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UBERLÂNDIA
2019
DANIEL WANDERLEY CALIMAN
UBERLÂNDIA
2019
Daniel Wanderley Caliman (1994)
O Partido dos Trabalhadores e o Foro de São Paulo: “Laboratório” de Hegemonia Político
Partidária na América Latina
Inclui Bibliografia
Palavras-Chave: Hegemonia, Gramsci, Partido dos Trabalhadores, Foro de São Paulo,
América Latina
DANIEL WANDERLEY CALIMAN
Banca Examinadora
______________________________________________
Prof ª. Dr ª. Patrícia Vieira Trópia
Universidade Federal de Uberlândia
______________________________________________
Prof. Dr. Haroldo Ramanzini Júnior
Universidade Federal de Uberlândia
______________________________________________
Prof. Dr. Filipe Almeida do Prado Mendonça
Universidade Federal de Uberlândia
AGRADECIMENTOS
Nos tortuosos caminhos que me trouxeram até aqui, muitas foram as vezes em que a
desistência bateu à minha porta. Sempre escandalosa e pouco afeita às nuances da vida, ela foi
uma indecente acompanhante ao longo desse trajeto. A preciosidade desse arrombo reside na
ironia de que sem ela, não teria conhecido o valor da resiliência e a maturidade elaborada no seio
do não ser. O não ser se acomodou em minhas entranhas, quase elaborando por si só, a identidade
que carregaria por longos anos. A certeza, tão inocente, se fez em torno de uma identidade
incompleta, em que só me parecia certa uma coisa: acreditar na construção de um mundo em que
a opressão já não seja mais o trilho condutor das relações humanas e dedicar cada segundo de
uma vida a esse objetivo. A questão da incompletude sempre foi escondida em baixo de
justificativas belas, que foram sendo todas apontadas por pessoas queridas, sem as quais não
estaria aqui. Com isso em mente, meus mais sinceros sentimentos de gratidão a algumas pessoas
e elementos.
Antes de mais nada, preciso agradecer ao suporte de uma vida, à pessoa que com seu
carinho, amor, dedicação, cumpriu diversas funções em minha vida, amiga, pai, mãe, esteio de
coragem e salvação. À minha mãe, Marly Cristina Wanderley, que nunca duvidou de mim, nem
quando eu mesmo o fazia, meus mais sinceros agradecimentos.
À minha querida avó, Marly Elza Wanderley, que com sua sabedoria me amparou por
mais vezes do que eu gostaria de admitir e me foi um exemplo de persistência em todos os
tempos.
Minha irmã, Mariana Wanderley Fukuhara, que não mediu esforços para ser um manto de
segurança, amizade e compreensão, merece mais que meu agradecimento, mas meus votos de
compromisso para qualquer momento.
Agradeço à minha tia Marisa, que com seu humor alegrou meus dias mais terríveis.
Ao amor da minha vida, meu bem, Rafael Lorran, agradeço por me tornar uma pessoa
melhor, mais capaz de desprendimento, mais madura e por me ensinar que o amor é possível para
nós, seres em busca de aceitação, afirmação e transformação. Você me cativou e ocupará para
sempre um lugar de destaque em minha vida.
Agradeço ao meu irmão, Odair Caliman, por sua compreensão.
Minha querida orientadora Patrícia Vieira Trópia serviu como fonte de inspiração ao
longo de todos os meus anos na universidade, sendo ela responsável pelo choque de realidade que
levou ao caminho de uma compreensão mais ampla de mundo, resultando na minha dedicação
pela mudança do mundo e a construção do socialismo democrático.
Meus sinceros agradecimentos à Ana Paula e Solange, por me mostrarem os instrumentos
que me permitiram chegar até aqui.
Agradeço ao meu big love Naty Félix, por sua mão amiga, nossos conselhos em meio a
tantas alegrias.
Meus amigos e amigas, que durante tanto tempo estiveram ao meu lado, Anderson, Elton,
Davi, Sargento, Gabs, Cibelle, Analú, Régis, Michele Diego, Gurgel, Amanda, Dani e Targino.
Nossas conversas, bares, militâncias construíram o ser que hoje em mim habita.
Agradeço à Consulta Popular, por me ensinar que confiança e dedicação são ativos
valiosos, que não se devem desprender tão facilmente.
Minha profunda gratidão aos companheiros Valter Pomar, Kjels Jakobsen, José Dirceu e
Celso Amorim, por contribuírem de forma tão ativa para a concretização desse trabalho.
Dedico esse trabalho também à Luís Inácio Lula da Silva e à sua liberdade e a Dilma
Vana Rousseff, uma vez que não seria possível minha passagem por esse universidade sem sua
dedicação na transformação do Brasil.
Por fim, agradeço imensamente a todos os companheiros e companheiras do Partido dos
Trabalhadores, por me mostrarem um caminho possível e me acolherem de forma tão carinhosa.
“A vida, em seus métodos, diz calma.”
Di Mello
RESUMO
The present paper seeks to analyze, from the Gramscian theory point of view, the role of
the Workers’ Party (PT) in the creation and in the process of building the Forum of São Paulo in
the period 1990-2018. I work on the hypothesis that the Workers’ Party played a leading role in
the Forum, giving at various moments the political-ideological direction of the broad spectrum of
Latin American leftist entities involved. The documents emanating from the Forum, the
bibliography on the theoretical approach to hegemony, as well as the one associated with the
history of the Workers' Party and the Forum of São Paulo were used as research sources. As a
complement, we used interviews with key figures who worked in both the Workers’ Party's
Foreign Relations Secretariat, the Ministry of Foreign Affairs, and the overall leadership of the
Party. Exploratory in nature, the research seeks, through analyzes on the internationalist
perspective of the Workers’ Party, to point out ways to understand its process of hegemonic
construction in Brazil and its developments in Latin America. It is concluded with this paper that
the action of the Workers' Party in the Forum of São Paulo took place in the sense of gathering
around its leadership the aspirations of building a counter-hegemonic movement, a task that was
facilitated by the characteristics of the Party itself, strictly speaking, its internationalist vocation
and its plural constitution.
Figura 1 – Fundação do Partido dos Trabalhadores no Colégio Sion, São Paulo, SP.
1980................................................................................................................. 43
Figura 2 – Logomarca do Foro de São Paulo................................................................... 80
Figura 3 – Primeiro encontro do Foro de São Paulo, 1990............................................... 83
LISTA DE QUADROS
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 17
2 A ABORDAGEM TEÓRICA DA HEGEMONIA ................................................................ 23
2.1 A TEORIA GRAMSCIANA DA HEGEMONIA ................................................................... 27
2.2 O PARTIDO DOS TRABALHADORES E A QUESTÃO DA HEGEMONIA .................... 35
3 HISTÓRICO DO PARTIDO DOS TRABALHADORES .................................................... 42
3.1 A CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIA NO BRASIL – A DISPUTA PELA HEGEMONIA
NAS ESQUERDAS NO BRASIL................................................................................................. 52
3.2 A POLÍTICA EXTERNA COMO UM ENSAIO DE CONSTRUÇÃO HEGEMÔNICA ..... 57
3.3 OS LIMITES DO PROJETO HEGEMÔNICO PETISTA ..................................................... 65
3.4 A ATUAÇÃO INTERNACIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES .................. 72
4 A ATUAÇÃO DO FORO DE SÃO PAULO: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO
HISTÓRICA ................................................................................................................................ 79
4.1 AS INFLUÊNCIAS DO FORO DE SÃO PAULO NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
..................................................................................................................................................... 107
4.2 O PROTAGONISMO DO PT NO FORO DE SÃO PAULO ............................................... 112
5 CONCLUSÃO......................................................................................................................... 117
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 123
ANEXO A – Entrevista com Valter Pomar ............................................................................ 128
ANEXO B – Entrevista com Kjeld Jakobsen .......................................................................... 132
ANEXO C – Entrevista com José Dirceu ................................................................................ 139
ANEXO D – Entrevista com Celso Amorim ........................................................................... 147
17
1 INTRODUÇÃO
tornando, com a elaboração das formulações táticas e a adaptação prática da estratégia partidária,
o seu centro dinâmico.
A hegemonia petista no Brasil, apesar de ter aglutinado várias tradições da esquerda
nacional, não exclui a existência de outros grupos dentro do mesmo campo. No entanto, logrou
que a dinâmica de suas relações fosse ditada pela própria condução política germinada no interior
do partido.1
A liderança do PT se fez presente na articulação do Foro, tendo o Partido sediado seu
primeiro Encontro, reunindo 48 partidos de 14 países da região, com o objetivo de discutir a crise
do socialismo e a ascensão do neoliberalismo. Com diversificada composição, passando por
organizações guerrilheiras, comunistas, socialistas, humanistas, socialdemocratas e progressistas,
o Foro foi capaz de abranger todo o espectro da esquerda latino-americana. Seu caráter
permanente, no entanto, só foi instituído a partir do segundo encontro, em 1991, na Cidade do
México.
A conjuntura em que o Foro foi criado é importante para entender seus objetivos. A crise
do chamado socialismo realmente existente, a queda do bloco soviético e a emergência de teses
meramente ideológicas como a do “fim da história” motivaram setores progressistas e críticos da
ideologia neoliberal. O Foro de São Paulo surge exatamente como um contraponto ao
neoliberalismo e à tese do fim da história. Coloca-se como polo aglutinador de uma alternativa
latino americana para a construção do socialismo. Dessa forma, fortalece uma vertente
independentista em relação à região, que busca no bojo das próprias teses e formulações a saída
para sua crise sistêmica (agudizada no período de surgimento do Foro). Essa movimentação
histórica se faz presente na tradição política de inúmeras organizações do continente, que, apesar
do reconhecimento às contribuições dos centros mundiais, preza pela construção autóctone do
conhecimento. As diferentes realidades experimentadas nas regiões diversas do globo motivam
tal forma de ação.
1
Para exemplificar tal dinâmica é possível citar dois recentes movimentos históricos da esquerda brasileira. O
primeiro se fez durante a resposta dada diante o golpe de 2016, quando um amplo setor do campo progressista se
uniu contra o impeachment da presidenta Dilma, excluídos alguns setores minoritários divergentes, como o Partido
Socialista do Trabalhador Unificado (PSTU) e sua linha de transmissão sindical, a CSP-CONLUTAS, setores
modernistas minoritários do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), como a Corrente Socialista dos
Trabalhadores (CST) e alguns trotskistas como a antiga Liga da Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional
(LER-QI), atual Movimento Revolucionário do Trabalhador (MRT). Mais tarde, nas eleições de 2018, frente à
ameaça fascista representada pela candidatura de Jair Bolsonaro, todos esses setores se aglutinaram em torno da
candidatura de Fernando Haddad (PT) no segundo turno, dando escopo à tese de que a dinâmica desse campo
político se constrói em torno do PT.
20
A pesquisa teve um caráter exploratório, uma vez que utilizou fontes primárias e
secundárias, bem como entrevistas com lideranças políticas, com o intuito de se testar a hipótese.
Buscou-se levantar um conjunto de dados e informações sobre a temática, tendo como
fontes primárias os documentos emanados do Foro de São Paulo e a bibliografia acerca do tema.
Foram levantados, lidos e analisados todos os Anais dos Encontros realizados pelo Foro de São
Paulo.
Realizamos, também, entrevistas com membros do PT que tiveram atuação sistemática no
Foro de São Paulo, nas relações internacionais do Partido e na condução da política externa
durante os governos petistas. Foram entrevistados: o ex-secretário executivo do Foro de São
Paulo, ex-dirigente do Diretório Nacional do PT e membro da tendência Articulação de Esquerda
(AE), Valter Pomar; Kjeld Jakobsen, assessor de relações internacionais do PT; José Dirceu, ex-
presidente do Partido e ex-ministro Chefe da Casa Civil; e Celso Amorim, embaixador e ex-
ministro das Relações Exteriores. Observe-se abaixo o quadro de entrevistas:
sociedade civil. Com suas raízes na tradição marxista, da social democracia russa e em Lênin, a
noção de hegemonia foi elaborada por Gramsci, que propôs uma ressignificação da relação entre
estrutura e superestrutura, buscando desmistificar o caráter dominante da estrutura e ressaltar o
necessário papel protagonista da superestrutura no que concerne à análise política da sociedade.
Diante dessa proposição, e compreendendo a composição da superestrutura, afirma um papel de
destaque para a sociedade civil e para a ideologia, como fator intrínseco e permanentemente
cambiante das relações sociais. Esse conceito se ergue sobre uma base classista, entendendo a
classe trabalhadora como fundamental, e indica a necessidade desta classe em ampliar sua base
de aliança social, tendo sempre um instrumento na análise da correlação de forças.
Diferentemente de Lênin, que atribuía à hegemonia um caráter especialmente político, Gramsci
divulgava a centralidade da direção cultural e ideológica das massas. Complementando essa
perspectiva teórica, analisamos também o conceito de hegemonia em Lênin (2015) e seus
desdobramentos em Laclau e Mouffe (2015) e autores gramscianos, como Schlesener (2007).
O segundo capítulo se debruça sobre o modo como, historicamente, se deu a construção
hegemônica do PT, iniciando o debate de sua atuação internacional como faceta dessa
construção.
O terceiro capítulo se propõe a uma atenta análise do Foro de São Paulo, a partir dos
documentos e entrevistas, com a intencionalidade de apontar o protagonismo do PT em sua
trajetória, assim como identificar as influências mútuas entre esta organização e o Partido.
Nas conclusões se buscou contribuir para a unidade das ideias aqui contidas, testando a
validade de nossa hipótese.
23
proletariado deveria assumir a vanguarda do processo político, atraindo para si as demais classes
subalternas (BUONICORE, 2003).
Lênin faz ainda a ressalva de que não bastaria se postular como vanguarda ou exercer um
ato de “autoafirmação revolucionária”, mas sim comportar-se como tal, através de participação
direta na ação política das massas populares de forma contundente o suficiente para que as outras
forças reconhecessem que os socialistas marchavam em frente. Para o líder revolucionário, a
questão do poder político sempre esteve à frente da ordem do dia e a conquista da hegemonia era
um problema a ser elaborado teórica e politicamente, para se ganhar o conjunto das classes
subalternas para sua direção política (BUONICORE, 2003).
Nesse sentido, a construção de hegemonia requeria um certo grau de concessão às demais
classes subalternas, como por exemplo a incorporação da pauta da propriedade de terra, para
ganhar os camponeses para sua direção, apesar de ser uma pauta burguesa. Concessões deveriam
ser feitas inclusive à certas frações das classes exploradoras. É possível afirmar então que a
hegemonia seria resultado da conquista da direção política.
A partir de análise da obra Que Fazer: problemas candentes de nosso movimento, de
Vladmir Lênin (2015), pode-se observar o papel central que assume a questão da consciência
política na construção da hegemonia política e aqui evidencia-se a polêmica com os economistas.
Estes acreditavam que a partir do interior da luta econômica poderia ser atingida a consciência de
classe necessária para a revolução, enquanto Lênin afirmava só ser possível levar a consciência
política ao operariado a partir do exterior, ou seja, de fora da luta econômica e da esfera das
relações entre operários e patrões. Segundo Lênin:
A única esfera de onde se poderá extrair esses conhecimentos é das relações de todas as
classes e camadas com o Estado e o governo, na esfera das relações de todas as classes
entre si. Por isso, à questão: “que fazer para levar aos operários conhecimentos
políticos?” – não se pode simplesmente dar a resposta com a qual se contentam, na
maioria dos casos, os militantes práticos, sem falar daqueles que tendem para o
“economismo”, ou seja: aqueles que respondem que se “deve ir até aos operários”. Para
levar aos operários os conhecimentos políticos, os social-democratas devem ir a todas as
classes da população, devem enviar para toda a parte os destacamentos do seu exército
(LÊNIN, 2015 p. 135).
A partir dessa passagem é possível fazer uma relação direta entre o conceito de
hegemonia formulado por Lênin e a questão da tomada de consciência política do proletariado,
uma vez que se identifica o mesmo critério da necessidade de ampliação da atuação para
25
consolidar a influência sobre as demais classes. O autor demonstra, com sua argumentação, que,
sem a ação direta em todas as lutas de massas, a vanguarda do proletariado não será reconhecida
e resume com isso que a política pautada apenas na economia, ou a política trade-unionista, seria
a política burguesa para o operariado, uma vez que as organizações burguesas também buscavam
incorporar, sob sua vanguarda, as lutas operárias.
É possível compreender que o conceito de hegemonia de Lênin se apresenta muitas vezes
entrelaçado à sua formulação sobre a vanguarda, pois teoriza sobre a movimentação necessária
para o Partido cumprir o dever (e não apenas a possibilidade) de dirigir as diferentes camadas
sociais no sentido de derrubada da autocracia, a partir da organização de uma ampla luta política
sob a direção do Partido, tão abrangente que possa contar com a colaboração de todos os
segmentos da oposição e formando dirigentes capazes de “ditar um programa positivo de ação”
através de seu exercício de direção. Tais afirmações aprofundam a polêmica com os
economistas2, que afirmavam apenas ser possível ao movimento operário o papel negativo de
denunciadores do regime (LÊNIN, 2015).
Para contornar essa situação, Lênin propõe que a tarefa dos socialistas seria elevar a
política trade-unionista da classe operária ao plano da política socialdemocrata3. O autor
acrescenta afirmando que, para a consecução de tal tarefa, seria necessário levar a propaganda e a
agitação para todas as classes da população, o que seria atingido por meio da presença de
socialdemocratas em todas as camadas sociais e “em todas as posições que permitam conhecer as
engrenagens internas do nosso mecanismo estatal” (p. 144). Com isso, a hegemonia (ou
vanguarda) seria atingida justamente por serem os socialdemocratas os organizadores das
denúncias feitas a todo o povo e nisso residiria o caráter de classe do movimento.
É possível observar então, que a hegemonia em Lênin está imersa na teorização acerca
das tarefas revolucionárias impostas ao movimento operário (socialdemocrata) no sentido de
colocar sob sua liderança todas as demais classes sociais oprimidas pelo regime autoritário, o que
se daria através da participação direta em todas as manifestações políticas populares e de um
concreto projeto de agitação e propaganda, que deveria se afastar da denúncia puramente
econômica, conferindo caráter político aos seus meios de agitação, realizando através deles a
2
Aqui representados por Alexander Martinov, dirigente do economismo e ideólogo do menchevismo.
3
Nessa passagem o autor referencia-se principalmente na função do jornal revolucionário Iskra. Com tarefa oposta
seria identificado o Rabotcheie Dielo, jornal que, segundo Lênin, assumira a função de rebaixar a política social-
democrata ao plano da política trade-unionista.
26
propaganda, que seria mais elaborada, enquanto a agitação se resguardaria a temas únicos. O
objetivo seria empreender o trabalho de educação política e desenvolvimento de consciência
política da classe operária, assim como conquistar adeptos em outras classes, por meio da
agitação acerca de cada manifestação de opressão, garantindo o processo de construção de
hegemonia do operariado.
A conceituação de hegemonia em Lênin abre espaço para diversas interpretações,
ponderações e desenvolvimentos acerca da matéria, elaborada por diversos autores e autoras.
Entre eles se destaca Antônio Gramsci, que, devido às suas contribuições e absorção direta pelo
Partido dos Trabalhadores, abordaremos em seção própria. A fim de complementar as visões
acerca da temática, tomemos as ideias de Laclau e Mouffe (2015).
Os autores partem de uma perspectiva epistemológica “transdisciplinar”, incorporando
elementos da psicanálise lacaniana4, da teoria da hegemonia gramsciana, da filosofia analítica5,
da linguística, do descontrutivismo derridiano6, do pós-estruturalismo7 e do pós-
fundacionalismo8. Os autores se prestaram a descontruir categorias centrais do marxismo, pois
segundo eles, estas estavam permeadas por uma sintetização essencialista, o que impedia sua
adaptação às transformações políticas, econômicas e sociais da tessitura social contemporânea.
Essa intencionalidade se expressaria na categorização de hegemonia para os autores (COSTA;
COELHO 2016).
Laclau e Mouffe, assim como Gramsci, atribuem a origem do conceito hegemonia a Lênin
e ao Partido Socialdemocrata. No entanto os autores atentam para o fato de que, na tradição
marxista, a hegemonia seria abordada como uma falha, uma fratura, uma contingência que
deveria ser superada e com isso tratam de lhe atribuir um significado novo, concebendo-a como o
momento em que uma força social particular assume a representação de uma totalidade que lhe é
radicalmente incomensurável. Nas palavras de Costa e Coelho (2016) o hegemônico é o
universal, sem que essa universalidade fosse vista através de uma lente essencialista, negando que
4
Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) foi um psicanalista francês. Opondo-se aos pós-freudianos, foi um
importante interprete de Freud, do estruturalismo e iniciou uma corrente psicanalítica, o lacanismo.
5
Corrente do pensamento contemporâneo reivindicada por filósofos diversos como Gottlob Frege e Bertrand
Russell.
6
Jacques Derrida (1930-2004) foi um filósofo franco-magrebino que cunhou o termo desconstrução, como uma
forma de análise filosófica.
7
Conjunto de investigações filosóficas que negam ou transformam o estruturalismo. Sob a forte influência de
Nietzche (1844-1900) propõe-se um pensamento crítico aos fundamentos tradicionais da filosofia.
8
Corrente filosófica que refuta a epistemologia que se baseia em crenças básicas, em fundamentos para a construção
do conhecimento.
27
[...] a existência de uma prática articulatória, a partir da qual uma identidade particular
passa a representar um conjunto de outras identidades; segundo, a existência de uma
relação antagônica entre a cadeia articulatória formada e um discurso lhe é contrário
(COSTA E COELHO, 2016 p.3).
Podemos concluir então que a política para os autores é vista como o desenrolar do
conflito, rompendo com as análises essencialistas e fundacionalistas. Sua concepção de
hegemonia, portanto, aproxima-se da análise marxista, em especial da de Gramsci, mas incorpora
em sua formulação elementos de análise não presentes nos trabalhos do marxismo clássico, o
que, por sua vez, torna pertinente a passagem pelos teóricos para melhor apresentar um panorama
da construção do conceito de hegemonia. Passemos então para a abordagem gramsciana da
hegemonia.
anterior à fundação do Partido Comunista Italiano (1921), participou ativamente dos conselhos de
fábrica, experiência operária que, segundo o autor, eram uma iniciativa de controle da produção
pelos trabalhadores e que devido a isso poderia desembocar na constrição de uma “democracia
proletária” anterior à tomada do poder pelos operários e com isso já deixando pistas sobre sua
formulação acerca da constituição de hegemonia por parte dos socialistas. Também essencial para
seu conceito de hegemonia esteve a sua preocupação com as questões da cultura e o papel dos
intelectuais na sociedade.
Nos trechos iniciais de sua obra “Os intelectuais e a organização da cultura” Gramsci
aborda a relação entre a conquista da hegemonia e o exercício dos intelectuais, que pode ser
representado pelo seguinte trecho:
Uma das mais marcantes características de todo grupo social que se desenvolve no
sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista “ideológica” dos
intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes
quanto mais o grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais
orgânicos (GRAMSCI, 1985 p. 12).
determinado momento histórico. Por entre essas interações se faz nítido o papel dos intelectuais
para a organização da hegemonia. Segundo Gramsci, “formam-se historicamente categorias
especializadas para o exercício da função intelectual; formam-se em conexão com todos os
grupos sociais, mas especialmente em conexão com os grupos sociais mais importantes e sofrem
elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante” (GRAMSCI,
1985 p.12). Esse processo, no entanto, não se dá em um terreno democrático abstrato, mas se
situa na égide de um desenvolvimento histórico concreto. Nesse sentido, Gramsci compreende os
intelectuais enquanto funcionários das superestruturas.
O autor define dois grandes planos superestruturais: aquele atribuído à “sociedade civil”,
ou seja, aos organismos privados, e aquele atribuído à sociedade política ou Estado, ao qual cabe
a função de “hegemonia”, exercida pelo grupo dominante sobre toda a sociedade. Através dessa
relação pode-se compreender, a partir da leitura que Gramsci vislumbra que o exercício da
dominação se dá em dois diferentes aspectos: 1) o consenso “espontâneo” das massas populares
em função da autoridade moral do grupo dominante, obtida através de sua posição no mundo da
produção; 2) a capacidade coercitiva estatal, que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos
dissidentes, assim como das massas em momentos de crise.
A aplicação prática da hegemonia se daria então pela articulação entre esses dois planos
superestruturais, da sociedade política e da sociedade civil. À primeira caberia o “domínio
direto”, ou comando; à segunda a formação de consensos para a direção da sociedade,
legitimando assim o poder. Dessa forma poder-se-ia compreender que, apesar dos esforços de
articulação política realizados pela classe dominante, com o intuito de estabelecer uma direção
política consensuada, ainda assim restam grupos que devam ser dominados por meio da força
física, o que exige do Estado uma capacidade coercitiva importante. Ao se destacar tal relação,
podemos perceber que para Gramsci o conceito de hegemonia estaria intrinsecamente ligado à
concepção do Estado.
É necessário salientar que o exercício da hegemonia assume conotações diferentes a partir
do modo como os grupos sociais se relacionam e exercem sua função com base na organização e
desenvolvimento das forças materiais de produção, da organização do Estado e do papel mais ou
menos coercitivo e intervencionista da sociedade política e ainda do processo de conscientização
política das classes dominadas (SCHELESENER, 2007 p. 29-30). Portanto o desenvolvimento e
as relações entre as forças em luta determinam o fortalecimento das relações de domínio, o
30
Os partidos são então instrumentos de disputa da hegemonia política, dado que seus
integrantes não se filiam para desenvolver sua atividade produtiva. Ao contrário, seus membros
superam esse momento de seu desenvolvimento histórico e passam a ser agentes de atividades
gerais, absorvendo um caráter nacional e internacional. Seus membros são, portanto, intelectuais.
Cabe então ressaltar a influência de Hegel, denotada por Gramsci, para a conceituação de
“intelectual”, em que se inicia um movimento de abandono do pensamento embasado em castas
ou “estados”, mas assimilando sua concepção em torno do “Estado”, entidade cuja aristocracia é
formada especificamente pelos intelectuais.
A relação orgânica entre intelectuais e partido nos leva a compreender que a noção de
“intelectual” em Gramsci não se aproxima necessariamente da noção corrente, mas adquire
conteúdo próprio, combinando-se conceitualmente a um instrumento de disputa hegemônica, uma
vez que se articulam nessa conceituação elementos de reciprocidade entre classe social e
intelectualidade orgânica, interpondo-se à dinâmica da luta de classes, que é essencialmente por
hegemonia.
Assim se estabelece uma luta constante por novas formas de hegemonia, que encontram
válvula de vasão em momentos de crise orgânica, de autoridade, ou seja, perda do consenso e da
direção da sociedade. O aproveitamento de tais momentos se faz necessário, tendo em vista que
“a história das classes dominadas é ‘desagregada e episódica’, sua atividade organizativa e
cultural é continuamente rompida pela inciativa dos grupos dominantes” (SCHELESENER, 2007
p. 32). Esse momento de crise é representado por uma desagregação entre estrutura e
superestrutura, uma desarticulação da classe dominante junto à sociedade civil e uma colisão
entre os aspectos econômicos, políticos e morais. Aqui podemos antecipar uma questão relativa à
32
relação com o período histórico de ascensão do Partido dos Trabalhadores e outros partidos
progressistas e de esquerda na América Latina e Caribe aos respectivos governos nacionais, uma
vez esse período se deu em conjuntura de desgaste do projeto neoliberal implementado na região
pelas classes dominantes.
