aprofundar fica sempre co­
mo que numa região inacessível à dependência19.

173
A máscara fixa e imóvel do cortesão irá protegê-lo dos olhares
mortíferos. Nunca se expor, nunca deixar fenda por onde o olhar
possa vir a penetrar e apoderar-se do homem interior. E, inversamen­
te — mas não será a mesma coisa? —, nada deixar sair de si, não tole­
rar a irrupção de qualquer sentimento, senão calculado, nem o apare­
cimento de qualquer paixão senão perfeitamente dominada. Também
aqui o perigo é mortal e perfeitamente simétrico com o precedente:

Já o disse: políticos profundos pretendem que descobrir toda


a capacidade de um homem e ficar em estado de o governar é
mais ou menos a mesma coisa. Mas acho que é ainda mais
verdadeiro não haver nenhuma diferença entre deixar perce­
ber a sua paixão e entregar armas seguras para que se tornem
senhores de nós20.

O homem da corte exercerá assim uma tirania sobre as suas pai­


xões, porá acima de tudo o império sobre o eu-. «(...) não existe maior
senhoria que a de si próprio, das suas paixões»21; é a observação in-
trospectiva, a decifração do eu que assegurará ao cortesão o domínio
do sentimento íntimo. A que consagrará todos os recursos do olhar
interior.

Não se poderá ser senhor de si próprio sem se conhecer a


fundo. Há espelhos para o rosto, mas não os há para o espíri­
to. E preciso, portanto, substituí-los por uma séria reflexão
sobre si mesmo. Quando a imagem exterior se escapar, que o
interior a retenha e a corrija22.

São estes os preceitos do homem da corte: assegura-te da tua ima­


gem, de medo que outrem a furte; possui-te a ti mesmo, antes que
outro te possua; conserva enfim o silêncio, sabe segurar a tua língua a
fim de não te perderes e te descobrires pela palavra. O imperativo de
silêncio e de imobilidade que rege a fisionomia faz calar a linguagem
do corpo e aplica-se com tanto rigor ao discurso que é preciso impe-
di-lo de agir livremente. A língua é uma «rebelde apaixonada e inde­
pendente», é «um animal selvagem muito difícil de acorrentar uma
vez solta»23. Há, sem dúvida, nesta tirania exercida para consigo mes­
mo como que uma contrapartida, um fundamento psicológico do la­
ço político de vassalagem.
No entanto, a inescrutabilidade não basta. A fixidez dos traços
pode não preencher já o seu papel; o cortesão recorrerá a outros
meios, pois todos são bons. Gracian explora então todos os artifícios
que o rosto pode oferecer. Este, há pouco «inexpressivo», torna-se

174
móvel. A finalidade é agora surpreender e desconcertar, desconcertar
o olhar do outro.

O homem hábil utiliza como armas os estratagemas da inten­


ção. Nunca faz o que mostra ter desejos de fazer: ele visa um
objectivo, mas para enganar os olhos que o olham. Lança uma
palavra e depois faz uma coisa em que ninguém pensava. Se diz
alguma coisa, é para desviar a atenção dos seus rivais e, estando
eles ocupados com o que pensam, logo ele executa aquilo que
eles não pensavam... E depois, quando o seu artifício é conhe­
cido, ele refina a dissimulação, servindo-se da própria verdade
para enganar... O seu artifício é não o ter mais e toda a sua fi-
nura está a passar da dissimulação anterior à candura24.
Assim, a política do rosto de que L’Homme de cour revela os pre­
ceitos e os artifícios parece dupla: ao mesmo tempo fixa e móvel, faz
alternar no rosto a impassibilidade da fisionomia e as incertezas de
uma metamorfose regrada23. Dominar o outro pelo jogo das aparên­
cias; tornar-se senhor dele prendendo-o na armadilha do seu próprio
olhar, usar a máscara, o ecrã, o artifício, como suporte de uma relação
de poder; instaurar no campo do olhar uma relação dissimétrica...

Domina os objectos, mas nunca é por eles dominado (...).


Admite perfeitamente fazer a anatomia da capacidade das
pessoas; basta-lhe ver um homem para o conhecer a fundo e
em toda a sua essência; decifra todos os segredos dos cora­
ções, mesmo os mais escondidos (...). Descobre tudo, repara
em tudo, compreende tudo26.
Este ideal de domínio absoluto através do olhar não acontece sem
inquietação. A suspeita de ser ele próprio observado, o medo de ser
desmascarado, são-lhe inseparáveis.
É um homem digno de consideração aquele que considera
que o olham ou que o olharão. Sabe que as paredes escutam...
mesmo quando está só, faz como se estivesse na presença de
toda a gente, porque sabe que tudo se saberá27.

Figuras da delicadeza: a medida e o cálculo

Existem, no entanto, neste século da máscara e da etiqueta, vozes


dissonantes entre as testemunhas da sociedade da corte, vozes que
prefiguram a crítica que o Século das Luzes dirigirá à civilidade. En­

175
tre estas, Saint-Simon. Testemunha apaixonada e severa da corte, não
é todavia um moralista no sentido de La Bruyère ou de La Rochefou­
cauld. Os seus retratos não são anônimos. Ele faz o retrato físico,
psicológico e moral da corte e dos seus actores28.
Acima de tudo, Saint-Simon dá valor ao comedimento, à modera­
ção, à igualdade de humor:, ao desembaraço e à adaptação às circuns­
tâncias. Assim, a duquesa de Borgonha, «invulnerável às surpresas e
aos contratempos, livre nos momentos mais inquietos e mais cons­
trangedores»29, maravilha-o com a sua igualdade de humor. Admira,
pois, o sangue-frio do marechal de Boufflers, «igual no perigo», a
quem nunca coisa alguma «aquecia a cabeça». Inclina-se, portanto,
perante a maturidade do duque de Borgonha, embora arrebatado e
apaixonado na sua juventude. Verdadeiro elogio do domínio do eu:

(...) a vigilância sobre si próprio, com quem nada se passava e


que ele achava não dever passar-se, fechou-o no seu gabinete
como num asilo impermeável às ocasiões30.

Senhor de si próprio até no sofrimento intolerável que sente com


a perda da duquesa de Borgonha:

Via-se um homem fora de si, que se impunha uma aparência


igual3’.

Entre todos estes retratos, uma oposição tanto moral como física
parecia crucial: a de Fénelon e de Harley. Sobre o primeiro, não es­
gota os elogios: uma fisionomia que não se pode esquecer — «era
preciso fazer esforços para deixar de o olhar»32 —, uma figura bem
feita, um trato encantador, desembaraço e moderação em todas as
coisas, uma delicadeza que «a cada um parecia não ser senão para
ele»33. Em contrapartida, para o segundo, só há desprezo pela sua hi­
pocrisia. Tudo no retrato que traça do primeiro presidente do parla­
mento é constrangimento, cálculo, falsidade:
Harley era um homenzinho magro, de cara em losango, o na­
riz grande e aquilino, olhos de abutre que pareciam devorar
os objectos e perfurar as muralhas (...). A palavra lenta e pesa­
da (...). Todo o seu exterior constrangido, pouco à vontade,
afectado; o odor hipócrita, o porte falso e cínico, reverências
lentas e profundas, destruindo sempre as muralhas com um ar
respeitador, mas através do qual cintilava a audácia e a inso­
lência, e expressões sempre graves (...) sempre lacônicas, nun­
ca contente, nem ninguém com ele, muito espírito natural,
muita penetração, um grande conhecimento do mundo, so­

176
bretudo das pessoas com quem lidava (...) falso e hipócrita em
todas as suas acções34.

Numa tal figura, como aliás no retrato do abade Dubois35, faz-se


ouvir a reprovação cada vez mais clara de um parecer enganador.
E em raras ocasiões, nos retratos fascinantes que traçou da pessoa do
rei, Saint-Simon, sempre respeitoso, deixa no entanto transparecer as
reservas que sente a propósito do triunfo das aparências, dessa socie­
dade do olhar de que o rei ocupava o centro. E relata esta cena: sou­
be-se agora que a duquesa de Borgonha «está ferida»36. O rei, insen­
sível, mostra-se irritado. A assistência, chocada, não revela a menor
reacção. E Saint-Simon descreve então toda a estratégia do olhar: os
súbditos têm os olhos baixos, por respeito; ao rei, nada escapa; na
sua presença não se poderíam trocar olhares cúmplices; o respeito,
quase pavor, impõe o silêncio.
Um silêncio de se poder ouvir andar uma formiga sucedeu a
esta espécie de arrebatamento. Baixavam-se os olhos, mal se
ousava respirar. Todos ficaram estupefactos (...). Logo que
ousámos olhar-nos, fora da sua vista, os nossos olhos ao en­
contrarem-se disseram tudo (...). Examinei eu próprio todas
as personagens, olhos e orelhas, e aplaudi-me por desde há
muito ter achado que o rei só a si amava e só para si contava e
era para si mesmo o seu último fim37.

