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TRILOGIA VICENTINA

COMIDA E LITERATURA

ENCENAÇÃO DOS ALIMENTOS NA OBRA DE GIL VICENTE

BREVES APONTAMENTOS

por

Maria José Palla


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Em memória do meu amigo Dagoberto Markl


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INDICE

1. ABERTURA

2. RECEITUÁRIOS

3. A REFEIÇÃO

4. O PÃO

4.1 LEITE E MEL

5. O VINHO

6. A CARNE

7. O PESCADO

8. O PESCADO

9. MODOS DE COMER

10. DA ALTERIDADE

11. HARMONIA E DESORDEM ALIMENTAR

12. O GORDO E O MAGRO

13. O EXCESSO DE MELANCOLIA – O HUMOR NEGRO

CONCLUSÃO
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1. ABERTURA

A alimentação é a actividade essencial do homem. A procura de alimento torna a história das


civilizações e das conquistas de território indissociável da evolução dos recursos e das políticas
alimentares. A técnica humana vai modificando as matérias-primas oferecidas pela Natureza e
transformando os modos de vida.
Platão é um dos primeiros autores do Ocidente a fazer uma reflexão sobre a técnica culinária, na
verdade muito depreciativa, que para este filósofo é uma arte da ilusão. Recentemente, com a
descoberta de três placas em terracota, gravadas em caracteres cuneiformes, encontradas na
Universidade de Yale, ficámos a conhecer mais ou menos quarenta receitas de cozinha relativas à mais
antiga civilização do mundo, a civilização mesopotâmica (que se situava no actual Iraque). Estes
documentos, estudados por Jean Bottéro, investigador e tradutor da Bíblia, revelam mais de duzentas
receitas de pão e de cerveja1. Sabemos, assim, o que comiam os Sumérios. A cozedura indirecta era a
mais frequente (água com gordura de ovelha, por exemplo). Nesta região consumia-se grande variedade
de carne, de porco, de vaca e diversas aves domésticas, e grande variedade de cereais. Estes povos eram
especialistas do «cozido», ou pot-au-feu, prato arcaico e universal, e grandes consumidores de alho, alho-
porro, cebola, e diversas especiarias, nem todas identificadas. Infelizmente não conhecemos os modos
de comer desses povos que viveram há 3500 anos.
A história da alimentação tem vindo a ser feita gradualmente, e deparamo-nos com ideias que
precisamos de corrigir. A zoo arqueologia será um meio muito importante para o estudo do que
comiam os nossos antepassados. Estudar a alimentação através da literatura é igualmente uma maneira
de contribuir para o estudo da alimentação, mas infelizmente quase só podemos chegar a conclusões
simbólicas, porque o escritor, ao escrever a sua obra, não teve o intuito de dar uma amostragem do que
se comia na época mas antes estabelecer comparações, valorizar ou desprezar produtos e tipificar
personagens.

Poucos estudos têm sido efectuados sobre a história da alimentação em Portugal, os produtos
ingeridos, o protocolo e as horas de comer. Foi com Jean-Louis Flandrin, na Escola Prática de Altos
Estudos em Ciências Sociais, no decorrer do seminário «Le Désir et le Goût» que surgiu o interesse
pelo que nós comemos e a decisão de trabalhar este tema em Portugal. No entanto torna-se difícil
elaborar este tipo de análise no nosso país porque as fontes são escassas. Continuando com o estudo da
vida quotidiana e finalizando a nossa Trilogia Vicentina, prosseguimos com o estudo das maneiras de
comer, analisando mais precisamente o papel da alimentação em cena na obra do dramaturgo Gil
Vicente.
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O teatro é uma ficção no palco. A alimentação aparece na dramaturgia sob várias formas, e os
alimentos testemunham tanto a realidade como o simbólico, em provérbios, alegorias e atributos. Não
temos como objectivo elaborar um inventário exaustivo de todas as ocorrências, mas de preferência
tentar definir uma gramática ou um sistema de relações entre as personagens vicentinas e os seus
alimentos. A alimentação não pertence apenas ao registo da necessidade (da natureza), mas também ao
do imaginário (da cultura). Esta conjunção do essencial e do supérfluo, da coisa e do signo, do real e do
sonho, já nos foi revelada ao analisar o papel do vestuário no teatro vicentino e nas artes plásticas em
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Portugal do final do século XV ao início do século XVI . E porque a alimentação nos suscita
claramente uma análise do mesmo tipo é que nos propomos continuar a analisar, dentro do mesmo
espírito, os hábitos alimentares em Portugal3, servindo-nos de dois instrumentos: textos e imagens. No
entanto, temos de ter precaução com estas últimas porque muitos séculos passaram, estão deterioradas
e foram executadas num contexto muito diferente.

2. Receituários
O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, do fim do século XV e início do século XVI, é o mais antigo
livro de receitas em língua portuguesa conhecido até à data4. Em França existem numerosos
manuscritos culinários, alguns descobertos recentemente, outros já estudados há muito. O Viandier de
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Taillevent, do século XIV, é um dos mais antigos tratados culinários ; talvez exista um outro que lhe
seja anterior, o Petit traité de cuisine, escrito por volta de 1306, estudado por Douët d’Arcq e publicado na
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Bibliothèque de l'Ecole de Chartres . O receituário catalão Sent Sovi (1324) foi escrito por um cozinheiro
do rei de Inglaterra, e o Ménagier de Paris: traité de morale et d’économie domestique, datado de 1393, por um
burguês parisiense para aconselhar nas lides domésticas a sua mulher ainda jovem.
A escassez de fontes e de tratados de cozinha dificulta a nossa tarefa. É hoje conhecido em França o
sabor de pratos de países e épocas diferentes graças ao estudo empreendido por equipas de
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investigação . A história da alimentação beneficiou nos últimos anos de um interesse crescente com
Fernand Braudel (1979), Bruno Laurioux (1989; 1997; 2002), Jean-Louis Flandrin (1992; 1996) e Allen
Grieco (1992). Mais recentemente, em 2003, realizou-se um colóquio em Paris em homenagem a Jean-
Louis Flandrin. Em Portugal, vários investigadores se têm interessado igualmente pela comida.
A alimentação depende de um conjunto de ingredientes, de condimentos e de procedimentos
fabricados num dado contexto histórico e territorial: Food is Culture é o título do último livro de
Massimo Montanari8. Nos últimos anos começou a dar-se mais importância ao estudo da alimentação e
têm-se publicado muitos estudos importantes. Segundo Roland Barthes, a comida «n’est pas seulement
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une collection de produits justiciables d’études statistiques ou diététiques. C’est aussi et en même temps
un système de communication, un corps d’images, un protocole d’usages, de situations et de
conduites»9. Em 1964, Claude Lévi-Strauss publicou um livro que passou a constituir um dos pontos de
partida para os trabalhos sobre a alimentação de cunho estruturalista. Em Le Cru et le cuit, o etnógrafo
estuda uma população e classifica-a segundo a ingestão de alimentos crus ou cozidos (ou assados). Esta
obra representa um trabalho fundamental para os estudiosos da alimentação. Em 1989 Bruno Laurioux
publicou Le Moyen Age à table, já traduzido para português, e em 1997 Le Règne de Taillevent. Livres et
pratiques culinaires à la fin du Moyen Age10. Nestas obras, o autor dedica a Portugal unicamente meia página,
na qual evoca a penúria de documentos e afirma que, em comparação com a Espanha, «le Portugal
voisin n’est plus dynamique»11. Este autor cita brevemente o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, e Jean-
Louis Flandrin não tem um único capítulo dedicado ao nosso país na História da Alimentação, organizada
com Massimo Montanari12. Mais recentemente, Bruno Laurioux voltou a publicar um livro sobre o
mesmo tema, Manger au Moyen Age, e também nele não refere Portugal. É verdade que, apesar de termos
escassos documentos sobre a alimentação, já foram feitos vários trabalhos, e temos o precioso Livro de
Cozinha da Infanta D. Maria, já estudado por Salvador Dias Arnaut, Maria José Azevedo Santos,
Madeleine Maupetit, Georges Carantino e Maria José Palla. José Labaredas é o autor de um
interessante estudo sobre a alimentação em Gil Vicente, onde encontramos precisões sobre os
produtos13 e mais precisamente a região de Coruche, associada ao nosso dramaturgo14. As primeiras
obras de cozinha europeias possuem receitas culinárias a par de receitas medicinais, tal como o livro da
infanta. Esses receituários são compilações híbridas. Até à alta Idade Média só se conhecia o tratado
romano atribuído a Apício (corpus essencial do século I d. C., com acréscimos), que foi gradualmente
desprezado, com o afastamento do garum (molho de peixe), em favor de uma renovação e da
proliferação de especiarias. Este receituário será mais tarde elogiado pelos humanistas italianos, tendo
sido ignorado pelos receituários medievais.
Os livros de cozinha mais antigos eram geralmente apresentados em forma de rolo, num suporte
muito rudimentar. Como eram muito utilizados, conservaram-se mal. A par destes rolos existiam
códices luxuosamente ornamentados, que figuravam nas bibliotecas reais. A França possui livros com
quatrocentas receitas, e os seus cozinheiros eram verdadeiros artistas. Pensamos que estes documentos
são obras literárias, de um género específico a que pode dar-se o nome de receituário ou livro de
cozinha. Trata-se de uma literatura tradicional, transmitida oralmente, onde gradualmente aparece o
nome do autor. Jean-Louis Flandrin foi um dos primeiros historiadores da alimentação. A investigação
que fez sobre o gosto do cozinheiro e do grupo que ele serve está próxima daquela que se aplica em
compreender o olhar do pintor, comparando com o dos seus mecenas ou amadores. Pensemos nos
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livros de Daniel Arasse sobre a pintura. O que vemos nós? «Que voyait un observateur contemporain
du peintre? Et qu’avait voulu goûter le cuisinier? Une grave différence était que la peinture a traversé les
temps (plus ou moins indemne), les compositions du cuisinier non»15.
No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria está presente o ciclo do cozinhar: escolher o produto, lavar,
cortar, desmembrar, temperar, cozinhar e servir. As fatias de pão são nele recorrentes, mas não servem
de talhadores ou de pratos, e uma vez está indicado que a refeição deve ser servida sobre uma toalha.
Verificamos uma grande preocupação com a qualidade dos alimentos: a melhor carne, os mais belos
frutos. A cor citada mais vezes é a cor branca, como a do açúcar, mas também aparecem o açúcar rosa
e os tons verde, rosa, amarelado e ruivo. A cor mais importante é o amarelo, devido aos ovos que
cobriam os pratos, conferindo um dourado muito forte, diferente do castanho, a cor dos pobres, à
semelhança do que sucede com o traje. As receitas do manuscrito apresentam o nome de fidalgos do
tempo.
O segundo livro de cozinha escrito em português, a Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues, surge
já nos fins do século. O autor nasceu em Vila Cova da Coelheira em 1637 e faleceu em Lisboa em 1719.
Quando da publicação desta obra, Domingos Rodrigues era cozinheiro de D. Miguel de Portugal,
sétimo conde de Vimioso, tendo passado pela Casa Real de D. Pedro II. Este cozinheiro não escreveu
apenas receitas de culinária, adverte também para a prática das boas maneiras e da apresentação da
mesa, que deve variar segundo o mês do ano. Neste livro de cozinha existem receitas que encontramos
no livro de cozinha de D. Maria a par de outras novas, estrangeiras e de grande fantasia.
Segundo Massimo Montanari, quanto mais elevada for a categoria social melhor e mais se come16.
Os alimentos eram escolhidos para serem servidos segundo as ocasiões e, por vezes, contribuíam
unicamente para a estética da cerimónia: pelo tamanho, pela forma e pela cor. Por vezes eram
confeccionados para servir de bodo aos pobres, e como exemplo disso podemos referir a Crónica de D.
João II, de Garcia de Resende, aquando do casamento do príncipe Afonso, filho de D. João II, com
Isabel, ocorrido em Évora em 149017.
Em que medida podemos retirar do teatro alguns ensinamentos sobre a condição da alimentação em
Portugal no tempo de Gil Vicente? Em que medida os topoi alimentares de que se serve o dramaturgo
podem fornecer dados pertinentes para o nosso trabalho? Eles são, ao mesmo tempo, indicadores e
reveladores de uma mentalidade. Memória da história de um povo, a alimentação fala pela sua própria
simbólica, pela presença ou ausência de certos alimentos, pela forma como estes são ingeridos ou
cozinhados. Neste sentido, estudaremos os alimentos considerando, nomeadamente, as seguintes
dicotomias: homem/mulher, rico/pobre, velho/jovem, esposa/amante, eremita/mundano,
campo/cidade, puro/impuro, religioso/profano e cristão/não cristão. Analisaremos a maneira como os
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alimentos surgem no nosso corpus (cozidos, crus ou assados), como estão relacionados com os dias
litúrgicos anuais e como funcionam.
A comida ocupa um pequeno lugar no teatro vicentino, a sua descrição praticamente não existe,
embora certos alimentos façam parte integrante do jogo cómico, e sejam um dos elementos satíricos
que contribuem para levar um olhar crítico sobre os hábitos da sociedade. O jogo das referências
alimentares funciona como um revelador para tipificar certas personagens: velhos, novos, solteiros,
casados, profanos e sagrados. Na obra vicentina não há banquetes nem referências concretas à comida;
estamos longe do teatro inglês ou italiano, onde o banquete tem um papel adjuvante da acção. No
teatro inglês do Renascimento existem inúmeros banquetes, estudados pelo historiador inglês Chris
Meads num livro sobre o funcionamento destes e sobre como se integram no jogo dramático18. Falstaff
come capões, tripas, vaca não salgada e bebe vinho de Xerez e das Canárias. E come muitas anchovas
para estimular a vontade de continuar a beber vinho19. O mesmo acontece no teatro italiano. Na
primeira edição da Cortesã de Aretino, datada de 1525, as refeições dos senhores são teatralizadas com
uma encenação rigorosa. Estas são servidas por numerosos criados, que se juntam aos espectadores
depois do serviço. A disposição das mesas obedece a uma preocupação estética com as cores e a
valorização da abundância. Nesta primeira edição da Cortesã de Aretino encontramos uma refeição de
Quaresma frugal: de manhã quatro anchovas e dez sardinhas podres20, uma escudela de favas, sem
azeite nem sal, e quatro pedaços de pão; à noite mais um pouco de pão. Os criados comem restos de
aves, os pescoços, as patas e as cabeças. Nesta peça, os servidores comem no tinello, uma sala de
refeitório muito suja e repugnante, em contraste com o salão dos senhores. No Perffeto Maestro di Casa,
de F. Liberati, a comédia é um reflexo da sociedade, apropria-se do tema do banquete e dos seus
elementos, já presentes na comédia antiga, desenvolvendo-os. São organizados como acção secundária
sumptuosos banquetes de núpcias, onde nos deparamos com um vocabulário alimentar e gastronómico
em contraponto com a alimentação dos criados e das pessoas da rua.
Vários autores contemporâneos escreveram sobre a maneira como funcionavam o local das
refeições dos ricos e o local dos servidores. Vemos isto em Francesco Priscianese no livro Del Governo
delle Corte d’un Signore in Roma e em Cesare Evitascandolo, autor do Diálogo del Perfetto Maestro di Casa, de
1581. Passando a Michel de Montaigne, escritor e historiador francês do século XVI, ficamos a
conhecer com minúcia a comida da época e mesmo certos gostos culinários do pai, que não gostava de
molhos. Este autor alimentava-se com comida gorda e carnuda, a comida da corte dos Valois, em
França, estudada por Jacqueline Bouche21. Montaigne era mais gourmand que gourmet22. O próprio título
Essais contém um sentido culinário, porque a palavra pode remeter a «provas» ou «amostra» de comida,
sentido que encontramos duas vezes no livro. Sá de Miranda escreveu dois poemas criticando as
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refeições na corte: a epístola em verso dedicada ao irmão Mem de Sá inspirada na fábula de Esopo Rato
do Campo e Rato da Cidade, glorificando a refeição tranquila campestre, e a comédia Os Estrangeiros, de
1527, onde a comida se presta a dividir o dia, encontrando-se nela almoço, jantar e ceia. Ficamos, assim,
a conhecer as refeições da época e a duração da peça, que se desenrola numa rua de Palermo em vinte e
quatro horas. No Auto de Filodemo, de Luís Camões, a personagem Vilardo, utilizando uma linguagem
alimentar, queixa-se de sofrer de amor e de falta de apetite. No Auto do Anfitrião encontramos uma
passagem muito curiosa onde Luís de Camões deseja opor o mundo «bárbaro» ao mundo civilizado:

Mercúrio:
«La carne de algun humano
me seria sabrosa.»
[…]
Sósia:
«Carne humana es mui mesquiña.
Oh! No comas deso, no!
Antes carne de galinha.»

O escritor Cervantes utilizou a comida para classificar a sociedade: «estos dos tipos de cocinas, de
gastronomía rural y ganadera, y una culinaria más refinada aparecen en esa especia de Biblia de la
gastronomía castellana, de la cocina de Castilla – La Mancha que es El Quijote»23. Veremos que nesta
obra a alimentação desempenha muitas vezes o mesmo papel que no teatro de Gil Vicente, se bem que
muito mais abundante e com pratos elaborados, ainda hoje conhecidos.

3. A refeição
O estudo da alimentação na literatura tem de ser feito de um modo simbólico, embora possam tirar-
se lições sobre as maneiras de comer da época em questão. Gil Vicente foi prudente ao introduzir a
comida no seu teatro. Será para a condenar? Rabelais, o pai de Gargântua, para condenar os excessos
alimentares do tempo exaltou desmedidamente a comida. Este autor excedeu-se em metáforas
alimentares, onde os enchidos são fálicos, as festas facultam vinhos com abundância e banquetes
sumptuosos24.
Nas iluminuras muitas mesas surgem cobertas por uma simbólica eucarística (séculos XIII, XIV e
XV) somente com pão e vinho. De um modo geral as mesas estão vazias se as compararmos com a
diversidade dos pratos e dos menus da época, e em geral não se sabe de que refeição se trata, se é de
10

manhã ou à noite. As refeições campestres são raríssimas e as mais presentes nas iluminuras são as do
mês de Dezembro ou do mês de Janeiro, do jantar de Natal ou do dia 1 de Janeiro25.
Por vezes as iluminuras deixam ver com realismo de que carne se trata: aves domésticas e de caça,
cordeiro inteiro ou cortado (na Páscoa). Os frangos e os faisões não aparecem certamente porque a
carne destes últimos tem um cheiro muito forte, são somente mostrados com a plumagem para adorno
do repasto.
As carnes são muitas vezes escondidas numa empada, no entanto o peixe aparece inteiro nas
miniaturas, assim como ovos cozidos com a casca, em cinza, ou fritos. As saladas representam as ervas
amargas dos Judeus na Páscoa. Por vezes distinguimos manteiga fresca perto dos doentes, o que
conhecemos pelo Livre des simples médecines.
Não podemos associar a comida na obra vicentina à frase de Plutarca «nós não nos sentamos à mesa
para comer, mas para comer em companhia». Com efeito, não temos uma refeição propriamente dita,
existem apenas alimentos para ajudar a acção dramática. A representação da alimentação cobre toda a
história da arte ocidental. Desde a Antiguidade que figura nos vasos gregos, nos frescos romanos, em
mosaicos e baixos-relevos. A literatura antiga deu-lhe igualmente valor, nomeadamente as fábulas de
Esopo, os banquetes do Olimpo, as comédias de Terêncio e o Decameron de Boccaccio.
Na Farsa dos Almocreves Gil Vicente refere um saleiro de prata encomendado por um fidalgo a um
ourives, que, não tendo dinheiro para o pagar, o despreza: «ele é dos mais maus saleiros/que eu em
minha vida comprei» (240-241)26. Este é um dos raros exemplos em que Gil Vicente evoca um objecto
relacionado com a refeição.
Sabe-se que os pratos individuais ainda eram pouco divulgados. Comia-se com a ajuda do polegar,
do indicador e do dedo médio. No final da refeição, lavavam-se as mãos, por vezes com água-de-rosas.
No nosso corpus não encontramos nem colher, nem garfo, nem copo, mas vemos colheres
representadas nos quadros da época. De acordo com um inventário realizado depois da morte de D.
Beatriz, esposa de D. Fernando, sabe-se que esta tinha em 1447 no seu enxoval de casamento um
serviço de cozinha. Na Refeição em Emaús, pintura portuguesa do século XV, no Museu Nacional de Arte
Antiga, vemos os talhadores (quadrados de madeira), a toalha e a faca.
Voltando atrás no tempo, a leitura da Pragmática de 1340 indica-nos duas refeições por dia: o jantar
(cerca das 11 ou 12 horas) e a ceia (ao fim da tarde), a refeição principal. Sabemos que antes da refeição
se bebia vinho. Eram servidos três pratos, sem contar as sopas, os acompanhamentos e as sobremesas,
mas estes pratos eram unicamente servidos ao rei, à alta nobreza e ao clero. D. Duarte no Leal
Conselheiro recomenda um intervalo de sete ou oito horas entre as refeições. O historiador A. H. de
Oliveira Marques também evoca duas refeições27. O sedutor Lemos deseja comer, e a sua amada
11

Constança responde-lhe: «Vós quereis cá cear/e eu não tenho que vos dar» (IND 264). Presume-se que
se jantava de manhã e ceava-se às seis ou sete da tarde. No entanto Gil Vicente evoca uma outra
refeição: o almoço. Quando temos as três refeições, a que corresponderá o almoço? Possivelmente a
seguir ao levantar.