Em Gramsci notamos que a relação entre os novos métodos de trabalho e hegemonia se
aplica através de seu entendimento de que, para se organizar o trabalho em nova acepção, seria
necessário um novo modo de viver, de pensar e de sentir, uma vez que estes estariam
indissoluvelmente ligados e dessa forma a implantação de um novo sistema de produção precisa
necessariamente de uma nova forma de enxergar o mundo e consequentemente, novas relações de
hegemonia. Nessa disputa e no intuito de se transformar as estruturas econômicas e sociais, as
classes dominadas deveriam então assumir a estratégia da “guerra de posições”, desde que
situadas num Estado democrático moderno.
Nesse ínterim, Gramsci reflete sobre a ideia e a importância da filosofia para a
manutenção da hegemonia, compreendendo-a enquanto a representação do acúmulo das filosofias
de todos os grupos sociais, que caminha numa determinada direção e dessa forma tornando-se
história. Essa complementaridade entre filosofia e história se aplica em sua relação com a
política. Portanto a reflexão histórica é uma atividade essencialmente política. Podemos com isso
compreender que:
A história não tem um único sentido, como não há uma única verdade, mas forças
sociais em luta, num processo onde o cultural, o político e o econômico se inter-
relacionam formando um todo orgânico, onde todas as instâncias são igualmente
determinantes e determinadas [...] (SCHLESENER, 2007 p. 44)
atividade intelectual, que por sua vez tende a criar círculos próprios de cultura. Esses círculos
assumem a função de instituições pós-escolares, responsáveis por manter a atualização técnica no
seu ramo científico. Podemos então vislumbrar os primórdios da estrutura de organização da
cultura.
Para o autor, a escola unitária9 deveria ser responsável, principalmente em suas etapas
finais, por apresentar os conceitos e valores do humanismo, a autodisciplina intelectual e a
autonomia moral, enquanto às academias caberia a responsabilidade pela organização da cultura,
garantindo a intersecção entre trabalho e intelectualidade:
9
Forma como descreve a instituição de tipo novo, que se proponha a atender a demanda real por educação.
34
apropriada entre uma sociedade civil robusta e um Estado equilibrado. O autor apresenta então
que, segundo a visão de Gramsci, o Estado seria nada mais que uma trincheira avançada na
guerra de posições, possuindo fortalezas cambiantes diante da realidade de cada país, o que
levaria à necessidade de uma análise cuidadosa e própria de cada realidade nacional.
A partir dessa compreensão, se faz possível afirmar que a sociedade civil constituía por si
um “núcleo central, ou em um reduto interno, do qual o Estado é meramente uma superfície
externa e prescindível” (PERRY ANDERSON, 1981 p. 17), estando então a arte e a ciência da
política a serviço de uma guerra de posições. Esta relação se faria verdadeira apenas nos países
ocidentais que haviam desenvolvido, através da democracia moderna (burguesa), as suas próprias
sociedades civis, enquanto nos países orientais e colônias prevaleceria a guerra de movimento,
devido ao caráter subdesenvolvido de suas sociedades civis. A centralidade dessa “guerra” se
encontraria na disputa por hegemonia.
Anderson atenta para os vários significados assumidos por hegemonia ao longo da teoria
gramsciana, apontando para os momentos em que Gramsci apresenta a relação Estado/sociedade
civil como equilibrada e até simbiótica10, em contraste com a formulação que entende o Estado
como uma face da sociedade civil. Vemos então uma oscilação: Estado em contraposição à
sociedade civil; Estado abarcando a sociedade civil; Estado é idêntico à sociedade civil. De forma
semelhante se interpõe interpretações diversas acerca da hegemonia, como na relação hegemonia
civil é igual a guerra de posições que é igual à frente única. Ou seja, existe uma diversidade de
contextos em que o conceito de hegemonia é utilizado.
Pode-se afirmar então que a raiz desse conceito para Gramsci reside em sua utilização na
Terceira Internacional. Essa relação pode ser exemplificada na referência à hegemonia como as
alianças realizadas entre a classe proletária e outros grupos explorados na luta comum contra a
opressão do capital, inclusive abordando a necessidade de se fazer concessões, com intuito de
estabelecer e manter hegemonia. A partir disso constata-se que apesar de seu caráter ético-
político, a hegemonia deve ser econômica, ou seja, para exercê-la seria necessário à classe
dirigente estar no núcleo decisivo da atividade econômica. Essa constatação não se faz à revelia
do processo de ascendência da cultura do proletariado, item que assume em Gramsci caráter
central, sendo capaz de, através da luta desenvolvida entre as ideologias, prevalecer sobre as
10
Existem passagens em Gramsci que apresentam o Estado como uma combinação entre sociedade política e
sociedade civil, desdobrando-se então em uma relação entre hegemonia e coerção.
35
outras, impondo-se e propagando-se pelo restante da sociedade. Isso permitiria a unificação dos
objetivos econômicos e políticos, garantindo a unidade intelectual e moral, criando assim a
hegemonia de um grupo fundamental sobre grupos subordinados.
Gramsci ainda absorve de Maquiavel a dualidade representada por este no centauro
(metade humano, metade animal) e o aplica à dinâmica da disputa política pela hegemonia,
contrastando hegemonia e dominação, força e consentimento, violência e civilização, imputando
todos esses elementos à supremacia de um grupo social. Ou seja, um grupo hegemônico deve
liquidar ou submeter à força seus inimigos e dirigir seus aliados. Faz então uma associação em
que à sociedade civil cabe o papel da hegemonia, ou direção, enquanto ao Estado cabe a coação,
ou dominação. Através de tal passagem é possível identificar uma relação direta entre a oposição
proposta pelos russos entre “ditadura” e “hegemonia” (ANDERSON, 1981).
Finalmente, vemos então, através dessa análise que hegemonia se torna para Gramsci uma
síntese entre consentimento e coerção, em que se sobrepõe a estrutura econômica e social e a
superestrutura cultural e intelectual e se interpelam a sociedade civil e a sociedade política. Como
articular essa conceituação para o contexto político brasileiro e latino-americano, através da
atuação do Partido dos Trabalhadores, é o desafio proposto na próxima sessão desse capítulo.
Embora não seja uma formação programática, nos anos 1980 houve uma lenta mas
importante incorporação do marxismo à formulação petista. No entanto, com a queda do Muro de
Berlim e a dissolução da União Soviética, na década de 1990 essa influência começa a se
enfraquecer, sendo que sua formulação acerca do socialismo passa a estar muito mais centrada na
disputa de ideias, na batalha moral, afastando-se da máxima marxista de abolição da propriedade
privada e da tomada do Estado. Apesar da aparente contradição, a partir desse momento o Partido
passa a se aproximar paulatinamente da concepção gramsciana de hegemonia e de seus itens mais
emblemáticos (COIMBRA, 2017).
Entre a militância, as tendências petistas e em seus documentos oficiais, fica evidente a
influência de Gramsci, sendo corriqueira a utilização de termos como “sociedade civil”, “disputa
de hegemonia”, “guerra de posições”, “bloco histórico” e “intelectual orgânico”, que são cruciais
para o desenvolvimento da teoria gramsciana. No entanto essa presença nominal não é, segundo
Pomar e Padilha (apud COIMBRA, 2017), refletida na conduta pessoal ou coletiva da prática
partidária.
Pode-se então destacar a contribuição do pensamento de Gramsci nas formulações acerca
da hegemonia, uma vez que esta não se faz com a utilização da luta econômica em detrimento de
outros aspectos da luta social, mas sim sustentada em uma argumentação em torno do conceito de
“guerra de posições”, “guerra de movimento” e da importância da cultura para a construção
hegemônica, demonstrando assim a intencionalidade dada no processo de disputa ideológica,
política e cultural centrada na sociedade civil. Segundo Pont (apud COIMBRA, 2017) esse
posicionamento, devido a própria dinâmica da pluralidade interna do PT, não se apresenta de
forma coesa e consciente no conjunto do Partido e de sua direção.
Há, por outro lado, um setor que questiona a “deturpação” dos conceitos de Gramsci em
sua apropriação pelo Partido, afirmando que esses foram utilizados no sentido de justificar
determinadas alianças muito criticadas no interior do Partido.
As críticas realizadas não são capazes, no entanto de retirar da formulação gramsciana a
importância cabal que exerce no Partido dos Trabalhadores, sendo este autor marxista
seguramente o mais influente nas fileiras do Partido, principalmente devido à sua preocupação
com os temas da política e da estrutura partidária, aspectos cuja leitura pode ajudar a
compreender melhor o PT e sua forma de atuação.
37
11
Fisiologismo pode ser entendido como a prática em que partidos não se preocupam com a representação de um
setor da sociedade, articulando-se organicamente com suas demandas, mas sim se transformam em meras
agremiações eleitorais, sem base ideológica.
38
política, entendemos que nunca existiu uma hegemonia de fato do campo liderado pelo Partido
dos Trabalhadores. No entanto foi possível ao longo de doze anos a direção compartilhada. Com
isso o que nos propomos a constatar é que na que guerra de posições, entendendo o Estado como
uma trincheira avançada, o Partido não foi de fato capaz de apropriar-se dessa estrutura, o que
seria, segundo Gramsci, um dos aspectos centrais para a conservação de hegemonia de um
determinado bloco histórico.
Mas pode-se afirmar que o Partido dos Trabalhadores constituiu em torno de si um bloco
histórico nos termos expostos em Gramsci? Essa pergunta é complexa e pode levar a diversas
interpretações, inclusive sendo permeada pela própria interpretação que se faz de Antônio
Gramsci.
Se nos dispusermos à tarefa do exercício intelectual da analogia, poderemos começar a
trilhar o caminho para a resolução desse problema teórico. Gramsci fala da relação entre a guerra
de posições e a guerra de movimento, interpretando-as como táticas a serem adotadas de forma
diversa de acordo com a estrutura colocada em voga. Ou seja, diante de determinada forma de
organização do Estado deve-se adotar essa ou aquela tática. Nesse momento a distinção entre
ocidente e oriente, ou Estado democrático moderno e Estado arcaico, se faz pertinente para a
análise em questão. Segundo Gramsci, em um Estado democrático moderno, cuja sociedade civil
é mais estruturada e sua relação com a sociedade política mais equilibra, deve se adotar a tática
da guerra de posições, enquanto nos Estados orientais e periféricos, a tática adota deva ser a de
guerra de movimento. Com isso podemos ponderar para a realidade brasileira qual perspectiva
seria mais adequada.
Desde o fim da Ditadura Civil-Militar no Brasil, passa-se a construir uma estrutura de
Estado mais permeável aos movimentos da sociedade civil, se estabelece uma democracia liberal-
burguesa, ou seja, nos moldes do Estado ocidental descrito por Gramsci e doravante impondo ao
movimento contra-hegemônico a tática da guerra de posições. No entanto, como afirma parte da
literatura disponível acerca da concepção do Estado brasileiro, este mantém uma relação dual
entre os mecanismos democráticos e as estruturas arcaicas de produção, que se consolidam como
frente de desarticulação da sociedade civil. Essa relação entre sociedade política e sociedade civil
pode ser estendida também à América Latina e Caribe. Considerando-se essa análise, o Partido
deveria então assumir uma forma mista da tática, que possibilita ganhar posições nos mecanismos
de cultura da sociedade, assim como desagregar as estruturas arcaicas de Estado. Ao que nos
39
parece, e como nos indica Secco (2011), o Partido dos Trabalhadores opta pela tática da guerra de
posições com exclusividade, embasada pela análise de que o Estado brasileiro se constitui como
um Estado moderno típico. Essa opção não retira, porém o protagonismo do Partido sobre as
questões de organização da cultura, muito menos responde à questão sobre a constituição de um
bloco histórico.
Para isso, precisamos analisar a relação entre intelectuais orgânicos, massas e Estado.
Compreendendo que, com base em Gramsci, todos os membros de um partido são considerados
intelectuais, devido à sua capacidade em desprender-se das relações puramente econômicas que
estabelecem no seio da sociedade, tendo a capacidade de realizar a disputa por meio de todas as
ferramentas disponíveis da ideologia e da cultura, podemos então destacar dentre estes os
intelectuais orgânicos, aqueles saídos do interior da classe, ou que para ela formulam
diretamente. Dentro do PT, o incentivo à intelectualidade se dá principalmente através de suas
correntes internas, o que não impede atuações de caráter mais amplo, como nos casos de Weffort,
Carlos Nelson Coutinho, Márcio Pochmann e Fernando Haddad, que influenciaram de forma
mais geral o Partido. Como exemplos de intelectuais representantes de correntes, podemos tomar
Valter Pomar (AE – Articulação de Esquerda), Raul Pont (DS – Democracia Socialista) e
Washington Quaquá (Articulação). Essa atuação mais segmentada faz com que se torne difícil a
coesão para a formação de uma intelectualidade própria do Partido. Apesar disso, é possível
afirmar que a relação destes com as massas se dá de uma forma simbiótica, ou seja, não se separa
a intelectualidade da prática cotidiana e da vida comum. As massas nutrem as fileiras partidárias,
que por sua vez destacam representantes que exercem a função da intelectualidade. Nessa relação
podemos observar a função do partido como acúmulo orgânico dos anseios e necessidades da
classe trabalhadora, diante de sua vasta capacidade de representação junto a diversos setores da
sociedade. A atuação junto ao Estado demonstra de forma contraditória essa relação, uma vez
que, representada de forma fidedigna a força da classe trabalhadora passa a ser exercida de modo
a conciliar as posições necessárias para o exercício do poder.
Vemos então que existe um bloco histórico organizado pelo PT, mas que se referencia
principalmente junto aos setores populares, destacando sua capacidade de dirigir as forças
representantes da classe fundamental e dos aliados históricos, como camponeses, setores médios
e intelectualidade. Com isso somos levados a acreditar que o Partido dos Trabalhadores buscou
exercer sua direção junto a diversos setores, mas pratica de fato uma hegemonia junto aos setores
40
de esquerda, o que nos traz à mente a relação do Partido com as forças progressistas em toda a
América Latina e Caribe, principalmente traduzida pelo Foro de São Paulo.
A teoria gramsciana constitui uma útil base de análise da movimentação petista no Foro
de São Paulo, compreendendo inclusive a sua atuação junto à esquerda brasileira. A própria
iniciativa em organizar a primeira reunião, em 1990, na cidade de São Paulo, nos dá pistas da
intencionalidade do Partido no sentido de sua construção hegemônica. Um ano após sua primeira
derrota eleitoral, o Partido buscou organizar a esquerda latino-americana e caribenha, para que
através da troca de experiências se concretizasse uma articulação mais ampla, capaz de
movimentar a região como um todo, em torno de um programa capaz de realizar a integração
regional em novas bases que se contrapusessem ao neoliberalismo. Com isso vemos surgir o PT
como liderança entre as forças políticas de esquerda não só no Brasil, mas em todo o continente.
Essa liderança se expressa através de sua contribuição sistemática na organização do FSP (Foro
de São Paulo), atuando como secretaria executiva desde a fundação desta organização.
Na construção do Foro, segundo nossa hipótese, se constitui um processo de disputa
cultural e ideológica de forma continental e articulada pelas organizações componentes, atuando
o PT como direção, sem limitar a autonomia de cada partido. O Partido se preocupou em costurar
de forma harmônica as relações no interior do Foro, de forma a construir por sobre ele um
processo de hegemonia que lhe desse capacidade inclusive de manter aliados importantes uma
vez que estivesse no governo, estando esses parceiros no governo de seus países ou não. Isso
permitiu com que, em seus governos, o Partido dos Trabalhadores atuasse como centro dinâmico
da política latino-americana, em especial com relação aos partidos da América do Sul, num
processo de operacionalização de uma nova estrutura de integração regional. Com isso podemos
perceber que a concepção de hegemonia do Partido dos Trabalhadores não se encerra em um só
país, mas tem uma perspectiva essencialmente internacionalista. Isso se traduziu na postura
internacional do Brasil durante os governos petistas, que através do estabelecimento de um novo
paradigma de atuação, explicitado na priorização das relações Sul-Sul, buscou realocar o país no
cenário internacional, garantindo interesses de poder intimamente ligados à construção de
hegemonia na região e melhoramento de sua posição global. Pode também ser observado nos
documentos do Foro, assim como na postura internacional do PT, que buscou sistematicamente
trabalhar para a unidade da esquerda latino-americana, sem descuidar das muitas relações que
mantinha (e mantém) mundo afora, principalmente na Europa. Dessa forma é possível levantar a
41
hipótese que o Partido possui um projeto de poder que extrapola os limites nacionais, se
aproximando ainda mais da teoria marxista-gramsciana, que compreende a necessidade de um
projeto internacional para que o movimento contra-hegemônico se coloque como direção do
bloco histórico e assim passe a exercer a hegemonia através da tomada do Estado.
Muitas são as assimilações feitas entre a teoria gramsciana e a formulação e atuação do
Partido dos Trabalhadores, sem, no entanto ser possível afirmar que o Partido a instrumentaliza
como teoria guia. Para melhor compreender a forma como atua o PT, passaremos a dar conta da
tarefa de apresentar um histórico do Partido.
42
Se nos detivermos à célebre frase proferida por Antônio Gramsci nos Cadernos do
Cárcere, “escrever a história de um partido significa escrever a história geral de um país” (apud
SECCO, 2011, p. 21), poderia parecer uma contradição considerar uma história relativamente
recente12 como expressão do acúmulo de lutas que representam toda a história de um país.
Contudo, a partir de um olhar crítico perceberemos que é justamente esse acúmulo de
lutas, desde a luta pela libertação dos escravizados, até a dinâmica da industrialização do país,
desde Canudos13 e a Balaida14 até Farrapos15, da Inconfidência16 até a luta pela redemocratização
do país diante da ditadura militar, que permitiu às forças populares estruturar uma experiência
como o PT. Inspirado em Gramsci, vemos então o Partido como resultado desse acúmulo e,
portanto, como representante desse determinado olhar, o popular, sobre a história do Brasil.
12
A luta pela fundação do Partido dos Trabalhadores remonta à 1978.
13
A Guerra de Canudos envolve um conflito entre o exército brasileiro e os milhares de sertanejos pobres que vivem
numa comunidade autossuficiente agrupada em torno de Antônio Conselheiro, líder religioso, na localidade que é
chamada de Belo Monte. (Costa, 2017 p. 2)
14
A Balaiada foi uma luta popular que tomou lugar na província do Maranhão durante os anos de 1838 e 1841. A
revolta se deu como um levante social diante das más condições de vida, sendo integrada vaqueiros, escravos e
outros setores das classes populares. O nome dessa luta popular provém dos "balaios", nome dos cestos fabricados na
região (JANOTTI, 2005).
15
A Revolução Farroupilha foi um movimento organizado pelas classes dominantes pecuaristas, latifundiárias e
escravocratas do Rio Grande do Sul, peticionando mais autonomia frente ao Império Brasileiro. (BEHLING, 2016 p.
1)
16
A Inconfidência Mineira, ou Conjuração Mineira, foi uma tentativa de revolta, de caráter separatista, abortada pelo
governo em 1789, em pleno ciclo do ouro, na então capitania de Minas Gerais, no Brasil, contra, entre outros
motivos, a execução da derrama e o domínio português. (SÓHISTÓRIA, 2019)
43
Figura 1 – Fundação do Partido dos Trabalhadores no Colégio Sion, São Paulo, SP. 1980.
setores sociais diversificados. Essa relação se deu devido à característica petista de apresentar
uma novidade político institucional, quanto à origem, organização e proposta.
Para analisar essa novidade política, Meneguello (1989) recorre ao cientista político
Duverger, identificando-o como uma leitura essencial para a compreensão de um modelo de
partido de massas, embora seja tida como ultrapassada por seus críticos. Segundo Duverger é
determinante para a constituição dos partidos, o papel da ideologia, ou seja, as principais
características organizacionais do partido de massas são definidas pela ideologia partidária de
esquerda, características que podem ser interpretadas no seguinte modelo: possuir uma origem
externa, extraparlamentar, sustentada nos movimentos sociais e sindicais; uma organização
interna intensa, calcada em elementos básicos específicos; uma forte articulação estrutural, que
define a intensidade da relação entre os elementos básicos; uma centralização nacional; rigorosos
requisitos para filiação; a presença de certo tipo de doutrina, que define a natureza da
participação dos membros no partido; por fim, uma relação específica entre as lideranças do
partido e seus parlamentares, em que os segundos estão subordinados aos primeiros.
É possível depreender então vários pontos de intersecção com a organização do PT em
seus primórdios. Nitidamente ao longo dos anos essas relações foram sendo distendidas, com a
institucionalização do Partido em nível municipal, estadual e federal, levando seus parlamentares,
por exemplo, a assumir uma função dirigente em relação à estrutura partidária e também a
diminuição dos critérios para filiação.
Cabe ressaltar que as organizações partidárias brasileiras encontram seu limite no quadro
funcional do Estado brasileiro, ou seja, é produto direto dos condicionamentos políticos globais,
que durante muito tempo impossibilitou a formação de partidos classistas e ideológicos.
Tomemos como exemplo o PCB (Partido Comunista Brasileiro), que, formado em 1922, só teve
atuação legalizada entre 1945 e 1947 e no período pós 1985. O PT rompe em sua fundação com
essa lógica, se tornando, segundo o modelo de Duverger, o primeiro partido de massas do
Brasil.17
Isso só foi possível a partir das mudanças apresentadas no quadro sindical brasileiro, com
o “novo” sindicalismo, ou como fora denominado, o “sindicalismo autêntico”, uma vez que a
organização do Partido dos Trabalhadores erigiu-se fundamentalmente sobre os novo rumos
17
Contrariamente, também embasando-se em Duverger, Lincoln Secco (2011) discorda dessa afirmação,
argumentando que o PCB também cumpriu com os requisitos colocados pelo teórico para a constituição de um
partido de massas.
46
apresentados pelo movimento sindical, a rigor, a superação dos limites da luta política no mundo
do trabalho, enveredando-se pela política partidária, o que ocorre no seio das transformações
econômicas pelas quais passou o país na década de 1970, com o aprofundamento da expansão do
capitalismo e a instalação da indústria de tecnologia avançada - o que gerou o desgaste das
relações trabalhistas, empurrando o movimento sindical para uma plataforma mais reivindicativa.
O despontar da tendência autêntica do sindicalismo remonta ao ano de 1973, mas apenas com a
política de distensão do regime militar, por volta de 1977-1978, o sindicalismo autêntico passa a
ganhar escopo social e uma identidade coletiva.
Existiam, no final da década de 1970, três correntes sindicais mais destacadas: as
denominadas oposições sindicais, ligadas a militantes católicos e de pequenos agrupamentos de
esquerda (essa corrente era menos expressiva); a unidade sindical, que defendia o não
rompimento com o establishment sindical; e o “novo” sindicalismo, que defendia uma proposta
radical de mudança na estrutura partidária. Este último e boa parte das oposições sindicais iriam
se unir em torno da construção do PT, uma vez que a polarização primordial se deu entre a
unidade sindical e o “novo” sindicalismo, com forças semelhantes para ambos os lados, embora o
“novo” sindicalismo se destacasse pela novidade apresentada nos temas para a luta sindical, com
destaque para luta por direitos sociais e políticos.
A percepção de um isolamento político entre os setores do “novo” sindicalismo e os
outros agentes políticos na luta pelas causas sustentadas na greve levou a uma mudança na
estratégia sindical, que anteriormente buscava se manter afastada dos partidos políticos e sem
perspectiva de chegada ao poder. Isso se transforma a partir desse ponto de inflexão, levando a
considerar a construção de uma organização política própria, o que fica demonstrado na seguinte
fala de Luís Inácio Lula da Silva:
[...] Até o ano passado fui a pessoa mais apolítica que existe nesse país. Veja que
ninguém mais do que eu contestou a corrupção, o modo de fazer política no Brasil.
Entretanto, eu acho que estou pagando e vou pagar um preço pelo puritanismo com que
eu defendia minha categoria. Até um determinado momento eu achava que nós não
deveríamos participar em nada que viesse tirar os trabalhadores desse puritanismo; mas,
depois de fazer um dos mais belos movimentos da classe trabalhadora que já se fez nesse
país, a gente percebeu que a classe política não estava sensível aos nossos problemas,
que os partidos políticos não tinham tomado uma posição em relação à greve. Nem
tinham se manifestado em relação a nenhum grande problema nacional que nós
enfrentamos durante os anos de arbítrio. Então cheguei à conclusão de que a classe
trabalhadora não poderia pura e simplesmente chegar à época das eleições e dar seu voto
às pessoas que se fantasiam de trabalhadores para pedir seu voto, oferecendo, às vezes,
47
Podemos então perceber que as raízes do Partido dos Trabalhadores se forjam diante de
uma conjuntura política em que o ascenso de lutas permitiram a mudança coletiva na consciência
da classe trabalhadora, que buscou se desprender do modus operandi de representação política,
enveredando-se pela criação de um instrumento próprio de representação, o que foi possível
diante da transformação do novo sindicalismo em sujeito político e portanto em grupo capaz de
representar diversos interesses, diante de sua aproximação da arena política. Dessa forma o novo
sindicalismo começa a assumir o protagonismo na luta pela democratização do país, através de
uma pauta unificada que foi capaz de aglutinar amplos setores do operariado de dos trabalhadores
urbanos. A pauta se consolidava em torno das reivindicações pelo “salário mínimo nacional
único, legislação de garantia da estabilidade de emprego, liberdade sindical, fim do arrocho
salarial e livre organização nos locais de trabalho” (MENEGUELLO, 1989 p. 54), assim como a
luta por direitos sociais e políticos. Os movimentos populares, no cenário das mobilizações
grevistas, passam também a apoiar o novo sindicalismo. O PT assume então um perfil partidário
amplo, não sendo apenas um “partido de sindicatos”, mas um acúmulo das lutas de diversos
setores da sociedade, sob a direção do novo sindicalismo.
Vemos também que nesse processo, várias agremiações de esquerda e extrema-esquerda
se juntaram ao PT, compreendendo-o inicialmente como frente eleitoral ou partido tático. Apesar
de relevantes para a disputa interna do Partido, principalmente na atividade intelectual, em
pesquisa realizada no Primeiro Congresso (1991) verificou-se que apenas 10,4% dos
entrevistados pertenciam a esses grupos. A retomada do movimento estudantil também se
envereda pelo PT, sendo que em algumas localidades foram responsáveis pela fundação do
Partido. No entanto essas intervenções se davam mais de forma interna do que externa, fazendo
com que as CEBs e o “novo” sindicalismo fossem os dois vetores sociais mais significativos na
formação do PT (SECCO, 2011).
Segundo Secco (2011) os anos iniciais do PT foram marcados por certa indefinição em
relação à sua política sindical, pela dificuldade em superar o seu isolamento político e sua
fragmentação interna, sendo o seu primeiro Encontro, entre 8 e 9 de agosto de 1981, dedicado à
temática e a tarefas imediatas. Nesse Encontro chega-se à conclusão de que seria necessário criar
uma Central Única dos Trabalhadores (CUT) para exercer a prática sindical. Antes mesmo de
48
fundada em agosto de 1983, a comissão pró-CUT realizaria a primeira greve geral do país, em 21
de julho de 1983.
