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Ananda K.

Coomaraswamy

O Vedanta e a Tradição Ocidental *

São estes, na verdade, os pensamentos de todos os homens em todos os


tempos e lugares; não são originalidade minha.

Walt Whitman

1
A historicidade da existência humana de mestres como
Orfeu, Hermes, Buda, Lao Tsé e Jesus Cristo pode ser posta em
dúvida, e a eles se pode atribuir a dignidade superior de uma
realidade mítica. Shankara, à semelhança de Plotino, Agostinho
e Eckhart, foi certamente um homem entre os homens, embora
seja relativamente pouco o que sabemos de sua vida. Brâmane
do sul da Índia, Shankara viveu na primeira metade do século IX
d.C. e fundou uma ordem monástica que existe até hoje. Aos
oito anos de idade tornou-se samnyasin, ou “homem
verdadeiramente pobre”, na qualidade de discípulo de um certo
Govinda e do próprio mestre deste, Gaudapada, autor de um
tratado sobre os Upanichades em que se expõe a doutrina
essencial da não-dualidade do Ser divino. Aos doze anos, viajou
para Varanasi e lá compôs seu famoso comentário sobre o
Brahma Sutra; os comentários sobre os Upanichades e o
Bhagavad Gita foram escritos depois. O grande sábio passou a
maior parte de sua vida vagando pela Índia, ensinando e
debatendo. As viagens e as disputas de argumentos sempre
foram instituições caracteristicamente indianas. Naquela época,
como hoje em dia, o sânscrito era a língua franca dos eruditos,
assim como o latim foi durante séculos a língua franca da
Europa ocidental; e o debate livre e público era hábito tão
reconhecido que quase todas as cortes tinham saguões
especialmente construídos para abrigar os mestres e
debatedores que viajavam pelo país.
A metafísica tradicional que se liga ao nome de Shankara é
chamada Vedanta, termo que ocorre nos Upanichades e significa
“fim do Veda”, tanto no sentido de “parte posterior” quanto de
“significado último”; ou Atmavidya, a doutrina do conhecimento
do verdadeiro “si mesmo” ou “essência espiritual”; ou ainda