«À cea e jantar perdix,


ao almoço moxama,
e vinho do seu matiz» (EST 560-562).

Numa outra ocorrência parece-nos que assim seja, quando Constança Roiz diz a Dom Duardos,
disfarçado de hortelão, «vuesso almoço está guisado» (895), e ele ao responder-lhe evoca o trabalho do
cortesão, «trabajar y sospirar/es mi comer» (896-897).
No que diz respeito à louça, notamos curiosamente que ela está mais presente junto dos Judeus, em
duas peças, no Auto da Lusitânia e no Auto da Ressurreição. Nesta última peça, Samuel queixa-se dos
efeitos da Ressurreição:

«tremeu minha casa, caiu cantareira,


quebrou-se a louça, tudo se perdeu» (140-141).

Num outro contexto, no Auto da Índia, a Ama pergunta à Moça «quem anda naquelas tigelas» (153) e
exclama «quebra-me aquelas tigelas» (397) para provar ao marido que vivia desoladamente. No Velho da
Horta, a mulher do protagonista cozinha em panelas (43, 258 e 268), e no Auto dos Cantarinhos, de
António Prestes, Duarte associa as panelas partidas a um raio: «que digo este mês de Maio/que lá vai
não viu um raio/de noite quebrar panelas?». (p. 487)
A louça usada entre o Carnaval e a Quaresma é muitas vezes quebrada ou lavada, para eliminar
vestígios de gordura. Na Farsa dos Físicos, a moça Branca Denisa lava numa ribeira com sabão para tirar
a sujidade da gordura do Carnaval. Muitas vezes acontecia que para que o prato ficasse mais saboroso
era cozinhado em louça a estrear como lemos numa receita do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria.
A cozinha, pelo que deduzimos das várias iluminuras estudadas, fica perto do local onde se come,
pode ser uma lareira onde se faz comida, onde os vizinhos podem vir pedir lume: «entra-se por uma
brasa», como lemos no Auto da Índia (491). Sabemos, a partir de várias ocorrências, que havia
cozinheiros negros: «ter carrego dos gatos/e dos negros da cozinha» (ALM 82-83). Mas as citações
relativas à cozinha têm muitas vezes uma associação com o demónio: será pelo lume? Temos vários
12

exemplos dessa conotação negativa: «varandas das dores/cozinha de gritos» (IND 249), «e se tu este
trazes à nossa cozinha/eu te farei mui grão cavaleiro» (HDD 926-927), «meu fogo também em que se
ocupasse/e meus cozinheiros» (HDD 129-30) (Lúcifer aludindo ao fogo infernal), «e acolá a sopa na
brasa/então ferver as mezinhas» (FIS 183-84) e «a crueldade cozinheira/ e matadora» (ADA 740-741).
Lemos, o amoroso de Constança, abriga-se na cozinha, «metei-vos nessa cozinha/que me estão ali
chamando» (IND 249-250).
Sabemos pelos livros de cozinha que os cozinheiros da Idade Média se serviram de orações para
medir o tempo culinário, como por exemplo, o tempo de uma ave-maria, de um pai-nosso ou de um
credo. No Livro de Guisados de Robert de Nola, de fins do século XV, nas receitas «empada de carne» e
«empada de peixe», o tempo de cozinha era igual ao tempo de uma oração, e para o «guisado na
caçarola» era o tempo de um credo.
Vamos proceder ao estudo de duas pequenas refeições, porém de grande relevo para o nosso
estudo, visto serem as únicas que surgem no desenrolar das peças. Comecemos por uma cena religiosa
e metafórica presente no Auto da Alma. Imaginemos um altar com a mesa protegida por uma toalha e
com uma bacia de iguarias. Logo no argumento lemos que a mesa é o altar, e os manjares são as
insígnias da Paixão. Nesta peça, a acção e a música estão associadas; temos uma obra de Quaresma
próxima da peça francesa Pèlerinage de la vie humaine de Guillaume de Diguileville, do século XIII, na qual
os cantos litúrgicos competem ao que se passa em cena. O Auto da Alma é uma alegoria da instituição
eucarística como alimento espiritual, começando com o caminho do Calvário. Esta obra, representada
numa Sexta-Feira Santa, dia 1 de Abril de 1518, está pontuada na segunda parte por sete hinos pascais
cantados e comentados pelos quatro Doutores da Igreja: «Vexilla Regis», «Salve Sancta Facies» da «Via
Crucis» de Sexta-Feira Santa, «Ave Flagellum», «Ave Corona Spinarum», «Dulce lignum, dulcis clavus» e
«Domine Jesu Christe», terminando com o «Te Deum Laudamus», anunciando a Ressurreição de
Cristo. Estes hinos teriam sido cantados em canto gregoriano a duas ou a três vozes, segundo um
costume europeu vindo do século X. Uma harpa poderia servir de acompanhamento, porque os
instrumentos de sopro eram proibidos durante o tempo da Quaresma28. A primeira iguaria é saboreada
com salsa (evocação das ervas amargas) e sal (o tempero da vida) e é acompanhada pelo hino «Vexilla
Regis». A segunda representa a coroa de espinhos e é oferecida enquanto os Doutores cantam «Ave
Corona Spinarum». A terceira é relativa aos pregos, enquanto os anjos cantam «Dulce lignum, dulcis
clavus», e a quarta, «Domina Jesu Christe», representa o crucifixo. A refeição e a peça terminam ao ar
livre, num pomar, «a fruita deste jantar/que neste altar vos foi dado/com amor/iremos todos
buscar/ao pomar/adonde está sepultado/o Redentor» (819-825). Esta refeição é a mais completa na
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obra vicentina. O pomar representa o Paraíso e a salvação final. Podemos comparar esta refeição à
eucaristia. As almas serão redimidas pelo modelo de Jesus e serão salvas com ele.
Segunda refeição, desta vez profana e erótica, encontra-se no Auto da Índia. Identificamos nesta peça
a associação entre a comida e o prazer físico, a relação entre o erotismo e os prazeres da comida e da
bebida. Gil Vicente mostra-nos nesta peça cenas de sedução amorosa servindo-se de alimentos. A
assimilação entre o amor e uma boa refeição é frequente no teatro europeu. No nosso corpus, Lemos
não quer gastar dinheiro com a refeição para Constança e encomenda à Moça cerejas e vinho das
Estrelas, marca de vinho citada várias vezes na obra vicentina. Nesta cena surgem dois alimentos, fruta
(especialmente cerejas) e vinho. Vive-se a comida da alegria e da festa, como na Nave dos Loucos de
Hieronimus Bosch, do Museu do Louvre, ou nos Sete Pecados Capitais, do Museu do Prado. Esta cena
amorosa vicentina com vinho lembra-nos as Mil e Uma Noites, obra da literatura árabe que associa
muitas vezes o vinho ao amor. Na peça em estudo a criada de Constança cita animais que são metáforas
do sexo feminino, como «berbigões» e «ostras», alimentos afrodisíacos evocando a vagina da mulher,
conferindo um segundo sentido à cena. E a mesma continua a insistir perguntando se Lemos deseja um
animal com cornos, mas ele não quer despender dinheiro e dá como desculpa que a carne tem bicho:

Moça:
«Cabrito?»

Lemos:
«Têm mil barejas.»

Moça:
«E ostras, trazerei delas?»

Lemos:
«Se valerem caras, não,
antes traze mais um pão
e o vinho das Estrelas» (275-279).

O marido de Constança, antes de embarcar, deixara-lhe o essencial: trigo, azeite, mel e panos. O
azeite é do domínio da mulher: Numa outra peça, Paio Vaz furioso com Mofina Mendes, dá-lhe um
pote de azeite para ver se ela tem mais sorte: «toma este pote de azeite/e vai-o vender à feira» (452-
14

453). A mulher sensata e recatada não come carne mas sim pão e mel. No fim da peça, quando o
marido regressa, ela ordena vinho e cabrito à Moça, o que corresponde ao que se passou durante a
ausência do marido, invertendo-se agora os papéis:

«Faze fogo, vai por vinho,


e a metade d’um cabretinho
enquanto estamos falando» (426-428).

Erotismo e gastronomia constituem uma associação relevante29. O vocabulário amoroso e de beleza


utiliza muitas expressões com alimentos: cabelos louros como o milho, pele de pêssego, olhos em
amêndoa, lua-de-mel. Madeleine Lazard, especialista do teatro francês do Renascimento, diz-nos que
não há obra de teatro em que não se estabeleça uma ligação entre a fome e o desejo amoroso. O barão
apaixonado da peça La Reconnue desenvolve em 16 versos uma comparação entre o amor e a boa
comida30. Na Farsa de Inês Pereira, a mãe avisa a filha da pobreza que passará se se casar com o cortesão:
«choram-te os filhos por pão». No entanto, Inês prefere comer pão e cebola (388) e subir de condição:
«com uma borda de boleima/e uma vez de água fria/não quero mais cada dia» (397-399). Inês Pereira
enumera assim o essencial para não morrer de fome.
15

4. O pão
Comecemos pelo alimento mais importante da mesa ocidental: o pão. Na Antiguidade a agricultura e
a arboricultura constituíam o centro da economia, e os produtos mais importantes eram o trigo, a vinha
e a oliveira. Anius, rei e sacerdote de Delos, personagem das Metamorfoses de Ovídio, afirma que as suas
filhas transformavam tudo em que tocavam nestes três alimentos. Deste modo o cristianismo,
influenciado pelas culturas mediterrâneas, elegeu estes elementos como instrumentos de culto. O azeite
era necessário para iluminar o momento dos sacramentos, e Gil Vicente evoca-o unicamente nessas
circunstâncias.
A cultura romana marcou a religião e a civilização cristãs – «la dimension symbolique que les
écrivains des IVème et Vème siècles ont attribué au pain, au vin et à l’huile d’olive est d’une grande
intensité», diz-nos Massimo Montanari31. Os apreciadores do pão, do vinho e do azeite estão do lado da
cristandade, enquanto as papas pertencem aos «povos bárbaros», como diziam os Gregos e os
Romanos. Os Celtas e os Germanos alimentavam-se de toucinho, favas e trigo, produtos da caça e da
pesca, frutos selvagens e criação de animais (porcos, cavalos e bovinos), e a carne constituía a principal
fonte da sua alimentação. Não bebiam vinho, mas leite de burra, líquidos ácidos derivados da cidra
(produto da fermentação de frutos selvagens) ou cerveja (obtida a partir da cevada e do trigo).
Utilizavam a manteiga e o toucinho e não conheciam o azeite. Ingeriam papas de aveia e fogaças de
cevada, leite coalhado, e não o pão de fermento da cultura do Mediterrâneo. «O pão e o vinho
permitem ao homem selvagem tornar-se civilizado», lemos na Epopeia do Gilgamesh, citada por Massimo
Montanari no mesmo livro32. Estes alimentos, ricos em conotações simbólicas, constituíam uma parte
importante da alimentação e foram identificados com a carne e o sangue de Cristo no sacrifício da
eucaristia. Segundo Caroline Walker Bynum, a eucaristia é a única festa sagrada33. O pão integra muitas
refeições relatadas nos textos litúrgicos e está associado à vida activa, enquanto o vinho está relacionado
com a vida contemplativa. O fermento, princípio activo da panificação, associa-se metaforicamente às
paixões e à ausência de sacrifício. Cada área do mundo teve o seu grão: o sorgo no continente africano,
o arroz na Ásia e o milho na América. No Antigo Testamento o pão é sinal de providência divina, e no
Novo Testamento é o divino por excelência.
Não é de espantar que os alimentos que surgem mais recorrentemente na obra vicentina sejam o pão
e o vinho, seguidos pela carne. A confirmação da importância destes alimentos é-nos dada pela boca do
Ratinho do Auto de D. André34, ao vir do Norte a Lisboa visitar o pai, quando com orgulho lhe indica
que na Beira não lhe falta a comida:

«Nunca, Deos louvado


16

me faltou lá pão e vinho,


nem a carne nem o pescado» (195-197).

Relativamente ao pão, um critério convoca a nossa atenção: a presença de cereais. Enquanto uma
parte do mundo depende do cereal propriamente dito, a outra desconhece as formas de transformação.
Os Romanos usaram todos os cereais, mas privilegiaram o trigo. Na época em estudo, o pão era
essencialmente fabricado com trigo, cereal caro, muito apreciado, mas não acessível a todos: «cuán
granado viene el trigo/nuestro amigo» (229-230). O trigo era o cereal por excelência: o pastor Gonçalo
consola a pastora Madanela, «eu hei-de ter muito trigo/e hei-de de ter a ti» (363-364). Quando a
produção de trigo era insuficiente, Portugal importava-o da França, da Inglaterra, da Alemanha e de
35
Castela. No campo, em momentos de escassez, era substituído por castanhas e glandes . Embora o pão
36
pudesse ser fabricado com grande variedade de cereais, a falta de trigo era sinónimo de fome . O milho
37
dito «maiz» chegará da América no início do século XVI . Quando Gil Vicente escreve no Auto da Fé
que o milho era semeado nos rios, trata-se certamente de milho painço. Para o historiador A. H. de
Oliveira Marques, «o milho na Idade Média era o actual milheto, ou milho-miúdo, ou então milho-
38
painço» . Na opinião de Louis Stouff, historiador da alimentação, o consumo de pão branco é um
privilégio dos ricos: «l’hiérarchie se définit par la couleur du pain que les gens mangent et par la qualité
de ce qu’ils boivent»39.
Cedo surgiram tratados sobre o pão e os cereais. Em meados do século XVI, Jean-Baptiste Bruyerin,
médico e sobrinho do médico leonês Symphorien Champier, chamado à corte de Francisco I, dissertou
no livro De Re Cibaria sobre os diversos grãos de farinha e variedades de pão40. No nosso corpus o pão é
muitas vezes citado como sinónimo de comida em geral, o pão de cada dia. «Quant au pain, il est le
symbole de la nourriture par excellence», diz Madeleine Lazard num artigo sobre imagens culinárias nas
comédias francesas do Renascimento41:

«Plus d’un pain manger


l’ayant appris à voyager
les Itales et les Espagnes
hautes et basses Allemagnes» (Les Escoliers, Perrin).

Com efeito, o pão era a alimentação por excelência para os ocidentais e constituía a comida mais
valorizada42. Encontramos várias ocorrências da palavra «pão» como sinónimo de alimentação em geral.
17

Temos vários exemplos, Artada pergunta a Julião se tem fome, «quieres pan?» (677); Constança
confessa ao marido, quando este regressa de barco, que ficou tão magoada quando ele partiu que «juro-
vos que de saudade/tanto de pão não comia» (IND 472-473), ou as palavras de Cristo no Auto da
Cananeia:

«Faze-nos mercê do pão


do nosso sostentamento» (345-346).

No Novo Testamento, o mau rico nem sequer dá migalhas de pão a Lázaro (Lc 16, 21). «Nemigalha» é
uma expressão muito comum na época de Gil Vicente que significa «nada43. Os animais têm fome, mas
não há comida, e eles «se fartam das migalhinhas» (CAN 599).
Encontramos uma ocorrência muito curiosa em relação aos Judeus na Farsa de Inês Pereira, quando o
casamenteiro judeu diz ao companheiro Vidal que são feitos da mesma massa ou da mesma raça,
tomando o cereal como símbolo da matéria:

«tu judeu e eu judeu


não somos massa d’um trigo?» (430-431).

Os Judeus comem o pão ázimo, o mazzot, o pão não levedado, simbolizando privação e purificação,
não encontrado na obra vicentina, se bem que tenham sido eles que começaram a levedar o pão. As
mulheres hebraicas fabricavam o pão sem levedura (Gn 18, 6), e o israelita infiel foi obrigado a privar-
se de pão (Lv 26, 26).
O pão de festa aparece no Clérigo da Beira, peça representada na véspera de Natal. Francisco associa a
regueifa, um pão fino, próprio da Páscoa ou do Natal segundo as regiões, a esse momento festivo: «já a
minha mãe tem tascada/a regueifa do bautismo» (61-62). Piero Camporesi escreveu O Pão Selvagem, um
ensaio sobre a fome, a miséria e a falta de comida provocada por doenças, em momentos em que não
havia pão e em que as pessoas eram capazes de comer carne humana44, daí o título do livro. Na
verdade, houve épocas em que os ocidentais foram obrigados a recorrer ao canibalismo. Massimo
Montanari diz-nos que na Idade Média o pão atravessa os documentos de uma maneira obsessiva, e que
as terras para cultivar eram «terras para pão», o que nos comprova Gil Vicente 45 a propósito das terras
de Coruche:

«Oh, que matos pera pão,


18

que vales pera açafrão,


e canas açucaradas» (JDB 47-49).

Nos primeiros mistérios medievais a representação da última ceia foi um dos episódios mais
relevantes do ciclo narrativo da vida de Jesus. Esta cena foi-se afirmando certamente pelo seu carácter
pitoresco e dramático, com a denúncia do traidor e a anunciação do Calvário. Tudo indica que este
episódio se tivesse desenrolado na noite precedente ao dia em que Jesus foi crucificado, na véspera do
sabat, numa sexta-feira (cf. Mt 26, 17-20; Mc 14, 12-17; Lc 22, 7-18). Foi nesta refeição divina que Jesus
instituiu a eucaristia, momento da transubstanciação. O cálice da eucaristia havia sido preconizado no
sangue da circuncisão, como vemos em muitos pintores, nomeadamente em Vasco Fernandes46. O
corpo e o sangue de Jesus, simbolizados respectivamente pelo pão e pelo vinho, são consagrados e
oferecidos em sacrifício. No Novo Testamento, o apóstolo João afirma que «a carne de Cristo é um
verdadeiro alimento» (Jo 6, 35-48). André Green nota justamente que «nos evangelhos a destruição do
corpo de Cristo, ainda que provisória, não é mencionada, nem tão-pouco a do pão durante a
incorporação»47. A ceia mais famosa é aquela que Leonardo da Vinci pintou para o refeitório da Igreja
de Nossa Senhora da Graça em Milão, em 1447, onde o pintor deu grande valor ao texto bíblico e
ênfase ao gesto dos apóstolos.
Na Tragicomédia da Serra da Estrela, Gonçalo não quer que a mulher escureça a trabalhar ao Sol: «não
quero que vás mondar/não quero que andes ao sol» (366-367). O paradigma de beleza era uma pele
branca e rosada. Marta Dias, a mansa, deseja proteger-se. O chapéu de palma aqui referido é, por certo,
idêntico aos que sobejamente observamos em iluminuras:

«Tendes sombreiros de palma


muito bons para segar
e tapados pera a calma?» (FEI 732-734).

No entanto o pão era necessário a todos, e os camponeses têm de lutar contra o tempo
meteorológico para que todos tenham que comer e têm de sofrer com o estado atmosférico, sempre
hostil: «Ora dá palha sem grão/ora não dá grão nem palha» (AGR 148-149) ou ainda, «que tempere a
invernada/e leixe criar o trigo» (AGR 104-105).
Na peça Juiz da Beira, vários queixosos pedem ajuda jurídica. Ana Dias queixa-se de um homem que
abusou da filha, «e o trigo era creçudo/e foi-se a ela» (JDB 183-184) e «era o pão onde os achei/mais
alto que é essa vara» (203-204). O cereal encobria os amantes, a filha e o namorado. Numa outra peça,
19

uma mulher casta é pura como o pão: «limpia como el trigo/que se coge a buen placer». A
multiplicação do pão é relatada no Breve Sumário da História de Deus: «farás destas pedras todas/ pão de
calo» (952-953). No dia seguinte ao da multiplicação dos pães, episódio presente nos quatro evangelhos,
sendo o texto de João o mais importante (VI, 1-13), Jesus convida os Judeus a guardar o pão para a
vida eterna. Sem o compreenderem, eles evocam o maná, o pão dos anjos. No entanto Jesus afirma que
a alimentação do tempo da salvação não é o maná mas o pão de Deus, aquele que desce do céu e dá
vida ao mundo, e acrescenta que ele é esse próprio pão. Pão da vida (Jo 6, 41; 48-51) é o termo aplicado
a si próprio no discurso que prepara a instituição da eucaristia: «porque é fartura infinita/é chamado
panis vitae» (657-658), diz Prudência a propósito de Jesus no Auto de Mofina Mendes.
Na Farsa dos Almocreves assistimos a uma brincadeira, o Fidalgo goza com o Capelão por estar rouco
depois de ter ingerido açorda, um prato pesado, e estabelece uma comparação entre um animal grande
e forte com comida que empanturra. Esta crítica vem a propósito do Fidalgo tentar ajudar à missa em
latim e desconhecer essa a língua:

«tendes essa voz tão gorda


que pareceis alifante
depois de farto d’açorda» (161-163).