Em seu primeiro Encontro, a palavra socialismo pululava entre os discursos proferidos,
buscando trazer uma identificação teórica ao partido, porém com nítidas críticas à
socialdemocracia europeia e à burocratização soviética. Nesse momento cabe afirmar um
importante princípio do Partido dos Trabalhadores, a solidariedade internacional.
Segundo entrevista de José Dirceu (Ex-ministro Chefe da Casa Civil) concedida a essa
pesquisa, a crítica à União Soviética era uma questão mais interna do partido. No entanto existia
uma forte solidariedade ao Walesa (líder do partido polonês Solidariedade) e ao processo de
“rebelião operária” na Polônia, que era uma “rebelião” contrária ao regime socialista. Existia
também solidariedade à revolução sandinista na Nicarágua, que já tinha um caráter socialista. Era
presente também uma forte referência à revolução cubana junto à juventude. Sobre essa atuação
internacionalista do PT Dirceu explica:
[...] é uma geração que vem das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), das pastorais e
da teologia da libertação nacional. A Igreja Católica é internacional (ela se diz universal,
mas isso já é uma pretensão, porque ela não é a única religião). O PT nasce sob o signo
da solidariedade internacional e mais... o PT vem do movimento sindical metalúrgico,
que é fortíssimo na Alemanha e nos Estados Unidos. As duas maiores entidades
sindicais do mundo, de certa maneira, são os DGB (metalúrgicos alemães) e nos Estados
Unidos a solidariedade à AFL... o Paulo Nascimento do PT era patente, então o PT
nasce sob uma herança internacionalista e as organizações políticas que ingressaram
no PT, não só as correntes trotskistas, os lambertistas, os mandelistas que é a DS hoje, os
lambertistas que é o trabalho hoje e os morenistas ou posadistas, todos também vinham
da tradição russa e setores que vieram do Partido Comunista Brasileiro (PCB) ou das
organizações armadas como a ALN (Ação Libertadora Nacional). Então o PT nasce
porque o movimento internacional naqueles anos era forte, por causa da revolução
nicaraguense e do levante operário na Polônia, então o PT já nasce marcadamente
guiado pela consciência internacionalista dos trabalhadores no capitalismo internacional
(José Dirceu, Entrevista realizada 9 de maio de 2019; grifos do autor).
Esse caráter internacionalista do Partido acaba por refletir na dinâmica interna de sua
formulação teórica, o que é pertinente devido à pluralidade que deu origem ao PT.18
O segundo Encontro do Partido dos Trabalhadores, em março de 1982, já vinha
anunciando sua política de alianças, assim como determinando o modelo petista de atuação
parlamentar. A menção ao internacionalismo e ao socialismo volta a aparecer, embora com uma
menor intensidade. Sobre a luta internacionalista, afirma-se:
18
Realizando um salto na história, é possível identificar essa solidariedade internacionalista na política externa
aplicada durante os governos petistas.
49
No plano internacional, somos solidários com todos os povos que lutam por sua
libertação. Neste momento, essa luta adquire particular importância na América Central
e na África Negra, assim como a luta do povo palestino pela reconquista de sua terra. O
PT apoia a luta dos trabalhadores de todo o mundo. Cumpre ressaltar, neste momento, a
luta dos trabalhadores da Polônia pelo aprofundamento do socialismo e pela
democratização dos processos de decisão naquele país. Temos claro que a libertação de
nosso povo depende também da luta internacional dos trabalhadores. Defendemos,
ainda, uma política externa independente, com o estabelecimento de relações
diplomáticas com todos os países socialistas. Somos contra o Brasil manter relações
diplomáticas com um Estado racista, como a África do Sul, e com a ditadura de El
Salvador e se negar a manter relações com Cuba, Albânia, Vietnã ou Coréia do Norte.
Os trabalhadores e os povos oprimidos de todo o mundo lutam contra a opressão e a
exploração. No entanto, a libertação só vai ser efetivamente concretizada com a
construção do socialismo. (POMAR, 1998)
realização da Convenção era uma tarefa difícil. Com isso podemos compreender que a proposta
de organização petista se baseava no princípio da democracia participativa19.
A função dos núcleos então passa a ser diminuída, principalmente diante do esvaziamento
de poder decisório destes em relação ao diretório municipal e zonal e pouco a pouco eles
começam a desaparecer, situação que, quando identificada, passa a ser alvo de intervenção do
partido, para a reconstituição dos núcleos. Por exemplo, em 2008, foi chamada no estado de São
Paulo a I Plenária de núcleos de base paulista, que contou com a presença de 80 núcleos, ocasião
em que foi criada a Secretaria Estadual de Nucleação. A II Plenária, realizada em 2009, contou
com a participação de 400 núcleos paulistas.
A experiência da organização em núcleos se reflete na forma de governo das
administrações petistas, principalmente na década de 1990, quando passa a se proliferar pelo país
e se caracterizam pelos conselhos populares.
Avançando na organização interna, um marco histórico se dá em 1990, com a
regulamentação do direito de tendência, apesar de na prática elas já funcionarem ativamente
desde a fundação do Partido, o que o caracterizava como real novidade no cenário político
brasileiro. Dois importantes momentos definem a movimentação principal em torno das
tendências: a rigor, a fundação da Articulação dos 11320, liderada por Lula, e a institucionalização
do Partido. A Articulação venceria sucessivos pleitos para a presidência e a executiva nacional.
Atualmente (2019), ainda é a corrente que dirige o partido majoritariamente.
Um importante fato para a história petista foi a participação na campanha pelas Diretas Já,
que fora convocada inicialmente pelo PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro),
mas que contou com o protagonismo do PT. Embora o movimento tenha sido concretamente,
derrotado e levado a uma eleição indireta, ele engrossou o caldo das lutas populares, favorecendo
o Partido dos Trabalhadores. No interior do Partido isso gerou uma nova divergência, entre
aqueles que acreditavam que os deputados do Partido deveriam estar no Colégio Eleitoral, que
elegeria Tancredo Neves, e aqueles que se opunham a este encaminhamento. A decisão por não
19
Uma importante constatação diante da explicação desse processo é a atuação de massas do PT que se dava através
da influência eleitoral e da inserção em organizações da sociedade civil, o que leva Secco (2011) à categorizar o
partido em sua origem como um partido de quadros numerosos, que buscariam orientar e liderar sua massa de
simpatizantes, ou seja, os filiados e eleitores. Esse inclusive foi um debate proeminente em determinado momento
histórico, a dicotomia entre Partido de Quadros e Partido de Massas. Esse debate fora superado com a formulação de
que o PT não seria nem um partido de massa acéfalas, com frouxo relacionamento com a organização interna, nem
uma agremiação de dirigentes distantes da população.
20
Posteriormente Articulação – Unidade na Luta, que depois viria a constituir o Campo Majoritário e por fim o
campo denominado CNB – Construindo um Novo Brasil.
51
participar isolou o partido e o retirou de cena. Esse isolamento era fruto de uma decisão de
priorizar a construção de espaço próprio na sociedade civil, o que reforçava sua identidade como
oposição social.
Tem lugar então o V Encontro Nacional do PT, em 1987, o mais importante da história
petista segundo Secco21. Nele se define como estratégia para o socialismo a constituição dos
trabalhadores em classe hegemônica e dominante no poder do Estado, associando construção do
poder nas lutas cotidianas com o momento estratégico da tomada do poder político. Foi neste
Encontro que se decidiu que as tendências internas deveriam assumir um compromisso
estratégico com o partido, num processo de centralização partidária.
Viria então a construção da Assembleia Nacional Constituinte, para a qual o PT elegeria
16 deputados, em um processo que galvanizou as esperanças radicais da sociedade, embora
majoritariamente constituída por deputados conservadores, que conformaram o chamado
“centrão” para impedir que a Constituição avançasse para mudanças substanciais. Ainda que o
Partido dos Trabalhadores tenha votado contra o texto final, assinou a Carta, ao contrário do que
propagam setores da direita brasileira. No ano de finalização da Assembleia Constituinte ocorreu
também eleições municipais, nas quais o PT obteve um êxito inédito, inclusive conquistando
capitais como São Paulo, Porto Alegre e Vitória. Foram gestões que ficaram marcadas pelo
“orçamento participativo” e determinariam os rumos pelos quais enveredaria o PT.
Em mais uma demonstração da importância do internacionalismo para o PT, em 1989 o
Partido rompe com o Partido Comunista Chinês (PCCh), devido ao massacre da Praça da Paz
Celestial, embora sob protesto de Florestan Fernandes. Isso se deu por ocasião do VI Encontro
Nacional, que se debruçou sobre um Plano de Ação de Governo, para o confronto eleitoral que se
estabeleceria naquele ano.
Conformou-se então a Frente Brasil Popular, constituída por PT, PCdoB (Partido
Comunista do Brasil) e PSB (Partido Socialista Brasileiro). O clima social no país estava em
ebulição, com greves, ocupações e repressão aos movimentos sociais, com um enorme número de
mortos, inclusive figuras como Chico Mendes, líder seringueiro e militante do PT. Em meio a
esse cenário, Lula chega ao segundo turno contra Fernando Collor, em uma campanha sem
recursos e autofinanciada. Na semana anterior à votação, ambos os candidatos apareciam com
21
Lincoln Secco escreve em 2011. Após esse período houve momentos importantes, como a eleição de Gleisi
Hoffmann para a presidência do Partido, o que representou uma movimentação à esquerda pela Articulação.
52
empate técnico nas pesquisas, o que fez com que a Rede Globo, financiadora de Collor, entrasse
no jogo de forma mais veemente, assim como grande parte da imprensa brasileira. Uma
campanha difamatória contribuiu para a derrota de Lula, que receberia 31 milhões de votos contra
35 milhões de Collor.
Os anos seguintes a essa primeira derrota eleitoral22 levariam o Partido a se consolidar
como uma oposição parlamentar, ou seja, por sua institucionalização. Seriam marcados também
pela queda do Muro de Berlim e o fim do socialismo real, o que traria consequências diretas para
o interior do PT. Muitas tendências abandonam o marxismo, embora ainda reconhecessem sua
referência. Apesar disso, o Partido dos Trabalhadores consolidava-se como oposição institucional
no Brasil.
Foi nesta conjuntura, de crise do socialismo real, que o PT, em 1990, ascende a proposta
de uma espécie de internacional latino-americana, o Foro de São Paulo, que inicialmente seria
apenas um seminário para troca de informações e experiências, mas que nos anos seguintes se
tornaria uma grande articulação de forças progressistas, socialistas e de esquerda na América
Latina, organização que permaneceu ativa e teve seu último encontro em 2018. Apesar de várias
críticas à inconsistência teórica do Partido dos Trabalhadores, essa iniciativa serviria como
respaldo a suas objetivações socialistas.
Doravante discutiremos a questão da hegemonia nos seguintes sentidos: aquela exercida
politicamente, junto ao apanhado de forças articuladas em torno do Partido dos Trabalhadores, ou
seja, no sentido de direção de uma coalizão política; aquela que se construiu, também de forma
política, no seio da esquerda brasileira; aquela que se buscou construir, de forma às vezes
enviesada, no sentido ideológico; e aquela que que se manifestou de forma eleitoral.
22
Embora muitos no Partido, como José Dirceu, vejam a campanha de 1989 como uma vitória.
53
23
Segundo Lênin, esquerdistas eram aqueles que defendiam o boicote aos sindicatos da “ordem” e ao parlamento
burguês. O líder revolucionário defendia que o abandono desses espaços significaria deixar campo aberto para a
atuação burguesa e reformista. Define portanto, uma posição sectária. Essa forma de atuação assumiu diferentes
significados historicamente. No jargão político corrente, o “esquerdismo” é atribuído majoritariamente às
organizações trotskistas. (TOLEDO, 2017).
54
como afirmar gratidão pela defesa petista da legalização do PCB e pela solidariedade prestada
aos comunistas quando da invasão de seu seminário24. No Encontro se explicitam de forma nítida
também algumas divergências, como a formação da CUT e a realização de uma greve geral.
A partir da revisão bibliográfica, se faz pertinente afirmar que a tática elaborada pelo
Partido dos Trabalhadores buscou construir um espaço próprio junto à sociedade, o que torna
compreensível seu posicionamento que muitas vezes levou ao isolamento político. Dessa forma o
PT angariava cada vez mais apoio junto à uma classe trabalhadora descrente em relação aos
processos políticos tradicionais e constituía força própria capaz de reafirmar uma identidade.
É importante afirmar que a disputa pela hegemonia na esquerda atinge um outro patamar
com a fundação do PT, uma vez que anteriormente a disputa se dava entre PCB e outros grupos
dispersos. A partir da constituição do PT ela se daria entre dois partidos de envergadura nacional.
O próprio surgimento do PT já abria espaço para a disputa de hegemonia, ao se afirmar como
partido representante dos interesses da classe trabalhadora, disputando, inclusive, no seio do
movimento sindical, gerando separações e aproximações de posições.
Na disputa com o PCB cabe afirmar as diferenças organizacionais: o PCB seria um
partido dirigente, condutor das massas, enquanto o PT buscava um processo de absorção dos
interesses dessas massas, “mais obedecendo, que mandando”, promovendo um parlamento que
funcionasse como “caixa de ressonância” da voz da classe trabalhadora. Um partido síntese das
experiências acumulativas da classe trabalhadora. (SECCO, 2011)
Ainda para a contextualização da disputa pela hegemonia no campo da esquerda
partidária, um importante fator é a construção da narrativa acerca do passado. As visões erguidas
levam a erigir a compreensão daquilo que era “velho” e “novo”, do tradicional e da novidade.
Dessa forma a perspectiva elaborada junto aos intelectuais do PT leva à compreensão de que as
rupturas no passado (em especial em 1964) se deram devido à incapacidade de construir um
movimento popular capaz de contê-las, erro que deveria ser contornado e superado. Por esta
razão foram tecidas duras críticas ao papel do PCB entre 1945-1964. Sintetiza Santana (2012)
sobre o PT:
24
Em 1983, a ditadura havia invadido um seminário de formação do PCB.
55
Essas disputas internas e a hegemonia da Articulação trariam novos rumos para a política
de alianças petista, que se manifestaram nas eleições de 1994 e 1998, momentos nos quais o
partido não foi capaz de imprimir sua hegemonia junto à esquerda, à sociedade brasileira em seu
conjunto, que viveu um período (desde Collor na verdade) de hegemonia do neoliberalismo. O
neoliberalismo teve impacto não apenas sobre as lutas sociais, mas também no interior da luta
institucional, sendo que o PT, que em 1988 governava cidades que em seu total somavam 14,9
milhões de habitantes, decai para 8,3 milhões em 1992 e 7,9 milhões em 1996. A resposta do
Partido só viria em 2003, quando passou a governar 28,8 milhões de pessoas, anunciando a
virada no campo eleitoral (SECCO, 2011).
Surgem, no interior do PT, teses sobre o fim do hegemonismo petista, que propunham
uma hegemonia compartilhada, que na verdade era uma proposta de ampliação ainda maior do
arco de alianças possíveis. Essa proposta era defendida pela Democracia Radical (DR), que
entendia não ser necessária a conquista de hegemonia para implementar um projeto político. Com
essa política a tendência cresceria, impondo-se em uma aliança com a Articulação, que perdia sua
maioria. Mais tarde a tendência viria a se dissolver no campo Construindo um Novo Brasil. Um
importante fator nessa disputa seria a eleição de José Dirceu à presidência do Partido em 1995,
mandato que se estenderia até 2002 e levaria o PT à sua primeira vitória eleitoral.
A busca pela hegemonia cultural, ou seja, uma dominação de cunho ideológico junto ao
que Gramsci denominaria sociedade civil, passava pela habilidade em se adequar aos anseios da
população, que ainda em 1998 tinha preconceitos em relação à figura do Lula. Essa tarefa foi, em
parte, facilitada pelo queda na popularidade de Fernando Henrique Cardoso (FHC), muito
embora internamente Lula enfrentasse um processo de desgaste no PT e as prévias de 2002 com
Eduardo Suplicy. Lula se consagra, internamente e nas urnas, tendo como base um Programa de
governo. No entanto se esquivou da tarefa de construção de hegemonia cultural junto à
sociedade. Constata-se isso pois não existiu um esforço global para conquista da opinião pública
em seus mais diversos aspectos, em especial ressalta-se a não construção de um aparato de
propaganda capaz de direcionar a sociedade civil a uma ideologia mais à esquerda. Esse
Programa garantiu ao partido a hegemonia política, no sentido de direção de uma coalizão,
mediante concessões políticas para setores muito diversos. As escolhas feitas cobrariam uma
fatura anos depois.
57
O Lula e o PT dão outra cara para a política externa brasileira e outra direção, com uma
solidariedade efetiva, militante e concreta a outros países, porque o Brasil nós temos que
entender que a política externa de um país, está ditada pela situação interna desse país,
quem governa, em que direção você governa, com que programa você governa, que
classes sociais você representa. (Entrevista realizada em 9 de maio de 2019).
pública em torno de um projeto de país, ou seja, exercer sobre esta sociedade uma capacidade
dirigente profunda, que caracterizaria a hegemonia desse setor governante sobre os demais
setores da sociedade.
Segundo Celso Amorim, em entrevista concedida em 07 de junho de 2019, a dinâmica da
política externa seria ainda determinada pelo que chamaria de uma confluência entre as
perspectivas internacionalistas do PT (e do Lula propriamente) e a sua própria trajetória
profissional. Ele cita especificamente a tentativa em manter a experiência do Mercosul (Mercado
Comum do Sul), que à época sofria algumas críticas da esquerda brasileira, por conta de seu teor
liberalizante.
A eleição de Lula em 2002 viria a prenunciar um processo de reconfiguração do tabuleiro
internacional, sob uma nítida contestação da hegemonia dos Estados Unidos, seja na América do
Sul, seja mundialmente, diante da ascensão da China, com um pungente crescimento econômico.
Podemos atribuir esse reposicionamento do Brasil no cenário internacional à
personalidade carismática do presidente Lula, à qualidade da diplomacia brasileira, com seus
quadros no Itamaraty, mas principalmente às diretrizes da política externa formulada pelo Partido
dos Trabalhadores25 e implementada pelo Itamaraty e pelas mudanças internas do país. O que
possibilitou essa mudança na política externa foi a retomada do crescimento interno, dessa vez
com redistribuição de renda, o controle da inflação, a redução da relação dívida interna/PIB,
deixar de ser devedor para se tornar credor internacional, êxitos no comércio exterior e os
avanços no combate à pobreza e à desigualdade social (GARCIA, 2010).
A palavra chave nesse processo de mudanças na política externa brasileira é “autonomia”,
que deveria ser reafirmada constantemente, diferente de alguns países qualificados como
“desenvolvidos”, que já possuiriam atributos suficientes para garantir essa autonomia. Essa busca
por autonomia viria como forma de suprir as consequências da dependência econômica. Ora, se
esse era um objetivo compartilhado pela parcela majoritária dos países em desenvolvimento na
América Latina (dando o devido foco à América do Sul) e em outras regiões afetadas pelas
desigualdades de poder decorrentes da organização da ordem mundial em torno do capital, passa-
se a vislumbrar perspectivas de construção da autonomia através da cooperação Sul-Sul e da
integração regional. Essa nova perspectiva encontraria no Brasil um canal de difusão, tornando-se
25
Um dos grandes nomes da elaboração da política externa petista foi Marco Aurélio Garcia, falecido em 20 de julho
de 2017.
59
o país um importante propulsor de novas relações que viriam a influenciar a dinâmica do sistema
internacional (VIGEVANI; RAMANZINI JÚNIOR, 2014).
É possível agregar a essa percepção a análise de Berringer (2015), que analisa a política
externa brasileira nos governos petistas tendo como base a perspectiva e o rearranjo no bloco no
poder. A autora considera ainda a teoria dos jogos de dois níveis de Putnam (apud Berringer,
2015), em que o conflito entre os diferentes grupos de interesses da sociedade doméstica são
determinantes nas decisões do Estado (ou de seu representante) a nível internacional. Berringer
estabelece que a definição da política externa está mais atrelada ao interesse do bloco no poder
(arranjo entre frações da classe dominante), do que à interação entre as burocracias do Estado ou
à equipe governamental. Uma importante distinção trazida pela autora é aquela entre hegemonia
política e hegemonia ideológica, uma vez que é possível exercer a primeira, sem de fato deter a
segunda, caso já identificado no tocante ao Partido dos Trabalhadores, mas que no entanto
aparece em Berringer (2015) no sentido de distinções entre frações da burguesia, em sua relação
com a produtividade no geral.
A postura do Estado brasileiro no cenário internacional seria determinada pela relação
entre a fração de classe no poder e o capital externo, segundo a autora. No que toca ao caso
brasileiro, durante os governos petistas, a fração da burguesia no comando do bloco no poder
pode ser interpretada de duas formas: 1) uma burguesia interna, o que determinaria as interações
do Brasil com outros Estados no mundo, estabelecendo uma relação de subordinação conflitiva,
pois se buscaria uma margem de manobra maior em relação ao imperialismo e 2) uma relação
anti-imperialista, mediante a constituição de aliança entre uma burguesia nacional e as classes
populares.
Segundo Berringer (2015) a política externa adotada nos governos Lula e Dilma constitui
eixo central de construção hegemônica do país, para a América do Sul, e ao mesmo tempo de
contra-hegemonia, em relação ao bloco no poder do imperialismo.
Essa política externa estabeleceu uma nova relação entre o “externo” e o “interno”,
compreendendo a paridade entre o interesse nacional e o lugar que o Estado busca ocupar dentre
a complexidade e assimetria mundial. Dito de outro modo, as aspirações internacionais estariam
intimamente articuladas ao projeto nacional de desenvolvimento idealizado pelo Partido dos
Trabalhadores, na direção de uma ampla coalizão de governo.
60
A centralidade conferida pelos governos petistas à política externa brasileira nos permite
levantar a hipótese segundo a qual a condução da política externa estaria vinculada à construção
de um projeto de hegemonia do Brasil na região sul americana e do Partido dos Trabalhadores à
nível nacional e regional.
Nossa leitura não é livre de controvérsias. José Dirceu, afirmou, em entrevista realizada
para esse trabalho, que apesar de ser desejável, e até necessário, a política externa “infelizmente”
não foi utilizada, como poderia, para a construção de hegemonia do Partido à nível nacional, ou
internacional. Vejamos:
Infelizmente não. Devia, mas nem aqui dentro, nem lá fora. Eu acredito que o PT, os
nossos governos não tiveram consciência dessa necessidade. O esforço por exemplo pra
exportar cultura, cinema, teatro, música, era mais ou menos natural, pela influência da
nossa cultura e também por causa da universalidade da nossa cultura (...) Eu sempre
digo, nós mesmos não temos consciência do que o Brasil é, do que o Brasil representa e
a importância do Brasil no mundo. Per si, pelo território, pela população, pela riqueza,
pela cultura, pelo estágio de desenvolvimento tecnológico, industrial, cultural, o Brasil é
um país muito importante. (Entrevista realizada com José Dirceu, em 09 de maio de
2019).
A despeito dessa opinião sobre a política externa, José Dirceu nos dá pistas sobre a
intencionalidade do Partido no governo e, por consequência, às pretensões hegemônicas na
América do Sul, ao disparar que a prioridade absoluta do governo foi justamente a região em que
o Brasil está inserido, com a criação da UNASUL e o fortalecimento do MERCOSUL, na
empreitada de integrar política, social e militarmente a América do Sul e um olhar para toda a
América Latina. Dirceu cita também as tentativas de reconfiguração da ordem mundial,
reconhecendo a prioridade conferida às relações Sul-Sul, à criação, participação e fortalecimento
dos BRICS, às mudanças na OMC (Organização Mundial do Comércio) e de pleitear uma vaga
no Conselho de Segurança da ONU, o que no jargão político pode ser visto como uma forma de
“valorizar o passe” do país.
Sobre esse foco na região, Celso Amorim comenta que as pretensões históricas do PT se
voltavam para a América Latina, mas a prática política comprovou ser mais realista um olhar
atento para a América do Sul, uma vez que o México, por exemplo, tinha se voltado
completamente para o NAFTA (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), o que
direcionou a política externa brasileira, conjuntamente com a tentativa de reprogramar o cenário
internacional de forma que permitisse uma melhor inserção do Brasil. Essa tentativa de se
61
reposicionar no cenário internacional, ainda segundo Celso Amorim, passa também pelas
relações com a África, uma vez que elas permitiram a entrada de brasileiros em órgãos
importantes, como a OMC (Organização Mundial do Comércio) e a FAO (Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), apesar de não serem articuladas com esse
intuito. O embaixador ainda afirma que a opção mais restrita pela América do Sul tinha um
recorte pragmático, uma vez que não acreditava ser possível, a curto prazo, uma integração mais
ampla com a América Latina.
Para os formuladores da política externa petista, havia na América do Sul vários trunfos
de poder para a inserção competitiva no mundo contemporâneo. No entanto essa potência não
havia ainda se concretizado devido à parca integração entre as nações da região. Nesse sentido a
contribuição do Foro de São Paulo, sob a liderança do Partido dos Trabalhadores, seria crucial
para embasar os rumos da integração econômica, política e militar da região, uma vez que em
seus documentos de trabalho, a organização dedica-se com afinco à matéria. Neste sentido,
podemos compreender que, embora não “inventou” a integração sul-americana (e em certa
medida, latino-americana), o PT foi o responsável por potencializá-la e elevá-la a um patamar
novo, alimentando a disputa imperialista, que poderia perder importantes postos avançados caso
se concretizasse o projeto de integração petista e do Foro de São Paulo.
O Foro de São Paulo, que teve como função prioritária o desenvolvimento de uma política
para a integração regional sob bases de novo tipo (contestando os princípios integracionistas
neoliberais), pode ser visto como um “laboratório” para a perspectiva da integração regional
implementada pela política externa desenvolvida nos governos do PT.
Um importante aspecto na construção de hegemonia do Brasil sobre a região foi a criação,
no interior da UNASUL, do Conselho Sul-americano de Defesa, articulação que, caso lograsse
estabelecer-se de fato como um lócus de aglutinação dos anseios de defesa da região, terminariam
por dar ao Brasil, como potência regional26, um lugar privilegiado na articulação de um sistema
de defesa que tivesse como propósito a autonomia da região frente à intervenção do consórcio
imperialista.
A pergunta que cabe é: como o Partido dos Trabalhadores, como partido de governo,
estabeleceria, nos termos da teoria gramsciana, um bloco histórico internacional em que poderia
26
Se o Brasil é ou não uma potência regional, do ponto de vista teórico, é um debate ao qual não nos propomos a
destrinchar.
62
Acho que não [a política externa não influenciava nas vitórias eleitorais], eu acho que
havia um apreço sim, a política externa passou a interessar... mais pessoas falaram. Eu
sou uma pessoa reconhecida publicamente sim, coisa que normalmente um Ministro do
Exterior não é no Brasil. Em outros países é, mas no Brasil não é, não era. Então agora o
Ernesto Araújo deve ser também (...) Honestamente eu acho que a influência, talvez o
Chico Buarque dizendo que ia votar na Dilma porque gostava muita da política externa,
[porque] não falava grosso com a Bolívia e não falava fino com os EUA... (...) Oscar
Niemeyer também falava muito, então, estou falando de pessoas que são de fora da área
estrita da política. Então talvez isso influenciasse algumas pessoas, mas eu acho que na
votação global, eu creio que não, não sei, talvez como o estado psicológico, as pessoas
gostam de ver [...] talvez não entendam bem que é por causa daquilo, mas elas gostam de
ver o Brasil ser respeitado. (Entrevista realizada em 7 de junho de 2019)
e da dinâmica das forças colocadas em luta pela hegemonia. Esse fator não se diferenciou no
Brasil no que diz respeito à política externa em associação ao projeto político petista.