E finalmente, no termo da sua vida, esse rei por quem Saint-Simon


demonstra tanta paixão e tal admiração — «Nunca, aos olhos do mun­
do, nada fez de inconveniente nem de arriscado; no mínimo gesto, no
andar, no seu porte, em toda a sua postura, usou de todo o comedi-
mento (...). O que o tornava admirável, era manter-se sempre na mes­
ma»38 —, esse rei deixa entrever sofrimento, até mesmo fragilidade:
abandona-se por um momento ao remeter o seu testamento à rainha
de Inglaterra e aos componentes do parlamento, não deixando de lhes
dizer, ele «tão senhor de si e de dizer o que queria e como queria,
que o seu testamento lhe havia sido extorquido, e que o haviam obri­
gado a fazer o que ele não queria e que ele achava não dever fazer»39.

As maneiras de dissimular

Entre as vozes que vão denunciar esta sociedade da corte contam-


-se também as dos moralistas; daqueles que escrevem para «corrigir
os erros» do público. A de La Bruyère em primeiro lugar. Nas suas

177
Réflexions sur les caractères et les moeurs de ce siècle™, denuncia ener-

vícios da sociedade da corte: a falsidade.

Um homem que conhece a corte é senhor do seu gesto, dos


seus olhos, do seu rosto; é profundo e impenetrável; dissimu­
la os maus ofícios, sorri aos seus inimigos, reprime o seu hu­
mor, disfarça as suas paixões, desmente o seu coração, fala e
age contra os seus sentimentos. Todo este grande refinamento
não passa de um vício, que se chama falsidade, algumas vezes
tão inútil ao cortesão para sua fortuna como a franqueza, a
sinceridade e a virtude41.

«Os sentimentos do coração são aqui nulos», dirá Mercier um sé­


culo mais tarde nos seus Tableaux de Paris. Para La Bruyère, a falsi­
dade do homem da corte é tanto um traço psicológico como um
comportamento visível e manifesto, uma atitude e uma disposição do
rosto. Afecta todos os traços do homem exterior, tanto a sua fisiono­
mia como a sua linguagem. E certo que perde o sentido das palavras,
«não nomeando as coisas pelo seu nome», e todo o julgamento mo­
ral. Mas sobretudo desfigura-se:

Nada há que desfigure certos cortesãos como a presença do


príncipe: a custo os consigo reconhecer pelos seus rostos; os
seus traços ficam alterados e a sua postura aviltada42.

O excesso de cálculo na aparência desaparece e deixa ficar a nu a


fealdade do homem interior sob a máscara do cortesão. Prefiguração,
de novo, da sensibilidade às mentiras e aos trejeitos do rosto que o
século xvm soube descobrir.

Distingue-se em todas estas fisionomias da corte a inquietação


que toda a afectação do rosto não disfarça inteiramente, o riso
não é verdadeiro e as carícias são contrafeitas43.

La Bruyère condena decerto o excesso, o que Gracian não desa­


provaria, mas também o cálculo e as suas consequências: produzir
um homem predizível, de comportamento mecânico e regrado; um
autômato sem interioridade, superfície e maquinismo cujos desígnios,
que julga secretos, são na realidade transparentes de tal forma se
mostram previsíveis. Para terminar, o que é o cortesão? Um relógio
com o seu mecanismo44. Ou então, dirá Mercier, uma superfície, uma
«figura de tapeçaria» em que

178
o trabalho está escondido atrás da tela; e em que a etiqueta
dispôs tão bem os respectivos movimentos, que as palavras,
os passos e as reverências não derivam uma linha43.

A crítica do cálculo do eu na disciplina da corte conduz assim La


Bruyère à ideia do carácter vão e irrisório da dissimulação. Mas ela
leva-o mais longe: a opor um mundo de profundezas, de autencidade,
em que a composição do eu está ausente, a um mundo feito de super­
fícies, mundo da malignidade e do artifício; mais mundo da alma que
mundo do espírito, mais mundo do povo que mundo dos cortesãos.
La Bruyère anuncia então Rousseau:

Ali, mostram-se ingenuamente a grosseria e a franqueza; aqui,


esconde-se uma seiva maligna e corrompida sob a capa da deli­
cadeza. O povo nunca tem espírito e os grandes não possuem
alma: aquele tem um bom fundo, sem qualquer exterior; estes
têm apenas exterior e uma simples superfície46.

Para além disto, La Bruyère procura ainda imaginar a identidade


real de cada indivíduo. Demarca-se então do mundo de Gracian regi­
do por separações de classe que reflectem diferenças de nascimento,
inscritas no indivíduo. Ele agarra-se à marca social original que, em
L’Homme de cour, distingue para sempre o cortesão do homem vul­
gar. O homem é produto tanto das circustâncias como do nascimen­
to; o homem singular «no fundo e em si mesmo não se pode definir».
Poderá então conhecer-se verdadeiramente o homem, pergunta o mo­
ralista, se a vida e o seu curso alteram a sua natureza original, masca­
ram a sua singularidade? A civilidade praticada na corte será então
como quer que seja o maior obstáculo ao conhecimento da natureza
do homem: ela uniformiza as aparências, reveste com a mesma más­
cara o rosto singular de cada indivíduo.

Aquele que só viu homens polidos e razoáveis não conhece o


homem, só o conhece em parte: qualquer diversidade que se
encontre nas compleições ou nos costumes, o trato do mundo
e a delicadeza dão as mesmas aparências, faz com que se pare­
çam uns com os outros pelos exteriores que agradam recipro­
camente e que parecem comuns a todos47.

Crítica do cálculo, da máscara e da dissimulação, procura sob o


verniz ou a mecânica das aparências de uma identidade real e singu­
lar, reconhecimento no homem do povo de uma autenticidade origi­

179
nal, anterior à corrupção dos costumes aristocráticos, crença numa
origem livre e ingênua onde a natureza e a virtude coincidem: na mo­
ral do Grande Século existe um conjunto de temas pré-rousseauistas
que anunciam a transformação das concepções de sensibilidades no
Século das Luzes. Mas mais parodoxal ainda é poder-se encontrar
no século xvii, mesmo dentro da definição de civilidade, certos ele­
mentos que, nas máscaras, nos rituais, nos constrangimentos e nas
hierarquias anunciam um ideal de indivíduos mais autônomos e tam­
bém mais iguais. Nos costumes e nos corpos, nas fisionomias e nas
mentalidades, começam a inscrever-se essas regras de comedimento,
de distância, de respeito e de reciprocidade que preparam a emergên­
cia do indivíduo moderno.

Uma máscara «natural»

É assim com La Rochefoucauld. Também ele, nas suas Réflexions


ou sentences et maximes morales™, se opõe à perspectiva de Gracian
embora de maneira diferente: parece que não compartilha do pré-
-rousseauismo de La Bruyère, insistindo pelo contrário e longamente
mais nas virtudes da delicadeza do que nas de um suposto estado na­
tural. Virtudes, ou antes componentes políticas da delicadeza, às
quais também Mercier voltará, decerto num tom menos moral e de
diferente política do de La Rochefoucauld.

O homem que vive em sociedade e numa sociedade em que as


classes são desiguais, em que as funções se cruzam, bem de­
pressa sente a necessidade de um suplemento das leis, que é a
delicadeza-, ela traz uma espécie de igualdade e anuncia um
fundo de benevolência49.

No trato entre gente honesta, La Rochefoucauld lembra que são


indispensáveis a discrição, a reserva e o respeito.

Pode-se falar-lhes das coisas que lhes dizem respeito, mas


apenas tanto quanto o permitirem, e deve usar-se de muito
comedimento; há delicadeza e até algumas vezes humanidade
em não entrar demasiado nos recônditos do seu coração; têm
por vezes dificuldade em deixar ver tudo o que nele conhecem
e ainda mais quando se penetra no que eles não conhecem50.

180
A delicadeza exige assim não desvendar o outro. A máscara do
parecer permite decerto o cálculo que Gracian elabora; a sua falsida­
de desperta, para La Bruyère, a nostalgia de uma sinceridade perdida.
Mas não convém arrancá-la ao outro para pôr o coração a nu. A más­
cara da civilidade tem aqui de precioso o proteger e de essencial pôr o
indivíduo ao abrigo do que, no olhar do outro, viria desapossar o eu.
Existe assim em La Rochefoucauld um modelo, baseado nas con­
dutas e nas práticas de circunspecção e de civilidade, do sentimento e
da delimitação do eu face ao outro. Este modelo circunscreve o espaço
pessoal de cada um no espaço social. Exprime-se nele um conjunto
de exigências que definem atitudes perante o eu como comportamen­
tos perante outrem: na relação de cada um consigo mesmo e com o
outro impõem-se a moderação, a reserva e a discrição. Constitui-se
para todo o indivíduo um espaço da medida do eu que deveriamos
aqui entender literalmente como delimitação, constituição de um es­
paço privado, de uma dimensão interior, de um território do íntimo.
A civilidade é também um recinto em que o indivíduo é senhor de si,
ela é propriedade privada de um território íntimo, fronteira do que
respeita ao eu. Mas a constituição de uma esfera pessoal onde o indiví­
duo é senhor de si e cujas regras de civilidade proíbem o acesso implica
a necessidade de «manter as distâncias» no trato com os homens.
O comedimento do eu impõe um certo afastamento do outro, uma
proximidade distanciada. As relações interpessoais são concebidas no
espaço de uma ética da distância que parece o inverso do espaço polí­
tico do domínio de que Gracian desenhou os lugares, os contornos e
as artimanhas. O espaço da ética obedece a um outro olhar, o da vi­
são longínqua do outro, de um ponto de vista distante que respeite o
afastamento entre os corpos e não procure esquadrinhar as consciên­
cias através dos detalhes da fisionomia. Não pretende, ao contrário
do olhar que estrutura o espaço político de Gracian, fazer «a anato­
mia perfeita da capacidade das pessoas», «decifrar todos os segredos
mais escondidos nos corações», visão aproximada que é influência so­
bre o outro, um corpo a corpo.