O pão, tal como a roupa, também se oferece. O Bailarino do Juiz da Beira oferecia pão à sua amada
«eu lhe trazia das bodas/sempre o capelo atestado/de figos de carne e pão» (705-707). Na Farsa de Inês
Pereira, Pêro Marques também tem um presente alimentício para Inês, oferta-lhe peras, criando uma
simbologia para os dois nomes, o dele e o dela. A pêra lembra uma chama e pode evocar o primeiro
fruto. Na Exortação à Guerra, Aquiles apela à pobreza, pois é preciso economizar para fazer a guerra:

«deveis vender as taças


empenhar os breviários,
fazer vasos das cabaças,
e comer pão e rabaças» (481-484).

Como José Labaredas apontou, o ciclo do pão está patente no teatro vicentino48. Este ciclo pode
abranger o período a partir do arranjo da terra até ao cultivo do cereal, à época das colheitas e ao seu
fabrico. Dom Duardos, nobre apaixonado, indo ao moinho, também participa na feitura do pão, assim
20

como Dom Rosvel, disfarçado de Juan de las Brozas, tem a mesma tarefa, «ir por leña y al molino/traer
mato para el horno/y aun cocer» (VIV 467-469).
Temos ainda os pratos cozinhados com pão, todos eles, como constataremos, ainda hoje
confeccionados. Comecemos pelas migas. Nas ocorrências de migas é difícil destacar o nível social. O
Viúvo da comédia do mesmo nome, dirige-se a Dom Rosvel referindo a comida do pobre: «cena, cena
dalde, el pan,/y migas a gran hartura/con del ajo» (559-601). Num outro sentido, Margarida no Auto
Pastoril Português escondeu uma imagem de Nossa Senhora num feixe de lenha e oferece migas como
recompensa a quem a descobrir: «mas é pera adivinhar/e quem quer que o acertar/eu a fartarei de
migas» (407-409). Aqui as migas são uma recompensa. Não encontrámos em Gil Vicente a palavra
broa, citada no Cancioneiro Geral bem como no Auto de Vicente Anes Joeira e na Farsa do Físico de Jerónimo
Ribeiro. No Cancioneiro Popular Português temos quatro ocorrências da palavra migas, seis de filhós,
quinze de bolos e a palavra açúcar só existe em relação ao amor49.
Nas peças cómicas, Gil Vicente graceja por vezes com os alimentos, mas sempre com contenção,
com uma espécie de respeito que não encontramos no teatro francês da época. Na Floresta de Enganos
(1536), uma personagem a quem chamam doutor, com a idade de sessenta e seis anos (de cor negra?),
estuda um livro de leis quando surge uma moça. Ela deseja brincar com ele, dar-lhe uma lição e ensiná-
lo a amassar pão. O nosso dramaturgo diverte-se a estabelecer uma comparação entre o saber manual e
o saber intelectual. As duas personagens combinam a hora do encontro, entre as nove e as dez. Ele
deve assobiar ou tossir para se anunciar, artifício que encontramos muitas vezes no teatro e que
presenciamos no Auto da Índia, ou mais tarde na ópera. A Moça compraz-se em achincalhá-lo (a palavra
negro aparece várias vezes), tira-lhe o hábito de doutor e veste-lhe roupa de padeira, fraldilha e beatilha
e obriga-o a peneirar:

«Quero-vos dar uma lição.


Tomai aqui com esta mão
ora andai assi ao redor.
Ah! isso vai muito loução» (601-604).

Está assim o Velho quando chega uma Velha que não entende o que se passa: «haveis mister
farelos/ou que peneirada é essa»? (677-678). Mas, quando observa um homem de leis mascarado de
mulher, critica o seu desvario em «ser doutor e padeira» dizendo-lhe:

«No baldo achareis, doutor


21

essa negra amassadura,


ou na Sagrada Escritura? (690-692)

Que mau livro é o alguidar


e que letras anciãs» (697-698).

Aqui Gil Vicente reprova mais uma vez os velhos, cita o alguidar das feiticeiras e das misturas,
coloca cada um na sua profissão na sociedade e opõe o saber livresco ao saber empírico. Fazer pão é
uma tarefa primordial de iniciação aos mistérios da terra. Françoise Desportes indica-nos no seu
importante livro sobre o pão que em quase todas as representações iconográficas com padarias
posteriores ao século XIV se encontra uma mulher50. Mas seria mesmo a mulher que amassava o pão
nessa época? Em Gil Vicente, quem fazia a comida eram as mulheres. Não quer dizer que seja sempre
assim como, vimos no início.
4.1.Leite e mel
Leite e mel são dois alimentos muitas vezes citados na Bíblia para designar a terra prometida e de
abundância. Em conjunto, simbolizam uma oposição ao deserto, e aparecem pela primeira vez no Livro
do Exodo (Ex 3, 8). Constituíam a base da alimentação dos Hebreus, na origem um povo nómada, ideia
repetida várias vezes no Auto da Ressurreição: «a terra que mana o leite e o mel» (264), e «a terra que mana
o leite e mel/que nossa herança que de Deos herdamos»? (268-269) e ainda «se bem entendermos
nossas profecias/não vinha a fartar os corpos de mel» (282). As personagens divinas comem o que há
de melhor. O mel é um alimento sagrado, um dos primeiros alimentos do homem, que ganhou logo
uma conotação benéfica. Isaías, vestido de pastor, extasia-se com o alimento de Jesus:

«El su nombre es Maria


que desvia
de ser tú la madre dél;
y el hijo Emanuel
manteca y miel
comerá como yo decia» (570-574).

O mel é um alimento ideal para os bebés porque é natural e assimilado rapidamente. No Auto da
Visitação o Vaqueiro entra no quarto da rainha, que acabara de dar à luz e vai oferecer-lhe os seus
produtos:
22

«Mil huevos y leche aosadas


y un ciento de quesadas;
y han traído
quesos, miel, do que han podido» (105-108).

Branca Anes deseja comprar na feira: «eu queria uma pucarinha/pequenina pera mel» (FEI 742-743).
Temos ocorrências que nos levam à cena bíblica em que Jonas estendeu a ponta da vara num favo de
mel e deu-se conta que tinha pecado. Este gesto levou-o a ser condenado: «provei ansiosamente com a
ponta da vara que tinha na mão um bocadito de mel; e eis que devo morrer por isso? Aqui me tens,
morrerei». No texto vicentino encontramos uma ocorrência alusiva a este episódio. O enforcado
pensava que iria comer um manjar divino antes de morrer:

«Dixe-me, com São Miguel


irás comer pão e mel
como fores enforcado» (BIN 792-794).

Segundo a concepção bíblica, o pão e o mel constituem alimentos não concebidos pelo Criador; o
mel não pode ser dado em ablação a Iavé (Lv 2, 11), e o pão não pode ser fermentado. Relembremos
que o marido de Constança, antes de partir, lhe deixara mel (IND 66).
Os vícios foram muito criticados pelos artistas da época, nomeadamente Hieronimus Bosch foi um
dos mais incisivos. Na Mesa dos Sete Pecados Mortais no Museu do Prado, este pintor ilustra vários,
nomeadamente a preguiça. Gil Vicente ao evocá-la compara-a ao mel: «não há i favo de mel/tão doce
como a preguiça» (JDB 618-619). Para David, superiores ao mel, só as palavras de Deus que lemos nos
Salmos: «oh quão doces são as tuas palavras ao meu paladar! Mais doces do que o mel à minha boca!»
(sal. 119-120). Relembremos que Jesus Cristo, depois de ressuscitado, comeu um favo de mel oferecido
pelos discípulos.

5. O vinho
O vinho tem sido exaltado em todas as civilizações. É uma bebida muito consumida desde os
Egípcios, como o ilustram pinturas fúnebres, apesar de a bebida local ser a cerveja. O povo hebreu
exaltou o vinho no Antigo Testamento, nomeadamente no belo poema «Cântico dos cânticos», do rei
Salomão: «beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho» (1 1,
23

2), ou «a tua estatura é igual à palmeira, e os teus peitos aos cachos de uvas» (7, 7). O vinho tem uma
função erótica neste poema e é um termo de comparação muito elevado. No Novo Testamento o vinho
aparece tanto como exemplo positivo como maléfico. Jesus cita nas Parábolas a vinha e as folhas de
videira para exemplificar e enriquecer o seu discurso.
Os Gregos serviam-se do vinho para libações, para a alimentação e como bebida para acompanhar
os repastos. No entanto é com os Romanos que o vinho é exportado para os países conquistados,
tendo-se tornado um dos agentes da romanização. Na cidade de Pompeia, foram encontradas várias
tabernae onde era vendido vinho. Os Árabes, no início, bebiam vinho, mas com o nascimento do
Profeta o vinho foi proibido pelo Corão.
Na obra vicentina esta referência ao pão e ao vinho é recordada por um eremita cuja condição o
obriga a consumir apenas água, pão e vegetais (a carne só era permitida em dias de festa, e nem sequer
em todas as ordens religiosas). Temos dela um exemplo na célebre ocorrência da Tragicomédia da Serra da
Estrela quando um padre deseja abandonar a religião e tornar-se um homem mundano, pedindo pão e
vinho em abundância, uma perdiz e um prato exótico.
O vinho tem vários campos semânticos: é um néctar, mas pode, degenerando, ser propício a
combinações simbólicas contraditórias. É uma bebida recorrente no nosso corpus, pois na época bebia-
se muito. Temos condenações do vinho na obra vicentina e palavras para qualificar as pessoas que
bebiam demasiado, tais como «bebarro» e «almude».
Portugal foi um afamado produtor de vinho. Aliás bebia-se muito vinho em toda a Europa, e
conhecem-se muitas canções da época sobre o vinho, nomeadamente canções de taberna francesas e
inglesas. Uma casa burguesa deveria ter pão e vinho, tanto para os senhores como para os criados. A
pessoa de mais elevado estatuto social era a primeira a beber. Segundo Salvador Dias Arnaut, no século
51
XV as mulheres bebiam mais do que os homens , pois a ração quotidiana de vinho para o convento de
52
Vila do Conde foi de um litro e meio por religiosa .
De Henrique da Mota, poeta, dramaturgo, juiz e comerciante de vinho, podemos ler poemas e
diálogos em honra do vinho. O poema V, listado pelo historiador Neil T. Miller, é dedicado a João Ruiz
de Sousa para que «falasse por ele ao Conde, seu sogro, e a Jorge de Vasconcelos, seu cunhado, sobre o
dinheiro que não lhe pagavam dos vinhos que lhes vendeu para uma armada» lemos na rubrica. No
poema VII organiza um elogio do vinho que pode beber-se sempre e até demasiado. É interessante a
combinação de vinho com fruta, de que temos notícia pela literatura e pelas artes plásticas:

«É uma coisa muito sã


para os corruptos ares,
24

nos dias caniculares


o beber pela manhã
Atouguia ou Lourinhã.
Quem não tiver Caparica
sobre pera ou maçã
e o resto é coisa vã,
em salvo está quem repica»53.

Gil Vicente faz uma apologia do vinho no Auto da Festa54 quando o vilão Janafonso vai bebendo
enquanto fala:

«Não há i tal coração


como depois de beber» (p. 110).

O vinho é importante no teatro porque está associado ao tempo de Carnaval e às peças cómicas.
Nas Cantigas de Escárnio e Maldizer, aparece como uma felicidade para o paladar e um bem para temperar
a comida. Henrique da Mota, escreveu poemas e farsas publicados no Cancioneiro Geral, que seguiam o
tempo ritual do ano, sobretudo o da época carnavalesca, evocando inúmeras vezes o vinho. Na
Lamentação do Clérigo, peça datada por Eugenio Asencio depois de 1514, o vinho é o tema principal. As
55
povoações de Atouguia e da Lourinhã são citadas mais uma vez . A peça começa deste modo:

«Ai, ai, ai, ai e farei


ai, que dores me cercaram
ai de mim, onde me irei?
Que farei triste mesquinho
com paixão,
tudo leva mau caminho
pois que vai todo o meu vinho
pelo chão.»

E assim acaba:

«Todo o género honrado,


25

em que virtude consiste,


ajudai a chorar o triste,
que jaz aqui entornado.
E pois eu por meu pecado,
para tanto mal fiquei
para sempre chorarei.»

A associação do clérigo ao vinho em forma de planctus, o «seu melhor amigo», está próxima do
pranto medieval, como no Pranto de Maria Parda, datado de 1522, e em muitas farsas francesas. No
Pranto do Clérigo o protagonista é um padre cuja amante é uma negra do Congo, uma criada inocente
acusada pelo patrão, que acaba por sair vitoriosa no fim da peça. Henrique da Mota evidencia o
concubinato do clérigo, elemento de inspiração goliarda. Este tema é recorrente na obra vicentina, na
qual encontramos clérigos que não desejam exercer o seu ofício (Clérigo da Beira), que querem mudar de
profissão (Frágua de Amor), que têm amante (Auto da Barca do Inferno) ou que morrem de amor (Auto dos
Físicos). Na Lamentação da Mula, uma outra peça de Henrique da Mota, um animal queixa-se da sua
condição. Os outros comem e bebem, mas a mula é obrigada à abstinência:

«Linguado, perdix, coelho,


e em fim,
muito branco e vermelho,
e eu em palheiro velho
por ruim»56.

Voltando ao nosso corpus, Maria Parda, paradigmática figura de Quaresma, queixa-se do corpo
martirizado pelo tempo (braços, gengivas, lábios) e pela falta de vinho:

«oh vinho mano, meu vinho,


que má hora te gostámos» (23-24).

O texto deste lamento carnavalesco repleto de brincadeiras escatológicas e irreverências não poderia
ter sido escrito depois da Inquisição de 1536 ou da Contra-Reforma. Relata a história de uma mulher
idosa, que pragueja, blasfema e não efectuou nenhum feito extraordinário, personificação do anti-herói.
Gil Vicente insere neste pranto um calendário do tempo: Advento, Carnaval, Quaresma, Páscoa e
26

Ascensão. Temos uma obra sobre a ausência de vinho, e não sobre a morte de um rei ou uma
lamentação amorosa. A personificação da Quaresma através de uma velha era frequente, e o testamento
no fim é comum a estas peças. Maria Parda evoca a missa seca, sem a consagração do cálice, pois não
há vinho. Maria Parda não bebe vinho porque entrou em período de abstinência, no entanto diz «ainda
ontem bebi a mantilha/que me custou dous cruzados» (15-16), e não se consola de não poder beber
vinho: «fiai-me um gentar de vinho/e pagar-vos-ei em linho» (176-177). Maria conhece um local perto
de Lisboa conhecido pelo seu vinho famoso, Pedra da Estrema (325), onde será capaz de ir toda nua só
para poder beber. Tudo é possível pois trata-se de uma peça carnavalesca. Curiosamente, não aprecia o
vinho de Monção. O de Azóia não é evocado apesar de muito conhecido e exportado para França e
para a Flandres. Gosta do vinho verde e do vinho rosé, de clarete e de vinho branco, exportado para a
Inglaterra, a Holanda e o mundo hanseático: «i’eu sempre dar no fito/num vinho claro rosete./Oh,
meu bem, doce palhete/quem pudera dar um grito!» (78-81). Gosta especialmente do vinho de
Malvasia, o bom vinho da Idade Média na Europa e informa-nos ainda sobre a localização das tabernas
em Lisboa57 e de algumas regiões vinícolas na Europa do tempo.
A peça desenrola-se perto do Dia de Ramos ou nesse mesmo dia: talvez seja por isso que existem
ramos verdes às portas. Os vinhos da Candosa têm reputação negativa e parecem ter grande teor em
álcool: «são diabos pera os ratos/estes vinhos da Candosa» (365-366), afirma Pêro Vaz na Farça dos
Almocreves. Na Tragicomédia da Serra da Estrela, Rodrigo afirma que Felipa é vaidosa porque lhe disse,
ridiculizando-o, «que me cheiras a Cartaxo» (437), subentendendo-se que bebeu um mau vinho, e
sabemos que existe um outro mau vinho: «é como bafo da Arruda» (CLB 754).
Numa outra peça, a regateira Branca Anes queixa-se do marido, «que é melhor para beber/que não
pera maridar» (VIV 644-645), admitindo que os alcoólicos são maus amantes. Uma outra personagem
vicentina, o vilão Janafonso, evoca as regiões de vinho: Landeira, Ribatejo, Pederneira, Barreiro,
Chamusca, Cartaxo, Alhandra, Alcochete, Golegã, Tomar, Almeirim, Santarém e Aveiro. Mas quem
vindima? O amigo de Aparício «pisou uvas no lagar», e Fernando, o negro da Frágua de Amor, vindimou
em Castela:

«nova uva já maduro


já vindimai turo turo» (FRA 256-257).

Os falsos camponeses também são obrigados a fazer vinho. D. Rosvel tem de «vindimar y cocer
lino/hacer vino y poner torno/si es menester» (470-471) e ouvir o viúvo a dar-lhe ordens:
27

«cava la viña luego


sin reproche
bien cavada y adobada
y trae cepas para el fuego» (VIV 702-705).

O poeta António Ribeiro Chiado dá-nos a conhecer, na Prática dos Compadres, os vinhos de Monção,
Campolide e Caparica. Recuando no tempo, pela leitura do Leal Conselheiro sabemos que o rei D. Duarte
dissertou sobre a forma de beber vinho, aconselhando vinho aguado e advertindo contra os seus
excessos. Vejamos: «e o vinho, se o bever, seja razoadamente aguado, porque se é forte, dá maior
trabalho ao estamago em no cozer e degerir, e acrecenta sede, per que nom se pode bem soportar com
pouco beber»58 e ainda «bever vinho, o mais do tempo, com duas partes d’agua»59.
Francesc Eiximinis também discorreu sobre o vinho e os seus perigos, sobretudo em relação às
mulheres60. No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria o vinho surge unicamente como medicamento, na
receita para as dores de dentes de D. Luís de Moura. Na Farsa dos Físicos, como veremos a seguir, os
médicos proíbem vinho a João Calado, o clérigo apaixonado, enquanto Brásia pergunta
insistentemente, «e dar-lhe-ei eu puro o vinho?» mas os médicos desaconselham-no vivamente, «não
senão água tal/entendeis, cozida com rosmaninho», responde-lhe Mestre Filipe (267-268).
Não encontramos referência à cerveja na obra vicentina, bebida muito apreciada pelos Egípcios. É a
bebida medieval na Europa, em especial em Inglaterra: «chaque foyer consommait environ un gallon de
61
bière par jour, la boisson naturelle de tout Anglais» .
A este propósito, gostaríamos de chamar a atenção para uma magnífica pintura no Museu do
Louvre, L’Homme au verre de vin, exposta durante muito tempo no departamento da pintura espanhola
do Museu com a etiqueta «Peinture portugaise?». De facto, até há pouco tempo foi considerada uma
obra portuguesa do século XV. No entanto a tábua está actualmente exposta na Sala Jean Fouquet, no
mesmo museu, e é considerada uma pintura francesa. Neste painel deparamos com um homem
representado de frente a segurar num copo de vinho e com um bocado de queijo e pão em cima de
uma pequena tábua à sua frente. Segundo Jean-Louis Flandrin, no Norte da Europa não era muito
comum associar estes três alimentos pelo que seria interessante analisá-los para determinar a região de
origem e poder atribuir o quadro. É possível, inclusive, que se trate de uma das primeiras
representações de um copo de vidro. Num outro quadro mais tardio, o Homem com Copo de Vinho de
Martem van Heemskerk62, distinguimos um retrato de família alegórico em que o pai ergue o copo de
vinho para nos saudar, à esquerda do quadro, e a mulher, à direita, tem o filho mais pequeno ao colo
numa posição imitando a Virgem e o Menino; um rapaz e uma rapariga brincam com cerejas, símbolo
28

do sangue de Jesus e temos uma maçã dividida em cima da mesa com pão, queijo, pêra e noz. O pecado
foi cometido, e o futuro comprometido.
29

6. A carne
«Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem
outra nenhuma alimária, que costumada seja ao viver dos homens; nem comem senão desse inhame
que aqui há muito e dessa semente e fruitos que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais
e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes que comemos».