É no entanto inconteste que a política externa adotada nos governos Lula e Dilma
possibilitou ao Brasil um trânsito maior entre os países da América do Sul, como liderança e
referência, o que permitiu um desempenho mais ativo nos foros internacionais e um papel mais
proeminente na definição da segurança internacional (VIGEVANI; RAMANZINI JÚNIOR,
2014). Todos esta movimentação demonstra a intencionalidade por trás da articulação entre
política externa e um projeto nacional de desenvolvimento, como uma forma de o Brasil ganhar
posição de protagonismo no cenário internacional, assim como consolidar sua direção sobre a
sociedade brasileira como um todo, através da hegemonia política sobre os grupos subordinados.
Celso Amorim ressalta, na referida entrevista, que uma importante característica da
política externa brasileira sob seu comando foi a intensidade dada às relações com os países da
América do Sul, América Latina e África, o que garantiu por sua vez uma maior predisposição à
integração e a melhores relações políticas e comerciais. Em suas palavras “quantidade altera a
qualidade”. Segundo sua visão esse foi o principal ponto de inflexão entre a tradicional política
externa brasileira e aquela aplicada nos governos Lula e Dilma. Diante de tal afirmação, podemos
compreender que se dispendiam esforços para construir junto aos países sul-americanos uma
hegemonia brasileira, e uma nova inserção do Brasil no mundo.
A partir das análises desenvolvidas nessa seção, conclui-se que os governos do Partido
dos Trabalhadores buscaram, através de sua política externa, realizar amplo processo de
articulação internacional que garantisse o desenvolvimento econômico, de forma a possibilitar a
redistribuição de renda, por meio principalmente das exportações, mas também da consolidação
de um indústria de consumo e de um mercado consumidor interno, preceitos materiais
(econômicos) para a consolidação de uma hegemonia interna. Ao mesmo passo, utilizou a
política externa para garantir ao país o posto como liderança regional e portanto de player
mundial, o que em grande medida demonstra uma estratégia de construção hegemônica a nível
internacional.
A análise do teor da política internacional defendida historicamente pelo Partido será
apresentada na seção II.4 desse capítulo, o que poderá nos dar mais elementos para a
compreensão do projeto hegemônico do Partido dos Trabalhadores. Antes, todavia, discutiremos
aquilo que aqui denominamos de crise da hegemonia interna petista.
65
barateamento dos bens e serviços diante dos baixos salários dos trabalhadores pior qualificados.
Dessa forma, diante da política econômica e das políticas públicas aplicadas nos governos Lula e
Dilma, a redistribuição de renda passou a ser feita de um lado, desses próprios setores médios e
pequenos empresários, para os trabalhadores pobres.
Diante disso é possível dizer que a desigualdade de renda permaneceu estável, uma vez
que os 5% mais ricos absorveram parcela crescente da renda nacional de 2006 a 2012, o que
equilibrou os ganhos quantitativos de renda por parte das camadas mais pobres. Isso demonstra
que a distribuição de renda foi efetivada principalmente entre as altas classes médias e os setores
mais populares, mantendo a desigualdade entre o topo e base da pirâmide (BASTOS, 2017).
O fator trabalho foi dessa vez determinante para que esses setores médios tirassem o
monopólio das ruas que a esquerda detinha desde 1978, nas manifestações de 2013, fator que
serviu para virar o tabuleiro contra o governo da presidenta Dilma Rousseff. Uma vez que os
setores populares, devido a melhor acesso à educação e menor desemprego, passaram a ter
melhor entrada em empregos antes disponíveis apenas à alta e média classe média, esses setores
passam a se mobilizar pela manutenção do privilégio sobre essas vagas. Apesar de ter logrado
vencer as eleições de 2014, essa massa média permaneceria mobilizada, atiçada por uma direita
golpista e seria capaz de superar, em número, as mobilizações populares (BASTOS, 2017).
O discurso de base da ascensão do populismo de direita se enraíza na percepção de que os
setores médios estariam financiando, com seus impostos, as políticas distributivas dos governos
petistas, sem, em troca, receber serviços públicos na mesma medida, assim como a corrupção do
Estado. Esse discurso seria capitalizado pela direita neoliberal, que dessa vez contava com uma
massa mobilizada nas ruas, enquanto a corrosão do apoio ao governo Dilma inviabilizava a
construção de um movimento vigoroso o suficiente nas ruas para deter o avanço das massas
conservadoras. Paradoxalmente, o governo retirado por essas massas era o único defensor das
investigações de corrupção, inclusive criando vários aparatos para melhoria do sistema de
investigação, enquanto o governo colocado tinha interesse em barrar as investigações. Nesse
contexto é importante citar o uso político das instituições e da Operação Lava-Jato, para atingir
seletivamente o PT, o que com certeza minou significantemente a base de apoio do governo,
criando condições para o golpe.
Mas se essa classe representa parcela minoritária da população, como foi capaz de superar
as massas populares? Uma hipótese plausível é que a falta de um projeto hegemônico cultural
70
nítido pode ser um dos fatores pelo qual essas massas não reconheceram seus privilégios como
resultado de políticas públicas, mas de mérito próprio. Em segundo lugar, é preciso pensar do
ponto de vista sociológico a relação entre as camadas médias e a população empobrecida, já que
estas enxergam nas classes médias um espelho de seu futuro desejado, gerando uma relação
intrinsecamente política de repetições e liderança. Essa relação poderia ser superada diante da
aquisição de consciência de classe, tarefa que caberia à direção política da classe trabalhadora,
noutros tempos o PCB, nesse caso, o Partido dos Trabalhadores. Um terceiro fator, vinculado aos
últimos dois, reside no afastamento do PT de suas bases, em parte devido ao deslocamento de boa
parte de seus quadros para a máquina pública, desfalcando o trabalho de base necessário para
sustentar um projeto de poder, mas por outro lado, devido a uma série de análises feitas pelos
dirigentes partidários (algumas delas aqui explicitadas) que levavam a acreditar na possibilidade
de aplicação de um projeto político sem a constituição de hegemonia, ou seja, na “neutralidade do
Estado”.
A partir da análise acima descrita, é possível problematizar que a perspectiva econômica
(com o devido reverberar sobre as questões sociais) foi o principal fator que levou à desagregação
da coalizou que levou Dilma ao governo. Muitos chegaram a chamar suas medidas iniciais no
segundo mandato de “austericídio”, uma vez que o timing não podia ser pior, econômica e
politicamente, pois subestimou a desaceleração cíclica e os efeitos contraproducentes da
austeridade, assim como subestimou o golpismo da oposição, a seletividade da Operação Lava-
Jato e a boa vontade da população (BASTOS, 2017). Um fator relevante no desgaste da
capacidade de liderança de Dilma (e do PT) foram as tentativas por minar o tamanho do PMDB
na base aliada, o que levou ao efeito contrário, aumentando essa importância e elegendo Eduardo
Cunha presidente da Câmara. Aqui vemos a adição do fator político ao processo de corrosão da
hegemonia petista, mas sem retirar o protagonismo do fator econômico, que foi responsável por
imobilizar estrategicamente o governo. Uma vez feita a guinada à direita, não existia discurso
econômico para apelar às ruas e recuperar popularidade.
O Partido dos Trabalhadores sai do governo desestabilizado. Depois de 13 anos de
governo, o Partido precisaria se readaptar a condição de oposição, necessidade esta que encontrou
muitos empecilhos na estrutura burocratizada do Partido. Durante os dois anos e meio de governo
de Michel Temer, foi nítida a tentativa do PT de se recompor e reativar os laços que o permitiram
ser o partido com maior capilaridade social no país.
71
O golpe de 2016 não fechava sua conta com o maior líder político do país livre para fazer
campanha e se eleger (como indicaram todas as pesquisas) em primeiro turno em 2018. Isso
significa que para articular um novo bloco histórico, as forças políticas responsáveis pela
articulação do golpe jurídico parlamentar de 2016 precisariam inviabilizar eleitoralmente o
Partido dos Trabalhadores, o que fazia com que a prisão de Lula fosse necessária para atingir os
objetivos globais da direita e extrema-direita no país. Lula é preso e com ele, boa parte do
Partido. No entanto, em resolução da DS, tendência interna do PT, se coloca a avaliação de que
os Comitês montados em defesa do direito de Lula ser candidato culminaram na reativação da
militância petista, comparando o processo aos núcleos de base, da origem do Partido.
O PT chega no segundo turno com 30% dos votos e sai dele com 45%, além de obter o
maior número de governadores e governadora (4), a maior bancada de deputados e deputadas
federais e a segunda maior bancada de deputados e deputadas estaduais. Diante de uma
conjuntura completamente adversa, com uma disputa acirrando-se sobre o Partido, a avaliação
feita pelo PT sobre as eleições não foi de todo negativa. Em resolução política de balanço
eleitoral, o Partido dos Trabalhadores traça autocríticas, como a incapacidade de se manter
conectado com as maiorias populares, devido à falta de disputa cultural e de valores, mas se
esquiva da tarefa de fazer uma autocrítica em relação à postura econômica dos governos, em
especial o segundo mandato de Dilma. Nesse mesmo documento, aparece, entretanto, uma
novidade: a afirmação de que a maior oposição feita será nas ruas e com organização popular.
Com isso o Partido estaria sinalizando para a necessidade de voltar ao trabalho de base, realidade
que passa a ser absorvida em todas as regiões do Brasil.
Esta análise conjuntural nos permite a recolocar a questão da hegemonia. Segundo nossa
análise, a hegemonia petista nunca foi de fato uma hegemonia ampla o suficiente para sustentar
um projeto de poder de transformações sociais em longo prazo.
De fato, a hegemonia restrita (política) conquistada permitiu ao partido governar para
amplos setores da população, em especial para as camadas populares, mas apenas enquanto a
economia favorecia os ganhos dos setores embarcados na coalizão petista, desde uma parcela do
setor rentista, passando pelo setor industrial, e setores das classes médias progressistas e
terminando nos setores populares. Essa hegemonia política se corroeu, tomando como exemplo a
votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados e no Senado, mas que se
manifestaria inclusive na incapacidade de articular os diversos interesses das forças políticas de
72
representação das frações de classe no poder, levando o Partido à oposição. O único espaço onde
o Partido exerce uma ampla hegemonia é no seio da esquerda brasileira, o que pode ser
demonstrado pela coalizão política lograda pelo PT no segundo turno das eleições, pela
capacidade de articular a campanha “Lula Livre” no seio da esquerda brasileira e pela atuação de
liderança no legislativo. Esta hegemonia, apesar de contestada por setores minoritários, ainda
segue vigente, sem sinais de superação em médio prazo.
A partir das análises acima desenvolvidas, acerca do histórico que possibilitou o ciclo
hegemônico do Partido dos Trabalhadores, assim como as contribuições da política externa dos
governos petistas para esse processo, nos cabe então avaliar a forma como atuou e atua
internacionalmente o PT, para que tenhamos elementos mais concretos que possam apontar para
um projeto hegemônico a nível internacional.
A trajetória da política internacional traçada pelo Partido dos Trabalhadores, desde sua
fundação até a implementação da política externa no governo, passou por profundas alterações de
caráter substancial, sem, no entanto abandonar a manutenção de princípios fundadores do Partido.
Às mudanças na correlação política internacional e à inter-relação existente entre os âmbitos local
e global podem ser creditadas as mudanças sofridas no interior da política internacional
formulada no Partido (RAMOS, 2012). Da mesma forma é possível dizer que a proposta de
política externa finalmente apresentada é resultado de anos de adaptações, desde as propostas de
cunho socialistas estabelecidas no final da década de 1970 e início da de 1980 até o programa da
campanha vitoriosa de 2002, que se torna mais conciliador em relação às “obrigações” externas
(dívidas, contratos, acordos internacionais). Nesse sentido voltamos a ver que o discurso e a
prática dos novos governantes tinham revigorado teor, porém em linhas estruturais as mudanças
foram menos espessas (ALMEIDA, 2003).
Na plataforma política pró-PT, em 1979, encontravam-se itens visíveis de ruptura com o
establishment mundial, como a reivindicação da nacionalização e estatização de todas as
empresas estrangeiras e uma política externa independente. Isso se reforçaria nos primeiros
encontros do Partido, em que se afirmavam contra o imperialismo e a favor do combate à
espoliação do capital internacional, do respeito à autodeterminação dos povos e da solidariedade
73
aos povos oprimidos. Ainda em 1982, em ocasião de seu II Encontro Nacional, o PT defendeu a
nacionalização do comércio exterior e em seu III Encontro Nacional, no ano de 1984, declarou
ser favorável à independência do Brasil em relação ao FMI e às multinacionais, assim como a
suspensão imediata do pagamento da dívida externa (RAMOS, 2012).
Estava presente também a solidariedade aos movimentos de libertação nacional ao redor
do mundo, que aliado aos outros pontos da plataforma internacional, levava o Partido a
caracterizar-se junto à típica plataforma dos partidos de esquerda da América Latina no período
clássico da Guerra Fria, em conformidade com sua vocação socialista. O PT passa então a tomar
uma série de posturas críticas em relação à pauta internacional, embora seus dirigente
gradualmente adotassem posturas de adesão a um conjunto de propostas da ação diplomática, que
apesar de mais agressivas na retórica, não se diferenciaram tanto, na prática, dos princípios e
valores já aplicados na burocracia diplomática brasileira. Essa se caracterizaria como a primeira
fase da formulação petista acerca da temática internacional.
Kjeld Jakobsen, assessor de assuntos internacionais do PT, em entrevista realizada em 26
de março de 2019, indica quatro fases que caracterizariam a atuação internacional petista.
A primeira, que se desenvolveria até o final dos anos 1980, seria, tal como demonstrado
acima, mais focada na solidariedade entre nações e com processos de libertação e
aprofundamento da democracia, como a solidariedade ao movimento anti-apartheid na África do
Sul, à luta dos palestinos por sua independência, à Revolução Cubana e à Nicarágua. Ou seja,
uma solidariedade direcionada ao “terceiro mundo”.
Uma segunda fase se caracterizaria a partir das disputas eleitorais gerais, assumindo a
cabeça de chapa com Lula “quando o partido se vê obrigado a formular política externa à nível de
governo, como uma política pública, voltada para o mundo todo e não apenas com os oprimidos”
(Entrevista realizada em 26 de março de 2019). Nessa fase começam a entrar na pauta partidária,
de forma mais consolidada, temas como comércio e a posição sobre a ONU e seu Conselho de
Segurança.
Uma terceira fase se caracterizaria pela formulação da política internacional durante o
governo, em que muitas vezes estabeleceu uma relação simbiótica com a formulação da política
externa do país, sem se esquivar das tarefas impostas ao Partido, que são diferentes daquelas
exigidas pela burocracia estatal. O Partido funcionou como um suporte às relações estabelecidas
entre Estados, ou seja, se o Brasil precisava se relacionar com a China, o PT buscaria uma relação
74
com o Partido Comunista Chinês. Jakobsen ainda frisa que a pauta governamental é mais ampla
que a pauta do Partido, uma vez que existem outros interesses, ministros etc.
A quarta fase se dá com a saída do PT do governo, quando a agremiação precisa voltar a
formular política internacional como partido, tentando tirar proveito da experiência e do que se
acumulou no período anterior.
Para compreender a transição da primeira para a segunda fase de formulação internacional
do PT precisamos ter em mente alguns aspectos emblemáticos que passam a ser revistos já por
ocasião do IV Encontro Nacional, em 1989, como um preparatório para a disputa presidencial.
Nesse encontro a posição sobre o sistema financeiro sofre uma modificação importante, uma vez
que antes se defendia sua completa estatização e passa-se a postular o controle e a possível
estatização, uma mudança substancial que seria acompanhada, posteriormente, pela mudança da
palavra de ordem “pelo não pagamento da dívida externa” para “renegociação da dívida externa”.
A transição se faz também com muitos pontos de continuidade em relação à formulação inicial do
Partido, como por exemplo, a defesa da prioridade das relações Sul-Sul, seja no âmbito da
América Latina, seja no africano, ou nas relações com Rússia, China e Índia.
Nessa fase a articulação internacional do PT passa a ser um importante fator para a
conquista da opinião pública. Afirma-se isso devido às várias viagens internacionais realizadas
por Lula, iniciando na campanha de 1994, que segundo os depoimentos de Dirceu e Jakobsen
foram utilizadas para fortalecer sua imagem como estadista. Essas viagens também serviram para
ampliar a percepção da população quanto a Lula, que na campanha de 1989 tinha uma imagem
bastante vinculada aos povos oprimidos da América Latina.
A plataforma apresentada para a disputa presidencial de 1989 continha a proposta de:
Pode-se perceber que nos deparamos com uma formulação muito próxima daquela
desenvolvida nos primeiros dez anos do Partido. No entanto com um teor mais substancial, mais
destinado à uma ampla política externa do que para relações interpartidárias, como se solia fazer
75
anteriormente. Cabe afirmar também a atualidade de tais posições, uma vez que as posições
adotas pelo PT no governo não divergiram muito dessas diretrizes.
Nessas mesmas eleições foi apresentado pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) 27 um
“programa mínimo” para as esquerdas, cujo teor internacional incluía não apenas suspensão do
pagamento da dívida externa, mas a criação de articulações entre os países devedores para
fortalecer o não pagamento, assim como estabelecer relações de proximidade com todo país que
se enveredasse na busca por uma alternativa ao modo de produção capitalista e sua crise.
Após a derrota por pequena margem em 1989, Lula e o PT lançam, junto a outros partidos
de esquerda, o denominado “governo paralelo”, cuja experiência não avançou muito em termos
de constituição de uma política externa alternativa, sob a figura de Carlos Nelson Coutinho
(ALMEIDA, 2003)
Uma iniciativa desse período foi a construção de uma articulação latino-americana e
caribenha de forças progressistas, de esquerda e socialistas, o Foro de São Paulo. A partir dele,
pode-se enfrentar em bases mais concretas os desafios internos e coletivos da política
internacional. Um dos principais pontos de confluência dessas forças articuladas era a negação à
proposta imperialista de integração e ao neoliberalismo, propondo uma nova forma de se
desenhar os caminhos para a integração na macro região.
O desenvolvimento da política internacional do PT, em paralelo às formulações de
propostas para a política externa brasileira, se dá então em torno da necessidade de propor um
projeto nacional de desenvolvimento, o que já em 1994 leva o Partido a afirmar que se passavam
quinze anos sem tal projeto. A perspectiva de desenvolvimento nacional, que passava pela
criação de um amplo mercado consumidor interno, como vista à inserção autônoma no cenário
internacional, se alinhava com a política externa, como forma de viabilizar a construção desse
projeto de desenvolvimento. Eram faces de uma mesma moeda. É possível denotar que a
maturidade da proposta internacional do PT passa a galgar níveis elevados, sendo capaz de
apresentar de forma mais concreta caminhos para a inserção do Brasil no mundo, em consonância
com seu projeto democrático-popular.
Avançando para 1998, observa-se certa fricção entre Lula e seu vice Brizola (PDT –
Partido Democrático Trabalhista), uma vez que Lula passa a assumir um tom mais ameno, não
compartilhado por seu companheiro de chapa, em relação às empresas privatizadas e ao capital
27
O partido compunha a Frente Brasil Popular, que dava sustentação à candidatura petista
76
estrangeiro. O carro chefe de sua campanha foi a questão da perda da soberania econômica do
país frente à atuação internacional do presidente à época, Fernando Henrique Cardoso (FHC). O
que se propunha era mudar a forma de inserção do Brasil no mundo. Com isso assumia-se uma
postura crítica em relação às instituições existente no mundo, como FMI, Banco Mundial, OMC e
BIRD (Bando Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento) e propunha-se a atuação na
construção de novas instituições, capazes de redimensionar o aspecto político-econômico
internacional.
A campanha de 2002, por sua vez, foi marcada por uma inflexão rumo à uma política
externa pragmática, muito embasada também pela nova configuração da coalizão que
impulsionava Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, assim como a vontade política de atrair o
apoio centrista. Havia uma cautela maior na expressão das ideias do Partido, apesar de ainda
carregar os jargões de críticas às instituições internacionais, postura que foi sendo adaptada ao
longo da campanha para acomodar-se em meio à inédita coalizão conformada. Apesar de ter
formulado em seu XII Encontro, em 2001, uma política internacional de rupturas, o PT em
campanha deixa de lado esse aspecto do ponto de vista das propostas concretas, incorporando-a
apenas discursivamente.
É a partir da Carta ao Povo Brasileiro que se apresentam os elementos de orientação da
política externa que seriam aplicados por um eventual governo do Partido dos Trabalhadores.
Bastante criticada por setores internos ao PT, essa carta viria a estabelecer um pacto de não
ruptura com a ordem neoliberal vigente no país e hegemônica mundialmente. Isso se expressa
através de itens como: a declaração de respeito aos contratos e obrigações do país; continuidade a
algumas das políticas seguidas pelo governo de FHC; e a não rejeição aos pressupostos do livre-
comércio, desde que este não se fizesse distorcido em favor dos mais poderosos e fosse mais
equilibrado. De forma genérica, é uma substituição do discurso da negação, por um discurso
“mais medido e equilibrado, revelando uma real preocupação com a governabilidade e o
relacionamento externo, numa perspectiva de possibilidades reais de vitória nas eleições de
outubro de 2002”. (ALMEIDA, 2003 p.93).
Na terceira fase da formulação e atuação internacional do Partido dos Trabalhadores,
aquela que estaria marcada por sua ascensão ao governo, o partido estaria inteiramente voltado
para a administração do poder executivo do Estado brasileiro. Segundo José Dirceu, essa fase se
caracterizaria pelos seguintes aspectos:
77
Prioridade absoluta à América do Sul, criação da UNASUL (União das Nações Sul-
americanas), integração dos mercados, política e militar na América do Sul,
consolidação do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) e o olhar pra toda a América
Latina. Política Sul-Sul. Fortalecer as relações com os BRICS (Brasil, Rússia, Índia,
China e África do Sul), constituir instrumentos com esses países de desenvolvimento,
financiamento. Novas relações no mundo, tanto políticas quanto no Conselho de
Segurança da ONU, mudanças na OMC (Organização Mundial do Comércio). A
presença do Brasil em todos os foros internacionais, com grande capacidade de
articulação e de influência, como no caso do clima, até pela dimensão e importância do
Brasil na questão do clima. Acredito que há a presença do Lula como um líder mundial e
um estadista, no G8 e no G20 e presença do Lula e do Brasil para mediar conflitos, seja
no Haiti, seja na Colômbia, seja na Venezuela, inclusive na questão do apoio nuclear no
Irã, que o Lula junto com o Erdogan fez uma proposta de acordo entre os EUA, o Irã e a
União Europeia, que se desdobrou nesse acordo que agora está sendo rompido pelo
Trump, houve até medidas do Irã ontem (08/05/2019) com a Rússia, a China e a União
Europeia. (Entrevista realiza em 09 de maio de 2019).
Da mesma forma como aponta essa nova forma de inserção no cenário internacional, o
ex-ministro afirma haver linhas de continuidade em relação à política externa dos governos
predecessores, devido aos acordos já firmados pelo país e aos parâmetros já assumidos pelo
Itamaraty, o que não impediu uma mudança qualitativa na política externa adotada no governo
Lula.
A política formulada pelo Partido dos Trabalhadores para o setor internacional disfrutou
de grande prestígio ao longo de seus treze anos de vigência, no entanto não levou o Partido a
estabelecer aliados estratégicos que lhe apoiassem durante o golpe de Estado de 2016, que depôs
ilegalmente uma presidenta reeleita democraticamente. O perfil da atuação internacional passa
então à absorver os impactos dessa nova configuração de poder, com o Partido passando à
qualidade de oposição, chegando à quarta fase da política internacional petista.
Nesse momento, o Partido volta suas atenções para a ampliação da gama de parceiros
internacionais, principalmente através da articulação de grupos e partidos em torno de uma
“Internacional Progressista”, uma iniciativa de Fernando Haddad (PT - Brasil), Bernie Sanders
(ala socialista dos Democratas – EUA) e Yanis Varoufakis (Syriza – Grécia). A tentativa de
reunião de progressistas em todo o mundo não se faz, de acordo com os depoimentos de Dirceu e
Jakobsen, através do esvaziamento do Foro de São Paulo, uma vez que possuem naturezas
diferentes. De acordo com os entrevistados essa iniciativa busca aglutinar partidos com
pensamentos semelhantes para troca de experiências. É importante apontar que nessa fase pós
78
golpe de 2016 o PT volta a se debruçar sobre análises de conjuntura internacional, como forma de
apontar possibilidades de ação para a esquerda brasileira, frente à crise internacional do capital.
Através do panorama apresentado nesse capítulo, acerca da atuação internacional do PT,
assim como as condições históricas que possibilitaram tal atuação, podemos então nos ater ao
objeto de estudo desse trabalho, o Foro de São Paulo, buscando traçar linhas de influência mútua
entre este e o Partido dos Trabalhadores.
79
O Primeiro Encontro se deu em julho de 1990 e foi capaz de construir uma pauta comum
entre as esquerdas de toda a América Latina e Caribe, encampando em suas teses uma luta
unitária, anti-imperialista e socialista, ressaltando a democracia e o respeito aos direitos humanos
como caminho para tais objetivos e sob direta influência da experiência sandinista na Nicarágua e
da perspectiva socialista do PT, o que levava a uma crítica ao burocratismo soviético (PETRÓ,
2018).
81
Com isso há uma mudança de método no seio de grande parte das forças de esquerda
latino-americanas, apesar das contradições presentes entre estas, que refletiria os ânimos do
período a nível global. Estas optariam pela luta política em uma combinação entre pressões
realizadas através de movimentos populares e sindicais e a disputa da máquina estatal nos limites
de seu caráter burguês, com vistas a transformá-lo a partir da institucionalidade, abandonando,
em grande medida, a estratégia revolucionária. Na Declaração Final do Primeiro Encontro, ou
como ficou conhecida, a Declaração de São Paulo, estariam expressas as caracterizações de uma
diferente metodologia para o movimento da esquerda latino-americana, nivelando aquilo que
conduziria a troca de experiências, a partir de análises e balanços dos partidos membros.
O centro das discussões girava em torno da construção de uma alternativa econômica,
social e política ao neoliberalismo, que se situava como condutor das relações no continente.
Apesar de, a princípio, a iniciativa não almejar se constituir como fórum permanente, para a
consecução dos objetivos aqui destacados, se propôs a partir do primeiro encontro um diálogo
duradouro entre as forças presentes. Com a compreensão de que o papel agora assumido pelas
forças atendentes ao Foro de São Paulo apenas chegaria à concretude mediante um projeto
próprio de integração regional, se fez necessária uma forte oposição ao projeto estadunidense de
integração, representado pela ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), assim como a
defesa dos processos revolucionários em Cuba e na Nicarágua, a contestação do intervencionismo
em El Salvador, da ocupação militar no Panamá, da evasão de capitais do continente e do
pagamento da dívida. A partir de tais convicções, passa-se a ser formulado um novo conceito de
integração, que respeite a autodeterminação dos povos, a soberania, as diferentes identidades
culturais e que promova a solidariedade internacionalista.