Assim se devem conservar as distâncias para ver os objectos, é


preciso também mantê-las para com a sociedade: cada um tem
o seu ponto de vista, segundo o qual quer ser olhado; a maio­
ria das vezes tem-se razão em não querer ser observado de
muito perto, não há quase homem algum que queira, em to­
das as coisas, deixar-se ver tal como é51.

181
Assim, para La Rochefoucauld, no espaço público deve constituir-se
uma ética do olhar baseada num ideal de comedimento, de distância e
de reciprocidade', «ter um ponto de vista» é escolher o ponto «de on­
de se quer ser olhado». E ter liberdade de mostrar, mas sobretudo a
de não se deixar ver. A de reivindicar uma opacidade que protege, de
restituir ao rosto os seus direitos e a sua legitimidade. A máscara da
civilidade pode pois não ser o lugar dos artifícios, o instrumento dos
cálculos, o sinal de uma conformidade ou obstáculo à efusão das au-
tenticidades. Há em La Rochefoucauld a concepção de uma máscara
natural, isto é singular, no sentido que a cada um convém.

Há um ar que convém à figura e aos talentos de cada pessoa;


perde-se sempre quando é abandonado para se tomar um ou­
tro. Deve-se tentar conhecer aquele que nos é próprio, nunca
o abandonar e aperfeiçoá-lo tanto quanto possível52.

A aparência «natural» é assim o efeito de uma harmonia pessoal:


é preciso mostrar esse «ar» que assenta aos «talentos». A harmonia é
singular, é uma proximidade em relação a si mesmo, que faz com que
não nos esqueçamos de nós, com que não se perturbe a concordância
das maneiras, da figura, do tom e das palavras em virtude de algo fal­
so e estranho a si mesmo. O natural é então uma ética e uma estética
da expressão do eu que poderá, mais seguramente que a dissimulação,
permitir agradar no universo da mundanidade aristocrática.

Em virtude das vantagens ou desvantagens que tenhamos re­


cebido da natureza, agradamos na proporção em que temos
conhecimento do ar, dos tons, das maneiras e dos sentimentos
que convêm à nossa situação e à nossa figura, e desagradamos
na proporção em que deles nos afastamos53.

Existe assim em La Rochefoucauld como em La Bruyère, embora


de maneira sensivelmente diferente, uma exigência, um ideal de rela­
ção consigo e com o outro, esse mesmo ideal de que Rousseau saberá
exaltar a expressão: o da sinceridade e da autenticidade54.

Dos «entraves salutares»: civilidade e cidadania

O governo do eu, a disciplina do corpo e do rosto, os constragi-


mentos que regem a fisionomia e a expressão, as regras que se devem
observar no comportamento em relação a outrem, assim como o con­

182
junto dos preceitos morais que dão sentido a essas atitudes e a essas
condutas — numa palavra, aquilo a que se chama «civilidade» no sé­
culo xvn —, são assim objectos complexos, que não se reduzem à ló­
gica da disciplina ou à simples hipótese de recalcamento do sentimento.
Vê-se desenharem aí os traços de uma subjectividade moderna, em
particular sob a forma de uma partilha psicológica em cada um entre
as exigências do domínio do eu e da expressão do sentimento. Foi
sem dúvida no final do século xvm que esta divisão foi mais profun­
damente sentida nas figuras opostas da impassibilidade e da efusão.
Assim, quando Madame du Deffand evoca Madame de Jonsac: «Ela é
um ser de uma espécie diferente da nossa; é impassível, isto é, sem
paixões, sem sentimentos»55. Espécie estranha à Madame du Deffand,
que confia a impossibilidade de governar humores e sentimentos:

Não sou senhora do meu humor, já não posso escondê-lo


nem reprimi-lo56 (...). Não se é de modo algum senhor dos
seus pensamentos e dos seus sentimentos; é-se apenas, até um
certo ponto, da sua conduta e das suas acções5'.

O império do sentimento alarga-se e apodera-se das almas. Num


elogio apaixonado da espontaneidade, Julie de Lespinasse grita o seu
«ódio» à prudência e até à discrição, o seu amor ao abandono, ela
que «só quer agir ao primeiro movimento»58. Isto leva o final do sé­
culo a projectar nos retratos opostos de mulheres e homens racionais,
frios e indiferentes (Madame de Maintenon, Necker) por um lado;
apaixonados, calorosos e sensíveis (Madame de Sevigné, Rousseau)
por outro, a tensão íntima e diferentemente inscrita em cada um, mas
por todos sentida59:

Existe grande distância entre os sentimentos que se dominam


e aqueles que nos dominam (...)60.

Mercier denuncia ainda com Rousseau o medo que o século expe­


rimenta perante o entusiasmo e a franqueza: a desconfiança em rela­
ção à generosidade, o escárnio pelo ardor das almas, a quantidade de
espíritos frios e secos. Para concluir:

Pergunta-se o que significam o calor, o patriotismo e o amor


do bem público. Num século de inércia, em que nada se pode
decidir (...) o grande erro como o grande mal do nosso século
é recear tudo e afastar as almas fortes (...)61.

183
Contudo a civilidade é necessária. Mercier considera as suas re­
gras tanto como garantias como constrangimentos, entraves salutares,
os únicos que permitem a vida em sociedade e a constituição de uma
sociedade civil.

É bom instituir estas regras subtis e fixas que, como entraves


salutares, detêm o salto demasiado impetuoso da vaidade e do
orgulho mesmo legítimo. Assim, o ar, o tom, o gesto, o acen­
to e o olhar são sujeitos a usos que se devem respeitar, e essas
formalidades aceites enriquecem o prazer da harmonia em vez
de o destruir62.

As formas aproximam e põem à distância, unem os homens e pro­


tegem-nos63.
As regras e as práticas da civilidade do século xvii tiveram assim
efeitos ambíguos e paradoxais. Querendo inscrever nos corpos, nos
rostos e na língua a lembrança da ordem social, o estilo dos homens
da corte contribui para modelar um homem igual, um homem sem
paixões.

Mas porque é que — assim se interroga Mercier — o estilo da


gente da corte é simples? (...) Porque nele nunca se vêem pai­
xões. Elas perderam neste país não somente a sua expressão
como até o seu acento. Tudo é uniforme porque tudo se tra­
balha por detrás da cortina (...)64.

As regras de civilidade constrangem o rosto à convenção e os cor­


pos à distância. Elas contribuem assim para restituir ao indivíduo a
opacidade necessária. E ao abrigo dessa opacidade pode constituir-se
em cada um um espaço interior. Esse mesmo espaço é ambíguo: espa­
ço político de dominação, quando a civilização adopta a máscara im­
penetrável do príncipe, abriga os seus segredos e permite o domínio
do outro. Mas também espaço social de reconhecimento do outro, se­
melhante a si, ao qual liga e do qual medeia uma distância recíproca.
A máscara da civilidade permite assim a autonomização de um espaço
individual de identidade, a inscrição de um espaço social de reciproci­
dade no interior de um espaço político de dominação: a constituição
de um indivíduo e de uma sociedade civil numa dominação de estado.
E aí justamente que se pode sentir o laço entre civilidade e cidadania-.
o ideal de um indivíduo autônomo — dono e responsável dos seus
actos e dos seus propósitos, sem usurpar outrem — não se desenhava
já, de maneira complexa e contraditória, nos corpos, na fisionomia e
na expressão, através das exigências da etiqueta e da civilidade? E o
que Mercier afirma com força quando diz:

184
As virtudes civis, bem analisadas, resumem-se às da mais pura
razão. No fundo da alma de todos os homens está inscrita
uma cláusula secreta que os obriga a meditar nela. Tem-se ne­
cessidade do acolhimento e das boas maneiras de outrem (...).
As leis já quase nada têm a fazer quando os costumes fazem
quase tudo65.