A carta de Pêro Vaz de Caminha, escrita ao rei D. Manuel em 1500 e só publicada em 1817, mostra-
nos a curiosidade com que os Portugueses viam os outros povos e como lisonjeiam uma outra forma
de comer, a dos Tupiniquins. Mas, de facto, a região era rica em caça e pesca. É curioso que a carne de
porco não seja citada. Será uma ausência propositada?
Nas leis de Moisés, intervenientes nos cinco livros da Bíblia e na Tora, existem normas alimentícias,
em especial em relação à carne. A carne de porco é interdita nas religiões judaica e muçulmana.
63
Encontrámos no nosso corpus, além de porco, carneiro , vaca, borrego, coelho, lebre, perdiz, capão,
bode, veado, novilho, ganso, galinha, pato e perdiz, os enchidos morcela e chouriço. Segundo os
estudos que conhecemos, não faltou gado em Portugal no fim da Idade Média, e a carne mais
dispendiosa foi a de carneiro, vindo em seguida a de vaca, segundo João José Alves Dias64. O carneiro é
um animal sagrado para os Cristãos, Judeus e Muçulmanos. A carne começa a diminuir de consumo e a
ser mais rara na segunda metade do século XVI.
Maria José Azevedo Santos estudou os alimentos contidos no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria e
verificou que galinha vinha em primeiro lugar (29,2 %), seguida de coelho ou láparo (12,5 %), de
carneiro ou porco fresco (8,3 %), de perdiz (8,3 %) e de vaca (4,2%)65.
No outro trabalho da mesma autora, Jantar e Cear na Corte de D. João III, um estudo de dois livros de
cozinha do rei (1524 e 1532) conservados na Torre do Tombo, a historiadora relata que encontrou os
alimentos divididos em quatro partes: a carne e o toucinho, a caça, o pescado e as galinhas. A carne
ocupava o primeiro lugar66.
A carne de vaca consumia-se cozida, em pastel ou para cuscuz. No Tratado de Cozinha, do século
seguinte, do cozinheiro Domingos Rodrigues, o carneiro ocupa o segundo lugar. A carne citada por Gil
Vicente aparece raramente num prato confeccionado, à parte o «desfeito». Pode ser vendida na feira67,
ter sentidos literários ou a influência de contos, do folclore ou de provérbios. É difícil estudar a carne
de uma maneira precisa porque os animais de então eram diferentes dos de hoje, havendo espécies que
desapareceram. Robert Delort é da opinião que «pour les animaux des siècles passés, qu’il n’est plus
possible d’observer, et que les hommes de jadis ne regardaient pas avec les mêmes yeux ni les mêmes
30

préoccupations qu’aujourd’hui, la démarche scientifique de base consiste à rechercher, avec des moyens
modernes, ce qu’il peut subsister d’eux et des éléments de leur milieu»68. Este autor diz-nos que somos
pouco conhecedores do boi antigo e completamente desconhecedores do boi medieval e que certos
animais são tão pouco conhecidos como os homens selvagens. No Auto do Purgatório, o Diabo censura o
Lavrador que vendia «o mais fraco cabrito» (237). A carne de cabrito, apesar de dar excelentes leites,
queijos e manteigas, foi sempre desprezada69.
Isidoro de Sevilha (c. 570-636) consagrou um dos seus vinte livros aos animais. Muitas raças de
coelho, carneiro, gado bovino e suíno desapareceram depois da Idade Média. Boécio, na Consolação da
Filosofia, descreve a ambivalência dos animais e dá como exemplo os animais com os seus defeitos,
valorizando a civilização cristã. Por exemplo, o leão tanto pode representar o Diabo como Cristo. O
cordeiro é inocente e sacrificado. Existe uma concepção não zoológica dos animais muito antiga; o
animal é o produto de uma visão totalisante do mundo. Na arte cristã o cordeiro representa Cristo, é
uma vítima virginal. O apóstolo João apresentou Cristo deste modo: «eis o cordeiro de Deus», Ecce
Agnus Dei (1, 29 e 36). O cordeiro representa a pureza e o cristão fiel; o javali é a antítese do cordeiro e
está próximo do filho pródigo (Albrecht Dürer). O carneiro é o pastor que encaminha as almas,
correspondendo a Cristo, forte e triunfante, emblema do cristão.
Na Idade Média os carniceiros abriam a procissão de «Corpus Christi», em Coimbra e Évora. Nesta
última cidade desfilavam além dos carniceiros, os lagareiros, os caleiros, os ferreiros e os teleiros70. É
interessante a prática desta festa litúrgica em relação à comida porque Gil Vicente escreveu em 1504
uma pequena peça para exibir na procissão de «Corpo de Deus» chamada Auto de São Martinho, onde
um velho pobre implora pão e agasalho, e São Martinho dá-lhe metade da sua própria capa.
O porco é um animal fortemente simbólico. Foi muito valorizado no mundo romano – «carne
doméstica mais apreciada e vendida, quer fresca quer salgada, foi o prato emblemático do banquete»,
segundo Inês de Ornellas e Castro71. No entanto é proibido aos Israelitas pela lei de Moisés (Lv 11-7 e
Dt 14-8) e aos Muçulmanos. Esta proibição nunca foi posta em causa até hoje. Na religião judaica o
porco é proibido e mesmo o seu nome é evitado. O porco e os seus derivados são marcas de
cristandade que distinguem os Cristãos dos Judeus e dos Mouros. Do corpo do porco tudo serve para o
homem. Sabemos que era abundante na época, os suínos existiam por todo o país e reproduziam-se
rapidamente. No Alentejo eram alimentados com glandes e em Entre-Douro-e-Minho com castanhas.
Rui Fernandes é da opinião de que em 1531 os carros de bois do circuito de Lamego traziam os animais
«mais saborosos do reino por serem cevados com castanhas»72. O castanheiro é a planta selvagem que
produz a melhor carne e a melhor fruta pois produz o visco, que atrai os animais terrestres e os
voláteis.
31

O porco, como todos os animais, possui uma simbologia dupla no cristianismo medieval. Por um
lado, faz-nos pensar num animal abjecto, que se alimenta de animais infectos e cadáveres, que vive num
enquadramento ignóbil e só pensa em comer. Simboliza a luxúria. É esse o sentido que Duarte emprega
em relação a Gonçalo quando lhe chama «guarda-porcos» (CLB 298), o estatuto mais baixo na escada
social. Mas, por outro lado, é o companheiro de Santo Antão, o primeiro santo eremita, tentado várias
vezes pelo Diabo. Em meados do século XI, as relíquias de Santo Antão foram transferidas para a vila
de Saint-Antoine-en-Viennois, importante local de peregrinação.
Segundo Michel Pastoureau, o javali foi-se tornando num animal doméstico nos séculos XII e
XIII73. Na ordem hospitalar antonina começaram-se a criar porcos, que os religiosos deixavam divagar,
o que ocasionava acidentes. Os porcos eram tão abundantes que nos dias de procissão tinham de ser
proibidos nas ruas, tanto em Portugal como em França. No entanto, sabe-se que Philippe, filho do rei
Luís VI, o Gordo, foi morto em 1131 por um porco esfomeado à procura de comida. Michel Pastoureau
é da opinião de que a passagem do porco selvagem ou javali ao porco domesticado foi obra dos
antoninos. Santo Antão é representado nas artes plásticas com o seu porco familiar, como podemos ver
em quadros de Pieter Bruegel e no de Hieronimus Bosch do Museu Nacional de Arte Antiga. Nas
ocorrências de porco no nosso corpus não se verifica ser um animal de exclusão nem um animal
consumido na alimentação. No documento de 1524 estudado por Maria José Azevedo Santos foi
comido assado74. Uma ocorrência pejorativa é aquela proferida pelo Viúvo em relação a Dom Rosvel
disfarçado de vilão: «que haces acá, porquero»? (VIV 433). Na Farsa dos Físicos, foi proibido, tal como
outros animais, por Mestre Felipe: «nem porco, nem cação» (336). Pode estar em correspondência com
a feitiçaria, «eis aqui a mama de porca (FAD d 18), também se oferece, «e trago-lhe dous novilhos/e
uma porca e assi/que lhe já criei dous filhos» (TA 519-521), ou é objecto de carinho, «e dous
porquinhos cilhados/bé, como estão pasmados/quantos feitos que trazeis» (ALM 571-573).
Até agora pensava-se que o porco entrava na alimentação das classes inferiores, mas, mais
recentemente, Bruno Laurioux mostrou-se reticente a esta ideia: «le mythe du porc familial semble pour
le moins à revoir»75, pois nos últimos trabalhos de arqueologia verificou-se que o porco foi uma carne
pouco consumida, tanto pelos camponeses (pouco) como pelos senhores (mais). É um animal selvagem
que se esconde: «este animal se recolhe/nas matas mais esconditas/e lá lhe vão dar feridas», lemos no
Auto das Fadas (628-630). Gil Vicente refere o porco-espinho, «destes há poucos na terra/deve ser
muito estimado/da fortuna, e namorado/sem ter guerra» (640-643)», na mesma peça, designação
imprópria de ouriço-cacheiro. Em determinada época os porcos selvagens eram difíceis de distinguir
dos javalis selvagens.
32

A carne de vaca era consumida pela nobreza em dias magros e estava relacionada com o mundo às
avessas. A carne de boi ou vaca do banquete do casamento de Isabel de Espanha e de Afonso, o filho
de D. João II, não foi ingerida pela corte mas dada em bodo, aos pobres. Neste banquete o carneiro e o
porco foram escolhidos para a mesa dos senhores, e a carne de vaca e a carne salgada para a dos
criados. É estranho que no documento de 1524 figure o consumo de vaca em primeiro lugar. Não seria
para os criados? A serra da Estrela é-nos revelada rica em gado na obra vicentina, «mandará à vila de
Cea/quinhentos queijos recentes/todos feitos à candea» (606-608), exclama a alegoria da serra da
Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela. Ou mais ainda sobre a riqueza desta serra:

«E das vacas mais pintadas


e das ovelhas mais meirinhas,
pera dar apresentadas» (16-18).

«E mais trezentas bezerras


e mil ovelhas meirinhas
e duzentas cordeirinhas
taes, que em nenhumas serras
não nas achem tão gordinhas» (609-614).

Existia em Portugal uma indústria da manteiga, gordura muito utilizada no Livro de Cozinha da Infanta
D. Maria, onde o azeite é pouco referido (o mesmo acontece com Gil Vicente, que só o menciona para
alumiar).

Gil Vicente mostra no seu teatro os animais de uma forma carinhosa, referindo-os mais para ilustrar
ideias do que para a alimentação. A personagem do Inverno no Auto dos Quatro Tempos ao falar dos
animais dos senhores evoca a cabana do menino Jesus tal como a conhecemos pelos Evangelhos
Apócrifos:

«Los borregos de mis amos


la burra, hato y cabaña
con la tempestad tamaña
no sé adó los dexamos» (165-168).
33

O carneiro era uma carne superior (podia ser servido ensopado, desfeito ou à maneira mourisca),
assim como a caça e os animais de pelos ou de penas, e além disso é um animal alegórico que
representa Jesus e aparece muitas vezes na última ceia. Foi a carne consumida pelos senhores e pelos
religiosos nos mosteiros. Surge no segundo capítulo do livro de Domingues Rodrigues. O carneiro tem
sido considerado o animal mais completo em várias civilizações: fornece-nos inúmeras riquezas, como
leite, queijo, lã, carne, couro, fumeiro, cornos, ossos e tripas. Por vezes ajuda o homem como animal de
carga.
76
Cortar a carne constituía uma tarefa muito importante . De acordo com o Livro de Receitas de D.
Maria, a carne era cortada em pedaços muito finos para facilitar a ingestão: «assim como a cortam para
77
comer». Segundo Fernão Lopes (1380-1460), o rei gostava da carne «desfeita, assada e cozida» ou seja,
as três maneiras de preparar a carne. E Garcia de Resende conta que a última refeição de D. João II foi
78
constituída por miolo de pão embebido num molho de carne e sabemos pelo livro de Maria José
Azevedo Santos sobre D. João III que havia na corte por ordem decrescente, perdizes, pombos,
coelhos, leitões, patos e lebres.
O Livro de Caça de Gaston Phoebus (1405-1410) dá-nos a conhecer imagens dos preparativos para a
caça, com o treino dos cães, as campainhas, o tocar da buzina, as roupas dos senhores e dos criados e
as diversas armadilhas proibidas, usadas no entanto pelos mais idosos, para lhes facilitar a caçada. Este
livro compreende oitenta e sete imagens com pormenores realistas. É interessante relacionar estas cenas
com as do início do Clérigo da Beira, se bem que cem anos antes, quando assistimos a uma caça ilegal
com um furão, uma caça clandestina, já antiga, efectuada pelo padre e o filho: «que cães e furão que
temos/pera tempo de mester» (90-91). Isidoro de Sevilha já gabara os furões que ajudavam os
caçadores na caça ao coelho. Utilizavam-se campainhas para fazer sair os coelhos das tocas e em
seguida chegavam os cães. Esta de caçar era proibida em Portugal e em França. As Ordenações Manuelinas
proibiam as armadilhas, a caça com laços, cães, furões e bestas. No Clérigo da Beira podemos ler o que
diz o Clérigo:

«Venham-me os cães
ao redor e o furão
mas o coelheiro não» (160-162).

Na mesma peça, Gonçalo, filho de um lavrador e afilhado do clérigo, entra em cena com um cesto
com marmelos, uma lebre, dois capões e limões (d. 227), seguido de Duarte e de Almeida, moços do
paço, de origem campesina. O Livro de Caça também ilustra a caça com armadilhas que lemos na obra
34

vicentina: «pois morri dependurado/como tordo na buiz». Este animal serve de isco e ostenta uma
plumagem escura. Também se caçava com rola ou pomba para apanhar aves de rapina: «que trago já os
olhos fora/como rola de negaça».
A divisa do Decálogo «tu não matarás» constitui uma proibição relativa ao homem e a qualquer animal
vivo. Depois do dilúvio e de uma nova civilização, ou mesmo de uma segunda criação, o homem
poderá comer carne (Gn 9, 3), mas sem sangue. A caça é proibida porque o animal não tem defesa, a
sua morte é comparável a um assassinato. Os animais têm de ser caçados às escondidas: «cacemos nós
dois coelhos/que isto à noite se fará» (CLB 12-13). Gonçalo receia a caça: «com dous arráteis de
vaca/escusaríeis a caça» (CLB 153-154).
Os Fenícios chamavam saphan ao coelho, nome que parece ter origem na palavra Hisphania, ou
Hispânia. Foi a partir dessa região que o coelho foi conquistando a Europa. Robert Delort pensa que
este animal pode ter uma origem ibérica79. Em Roma designava o sexo feminino, como vemos na
iconografia romana. O senhor tinha facilidade em vigiar o seu domínio, e o coelho não podia provocar
muitos danos, mas o camponês já sofria mais dificuldades, pois os animais estragavam-lhe as culturas.
Era caça fácil de conquistar, mas selvagem: «este cativo animal/e tão vivo namorado/que há-de morrer
a cajado».
Lucas Cranach pintou muitas cenas cinegéticas. Lineu já distingue o coelho da lebre. Existem
diferenças e semelhanças entre eles. A lebre desloca-se num território vasto, enquanto o coelho gosta
de permanecer fechado. Num efeito teatral muito cómico, a lebre, animal muito ágil, ficou presa num
chapéu, diz-nos Gonçalo: «um fidalgo terrastão/com uma lebre no capelo» (CLB 362). A lebre e o
capão é carne apreciada pelos senhores. Existem receitas de coelho em Platino e no Livro de Cozinha de
D. Maria. A lebre é muito recorrente na obra vicentina, e vemo-la mais propriamente associada à corte.
«Indo ver à corte uma lebre» (CLB Arg.), ou «e esta lebre pera haver/dinheiro dos cortesões» (CLB
232-233), e ainda «vendes a lebre, vilão?» (CLB 334).
Existe uma receita de pastel de lebre ou empada de lebre no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria,
alimento especialmente propício à melancolia nos tratados de Robert Burton e de Thimothy Bright. Na
Farsa dos Físicos, Gil Vicente também sabe que tanto a lebre como o empadão são nocivos à melancolia.
Brásia, sempre em luta contra os médicos, cozinhara para João Calado, doente de amor, «pastel de
lebre» (FIS 331).
Os pastores vicentinos são personagens literárias. Conhecemos os seus jogos, as suas preocupações
e os seus amores. São seres aparentemente simples que vivem dos produtos da natureza, com uma
relação privilegiada com os animais, como também vemos na pintura e na gravura. Vivem fora da
cidade, no seu território. O gado não lhes pode escapar, tal como Cristo, o pastor dos cristãos, não
35

pode perder o seu rebanho (Jo 10, 1-18, e Lc 15, 3-37). Têm relações afectuosas com os animais que no
nosso corpus não são comidos. O pastor Gil é feliz: «solo quiero canticar/repastando mis cabritas»
(APC 34-35). Os animais de Mofina Mendes morreram, ela não tem sorte, como o seu nome indica.
Paio Vaz, o seu amo, pergunta-lhe «que tal andam os meus porcos?» (MOF 414), e ela responde «dos
porcos? Os mais são mortos» (MOF 415), e as vacas? «Das vacas, morreram sete/e dos bois morreram
três» (MOF 411-412).
Verificamos a presença maioritária das aves e dos animais de caça. No Livro de Cozinha da Infanta D.
Maria, no qual em primeiro lugar encontramos a galinha, o que nos confirma o que comem os
senhores. A caça tinha uma utilidade social, e a mais considerada era a carne de caça com penas, como
em Itália80. A jovem pensa vender os pássaros na feira mas depois arrepende-se «pois digo-lho a
verdade/pássaros hei-de vender/olhai aquela piedade?», porque tem compaixão. No entanto, Vicente,
espantado, pergunta-lhe:

«E a mesa de meu senhor


irá sem ave de pena?» (FEI 853-854).

Num texto de Bruno Laurioux, historiador da alimentação na Idade Média, é-nos relatado que
Santonino escreveu no seu diário redigido durante um itinerário culinário através da Itália (1485-1487),
que no momento em que viu na mesa frangos assados não pôde comê-los, pois só o bispo tinha o
privilégio de comer voláteis81.
A perdiz, apreciada desde a Antiguidade, era cara. Gil Vicente atribui-lhe um valor de suborno. No
Auto da Barca do Inferno, o Diabo reprova o Corregedor dizendo: «o amador de perdiz!/quantos feitos
que trazeis?» (607-608). E a alegoria da Verdade, no Auto da Festa, a propósito de corrupção, cita-a
novamente: «se tu diante lhe deitas/duas dúzias de perdizes/e outras semelhantes penitas/farás que as
varas direitas/se tornem em cousas fritas» (p. 101)82. O frade da Frágua de Amor confessa a Cupido, «e
eu peitarei perdiz/e dous pares de cruzados» (589-590) e Valério diz-nos no Auto dos Reis Mago: «En
frente de las narices/a perdices/andarás, prometo à mí» (MAG 259-261).
As aves eram raramente servidas aos pobres mas os senhores faziam grande consumo,
especialmente em dias de festa. Frei Narciso, um padre mundano, aprovaria ser um senhor e ter um
«escravo ocupado/que tenha cuidado/dos cavalos e falcões (AGRA 626-625), imagem paradigmática
do senhor.
O galo e a galinha surgem unicamente num contexto narrativo e simbólico, e não directamente
ligados à alimentação. Temos o feminino e o masculino. O primeiro associado à mulher, à dependência
36

e o segundo ao homem, à dominação, ao canto e ao tempo. Em Quem Tem Farelos ouvem-se os galos:
«cacara cá cacara cá (346), e Aparício exclama «pois os galos cantam já» (349). Os galos marcam a hora
como um relógio, e o Escudeiro guia-se por eles:

«Meia noite deve ser


já fora razão comer
pois os galos cantam já» (QTF 347-349).

O galo encontra-se muitas vezes associado ao diabo e à magia. No Auto das Fadas a feiticeira
Genebra Pereira diz, quando está a fazer as suas misturas:

«Mas galo negro suro


cantou no meu monturo» (FAD 200).

Cupido ao tirar da frágua um par de galinhas com tenazes (FRA d 539) queixa-se de não poder
comer galinha, o que não é comum, pois Gil Vicente raramente se refere à ingestão de alimentos:

«Com dinheiro que leixais


não comerei eu galinhas» (FIN 803).

«E sem galinha nem galo» (JDB 608).

O pastor Gregório gaba-se de ter campos férteis, «y mas trienta e dos gallinas». Para os seus
senhores? A galinha vale pela criação, pelos ovos, e a sua gordura em caldo é um alimento para os
doentes, com propriedades anti-inflamatórias. A galinha ou o pato chamando os filhos assemelha-se à
evocação natural da chamada de Cristo às almas. A galinha é o tributo da caridade em algumas obras da
Idade Média. O galo representa em Juan del Encina o fim do Carnaval, o seu canto marca o início da
Quaresma:

Pedruelo tem:

«Três gallos y dos gallinas


traxe puerrros y sardinas
37

por comer» (162-164).

O Negro da Frágua de Amor não quer ser «cativo como galinha» (287) e opta ser «branco como ovo
de galinha» (441). Finalmente fica branco, mas continua a falar língua de preto. A galinha era a carne do
«manjar branco» na Europa, mas Gil Vicente escolheu veado para a confecção deste prato na Farsa dos
Físicos, «e um pouco de manjar branco/de pospena de veado» (250-251). No Livro de Cozinha da Infanta
D. Maria são abundantes os pratos cobertos por ovos, para se assemelharem ao ouro. No documento
de 1524 estudado por Maria José Azevedo Santos aparece a referência ao ovo de galinha, D. João III e
a sua corte comeram 113 dúzias em 22 dias, certamente muitos deles em doces.
Passando ao pato, animal um pouco à parte porque é um animal psicopompo, condutor das almas
dos mortos, vivendo entre a terra e a água. No Auto da Feira, Serafim interroga-se, «esta feira é
chamada/das virtudes em seus tratos?» (744-745), assim como Marta, «das virtudes! e há aqui patos?»
(744-746). Julião, o nosso falso hortelão, pede uma comida que não é da sua condição, «O Dios, quien
tuviera ahora/para os agasajar/un buen pato» (931-933), evocando uma comida de segunda ordem. A
personagem do Parvo, num discurso associado ao mundo às avessas, faz a oposição entre pato e santo
no Auto da Festa:

«Oulá! Dai-me vós piquena.