O Primeiro Encontro do FSP fora marcado pelo ineditismo de sua amplitude, reunindo
organizações, partidos e frentes de todo o espectro da esquerda política. Lançou-se a discussão
sobre a crise do modelo de transição socialista implantado na Europa Oriental, assim como a
situação do sistema capitalista mundial, em sua ofensiva neoliberal. Um foco importante e
representativo da conjuntura que permeara o Encontro, foi a discussão sobre as estratégias
revolucionárias adotadas pela esquerda na região, em vistas do quadro internacional apresentado.
Com essa revisão se buscava renovar o pensamento de esquerda e o socialismo, afirmando que a
sociedade justa, livre, soberana e socialista só pode surgir e se sustentar na vontade dos povos,
entroncados com suas raízes históricas. (Secretaria de Relações Internacionais do PT, 2013 p. 12)
82
28
Coincidentemente, o número de quadros fundadores do PT, que se organizariam na Articulação dos 113, como
tendência interna do Partido. Posteriormente se denominaria Articulação – Unidade na Luta. Já nos anos 2000, a
partir da fusão com outros grupos passou-se a chamar “Campo Majoritário”. Em 2007 a tendência assumiu a
nomenclatura que carrega até os dias atuais, CNB (Construindo um Novo Brasil). (CNB, 2019).
83
discussão sobre a democracia política, compreendendo-a como resultado das lutas dos povos, e
sua implementação através de mecanismos da democracia representativa, participativa e direta.
29
Essas forças reconhecidas reivindicavam ou não o socialismo como estratégia, mas em sua totalidade
impulsionaram renovação política e orgânica.
85
por uma democracia tutelada e de crescente militarização, em que a mídia é controlada pelo
aparelho político dominante e o exercício democrático se faz muitas vezes na forma, mas não na
substância. Critica-se também a lógica econômica da sustentação da competitividade nas
vantagens comparativas, o que contribui para a subordinação latino-americana às grandes
economias.
Em suma, diante dos desafios postos pela tentativa de retomada da influência do Estado
dominante, na América Latina, a necessidade latente para a articulação expressa pelo Foro de São
Paulo está em construir um novo paradigma para a integração regional, cultivando, para isso: o
pleno exercício democrático nos países representados, o que possibilitaria a chegada aos
governos e ao poder pelas organizações populares, viabilizando esse novo projeto de integração.
É expresso o apreço pela via democrática na consecução do objetivo de se chegar aos governos
na região para anunciar um novo modelo de integração que repudiasse o neoliberalismo.
A Declaração de Manágua, fruto do III Encontro dos movimentos e partidos do Foro de
São Paulo reafirma a existência de uma ofensiva do norte geográfico contra a América Latina,
para ampliar sua dominação sobre a região, identificando como protagonistas nesse movimento
as instituições financeiras multinacionais, tais como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o
Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. A partir dessas instituições se
desenvolveria um modelo que produz transformações antidemocráticas nos Estados,
concentrando o processo decisório em órgãos e instituições alheias ao controle social, como os
organismos de condução econômica e as forças armadas, que gradualmente ampliam seu caráter
repressivo. Também influenciariam no plano cultural e ideológico, minando o sentimento
solidário dos povos e pregando o individualismo. Ao salientar tais aspectos, a Declaração lança
uma empreitada de construção de mecanismos de disputa desses aparatos.
São enumeradas as contrapropostas com vistas a fortalecer a capacidade de ação dos
movimentos sociais, o empoderamento feminino, mecanismos de controle social sobre a
produção e o processo decisório e assim completando o ciclo de democratização no continente.
Vale lembrar que a luta travada pelas organizações do Foro de São Paulo já previa a necessidade
de se consolidar uma política de comunicação, com vistas à sua democratização.
A partir da Declaração de Manágua, começa a tomar corpo a proposta de um novo modelo
de integração, com a listagem de ações a serem tomadas para a reorganização do espaço
internacional de forma a permitir a inserção dos países do sul global. Diante disso, faz-se um
86
série de exigências que na prática retirariam dos Estados Unidos e seus aliados o domínio sobre a
região. É nítida a evolução da capacidade de proposição e de mecanismos de atuação práticas ao
longo dos Encontros, sendo que a Declaração do III Encontro apresenta mais apuração e
desdobramentos em relação à Declaração do I Encontro.
Na Declaração Final do IV Encontro do Foro de São Paulo, as organizações presentes
fazem a avaliação de que este Encontro demonstrou a força e a vitalidade das organizações
nacionalistas e anti-imperialistas, democráticas e populares, de esquerda e socialistas, vitalidade
respaldada pela significação internacional que passava a tomar o Foro, com 44 organizações
observadoras da América do Norte, Europa, Ásia e África. Tomada com caráter simbólico, a
realização do Encontro em Havana, Cuba, reafirmou a importância da luta contra o bloqueio
econômico imposto pelo imperialismo estadunidense, assim como pela defesa das conquistas
revolucionárias do povo cubano, demonstrando, dessa forma, a disposição de luta anti-
imperialista das forças políticas presentes.
Essa disposição se fez potencializada pela análise de que o neoliberalismo, outrora
hegemônico, passava a apresentar-se com diversas fissuras, nas quais age de forma contundente a
força de mobilização das forças populares, contra o modelo econômico em voga. Dessa forma é
pertinente salientar a análise econômica que fazem do projeto neoliberal, confirmada ao longo
dos Encontros, de que a prioridade pelo pagamento da dívida, imposta pelo FMI e o Banco
Mundial, leva a uma desindustrialização dos países, relegando-os a uma condição primário-
exportadora, que acarreta no abandono da produção agropecuária não exportadora, levando a
retrocessos na capacidade de autossuficiência alimentar, assim como diminuindo os postos de
trabalho.
Um novo aspecto trazido pela Declaração da Havana é a necessidade do combate à
corrupção, que se alastrara como prática sistêmica do Estado neoliberal e que servia como
encalço para o discurso da “necessidade” de privatizações, uma vez que, segundo os atores das
classes dominantes, a corrupção estaria restrita à classe política e a agentes individuais,
salvaguardando a elite econômica. Essa narrativa chama a atenção das organizações presentes no
IV Encontro, que respondem com a compreensão de que a corrupção seria intrínseca à prática
privatizante e ao projeto neoliberal.
É possível observar que, de forma gradual, o Foro de São Paulo passa a dar maior
centralidade na disputa eleitoral, como se pode observar no seguinte trecho da Declaração:
87
[...] e no que diz respeito a processos eleitorais no que resta de 1993 e em 1994, várias
das forças integrantes do Foro disputarão a presidência ou os governos dos seus países,
em eleições nacionais, como nos casos do Brasil, Colômbia, Chile, El Salvador, México,
Panamá, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. Eleições limpas e democráticas é
uma palavra de ordem que o Foro apoia em todos os casos (POMAR, 2013 p. 47).
30
Um refluxo em relação ao V Encontro, que contou com 65 delegações, no entanto teve um número expressivo de
organizações convidadas, 144, além de 35 organizações observadoras da América do Norte, Europa, Ásia e África.
(Declaração do VI Encontro, 1995).
31
Dentre eles podem ser ressaltados o desmantelamento das bases produtivas, gerando insustentáveis déficits fiscais,
a persistência do endividamento interno, a desindustrialização, o desemprego e a terceirização.
89
organismos internos do Foro, com sua organicidade, normatividade e instrumentos para unidade
de ação. Também se expressa, de forma inédita, o debate acerca dos avanços tecnológicos, da
propriedade da classe trabalhadora sobre estes e a sua usurpação pelo modelo neoliberal de
organização econômica e social. Com isso afirmam:
32
Um setor entendia a reforma como uma fase do processo e um retrocesso, quando não associada a projetos que
apontem para a superação histórica do Modo de Acumulação Capitalista, em sua fase imperialista. Ao mesmo passo,
existia o posicionamento de que nessa fase as atenções deveriam ser voltadas para a luta democrática, eleitoral e por
reformas que minassem as bases do neoliberalismo.
90
33
Posto frente à frente com a Declaração do VII Encontro, podemos observar uma evolução na unidade em torno do
termo “revolução”.
91
formulação no seio do Foro de São Paulo e, dessa forma, repudia-se qualquer tentativa de
ingerência internacional no processo sul-americano.
Na Declaração se faz evidente o tom de virada política, reiterando ser imprescindível o
fortalecimento das forças políticas de esquerda, populares, anti-imperialistas, democráticas e
socialistas para a constituição de uma alternativa real ao neoliberalismo e a consequente chegada
aos governos nacionais.
A Declaração Final do X Encontro, realizado em 2001, na Havana, Cuba, contou com a
presença de organizações de 81 países da América Latina e do Caribe, América do Norte,
Europa, Ásia, África, Oriente Médio e Austrália, estando presentes 74 partidos e movimentos
membros e 127 partidos e organizações convidadas. Isso representa um salto quantitativo
importante para o Foro, que se afirma como centro aglutinador das esquerdas a nível regional e
como importante fórum de discussões a nível mundial. O clima de unidade em torno da análise
do contexto internacional se configura pelo entendimento de que há um crescente controle da
produção, da comercialização de bens e serviços e dos fluxos financeiros por um número restrito
de países desenvolvidos e empresas transnacionais, acentuando a diferenciação entre os países
desenvolvidos e os periféricos, marginalizando a participação e polarizando a riqueza e dessa
forma acarretando na crise do paradigma hegemônico e do “pensamento único”.
Um importante fator político que permeia o X Encontro, foram os atentados do 11 de
Setembro nos Estados Unidos, ato repudiado pelas organizações do Foro, que no entanto
denunciavam a utilização deste como prerrogativa para uma política intervencionista e de guerra
pelos Estados Unidos, que se colocavam de forma impreterível como “polícia mundial” e com
isso buscavam enquadrar movimentos de libertação nacional como “terroristas”, empregando
uma camisa de força à esquerda mundial. Afirmar-se:
juventude, por exemplo. Nesse ínterim, passam a dissertar sobre o projeto alternativo a ser
construído, para qual seriam pré-requisito a prioridade aos objetivos sociais e a recuperação dos
espaços de soberania econômica e política na relação com os países centrais. O reconhecimento a
todas as formas de propriedade desenvolvidas pelos povos da região, assim como o
impulsionamento de mecanismos de economia popular, são itens importantes do projeto
alternativo proposto, evidenciando o papel do Estado para consecução de tais tarefas, assim como
na promoção da integração regional. A partir de tais constatações, é possível afirmar a contínua
evolução do Foro de São Paulo como centro orgânico de formulação política e de políticas
públicas, resultando num grau de internacionalização crescente das organizações membros.
A Declaração do XI Encontro do Foro de São Paulo, realizado em 2002, na cidade de
Antígua, Guatemala, traz dados animadores para a articulação da esquerda latino-americana,
caribenha e mundial, uma vez que atenderam ao Encontro 142 partidos e movimentos políticos de
todos os continentes. Apesar de perceberem o aumento da desigualdade econômica entre ricos e
pobres, da concentração do poder político, econômico e militar e da exclusão social, através de
um aprofundamento da crise gerada pelo modelo neoliberal de administração do capital e ao
mesmo passo, da unilateralidade do domínio político dos Estados Unidos, se elevava a sensação
da mudança da correlação de forças, expressa principalmente com a eleição de Lula da Silva, do
Partido dos Trabalhadores e aliados no Brasil.
O espaço dedicado a afirmar o êxito das forças progressistas brasileiras, articuladas em
torno do PT, é demonstrativo da influência da sigla no Foro de São Paulo e da importância da luta
política exercida dentro do Brasil pelo Partido, que irradiaria uma perspectiva otimista em todo o
continente, assim como reafirmaria a política de alianças formulada pelo Foro desde seus
princípios fundadores. A vitória do Partido dos Trabalhadores viria a consolidar sua liderança
frente aos demais partidos e movimentos da região, como se expressa na Declaração do XI
Encontro e nas que se seguiriam a esta.
O Encontro carrega consigo o tom da virada política, não apenas com a vitória do Partido
dos Trabalhadores, mas também com o resultado eleitoral exitoso de Evo Morales na Bolívia, de
Lúcio Gutiérrez no Equador e do avanço da revolução democrática na Venezuela34, sob a
liderança de Hugo Chavez, além do desenvolvimento de novas formas de luta e ampliação do
34
Afirmam nesse caso a necessidade de estado de alerta contra o movimento golpista do imperialismo e da elite
econômica venezuelana.
93
escopo social na Argentina, El Salvador, Peru, Uruguai e Porto Rico. O avanço das forças
democráticas, populares, de esquerda, anti-imperialistas e socialista traz consigo a perspectiva de
efetivar uma integração alternativa à proposta neoliberal da ALCA, fortalecendo o MERCOSUL
(Mercado Comum do Sul), a Comunidade Andina de Nações, a integração centro-americana e o
CARICOM (Comunidade e Mercado Comum do Caribe – atualmente Comunidade do Caribe).
A Declaração dedica-se também à temática da luta pela igualdade entre mulheres e
homens, apontando desdobramentos práticos para a atuação dos partidos membros nesse sentido.
Estão presentes também as habituais defesas do processo revolucionário cubano, do povo do
Haiti por mudanças políticas e econômicas e pela imediata descolonização dos povos caribenhos,
assim como a denúncia do movimento belicista dos EUA e seus aliados no Oriente Médio.
A leitura da Declaração Final do XI Encontro causa um impacto abertamente diferente
daquele advindo da leitura de suas predecessoras. Estas últimas se muniam de um forte conteúdo
analítico, econômico, social e político, enquanto a primeira apresenta um caráter de agitação, sem
abrir mão, por suposto, de suas recorrentes análises.
Celebrando os 15 anos de fundação do Foro de São Paulo, a Declaração Final do XII
Encontro, realizado em São Paulo no ano de 2005, foi respaldada por cerca de 150 partidos da
América-Latina e Caribe, assim como organizações parceiras da Alemanha, Bélgica, Canadá,
Catalunha, China. Espanha, França, Galícia, Itália, Portugal, Suíça e Vietnam. A importância do
Foro se reconhece pela presença de representações diplomáticas de nove países, assim como do
presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva. A presença do presidente brasileiro reafirma a
força da sigla petista no interior do Foro.
Nesse Encontro é feito um balanço do acúmulo positivo de forças das organizações de
esquerda latino-americana, identificando uma série de derrotas do imperialismo estadunidense e
uma virada política representada pela ascensão de forças populares aos governos do Brasil, da
Venezuela, do Uruguai e da Argentina, esse último com importantes lições no enfrentamento à
injusta dívida externa, assim como o exemplo brasileiro de duro combate à corrupção, à fome e à
desigualdade social e também o desenvolvimento de uma política externa voltada para uma
inserção soberana do país e da região no cenário mundial, além da não renovação do acordo com
o FMI. Essas medidas seriam representativas do avanço da resistência ao imperialismo.
O Encontro reafirma ser crucial para o desenvolvimento nacional dos países da região a
ampliação dos mecanismos de integração, que transcendam a matéria econômica e se lança por
94
Neste debate, há desde aqueles que manifestam o temor de que nossos governos tentem
colaborar na construção de um novo ciclo histórico, sem que existam as condições
econômicas, políticas e ideológicas necessárias para enfrentar com sucesso as classes
dominantes; até aqueles que alertam sobre o risco de nossa presença nos governos não
contribuir para alterar as estruturas mais profundas de nossas sociedades e do conjunto
da América Latina, o que resultaria numa desmoralização que abriria caminho para a
direita recuperar a cabeça dos respectivos governos nacionais. (POMAR; REGALADO,
2013 p. 7)
estava se encerrando um ciclo histórico e, ainda nas palavras de Gramsci, um bloco histórico,
dando espaço para um período de tipo novo em que o recrudescimento do movimento das forças
progressistas faria com que estas exercessem papel de liderança na condução da sociedade e já
não se avistava possibilidades concretas de retrocessos. Essa análise viria ao encontro às
preocupações acima citadas, no trecho extraído de Pomar e Regalado (2013) uma vez que
aparentemente, essas preocupações não se fazem presentes nessa pequena frase. Podemos supor a
partir disso que existia naquele momento histórico um alto grau de confiança. Arriscamo-nos
ainda a salientar que essa confiança veio a minar as possibilidade de aprofundamento das
mudanças estruturais necessárias para garantir a durabilidade dessa “mudança de época”.
Diante dos bons resultados das políticas públicas postas em prática pelos governos
progressistas, a Declaração enxerga com nitidez a tentativa do imperialismo, das elites nacionais,
das transnacionais e da grande mídia de desestabilizar esses governos, realizando uma ofensiva
através de táticas como, o aumento da militarização “preventiva” e a criminalização do protesto
social e da luta política da esquerda.
O chamado à integração é contundente no documento e se incentiva à adesão aos
processos de integração existentes que contestam o modelo geocêntrico, como forma de postular
uma inserção internacional independente. A UNASUL (União das Nações da América do Sul),
nasce como uma grande esperança de representar a proposta de integração do Foro de São Paulo.
Pela primeira vez, na XIV Declaração se faz presente a preocupação com a
democratização dos meios de comunicação, debate este que começara a ganhar força no Brasil,
diante dos ataques constantes da grande mídia ao Partido dos Trabalhadores e seu governo. A
importância da troca de experiências entre as organizações membros se reflete nesse item, pois a
coincidência de tal realidade se espalhou por entre as nações governadas por partidos de esquerda
e assim o Foro absorveu essa luta como central para a sobrevivência de seus governos.
Reafirmam-se também no Encontro compromissos presentes ao longo dos anos de existência do
Foro, como a luta pela equidade de gênero e pela autonomia e protagonismo da juventude.
Em 2009 foi realizado na Cidade do México o XV Encontro do Foro de São Paulo, com a
presença de organizações de 32 países da América Latina e Caribe. O número de organizações e
países representados é oscilante ao longo dos Encontros, com altas e baixas constantes. A
Declaração Final do XV Encontro tem como tema central o debate acerca das alternativas
colocadas pela esquerda latino-americana e caribenha, frente à crise capitalista, reafirmando a
97
identidade anti-imperialista e antineoliberal do Foro de São Paulo e dessa forma exaltando a sua
capacidade de resistência a esses projetos.
A crise econômica e social desatada em 2008 nos Estados Unidos teria um caráter
duradouro, o que leva alimenta a análise segundo a qual: “não estamos apenas diante de uma
época de mudanças, mas sim de uma mudança de época”. Pressupunha-se que a hegemonia
estadunidense encontrar-se-ia em declínio.
A análise dos documentos revela que a crescente denúncia de sobrecarga do
neoliberalismo e da crise capitalista sobre as mulheres, entendendo esse grupo social como mais
atingido pelos efeitos perniciosos da crise.
Um importante item é identificação de que se dissolvia no mundo o modelo unipolar, com
o surgimento de blocos econômicos em várias partes do mundo. Aliado a isso, a luta de classes
em cada país definiria, segundo a análise das organizações atendentes ao Encontro, o desenlace
da crise, com a abertura de um amplo leque de possibilidades, sejam elas conservadoras,
progressistas ou até direcionadas ao socialismo. Faz-se necessário ressaltar a atenção dada no
documento às movimentações da direita política nos países da região, que passavam a organizar
com o intuito de minar as conquistas da esquerda, através dos poderes conservados por eles,
como os meios de comunicação e também do aumento da militarização com caráter
anticomunista e racista.
De fato, no desenvolver do Encontro, é propostas uma série de medidas a serem adotadas
pelos partidos políticos do Foro de São Paulo, entre elas o acompanhamento dos processos
vividos em países governados por partidos do Foro; o fortalecimento dos movimentos sociais e
sua articulação com os povos indígenas e originários; permanecer construindo a unidade entre as
forças progressistas; criar condições para a renovação geracional, através de mecanismos de
democracia interna; resguardar os espaços conquistas e ampliar as vitórias eleitorais na região35.
Tomando lugar em Buenos Aires, Argentina, no ano de 2010, a Declaração Final do XVI
Encontro do FSP celebra os vinte anos de existência da organização. Nesse se louvam as
iniciativas bem sucedidas de integração na região, como a ALBA (Aliança Bolivariana para os
35
Nesse Encontro, realizou-se, pela primeira vez, de forma paralela, o Encontro da Juventude do FSP, o que reforça
a capacidade de colocar em prática os encaminhamentos feitos nos encontros prévios e de forma nítida demonstra a
intenção de garantir ao Foro um caráter duradouro, formando novas gerações dirigentes para o processo de
articulação da esquerda latino-americana.
98
concepção de uma mudança de época para a América Latina, protagonizada pelos governos
progressistas na região e as mudanças estruturais realizadas nesses países. Identificam, no
entanto, que o processo de transição no sistema internacional ainda possui um desenlace incerto.
A necessidade de aprofundar a democracia, através da participação popular nas decisões
de governo é uma demanda recorrente nas Declarações do Foro, mas é possível apreender da
leitura da XIX Declaração certo grau de urgência nessa questão. Isso se confirma ao dedicarem
um parágrafo inteiro para as manifestações de Junho de 2013 no Brasil:
El XIX Encuentro se realiza este año en Brasil, país que está viviendo una serie de
manifestaciones populares en demanda de transformaciones en las estructuras, así como
más derechos y mejoras en las políticas públicas. Entendemos que dichas demandas son
justas e importantes pues, a pesar de los grandes avances conquistados desde el inicio del
gobierno Lula en 2003, éstos revelan la necesidad de ampliar los espacios de
participación y expresión política de sectores sociales que han alcanzado un progreso
económico gracias a las políticas implementadas por su gobierno. Nuestros partidos y
organizaciones sociales deben ser capaces de asumir dichas transformaciones y
encontrar la manera de abrir estos espacios. (Foro de São Paulo, 2013 p. 1)
A Declaração cita ainda a tentativa dos Estados Unidos de manter sua hegemonia
econômica, política e militar, na contramão da crise estrutural pela qual passava o capitalismo,
através de manobras como a espionagem internacional e também de seus próprios cidadãos. A
resposta indicada a tais manobras seria a democratização da internet, por meio de uma gestão
universal e transparente.
Para conter a financeirização promovida pelo imperialismo, na tentativa de barrar sua
crise, assim como a proliferação dos tratados de livre comércio, se propõe o aprofundamento da
integração latino-americana, com a perspectiva de alcançar a complementariedade econômica,
diminuir as assimetrias e promover o desenvolvimento social e econômico do continente.
A iniciativa dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) recebe o apoio do
Foro, por representar a constituição de novos polos de poder e a construção de um mundo
multipolar. Nesse mesmo caminho, a Declaração presta suas homenagens e apoios a diversos
líderes da região, como à presidenta Dilma Rousseff, à Nicolas Maduro, na Venezuela e Rafael
Correa, no Equador.
Em 2014, o XX Encontro do Foro de São Paulo celebrou-se na capital da Bolívia, La Paz,
adotando o lema “Derrotar a pobreza e a contraofensiva imperialista, conquistar o Viver Bem, o
Desenvolvimento e a Integração de Nossa América”. (Foro de São Paulo, 2014 p. 1). Se em
101
encontros anteriores, o clima otimista tomava conta das organizações, a percepção e atenção a
uma contraofensiva imperialista passam a se materializar mais concretamente nos últimos três
encontros. A Declaração dedica-se também a uma firme defesa do fim de todo tipo de
colonialismo sobre a região, respaldando Declarações anteriores, assim como afirma seu
completo apoio ao processo revolucionário e democrático em curso na Bolívia, sob a liderança
dos movimentos sociais.
Na XX Declaração Final do Foro de São Paulo está contida a análise de um indiscutível
avanço das forças progressistas e de esquerda na América Latina, no entanto falam de forma
realista sobre a ameaça representada pelo projeto de desestabilização posto pelas direitas
nacionais e pelo imperialismo. Abordam especialmente as tentativas de deslegitimar o presidente
venezuelano Nicolás Maduro e como a disciplina revolucionária de suas forças armadas e de seu
povo impedem os retrocessos no país. Ainda nesse sentido, denunciam a ameaça representada
pelos Tratados Bilaterais firmada à época dos governos neoliberais na região, que poderiam gerar
profunda desestabilização econômica e instrumento de chantagem internacional.
São nítidos os avanços nas análises feitas acerca da contraofensiva imperialista. A
Declaração nos traz o conceito de “guerra não convencional”, em que:
[...] determinadas práticas de influência política de médio prazo, que se combinam com
uma maior radicalidade nas ações desestabilizadoras que descaradamente procuram a
chamada “mudança de regime” mediante revoltas “supostamente populares”, focos
terroristas e ingerências imperialistas que podem derivar em um conflito armado, como
no caso sírio. (Foro de São Paulo, 2014 p.6)
36
O termo “opção sexual” não corresponde ao acumulo dos debates no interior do movimento LGBT, que entende
como melhor definidor das relações interpessoais o termo orientação sexual, ou identidade sexual, por compreender
que não existe nenhum momento da vida consciente em que se “opte” por essa ou aquela manifestação sexual.
102
uma vez que o debate passa a ganhar força e apenas recentemente passa a ser incorporado pelas
organizações de esquerda e até mesmo por algumas de direita.
Tomando lugar na Cidade do México, México, em 2015 a Declaração Final do XXI
Encontro do Foro de São Paulo adota o lema “Igualdade, equidade, justiça social,
desenvolvimento sustentável e soberania, símbolos da mudança em Nossa América”, num
momento em que os partidos da organização buscam aprofundar a integração regional com base
em seus princípios de solidariedade entre os povos, desenvolvimento com cooperação e
complementariedade, justiça social, democracia e participação popular, fazendo a avaliação de
que o Foro havia contribuído muito para esses objetivos.
Eleva-se o tom da gravidade da contraofensiva imperialista e das elites nacionais, que
neste momento já haviam aplicado golpes de Estado em Honduras e no Paraguai. Com isso, as
organizações presentes no Foro declaram seu dever incontornável de fortalecer suas fileiras para
defender os avanços alcançados durante os governos de esquerda na região. Fazem ainda menção
aos erros cometidos pelas lideranças desses processos sem, no entanto, nominá-los.
As Declarações do Foro trazem sempre uma defesa vigorosa dos povos indígenas, de seus
direitos e suas formas de luta. A XXI Declaração reforça esse item, assim como a necessidade de
superação do modelo patriarcal, defendendo a igualdade entre pessoas independente de seu
gênero e mais uma vez fazendo menção à igualdade e não discriminação das sexualidades
diversas, dessa vez adequando-se ao termo orientação sexual.
O processo vivido na América Latina e Caribe possuiria um caráter singular em relação ao
resto do mundo que, no que pese à deterioração da hegemonia estadunidense, vive sob o julgo da
intervenção militar e do expansionismo da OTAN. Denunciam o caráter violento da União
Europeia (UE) e rechaçam seu modelo de integração, que achacou o povo grego e os povos da
Europa.
Ao saudar as vitórias eleitorais na Bolívia, Brasil e Uruguai, faz menção nominal aos
vice-presidentes eleitos, entre eles Michel Temer. Na nossa avaliação isso constituía uma
estratégia, diante do já anunciado golpe de Estado no Brasil, na tentativa de coesionar as forças
políticas das coalizões encabeçadas pela esquerda. Duas menções foram feitas também ao Papa
Francisco, um sinal de aproximação das forças progressistas com a Igreja Católica.
Um parágrafo inteiro é dedicado à situação brasileira, em primeiro lugar saudando a
quarta vitória eleitoral do PT e partidos aliados, mas apresentando um panorama complexo de
103
ataques à soberania brasileira sobre o petróleo e numa intensa campanha midiática para
desestabilizar o segundo governo de Dilma Rousseff e criminalizar e judicializar o Partido dos
Trabalhadores, utilizando-se de investigações na Petrobrás. É a primeira vez em que se faz
menção ao processo brasileiro em tom de gravidade, o que pode representar a análise do próprio
Partido sobre a situação política no país.