NOTAS

1 Mirabeau, L’Ami des hommes ou Traité de la population, Avignon, 1756-1760;


Z/Ami des femmes ou Traité de la civilisation, citado em E. Benveniste, Problèmes de
linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, t. I, p. 339.
2 Ibid.
3 Ibid.
4 J.-J. Rousseau, Discours sur les sciences et les arts (1750), Paris, Garnier-Flamma-
rion, 1971, p. 40.
5 J.-J. Rousseau, Discours sur Vorigine et les fondaments de Tinégalité parmi les
hommes (1754), Paris, Garnier-Flammarion, 1971, p. 210.
6 Ibid.
7 Ibid., p. 216.
8 N. Elias, La société de cour, op. cit., p. 110
9 «A competição da vida na corte obriga os homens que dela fazem pane a controlar
as suas paixões, a restringir-se nas suas relações com os outros a um comportamento
judiciosamente calculado e cambiante. As estruturas desta sociedade e a natureza das
relações sociais deixam pouco espaço para as manifestações afectivas espontâneas»
(ibid. pp. 107-108).
10 Mercier, op. cit., tomo VIII, capítulo DCXIV, p. 66.
11 Ibid., tomo IX, capítulo DCXIV, p. 73.
12 Ver infra, p. 263.
13 Ver J. Revel, op. cit., e R. Chartier, op. cit. Estes trabalhos sublinham as ambi­
guidades da civilidade do século xvii. Esta está entre um universalismo de essência
erasmiana e cristã e as necessidades de um particularismo que reclama a adaptação de
comportamentos às circunstâncias. Esta tensão ainda obedece a outra ambivalência: a
civilidade pode ao mesmo tempo assegurar aquilo a que Courtin denomina a «con­
tenção» («o acordo entre o que está dentro e o que está fora num homem»), procurar
uma certa transparência do indivíduo mas também dissimular o homem interior sob
a máscara de maneiras convenientes. Uma tal discordância entre o ser e o parecer
existe sob as civilidades barrocas que regem os comportamentos da cone. «O concei­
to de civilidade está com efeito situado no pleno centro da tensão entre parecer e ser
que define a sensibilidade e a etiqueta barrocas. Nos antípodas de uma concepção
que percebe nos comportamentos exteriores uma tradução exacta e sujeita das dispo­
sições do ser, a civilidade do século xvn aparece antes do mais como um parecer so­
cial (...). A civilidade modifica-se então em falso parecer e passa de representação le­
gítima a máscara hipócrita» (Chartier, op. cit., p. 60). Este divórcio entre ser e
parecer nas civilidades barrocas vai ser uma das origens das críticas que serão dirigi­
das à civilidade, uma das origens do seu declínio.
14 Balthazar Gracian, L*Homme de cour(\M7), Paris, Champ libre, 1980, pp. 57-58.

185
15 Maquiavel, Le Prince (1516), Paris, Garnier-Flammarion, 1980, p. 123.
16 Gracian, op. cit., p. 77.
17 Ibid., pp. 24-26.
18 Ibid., p. 168.
19 Gracian, Le Héros (1637), Paris, Champ libre, 1979, pp. 11-12.
20 Ibid., p. 15.
21 Ibid., pp. 11-12.
22 Ibid., p. 53.
23 Ibid., p. 135.
24 Ibid., pp. 7-8 (itálico nosso).
25 Pode reconhecer-se nesta passagem da máscara imóvel de inexpressividade à fi­
gura móvel de expressividade regulada os dois modelos da dominação pela aparência
que E. Canetti pode discernir nas figuras do poder: a do soberano hierático, fixado
na imobilidade, a grandeza e a distância, e a do chamane, cujo poder reside nas
transformações metamórficas que ele sabe realizar. A impassibilidade do rosto do
cortesão provém de uma «interdição de metamorfose» que parece uma conformidade
ao primeiro modelo: identificação ao corpo imóvel e eterno do rei, inscrição numa
estética da dominação em que as representações se originam na pedra da estatuária
ou no bronze das esfinges, simbologia de uma forma de governo dominada pelo se­
gredo e pelo silêncio. O jogo fisionômico sobre as aparências parece em contraparti­
da aludir ao segundo modelo: alusão ao corpo terrestre e movível do rei, referência a
uma estética política do artifício em que o teatro fornece a representação, símbolo
talvez de formas políticas onde reina a conspiração. Ver E. Canetti, Masse et puissan-
ce (1960), Paris, Gallimard, 1966, pp. 405-407; ver igualmente E. Kantarowicz, The
King’s two bodies, a study in Medieval political theology, Princeton, 1957.
26 Gracian, L'Homme de cour, op. cit., p. 29.
27 Ibid.
28 E no retrato que traça de Mme. de la Vallière, tão contrário ao seu, que ele deixa
adivinhar melhor o que foi o seu projecto: observar, pintar o seu tempo no mínimo
pormenor. Confia até que ponto era estranho a Mme. de la Vallière «o seu afasta­
mento constante de todo o convívio e de não se meter em nada, são coisas que em
grande parte não são do meu tempo ou de que gosto pouco» (Saint-Simon, Anédoc-
tes, Scènes et Portraits, extraits des Mémoires, Paris, Tallandier, 1925, p. 57).
29 Ibid., p. 196.
30 Ibid., p. 129.
31 Ibid., p. 136.
32 Ibid., p. 172.
33 Ibid., p. 114.
34 Ibid., pp. 172-173.
35 «O abade Dubois era um homem pequeno e magro, comprido, enfezado, de
peruca loira, com parecer de fuinha. Era da sua natureza dizer a mentira mais pesada
com ar simples, direito, sincero, muitas vezes envergonhado. Teria falado com graça
e sinceridade se com o desejo de penetrar nos outros quando falava não tivesse temor
de avançar mais do que queria, e isso não o tivesse acostumado a um gaguejar artifi­
cial (...)» {Ibid., p. 190).
36 Ibid., p. 192.
37 Ibid.
38 Ibid., pp. 225 e 247.
39 Ibid., p. 245.
40 La Bruyère, op. cit.
41 Ibid., p. 202.

186
42 Ibid.., p. 203.
43 Mercier, op. cit., tomo V, cap. CCCXLIV, p. 259.
44 «... as rodas, as molas, os movimentos estão ocultos; é como se de um relógio
só aparecesse o ponteiro, que insensivelmente avança e dá a sua volta: imagem do
cortesão» (La Bruyère, op. cit., p. 217). E igualmente este retrato de Fontenelle: «Pa-
recia-se com uma pequena máquina muito delicada que duraria eternamente se a
pousassem a um canto e nunca lhe mexessem. Ele nunca tinha chorado, nunca entra­
ra em cólera... Disse-lhe um dia: — Senhor de Fontenelle, nunca ristes? — Não,
nunca fiz ah, ah!... Eis a ideia que fazia do riso» (Mme. Geoffrin, citado em Glotz e
Maire, op. cit., p. 119).
45 Mercier, op. cit. tomo IX, cap. DCLXXVI, p. 13.
46 La Bruyère, op. cit., p. 232.
47 Ibid., p. 298.
48 La Rochefoucauld, op. cit., pp. 165-166.
49 Mercier, op. cit., tomo IX, p. 186 (itálico nosso).
50 La Rochefoucauld, op. cit., pp. 165-166.
51 Ibid., p. 166.
52 Ibid.
53 Ibid., pp. 168-169.
54 Sobre a sinceridade, La Rochefoucauld alarga-se longamente, e talvez mais ain­
da sobre a confiança: «A sinceridade é uma abertura de coração que nos mostra tal
como somos; é um amor da verdade, uma repugnância em disfarçar-se... A confiança
não nos deixa tanta liberdade, as suas regras são mais rigorosas, exige mais prudência
e contenção» (op. cit., p. 171).
55 Mme. du Deffand, op. cit., p. 19.
56 Ibid., p. 130.
57 Ibid., p. 110.
58 Julie de Lespinasse, op. cit., p. 39.
59 Assim a oposição entre Mme. de Maintenon («continuo a achar que [Mme. de
Maintenon] não era falsa, mas era seca, austera, insensível, sem paixão») e Mme. de Sé-
vigné, em quem, pelo contrário «tudo é paixão, que tudo afecta» (Mme. du Deffand,
op. cit., pp. 41-42). Do mesmo modo a antinomia entre os retratos de Neckcr e dc
Rousseau (ver Glotz e Maire, op. cit. cap. IX).
60 Mme. du Deffand, op. cit., p. 160.
61 Mercier, op. dt., tomo VI, cap. DXVII, pp. 195-196.
62 Ibid., tomo IV, cap. CCCXXI, p. 102.
63 «Para além do encanto da cordialidade, encontra-se aí uma certa troca de idéias
e de pequenos serviços que aproximam a maneira de ver e de sentir, e que colocam
os homens em uníssono (...)» (Mercier, op. cit., tomo IV, cap. CCCXXII, p. 105).
64 Ibid., tomo VIII, cap. DCXIV, p. 66.
65 Ibid., tomo XI, pp. 188-189.
Conclusão

O HOMEM OLHADO COM ATENÇÀO

A história natural da expressão no século xix é marcada por uma


ruptura importante: quando, em 1874, Charles Darwin publica A Ex­
pressão das Emoções no Homem e no Animal, o estudo da expressão
facial transformou-se ao ponto de parecer que já não tem a ver com
os mesmos objectos. Darwin consultou os antigos tratados, «de uma
utilidade medíocre ou nula»1. Observou as pinturas de rostos sem
qualquer proveito. Se reconhece nas Conferences de Le Brun «algu­
mas boas observações», é nos seguintes termos que relata a análise
que o pintor fez do medo:

Julguei que valia a pena citar as frases precedentes como


exemplo das estranhas insanidades que foram escritas sobre a
questão2.