Ó renego de São Pato» (p. 116).

E Berzabu no Auto da Lusitânia, tem uma linguagem meio demoníaca meio mágica:

«e as moelas dos patos


e os miolos do cão
e o galo de Pilatos» (LUS 735-737).

Com o discurso do Clérigo deduzimos que o pato era barato:

«Porém coma de pato


senão uma talhada,
inda que custe barato» (CLB 39).

«Si queres miracula ver


38

torna lá c’um par de patos,


que se os capões vão baratos
estes assi hão de ser» (CLB 414-417).

Os ovos de pata também estão do lado da desordem e não são caros. A pobre Mofina não tem sorte
quando faz castelos no ar:

«Do qu’este azeite que render


comprarei ovos de pata
que é a cousa mais barata
qu’eu de lá posso trazer:
e estes ovos chocarão
cada ovo dará um pato,
e cada pato um tostão,
que passará de um milhão
e meio, a vender barato» (MOF 459-467).

7. O pescado
No teatro vicentino o peixe não faz parte de uma refeição completa, aparecendo sob formas
variadas: alcapetor, arengue da Alemanha, azevia, berbigão, cação, enguia, lagosta, lampreia, mexilhão,
moxama (atum coberto de mel), pescada, sardinha e solha. Nas Cortes de Júpiter encontramos uma
panóplia muito completa de peixes utilizados em sentido metafórico, sob a forma de disfarce festivo
imitando pessoas importantes do tempo83. O estudo deste cortejo oferece-nos uma boa oportunidade
para conhecer as figuras da época e a sua relação com o mar ou o rio. Na Farsa dos Físicos, temos
igualmente uma enumeração de peixes, em contexto alimentar, embora proibidos, porque se está na
Quaresma. Ficamos a conhecer exactamente quais os peixes que podem ser ou não comidos durante
este período.
A figuração do peixe é alegórica; Cristo é um pescador, e a sua representação inicial nas artes
plásticas foi um símbolo em forma de peixe. O Novo Testamento relata como Jesus alimentou uma
multidão benzendo cinco pães e dois peixes. Existem regras alimentares consoante as religiões. A
religião hebraica proíbe certos peixes, como os que não têm barbatanas e escamas, ou os dois. A lista é
muito extensa. Os peixes com barbatanas e escamas, podem ser comidos (Lv XI e Deu XIV). Os
restantes são impuros. As barbatanas são o equivalente das asas das aves e das patas dos animais
39

terrestres. A locomoção distingue os animais dos vegetais. Os terrestres devem andar, os aquáticos
nadar, e os pássaros voar. Os animais marinhos que não têm barbatanas e que não se deslocam são
impuros (animais revestidos de uma concha), assim como os que têm patas e andam (crustáceos). As
escamas são opostas à pele dos animais terrestres, como às penas dos pássaros. Um pássaro se tem asas,
voa, mas se vive na água em vez de viver no ar é impuro: o cisne, o pelicano, a garça e a ave pernalta.
Nos períodos de abstinência o peixe era obrigatório para os católicos, durante uma grande parte do
ano, e constituía a principal proteína para aqueles que viviam perto da costa. É a comida ideal pois não
contém luxúria. O peixe comia-se muito caro, fresco, seco, fumado e salgado (o mais barato). Na Farsa
dos Almocreves o Fidalgo trata mal o Capelão, que não tem voz para cantar, não é entoado, e dá-lhe um
mau peixe «de dous anos salgado/o pior que há no mar» (182-183). O peixe deteriora-se rapidamente e
era conservado com sal. O comércio de peixe deveria dar lucro, pelo que lemos no Auto da Índia,
quando Lediça diz ao Cortesão: «lançai na sisa do peixe/e logo sóis remediado» (LUS 49-50). Sabemos
84
que a pescada era muito apreciada , tal como o salmão, a lampreia, a enguia do mar, o sável e o
salmonete. Na corte de Afonso V comiam-se linguados, solhas, azevias, salmonetes e ostras. A ostra era
abundante e barata85. O salmão era copioso na Normandia e o arenque nunca se desenvolveu em
Portugal. A. H. de Oliveira Marques dá-nos uma listagem dos peixes consumidos em Portugal no final
da Idade Média: «Um dos peixes mais consumidos pelos portugueses, na Idade Média, parece ter sido a
pescada. Sardinhas, congros, sáveis, salmonetes e lampreias viam-se também na mesa de todas as
camadas sociais. Ruivos, pargos, atuns, trutas, solhas, besugos, cações, rodovalhos, gorazes e muitas
outras espécies eram também alvo da culinária do peixe. Também se comia carne de baleia e de
toninha. Mariscos e crustáceos eram frequentes»86.
Maria José Tavares Santos em Comer com D. João III, faz um estudo sobre os peixes ingeridos na corte
portuguesa no mês de Novembro de 1524, e são diversos os peixes encontrados: sardinhas, choupas,
azevias, muges, cavalinhas, pescadas, linguados, salmonetes, besugos, bordalos, gorazes, pargos,
linguados, litões, sáveis, congros, santolas e ostras.
A sardinha foi um peixe muito consumido por todas as classes sociais. Garcia de Resende é de
87
opinião que a sardinha «era muita e sabia muito bem e custava muito pouco» e Jacques Bonnadier
88 89
chama-lhe o «pão do mar» . Gil Vicente, tal como outros autores, refere este alimento diversas vezes .
90
Pensamos que se trata dum peixe popular que corresponde à Quaresma no Sul da Europa e ao
arenque dos nórdicos «feito arenque d’Alemanha» (JUP 299). É tanto o peixe ingerido pelos místicos
franciscanos como à mesa dos reis. Amâncio Vaz o marido da mulher brava, elogia a mulher:
40

«Outro bem terás com ela


quando vieres da arada
comerás sardinha assada» (FEI 604-606).

Existem muitas ocorrências de sardinha: Pedrinho, o menino da Comédia de Rubena, está muito
orgulhoso porque tem sardinha inteira (RUB 798). Faziam-se empadas com sardinhas, um acepipe
muito em voga na época, com sardinhas e uma massa de farinha de trigo, feita com água e sal. Este
prato foi muito apreciado pelo rei D. Afonso V. O escudeiro do Juiz da Beira também conhecia este
alimento, que oferecia à namorada: «as empadas de sardinhas,/bacios de camarinhas,/a talhada do
melão» (501-503).
Alguns versos lembram-nos o mundo representado no quadro a Nave dos Loucos de Hieronimus
Bosch, onde vemos um peixe pendurado numa árvore, «este negro chilra mais/que salmonete em
figueira (NAO 608-609), ou mesmo no discurso do Parvo no início da Tragicomédia da Serra da Estrela:

«pedem-lhe em Coimbra cevada


e ele dá-lhe mexilhões
e das solhas em cambada» (EST 114-116).

Curiosamente a lampreia surge uma vez no nosso corpus, assim como no Livro de Cozinha da Infanta D.
Maria. Mestre Filipe está atento à alimentação do clérigo doente e proíbe-lhe vários peixes próprios a
provocar a melancolia:

«congro, lampreia, tubarão


não coma de meu conselho
inda que estivesse são» (FIS 337-339).

Os pastorinhos amigos de Cismeninha na Comédia de Rubena brincam uns com os outros e falam de
comida. Joane gaba-se do pai e mais uma vez a comida é uma referência para as crianças:

«tomará um peixe tamanho


assi como o nosso tanho
e não vo-lo hei-de dar» (RUB 787-789).
41

Gil Vicente quase não alude ao bacalhau, que sabemos muito abundante. Limitava-se às zonas
costeiras e era a comida da abstinência durante o Advento e a Quaresma. Gil Vicente cria uma polifonia
com quatro versos, em que num deles aparece o bacalhau: «contrabaxas: bacalhaus» (JUP 256). Por
outro lado, o cação deveria ser um peixe muito corrente pois aparece muitas vezes. No Clérigo da Beira a
Velha gaba-se de ter ainda dentes para comer um peixe raivoso, «ainda eu como co’elas/uma posta de
cação» (751-752), e Brásia evoca um peixe semelhante ao pargo, «cabeças de alcupetor» (FIS 241), e
obriga o padre a comer algo que lhe faz mal:

«um focinho de cação


lhe tenho ali bem valente,
com seu caldinho, que é são» (FIS 542-544).

No Amadis de Gaula Oriana tem um viveiro de peixes em casa, certamente para comer, gosta de os
ver nadar. Os senhores tinham viveiros para as épocas de abstinência: «Mais estimo ver nadar/los peces
de mi vivero» (GAU 170-171).

8. Fruta e legumes
Será a maçã o fruto proibido? Num sermão, Gil Vicente comenta este dogma: «No quiero arguir si el
fruto vedado/si era manzana, o pera, o melon» (115-116). Sabe-se que isso se deve às diversas
traduções da Bíblia. De qualquer maneira, a maçã tornou-se o arquétipo de todos os frutos e é ela que
aparece normalmente na literatura e nas artes plásticas. No Aparecimento de Cristo à Virgem do retábulo da
Madre de Deus, de Jorge Afonso (1515), no Museu Nacional de Arte Antiga, Cristo surge depois da
permanência no Limbo. Adão aparece com a maçã na mão esquerda e Eva desenha-se atrás dele. Neste
caso, o fruto traduz a união entre os dois evangelhos, tal como a presença de João Baptista. Michel
Pastoureau, num belíssimo artigo, fala-nos da boa e da má maçã91 e da ambivalência dos frutos. A partir
do momento em que Eva comeu o fruto, o Homem foi obrigado a trabalhar. É interessante verificar
que dois momentos decisivos da História sagrada estejam ligados à comida, tanto no Antigo como no
Novo Testamento.
A fruta comia-se ao natural, seca, em conserva ou em doce. Gil Vicente cita pouca variedade de
fruta na sua obra: amora, camarinha, castanha, cereja, figo, limão, laranja, maçã, marmelo, melão, romã,
tâmara e uva. O marmelo é citado várias vezes. O Diabo no Auto da Feira vende marmelada, e Pedro, o
pastorinho da Comédia de Rubena, afirma ter muita marmelada. Segundo Sara Paston-Williams, a
marmelade, inglesa feita com laranja e limão é de origem portuguesa e foi muito consumida em Inglaterra
42

92
na Idade Média . Tratar-se-á de doce de marmelos, ou da verdadeira marmelade? A marmelada era um
potente anti-escorbuto. Nos barcos, quando os marinheiros ficavam sem alimentos frescos e os
biscoitos se enchiam de vermes, comia-se muita marmelada porque curava. Há várias receitas de
marmelada no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria.
A ocorrência de laranja vicentina é possivelmente de laranja amarga, aquela que D. Duarte, no Leal
Conselheiro, desaconselha, com o limão. A laranja doce só será trazida mais tarde. O árabe Albufeda fez
no século XIV uma descrição das laranjas de Sintra seria o fruto amargo? Uma outra fruta, a cereja, é
uma fruta de festa:

«Traze uma quarta de cerejas


e um ceiltil de briguigões» (IND 273-274).

Nas refeições festivas os frutos são mencionados associados ao vinho. Bebia-se vinho e fruta antes e
depois da refeição. Tratar-se-ia de frutos cristalizados? Ou em geleia? Na Nave dos Loucos de Bosch uma
freira e um frade cantam música profana. Na mesa à frente deles vemos cerejas e vinho. Estão a festejar
num ambiente de mundo às avessas.

Os figos eram abundantes, muito cotados e apreciados em Portugal. São um fruto muito antigo. Por
vezes colhiam-se duas vezes por ano. Vejamos o ditado que Branca Leda cita no Pranto de Maria Parda:

«Olhade, molher de bem,


dizem que «em tempo de figos
não há i nenhuns amigos
nem os busque então ninguém» (PRA 163-166).

Na noite de São João costuma comer-se um figo, fruto que tem a forma da uma chama e que nos
lembra o solstício de Verão e as fogueiras. Os figos, como os outros frutos, têm uma simbólica
ambivalente. Da fruta conhecida no Ocidente o figo deve ser a mais antiga e carregada de símbolos. Na
Bíblia significa abundância. A expressão «não valer um figo» significa não valer nada. Madanela,
ciumenta, diz para Gonçalo:

«Trás Felipa, que é aquela


que não no estima n’um figo» (EST 209).
43

O melão é sazonal e difícil de cultivar, pois necessita de calor e humidade. Foi uma planta mal vista
até muito tarde, até à horta de Luís XIV, em Versalhes, onde ocupou um lugar importante pela beleza e
pela cor. O melão chegou do Egipto no século IX e era difícil de digerir. Nesta ocorrência deve querer
dizer duro: «com’a casca de melão» (EST 166). Lediça lembra o tempo dos alimentos próprios dos
Judeus:

«As amoras e o trigo


vêm no tempo dos melões» (LUS 121-122).

O rei D. Duarte no Leal Conselheiro entre muitos conselhos adverte contra a ingestão de legumes e
aconselha não comer em demasia. Os frutos e os legumes foram também desvalorizados pelos médicos
medievais, que aconselhavam cozê-los antes de serem consumidos e Segundo Oliveira Marques, as
93
classes superiores não os apreciavam .
Os legumes mais consumidos na época foram os seguintes, segundo João Alves Dias:couves,
espinafres, nabos, rábanos, rabanetes, cenouras, beringelas, cebolas, alhos, brócolos, pepinos, espargos,
cogumelos, abóboras, ervilhas, lentilhas, grão-de-bico94. Teremos tudo isto em Gil Vicente? Gil Vicente
cita o agrião, a alface, o alho, a avenca, a beringela, a abóbora, o pepino, a castanha, a cenoura, a couve,
o espinafre, a ervilha, a hortaliça, a lentilha, a naba, o nabo, o rábano e a fava. Em tempo de penúria,
95
estas últimas, sucedâneas do pão, vinham da Bretanha . Juliana, do Auto da Feira, vende favas
originárias de Viana. No interior do país, comiam-se castanhas. No nosso corpus, o camponês queixa-se
sempre das dificuldades da vida do campo. Na Romagem de Agravados, o Vilão chega mesmo a renegar a
sua religião apesar das suas rezas. Duarte afirma que Almeida cheira a nabo, o que quer dizer que é
vilão, que está perto do campo.
É curioso que Gil Vicente mencione apenas o açafrão, a alcaravia e o cominho quando as receitas
culinárias do fim da Idade Média estão repletas de especiarias, de sabores e de cheiros. Do Livro de
Cozinha da Infanta D. Maria constam variadas especiarias: cravo, açafrão, pimento, gengibre, adubo,
cominho, assim como seguintes ervas aromáticas, coentro, hortelã, salsa e cheiros.
Quanto mais elevado é o nível social mais especiarias são ingeridas e mais o leque é alargado. Os
pobres utilizavam quase unicamente a pimenta, herança de Roma. A historiadora da alimentação Inês
de Ornellas e Castro, na introdução à sua tradução do livro de Apício, diz-nos que a pimenta e o cravo
são os condimentos preferidos dos Romanos96. Mas também usavam o açafrão, o coentro, o
cardomomo e o cravo de girofle.
44

No Velho da Horta assistimos a uma cena de um amor trágico entre um velho e uma jovem,
pertencente ao topos «amores desiguais», muito conhecido pelas gravuras. Vemos desenrolar-se um
episódio pungente num jardim, que remete para um espaço sagrado, jardim esse associado à expulsão
de Adão e Eva do Paraíso. Este local está ornado com uma fonte que evoca o jardim das delícias. O
velho Fernandianes vê reflectido na água o seu rosto idoso próximo da morte, ao contrário da figura de
Narciso. Quem costuma olhar-se na água são as jovens donzelas. A horta deste jardim corresponde à
apropriação de um local paradisíaco reconvertido num local de transgressão. O jardim é o local onde se
realiza o ideal cortês, ponto recorrente nas artes visuais. O pretexto do encontro são as ervas ou os
cheiros, «vinha ao vosso hortelão/por cheiros pera a panela» (42-43), diz a Moça, maravilhada com o
perfume das plantas.
As especiarias são conhecidas desde os comerciantes árabes e os seus intermediários venezianos. Os
pratos eram temperados com muitos condimentos (cravinho, açafrão, pimenta, gengibre, canela), e a
eles estavam, em geral, associados ao açúcar, o vinagre e o limão. Segundo Jean-Louis Flandrin, a
variedade das especiarias nunca foi tão abundante como entre os séculos XIV e XVI. Os Italianos e os
97
Ingleses apreciavam mais as carnes açucaradas e agridoces do que os Franceses . O amor pela comida
ácida parece ter precedido o gosto pelo açucarado.
O historiador Braamcamp Freire publicou o inventário da Infanta D. Maria, documento muito
importante para o estudo da história das mentalidades, tanto no que diz respeito ao vestuário como à
vida quotidiana. Nesse documento são feitas referências à pimenta, ao gengibre, à malagueta, à noz-
moscada, ao cravo-da-índia, à canela e ao pimentão. A mostarda melhora o gosto da comida e era de
uso corrente surgindo uma vez na obra de Gil Vicente:

«Vossa vida negra e parda.


Não lhe abastará comer
da vaca com da mostarda?» (FEI 850-852).

A noz-moscada aparece numa obra de um seguidor de Gil Vicente, na peça Vicente Anes Joeira v.
102498. O açafrão corresponde ao estame da flor de crocus sativos. Foi uma especiaria muito cara, Garcia
de Orta chamava-lhe açafrão-da-índia. Gil Vicente refere «campos pera açafrão». No Livro de Cozinha da
Infanta D. Maria surge algumas vezes, pensamos que tanto para dar sabor como para dar cor à comida.
Em Gil Vicente temos uma ocorrência de pimenta, trata-se de Filipa Pimenta, o nome de uma velha do
Auto da Festa, certamente para a associar à volúpia o seu desejo de se casar.
45

Dois líquidos contêm um sentido simbólico muito forte no Auto da Ressurreição onde há uma luta
entre cristãos e judeus sobre a ressurreição de Cristo. No momento em que a terra abala e Jesus
ressuscita, segundo a narrativa bíblica, tanto o azeite como o vinagre se entornaram. No Auto da Barca
do Inferno o vinagre pode significar traidor: «por vinagre beiçudo, beiçudo» (270); e ainda na mesma
peça, «nem ficou vinagre, nem em que o deite» (145). O azeite é tanto um símbolo cristão como
judaico, e o vinagre significa o vinho corrupto, é assemelhado ao infiel. Estes dois elementos explicam
que as duas religiões não se entendem:

«até o pichel que tinha d’azeite.


Fendeu-se-me um pote»,
quebrou-me tigelas
bacios, candeeiros, panelas
não ficou vinagre, nem em que o deite» (141-145).

9. Modos de comer
Observamos no teatro vicentino uma alimentação adequada às idades e aos rituais de passagem. No
Breve Sumário da História de Deus, Satanás evoca o Antigo Testamento lembrando Adão e Eva, «comerão seu
pão com grande suor» (156) e recordando as palavras do Génesis «no suor do teu rosto comerás o teu
pão» (3,19) e como lemos na fala do Mundo, na mesma peça, «semeai das favas, que haveis de
suar/comei dessa fruta amarga, montesa». No exórdio do Templo de Apolo, o próprio Gil Vicente surge
desculpando-se da imperfeição da sua obra porque esteve doente e com febre evocando a extrema
pobreza de Adão e Eva, que não desfrutam sequer de lume para cozinhar depois do pecado cometido:

«la hermosa Eva hacía


unas migas para Adan
sin agua ni sal ni pan
la nieve gelas cozía» (16-19).