De forma geral, o clima desta XXI Declaração Final do Foro de São Paulo é de apreensão,
exortando o caráter transformado dos processos em andamento na região, no entanto com
perspectivas mais realistas em relação à reação do imperialismo e seus aliados.
De volta à San Salvador, El Salvador, em 2016, o XXII Encontro do Foro de São Paulo
produziu uma Declaração que afirmava os acertos de análises, planos de ação e reflexões
produzidos pelas plenárias do Foro, inclusive a percepção de uma intensificação da ação da
direita continental e do imperialismo para desmantelar os avanços obtidos sob os governos de
esquerda e progressistas, indicando com isso a necessidade de se acelerar o processo de
transformação no continente.
A Declaração atribui um caráter central à luta pela estabilidade venezuelana e à restituição
da presidenta Dilma Rousseff, que nesse ano sofrera um golpe de Estado, jurídico, midiático,
parlamentar e empresarial. O Foro declara seu irrestrito apoio ao PT e aliados, para uma luta que
segundo a Declaração, toma dimensões continentais.
É necessário que o Foro de São Paulo fortaleça os esforços pela construção de uma
frente política e social continental, integrada por movimentos políticos, sociais e
populares de nossa região, abarcando amplos setores da sociedade, entre eles aqueles
que exigem o respeito a seus direitos pessoais e coletivos, como por exemplo, os que
lutam pela liberdade de suas orientações sexuais no caso dos grupos LGBT, os setores
da juventude, as lutas de gênero pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, os
povos originários, os afrodescendentes, que não necessariamente atuam partidariamente,
mas que lutam nas ruas por seus direitos e pelo exercício de suas expressões culturais.
Todos os partidos de esquerda devem garantir espaços, em suas lutas e em suas
estruturas, para estes setores. (FORO DE SÃO PAULO, 2016 p.7)
37
Apesar de apoiado pelo ex presidente Rafael Correa, uma vez chegado ao governo, o presidente Lenín Moreno
realizou uma volta de 180 graus e adotou um programa neoliberal e uma série de ataques, inclusive judiciais, à
Rafael Correa.
105
dos Trabalhadores no Brasil, embasam as concepções do Foro de São Paulo, que passa a
compreender (tardiamente) a necessidade da disputa de consciências através da comunicação
eficiente. O PT absorve parte dessa autocrítica para suas fileiras, assim como serve de sustento
experimental para tal elaboração.
A Declaração da Havana, no ano de 2018, em ocasião do XXIV Encontro do Foro de São
Paulo reafirma: “América Latina em pé de luta”, diante da ofensiva conservadora, reacionária e
restauradora do neoliberalismo na região. Nesse momento, as forças de esquerda já acumulam
muitos reveses e se identifica uma virada na correlação de forças, a favor dos imperialistas e
oligarcas. Dessa forma, repudiam a prisão do ex presidente Lula, como símbolo da ação atroz das
oligarquias, que não tem força para derrotar eleitoralmente as forças progressistas. O gráfico
abaixo mostra o número de organizações participantes por países membros.
Gráfico 1 – Organizações políticas e partidárias do Foro de São Paulo, segundo países membros.
Total
13
12
10
8 8 8
7 7 7
5
1 1 3 2 1 1 1 3 1 1 2 3 1 3 3 1
Total
REPÚBLICA…
BOLÍVIA
COLÔMBIA
PERÚ
BARBADOS
CHILE
HONDURAS
HAITÍ
VENEZUELA
ARGENTINA
ARUBA
CUBA
CURAÇAU
MÉXICO
EQUADOR
COSTA RICA
GUATEMALA
EL SALVADOR
MARTINICA
PANAMÁ
PARAGUAI
TRINDADE E TOBAGO
NICARÁGUA
PORTO RICO
URUGUAI
BRASIL
Fazem ainda uma a alusão a um movimento mundial pela paz, diante da escalada
militarista e intervencionista do imperialismo e advertem para um nível de concertação das forças
conservadores a níveis desconhecidos pelas organizações progressistas. Como contraponto,
defendem intransigentemente a experiência da CELAC, como alternativa para a integração
regional, a constituição de um forte mecanismo de intercâmbio, que possa fortalecer o
conhecimento acerca do desenvolvimento dos planos da direita para desestabilização contra os
106
Guasú, no Paraguai e a Aliança País, no Equador, o Foro de São Paulo passa a olhar com mais
cuidado para as fragilidades em torno dos processos de transformação política, econômica e
social no continente.
A partir da chegada dos partidos progressistas e de esquerda aos governos, evidenciou-se
forte contradição entre os projetos implantados e as transformações propostas, apesar de
apresentarem um contraponto ao neoliberalismo. Nesse caso, é importante a atuação do Foro de
São Paulo no sentido de se disputar os rumos desses governos, para que a organização não
incorra nos mesmos erros da Segunda Internacional. É possível identificar na dificuldade para tal
tarefa, a influência do PT no Foro de São Paulo, uma vez que o Partido optou gradualmente por
uma política conciliatória com setores da burguesia. Diante de tal constatação é pertinente
afirmar a existência de disputas internas, desenvolvidas no interior do Foro. A partir delas se
formam as sínteses responsáveis por delinear um modelo de socialismo. Apesar da organização
nunca ter se proposto a tornar-se mundial, ela abarca debates cruciais para a pulsação da esquerda
mundial e para o socialismo do século XXI.
Eu acho que não há uma política externa petista, há uma política externa do governo do
presidente Lula, que era do PT, mas que também tinha outras variáveis... imagina o
Ministro da Indústria e do Comércio era o Vice Presidente da Fiesp e ele influía na
política externa, não conduzia, eu aliás várias vezes já tive até pequenos embates com
ele, mas eu estou dizendo...não era uma coisa que eu pudesse ignorar, eu não ignorava a
108
Fiesp, na política externa, não ignorava o agronegócio na política externa. Eu não podia
ignorar, então não há uma política externa petista, eu estou te dizendo, sinceramente na
minha opinião, era do governo Lula que na minha opinião uma coalizão de vária forças,
na qual obviamente o PT tem um papel muito importante , preponderante mesmo, mas
não absoluto, então é preciso entender isso. (Entrevista realizada em 7 de junho de 2019)
Com fins a compreender melhor a política externa adotada durante os governos petistas,
foi feita uma análise sobre os documentos do Foro de São Paulo, entendendo-o com um fórum de
acumulo para a formulação do Partido dos Trabalhadores, segundo nos trazem Rafael Fernandes
Xavier Duarte e Drielle da Silva Pereira (2015).
Segundo os autores, embora os encontros do Foro não produzissem de forma mais
sistemática sobre o modelo de integração, eles foram influenciadores das propostas políticas do
Partido dos Trabalhadores para a região e consequentemente das políticas incorporadas pelos
governos petistas, inclusive por sua tática eleitoral, realizando um efeito de mútua influência,
versando sobre objetivo de reunir em frentes anti-neoliberais todos os setores atingidos por essas
políticas: campesinato, operariado urbano, pequena e média burguesia, empresários nacionalistas
e nacionalidades e etnias oprimidas. Outra política debatida no âmbito do Foro de São Paulo e
adotada pelo Partido dos Trabalhadores foi a contestação ao arranjo econômico mundial, nas
figuras do FMI, do Banco Mundial, da OMC e do Conselho de Segurança da ONU.
A crise do neoliberalismo, na passagem do século XX para o XXI, colocou à prova as
forças políticas organizadas no Foro de São Paulo, ao apresentar uma brecha histórica de
possibilidade para a construção de um consenso alternativo na América Latina.
Com a chegada de Lula ao governo, se formaram muitas expectativas em relação à
condução dos mais variados temas, incluso nestas as expectativas em relação à política externa e
diplomacia. Essa perspectiva se traduziria já no primeiro discurso de Lula da Silva, em 1° de
janeiro de 2003, quando proferiu as seguintes palavras:
Esta Nação, que se criou sob o céu tropical, tem que dizer a que veio: internamente,
fazendo justiça à luta pela sobrevivência em que seus filhos se acham engajados;
externamente, afirmando a sua presença soberana e criativa no mundo. Nossa política
externa refletirá também os anseios de mudança que se expressaram nas ruas. No meu
Governo, a ação diplomática do Brasil estará orientada por uma perspectiva humanista e
será, antes de tudo, um instrumento de desenvolvimento nacional. (SILVA, Luís: 2003
p. 8-9)
109
Para esta última seção, utilizaremos como principal fonte as entrevistas realizadas junto à
dirigentes do Partido dos Trabalhadores, uma vez que há pouca bibliografia específica sobre o
tema. Nossa intenção é mostrar que o papel desempenhado pelo PT no Foro de São Paulo tem
como objetivo estabelecer uma relação de liderança entre as demais forças progressistas da
América Latina e Caribe.
Segundo Valter Pomar, Ex-secretário Executivo do Foro de São Paulo, em entrevista
concedida para essa monografia, já na sua fundação, o Foro de São Paulo foi amplamente
amparado pela atuação do Partido dos Trabalhadores, em articulação com o Partido Comunista
Cubano. Por meio dos contatos entre Lula e Fidel Castro, deu-se início às articulações para a
realização de um seminário, que acabaria se desdobrando em uma duradoura experiência de
articulação da esquerda latino-americana e caribenha. De acordo com o dirigente petista, as
organizações presentes nesse seminário resolvem convocar uma nova reunião, dessa vez no
México. Foi neste segundo encontro que se decide atribuir um caráter permanente ao Foro,
nomeando-o dessa forma para manter-se o propósito inicial da reunião. Pomar afirma ainda que
estava no panorama das motivações para a criação de tal foro a derrota eleitoral sofrida pelo PT
113
no Brasil em 1989, o que reforça a perspectiva de que, ao articular o Foro, o Partido buscava
também acumular experiências para obter logro eleitoral.
De acordo com Kjed Jakobsen, assessor de relações internacionais do PT, a articulação
para a organização do Foro de São Paulo se deu principalmente entre PT e PC Cubano,
justamente porque cada um tinha uma gama diferente de contatos. Devido ao fato de o PT não ter
sua origem na Terceira Internacional, seus contatos com os partidos comunistas não eram tão
orgânicos quanto os que possuíam o PC Cubano. Em contrapartida, o PT mantinha muitos
contatos com os novos partidos formados no âmbito da América Latina. Isso demonstraria a
amplitude de forças políticas com a qual o Foro foi composto, o que não seria possível sem o que
Pomar chamaria de “papel axial” do PT nesta articulação.
De acordo com José Dirceu, ex Ministro Chefe da Casa Civil, essa empreitada petista na
construção de uma articulação internacional latino-americana não surpreenderia, uma vez que o
internacionalismo estaria presente já na fundação do PT, se manifestando principalmente na
solidariedade à Revolução Sandinista na Nicarágua e à Revolução Cubana, demonstrando a
atenção voltada para o território latino-americano. A Revolução Cubana era inclusive, segundo o
ex-ministro, referência para a juventude.
Em congruência com Jakobsen, Pomar, em entrevista realizada em 28 de fevereiro de
2019, também afirma existirem quatro períodos diferentes a orientar a estratégia internacional do
Partido dos Trabalhadores. Esta periodização, já abordada nesse trabalho, ajuda a se compreender
a relevância atribuída ao Foro de São Paulo ao longo da segunda, terceira e quarta fases desta
estratégia internacional, cabendo ao PT a principal tarefa de articulação ao longo desses períodos.
Ressalta-se o peso colocado pelo Partido na empreitada de aglutinação das forças progressistas da
América Latina, absorvendo a tarefa de liderança de tal articulação. De acordo com o
entrevistado, os períodos em que mais se voltaram atenções para a construção do Foro foram na
segunda metade da década de 1990 e entre 2005 e 2010.
Em 2002, mais uma vez se comprova a importante influência do Partido dos
Trabalhadores, através da vitória eleitoral conquistada no Brasil. Em documento redigido no XI
Encontro, realizado na cidade de Antígua, Guatemala, elabora-se a ideia de um ponto de inflexão
para a política no continente, uma vez que o maior país da região passaria a ser governado por um
membro do Foro de São Paulo, reafirmando a validade de uma política de alianças, uma vez que
114
parte significativa dos partidos aliançados ao projeto petista de transformações eram membros
ativos do Foro (POMAR, 2013).
É, no entanto necessário ressaltar que, segundo Pomar, essa influência decai muito em
algum momento entre 2010 e 2016. Talvez possamos atribuir isso ao perfil internacional traçado
por Dilma Rousseff, que segundo todos os entrevistados por esse trabalho trabalhou com menos
intensidade a diplomacia e as relações exteriores, assim como ao golpe de Estado que depôs a
presidenta em 2016, diminuindo o poder de influência do Partido dos Trabalhadores sobre a
política regional.
Ainda segundo Pomar, existe uma influência mútua na formulação da política entre o PT
e o Foro de São Paulo, que é maior ou menor de acordo com cada ponto concreto. Essa afirmação
nos leva a compreender que apesar de exercer papel importante para a definição da política no
interior do Foro de São Paulo, o PT não determina sozinho os seus rumos.
É possível afirmar que o que direcionou e continua a direcionar a política internacional do
Partido dos Trabalhadores é a América Latina, o que, segundo Jakobsen, atribui ao Foro um
papel de extrema relevância, uma vez que a organização congrega quase totalmente os partidos
de esquerda e progressistas da região. Vemos aqui o porquê de o Partido se debruçar tão
fortemente sobre a construção de tal entidade e que, como resultado, receberia a tarefa de direção
da articulação.
Essa tarefa seria recebida pelo PT, não por ser o único capaz de assumi-la mas por ser
muito respeitado, plural, amplo e democrático, somando-se a isso o peso do Brasil na região. Por
isso vem sendo aceito como um Partido com uma importante contribuição para o Foro, exercendo
assim, desde sua fundação, a função de secretário executivo, função assumida pelo secretário de
relações internacionais do Partido. O exercício desta função pode ser entendido como um
indicador do protagonismo do PT na política regional, uma vez que o Partido confere muita
ênfase à América Latina e sua à integração.
Quanto à influência do PT sobre a formulação de outras siglas da região, Jakobsen afirma:
“isso tem que ser tratado com certo cuidado, pois uma coisa é você ter um diálogo permanente e
ocasionalmente uma experiência do PT ser adotada e algum posicionamento do PT coincidir com
outras visões. Agora influência propriamente, fora desse âmbito, eu não vejo” (Entrevista
realizada em 26 de março de 2019). Vemos então que a atuação do PT, embora consistente na
região, buscou sempre respeitar as particularidades de cada partido inserido em sua realidade
115
nacional, o que não impedia que a troca entre partidos pudesse levar à absorção mútua de
experiências.
Para exemplificar o protagonismo do PT no Foro de São Paulo, podemos tomar uma
passagem da entrevista com José Dirceu:
Apesar dessa afirmação, Dirceu acredita que o PT não exerceu influência direta sobre as
siglas da região, embora possuísse uma liderança natural, confirmando as percepções de
Jakobsen. Neste sentido, as relações de influência entre PT e demais partidos de esquerda da
região passavam pela mediação do Foro de São Paulo.
Através das entrevistas podemos perceber que existe uma relação intrínseca entre a
atuação do Partido dos Trabalhadores, seja bilateralmente ou por meio do Foro de São Paulo, e
seu papel protagonista em meio ao movimento de esquerda e progressista da América Latina e
Caribe, sempre entendendo a função dos governos do PT para dar ênfase às relações com a
América do Sul, enquanto a atuação no Foro de São Paulo expandia esses limites para toda a
macro região ao sul dos Estados Unidos. É importante, no entanto afirmar que houve tentativas (e
há) de expandir o bloco para os Estados Unidos, através de imigrantes ligados aos partidos do
Foro, que, no entanto encontram grande dificuldade devido ao caráter disperso desses indivíduos
(Kjeld Jakobsen, Entrevista realizada em 26 de março de 2019).
Na perspectiva gramsciana, essa liderança se faz mediante a tentativa de construir um
bloco histórico internacional, que permitisse sustentação a cada experiência nacional de
desenvolvimento, através da consolidação das forças progressistas como lócus de poder na
região. Para a conformação de tal bloco, o Partido dos Trabalhadores, na intenção de exercer
116
papel dirigente, buscou afirmar tal posição através de seu caráter amplo e democrático,
permitindo com que as forças disfrutassem de autonomia suficiente para aderir à uma plataforma
comum capaz de alavancar as forças de esquerda, alçando-as aos governos ou mantendo-as no
poder onde este já não estava apenas no horizonte, mas constituía a realidade dessas forças.
No tocante a superestrutura, a atuação do Partido dos Trabalhadores no Foro de São
Paulo, aliado a outras forças de relevância regional, com as Frentes Sandinista e Farabundo Marti
e o Partido Comunista Cubano, permitiu a consolidação de um conjunto ideológico preparado
para a disputa da sociedade civil e do embate ao projeto neoliberal. Aqui se interseccionam
superestrutura e estrutura, uma vez que o Foro de São Paulo, sob a liderança do PT, foi
responsável pela elaboração de um programa conjunto para o desenvolvimento latino-americano
e caribenho, que propunha a integração das estruturas baixo a égide de um novo modelo do
conjunto de ideias a serem instrumentalizadas para as transformações da estrutura da região.
Vemos então um modelo de disputa pela hegemonia a nível internacional, embasada por uma
consolidada força de unidade. A construção dessa unidade não coube unicamente ao Partido dos
Trabalhadores, mas certamente seus esforços lhe deram papel protagonista nessa empreitada.
Tendo expressado boa parte do embasamento teórico, assim como o histórico que
permitiram a ascensão do Partido dos Trabalhadores à liderança capaz de espraiar seus ramos por
grande parte da América Latina e Caribe, ainda que hoje este bloco se encontre sob forte ataque
do imperialismo estadunidense e seus aliados, nos cabe então atentar para algumas conclusões
possíveis acerca das reflexões contidas nesse trabalho.
117
5 CONCLUSÃO
Falar sobre hegemonia é falar sobre o processo histórico de um país (e porque não, do
mundo?), compreendendo as várias facetas que se apresentam na disputa em torno do conceito, a
partir dos desdobramentos da luta de classes.
O presente trabalho pretendeu a analisar o complexo e multifacetado processo de
construção hegemônica pelo Partido dos Trabalhadores na busca por afirmar-se como liderança
(ou detentor de hegemonia política) da esquerda brasileira, avançando também sobre a América
Latina, não como caminho único, mas como um dentre os possíveis a serem adotados.
Com base na pesquisa organizada nesta monografia procuramos alinhar o material
empírico levantado, a partir das fontes primárias e das entrevistas, com o intuito de testar nossa
hipótese principal.
Que conclusões são possíveis?
A atuação do PT no interior do Foro de São Paulo, de forma bastante consensuada, foi a
de uma força dirigente. Esse movimento foi possível diante das próprias características do
Partido, que nasce com vocação internacionalista e sob uma constituição calcada na pluralidade.
Isso permitiu ao Partido um trânsito facilitado em meio às entidades presentes no Foro. O PT
utiliza o Foro no sentido de garantir que o partido liderasse a construção de um movimento
contra-hegemônico ao imperialismo em sua faceta neoliberal, podendo ser compreendido como a
tentativa de criar um novo bloco histórico internacional, ainda que limitada pelo respeito às
instituições burguesas e primordialmente mediante a via democrática, sendo a conquista dos
governos entendida como fim em si e não apenas mais uma trincheira avançada na luta pela
transformação do Estado como preceito para a instalação de um novo bloco histórico.
Essa liderança se comprova quando o Partido assume e ocupa a Secretaria Executiva do
Foro de São Paulo, desde 1990. Nos documentos do Foro não existem manifestações de
contestação desta liderança, ao contrário, os documentos do Foro mostram o quanto as
organizações desta entidade entendiam o Brasil e o PT como elemento essencial para a
constituição de uma hegemonia de esquerda na América Latina. Talvez o debate apresentado
acerca da reforma e revolução pudesse indicar o Foro de São Paulo como espaço de disputa, no
entanto a comprovação histórica da tática reformista adotada por parcela significativa das
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organizações do Foro podem, ao mesmo passo, apontar para a vitória dessa tática em detrimento
da revolução.
Longe de ser uma liderança natural, o que nosso trabalho procurou evidenciar, sobretudo
no capítulo 2, é que a trajetória do partido o cacifa para assumir este protagonismo: o
internacionalismo do PT, a ênfase na integração e na construção da esquerda latino-americana, a
concepção de um projeto democrático popular com ambição internacionalista, e mais
recentemente a própria política externa, fizeram do partido uma liderança orgânica do movimento
de esquerda latino-americana. Se considerado a experiência político partidária, eleitoral, como
partido de oposição e principalmente após a chegada ao governo Federal, podemos entender que
a atuação internacional do PT constituiu uma tentativa de construir um bloco histórico.
É possível afirmar que o PT assumiu a direção intelectual e moral no âmbito do Foro de
São Paulo? É possível afirmar que o Foro de São Paulo foi um laboratório para o PT no sentido
de buscar, construir e testar sua capacidade de liderança da esquerda latino-americana?
Para responder a tais perguntas, precisamos de forma sintética indicar as reentrâncias que
nos levam a acreditar que esse processo se deu sem uma necessária premeditação das partes
envolvidas, mas como resultado de um conjunto de fatores que permitiram ao Partido dos
Trabalhadores desfrutarem de um reconhecido privilégio entre as organizações de esquerda
brasileiras e latino-americanas. A construção de hegemonia realizada pelo PT permitiu inclusive
que o partido liderasse uma coalizão que lhe conferisse liderança política e eleitoral de caráter
limitado, uma vez que se fez sem uma disputa adequada da ideologia e dos valores junto à
sociedade.
Chegamos à conclusão de que o processo de construção da hegemonia não se dá
unilateralmente, por meio da vontade de ator único, mas sim a partir dos embates dados em meio
a um contexto histórico concreto. Com isso explicitamos que a conquista da hegemonia na
esquerda brasileira e latino-americana não se fez de forma sintética, tendo em vista o processo
histórico do Partido e no caso latino-americano, a posição do Brasil na região.
Quando fala sobre dominação, mais uma de suas polissemias para hegemonia, Gramsci
aborda o conceito de consenso “espontâneo”, que seria aquele conferido pelas massas diante da
autoridade moral do grupo dominante. Podemos transportar esse conceito para a relação do PT
com seus aliados no Brasil e na América Latina, uma vez que o Partido, devido a seu tamanho e
pluralidade, foi capaz de postular-se como partido dominante na região, estabelecendo uma
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de integração, foi através da atuação do Partido que encontrou vazão potencializada. Nesse
ínterim, podemos inclusive apontar os pontos de influência mútua entre FSP e PT. Neste sentido,
a perspectiva hegemônica do PT não se encerra nas fronteiras nacionais, mas é essencialmente
internacionalista e parte de uma perspectiva da direção compartilhada, em que a hegemonia se faz
sem uma dominação imposta, mas através da construção de consensos.
Podemos perceber que a característica do internacionalismo figurava nos horizontes do
PT desde os primórdios de sua atuação, o que se manifestaria em sua atuação política junto ao
Foro de São Paulo e nas próprias ações e princípios da política externa formulada pelo governo
de coalizão liderado pelo Partido.
Uma mudança estrutural na atuação do PT se manifesta a partir das eleições de 1989, se
agudizando em 1994, 1998 e finalmente em 2002. Não que se tenha abandonado o
internacionalismo, que se manteve presente ao longo dos anos de construção do Partido, mas se
opta por uma tática diferente da autonomista, frente ao capital, defendida nos anos iniciais do
Partido, adotando a prática de alianças cada vez mais amplas, o que não teria sido um problema,
desde que aliada a um projeto consolidado de disputa da hegemonia social e ideológica para os
princípios socialistas e populares. Essa confluência, segundo nossa leitura, acabou não ocorrendo
e o Partido passa a depositar todos os seus créditos na disputa eleitoral, o que poderia enfraquecer
futuramente (como se comprovou) sua capacidade mesma de manter a hegemonia no campo
eleitoral, prejudicando seu projeto de integração regional embasado nos preceitos da
solidariedade internacionalista.
Quanto a esse projeto de integração, conclui-se que a palavra “chave” identificada foi
“autonomia”, o que não apresenta necessariamente uma novidade frente aos projetos de política
externa anteriores, que, de certa forma, buscaram também a autonomia do Brasil no cenário
internacional, mas demonstra um salto quantitativo, que se desdobra em resultados qualitativos
em relação à autonomia e inserção do país no Sistema Internacional. A partir disso, podemos
entender que passava por esse projeto um processo de construção hegemônica em meio à região
imediata do Brasil, a América do Sul, ao mesmo tempo em que propulsava uma movimentação
contra-hegemônica frente ao imperialismo estadunidense e seu consórcio. Isso se deu através de
uma reconfiguração do “interno” e do “externo”, uma vez que a política externa esteve
intimamente ligada ao projeto de desenvolvimento nacional dos governos petistas e, portanto, de
suas tentativas de estabelecer uma hegemonia eleitoral interna. O desenrolar desse processo
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levaria o PT, enquanto partido, a desfrutar de uma posição hegemônica em relação à América
Latina, em especial a América do Sul, ainda que exclusivamente no campo da esquerda.
Compreendemos então que apesar de não ter inaugurando o pensamento sobre um projeto
alternativo de integração regional sul-americana (e em alguma medida, latino-americana), o PT
foi responsável por potencializá-lo, colocando-o em um novo patamar e acirrando assim, a
disputa com o bloco imperialista. Essas posições só foram possíveis devido à evolução política
em matéria internacional do Partido dos Trabalhadores, que possui quatro fases de diferentes
nivelações, sendo a segunda (pós-eleição de 1989) e a terceira (pós-vitória de 2002) responsáveis
principais pelos acúmulos que permitiram uma política externa “altiva e ativa”, que se
pronunciou como um projeto de construção hegemônica em nível de América do Sul.
Podemos então inferir que existiu uma influência mútua entre as formulações geradas no
Foro de São Paulo e aquelas elaboradas no interior do PT, como se mostrou através da análise
documental das declarações do FSP, que apontam as linhas de semelhança nas propostas para
integração regional e também de forma mais geral, na afirmação de que o Foro buscava a
construção de um projeto democrático e popular para a América Latina. Essa influência pode ser
evidenciada também através da proposta econômica explicitada pelo Foro de São Paulo, que
acompanhava as formulações petistas, no sentido de garantir a atuação do mercado, mediante
uma função reguladora do Estado e de reivindicar o direito ao consumo, emprego e propriedade.
Essa influência se faria ainda mais evidente diante da vitória do Partido dos Trabalhadores no
Brasil, o que lhe conferiu maior peso e relevância na condução das atividades do Foro. Essa e
outras vitórias eleitorais das forças progressistas na América Latina levaram o FSP a baixar sua
guarda, diante do que acreditava ser uma “mudança de época, não uma época de mudança”. Isso,
segundo nossa análise, possibilitou um enfoque ainda maior por parte dessas organizações na
questão eleitoral, em detrimento da busca por hegemonia social e ideológica.