*
Originalmente, uma palestra proferida para a seccional da Sociedade Phi Beta
Kappa no Radcliffe College; o texto em sua forma atual foi publicado em The
American Scholar, VIII (1939). Tradução para o português de Marcelo Brandão
Cipolla em 12/2008-01/2009.
Advaita, “Não-dualidade”, termo que, ao mesmo tempo em que
nega a dualidade, não faz afirmação alguma acerca da natureza
da unidade e não deve ser entendido como análogo aos
monismos ou panteísmos dos ocidentais. O que se ensina nessa
metafísica é uma gnose (jnana).
Shankara não foi de maneira alguma o fundador,
descobridor ou revelador de uma nova religião ou filosofia; sua
grande obra de expositor consistiu numa demonstração da
unidade e da coerência da doutrina védica e numa explicação de
suas aparentes contradições: Shankara correlacionou as
diferentes escolas da ortodoxia, de um lado, com os pontos de
vista nelas implícitos, de outro. Em particular, e exatamente
como fez o escolasticismo europeu, ele distinguiu entre duas
vias complementares que levam a Deus: a teologia afirmativa e
a teologia negativa. Na via da afirmação ou do conhecimento
relativo, certas qualidades superlativas são predicadas da
Identidade Suprema, ao passo que na via da negação todas as
qualidades são abstraídas. O famoso “não, não” (neti, neti) dos
Upanichades, que constitui a base do método de Shankara como
constituíra a do Buda, depende do reconhecimento da verdade –
expressa por Dante, entre muitos outros – de que existem
realidades que estão além do alcance do pensamento discursivo
e só podem ser compreendidas não afirmando-se certas coisas a
respeito delas, mas negando-se que elas sejam isto ou aquilo.
O estilo de Shankara não só é sutil como também é dotado
de grande originalidade e poder. Vou citar, de seu comentário
sobre o Bhagavad Gita, um trecho que tem ainda a vantagem de
nos pôr frente à frente, de uma vez por todas, com o problema
central do Vedanta – o de discriminar o que “eu mesmo” sou
realmente, e não apenas segundo meu modo de pensar. “Como
é possível”, pergunta-se ele, “que haja professores que, como os
homens comuns, digam ‘Eu sou fulano de tal’ e ‘Isto é meu’?
Ouve: é porque o suposto conhecimento deles consiste em
considerar o corpo como ‘eu’.” No Comentário sobre o Brahma
Sutra, ele enuncia em meras quatro palavras sânscritas aquela
que, do princípio ao fim, continua sendo na metafísica indiana a
doutrina perpétua segundo a qual o Espírito imanente dentro de
cada um é o único conhecedor, agente e transmigrador.
A literatura metafísica que está por trás das exposições de
Shankara consiste essencialmente nos quatro Vedas, juntamente
com os Brahmanas e seus Upanichades, todos considerados
revelados, eternos, datáveis (pelo menos em forma escrita) de
antes de 500 a.C., e mais o Bhagavad Gita e o Brahma Sutra
(datáveis de antes do começo da era cristã). Os Vedas são livros
litúrgicos; os Brahmanas expõem o ritual; e os Upanichades são
dedicados à doutrina de Brahma ou Theologia Mystica, que é um
dado tácito da liturgia e dos ritos. O Brahma Sutra é um
compêndio resumidíssimo da doutrina dos Upanichades, e o
Bhagavad Gita é uma exposição da mesma adaptada à
compreensão daqueles cuja atuação está mais ligada à vida
ativa que à vida contemplativa.
Por várias razões, que vou tentar explicar, será muito mais
difícil expor o Vedanta do que seria expor as teses pessoais de
um “pensador” moderno, ou mesmo de um pensador como
Platão ou Aristóteles. Nem a língua inglesa moderna nem os
modernos jargões da filosofia e da psicologia nos fornecem um
vocabulário adequado; do mesmo modo, a educação moderna
não nos proporciona a formação ideológica que seria essencial
para facilitar a comunicação. Terei de fazer uso de uma
linguagem puramente simbólica, abstrata e técnica, como se
estivesse falando dos ramos mais complexos da matemática;
vale lembrar que Emile Mâle compara o simbolismo cristão a um
“cálculo”. Há, porém, esta vantagem: o assunto a ser
comunicado e os símbolos a serem empregados não são