Passando ao Novo Testamento, o pastor Brás, ao admirar-se com a quantidade de ovos que comeu a
Virgem depois do parto, exclama: «Con esso se m’acordó/que cuando parió mi ama/chapuzada allí en
la cama/todos los huevos comío» (FE 256-259). Com efeito, os ovos são um dos alimentos da mulher
que dá à luz99, como podemos comprovar no quadro Nascimento de São João Baptista do Museu Nacional
de Arte Antiga, obra de um pintor anónimo português de meados do século XVI, onde uma serva
46

segura num cestinho com ovos para oferecer a Isabel, logo a seguir ao nascimento de João Baptista, sob
o olhar calmo do pai, à esquerda. Os ovos e o leite fortalecem e são símbolos de felicidade eterna, e os
pintores colocam-nos em primeiro plano, marcando o nascimento e a fertilidade, como num outro
quadro, a Adoração dos Pastores do retábulo da Madre de Deus, no Museu Nacional de Arte Antiga, onde
distinguimos uma tigela, certamente com manteiga, um recipiente com leite e, em terceiro plano, um
pastor com colheres de pau na mão. O Livre des simples médicines aconselha a manteiga fresca aos doentes
e aos fracos, que também vemos representado muitas vezes em obras da época100.
Num outro contexto, numa cena de parto comovente, Rubena dá à luz assistida por uma parteira
que lhe dá a comer um doce, para apaziguar a dor: «mordei neste maçapão/esforçai, rosa florida» (280-
281). O maçapão era um analgésico na época; é um bolo de pasta de amêndoa pisada e açúcar, um doce
que se servia nos partos ou nas intervenções cirúrgicas, de que conhecemos uma receita no famoso
Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, inserida no caderno «Coisas de conserva». Sara Paston Williams diz-
101
nos que este foi criado em Itália . Segundo Sylvie Laurent, historiadora da Idade Média, alimentava-se
a parturiente com uma tigela de leite servida por uma colher de pau, ou com um copo de vinho102. No
Nascimento de São Roque de Jorge Leal, exposto no Museu de São Roque, em Lisboa, uma jovem serve
um caldo à mãe do santo, deitada na cama, topos recorrente em outros nascimentos. A sopa, alimento
universal, constitui o alimento quer do rico quer do pobre, e tanto como convém em dias de festa
como em dias de jejum103.
Os pediatras renascentistas cedo se interessaram pela alimentação dos recém-nascidos e sobre ela
escreveram tratados104. O melhor alimento é o leite materno. O mel também é prescrito. No entanto
muitas famílias ricas recorriam a uma ama para amamentar, o que era contrário ao benefício dos
próprios filhos, segundo os médicos. Na Comédia de Rubena a Ama diz «dai-me a criança e mamará»
(RUB 602) mas a Feiticeira tem cuidado com o leite: «primeiro eu saberei/que leite é o vosso, amiga»
(603-604). Gil Vicente poderia conhecer tratados de alimentação de médicos europeus que incluíam
comida de recém-nascidos. Em Itália temos Paolo Ballardo (1494), na Alemanha Mellinger (1491) e em
França Vallembert, médico e poeta. Estes médicos escreveram sobre o leite para o recém-nascido, o
aleitamento, a comida da ama e o seu comportamento moral. Os bebés deveriam deixar de mamar com
o surgir dos dentes105 e então o leite da mãe ou da ama seria substituído por papas. No nosso corpus o
bebé da pobre Rubena come papinhas de pão ralado (RUB 635) e «depois de rebentarem os
dentes/sopazinhas da panela e leite fresco, coado» (637-638). Na mesma peça, as crianças comem
bolos, papas e mel. Cismena e Pedrinho têm uma conversa alimentar a propósito da idade, do que
comem e de quanto comem. Pedrinho e Joane também falam de comida:
47

Pedrinho
«Eu comi papas aquesta» (774).

Joane
«E nós temos tanto mel
que trougue a nossa Isabel» (779-780).

Pedrinho
«Temos tanta marmelada
que minha mãe me há-de dar» (785-786).

A infância esteve muito tempo reservada ao Menino Jesus e à Virgem Maria, a mãe de todos. A
partir do século XVI começa a dar-se mais importância às crianças, e elas têm mesmo uma determinada
maneira de vestir. Gil Vicente tem muito carinho com as crianças como vemos na Comédia de Rubena,
embora Philippe Ariès nos diga que elas só foram mimadas muito tarde106.
O leite era considerado um alimento do espírito e da inteligência do cristão, juntamente com o peixe.
Existia um ritual excepcional de comunhão de pão e de leite. Por vezes nos sarcófagos pré-cristãos
vemos pastores a mungir vacas. O leite na doutrina cristã pertence ao mês de Março, a um momento de
renovação. Allen J. Grieco, autor do livro Table et tableaux, sobre a relação entre pintura e alimentação,
diz-nos que o tema da Virgem a amamentar o Menino apareceu com o fim de persuadir as mães a
alimentarem os filhos. O leite de vaca era tido como perigoso e susceptível de transmitir aos bebés as
107
propriedades dos animais . Gil Vicente, a par dos pintores da época, faz a apologia do leite da Virgem,
pela boca de Cassandra na Comédia de Rubena:

«Yo, dias ha, que hei soñado


y barruntado,
que via una virgen dar
á su hijo de mamar,
y que era Dios humanado» (RUB 445-449).

Um outro tema recorrente nas artes plásticas e na literatura é a recusa de Jesus do leite da mãe
preferindo a cruz: «estando a vezes mamando/tal via de quando en quando,/que no mamava a
sabor:/una cruz le aparecia,/que el temia/y llorav a y suspirava» (CAS 492-497).
48

Os jovens fidalgos e os moços vicentinos passam o tempo a pentear-se e a jejuar. Em Quem Tem
Farelos? os moços de esporas queixam-se de não ter que comer e Aparício diz a Ordonho, evocando a
penúria absoluta, «morremos ambos de fome/e de lazeira todo o ano» (12-13), ou então «nem de pão
não nos fartamos» (33), ou ainda Aparício ao evocar a pobreza do amo exclama «ele não tem meio
pão». Mais adiante, na mesma peça, a Velha critica-o, «e, demais, se não tens pão/que má hora
começaste» (442-444). No Clérigo da Beira, Gonçalo critica os rascões que só têm pão para comer:

«ora fiai de rascão


que farpa todo o pelote
e não se farta de pão» (CLB 37).

O pão acompanhado de alho, cebola, rabanete, tremoços ou favas é comida dos camponeses e pode
substituir a carne para os mais humildes, como vemos na literatura e nas artes plásticas (O Comedor de
Favas de Annibal Carracci, 1583, Galeria Colonna).

«toma um pedaço de pão


e um rabão engelhado,
e chanta nele bocado» (QTF 58-60).

Os jovens ofereciam comida às namoradas tal como roupa. O Bailador do Juiz da Beira ofereceu o
essencial à amada como prova de amor, «eu lhe trazia das bodas/sempre o capelo atestado/de figos, de
carne e pão» (705-708), uma refeição completa. Na mesma peça, um Escudeiro «mandava-lhe a pada de
pão, um bocado de pão (JDB 500).
O cereal continua a marcar o tempo. Para um casamento ser próspero o casal deverá ser distinguido
pelo cereal, «tendes vós trigo/para nos deitar por cima?» ou «tendes vós aqui trigo/ pera nos geitar por
rila» (FIN 958), ou ainda «hulo o trigo que aqui está» diz o Vilão à Velha no Auto da Festa. Ainda hoje
este ritual é praticado. O cereal é símbolo de abundância.
Mudando de cidade e de estatuto, o senhor na obra vicentina come um desfeito ou um manjar
branco, prato inicialmente elaborado com peito de galinha. É um prato comum na Europa medieval e
renascentista existindo variantes quanto à sua confecção. A receita de manjar branco que encontramos
no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria é confeccionada com o peito de galinha preta, diferente do
manjar branco francês ou inglês (com peito de galinha branca). Neste livro a receita foi inserida no
caderno de «Manjares de leite», certamente pela cor. A cor deste prato podia ser muito diversa,
49

acontecendo haver receitas com duas ou quatro cores, e o branco pode mesmo não existir. O desfeito,
um guisado, também figura no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. Sabemos que o Vilão tem um gosto
diferente:

«Porque com duas sardinhas


fico eu mais satisfeito
que vós com o vosso desfeito,
nem com capões, nem galinhas,
não nos fazem mais proveito» (FES 733-734).

Na obra vicentina os velhos desejam muitas vezes aventuras amorosas com pretendentes mais
novos. Apaixonam-se e deixam de comer. Fernandianes, o protagonista do Velho da Horta, prefere a
companhia de uma donzela a ir para casa comer com a mulher na cozinha.
Segundo a tradição, oferece-se ao moribundo um caldo, ou tudo de que ele gosta; é a chamada
«última alegria do moribundo». Na iconografia da morte da Virgem, episódio relatado nos Evangelhos
Apócrifos, surge frequentemente comida numa pequena mesa. Na Miraculização do Cardeal Inglês, do
mesmo ciclo, vemos em primeiro plano uma tigela com grãos de romã, símbolo de abundância e de
eternidade. A romã tem 613 grãos, o mesmo número que encontramos no Livro de Moisés. É um dos
frutos ou plantas que simbolizava a terra fértil de Israel. A última ceia é uma refeição frugal, magra,
salgada, pouco colorida, onde não existe nem prazer nem abundância; situa-se no oposto do repasto de
festa, colorido e voluptuoso.
50

10. Da alteridade
Temos poucas ocorrências em relação ao Outro. Gil Vicente evoca essencialmente uma
alimentação cristã e ocidental. No entanto, no Auto da Lusitânia (1532), mostra-nos em myse en
abîme, na representação de uma peça dentro do auto, o dia de preparação do sabat, ritual que
inicia com a aparição da primeira estrela de sexta-feira rompendo o ciclo semanal. Trata-se de
um ritual preparado na véspera. Em geral, aprontam-se duas refeições, uma para o jantar de
sexta-feira (dia de apparatio), e a outra para o almoço de sábado, pois, como sabemos, nesse dia
não se trabalha. Ao mesmo tempo que se preparam as refeições, várias tarefas de limpeza são
executadas, tanto domésticas como corporais. Estamos num momento de regeneração. Esta
cerimónia tem uma estética na cor e no volume dos alimentos, com saladas e legumes cozidos,
beringelas, cebolas, pimentos e cenouras. Este importante ritual judaico passa-se no seio de uma
família cujo pai é alfaiate, profissão comum entre os judeus em Portugal e na Europa. Nesta
família encontra-se tudo em desordem e sujo. Lediça, a filha do alfaiate, sofre de melancolia e
está despenteada. O pai sujou o mantão. Menoba, o filho mais novo da família, está a dormir. O
nosso autor tanto os reprova no asseio físico como em relação à alimentação. Estão situados do
lado do impuro. Lediça confessa que se tivesse juízo mudava de religião e chamava-se Maria,
Felipa ou Guiomar. E lamenta-se do trabalho que tem e da mãe que está possuída pelo demónio:

«Muito tenho por fazer


e não tenho feito nada.
Está logea por varrer
os meninos por erguer
e enha mãe ensobrada» (1-5).

A comida do sabat é uma comida carnuda, pesada e consistente. Segundo Joëlle Bahloul, a carne de
vaca é «incontestablement l’aliment carné prédominant dans cette nourriture108. Esta carne «sagrada» é a
«viande privilégiée des temps forts de l’année hébraïque»109, o modelo dos animais herbívoros:

«Berenjelas e pepinos
e cabra curada ó ar» (197-198).

Sabe-se que a carne de cabra era desprezada pelos cristãos e Gil Vicente insinua assim que os
cristãos comem a melhor carne. A carne curada ao ar é certamente uma carne salgada ou fumada, da
51

qual foi retirado o sangue – separação do puro e do impuro (Gen 9, 4). É importante que não seja carne
de porco. Esta família come carne de cabra, feminino de cabrão ou bode, símbolo do povo judaico,
como vemos no Auto da Barca do Inferno e nas artes plásticas. Nesta peça, o Parvo denuncia o Judeu, que
«comia a carne da panela/no dia de Nosso Senhor» (597-598). No Auto da Festa, Janafoso, ajudante na
igreja, oferece aos religiosos católicos carne de porco:

«Lá ajudo eu ao meu responso


às vezes ao nosso prior
e trago-lhe dous novilhos
e uma porca e assi» (p. 111).

Passando às artes plásticas, no quadro O Inferno, do Museu Nacional de Arte Antiga, temos uma
representação interessante do porco na pintura portuguesa110. Segundo o historiador judeu Isaiah
Shachar, o «Judensau»111, o judeu a mamar nas tetas de uma porca pertence a um imaginário germânico.
Trata-se de um estereotipo visual mais presente nas artes plásticas do que na literatura, proveniente de
uma corrente antijudaica, conhecida na Alemanha, mas sê-lo-ia no nosso país? Em Gil Vicente
encontramos a expressão «eis aqui a mama de porca» (FAD 181). Bernhard Blumenkrantz, um outro
investigador da história dos judeus, refere esta imagem num capitel em Upsala, Suécia112.
Em certas representações, o judeu não só mama como bebe e come os excrementos (Catedral de
Estrasburgo). Segundo Shachar, «the jews belong to the sow, the sow to the jews»113. O porco também
simboliza os pecados da luxúria e da gula.
Voltando à refeição no Auto da Lusitânia, o pão é um alimento importante neste dia de sabat, era
fabricado em casa e repartido por todos «filho amor, queres do pão?» (281), pergunta a mãe. No
entanto não encontrámos referência ao pão ázimo, ou mazot, no contexto deste menu. Gil Vicente
conhece os preceitos da cerimónia e acentua o aspecto do impuro. O pai tem hemorróides: «assi é meu
pae, senhor, que tem dores d’almorrans/que é cousa d’apiadar» (86-88), e o filho tem diarreia, «Samuel,
bem t’encaminhas/luxas-te-te filho meu?» (133-134). Lediça defende-o, porque ele comeu fruta: «bem
vo-lo dizia eu,/não lhe compreis camarinhas./Agora ele fez o seu» (135-137). Nesta peça, Gil Vicente
faz rir a assembleia através dos alimentos e dos seus efeitos.
As especiarias são importantes nesta refeição e têm três funções: dar cor, dar vida e ajudar a
digestão. O cominho é a mais importante, dá sabor e ajuda a digerir. Acompanha os legumes, os
guisados e as sobremesas. As cenouras e as favas também são próprias da alimentação judaica 114. O pai
pede para jantar:
52

«E çanoiras, porque não


com favas e alcorouvia
e cominho e açafrão» (LUS 199-201).

A sobremesa costuma ser servida com frutos secos, tâmaras, nozes, amêndoas, figos e uvas, em geral
tem um sabor ácido e forte: «pinhoada comereis/ou caçoila de mançãs?» (LUS 160-161). Logo no
exórdio da peça, Lediça é cortejada por um cortesão cristão que se gaba de descender de Adão. Ela não
se interessa por ele no entanto, diz-lhe que pode consolá-lo com pratos judaicos.
Gil Vicente cita essencialmente a comida cristã, à parte esta refeição judaica. No entanto refere ainda
dois pratos exóticos, a «moxama», palavra de origem árabe e o cuscuz (prato do Magrebe) da Moura
Tais. Este último foi um prato muito comum em Portugal e era servido dentro de um cuscuzeiro. Gil
Vicente torna emblemáticos estes dois pratos. «Com o passar dos anos, novos hábitos alimentares
afastaram os portugueses do consumo de cuscuz, tendo, por isso, os oleiros deixado de produzir o
recipiente onde estes eram cozidos, diz-nos a historiadora Isabel Maria Fernandes.
Vários alimentos foram trazidos pelos Árabes entre os séculos XIII e XV: beringelas, espinafres,
citrinos, arroz e massas (cuja difusão se faz a partir de Sicília), de entre outros. O Islão impôs a sua
marca na alimentação. Introduziu perfumes, água-de-rosas, açafrão, canela, cravo-da-índia e noz-
moscada. Faziam-se bolos com frutos secos, tâmaras, uvas, amêndoas, nozes, avelãs e pinhões. A
cozinha portuguesa tem vários pratos de origem árabe, como as almôndegas, que também se faziam em
Roma, e o escabeche, de entre muitos outros. No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria vemos várias
receitas com esta origem: alfitete, almojávenas, filhós com queijo fresco, alféolas, massapão galinha
mourisca, onde curiosamente entra o toucinho, e galinha, ou seja pedaços de galinha fritos depois de
terem sido mergulhados em farinha.
Genebra Pereira é a maga protagonista da Farsa das Fadas. Gil Vicente dá um lugar de destaque a esta
personagem marginal, uma mulher com poderes maldosos e condenáveis. Temos a teatralização de um
acto social em presença da corte, onde uma feiticeira pratica bruxaria com diversos ingredientes. O que
nos interessa neste arsenal de sortilégios são o «bolo de trigo alqueivado/per minha mão
semeado/colhido, moído, amassado/nas costas do alguidar» (185-189). O alguidar lembra o fogo
alquímico. Nesta sessão de magia, temos nas suas misturas «fel de morto excomungado» (183) para os
sofredores de amor. As entranhas servem muitas vezes as misturas mágicas. Genebra serve-se de
sortilégios que vêm dela, para concentrar mais o seu poder. Tudo o que manipula é doméstico, e
mesmo o trigo foi trabalhado por ela. A farinha é a base das suas misturas.
53

Mais adiante Gonçalo é roubado por um Negro que lhe leva o capote e reza um Salve Regina
burlesco. Nesta peça os espíritos parecem em desordem e segue-se uma cena de espiritismo onde
Cezília, incarnando o espírito de um morto chamado Pedreanes (Pedro João), descobre onde estão os
alimentos roubados, o capão está a ser depenado e a lebre a ser assada115:

«E uma moça corcovada


está agora depenando
o capão da tua cunhada.
E o outro se está assando» (CDB 677-680).

Temos nestes dois versos, duas maneiras de tratar a carne. A carne assada destinava-se aos mais
ricos. Cezília diz para Almeida não comer pato, mesmo que seja barato. Já vimos que o pato não era
bem visto nesta época como alimento. Mais uma vez as velhas são maltratadas, nesta peça uma velha
tem a pele macia como costas de caranguejo ou de lagosta de Atouguia.

11. Harmonia e desordem alimentar


Na obra vicentina não existem excessos alimentares, tudo nela obedece a uma ordem harmoniosa do
mundo. Deparamos com uma batalha alimentar na Farsa dos Físicos, uma luta religiosa entre dois tempos
do ano, escrita para uma terça-feira gorda de Carnaval num ano bissexto116. Nesta peça tudo se agita, os
humores evoluem, um clérigo atinge a melancolia e quase a morte, para depois voltarmos ao momento
da Páscoa. O quadro de Pieter Bruegel, o Velho, 1525-1569, Der Streit des Karnevals mit den Fasten,
Combate entre Quaresma e Carnaval, de Viena, é uma pintura que descreve rigorosamente o calendário
folclórico anual donde partiram várias obras plásticas, mais particularmente gravuras.
Gil Vicente redigiu uma peça onde se assiste ao combate entre o Carnaval e a Quaresma, entre o
gordo e o magro, o Inverno e o Verão. Na Farsa dos Físicos temos os quatro humores, com uma tónica
na melancolia, e alguns rituais do calendário, não só religioso como profano. Carnaval dura os quarenta
dias antes de quarta-feira de cinzas117. Quaresma vem de quadragésimo, começa mais ou menos
quarenta dias antes da Páscoa. É um momento de interdições alimentares e sexuais.
Gil Vicente encena uma luta entre a cultura popular e a cultura erudita. A alternância entre dias
gordos e dias magros situa-se no centro da alimentação medieval e organiza livros de cozinha. O
historiador Jelle Koopmans afirma no artigo «La table sur les tréteaux» que no teatro do fim da Idade
Média a oposição gordo versus magro é estrutural118. Madeleine Lazard especialista do teatro francês do
século XVI é da opinião que «les représentations exceptionnelles, se donnent le plus souvent durant les
54

jours gras, les jours des rois, auxquels nombre de pièces font allusion», ideia que tenho defendido em
vários artigos119.

12. O Gordo e o Magro


A desordem alimentar pode ser observada pelo que as personagens comem segundo os ciclos
festivos e litúrgicos, a sua idade e as classes sociais. O gordo e o magro podem mesmo cobrir uma certa
sociologia do alimento. A gordura está do lado dos mais humildes, lemos no teatro europeu. Já no
século XIII, no Jeu de Robin et Marion, representado na Sicília por Adam de la Halle (1283), se associa a
comida gorda aos camponeses e a comida magra ao cavaleiro. Por exemplo, o pastor Robin diz a um
dado momento «o queijo é gordo como deve ser» (149) e deseja ainda toucinho (153), o camponês
Huard gaba «um bom rabo de porco gordo/com puré de alho e noz» (561-562) ou ainda, no Auto
Pastoril Português de Gil Vicente, «queres Joane, toucinho/cum pouco de pão do meu?» diz (373-374). O
disfarce consumado também se associa à ingestão de alimentos. Na Comédia do Viúvo, D. Rosvel ao
disfarçar-se de hortelão tem de se alimentar como um camponês, com alho e pão, «zurrón luego
aparejado,/y unas cabeças de ajos/y del pan» (497-499), assim como Juan, disfarçado de hortelão, pede
comida de pobre, pão e toucinho:

«Primero vendrá del pan


y tocino una pica
que yo baxe la cabeza» (534-536).

O Auto de Dom André, de autor desconhecido, continua a tradição vicentina do teatro profano, em
oposição a Afonso Álvares e Baltasar Dias. Como muitas farsas vicentinas, esta peça contribui para o
estudo da vida quotidiana da época pelas inúmeras referências alimentares (leite/vinho, carne/peixe,
requeijão/toucinho). A alimentação surge nesta obra para sublinhar as dicotomias campo/cidade e
senhor/camponês. Fernando deseja oferecer comida gorda (toucinho) e vinho (bebida propícia à
melancolia) ao Fidalgo, mas o pai não concorda:

«Sabeis que lh’hei-de trazer?