Por fim, chega-se à conclusão, com esse trabalho, que o PT atuou junto ao Foro de São
Paulo com alguns objetivos, dentre eles acumular experiências que possibilitassem melhor
desenvoltura no campo eleitoral, mas principalmente na tentativa de constituição de um bloco
histórico internacional que dessa sustentação às experiências de governos populares na região,
postulando-se como liderança desse bloco, aliando a disputa estrutural, no sentido de um plano
econômico básico, com a disputa superestrutural, em segundo plano, através da elaboração de um
conjunto de valores capazes de suplantarem o neoliberalismo. A pergunta que nos cabe é: foram
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ANEXOS
discute a criação de algo mais permanente, com o nome de Foro exatamente para preservar o
espírito inicial.
Como você avalia o nível de influência do Partido dos Trabalhadores sobre a política
regional?
Muito influente, até algum ponto entre 2010 e 2016. Depois decaiu muito.
Existe, na construção do Foro de São Paulo, uma tentativa de articulação autóctone, livre
de influências de outras regiões do mundo? Por que o Foro não se expandiu para além da
AL?
Livre de influências, nada é. O Foro tinha e tem o objetivo de ser um espaço autônomo,
latino-americano. Por isso também não se expandiu além da AL.
Existe alguma influência do Partido sobre a formulação das demais siglas partidárias na
região?
Tens que perguntar a elas.
Pode se dizer que o Foro de São Paulo teve papel protagonista para a unidade da esquerda
latino-americana?
Sim, pode-se, mas compreendido a palavra protagonismo com muita moderação. O Foro
foi importante por criar um espaço para debater os assuntos.
Como o Foro de São Paulo auxiliou na vitória de governos progressistas na América Latina,
em especial no Brasil?
Como espaço de debate, troca de experiências, solidariedade.
O Foro de São Paulo cumpre, ainda hoje, papel importante para a articulação da esquerda
latino-americana?
Sim.
Qual a maior dificuldade encontrada no interior do Foro de São Paulo? Tirante os Estados
Unidos?
Considerando que os objetivos do Foro de São Paulo sejam construir uma proposta de um
modelo alternativo ao neoliberalismo de integração, em que se perpassassem conceitos
como: o respeito à autodeterminação dos povos, às diferentes identidades culturais, à
soberania e a contestação das evasões e exportações de capitais do continente, a partir de
um enfrentamento conjunto ao pagamento das dívidas. Qual a intencionalidade do PT nesse
processo?
A intencionalidade? Atingir estes objetivos contribuía para atingir os objetivos do PT.
A política externa dos governos Lula e Dilma demonstraram vários pontos de inflexão com
a tradição da burocracia diplomática brasileira, porém também apresentaram algumas
continuidades. Seria possível pontuar os principais pontos de convergência e divergência da
política externa petista em relação à tradição diplomática brasileira?
Sim, tudo aquilo que está na Constituição de 1988 sobre política externa.
Há algum momento na história do Partido em que o FSP foi mais ou menos importante?
Eu diria que atualmente, o Foro se encontra com mais dificuldades, devido ao avanço da
direita no continente como um todo. Não só da direita, mas da extrema direita, ou seja, a reação
ao que foi conquistado desde 1998 tem sido absolutamente desproporcional se comparado à lei da
física de que a toda ação corresponde uma reação de igual intensidade. Eu diria que intensidade
com que a direita tenta desmontar o que foi esse período progressista aqui na região é muito mais
forte do que apenas uma reação. Não direi que o Foro seja menos importante agora, talvez ele
seja até mais importante, no entanto as dificuldades são também maiores.
Apesar de contar com observadores de outros continentes, o Foro de São Paulo não se
propôs a articular essas organizações em torno do Foro de São Paulo. Isso é uma tentativa d
e uma construção autóctone, de uma construção voltada para a América Latina?
Com certeza é, embora haja tentativas de criar um braço do Foro nos Estados Unidos,
principalmente via imigrantes com alguma relação com os partidos participantes e mesma coisa
em relação à Europa. Isso é muito difícil, pois são pessoas muito dispersas, espalhadas em vários
locais, e por isso se torna difícil constituir algo mais orgânico. No caso europeu, o que tem
funcionado melhor são relações com coalizões europeias, por exemplo, o Partido da Esquerda
Europeia. Nós temos um encontro anual com o PIE, eles normalmente vem aos encontros do
Foro, então é uma relação construtiva nesse sentido. A visão é de amplitude, não é fechada.
Através desse protagonismo do PT na região, você acredita que exista alguma influência do
PT sobre os partidos da região e suas formulações?
Isso tem que ser tratado com certo cuidado, pois uma coisa é você ter um diálogo
permanente e ocasionalmente uma experiência do PT ser adotada e algum posicionamento do PT
coincidir com outras visões. Agora influência propriamente, fora desse âmbito eu não vejo. Até
porque cada país é uma experiência, uma cultura, cada partido tem sua história. Por exemplo, o
Paraguai, temos uma relação muito próxima com o país, mas são culturas muito distintas,
realidades e histórias distintas. Então eu diria que influência direta não existe.
Como o Foro de São Paulo auxiliou na vitória dos governos progressistas na América
Latina?
Primeiro, expressando apoio, solidariedade, mostrando pra região que é bom que haja
mais governos progressistas, então digamos é uma contribuição mais subjetiva do que objetiva.
Houve um momento geral de ascensão do progressismo no continente, então você percebe que
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houve um vizinho em que as coisas melhoraram depois que um governo de esquerda assumiu o
governo e divulgar isso ajuda.
A Política Externa dos governos Lula e Dilma demonstraram vários pontos de inflexão com
a tradição da burocracia diplomática brasileira, porém apresentaram algumas
continuidades. Seria possível pontuar os principais pontos de convergência e divergência da
Política Externa Petista em relação à tradição diplomática brasileira?
Sim, tem vários elementos. Primeiro de continuidade, você tem todo um rol de tratados,
acordo convênios etc., firmados em governos anteriores, que via de regra é mantida. Isso é uma
continuidade. As relações bilaterais que o Brasil possui com os Estado Unidos, por exemplo, foi
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mantido. Com a Europa, com a União Europeia, com o Japão, foi mantido. Agora, o que teve de
ruptura, foi à ênfase nas relações sul-sul. Eles ganharam destaque não em detrimento de outras
relações, mas foi algo novo nesse sentido. Então eu diria que houve continuidade com algumas
mudanças e houve rupturas. Em relação às relações sul-sul, aos foros que foram criados, como a
UNASUL, a CELAC, os BRICS, o IBAS, esses espaços todos, foram coisas diferentes. Rupturas,
a busca de um assento permanente no Conselho de Segurança, nos governos anteriores do
período democrático, isso não era parte da agenda, a criação do G20 comercial, nem pensar, fazer
algo que pudesse "confrontar os grandes". O Brasil na época do Fernando Henrique ajudou que
fosse criada a rodada Doha da OMC, porque eles queriam negociar a agricultura e entendia que
isso só aconteceria com o lançamento de uma nova rodada, pouco importou qual era a agenda.
Também houve abertura de novas embaixadas, mais de 30. A relação com a China se fortaleceu
muito também.
Partido dos Trabalhadores enfrenta duros desafios internos, desafios que compartilhados
por boa parte dos partidos de esquerda na América Latina e no mundo, com destaque para
a Europa e os Estados Unidos. Como encarar esses problemas, levando em consideração as
bases populares, a partir da articulação internacional?
Acho que é o intercâmbio de experiências e também o intercâmbio de quais problemas
estamos enfrentando. Uma coisa que nós nunca vimos no Brasil aconteceu no ano passado nas
eleições, com as fake News, o whats app, mudou a forma de disputar a eleição. Antes era
televisão, o Alckimin teve 50% do tempo de televisão, mas isso não lhe serviu pra nada, chegou a
quarto lugar, com um percentual ridículo. No Uruguai tem eleição esse ano e a Frente Ampla
veio ao Brasil para saber como foi isso, porque isso certamente será aplicado lá esse ano contra
eles. Então são o compartilhamento de experiências e entender o que mudou na opinião pública.
Enfrentamos fenômenos mundiais e que precisam ser encarados dessa forma. O nosso discurso
não ta sendo suficiente, então precisamos saber o que deve ser feito.
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movimento sindical metalúrgico, que é fortíssimo na Alemanha e nos Estados Unidos. As duas
maiores entidades sindicais do mundo, de certa maneira são os EIG (metalúrgicos alemães) e nos
Estados Unidos a solidariedade a IFF... o Paulo Nascimento do PT era patente, então o PT nasce
sob uma herança internacionalista e as organizações políticas que ingressaram no PT, não só as
correntes trotskistas, os lambertistas, os mandelistas que é a DS hoje, os lambertistas que é o
trabalho hoje e os morenistas ou posadistas, todos também vinham da tradição russa e setores que
vieram do Partido Comunista Brasileiro (PCB) ou das organizações armadas como a ALN (Ação
Libertadora Nacional). Então o PT nasce porque o movimento internacional naqueles anos era
forte, por causa da revolução nicaraguense e do levante operário na Polônia, então o PT já nasce
marcadamente guiado pela consciência internacionalista dos trabalhadores no capitalismo
internacional. Como a globalização avança depois, é natural que o PT buscasse o seu lócus, o seu
espaço. O espaço do PT é a América Latina, porque nós somos latino-americanos, então a busca
de parceiros nos países latino-americanos é uma decorrência dessa natureza internacionalista do
PT e particularmente em torno da revolução sandinistas porque os padres, os bispos, os setores
progressistas da Igreja Católica, da teologia da libertação, tiveram uma grande participação na
revolução sandinista e Cuba. Inclusive depois nós tivemos os famosos diálogos entre Frei Beto e
o Fidel sobre a religião, que é uma entrevista longa dos dois. Então era natural que o PT
procurasse com o Foro de São Paulo, logo depois da derrota do Lula em 1989, então o PT já tinha
dez anos de vida, lançar o movimento na América do Sul de articulação, relações, solidariedade
mútua, troca de experiência, em busca de apoio mútuo entre partidos similares ao PT ou de
esquerda, socialistas e também progressistas porque o Foro de São Paulo era amplo, inclusive
houve um debate no Foro de São Paulo se participavam as FARC ou não. Quando Chaves pediu
pra participar do Foro de São Paulo, em El Salvador houve restrições por parte do Lula, do PT,
porque ele tinha tentado dar um golpe em 1992 na Venezuela. Como nós tínhamos sofrido golpes
no Brasil, golpe do Estado Novo em 197, tentativa de golpe em 1961, em 1955 e golpe em 1964,
o PT olhava essa questão militar, de tomar o poder por golpe militar com um olhar restritivo.
Acredito então que o Foro de São Paulo foi uma decorrência normal do momento histórico que
vivíamos de ascenso das lutas na América Latina. Na América Central porque havia uma guerra
de guerrilha em El Salvador, na Guatemala, na Nicarágua havia triunfado, governos progressistas
chegam no Panamá com general Torinos, no nosso entorno também havia uma movimentação no
Chile. Depois houve outra fase que é a partir da vitória do Lula em 2002, Nesse momento da
fundação do Foro de São Paulo era o acúmulo de dez anos. O PT já começava a ser um modelo,
um exemplo para os partidos, porque já tinha se transformado com a ida de Lula para o segundo
turno e também nesse momento o Cardenas ganha a eleição e ela é fraudada em 1988 no México,
havia uma grande ascensão do PRD (Partido de la Revolución Democratica), que era um partido
do tipo do PT.
O Senhor comentou um pouco sobre isso, que o Foro de São Paulo é fundado logo depois da
primeira derrota eleitoral do PT. Essa derrota empurrou o PT a buscar alianças externas?
Não, eu não acredito que seja por causa da derrota, até porque a derrota foi de certa
maneira uma vitória, por termos ido para o segundo turno. Foi um fato inédito por causa da
dimensão do Brasil e da importância do Brasil. Eu acredito que não tenha sido por causa da
derrota, eu acredito que foi um momento inclusive, por causa da queda do Muro de Berlin, que os
partidos na necessidade de se aproximarem, fazerem um debate e reflexão sobre o momento que
viviam, e de procurar se unir pra enfrentar a ofensiva que vinha inclusive “o fim da história” e
também o desaparecimento da união soviética, do chamado campo socialista é um fato histórico
aplastante, lógico que ia significar que os partidos e movimentos dependiam de si mesmos. Não
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haveria nenhuma barreira entre pode militar tecnológico, comercial, diplomático, dos Estados
Unidos e o poder de intervenção na política dos demais países, como havia antes com a união
soviética, o campo socialista. Então era natural que os partidos procurassem se fortalecer e
também porque havia muita necessidade de troca de experiências e de solidariedade. Muitos
desses partidos já governavam cidades importantes, províncias. Alguns já eram governos,
inclusive a Frente Sandinista já tinha até saído do poder, eles ficaram dez anos no poder e
perderam o poder e voltam agora nos anos 2000.
construir unidade, o PT era o partido maior, mais responsável e depois que passou a exercer o
poder mais ainda. Acredito que o PT tem o papel principal, na fundação e depois no
desenvolvimento do Foro de São Paulo, na elaboração das propostas, com o Marco Aurélio
Garcia no primeiro momento e depois o Valter Pomar no segundo momento, como outros que
também participaram e tiveram importância, como Luiz Dulci, Luiz Eduardo Greenhalgh, o
próprio Mercadante e outras pessoas que passaram pela secretaria. Mas as duas figuras marcantes
são o Marco Aurélio num momento e o Pomar em outro, que são pessoas com grande capacidade
de elaboração, articulação, autoridade. O Marco Aurélio vinha, portanto, da época que o PT teve
um ascenso em 1995. Os cubanos também tiveram um papel muito importante no Foro de São
Paulo.
É possível dizer que com esse papel desenvolvido pelo PT no Foro de São Paulo, ele passa a
ter influência sobre as outras siglas na América Latina, passa a exercer uma liderança?
Não, não acredito. Liderança o PT tinha, mas porque era natural. O PT nunca pretendeu
intervir, nem interveio nas disputas internas dos partidos. O PT era tomado como exemplo e
muitas vezes o PT era tomado como um parceiro e muitas vezes como o líder. O PT tem
procurado exercer esse papel, acho que era natural que o PT fosse o partido, até porque o PT se
empenhava muito no Foro de São Paulo, se dedicava a isso e os cubanos também.
O Foro de São Paulo ele uma iniciativa latino-americana. Existe por conta disso uma
perspectiva autóctone na construção do Foro ou ele nunca conseguiu se expandir?
Nunca foi interesse nosso criar uma internacional, até porque nós nunca fomos membros
da Internacional Socialista. Eu fui uma vez como convidado, o Brizola e o PDT me convidaram e
custearam. Eu fui a Genebra, participei da Internacional Socialista. O PT sempre teve uma
relação muito forte como os partidos socialdemocratas e socialistas da Europa e os sindicatos
também. De 1980 a 2000 tínhamos uma relação muito forte, várias delegações nossas viajaram, o
Marco Aurélio viajava constantemente. Tínhamos uma relação muito forte com o Partido
Socialista Francês e o comunista, com o Partido Comunista Italiano, com o Socialista Português,
com o PSOE espanhol, com os Trabalhistas Ingleses, nós sempre tivemos uma relação muito
forte na Europa e também até 1989-1990, com a União Soviética, a CUT ia nos congressos em
Moscou, Praga, nós mantínhamos uma relação com tudo, As correntes trotskistas do PT
participavam dos seus encontros internacionais, eu mesmo fui ao encontro dos mandelistas, que a
DS (Democracia Socialista) era filiada. Fui também num congresso da OSI (Organização
Socialista Internacional), os lambertistas, se não me engano foi em Lisboa. Isso tudo foi logo
depois da eleição de 1990, pra eleger deputados federais. Eu já estava querendo sair um pouco do
Brasil, viajar pela Europa para rever amigos, fazer contatos. Mas a final, acho que o PT nunca
teve essa intenção [de criar uma internacional].
existem novos partidos, como o PODEMOS, em Portugal também surgiu, como o Syriza. Não
acredito que isso signifique o esvaziamento [do Foro]. O PT passou um momento muito difícil
entre 2015-2018, então o Foro de São Paulo pode ter ficado um pouco em segundo plano, mas
agora com a eleição dessa nova direção, acho importante retomar essa questão do Foro de São
Paulo, até porque tem uma nova realidade, nós perdemos a eleição em El Salvador, mas temos
uma vitória no Panamá importante, no México, e esse próprio resultado da eleição na Espanha dá
um novo alento. Essa vitória no Panamá é importante. Ganhou o partido que já governou o
Panamá que é muito próximo de nós, que foi o Martin Torinos, que é filho do General Torinos,
que praticamente fez a segunda independência do Panamá e na República Dominicana o Danilo,
que é herdeiro do Leonel Domingos, que sempre manteve uma aproximação com o PT. Nós
perdemos em El Salvador, vamos ver o resultado agora no Uruguai, com uma eleição difícil para
Frente Ampla, o resultado na Argentina e no Chile. Tem também essa situação no Equador, com
o Rafael Correa, que foi traído pelo vice dele e houve uma tentativa de neutralizá-lo, ele foi se
exilar na Bélgica, mas ele no plebiscito que foi montado totalmente contra ele, ele teve 36 por
cento de voto, numa situação igual a nossa aqui, que numa situação adversa tivemos uma votação
expressiva no primeiro turno. Também na Colômbia a uma frente de esquerda em crescimento,
apesar de que essa situação na Venezuela, de certa forma, confunde o cenário político na
Colômbia.
A política externa nos governos Lula e Dilma teve vários pontos de inflexão em relação à
política externa em voga anteriormente. O Senhor poderia nos dizer os principais pontos de
continuidade e ruptura?
Prioridade absoluta à América do Sul, criação da UNASUL (União das Nações Sul-
americanas), integração dos mercados, política e militar na América do Sul, consolidação do
MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) e o olhar pra toda a América Latina. Política Sul-Sul.
Fortalecer as relações com os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), constituir
instrumentos com esses países de desenvolvimento, financiamento. Novas relações no mundo,
tanto políticas quanto no Conselho de Segurança da ONU, mudanças na OMC (Organização
Mundial do Comércio). A presença do Brasil em todos os foros internacionais, com grande
capacidade de articulação e de influência, como no caso do clima, até pela dimensão e
importância do Brasil na questão do clima. Acredito que há a presença do Lula como um líder
mundial e um estadista, no G8 e no G20 e presença do Lula e do Brasil para mediar conflitos,
seja no Haiti, seja na Colômbia, seja na Venezuela, inclusive na questão do apoio nuclear no Irã,
que o Lula junto com o Erdogan fez uma proposta de acordo entre os EUA, o Irã e a União
Europeia, que se desdobrou nesse acordo que agora está sendo rompido pelo Trump, houve até
medidas do Irã ontem (08/05/2019) com a Rússia, a China e a União Europeia. Acho que houve
evidentemente no Brasil, na política externa do Lula uma linha de continuidade, porque o
Itamaraty já tinha seus próprios parâmetros, mas houve uma mudança grande não apenas de
intensidade, mas de qualidade. O Lula e o PT dão outra cara para a política externa brasileira e
outra direção, como uma solidariedade efetiva, militante e concreta a outros países, porque o
Brasil nós temos que entender, que a política externa de um país, está ditada pela situação interna
desse país, quem governa, em que direção você governa, com que programa você governa, que
144
classes sociais você representa. A política externa nossa tinha dois vieses: solidariedade política
ativa, de esquerda e uma política de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, como exportador
de capital, tecnologia e serviços, o que é uma mudança radical. O país quando deixa de ser
exportador de matéria prima, alimentos ou alguma linha de produtos semi-manufaturados e passa
a ser exportador de capital, tecnologia e serviços, significa que ele passa a financiar outros países,
para comprar deles máquinas e equipamentos e vai construir rodovias, ferrovias, aeroportos,
estaleiros, fábricas, gasodutos, refinarias, petroquímicas, ou vai construir estrutura de
saneamento, escolas, hospitais e o Brasil na era Lula avançou muito nisso apoiado no BNDES
com uma política externa presidencial. O Lula na verdade foi o presidente que tinha o claro
objetivo de expandir as exportações, as relações comerciais e tinha o claro objetivo de integrar os
mercados e os países politicamente na América do Sul e no caso das organizações internacionais,
nosso objetivo era claro: uma reforma da ONU, da OMC, novas relações internacionais e
principalmente o fortalecimento das relações Sul-Sul. Isso não significa subestimar ou abandonar
as relações com a Europa, ou com os Estado Unidos ou com o Japão, mas evidentemente você
tem que ter um olhar, ter uma política concreta, pra ascensão da China, da Índia, da África do Sul
e da recolocação da Rússia no cenário internacional, não fosse a Rússia e o Irã e a Turquia, os
americanos tinham ocupado a Síria, como ocuparam o Iraque e o Afeganistão, que foram
destruídos. No caso da Venezuela, talvez não fosse à China e Rússia, os americanos já tivessem
feito uma intervenção direta. Mais importante do que isso, quando nós fazemos uma política
multilateral, quando nós criamos órgãos multilaterais, nós estamos tentando disciplinar o papel
das potências hegemônicas no cenário internacional e colocar dentro de leis, regras, pra impedir
que a força se imponha. Uma visão que nós temos nesse sentido é que foi muito importante pra
nossa política externa, não ter apenas uma política comercial, ou a diplomacia, mas ter uma visão
estratégica e ela faz uma leitura do novo mundo que está surgindo, que é a ascensão da China e
amanhã da Índia e novo papel da Rússia e também uma política de contenção da hegemonia
agressiva militar dos Estados Unidos. O Brasil também voltou a ter um olhar pra África. Nós não
podemos esquecer que pela primeira vez um governo brasileiro prioriza as relações com o mundo
árabe e com a África. Como nós somos um país de língua portuguesa, como Angola,
Moçambique, Guiné Bissau, Timor, Macau e Portugal e a costa atlântica brasileira, está ligada à
costa atlântica africana e o Brasil é um país de negros, a população é negra, assim como nossa
cultura e nossa língua é altamente influenciada pelo árabe e pelo africano, então a política externa
do PT foi uma política completa. Afirmam que o PT subestimou os acordos bilaterais (os TLCs –
Tratados de Livre Comércio), tem um problema da assimetria, que quer colocar no mesmo
patamar países de desenvolvimentos muito diferentes. A globalização já está no terceiro ciclo.
Pra muitos países a globalização significou transferência de milhões de empregos pra Ásia, por
exemplo. As empresas foram produzir lá, porque a matéria prima é mais barata. O Brasil é um
dos principais mercados para as empresas internacionais, o Brasil não é pouca coisa, Como o
Brasil tem um potencial de crescimento interno muito grande, porque um terço da população não
tem acesso ao consumo dos bens duráveis e também precisa de investimento em infraestrutura, é
natural que o Brasil seja um foco de interesse muito grande, fora que o Brasil paga um juro que
ninguém no mundo paga. Ninguém paga no juro um, dois por cento, já o Brasil paga seis, sete.
Dessa forma, a política externa nossa é muito mais do que parece, houve uma mudança radical
E dá para dizer que essa política externa era utilizada como uma fonte de construção de
hegemonia?
Infelizmente não. Devia, mas nem aqui dentro, nem lá fora. Eu acredito que o PT, os
nossos governos não tiveram consciência dessa necessidade. O esforço, por exemplo, pra
145
exportar cultura, cinema, teatro, música, era mais ou menos natural, pela influência da nossa
cultura e também por causa da universalidade da nossa cultura. Como nós somos um país
africano-europeu, um país de forte influência árabe e asiática, a nossa cultura é muito permeável,
tanto a receber influências, como ela é muito aceita no mundo, o cinema brasileiro, o teatro, a
música. Nós somos uma civilização, nós temos uma especificidade, aqui nos trópicos. Eu sempre
digo, nós mesmos não temos consciência do que o Brasil é, do que o Brasil representa e a
importância do Brasil no mundo. Per si, pelo território, pela população, pela riqueza, pela cultura,
pelo estágio de desenvolvimento tecnológico, industrial, cultural, o Brasil é um país muito
importante. Lógico, o governo atual não se dá ao respeito, é um governo alinhado com os Estados
Unidos, submisso, um governo que quer entregar as riquezas nacionais, que vai a reboque da
política externa americana, o que é um suicídio para qualquer país. Os americanos nunca deram
nada a ninguém que não dispute, que não o confronte, que não faça empate com eles. Quem os
apoia, nas vias ideológicas, não vai receber nada, a não ser que receba pra impedir que se perca o
poder aqui dentro.
Qual a relação entre o que é formulado no Foro de São Paulo e a política externa brasileira
adotada nos governos petistas?
Tinha uma correspondência grande. O Lula fez na prática aquilo que o Foro de São Paulo
pregava como a UNASUL, o MERCOSUL. Havia uma linha de continuidade, a realidade mostra
que sim.
Ao longo dos anos de governo, principalmente na passagem dos governos Lula por governo
Dilma, houve uma mudança no perfil da atividade internacional. Essa mudança no perfil é
possível dizer é devido a uma menor adoção das linhas do Foro de São Paulo? Ou seja,
existiram momentos em que se adotaram mais ou menos as formulações do Foro de São
Paulo?
A questão é que a Dilma não é o Lula. A minha avaliação é que a Dilma nunca se
preocupou muito com a política do PT ou do Foro de São Paulo, não querendo ser injusto com ela
e nem rude. Ela manteve as linhas mestres da política externa, só que não era prioridade pra ela,
isso era visível. Você tem assessores, você tem ministros, não precisa você fazer. É um regime
presidencialista, você pode delegar. Por exemplo, muitos ministros exteriores se tornaram
grandes personalidades, russos, americanos, brasileiros, como o Celso Amorim se destacaram no
cenário internacional, não precisa o presidente. Acho que não era prioridade, que ela nunca
compreendeu, ou não teve condições de fazê-lo diante das dificuldades do governo, pela
sabotagem contra o governo, pelo aumento da crise a partir de 2013, mas ela nunca abandou
nenhuma das linhas mestras da política externa, até porque é uma mulher de esquerda, com o
passado comprometido com o socialismo. Acho que o ministro que ela escolheu o Antônio
Patriota, também não tinha o perfil para isso.
Enfrentamos muitos desafios internos, tanto no PT, como no Brasil, que são compartilhados
na América Latina, nos Estados Unidos, na Europa, a ascensão do fascismo. Como podemos
enfrentar isso através da atuação internacional?
Fazendo movimentos como o Haddad fez, fazendo relações com partidos que se opões à
extrema direita. Não vou usar a expressão fascismo porque eu acho um abuso da realidade
histórica do fascismo, mas sim ascensão da extrema-direita. A Europa está estagnada, ela tem
problema grave ambiental, um problema grave de imigração, um problema grave de aumento da
desigualdade. As políticas que foram sendo adotadas pela socialdemocracia não equacionam isso.
146
Que estratégias direcionam a atuação da política externa brasileira nos governos Lula?