peculiarmente indianos, como tampouco são especificamente
gregos, islâmicos, egípcios ou cristãos.
Em geral, a metafísica faz uso de símbolos visuais (cruzes
e círculos, por exemplo) e, acima de tudo, do simbolismo da luz
e do sol – diante do qual, como diz Dante, “nenhum objeto
sensível no mundo inteiro é mais digno de ser tomado como tipo
de Deus”. Mas também terei de usar termos técnicos, como
essência e substância, potência e ato, espiração e despiração,
semelhança exemplar, eviternidade, forma e acidente.
Distinguir-se-á a metempsicose da transmigração e ambas da
“reencarnação”. Será necessário distinguir a alma do espírito.
Para saber se determinada palavra em sânscrito poderá em
alguma ocasião ser traduzida pela palavra “alma” (anima,
psyche), teremos de conhecer os múltiplos sentidos em que este
última palavra foi empregada na tradição européia; que espécie
de alma pode ser “salva”; que espécie de alma o Cristo nos
manda “odiar” para que possamos ser seus discípulos; a que
espécie de alma Eckhart se refere quando diz que a alma deve
“matar a si mesma”. Teremos de saber o que Fílon queria dizer
com a expressão “alma da alma”; e teremos de nos perguntar
em que medida os animais podem ser considerados “sem alma”,
não obstante a palavra “animal” significar literalmente “com
alma”. Teremos de distinguir a essência da existência. E, por
fim, é possível que eu tenha de lançar mão do termo composto
“agora-e-sempre” * para expressar o sentido pleno e original de
*
Neste passo, o autor cunha o neologismo nowever, traduzido por “agora-e-
sempre”. (N. do T.)
palavras ou expressões como “repentinamente”,
“imediatamente” e “agora mesmo”.
Os textos sagrados da Índia são conhecidos pela maioria
dos ocidentais somente através de traduções feitas por eruditos
conhecedores de lingüística, não de metafísica; e foram
comentados e explicados – ou, talvez melhor, sumariamente
descartados com a mera aparência de explicação – sobretudo
por estudiosos munidos de todos os preconceitos dos
naturalistas e antropólogos, estudiosos cuja capacidade
intelectual foi a tal ponto inibida por suas faculdades de
observação que já não conseguem distinguir entre realidade e
aparência, entre o Sol Superno da metafísica e o sol físico que
vêem com os olhos do corpo. Além destes, a literatura indiana
foi estudada e explicada por cristãos proselitistas cujo objetivo
principal era demonstrar a falsidade e o absurdo das doutrinas
envolvidas; ou, por fim, pelos teosofistas, que, com a melhor das
intenções e o pior dos resultados, deformaram as doutrinas ao
ponto da caricatura.
Para piorar, o homem culto de hoje em dia perdeu
completamente o contato com os modos de pensar e os
aspectos intelectuais da doutrina cristã que mais se aproximam
daqueles das tradições védicas. O conhecimento do Cristianismo
moderno de nada valerá, pois o sentimentalismo profundo de
nossos dias reduziu ao grau de mero moralismo aquilo que em
outras épocas foi uma doutrina intelectual – moralismo que mal
pode ser distinguido de um humanismo pragmático. Não se pode
afirmar que um europeu esteja preparado para o estudo do
Vedanta a menos que tenha lido e compreendido em alguma
medida as doutrinas de Platão, Fílon, Hermes, Plotino, dos
Evangelhos (especialmente o de João), de Dionísio e, por fim, de
Eckhart; este, com a possível exceção de Dante, pode ser
considerado, do ponto de vista indiano, como o maior de todos
os europeus * .
O Vedanta não é uma “filosofia” no sentido atual da
palavra; só poderá ser assim considerado caso o termo tome o
sentido que tem na expressão Philosophia Perennis, ou se
tivermos em mente a “filosofia” hermética ou aquela
“Sabedoria” por quem Boécio foi consolado. As filosofias
modernas são sistemas fechados que empregam os métodos da
dialética e partem do princípio de que os opostos são
mutuamente excludentes. Na filosofia moderna, as coisas são x
ou não-x; na filosofia eterna, isso depende do nosso ponto de
vista. A metafísica não é um sistema, mas uma doutrina