O homem orgânico e o homem sensível

Doravante acabou-se o movimento interior da paixão inexprimí­


vel, transcrita na convenção imóvel das figuras. O observador regista
a emoção visível apenas: e com a emoção, a expressão baseia-se, para
Darwin, nos aspectos exclusivamente fisiológicos3. Mas ao mesmo tem­
po que o objecto, o que mudou foi a posição do indivíduo que observa.
O desdobramento, que supunha a introspecção preconizada pelos anti­
gos tratados, foi corrigido por uma estreita divagem no acto de obser­
var, de que se vê banida toda a introspecção. O indivíduo é agora entre­
gue a um observador exterior por intermédio de um conjunto técnico
de regras e de processos de observação cuja rigorosa codificação afas­
ta sempre mais o indivíduo observado do indivíduo observador. No

189
texto de Darwin toda a retórica é assim posta de parte. A linguagem
já não é constitutiva do saber. Tanto na observação da expressão hu­
mana como nas suas formas de descrição, são esquecidas as recomen­
dações de Buffon no seu Discurso sobre o estilo. A expressão humana
é agora colhida a partir da observação experimental, mas também de­
rivada de um continuum que põe o homem em relação com a sua ori­
gem animal: no próprio princípio da expressão das emoções não se
encontra já a linguagem, mas o organismo.

Enquanto o homem e os animais forem considerados como


criações independentes, de certeza que um obstáculo invencí­
vel paralisará os esforços da nossa curiosidade natural para
prosseguir tão longe quanto possível a procura das causas da
expressão4.

Tal deslocamento levanta então no campo da história natural do


homem, da ciência do homem em vias de constituição, questões iné­
ditas: a da universalidade das expressões faciais, bem como a da rela­
ção entre hábito individual e hábito hereditário na compreensão da
gestualidade humana’. Mas esse deslocamento contribui ao mesmo
tempo, no interior desse campo, para afastar a questão da historicida-
de da expressão e tende a tirar todo o sentido à história da expressão.
No entanto, a decifração do corpo a partir dos seus sinais mani­
festos efectuada por um adivinho ou um médico antigo, um fisiogno-
monista da idade clássica, um naturalista moderno ou um psicanalis­
ta, não é a mesma, embora possa apresentar certas analogias muito
gerais. As marcas gravadas que Cardan destaca, as figuras de paixão
que Le Brun pinta, o vivo movimento dos sentimentos que Lavater
tenta agarrar, o reflexo das emoções que Darwin observa ou os sinto­
mas de uma linguagem que se exprime no corpo que Freud observa,
não são sinais da mesma natureza e não permtiem o mesmo tipo de
interpretação. Não supõem nem a mesma posição para quem os ob­
serva nem a mesma identidade de quem os produz.
Do mesmo modo a asserção vaga e geral segundo a qual o corpo
desde sempre «falaria» ganha sentido no processo de longa duração
histórica em que a pouco e pouco o corpo se constitui como sinal: li­
vre, primeiramente, e em que Deus imprimia os seus mandamentos,
onde os astros depositavam o seu cunho eterno, em que ainda se po­
dia ver o reflexo das semelhanças animais; depois retórica, submetendo
o corpo ao império das figuras e das posturas; linguagem traduzindo
no rosto a singularidade, a sensibilidade do indivíduo; organismo
ignorando a interioridade individual na língua das reacções e dos sin­

190
tomas; finalmente discurso procurando a conjunção problemática en­
tre o indivíduo e o seu corpo.
A história da expressão o indica: sem dúvida que o indivíduo se
aproximou de si mesmo. O século xix vê estabelecerem-se novas pro­
ximidades ao eu, feitas de escuta do homem singular e sensível6. Ao
mesmo tempo, porém, o homem, noutros aspectos, afastou-se de si
mesmo. A constituição de conhecimentos científicos e especializados
tornou mais clara a separação em cada um do homem orgânico e do
homem sensível. E mais ainda, o indivíduo sente e experimenta essa
separação sob a forma daquilo que Bichat analisa como um conflito
entre os movimentos «simpáticos» e os movimentos «voluntários»,
uma luta das vísceras e do cérebro, um corpo a corpo entre paixões e
vontade.

Um homem sabe por carta e perante uma assembléia uma no­


tícia que tem interesse em esconder; de repente a sua fronte
enruga-se, ele empalidece ou os seus traços animam-se segun­
do a paixão que está em jogo: são os fenômenos simpáticos
provocados por algumas vísceras abdominais subitamente
afectadas por essa paixão, e que, por consequência, pertencem
à vida orgânica. Bem depressa este homem se constrange; a
sua fronte desanuvia-se, o seu rubor reaparece ou os seus tra­
ços fecham-se, embora o sentimento interior subsista: é o
movimento voluntário que domina o simpático; é o cérebro
cuja acção se sobrepôs à do estômago, do fígado, etc.; foi a
vida animal que retomou o seu império7.

O controlo das paixões não poderá a partir de então revestir o


mesmo significado. A consciência mais aguda do que nos movimen­
tos orgânicos escapa ao domínio da vontade torna mais delicado e
mais complexo o exercício do domínio de si, desloca as formas de re­
lação com o eu. Conhecer-se e possuir-se: esta procura deverá, de fu­
turo, prosseguir por outras vias.

Física popular e física burguesa: a divisão dos rostos no século xix

Tanto na história social como na história natural, o deslocamento


torna-se mais nítido no século xix, derivando nas próprias formas de
descrição do corpo individual como sinal de identidade psicológica

191
e de dependência social. A literatura é disso testemunha: onde La
Bruyère descrevia sob «caracteres» indivíduos definidos num mundo
fechado, a literatura do século xix descobre as massas. Sociedades
anônimas, massas operárias, multidões das grandes cidades, oferecem
nos romances naturalistas e nas «fisiologias» um novo universo de re­
ferência; com as suas personagens saídas da massa, vindas dela e lu­
tando por dela se libertarem8. Desenvolve-se o anonimato do número,
aberto e flutuante. A certeza quanto às identidades esbate-se. Dese­
nha-se um medo do desconhecido que incita a manter-se à distância
de outrem. Na vida social, as classes sociais enfrentam-se pelo olhar:
cada um investiga o desconhecido no outro. Na multidão das ruas, é
preciso saber a quem se fala. Estamos a lidar com um burguês ou
com um proletário? Com um cidadão pacífico ou com um homem
perigoso? Com uma mulher honesta ou com uma mulher de má vi­
da? Com alguém com quem nos podemos dar ou com alguém que
devemos evitar? E se acontece ao burguês analisar o homem do povo
com a distância do desdém, este último encara-o por sua vez: as clas­
ses sociais observam-se, julgam-se e defrontam-se a partir das suas
aparências físicas, dos traços inscritos nos seus corpos e nos seus ros­
tos como se se tratasse de caracteres raciais, em que o olhar procura
adivinhar o vestígio dos caracteres morais9.
Assim, o anonimato da multidão, mesmo que proteja, inquieta
outro tanto: obriga a decifrar a personalidade10. E preciso poder dis-
tinguir-se, e o corpo de outrem torna-se uma colecção de detalhes a
destacar, de índices a interpretar. Acentua-se deste modo a divisão
dos corpos e dos rostos na constituição e no antagonismo de um físi­
co popular e de um físico burguês, de que o romance naturalista, as
«fisiologias», o realismo psicológico e social do retrato, a caricatura
de imprensa e a fotografia fixam os traços.
Tornam-se testemunhas da violência, da torpeza e da perigosidade
atribuídas ao físico popular. As classes trabalhadoras são classes peri­
gosas: o tipo popular esconde o tipo assassino. Aos criminosos que
constituem as camadas miseráveis dos Mistérios de Paris, Eugène Sue
atribui os caracteres sob os quais Lavater e Gall descrevem o homem
degenerado. Na observação da fisionomia popular, cruzam-se de no­
vo a história social e a história natural: enquanto nasce o romance
policial sob a pena do médico (Conan Doyle), o rosto criminoso é
objecto de uma investigação onde o inquiridor saberá ler os sintomas
do crime11. Os relatos do Journal de la Société Phrénologique de Paris
são popularizados pela imprensa por ocasião de casos de crime.
Constitui-se, ao mesmo tempo que o retrato antropométrico da fisio­
nomia perigosa, o tipo popular da «cara de assassino». Não se dão

192
grandes crimes ou execuções capitais sem considerações fisiognomó­
nicas: Lavater e Gall são sempre evocados pela acusação, testemunhas
de acusação da bestialidade da fisionomia criminosa, que eles pró­
prios fazem derivar da animalidade12. As suas deformações são desta­
cadas pelos esboços de audiência, os detalhes ampliados pela caricatura.
O universo da rua — o das velhas porteiras, dos ébrios, dos trapeiros
de Daumier ou Traviès — é o do anonimato das fealdades onde pode
sempre surgir o rosto da violência e do crime. Mas o físico burguês
também não é poupado: a burguesia vista pelo povo é barriguda e lu-
xuriosa, o seu rosto egoísta e hipócrita. As caricaturas do Charivari
exibem a fealdade burguesa do seu pessoal político.
Assim, as lutas políticas e sociais traduzem-se sobretudo pelo
conflito das aparências em que o rosto do outro daria, na ampliação
grotesca do detalhe visível, a natureza escondida da sua moralidade
corrompida. Século de conflitos sociais, de afrontamentos de classe, o
século xix viu no entanto desenhar-se lentamente um movimento que
leva todas as classes sociais, para além da burguesia e das classes mé­
dias, ao individualismo. As camadas populares são decerto entendidas
como vivendo numa espécie de promiscuidade animal, mas, como
nota muito justamente Perrot:

Um triplo desejo de intimidade familiar, conjugal e pessoal


atravessa o conjunto da sociedade (...). Exprime-se sobretudo
por uma maior repugnância em sofrer os constrangimentos da
promiscuidade da vizinhança e por uma repulsa acrescida do
panoptismo dos espaços colectivos (...) ou dos controlos exer­
cidos sobre o corpo13.