Vindo embora outro caminho,
uma posta de toucinho,
o mais gordo que houver
e uma borracha de vinho» (1490-1494).
55

Vilão

«Não vos ouçam a vós cá isso


que vo-lo estranharão.
Seja leite ou requeijão
que este é cá todo o seu viço» (1496-1499).

Ângela Beirante, num artigo sobre os ritos alimentares nas confrarias, diz-nos que em São Pedro de
Torres Novas «os pobres tinham direito a uma iguaria de pão em merendeiras e carne gorda de porco
em talhadas, tudo em abastança, enquanto os confrades recebiam duas espetadas de carne magra»120. Os
mais pobres comiam mais gordura. Máximo Montanari faz-nos observar as gravuras e as pinturas da
época onde vemos pessoas estropiadas e mancas porque comiam gordura, sem vitamina D, o que
provocava o raquitismo. Mas o gordo e o magro manifestam-se sobretudo no período de Carnaval e
Quaresma.
O primeiro texto com o tema de Carnaval-Quaresma surge no Libro de Buen Amor datado entre 1330
e 1350, atribuído a Arcipreste de la Hita, onde se desenrola este combate ritual entre gordo e magro,
entre alimentos e armas. Mais tarde, Juan del Encina, nas églogas V e VI do Cancionero publicado em
1496, organiza um díptico carnavalesco121. Estas obras foram representadas numa noite de terça-feira
gorda. Na égloga V intitulada Antruejo o Carnestollendas122, o autor personifica o Carnaval com o nome de
«San Gorgomellaz», e descreve assim a sua expulsão realizada pela Quaresma: «tras el Carnal a
porradas/por lo echar/de nuestro lugar» (51-53). A peça termina com a celebração de uma breve vitória
da comida: «oy comamos y bevamos/y cantemos y holguemos/ que mañana ayunaremos» (201-203).
Conhecemos algumas obras francesas com o tema do Carnaval123. Na peça La Dure et cruelle batailleer
et paix du glorieux saint Pensard à l’encontre de Caresme deparamos mais uma vez com a oposição do gordo e
do magro. Do lado do gordo, temos o carneiro, o cerdo e o toucinho. É o domínio do cozido, do
assado e do frito. Do lado do magro, a lista é mais longa e inclui legumes (nabos, salada, favas, ervilhas,
grão-de-bico, cebolas, couves, abóboras), fruta (maçã, castanha), peixes (raia, pescada, solha, enguias,
arenques, estes últimos correspondem à sardinha do Sul), moluscos, crustáceos (lagostins, chocos,
mexilhões), preparações onde intervém o azeite (sopas, saladas e purés). As castanhas são fritas, as
maçãs cozidas. A Quaresma alimenta-se essencialmente de arenque, nabos, favas, saladas e puré de
ervilhas novas.
56

Voltando à Farsa dos Físicos, o clérigo João Calado está apaixonado por uma jovem que lava e
ensaboa na ribeira para retirar a gordura do Carnaval. O clérigo é tratado por Brásia, que lhe oferece
comida gorda, e por quatro médicos, que tentam curá-lo com clisteres, tisanas e sangrias. A comida é
confeccionada por uma mulher, os homens são médicos. Mestre Felipe, o primeiro médico, o do
sangue, recomenda água fervida com alecrim, um clister de cevada e farelos e uma alface cortada e
cozida (como deveria ser segundo Platerius). No entanto Brásia cozinha comida propícia à melancolia,
cabeças de dourada, caldo de patas de boi, manjar branco com uma coxa de veado e um pescoço de
bode (o bode e o veado são animais carnavalescos). O clérigo tem a fleuma avariada.
O outro médico, Mestre Fernando, proíbe a carne de caça, assim como o peixe da família da raia
(muito propício à melancolia segundo Timothy Bright). Brásia cozinhou pastéis de lebre. E dá-lhe ainda
coelho, porco, congro e lampreia (peixe de água doce muito propício à melancolia). O terceiro médico
diagnostica uma alteração da bílis amarela, o «choler». Recomenda uma sangria, um clister e uma
combinação de «caña fistola» e de ruibarbo para decompor os humores. E acrescenta uvas de Coríntia,
tisana de violetas e tisana de borragem, muito diuréticos segundo Platerius. Brásia cozinhou ainda mais
quatro coelhos, tem um salpicão de porco, e mais vinho tinto.
Depois de o clérigo ser visto por Mestre Anrique, chegamos ao quarto médico, Mestre Torres,
astrólogo. O clérigo está cada vez pior, o baço está doente. A bílis negra, defeituosa, vai matar o clérigo,
que já caiu na melancolia. Deste modo tem de comer lentilhas, abóbora cozida e caldo de ervilhas.
Brásia, em contrapartida, tinha preparado um guisado de vaca e dois salpicões.
Os médicos medem-lhe o pulso, examinam as urinas, esvaziam enquanto a bruxa enche. Quem é
ela? O seu nome Brásia lembra Braz, em francês Blaise, nome do santo associado ao Carnaval, o patrão
dos demónios e do sopro. O dia de São Brás, dia 3 de Fevereiro, também se inscreve no ciclo do
Carnaval, é o dia do Santo Sopro.
Em certos mistérios medievais a cozinha gorda tem um papel central. O inferno é uma cozinha. No
Mistério de São Remi, os diabos procuram uma rapariga; como o inferno é uma cozinha, o mártir torna-se
para os carrascos um assunto culinário, «tout comme l’enfer est une cuisine, le martyre devient, pour les
bourreaux, une affaire culinaire»124. Brásia não será uma feiticeira com a intenção de matar o clérigo
com comida? Ela oferece, segundo os livros de plantas e os tratados de melancolia da época, alimentos
gordos propícios a uma melancolia em acção125. A sua alimentação é propriamente infernal. Não lhe
basta cozinhar, assar, preparar guisados e manjar branco, tudo nocivo para a melancolia (mais uma vez
Timothy Bright), não lhe basta dar a beber vinho tinto, uma calamidade, ela dá-lhe, mais
particularmente, a comer entranhas (fel), excrementos e extremidades (pés, cabeças, coxas e pescoços).
57

Ela associa a comida ao corpo humano, aos cotovelos, ao umbigo e, como é óbvio à boca, por onde
tudo entra.
A personagem de Brásia Dias simboliza o Carnaval, tem dores nas entranhas, a barriga inchada,
ventosidade como São Brás. Ausenta-se para expulsar o ar e a matéria fecal, associados a São Brás.
Brásia oferece alimentos flatulentos, «on mange des ‘pois frits’, et cette coutume est assez ancienne
pour que dès les XIIeXIIIe siècles, les farces et les soties aient pris le nom générique de Jeu des pois
pillés. Nicolas de Chesnay é o autor de uma moralidade (1503 e 1505) contra os excessos de comida
que conhecemos pela edição crítica de Jelle Koopmans e Paul Verhuick (1991), La Condamnation au
banquet. No fim da peça Banquete é condenado à morte, e o confessor é obrigado a pregar a
abstinência. Jelle Koopmans é ainda autor de um excelente artigo sobre a alimentação no teatro da
Idade Média126 onde afirma «qu’à partir de 1500, c’est Carême qui sort victorieux»127 como na peça na
Farsa dos Físicos.
Com os jejuns vegetais os cozinheiros fabricavam pratos sofisticados. A «tempura», prato japonês,
provém de uma receita de Quaresma portuguesa elaborada com peixe e verduras.
Maria José Azevedo Santos elaborou um estudo importante sobre os dias jejuados no mês de
Novembro de 1524, com vinte dias gordos e dez dias magros. Nos dias magros havia jejuns, todas as
sextas-feiras e sábados, mais a quarta-feira do dia 9 e a terça-feira do dia 29128. No início da Quaresma
comia-se uma só refeição, ao fim do dia, com produtos vegetais, verduras, legumes, fruta, pão, azeite e
água. Os dias de abstinência podiam compreender quase metade do ano, pois perfaziam três dias na
semana. A Igreja foi inventando novos períodos de jejum para certas celebrações litúrgicas, os jejuns da
vigília e os jejuns do Advento, jejuados às quartas-feiras. No início das estações do ano também se
jejuava, como no jejum de Dezembro, que compreendia toda a semana do Advento. E havia ainda o
jejum de Verão, na oitava de Pentecostes, e o jejum de Setembro, pelas festas de São Lourenço. Estes
rituais relacionados com o tempo foram-se alterando porque eram pouco rigorosos.
O rei D. Duarte no Leal Conselheiro transmite conselhos referentes à comida e à bebida, interessa-se
pelos danos de estômago129, disserta sobre o valor moral e físico da alimentação130 e condena a gula. É
de opinião que aparecem quatro níveis neste pecado:

«Sumariamente em quatro partes o pecado da gula se pode partir. Primeira, que hora razoada,
conveniente ou ordenada para comer ou beber, não quer guardar. Segunda, que o ventre de comer ou
beber deseja sobejamente de encher. Terceira, que viandas e beberes estremados cobiça sempre de usar.
Quarta, que sobejamente com grande folgança e glória faz comer e beber para elo perceber e
131
aparelhar» .
58

O pecado da gula, pecado mortal, revela que a alimentação, objecto de uma necessidade, pode
prestar-se a diferentes formas de desejo, a avidez do corpo que consome, a ambição de ostentação e de
poder. O pecado da gula constrange outros, todos eles mortais, tais como o orgulho e a inveja. Na
Lamentação da Mula Henrique da Mota cita a gula para evidenciar o grau de fome do seu animal:
estaremos na Quaresma?

«Vós, no pecado de gula


não deveis ser culpada»

13. O excesso de gula – o humor negro132


Gil Vicente estava bem informado sobre a alimentação de festa e de penitência e pondera a opinião
da medicina oficial e as soluções da medicina popular. Os tratados de Avicenas e de Galiano deveriam
existir na Biblioteca Real, pois no século XVI a teoria dos humores e a descrição do corpo humano
estão na moda. Galileu interessa-se pela correspondência entre os humores, as quatro idades da vida e o
ciclo das estações. Quando um dos humores predomina sobre os outros, adoece-se. Marcilio Ficino em
Les Trois livres de la vie, dedicado a Lorenzo de’ Medici, um príncipe melancólico, é de opinião que os
homens de letras são propícios à melancolia: o capítulo X intitula-se «Comment on peut éviter l’humeur
noire ou la mélancolie». Segundo Hildegarde de Bingen, «Adão ficou marcado pela melancolia no
momento em que cometeu o pecado original»133.
A melancolia é um dos pecados dos monges do deserto que são habitados por fantasmas devido à
falta de exercício. Lembremos Santo Antão, o primeiro eremita, um santo melancólico. Hieronymus
Bosch nas Tentações de Santo Antão, do Museu Nacional de Arte Antiga, representa a acedia. Este pecado
está representado numa mesa ostentando os sete pecados capitais, por um homem recostado numa
cadeira com uma almofada, a mão esquerda no peito, um chapéu na cabeça, uma bolsa e um punhal no
cinto e um cão branco aos pés (Museu do Prado, Madrid).
Desde Aristóteles que a melancolia se tornou a doença específica do criador, uma das condições do
génio e da literatura, da arte e da filosofia. Na época de Gil Vicente este humor associa-se a Saturno,
deus que valoriza as qualidades intelectuais e também a loucura. Este conceito será usado mais
particularmente pela astrologia. Aristóteles escreveu que os seres melancólicos são dados à tristeza,
ideia que Marcilo Ficino retoma. Em geral, a melancolia é personificada por uma mulher (Albrecht
Dürer, Cesar Ripa), ao contrário de em Gil Vicente.
59

Nas artes plásticas o rosto de Cristo durante a Paixão revela uma expressão melancólica. A morte
está presente na expressão do melancólico que reflecte sobre a duração do tempo muitas vezes face a
uma caveira. Num quadro posterior a Gil Vicente, de Dominico Fetti, no Museu do Louvre (1589-
1624), a melancolia está representada por uma mulher indicando a morte das civilizações.
A articulação entre a melancolia e a comida e bebida, é antiga. Aristóteles num estudo sobre as
relações entre o vinho e a melancolia, o Problema III, 1134, é o documento mais importante para a noção
de melancolia associada ao conceito de génio. Este estudo, traduzido do latim para francês no início do
século XIII por David de Dinant, dá à melancolia o significado de que «todos os homens excepcionais
são melancólicos», citando Platão e Sócrates. Aristóteles, no fim deste texto, afirma que os melancólicos
são seres de excepção, não pela doença mas pela cura. João Calado, o clérigo apaixonado da Farsa dos
Físicos, depois de ter comido e bebido demasiado passa sucessivamente pelos quatro humores135 até
atingir a melancolia136. Platerius classifica os alimentos consoante os humores. Garcia de Orta, no
Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia (1563), usa a palavra melancolia com o significado
que tinha na medicina da época137: «pelo pulso verificam a febre, se está fraco ou rijo, e qual é o humor
que peca, se é sangue ou cólera, ou fleuma, ou melancolia»138. Num contexto freudiano, como na Farsa
dos Físicos, o apaixonado que não vive a sua paixão torna-se melancólico (cf. Luto e Melancolia). Mais uma
vez o historiador britânico Timothy Bright que nos diz que os humores naturais têm origem na comida.
E examina os alimentos que combatem o frio e a secura com o fim de purificar o baço (sede da
melancolia) e aconselha a sangria, os clisteres e as purgas, seguindo os preceitos da escola de Salerno,
que Gil Vicente e os seus contemporâneos decerto conheceram. O nosso rei D. Duarte, rei
melancólico, descreve no Leal Conselheiro a sua própria tristeza139: «da maneira que fui doente do humor
menencorico e dele guareci». No capítulo seguinte ensina como o evitar: «Dos azos per que se
acrescenta o sentido do humor menencorico e dos remédios contra eles». Para D. Duarte a melancolia é
um humor e uma paixão da alma associada a um conjunto de representações próximas da tristeza
profunda. O rei filósofo dá como remédios para combater a melancolia o exercício e regras de
alimentação.
No quadro Combate entre Quaresma e Carnaval de Bruegel, o Velho, vemos ao fundo, à esquerda, o
Inverno a ser queimado numa fogueira. Na Farsa dos Físicos, o protagonista está a morrer febril e a arder
com a comida da feiticeira. Em Portugal existe a tradição do enterro do bacalhau, ritual mais recente,
datando do século XVIII segundo Carlos Lopes Cardoso140. O bacalhau, comida dos dias magros,
simboliza o jejum.

Conclusão
60

No termo desta análise bastante incompleta, podemos constatar que a alimentação evocada no
teatro vicentino é-o praticamente sempre num contexto simbólico. É pouco possível saber exactamente
o que os Portugueses comiam e ou como se realizavam as refeições. Curiosamente a única refeição
confeccionada aparece em relação aos Judeus e quanto aos Mouros temos apenas a «moxama», apesar
de muitas palavras relativas à alimentação terem origem árabe. A comida no nosso corpus não tem cor,
enquanto a comida na época era muito colorida assim como os trajes e as casas.
É curioso verificar que na dramaturgia na não existem nem refeições, nem banquetes e nem festas.
Apenas é evocada uma alimentação com um pequeno papel no desenrolar da peça. Não encontramos
personagens à volta de uma mesa, nem uma refeição completa, nem elementos com uma função
dramática particularmente eficaz. A alimentação aqui estudada leva-nos para um mundo de transição
onde ainda não são conhecidos os novos produtos. O vinho é citado inúmeras vezes e é possível
conhecer através dos textos as regiões produtoras de vinho, os vinhos mais ou menos apreciados e o
seu preço. Gil Vicente não fala em comer carne e alude ao gado metaforicamente.
Estudámos o vocabulário da alimentação com significado dentro da dramaturgia vicentina. A mesa é
uma reconstrução simbólica e os pintores ao representarem-na, atentos aos alimentos que escolhem
para os harmonizarem, conciliam estética, simbólica e quotidiano. Inspiraram-se essencialmente no
Novo e no Antigo Testamento, na Bíblia, nos Evangelhos Apócrifos, na Legenda Aurea, na Vita Christi de
Ludolfus de Saxe, mas assimilaram igualmente lições vindas de outros países.

LISBOA-PARIS

Siglas que enviam ao texto de Gil Vicente

ADA Auto da Alma


AGR Romagem de Agravados
ALM Farsa dos Almocreves
APC Auto Pastoril Castelhano
APP Auto Pastoril Português
AQT Auto dos Quatro Tempos
BIN Auto da Barca do Inferno
BIN Cop. para especificar que se trata do texto da Compilação de 1562
BIN Mad. para especificar que se trata do texto da edição de Madrid
CAN Auto da Cananeia
CAS Auto de Sibila Cassandra
CIG Farsa das Ciganas
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CLB Clérigo da Beira


COI Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra
DDU Dom Duardos
DDU Cop. para especificar que se trata da Compilação de 1562
DDU Mad. para especificar que se trata da edição de Madrid
EST Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela
EXO Exortação à Guerra
FAD Auto das Fadas
FAM Auto da Fama
FE Auto da Fé
FEI Auto da Feira
FES Auto da Festa, a partir da edição do conde de Sabugosa, a única que nos transmitiu este
texto
FIN Farsa de Inês Pereira
FIN Cop. para especificar que se trata do texto da Compilação de 1562
FIN Mad. para especificar que se trata do texto da edição de Madrid
FIS Auto dos Físicos
FLO Floresta de Enganos
FRA Frágua de Amor
GAU Amadis de Gaula
GLO Barca da Glória
HDD Breve Sumário da História de Deus
HDD Cop. para especificar que se trata do texto da Compilação de 1562
HDD Mad. para especificar que se trata do texto da edição de Madrid
IND Auto da Índia
JDB Juiz da Beira
JUP Cortes de Júpiter
LUS Auto da Lusitânia
MAG Auto dos Reis Magos
MOF Auto de Mofina Mendes
NÃO Nau de Amores
PMP Pranto de Maria Parda
PMP Cop. para especificar que se trata do texto da Compilação de 1562.
PMP Palha para especificar que se trata do texto da edição Palha estudado por Luciana Stegagno
Picchio (Il Pranto di Maria Parda di Gil Vicente, Nápoles, 1963)
PUR Barca do Purgatório
QTF Quem Tem Farelos?
RES Diálogo sobre a Ressurreição
RES Cop. para indicar que se trata do texto da Compilação de 1562
RES Mad. para especificar que se trata do texto da edição de Madrid
RUB Comédia de Rubena
SM Auto de São Martinho
TEM Templo de Apolo
TIN Triunfo de Inverno
VAQ Monólogo do Vaqueiro
62

VDH Farsa do Velho da Horta


VIV Comédia do Viúvo

1
Jean Bottéro, La Plus vieille cuisine du monde, Paris, Audibert, 2002.
2
Maria José Palla, Do Essencial e do Supérfluo, Estudo Lexical do Traje e Adornos em Gil
Vicente, Lisboa, Estampa, 1992.
3
«Manger et Boire au Portugal à la fin du Moyen Age», in Banquets et manières de table au
Moyen Age, Centre universitaire d’études et de recherches médiévales d’Aix, Sénéfiance n.º
38, 1996, pp. 95-123; «A mesa é uma construção simbólica, comida e devoção na pintura
portuguesa do Renascimento», II Encontro Interdisciplinar da Universidade Nova de
Lisboa, 1998, pp. 483-497; «Cozinhar é contar uma história. O imaginário alimentar em
Gil Vicente», in Actas do Quinto Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas,
Universidade de Oxford, organização e coordenação de T. F. Earle, Oxford-Coimbra,
1998, pp. 1187-1200; «Comer em Portugal no fim da Idade Média - texto e imagem», in
Universitas Gratiae, Lisboa, 29 de Junho de 1995; «A alimentação em Portugal no limiar
do Mundo Novo», in À Volta da Mesa, Instituto do Emprego e Formação Profissional,
26 de Junho - 4 de Julho de 2004; «O combate entre o Carnaval e Quaresma no ‘Auto
dos Físicos’ de Gil Vicente», in Anuário de Estudos Filológicos, Universidad de
Extremadura, 2006, vol. XXVIII, pp. 229-247. Livre de cuisine de l’Infante Maria du Portugal,
tradução de Maria José Palla, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais, 2008.
4
Livre de cuisine de l’Infante Maria du Portugal, tradução de Maria José Palla, colaboração de
Georges Carantino e de Madeleine Maupetit, prefácio de Maria José Palla, Lisboa,
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de
Estudos Medievais, 2008.
5
Le Viandier de Guillaume Tirel, dito de Taillevent, edição crítica do barão Jérôme Pichon
e Georges Vicaire, Genebra, Slatkine Reprints, 1967.