*
Atualmente, uma compreensão profunda das doutrinas de Guénon e Schuon pode
complementar o cabedal doutrinal aqui estabelecido pelo autor. (N. do T.)
coerente; não trata meramente das experiências condicionadas
e quantitativas, mas da possibilidade universal. Considera,
assim, possibilidades que não são possibilidades de
manifestação ou que não são possibilidades formais; ou, ainda,
postula conjuntos de possibilidades que podem se realizar num
determinado mundo. A realidade última da metafísica é a
Identidade Suprema, na qual se resolvem as oposições de todos
os contrários, até mesmo do ser e do não-ser; na metafísica, os
“mundos” e os “deuses” são níveis de referência e entidades
simbólicas que não são nem lugares nem indivíduos, mas
estados de ser que podem ser realizados dentro de você.
Os filósofos têm teorias pessoais acerca da natureza do
mundo; a filosofia enquanto disciplina acadêmica outra coisa
não é senão um estudo da história dessas opiniões e dos
vínculos históricos que elas guardam entre si. Encoraja-se o
filósofo recém-formado a desenvolver suas próprias opiniões, na
esperança de que elas representem um aperfeiçoamento em
relação às teorias anteriores. Não contemplamos, como a
Filosofia Perene, a possibilidade de conhecer a Verdade de uma
vez por todas; menos ainda colocamos diante de nós o objetivo
de ser essa Verdade.
A “filosofia” metafísica é chamada “perene” em virtude de
sua eternidade, universalidade e imutabilidade; é ela a
“Sabedoria incriada, igual agora a como sempre foi e sempre
será”, de que falava Agostinho; é a religião que, como diz o
mesmo autor, só passou a ser chamada “Cristianismo” depois da
vinda de Cristo. O que foi revelado no princípio contém
implicitamente toda a verdade; e enquanto a tradição é
transmitida sem desvios – enquanto, em outras palavras, a
cadeia de mestres e discípulos permanece ininterrupta – não são
possíveis nem a incoerência nem o erro. Por outro lado, a
compreensão da doutrina deve ser perpetuamente renovada;
não é uma questão de palavras. O fato de a doutrina ser a-
histórica não exclui de modo algum a possibilidade, ou mesmo a
necessidade, de uma perpétua explicitação de suas fórmulas,
uma adaptação dos ritos originalmente praticados e uma nova
aplicação de seus princípios às artes e às ciências. Quanto mais
a humanidade se afasta de sua primitiva auto-suficiência, maior
a necessidade de tal aplicação. É possível traçar uma história
dessas explicitações e adaptações. Assim é que se estabelece
uma distinção entre o que foi “ouvido” no princípio e o que
depois foi “lembrado” * .
*
O autor faz aqui uma referência indireta aos dois graus de principialidade da
tradição hindu e de toda tradição revelada: a shruti, “audição”, que compreende a
revelação original, e a smrti, “lembrança”, que compreende todos os
desenvolvimentos e adaptações a que a revelação original deu causa no decorrer
Um desvio ou heresia só pode acontecer quando o
ensinamento original foi mal compreendido ou pervertido de
algum modo ou sob algum aspecto. Dizer “eu sou panteísta”, por
exemplo, equivale simplesmente a confessar que “não entendo
nada de metafísica”, do mesmo modo que dizer “dois e dois são
cinco” equivale a confessar que “não entendo nada de
matemática”. Dentro da tradição em si não pode haver
quaisquer teorias ou dogmas contraditórios ou mutuamente
excludentes. Os chamados “seis sistemas da filosofia indiana”,
por exemplo (e, nessa expressão, só se justificam as palavras
“seis” e “indiana”) * , não são teorias mutuamente contraditórias
e exclusivas. Esses assim-chamados “sistemas” não são nem
mais nem menos ortodoxos que a matemática, a química e a
botânica, as quais, embora sejam disciplinas separadas e mais
ou menos científicas, não deixam de ser ramos de uma única
“ciência”. A Índia, com efeito, faz uso do termo “ramos” para
denotar aquelas que, na opinião pouco abalizada do indologista,
são “seitas” ou “facções”. É precisamente por não existirem
“seitas” no seio da ortodoxia bramânica que a intolerância, no
sentido europeu, é um fenômeno praticamente desconhecido na
história da Índia – e é pelo mesmo motivo que para mim é tão
fácil pensar nos termos da filosofia hermética quanto nos do
Vedanta. É preciso que haja “ramos” porque todo conhecimento
só pode se operar segundo a modalidade do conhecedor; por
mais que estejamos convictos de que todas as vias conduzem ao
único Sol, é igualmente evidente que cada homem deve escolher
aquela via que parte do ponto em que ele mesmo se encontra no
princípio da jornada. Pelas mesmas razões, o Hinduísmo nunca
foi uma fé missionária. É verdade, talvez, que a tradição
metafísica foi preservada de modo mais pleno e mais perfeito
em solo indiano que na Europa. Mas isso só significa que o
cristão pode aprender com o Vedanta a compreender melhor a
sua própria “via”.
O filósofo procura provar suas teses. Para o metafísico,
basta demonstrar que uma doutrina supostamente falsa envolve
uma contradição entre os primeiros princípios. O filósofo que
defende a tese da imortalidade da alma, por exemplo, procura
descobrir provas da sobrevivência da personalidade; para o
metafísico, basta lembrar que “o fim deve ser igual ao princípio”
– donde se conclui que uma alma, que por pressuposto foi criada
no tempo, não pode senão acabar também no tempo. Não há
“prova da sobrevivência da personalidade” que possa convencer
o metafísico, do mesmo modo que não há prova capaz de