Sob as clivagens sociais, o individualismo progride assim pouco


a pouco. E o desenvolvimento da medicina, a higiene, a educação, a
migração das populações, contribuem então de maneira ainda pouco
perceptível para homogeneizar os tipos físicos, para esbater lenta­
mente os seus antagonismos e apagar na constituição das classes mé­
dias citadinas as origens sociais dos rostos.
Não deixa porém de acontecer que a fisiognomonia flutue con­
soante a época. Ela estabelece as formas novas de separação dos cor­
pos e de divisão dos rostos; procura a ordem natural das hierarquias
sociais recentemente aparecidas na multidão indiferenciada dos rostos
humanos. Contribui para uma morfologização e uma antropologiza-
ção das clivagens políticas e sociais. No Antigo Regime, o povo era
excluído do olhar soberano ou aristocrático que nele só pousava por
condescendência. Depois da revolução, a burguesia entrega-se a uma

193
« a.

Figura 16 — C. Lombroso e G. Ferrero: La femme criminelle et la prostituée, Paris,


Alcan, 1896.

194
observação cada vez mais minuciosa das classes trabalhadoras e so­
bretudo das concentrações humanas das grandes cidades: com os pro­
jectos filantrópicos, a medicina social, as grandes conquistas operárias
e o desenvolvimento da higiene, constitui-se uma antropologia das
populações operárias particularmente atenta à aparência popular, ao
corpo e ao resto do homem do povo. Passa-se então de uma observa­
ção etnográfica do homem longínquo a uma inspecção filantrópica do
homem próximo14. A necessidade de identificação torna-se cada vez
mais forte. A antropologia e a estatística nascente classificam tipos e
enumeram populações; o uso do cálculo permite a identificação, ins­
taurando desvios na massa.
Com o aparecimento das sociedades de massa, a identidade de ca­
da indivíduo tende a apagar-se, os rostos a tornarem-se anônimos.
Assim, um gesto descritivo semelhante — o estabelecimento de uma
classificação dos rostos tal como a fisiognomonia tanto produziu —
pode então mudar de sentido. Classificavam-se figuras, identificavam-
-se paixões e caracteres; no fim do século xix, as gravuras de morfo­
logia facial que ilustram as classificações da antropologia criminal de
Lombroso15 (ver figura 16) terão um outro significado. Os rostos
anônimos agrupados num quadro representam tipos na média anatô­
mica dos seus traços: o degenerado, o melancólico, o matreiro, a
prostituta, o criminoso nato ou ainda o gênio. Trata-se presentemente
de identificar indivíduos. Os retratos já não têm um nome, mas um
número. A identidade de um indivíduo é então garantida pela identi­
ficação com um tipo. Esta apreciação dos rostos mostra bem cm que
é que as investigações da aparência do corpo humano se relacionam
fundamentalmente com a questão da identidade. A história do rosto
permite assim elucidar uma parte assencial das transformações da re­
lação entre identificação de um indivíduo e a sua identidade.
Uma tal relação subentende também os fragmentos de história na­
tural do rosto de que falam as fisiognomonias quanto às práticas ime­
moriais de decifração do outro na vida social. Num caso como noutro,
viu-se pouco a pouco reconhecer a expressão como singular. Atribui-
-se progressivamente cada vez mais sentido às suas manifestações in­
dividuais.
No entanto, nem por isso se renunciou ao sonho arcaico de fazer
coincidir a identidade de um indivíduo com os traços morfológicos
estáveis e fixos — marcas divinas ou bossas do crânio — tidos por
desvendarem a natureza íntima.
Pode mesmo considerar-se que o século xix assistiu a um retorno
maciço da morfologia facial — que Camper e Lavater anunciavam à
sua maneira — nos processos de identificação tanto científicos como

195
jurídicos: à fisiognomonia vão suceder a antropologia de Bertillon e a
antropologia criminal de Lombroso. O «darwinismo social» deste úl­
timo associa na morfologia do rosto a perigosidade, a origem étnica
ou social e a animalidade. E apaga dos rostos todo o vestígio da dúvi­
da que levava Darwin a levantar a seguinte questão:

Pode-se reconhecer uma expressão criminosa, de astúcia ou


de inveja? Aliás, eu não seria capaz de dizer a partir do que é
que se poderia determinar essas expressões16.

Confundir identidade e fisionomia: sonho tenaz. É à fotografia que


caberá, na segunda metade do século, o papel de «poder» finalmente fi­
xar a instantaneidade da expressão e assegurar a reprodutibilidade dos
rostos. Singularidade das fotografias de identidade, «predilecção uni­
versal» pelo retrato fotográfico que Beaudelaire realça; fotografias
médicas do corpo que sofre («A chapa fotográfica é a verdadeira reti­
na do sábio», dizia Albert Londe, um dos fotógrafos da histeria na
Salpêtrière); identificação fotográfica dos criminosos, fabricação de
rostos anônimos do retrato-robô17: a nascença e o desenvolvimento
da fotografia revolucionam as percepções do rosto; termina uma fase
da história do rosto...

A genealogia da expressão

A expressão é um elemento crucial no desenvolvimento do indiví­


duo ocidental. Nela está toda a importância do rosto: constitui o traço
sensível do processo. O rosto é o lugar ao mesmo tempo mais íntimo
e mais exterior do indivíduo; aquele que traduz mais directamente e
da maneira mais complexa a interioridade psicológica e também aque­
le sobre o qual incidem os mais fortes constrangimentos públicos.
São em primeiro lugar os rostos o que se investiga, os olhares que se
procura surpreender para decifrar o indivíduo. Isto explica o paradoxo
central que percorre este livro e que constitui a formação do indiví­
duo moderno: este processo, que é indissociavelmente o da indivi-
dualização e também da socialização pela expressão, faz aparecer o
desenvolvimento da expressividade, incita à expressão da interiorida­
de, à manifestação dos sentimentos ao mesmo tempo que vota o ros­
to ao silêncio, relativo ou profundo, da inexpressividade.
Há pois dois pólos essenciais na expressividade individual, dois li­

196
mites expressivos no espaço dos quais as representações e as práticas
do rosto adquirem todo o seu sentido. Por um lado, o de uma ex­
pressividade súbita, brutal, incontrolada, quando o rosto manifesta
que o indivíduo está fora de si mesmo; por outro, o da impassibilida-
de de um rosto impenetrável. Trata-se evidentemente de duas possi­
bilidades extremas que se podem encarnar em figuras opostas: as da
paixão, do arrebatamento, da privação da posse do eu, da «perturba­
ção» de que falava Courtin; e, pelo contrário, as da temperança, da
moderação, do comedimento e da posse do eu.
Estas figuras adornam, em diferentes épocas, o rosto do doido ou
do sábio, do «possesso» ou do homem da corte e, mais perto de nós,
do histérico ou do burguês controlado e impávido. Elas organizam o
campo das representações literárias e picturais do corpo no século xix.
Perante o rosto de Emma Bovary, perdida pela paixão e pelos gastos,
privada da posse de si mesma, levantam-se as figuras do farmacêutico
Homais, «que só expressava a satisfação de si próprio»; ou ainda a do
senhor Bertin que Manet diz que Ingres escolheu para «estilizar uma
época, tornando-o o buda da burguesia farta, opulenta e triunfan­
te»18. Figuras enigmáticas as destes burgueses vestidos de negro cujas
fisionomias impassíveis tanto podem anunciar «a morte dos senti­
mentos» como conter «paixões de uma profundidade surpreendente».

Embora viva e jovem, a sua figura já possuía o brilho imóvel


da folha-de-flandres, uma das qualidades indispensáveis aos
diplomatas e que lhes permite esconder as suas emoções, dis­
farçar os seus sentimentos, se todavia essa impassibilidade não
anuncia neles a ausência de toda a emoção e a morte dos sen­
timentos19. O senhor Desmarets (...) jovem, possuía todas as
virtudes republicanas dos povos pobres: era sóbrio, ávaro do
seu tempo, inimigo dos prazeres (...). A sua fronte era calma e
pura; o talhe da sua figura plácido, mas expressivo; as suas
maneiras simples, tudo nele revelava uma existência laboriosa
e resignada... Havia neste jovem, como na maior parte das
pessoas que assim vivem, paixões de uma profundeza surpreen­
dente20.