Bem eu acho que houve ali um encontro de dois fatores, é claro que o grande inspirador
da política é o próprio Lula ele que era o presidente da República, ele é que determina a política
na prática do dia a dia evidentemente grande parte é feita pelo Ministro do Exterior, uma parte
importante lá no caso do Lula ,sobretudo do ponto de vista conceitual, era o assessor especial
para política externa que era o Marco Aurélio Garcia ,mas então houve uma confluência eu diria,
porque eu trazia , eu que fui escolhido Ministro, primeira coisa curiosa o Lula ele poderia ter
nomeado o Marco Aurélio Garcia que teria todas as condições pra ser um excelente Ministro, eu
acho, uma pessoa inteligente, muito inteligente aliás muito culta, muito conhecedora, com muita
articulação justamente no Foro de São Paulo. Enfim, os partidos de esquerda ou progressistas da
América Latina, ou até além da América Latina porque tinha muito contato na Europa também
sobretudo na França e ele não escolheu, Marco Aurélio que o havia assessorado durante anos eu
mesmo o encontrei quando Lula foi candidato pela segunda vez em 1994, estou te contando uma
história longa mas talvez seja interessante
Quando Lula foi candidato pela segunda vez, em 1994, eu era Ministro do exterior do
Itamar eu tive um encontro com Marco Aurélio Garcia, porque eu estava... foi propiciado por um
148
colega, porque conhecia de vista o Marco Aurélio , tinha encontrado algumas vezes, enfim,
referências de amigos pessoais mas não tinha contato com ele, então eu procurei o contato porque
eu achava que o Lula iria ganhar a eleição, não é que não tivesse interesse em continuar no cargo
propriamente , eu achava que ele seria o Ministro, mas eu achava muito importante que certas
coisas fossem preservadas, do que vinha sendo feito com bom entendimento, por exemplo o
Mercosul, porque muita gente da ala sindical e da esquerda era crítica naquela época.
Qual estratégia...
Celso: Então ela nasce dessa confluência, nasce essa confluência, que em 90 % dos casos
ou em 95%, sei lá... A política externa que foi feita no governo Lula era... Correspondia... A
política externa que eu gostaria de ter feito de qualquer maneira... E eu via no Lula a
possibilidade de fazer aquela política externa... Isto era minha visão. E ele pode ter visto em mim,
uma pessoa que poderia levar adiante que achava que eu devia ser, mas digo cujos meandros ele
não conhecia tão bem, e o próprio Marco Aurélio, embora um homem brilhante, independente,
embora um homem brilhante, capaz de qualquer coisa... Marco Aurélio ele nunca tinha entrado,
149
nunca tinha estado numa negociação comercial, naquele tempo era Alca, a rodada de Doha do
MC , os dois grandes temas, então uma coisa é você fazer eu ... Agora eu chamo a atenção pro
fato que há uma diferença, eu não conheço, você dever ter pesquisado o documento do Foro de
São Paulo, eu não pesquisei, nunca, claro que depois eu passei a conhecer o que era o Foro de
São Paulo, o próprio Lula sempre exaltou a existência do Foro como digamos assim como
caminho democrático, político para os partidos progressistas da América Latina. Mas o que eu sei
do PT e o que eu sei do que eu lia, por exemplo: o termo, a expressão da América do Sul, era uma
ideia que não era do PT, o PT só se falava em América Latina e eu não tenho nada contra a
integração da América Latina, obviamente, mas eu achava, desde o tempo do Itamar, que não
adiantava querer falar da Integração da América Latina, estou falando daquela época né, porque
México estava todo voltado pra ALCA né, naquela época... Pro Nafta melhor dizendo, e os
outros, grande parte, dos países da América Central não podíamos ter a pretensão de atraí-los
para uma verdadeira integração, que em minha opinião tinha que ter por base uma integração
econômica, nunca achei que a integração deveria ser puramente econômica, sempre achei que a
base era econômica, não que eu seja marxista ortodoxo, mas entendo que a base econômica é
absolutamente fundamental. Basta você pensar no que foi no que resultou, no Estado Alemão
moderno, com a União Aduaneira, primeiro grande passo lá do Bismark, foi fazer a União
Aduaneira dos Estados Alemães.
Uma moeda conjunta, o peso real, eu vi uma notícia né que ele, ele está tentando
impulsionar o Macri eleitoralmente né , então ele falou sobre o plano de se construir uma
moeda comum entre o Brasil e Argentina
Ah tudo bem, se fizer bem tudo bem, me surpreende até ...não mas lá no comunicado em
conjunto dizia assim vai porque finalmente agora , porque isso é um acordo que começamos a
fazer lá em 2003 e agora em 2019 é o final do cronograma de liberalização , comércio de bens
entre os países da América do Sul vai ser totalmente liberado, Guiana e Suriname são um pouco
diferentes primeiro porque eles tem uma dupla pertinências , porque eles perto do Mercosul mas
também são Caricon, são países muito pequenos e muito pobres é muito difícil você exigir deles
as mesmas coisas. Mas entre os países da América do Sul em geral, está chegando isso.
Eu estou dizendo isso porque tínhamos uma visão muito prática, não adianta se falar em
Integração da América latina naquele momento, porque não ia correr, México está muito voltado
aos EUA, Cuba muito revolucionária difícil de conciliar com o sistema capitalista, bem ou mal o
governo Lula não foi uma revolução socialista, posso dizer que eu sou socialista como ideal,
outras pessoas podem até dizer, o Lula evita até dizer ,mas digamos... Mas a verdade é que não
150
houve. Foi uma coisa muito revolucionária para história do Brasil, mas ninguém derrubou o
governo capitalista.
O Estado capitalista...
O Estado capitalista, o Ministro do Comércio era da Fiesp , o Ministro da Agricultura não
sei se era das cooperativas agrárias , mas cooperativas de capitalistas. Então pra citar dois
exemplos Palocci apesar de ser do PT era muito ligado aos bancos , não vamos entrar em outras
características que se revelaram depois , mas mesmo na época né ... então o que eu acho é isso há
uma confluência e a estratégia que foi traçada eu diria era basicamente era de afirmar a
independência do Brasil , do Brasil ser capaz de agir sem ser por pressão externa e ao mesmo
tempo uma busca de solidariedade com outros países em desenvolvimento ,na minha cabeça ,
porque eu tinha sido embaixador na ONU, aí já na época havia muito presente a ideia de
multipolaridade aí talvez um termo que na época o PT não conhecesse ou não usasse , mas na
época tínhamos essa visão comum , mas pacifista em favor da paz. Sem dúvida o PT tinha essa
visão e nós também, e a favor também da justiça social, por exemplo tem que ser objetivo, eu
jamais teria pensado na ideia , numa espécie de Fome Zero a nível global, o Lula pensou e eu
tratei de executar. Agora dificilmente ele poderia pensar nos termos técnicos que eu pensei, de
como se faria uma área de Livre Comércio da América do Sul ,primeiro através de um acordo
entre a comunidade andina e o Mercosul, porque isso era uma coisa que tava na minha cabeça
desde a época do governo Itamar , então só estou repetindo houve uma confluência para tratar
que o Brasil tivesse uma política independente, solidária...
O Lula e o PT ou só o Lula?
Olha eu acho que se fosse o Lula e o PT,ah penso no Lula , o PT poderia ter feito ,só que
com mais dificuldade, porque diplomacia é uma técnica é uma arte também , então eles
precisariam de alguém que ajudasse tinha o Samuel Pinheiro Guimarães, tinha outras pessoas ,
muitas pessoas progressistas que poderiam ajudar, talvez não fosse idêntica a minha , parecida
com a minha, porque houve uma coincidência eu já tinha sido Ministro antes, quer dizer dá uma
certa experiência, eu tinha sido embaixador na ONU e em Genebra duas vezes, então isso
também dá uma vivência muito especial com relação a parte multilateral , outros talvez se
acentuassem outros aspectos ,mas eu acho que digamos o conteúdo geral seria o mesmo e a forma
de fazer seria diferente...
Uma confluência... Em sua opinião a política externa comandada pelo senhor, ela
influenciou nas vitórias eleitorais do PT?
Internas?
151
É...
Acho que não, eu acho que havia um apreço assim, a política externa passou a interessar,
mais pessoas falaram, eu sou uma pessoa reconhecida publicamente assim, coisa que
normalmente um Ministro do Exterior não é no Brasil, em outros países é, mas no Brasil não é,
não era...Então agora o Ernesto Araújo deve ser também mas pelos maus motivos, é pois é ,mas
enfim .Honestamente eu acho que a influência...talvez o Chico Buarque dizendo que ia votar na
Dilma, porque gostava muita da política externa , não falava grosso com a Bolívia e não falava
fino com os EUA, que é um bom resumo , outras pessoas com Oscar Niemeyer também falavam
muito , então, estou falando de pessoas que são de fora da área estrita da política, então talvez
isso influenciasse algumas pessoas, mas eu acho que na votação global, eu creio que não, não sei,
talvez como o estado psicológico, as pessoas gostam de ver ... Talvez não entendam bem que é
por causa daquilo , mas elas gostam de ver o Brasil ser respeitado. Até hoje agente encontra
pessoas que dizem “poxa”... Pessoas que trabalhavam em Multinacional diziam: “puxa vida como
o Brasil era respeitado, eu trabalhava na Caterpiler”, e eu ficava: porque veio me elogiar o cara da
Caterpiler? Aqui no Brasil, a mídia brasileira ficava dizendo que eu era contra, não éramos
contra... Mas enfim as coisas iam bem o Brasil era respeitado, então isso talvez pudesse refletir
um pouco, mas eu não tenho ilusões de que isso fosse decisivo não.
O senhor já falou um pouco sobre isso, mas é só pra tentar arredondar aqui na pergunta,
porque se fez a opção pela América do Sul tem um corte ideológico ou pragmático?
A palavra ideológica é tão mal usada né, pejorativamente né que eu evito usar, então eu
tenho um corte de convicção, vamos dizer, de que a integração é necessária, aliás está na
Constituição brasileira, então é uma convicção antiga entre América Latina e Caribe, e tem o lado
pragmático de eu achar o seguinte se nós partíssemos direto né, para uma integração da América
Latina e Caribe não ia acontecer, mas na América do Sul tinha uma chance de acontecer , então
tem sim um corte pragmático, não fiz porque achava que o Brasil ia exportar mais ou ganhar
mais, isso também era um aspecto , até porque eu tinha que provar que isso era certo, então era
importante mostrar que o Brasil tinha vantagens ,mas eu acho que objetivo principal da
Integração, sempre insisto nisso , é claro que a parte econômica era importante, um instrumento,
era melhorar o nível de vida de todos, das pessoas e a paz, você dizer que desenvolvimento e paz
são ideológicos, eu não acho que seja.
Entendi...Ainda nessa linha de aproximações com países, qual objetivo da aproximação com
os países africanos? Existiu a intenção de consolidar a influência brasileira sobre o
continente? Seria um ensaio para evidenciar a capacidade do país de atuar como potência
mundial?
Gente, as coisas não se passam assim... É... Olha vamos ter uma política com África,
porque isso vai aumentar nossa atuação, é natural, a nossa política com a África, é digamos
decorrência da própria...deveria ter sido já antes e foi, decorrência da nossa própria composição,
da nossa população, étnica cultural, tanto que houve antes algumas iniciativas importantes. Devo
dizer o seguinte: o Brasil tirando o início do governo militar desde 61 pra cá, volto a repetir,
tirando o início do governo militar sempre teve uma política razoável com relação à África. Ela
se acentuou positivamente na época do governo Geisel, que fez o reconhecimento do MPLA
(Movimento Popular de Libertação da Angola), com todos os efeitos que se pode ter, mas é
verdade. Eu ainda era chefe da divisão cultural, ainda era governo Geisel, se fez as primeiras
mostras de cinema em Moçambique e Guiné Bissau, cinema brasileiro, era digamos, havia
digamos , um impulso , aliás o próprio Guibissom ainda era o governo Médici ,no final do
152
governo, ele fez ali uma Missão á África, ali o Brasil tinha uma grave hipoteca, porque o Brasil
demorou muito a reconhecer a luta dos países africanos de língua portuguesa, porque havia uma
relação com Portugal e ela foi diminuindo com o tempo, quer dizer Brasil teve uma ação muito
forte no período democrático, ali ainda entre o Goulart, principalmente no período João Goulart,
na ONU e tal pela independência, depois recuou totalmente se subordinou ao Salazarismo e mais
tarde, já no final do governo Médici com Gibson já começa assim não reconheceu, só mudou
mesmo no governo Geisel, e o marco principal da coisa do governo Geisel, é o reconhecimento
do governo MPLA, o Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer o governo do MPLA, que
era chamado de marxista, imagina, o governo militar brasileiro! Foi o primeiro país antes de
Cuba, antes de qualquer país africano e isso numa decisão estratégica, não era por simpatia
ideológica, obviamente, mas também a ideia de que era preciso ter uma política com África, eu
me lembro de conversas com o embaixador Zapa que tratou desse assunto, embaixador Ovídio
Melo que foi o representante da Angola, e nós dizíamos na conversa entre nós que o Brasil é um
país tão africano quanto Latino Americano, enfim, isso depois continuou com passos lentos,
quem deu uma grande acelerada foi o governo Lula. E aí... Eu volto a uma coisa, digamos do
início da nossa conversa, quando tivemos que definir como era a política externa, e aí foram
palavras que ocorreram a mim, mas aí eu acho que estava captando os pensamentos do presidente
Lula, de que a nossa política externa ela tinha que ser ativa e altiva. Quer dizer altiva no sentido
de que não teríamos que nos submeter a qualquer pressão e ativa no sentido de que aquelas coisas
que a gente achava boas a gente tinha que fazer mesmo, de verdade, então quer dizer como fui
embaixador da ONU, no governo do Fernando Henrique, como fui também Ministro do Itamar,
como também acompanhei outros aspectos em outros governos, havia uma simpatia forte pelo
Brasil na África, o próprio governo Sarney é o precursor da criação da comunidade dos países de
língua portuguesa.
Ele é levado adiante no governo Itamar ele é levado adiante por inspiração grande por
parte do mineiro, lá o José Aparecido de Oliveira, uma coisa meio cultural, mas bem ou mal, era
uma aprofundação , era um reconhecimento de que tinha, agora no governo Lula é que eu acho
que isso se expande de uma maneira muito grande, não se limita aos países de língua portuguesa
e digamos aumenta de maneira quase que exponencial, o comércio multiplicou por cinco , nossas
exportações pra África no período de 6, 7 anos , depois da crise de 2008 caiu um pouco, mas
depois recuperou ,mas entre 2003,2004 ...2008,nossas exportações aumentaram por cinco, quatro
ou cinco, um número assim ...e não é partindo assim de um número muito baixo não , eu me
lembro que quando eu saí do governo, eu costumava comparar e dizer o seguinte , você imagina
que a África seja só um país, ela seria nosso 4º parceiro comercial ,atrás apenas da já então ... A
China, acho que era primeiro a China, Estados Unidos e Argentina e na frente da Alemanha,
então não era dizer ah... Que multiplicou por cinco porque saiu do nada, então né muito fácil...
Acho que sim, no governo Lula, levamos isso com muito... Tanto que logo no início do governo,
Lula fez logo uma visita para 5 ou 6 países ,eu já tinha feito outras 2 visitas, então... A África
estava na nossa agenda desde o início.
Dá pra dizer que a política externa brasileira ela é um mecanismo, não o principal, não o
fator determinante, mas um mecanismo de construção de hegemonia seja no Brasil, ou seja,
lá fora? Uma hegemonia do Brasil assim...
Celso: Eu não gosto muito dessa palavra hegemonia... Porque hegemonia é uma coisa
meio negativa, parece que assim pra você impor sua vontade... Eu acho que, eu prefiro até...
embora também não seja a palavra ideal uma certa liderança, mas uma liderança assim mais por
inspiração do que por imposição...é eu sei que tem hegemonia no sentindo gramsciano, no
sentido cultural...então bom...
Prestígio...
Prestígio sem precisar gastar um centavo pra isso, ao contrário de outros.
Entendi... A política externa dos governos Lula e Dilma demonstraram vários pontos de
inflexão com a tradição diplomática brasileira né... Assim como também tiveram várias
continuidades. O senhor conseguiria apontar as principais continuidades, as principais
inflexões com a tradição diplomática brasileira?
Eu não vejo uma grande inflexão com a tradição diplomática brasileira, depende do que
você chama...
isolamento, contra a ideia de... A favor das ideias de coexistência de ideologias né... Se você for
ver inclusive, entre os princípios da Unasul, você vai ver que está lá o pluralismo, ninguém dá
muita importância, mas está lá o pluralismo... Né... Ao contrário do que poderiam querer uns,
quer dizer então né... É uma coisa... Eu não acho que se afaste. Segundo não se afasta em nada do
que está escrito na Constituição Brasileira, então é uma política de Estado. O que eu acho, porque
eu chamei de altivo e ativo, porque na realidade a grande mudança em relação aos governos
anteriores foi fazer as coisas com mais convicção e com mais empenho, não se amedrontar diante
de certas situações, agora se for perguntar... Se você fosse examinar a teoria das políticas
anteriores, sim agente se afasta, por exemplo, de certas ideias. A ideia, por exemplo, de que ah o
Brasil não tem... Tem uma frase que é muito comum, até aparece no livro do Jimmy Cooper
também, mas não é dele ,acho que geralmente era do guerreiro ,foi muito usada pelo Celso Lyfer,
do governo Cardoso: “O Brasil não tem excedente de poder” .Então era sempre assim o Brasil é
pequeno , o Brasil não pode ter grandes inciativas, nesse sentido sim, não é ...
Daniel: Qual a relação entre a formulação da política externa petista e a política articulada
no Foro de São Paulo?
Eu acho que não há uma política externa petista, há uma política externa do governo do
presidente Lula, que era do PT, mas que também tinha outras variáveis... Imagina o Ministro da
Indústria e do Comércio era o Vice Presidente da Fiesp e ele influía na política externa, não
conduzia, eu aliás várias vezes já tive até pequenos embates com ele, mas eu estou dizendo...não
era uma coisa que eu pudesse ignorar, eu não ignorava a Fiesp, na política externa, não ignorava
o agronegócio na política externa. Eu não podia ignorar, então não há uma política externa
petista, eu estou te dizendo, sinceramente em minha opinião, era do governo Lula que em minha
opinião uma coalizão de várias forças, na qual obviamente o PT tem um papel muito importante,
preponderante mesmo, mas não absoluto, então é preciso entender isso.
Agora quando você me pergunta, o que eu acho, que o Foro ajudou, sobretudo na minha
opinião, na minha opinião né. Talvez se você perguntasse o Marco Aurélio se ele tivesse vivo,
talvez ele desse outra opinião, não sei. Eu volto a dizer que houve uma confluência sobre muitas
coisas, inclusive teve essa simpatia pela América Latina e Caribe, a simpatia pela África, pelos
países em desenvolvimento, tudo isso é uma confluência. Agora, no que eu acho que o Foro foi
mais útil em minha opinião, é digamos, nos contatos e nos relacionamentos, porque aí sim, havia
contatos estabelecidos por outras pessoas, inclusive eu estou falando muito do Marco Aurélio
porque ele era o mais próximo aí ligado na política externa, Zé Dirceu, outros... Tinha outros
contatos, mas o Marco Aurélio foi o mais atuante...
Pomar...
Pomar não era muito presente no governo, falando francamente, não sei se diretamente ele
influía, mas não era... Dulce, talvez. Então, o Pomar, eu respeito muito como intelectual, tive
várias conversas importantes com ele, mas ele não era tão presente.
digamos, não sei, eu não acho que ele estava lá no radar do Foro de São Paulo, entendeu, nem sei
onde Morales estava já outros sim. Entende? Então eu acho que é uma coisa que mais complexa...
Hoje tem...
Hoje com certeza tem... Pois é mas é diferente, entendeu? Na época...
Hoje tem, mas naquela época não tinha.
Eles foram sendo agregados né, se ampliou muito, no primeiro encontro do Foro de São
Paulo tinha 48 partidos, hoje são 113 partidos...
E Provavelmente mais amplos também...
É, com certeza eles foram agregando vários graus de esquerda né, progressista né ...É eu
vou ter que fazer essa pergunta: Existiu o objetivo de construir a hegemonia brasileira na
América do Sul?
Eu volto a falar que esse problema da hegemonia não sei se você está usando termos
Gramscianos, eu não quero discutir os termos Gramscianos, eu acho que a hegemonia no
sentindo que a gente usa, como termo político no geral. Não, porque isso é natural, porque o
Brasil é metade da América do Sul, basta o Brasil fazer a coisa certa que a liderança é natural. As
pessoas todas dizem: “nós não podemos fazer isso, sem o Brasil”. Como é que a América do Sul
vai se organizar e a América Latina inclusive também, sem o Brasil? Não há como. Então basta
fazer a coisa certa que resulta nessa liderança, que não é assim buscada como objetivo, é uma
coisa, e pra muitos países. Agora veja bem, é preciso frisar isso eu tivemos muito cuidado no
governo em ter uma visão pluralista, claro que aí me perguntavam: ‘no governo você simpatizava
mais com o Chaves ou com o Uribe?” E eu: “claro que agente simpatizava mais com o Chaves.”
Mas agente tratava muito bem o Uribe e com muita correção e ele confiava na gente. Quando ele
tinha um problema de Estado sério, ele não corria pra Washington ele corria pro Brasil, para o
Lula, para falar com o Lula. O Chile que tinha um governo da cosertação, mas que pelos padrões
nossos não seria um governo de esquerda, sobretudo a chancelaria, o partido democrata cristão ,
não um partido de esquerda um partido de centro, democrata de centro. Eu ouvi do chanceler
chileno: “O Brasil é nosso porto seguro” ,quer dizer o Brasil é que daria o equilíbrio que permitia
para fazer a integração da América do Sul, que permitia tratar com Chaves, com Uribe e com eles
ao mesmo tempo.
Richard, Glauber, Rui Guerra etc, que fluíram na minha formação. Agora tem uma coincidência
específica de política externa, que eu não sou o causador, mas é uma coincidência interessante, a
última cena do filme Os Cafajestes do qual eu fui assistente, assistente de continuidade, a última
cena, o personagem, que é um dos cafajestes, que é o Gerson Valadão ele está se afastando do
carro e tem um noticiário de rádio né, e se tá ouvindo, e até interessante porque agente criticou
pensado que era irrealista ,mas foi de propósito, porque embora ele vai se afastando o som não
vai diminuindo, o som tá sempre na mesma altura, e uma das notícias que é dada na época é o
voto do Santiago Dantas na Conferência de Punta del Este, se opondo a excursão de Cuba.
Que interessante...
É uma premonição vamos dizer...
Nesse sentido ainda, existiu um esforço para difusão da Cultura Brasileira ao longo dos seus
anos à frente do Ministério?
Agora deixa dizer... só completando aqui, naqueles anos eu era adolescente quase na
época, um jovem adulto, 18 , 19 anos , mas na minha experiência como presidente da Embrafilme
anos depois como também na ciência e tecnologia eu pude ver muito de perto os embates que os
Estados Unidos , tanto na nossa indústria de áudio visual, tanto na nossa indústria farmacêutica e
etc., pode ter pesado nas minhas atitudes, nas minhas atitudes.
Então teve, quando o senhor estava frente do Ministério um esforço pra difundir a Cultura
Brasileira?
Teve, nós trabalhamos e aumentamos o número de centros culturais, aumentamos o
número de professores brasileiros na África, trabalhando inclusive para que professores africanos
viessem ao Brasil para ensinar a Histórica da África, sem dúvida.
O senhor falou isso bem no começo da nossa conversa, sobre ter participado do governo do
Itamar Franco né, você acha que a escolha do senhor como Ministro era um sinal de
continuidade, quando o senhor falou que era mostrar uma política de Estado.
Eu não gosto muito dessas palavras continuidade, porque continuidade dá a impressão que
você vai fazer sempre do mesmo, e não ia ser o sempre do mesmo. Eu me lembro de que quando
o presidente me convidou, antes de eu me anunciar publicamente, quando ele me convidou. Eu
tava em São Paulo, um pouquinho antes da visita que ele fez a Washington ,como presidente
eleito, e tinha um minuta do discurso feita por um outro Diplomata, não sei por quem, e que tinha
escrito a palavra continuar, continuidade, aparecia umas 20 vezes, eu falei: “Uai porque ele foi
eleito? Se vai continuar tudo, deixava tudo como estava né.” Então eu não gosto muito dessa
palavra continuidade, eu acho que sim, é diferente, porque continuidade tem haver com a
maneira de fazer e a maneira de fazer ia mudar, e quando agente diz que era altivo e ativo, porque
ia mudar, porque agente estava achando que a outra não era altiva e nem ativa obviamente. Agora
os princípios básicos da política brasileira que são os da Constituição Brasileira e esses não
mudariam, nós apenas intensificaríamos a sua aplicação, então eu acho que a escolha de uma
pessoa de Estado era reconhecer que havia interesse de Estado brasileiro, não posso dizer que
permanente, não gosto de dizer permanente, permanente, porque tudo na vida muda, mas enfim ,
que assim era de longa duração, agora a maneira de fazer não, a maneira mudou.
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Essa é a última pergunta... Ela foge um pouco do tema, mas porque ela é a pergunta de um
internacionalista que deseja saber o que um Ministro fala sobre isso: Qual sua avaliação
sobre a atual política externa implantada pelo Ernesto Araújo e como isso afeta os
interesses estratégicos do Brasil?
Olha a minha avaliação é a pior possível, porque, tanto no conteúdo, quanto na forma,
porque mesmo no governo militar, que obviamente a política externa não era boa, sobretudo
antes do Geisel, como eu falei, mas pelo menos o estilo salvava da diplomacia, hoje em dia não.
Hoje em dia todos os sinais e os símbolos, que não só o Ernesto Araújo, o próprio presidente que
vai até a CIA prestar reverência, isso não corresponde ao que é o Brasil. O Ernesto Araújo dizer
às barbaridades que diz, sobre a mudança de clima, então não dá nem pra avaliar. Agora dentro
dessa loucura toda, há coisas que são meramente exóticas e risíveis e outras muito perigosas. Eu
diria que a coisa mais séria e perigosa delas tem sido a atitude com relação a Venezuela, acho que
hoje em dia, uma ação armada na Venezuela ficou mais difícil , porque já seu viu que esse
Guaidó não tem nenhum respaldo, acho que até os próprios americanos estão começando a achar
que fizeram a aposta errada e o Brasil embarcou totalmente nisso e duas vezes, principalmente na
primeira em que o chanceler estava lá a bordo de um caminhão, uma van, que estava levando o
selo da ajuda humanitária para Venezuela, sempre digo imagine querer atravessar essa fronteira,
tivesse lá um guarda nacional muito zeloso e desse um tiro no caminhão do chanceler que por
acaso os atingisse. Era guerra, era guerra o Brasil esteve muito mais perto de uma guerra do que
se pensa e seria a primeira vez em 145 anos, seria terrível uma Guerra aqui na região. O Brasil
não tem uma guerra aqui na região desde a guerra do Paraguai, depois da Tríplice Aliança como
agente costuma dizer hoje em dia. Então é terrível, sem falar na submissão explícita e muitas
outras coisas e outras atitudes lamentáveis, o próprio apoio do Bolsonaro ao Macri é uma
repetição do que, e uma divinação até, a mesma atitude do Trump em relação a Inglaterra, que é
chegar lá e dizer olha Boris Johnson daria um bom primeiro Ministro, uma interferência nos
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assuntos internos de outros Estados, que é totalmente lamentável, enfim. O nosso chanceler vai à
Europa e escolhe os países mais a direita, o Lula nunca teve essa preocupação, a primeira viagem
que ele faz a Europa, eu estava com ele. Ele foi à Davos, onde ele falou com todo mundo, com
capitalista com tudo que havia, de lá foi à Alemanha que era Social Democrata, não pode se dizer
esquerda, esquerda e de lá vai pra França. Então não tinha, é totalmente falsa a ideia essa coisa de
que era conduzido por uma ideologia, é porque aqui no Brasil a elite brasileira, acha que tudo que
não é subserviente a americano é ideológico ou a uma extrema direita europeia.