6
Un Petit traité de cuisine écrit en français au commencement du XIVe siècle, edição de Louis-
Claude Douët d’Arcq, Bibliothèque de l'Ecole des chartres, XXI ano, 5.ª série, vol. 1,
Paris, Dumoulin, 1860, pp. 214-216.
63

7
Jean-Louis Flandrin, quando professor na Ecole des hautes études en sciences sociales,
organizou refeições históricas durante mais de duas décadas. Antes de falecer, em 2001,
fundou a sociedade De Honesta Voluptate, que continua a trabalhar sobre a alimentação e
a realizar a reconstituição de cardápios de diversos países.
8
Massimo Montanari, Food is culture, traduzido do italiano por Albert Sonnenfeld, Nova
Iorque, Columbia University Press, 2006.
9
«Pour une psychologie de l’alimentation contemporaine», in Annales, ESC, 1961, n.º 16,
pp. 977-986.
10
Le Règne de Taillevent, livres et pratiques culinaires à la fin du Moyen Age, Paris, Publications
de la Sorbonne, 1997.
11
Ibidem, p. 210.
12
Histoire de l’alimentation, direcção de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, Paris,
Fayard, 1996.
13
José Labaredas, Coruche à Mesa e Outros Manjares, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999.
14
Maria Luísa Martins defendeu uma tese de mestrado em 2009 sobre a alimentação em
Gil Vicente: «A alimentação do corpo e da alma» em Gil Vicente», Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra, 2009, dactilografada.
15
Daniel Arasse, Le Détail. Pour une histoire rapprochée de la peinture, Paris, Flammarion,
1992.

Massimo Montanari, «Valeurs, symboles, messages alimentaires durant le Haut Moyen


16

Age», in Médiévales, 1983, n.º 5, pp. 57-66, p. 57.


17
Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1973, cap.
212.

Chris Meads, Banquets set forth, banqueting in English Renaissance Drama, Manchester,
18

Manchester University Press, Manchester-Nova Iorque, 2001.


19
Simone Doranson, «Festins shakespeariens insolites ou interrompus», in Boire et manger
au XVIème siècle, in Actes du Colloque du Puy-en-Velay, estudos reunidos e apresentados
por Marie Viallon-Schoneveld, Saint Etienne, Publications de l’Université de Saint
Etienne, 2004, pp. 211-225.
64

20
No teatro de Juan del Encina a sardinha é símbolo de Quaresma. Mas que sardinha?
Se seguirmos o historiador Julio Caro Baroja, pode ser o porco estripado do Carnaval.
Corominas diz existir uma relação entre sardinha e Carnaval, enterra-se a sardinha no
fim do Carnaval.
21
Jacqueline Bouche, «L’alimentation à la cour des derniers Valois», in Pratiques et discours
alimentaires à la Renaissance, direcção de Jean-Claude Margolin e de Robert Sauzet, Actes
du Colloque de Tours, Março de 1979, Paris, G. P. Maisonneuve et Larose, 1982, pp.
161-176.
22
José A. de Sousa Filho, «La civilisation à la française d’un point de vue culinaire: le cas
de Michel de Montaigne», in Boire et manger au XVIème siècle, in Actes du Colloque du Puy-en-
Velay, estudos reunidos e apresentados por Marie Viallon-Schoneveld, Saint Etienne,
Publications de l’Université de Saint Etienne, 2004, p. 66.
23
Lorenzo Dias, La Cocina del Quijote, Madrid, Alianza Editorial, 2003.
24
Mireille Hugon, «Rabelais, diététicien plus que gastrolâtre», in Littérature et gastronomie,
Le Magazine littéraire, n.º 480, Novembro de 2008, pp. 68-69.
25
Mês de Janeiro, «Cena de jantar», Da Costa Hours, in Latin Illuminated by Simon Bening
(1483/1484-1561), Bruges, c. 515, Pierpont Morgan Library, Nova Iorque.

26
As notas da obra de Gil Vicente são enumeradas por Paul Teyssier.

A. H. de Oliveira Marques, «A mesa», in A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da


27

Costa, 1981, p. 7.
28
Danièle Becker, «De la musique dans le théâtre religieux de Gil Vicente», Arquivos do
Centro Cultural Português, Fundação Calouste Gulbenkian, vol. XXIII, homenagem a Paul
Teyssier, 1987, p. 478.
29
Willy Pasini, Nourriture et amour, Paris, Editions Payot & Rivages, 1998, p. 15.
30
Madeleine Lazard, «Images culinaires dans la comédie de la Renaissance», in Spectacle et
image in l’Europe de la Renaissance, Centre d’études supérieures de la Renaissance, Tours, 29
de Junho - 9 de Julho, de 1989, editado por André Lascombes, Leiden - Nova Iorque -
Colónia, 1993, p. 99.
65

31
Massimo Montanari, La Faim et l'abondance, Paris, Seuil, 1995, p. 32.
32
Idem, ibidem, p. 24.
33
Fast, Feast and Flesh, The Religious Significance of food to Medieval Women, University of
California Press, 1985.
34
Maria José Palla, Auto de D. André, Leitura, Apresentação, Regularização do Texto, Notas e
Glossário, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993.
35
«O pão de trigo, entretanto, podia-se encontrar na Europa Ocidental, embora só como
luxo dos potentados. Os pobres costumavam comer pão de cevada ou de aveia, que
eram cereais que se desenvolviam bem nos países nórdicos [...] O único país onde a
comida à base de papas se manteve como expressão básica da dieta alimentar foi a
Escócia», in Carson Ritchie, Comida e Civilização, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 91.
36
Teresa-M. Vinyoles i Vidal, «La comida en la Barcelona gótica: necesidad primaria y
rito social. Comida y alimentación en la Barcelona gótica, Museu d’Història de la Ciutat
Barcelona», 15 de Setembro de 1994 - 15 de Janeiro de 1995, in Del rebost a la Taula,
Barcelona, Museu d’Història de la Ciutat de Barcelona, Ajuntament de Barcelona, 1994,
p. 19.
37
O termo «broa» existe no Cancioneiro Geral para designar o pão, certamente
confeccionado com milho-miúdo.
38
A. H. de Oliveira Marques, «À mesa», in A Sociedade Medieval Portuguesa - Aspectos da
Vida Quotidiana, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1981, p. 16.
39
Louis Stouff, «Ravitaillement et alimentation en Provence aux XIVe et XVe siècles»,
Paris, 1970, pp. 221-230, p. 228.

40 J. B. Bruyerin, De Re Cibaria, Lyon, 1560, t. XXIII.


41
Madeleine Lazard, «Images culinaires dans la comédie de la Renaissance», in L’Europe
de la Renaissance, Centre d’études supérieures de la Renaissance, Tours, 1989, editado por
André Lascombes, Leyden - Nova Iorque - Colónia, 1993, p. 99.
42
Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, Histoire de l’alimentation, Paris, Fayard, p.
603.
43
Paul Teyssier, La Langue de Gil Vicente, Paris, Librairie Klincksieck, 1959, p. 487.
66

44
Piero Camporesi, O Pão Selvagem, Lisboa, Estampa, 1990.
45
Massimo Montanari, 1995, p. 71.
46
Circuncisão, da capela-mor da Sé de Lamego. Encomenda do bispo de Lamego, D. João
da Madureira, no Museu de Lamego, c. 1506-1511.
47
André Green, «Canabalismo», in Enciclopédia Einaudi, 30.º vol., Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1994, p. 93.
48
José Labaredas, p. 143.
49
Isabel Maria Grilo Redol Moita, «O doce nunca amargou: sabores, palavras e imagens
na tradição e no Cancioneiro Português», Mestrado de Estudos Românicos, dissertação
para a obtenção do grau de mestre em Literatura Tradicional e Oral, orientação da
Professora Doutora Ana Paula Guimarães, Fevereiro de 2004.
50
Le Pain au Moyen Age, Paris, Olivier Orban, 1987, p. 83.
51
A Arte de Comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1986 (introdução ao Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal).
52
Oliveira Marques, 1981, p. 16.

Obras de Henrique da Mota. As Origens do Teatro Ibérico, apresentação e estudo de Neil T.


53

Miller, «Poema VII», Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1982, p. 389.


54
Para o Auto da Festa seguimos a edição do Conde de Sabugosa, Lisboa, Livraria
Ferreira, 1909.
55
Ibidem, p. 397.
56
Ibidem, p. 422.
57
Rua da Ferraria, Rua de Cata Que Farás, Ribeira, Alfama, Rua dos Fornos, Poço do Chão,
Mouraria. Maria também é sabedora das regiões de bom vinho. Para ela o melhor de todos é
o de Malvasia (Chipre), de grande reputação internacional. Em Portugal, Maria prefere os de
Caparica, Seixal, Madrigal, e os de termos de Alcobaça e Leiria. Também gostava dos vinhos
de Abrantes, Punhete, Arruda, Alcochete, Alhos Vedros, Barreiro e Ribadavia.
67

58
D. Duarte, Leal Conselheiro, edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes
de Castro, colecção «Pensamento Português», Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1988, p. 367.
59
Idem, ibidem, p. 127.
60
Francesc Eiximinis, Llibre de les dones, edicição crítica de Frank Naccarato, Barcelona,
Departament de filologia catalana, 1981, p. 36.
61
Les Paston, une famille anglaise au XVe siècle. Correspondance et vie quotidienne illustrées, choix et
commentaires de Roger Virgoe, apresentação de Emmanuel Le Roy Ladurie, Paris, Hachette,
1989, p. 72.
62
Maerten Van Heemsterck, Pieter Jan Foppeszoon e a Sua Família, óleo sobre carvalho,
Kassel, c. 1530.
63
A carne mais referida e documentada nos textos catalães é a carne de carneiro
(cordeiro castrado).
64
«Portugal do Renascimento à crise dinástica», in Nova História de Portugal, vol. III,
direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, coordenação de João José Alves
Dias, Lisboa, Editorial Presença, 1998, p. 621.
65
«O mais antigo livro de cozinha português, receitas e sabores», in Separata da Revista
Portuguesa de História, t. XXVII, Coimbra, 1992, pp. 63-95.
66
Maria José Azevedo Santos, Jantar e Cear na Corte de D. João III, leitura, transcrição e
estudo de dois livros de cozinha do rei (1524 e 1532), Vila do Conde - Coimbra, 2002, p.
31.
67
Sabemos por Maria José Azevedo Santos que na corte de D. Afonso V os feirantes
eram mulheres.
68
Robert Delort, Les Animaux ont une histoire, Paris, Editions du Seuil, 1984, p. 15.
69
Joaquim Romero Magalhães, «As estruturas de produção agrícola e pastoril» in História
de Portugal, vol. III, direcção de José Mattoso, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 268.
70
Maria João Violante Branco Marques da Silva, «A procissão na cidade: reflexões em
torno da festa do Corpo de Deus na Idade Média portuguesa», in Separata das Jornadas
Inter e Pluridisciplinares, Actas I, Lisboa, 1993, p. 207.
68

71
Inês de Ornellas e Castro, O Livro de Cozinha de Apício. Um Breviário do Gosto Imperial
Romano, Lisboa, Colares Editora, 1997, pp. 29-30.
72
Joaquim Romero Magalhães, «As estruturas de produção agrícola e pastoril» in História
de Portugal, vol. III, direcção de José Mattoso, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 268.
73
Michel Pastoureau, Les Animaux célèbres, Paris, Bonneton, 2001, p. 75.
74
Idem, ibidem, p. 35.
75
Bruno Laurioux, Manger au Moyen Age, Paris, Hachette Littératures, 2002, p. 14.
76
Arte de Cisoria de D. Enrique de Villena, con varios estudios sobre su vida y obras y muchas notas
y apéndices, Felipe Benicio Navarro, Madrid - Barcelona, 1879.
77
Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. 111.
78
Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea, reimpressão fac-similada da nova
edição conforme a de 1798, prefácio de Joaquim Veríssimo Serrão, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1973, cap. 212.
79
Robert Delort, Les Animaux ont une histoire, Paris, Seuil, 1984, p. 283.
80
Chantal Blanché, «Derrière le décor courtisan, le ‘Tinello’ de La Cortigiana de l’Arétin
au Perfetto maestro di casa de F. Liberati», in La Table et ses dessous, estudos reunidos por
Adelin Charles Fiorato e Ana Fontes Baratto, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle,
1999, p. 246.
81
«Les voyageurs et la gastronomie en Europe au XVe siècle, in Le Désir et le goût, une
autre histoire, actas do colóquio internacional em memória de Jean-Louis Flandrin, Saint-
Denis, Setembro de 2003, Presses Universitaires de Vincennes, 2005, p. 114.
82
Para o Auto da Festa seguimos a edição do Conde de Sabugosa, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1906.
83
Peixe-cavalo, barbo, safio, congro, sardinha, toninha, tubarão, baleia, raia, carapau,
alcaputor, enxarrocas, bacalhau, rocim-marinho, tamboril, cisne, leão-marinho, congro,
baleia, corvo marinho, golfinho.
84
Oliveira Marques, 1981, p. 9. ++
69

85
Maria José Azevedo Santos, «O peixe e a fruta na alimentação da corte de Afonso V –
Breves Notas», in Brigantia, vol. III, n.º 3, Julho - Setembro de 1983, pp. 307-343.
86
Oliveira Marques, 1981, p.10. ++
87
Ibidem, ibidem, p. XVIII.
88
Le Roman de la sardine, Avignon, Editions A. Barthélemy, 1994, p. 13. Apollon Caillat
escreveu em 1898 Un Petit traité de cuisine com cento e cinquenta receitas de sardinha.

89
Maria Parda, à procura de vinho, vê muitas sardinhas nas grelhas. +++
90
A. Rucquoi, p. 302. ++++
91
Bonum, Malum, Pomum, une histoire symbolique de la pomme, Paris, Cahiers du Léopard
d’Or, 1993, pp. 155-158.
92
«As well as the citrus fruits themselves, confectionary made from them was also
imported: quince marmalade or 'marmelada' from Portugal», in The art of dining, a history of
cooking & eating, Oxford, Past Times, 1996.
93
Oliveira Marques, 1981, p.11. +++
94
João Alves Dias, p. 623. +++
95
Idem, ibidem.
96
Inês de Ornellas e Castro, O Livro de Cozinha de Apício. Um Breviário do Gosto Imperial
Romano, Lisboa, Colares Editora, 1997.
97
«Brouets, potages et bouillons», in Médiévales, n.º 5, Novembro de 1983, p. 10.
98
Auto de Vicente Anes Joeira, estudo de Cleonice Berardinelli, Ministério da Educação e
Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1963.
99
Arnold Van Gennep, Les Rites de passage, Paris, Picard, 1981, p. 81.
70

100
Danièle Alexandre-Bidon, Une Archéologie du goût, céramique et consommation, Paris,
Espaces Médiévaux e Picard, 2005, p. 48.
101
Oliveira Marques, 1981, p. 35. ++
102
Naître au Moyen Age, de la conception à la naissance: la grossesse et l’accouchement (XIIe-XVe
siècles), Paris, Le Léopard d'Or, 1989, pp. 207-208.

Sobre a sopa, ver Antony Rowley, A table. La fête gastronomique, Paris, Découvertes
103

Gallimard, 1994, p. 14.


104
Madeleine Lazard, «Nourrices et nourrissons d'après le trait de Vallambert (1565) et
la Paedotrophia de Scevole de Sainte Marthe», in Pratiques et discours alimentaires à la
Renaissance, Actes du colloque de Tours (1979), sob a direcção de J. C. Margolin e R. Sauzet,
Paris, Maisonneuve et Larose, 1982, pp. 69-83.
105
Madeleine Lazard, 1982, p. 78.
106
«A infância», in Enciclopédia Einaudi, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 36.º
vol., p. 368.
107
Allen J. Grieco, Tables et tableaux, Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1992, p. 12.
108
Joëlle Bahloul, Le Culte de la table dressée, Paris, A. M. Métailié, 1983, p. 46.
109
Idem, ibidem, p. 48.

Maria José Palla, «Nova leitura iconográfica d’O Inferno’ in Os Sentidos e o Sentido,
110

Homenageando Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, pp. 167-184.
111
The Judensau, a Medieval Anti-Jewish Motif and its History, Londres, The Warburg
Institute, University of London, 1974, p. 2.
112
Le Juif médiéval au miroir de l’art chrétien, Paris, Editions Augustiniennes, 1966, p. 46.
113
Iidem, p. 3.
114
Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, História da Alimentação, Dos Primórdios à
Idade Média, vol. I, Lisboa, Terramar, 1997, p. 331.
71

Ver Maria José Palla, «Images du sabbat et figures de magiciennes dans l’œuvre de Gil
115

Vicente», in Le Sabbat des sorciers, XVe-XVIIIe siècles, Paris, Jérôme Millon, 1993, pp. 317-
329.
116
Ver Maria José Palla in «O combate entre o Carnaval e Quaresma no ‘Auto dos
Físicos’ de Gil Vicente», in Anuário de Estudos Filológicos, Universidad de Extremadura,
2006, vol. XXVIII, pp. 229-247.
117
Claude Gaignebet e Marie-Claude Florentin, Le Carnaval, essais de mythologie populaire,
Paris, Payot, 1979, p. 9.
118
Jelle Koopmans, «La table sur les tréteaux. Cuisine grasse et cuisine maigre dans le
théâtre de la fin du Moyen Age», in La Vie matérielle au Moyen Age, l’apport des sources
littéraires, normatives et de la pratique, Emmanuel Rassart-Eckhout, Jean Pierre Sosson,
Claude Thiry e Tania Van Hemelryck, Louvain - la - Neuve, 1997, pp. 127-146.
119
Lazard, 1982, p. 95.
120
Ângela Beirante, «Ritos Alimentares em Algumas Confrarias Portuguesas Medievais»,
pp. 559-570.
121
No teatro de Juan del Encina a sardinha é símbolo de Quaresma, enquanto o galo
representa o Carnaval. Neste autor, os alimentos de Quaresma são o alho-porro, o alho,
a cebola (plantas que crescem da terra, que são desvalorizadas), e os alimentos de
Carnaval, o salmão são os bolos, o toucinho, os ovos, a manteiga e o queijo.

Juan del Encina, Obras dramaticas, vol. I (Cancionero de 1496), edição e estudo de Rosalie
122

Gimeno, Madrid, Ediciones Istmo, 1975, pp. 165-177.


123
La Dure et cruelle bataille et paix du glorieux saint Pensard à l’encontre de Caresme, peça
impressa novamente em Paris por Jehan Saint Denis, que costuma ser datada de 1485
(1220 versos). No entanto Marie Bouhaik-Gironès pensa que a peça data de 1529 e
atribui-lhe um autor: François Habert (123). A segunda peça é o Testament de Carmentrant
de Jehan d’Abundance, de 1540 (307 versos). Estas peças foram editadas em 1977 por
Jean-Claude Aubailly . Conhecemos ainda uma peça de Carnaval do fim do século XVI,
atribuída ao autor bazochiano Benoet du Lac, chamada Caresme-Prenant, tragicomédie
quintessencée de folie, publicada em 1595) em Aix-en-Provence.
124
Saint Remi, p. 137.
125
Platerius, Timothy Bright, Robert Burton e Garcia de Orta.
72

126
«La table sur les tréteaux. Cuisine grasse et cuisine maigre dans le théâtre de la fin du
Moyen Age» in La Vie matérielle au Moyen Age. L’apport des sources littéraires, normatives et de la
pratique, Emmanuel Rassart-Eckhout, Jean-Pierre Sosson, Claude Thiry e Tania Van
Hemelryck, Louvain - la - Neuve, 1997, pp. 127-146.
127
Idem, ibidem, p. 141.
128
Maria José Azevedo Santos, Jantar e Cear na Corte de D. João III, p. 42.

O rei Afonso, o Sábio, em As Sete Partidas, dissertou igualmente sobre a alimentação,


129

enumera as maneiras de estar à mesa e interessa-se pela higiene da refeição.


130
Estes conselhos são pertinentes e são os mesmos por toda a Europa.
131
D. Duarte, O Leal Conselheiro, p. 124.
132
Idem, ibidem, p. 70.
133
Raymond Klibanski, Erwin Panofsky e Fritz Saxl, Saturne et la mélancolie, Paris,
Gallimard, 1989, pp. 139-141.
134
Idem, ibidem.
135
Os humores são os seguintes: o sangue (quente e húmido) simboliza o ar, a infância; a
fleuma (frio e húmido) simboliza os jovens e os adultos; a bílis amarela, ou choler (quente
e seco), simboliza a idade adulta; a melancolia (fria e seca) simboliza a velhice e a morte.
Na teoria de Galileu encontram-se correspondências entre os humores, as quatro idades
da vida (Ticciano) e o ciclo das estações do ano (Boticelli).
136
Ver Jerónimo Ribeiro, Auto do Físico, por Francisco Maria Esteves Pereira, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1918, onde o Escudeiro apaixonado sofre de amor e finge ser
melancólico e sofrer do baço. Diz o pai ao filho: «Isso é meleconia/muito certa,
confirmada» (63-64).
137
Garcia de Orta, Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia, vol. II, edição
fac-símile da edição de 1595, dirigida e anotada pelo conde de Ficalho, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1987, p.137.
138
Idem, ibidem.
73

139
Yvonne David-Peyre, «D. Duarte roi du Portugal: une névrose exemplaire», in
Mélancolie dans la relation de l’âme et du corps, Nantes, Université de Nantes, 1979, pp. 73-
113.
140
Carlos Lopes Cardoso, Do Gordo Entrudo à Páscoa das Flores, três aproximações
etnográficas, Lisboa, Instituto Português do Património Cultural, Lisboa, p. 86.

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