Não se deveria, porém, restringir o alcance de tais oposições nem


limitá-las à distinção dos papéis tradicionais do homem e da mulher.
Tal como os homens impassíveis e as mulheres «desfiguradas» que
Mercier observa na mesa de jogo:

197
Os homens no jogo enchem-se de estoicismo: frios e imóveis,
adquirem reputação de bons jogadores. As mulheres desfigu­
ram os seus rostos encantadores como querem sem nada per­
der da sua reputação21.

Estas figuras dizem respeito a todo o indivíduo, partilham-no fre­


quentemente e dividem-no por vezes; chegam a despedaçá-lo. Há
nestas figuras opostas uma necessidade psíquica que subentende as
possibilidades expressivas: a história do rosto contribui assim para
pensar a historicidade destas estruturas fundamentais da personalida­
de moderna, a histeria e a obsessão.
A individualização pela expressão é uma socialização do indivíduo
que supõe mímicas, olhares, gestos, atitudes e posturas viradas para o
exterior e que provêm ao mesmo tempo do mais profundo do indi­
víduo; e que obedece a códigos e constrangimentos regulados por
convenções e significando simultaneamente a inefabilidade singular
da interioridade. A gênese psicológica do indivíduo contemporâneo
inscreve-se no fundo das submissões e das liberdades que o processo
de injunção paradoxal oferece22.
Este carácter paradoxal do processo de individualização pela ex­
pressão23 aparece mais nitidamente a partir do fim do século xvm;
quer dizer, a partir do momento em que a exigência de solidariedade
e autenticidade se impõe como uma injunção fundamental da expres­
sividade. «Sejam sinceros!» Eis ao que Rousseau incita os homens.
Concebe-se o seu entusiasmo, mas também a sua inquietação. Rous­
seau dá o exemplo: ele descobre-se, quer tirar as máscaras, pôr o seu
coração a nu, despojar-se de toda a opacidade e de todo o artifício.
Que a aparência seja transparência, que se extravasem enfim os senti­
mentos durante muito tempo reprimidos. Desde então vai poder-se
instaurar uma tirania individual da autenticidade24.
A sociedade civil não tinha, no entanto, desde os textos principais
que a estabelecem no século xvi, deixado de lembrar que o homem
civil, no prolongamento do homem cristão, só poderia ser comedido,
moderado e discreto, enquanto a exigência de silêncio interior peran­
te Deus passou lentamente ao silêncio exterior da igualdade de hu­
mor e de rosto face aos outros e o ideal religioso de postura teve de
adaptar-se às circunstâncias sociais da vida civil. O homem religioso
transformou-se pouco a pouco em homem prudente; a abertura aos
outros foi sempre avaliada e medida, quando não quis ultrapassar o
limiar desse «ar aberto», encanto do rosto, indispensável à permuta e
à conversação; quando todos os tratados — de civilidade cristã ou de
etiqueta de corte, de fisiognomonia ou de conversação — quiseram
erigir em modelos de conduta na sociedade civil «(...) uma certa ma­

198
neira de agir e de falar, doce e polida, que atribui o nome de civil
àquele que dela se serve correntemente»25; e quando enfim se come­
çou a ver em toda a manifestação espontânea o sinal individualmente
inquietante e socialmente condenável de perturbação: incivilidade dos
costumes, deformidade das figuras.
O domínio do eu e o controlo das paixões são elementos funda­
mentais da herança psicológica da civilização progressiva dos costu­
mes do homem moderno. Pretenderam, com a instauração e o respeito
de todas estas formas de vida civil, um ideal de sociedade mais suave,
mais agradável e mais civilizada, feita de permutas e de atenções recí­
procas: uma sociedade pacificada pelo encanto da linguagem e da ex­
pressão. Mas se o domínio do eu é uma das bases psicológicas de um
tal modelo de sociedade, não deixa de acontecer que já antes de
Rousseau a individualização pela expressão exige do homem que ele
se exprima, que o seu rosto fale, que os seus gestos tenham significa­
do. Esta sociedade fez da conversação o seu fundamento, do trato o
seu princípio e da reciprocidade o seu ideal. Como vimos, ela conde­
nou desde a sua origem, nas figuras do solitário e do taciturno, a re­
cusa do laço social pela expressão, pois soube fazer do próprio silêncio
uma linguagem. Da mesma maneira reprova mais tarde a figura do
egoísta:

(...) (os egoístas) possuem ao mesmo tempo uma alma insensí­


vel que se estampa nas suas fisionomias ávidas e uma razão li­
mitada que se revela nos seus menores discursos. Destruíram
as relações que fazem a força das sociedades; interromperam a
circulação dos serviços mútuos. Se, por infelicidade, cada um
seguisse o sistema que eles adoptaram, não haveria mais concór­
dia; apenas se veria indivíduos armados uns contra os outros26.

A sociedade civil é bem esta sociedade de silêncio e de linguagem,


de dissimulação e de sinceridade, de recolhimento em si e bem assim
de compaixão: é deste modo que as formas na vida civil aproximam
os indivíduos e os põem à distância; é assim que elas os constrangem,
mas é também assim que os protegem.
Os textos fundadores da sociedade civil pensaram-no frequente­
mente em relação à sociedade política, sem que a seus olhos as leis
substituíssem os costumes; que pudesse haver neles outras sanções
das maneiras de ser, de falar, de se mostrar, de estabelecer relações,
que não fossem as da própria sociedade civil. Quanto ao poder políti­
co, esteve frequentemente atento ao desenvolvimento e às formas to­
madas pela sociedade civil, dedicando-se a controlá-las e sonhando
domesticá-las.

199
Talvez porque suspeitasse, sem poder verdadeiramente sempre re­
conhecê-lo, que a sociedade civil é o fundamento da sociedade políti­
ca. Que nas formas ao mesmo tempo pessoais e sociais de delimitação
do eu e da permuta com outrem, foram progressivamente inventadas,
no ideal de uma sociedade feita de diálogo e de abertura comedida a
outrem, no «suplemento às leis» e na «espécie de igualdade» que
constituem a urbanidade e a delicadeza, as premissas das formas polí­
ticas da cidadania.

NOTAS
1 Ch. Darwin, L'Expression des émotions chez Vhomme et Panimal, Paris, 1874, p. 1.
2 Ibid., p. 5.
3 Apoia-se assim em L'anatomie et la philosophie de Pexpression (1806) de Sir
Charles Bell. La Physiologie ou le mécanisme de la rougeur (1839) pelo Dr. Burgess.
Le mécanisme de la physionomie humaine (1862) do Dr. Duchêne. De la physiono­
mie et des mouvements d'expression (1865) de P. Gratiolet. Wissenschaftliches System
der Mimik und Physiognomic (1859) do Dr. Piderit. E enfim em Les Príncipes de
Psychologie (1855) de H. Spencer. Esta preponderância reconhecida à fisiologia e ao
efeito do fisiológico sobre o psicológico remonta com efeito à importância que lhe
deram no virar do século J.-G. Cabanis no seu estudo Rapports du physique et du
moral de Phomme (1802) e X. Bichat nas suas Recherches physiologiques sur la vie et
la mort (1800). O primeiro pretendendo fundar um «ciência do homem» que rompa
com o dualismo metafísico ou ontológico da alma e do corpo e que procure pensar
como um facto de observação natural, na tradição dos «ideólogos», a união das con­
dições mecânicas e vitais do organismo com as manifestações da vida intelectual e
moral. Para Cabanis é precisamente essa a definição de antropologia: «Cidadãos,
permitam-me que hoje vos dê as relações de estudo físico do homem com os aspec­
tos da sua inteligência; dos do desenvolvimento sistemático dos seus órgãos com o
desenvolvimento análogo dos seus sentimentos e das suas paixões: relações donde re­
sulta claramente que a fisiologia, a análise das idéias e da moral, não são mais que os
três ramos de uma única e mesma ciência, a que se pode chamar, a justo título, «“a
ciência do homem”» (p. 59, ed. de 1844). Bichat, quanto a si, esforçar-se-á por pen­
sar o mesmo problema nas relações entre o que ele denomina por vida «animal» (o
entendimento) e vida «orgânica» (as paixões) do homem.
4 Darwin, op. cit., p. 12.
5 Também aqui esta perspectiva já havia sido traçada por Cabanis: ao reinscrever
a antiga tradição fisiognomónica nas «relações do físico e do moral do homem», ele
soube insistir, à maneira de Condillac, na sua dimensão semiológica e na importância
dos «sinais pantomímicos, porque são os primeiros de todos, os únicos comuns a to­
da a raça humana. E a verdadeira língua universal» {op. cit., p. 76).
6 «O indivíduo aprofunda-se e estrutura-se. Ao homem geral e sereno das Luzes,
o romantismo opõe a singularidade dos rostos, o espessamento da noite e dos so­
nhos, a fluidez das comunicações íntimas, e reabilita a intuição como modo de co­
nhecimento» (M. Perrot, Histoire de la vie privée, op. cit., t. IV, p. 416).
7 Bichat, op. cit., p. 63.
8 «A cidade (...) destrói os constrangimentos familiares ou locais, estimula as am­

200
bições, atenua as convicções (...). Paradoxal, engendra ao mesmo tempo as multidões
e os indivíduos solitários» (M. Perrot, Histoire de la vie privée, op. cit., t. IV, p. 416).
9 Ver L. Chevallier, Classes laborieuses et classes dangereuses à Paris pendant la
première moitié du XIX' siècle, Paris, Plon, 1964.
10 Do mesmo modo que leva as classes burguesas a isolar-se, a pôr-se à distância,
a proteger-se das contaminações possíveis da promiscuidade popular: «As classes do­
minantes que têm ódio à multidão estúpida e suja arranjam nichos protectores nos
lugares públicos e nomeadamente nos transportes em comum: balcões de teatro que
prolongam os salões, camarotes de barco ou cabinas de banhos, compartimentos de
primeira classe, evitam as promiscuidades e mantêm as distinções» (M. Perrot, His­
toire de la vie privée, op. cit., t. IV, p. 307).
11 Ver R. Bonniot, E. Gaboriau ou la naissance du roman policier, Paris, Vrin,
1984. O aparecimento do romance policial como gênero literário, e a proximidade
do inquérito policial e da investigação médica, tomam sentido no surgimento deste
paradigma de indício que Ginzburg formulou (ver acima).
12 São assim as fisionomias dos forçados, tal como eram descritas na Gazette des
tribunaux em 1829, como conta André Zysberg: «Uma personagem, embora nascida
sob o céu de França, atraía os olhares porque tinha uma fisionomia sinistra que bas­
tava ver uma vez para não mais se esquecer (...). De facto, tinha uma testa pequena e
caída, olhos ferozes e enfiados nas órbitas, faces salientes, um tom lívido, uma mons­
truosa conformação de maxilares semelhantes às do orangotango. Estes traços são ca­
pazes de sossegar a consciência timorata de um júri e o que pronunciou o veredicto
de culpabilidade pode dormir em paz» («Politiques du bagne, 1820-1850», em L'Im­
possible prision, p. 169).
13 Histoire de la vie privée, t. IV, p. 320. «O desejo de um canto seu é a expressão
de um sentido crescente da individualidade do corpo e de um sentimento da pessoa
(...). Sem dúvida o homem interior precedeu o exterior» {ibid., p. 321).
14 Gerando, que no início quer observar as sociedades selvagens {Considérations
sur les diverses méthodes à suivre dans Vobservation des peuples sauvages, 1800) será
em breve constrangido a renunciar ao seu projecto devido às guerras napoleónicas.
Como nota G. Leclerc em L'Observation de Phomme {une histoire des enquêtes so-
ciales), Paris, Seuil, 1979, «passa-se da antropologia à filantropia, da observação do
homem longínquo ao amor do homem próximo (...). A sociologia vai substituir uma
etnologia impossível. Gerando vai passar do statu de “observador dos povos selva­
gens” (1800) ao de “visitador do pobre” (1824) (...). O conhecimento do operário e
do indigente vai substituir o do indígena e do selvagem como ciência do homem»
(p. 56). Parent-Duchatelet {De la prostitution, 1836), Villermé {Etat physique et mo­
ral des ouvriers, 1840) realizam grandes inquéritos operários; Quetelet {Du système
social, 1848) empreende observações estatísticas da sociedade.
15 C. Lombroso, op. cit., sobre a observação dos corpos e dos rostos na antropo­
logia criminal de Lombroso, ver: La scienza et la colpa, Milão, Electra, 1985.
16 Darwin, op. cit., p. 17.
17 Como observa Corbin: «No final do século, este duplo problema está resolvi­
do. Novas técnicas permitem conferir a cada indivíduo uma identidade invariável e
facilmente demonstrável. O sistema de reconhecimento torna logo impossível a subs­
tituição da pessoa (...). Em breve interdita a metamorfose» («Le secret de 1’individu»,
Histoire de la vie privée, t. IV, p. 432). Sobre a fotografia no século xix ver as obras
recentes: Regards sur la photographie en France au XIX' siècle, Berger-Levrault, 1980;
Identités, de Disdéri au photomaton, Paris, Ed. du Chêne, 1985; «Photo/peinture»,
Critique, n.° 459-460, Ago.-Set., 1985; A. Rouillé e B. Marbot, Le corps et son ima-
ge, Photographies du XIX' siècle, Paris, Contrejour, 1986.

201
18 H. Mondor, Mallarmé, Paris, 1941, t. II, p. 393.
19 H. de Balzac, La paix du ménage, La Pléiade, t. I, p. 1000.
20 H. de Balzac, Ferragus, La Pléiade, t. V, p. 29.
21 L.-S. Mercier, op. dt., t. V, cap. CCCCLXVII, p. 44.
22 A Escola de Paio Alto (ver em particular Une logique de la communication, de
G. Bateson et. al., Paris, Seuil, 1972) soube agarrar os aspectos patológicos de tais si­
tuações sem contudo se ligar à importância da gênese do processo que aí conduz; e
que permite estender os efeitos de um tal processo para além apenas das manifesta­
ções patológicas.
25 A. Vincent-Buffault põe em relevo este carácter excepcional na sua História das
Lágrimas quando indica a coexistência da sensibilidade romântica e da contenção
burguesa no século xix: «As lágrimas da sensibilidade romântica (...) participam de
um processo geral de individualização da emoção do mesmo modo que o modelo de
contenção e de autoconstrangimento da burguesia do século xix, mesmo quando é
uma reacção a esta norma» (op. dt., ed. port., p. 259).
24 Ver Sennett, op. dt., e Ph. Perrot, «La vérité des apparences ou le drame du
corps bourgeois (XVIIIc-XIXe siècle)», Cahiers internationaux de sociologie,
vol. LXXVI, 1984, pp. 187-199).
25 De Vaumorière, op. cit., Entretien II, p. 21.
26 Mercier, op. cit., t. VIII, cap. DCXIII, p. 59.
ÍNDICE

INTRODUÇÃO............................................................................... 7

PRIMEIRA PARTE:
A emergência da expressão............................................................. 15

Preâmbulo. A invenção do homem expressivo............................ 17


Formação do homem: civilidade e linguagem............................. 17
Observação do homem: civilidade e fisiognomonia.................. 20
O paradigma da expressão.............................................................. 22

Capítulo 1: O espelho da alma..................................................... 27


(Origens e renascimento da fisiognomonia no século xvi)
Origens e renascimento da «ciência das paixões»...................... 28
A figuração do homem................................................................... 33
Rosto, analogias e assinaturas........................................................ 35
O homem sem expressão............................................................... 40
Da morfologia à expressão............................................................. 46
Ser o fisionomista de si próprio................................................... 52

Capítulo 2: Figuras e rostos das paixões...................................... 59


(Progressos da fisiognomonia no século xvn)
O homem-organismo....................................................................... 60
Da marca ao sinal............................................................................. 65
O tempo da expressão.................................................................... 68
Individualização e socialização pela expressão............................ 69
A política do olhar.......................................................................... 72
O enfraquecimento da fisiognomonia........................................... 74

Capítulo 3: A anatomia do sentimento....................................... 81


(Rosto orgânico e rosto expressivo no século xvm)

203
Morte e ressurreição da fisiognomonia........................................ 81
Os sinais do anatomista................................................................. 84
Apoio, o negro e o orangotango.................................................. 87
Crânios expressivos......................................................................... 91
A linguagem do sentimento........................................................... 95
O tempo do sensível....................................................................... 98
O observador de si mesmo........................................................... 100
Os rostos da multidão...................................................................... 102
A fabricação do rosto virtuoso..................................................... 104

SEGUNDA PARTE:
O homem sem paixões................................................................... 113

Preâmbulo. A domesticação daspaixões...................................... 115


A medida e a poupança................................................................. 116
Comércio e urbanidade.................................................................. 119
Egoísmos e compaixão................................................................... 121

Capítulo 4. O ar da conversação.................................................. 127


(Debates sobre a conversação, a companhia e a solidão,
séculos xvi e xvn)
Exílios íntimos.................................................................................. 128
O esquecimento de si...................................................................... 132
Os fugitivos do eu.......................................................................... 137
A conversa consigo próprio........................................................... 141
O império do sentimento............................................................... 144

Capítulo 5. Calar-se e ser senhor de si:


A arqueologia do silêncio................................................................ 151
Ruídos e silêncios do corpo.......................................................... 151
Do homem cristão ao homem civil............................................. 153
Maneiras de calar-se e maneiras de falar..................................... 159
Os poderes do silêncio................................................................... 162
Os tormentos do silêncio............................................................... 165

Capítulo 6. As formas da sociedade civil..................................... 169


(Impassibilidade, distâncias, atenções — séculos xvn e xvm)
A sociedade da máscara.................................................................. 169
Os dois rostos do cortesão........................................................... 172

204
Figuras da delicadeza: a medida e o cálculo.............................. 175
As maneiras de dissimular.............................................................. 177
Uma máscara «natural»................................................................... 180
Dos «entraves salutares»: civilidade e cidadania......................... 182

Conclusão: O homem olhado com atenção................................ 189


O homem orgânico e o homem sensível..................................... 189
Física popular e física burguesa:
a divisão dos rostos no século xix................................................ 191
A genealogia da expressão.............................................................. 196

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