dos séculos. (N. do T.)


*
Referência aos seis darshanas ou pontos-de-vista ortodoxos do Hinduísmo:
Mimamsa, Nyaya, Vaisheshika, Samkhya, Yoga e Vedanta. (N. do T.)
convencer o físico da possibilidade do moto-perpétuo. Além
disso, a metafísica lida sobretudo com assuntos que não podem
ser objetos de prova pública, mas que podem somente ser
demonstrados, ou seja, postos diante da inteligência por meio
de uma analogia; e que, mesmo quando comprovados pela
experiência pessoal, só são passíveis de ser declarados sob a
forma de símbolos e mitos. Ao mesmo tempo, a fé é
relativamente facilitada pela lógica infalível dos próprios textos,
lógica essa que constitui a sua beleza e todo o seu poder de
atração. Lembremo-nos da definição cristã de fé: o
“assentimento a uma proposição crível”. É preciso crer para
compreender e compreender para crer. Porém, esses dois atos
da mente não são simultâneos, mas sucessivos. Em outras
palavras, não é possível conhecer algo a que a vontade recusa
seu assentimento, nem é possível amar algo que não se
conhece.
A metafísica difere ainda da filosofia por ter um propósito
puramente prático. Não é uma busca da verdade pela verdade;
e, do mesmo modo, as artes a ela correlatas não são uma busca
da arte pela arte, nem a conduta correlata é uma busca da
moral pela moral. É certo que há uma busca, mas o buscador já
conhece o objeto de sua busca, na medida em que este pode ser
expresso em palavras; a busca se conclui quando ele mesmo se
torna o objeto. Nem o conhecimento verbal, nem um
assentimento meramente formal, nem uma conduta impecável
são mais que meios para um fim.
Tomados em sua materialidade, como “literatura”, os
textos e símbolos são inevitavelmente mal compreendidos por
aqueles que não participam eles mesmos da busca. Os termos e
símbolos metafísicos são todos, sem exceção, termos técnicos.
Nunca são ornamentos literários e, como bem disse Malinovski
num contexto bastante diferente, “Numa atividade prática, a
linguagem técnica só adquire seu significado mediante a
participação pessoal na atividade em questão.” É por isso que,
ao ver dos indianos, os textos vedânticos só foram
compreendidos verbal e gramaticamente, mas não realmente,
pelos estudiosos europeus, cujos métodos são declaradamente
objetivos e não-comprometidos. O Vedanta só pode ser
conhecido na medida em que é vivido. Os indianos, portanto,
não podem confiar num mestre ou professor cuja doutrina não
se reflete diretamente em seu próprio ser. Eis aí algo que está
muitíssimo longe dos modernos conceitos europeus de
conhecimento e erudição.
Pensando naqueles que acalentam noções românticas
acerca do “Oriente místico”, temos de acrescentar que o
Vedanta nada tem a ver com o exercício da magia ou de poderes
ocultos. É verdade que a eficácia dos procedimentos mágicos e
a existência de poderes ocultos são noções universalmente
admitidas na Índia. Porém, a magia é considerada uma ciência
aplicada das mais vulgares; e conquanto alguns poderes ocultos,
como a ação “à distância”, sejam às vezes adquiridos
incidentalmente com o exercício das práticas contemplativas, o
uso desses poderes é visto como uma perigosa digressão – a não
ser em circunstâncias muito excepcionais.
Tampouco é o Vedanta uma espécie de psicologia ou o
Yoga uma espécie de terapia. Isso só ocorre de maneira
acidental. A saúde física e a moral são pré-requisitos do
progresso espiritual. A análise psicológica só é empregada para
demolir nossas mais estimadas crenças na unidade e na
imaterialidade da “alma”, com a finalidade de melhor distinguir
o espírito daquilo que não é espírito, mas somente uma
manifestação psicofísica temporária de uma de suas
modalidades mais limitadas. Quem quer que insista em traduzir
numa psicologia os pontos essenciais da metafísica indiana ou
chinesa, como faz Jung, limita-se a distorcer o significado dos
textos. Do ponto de vista indiano, a psicologia moderna tem no
máximo o mesmo valor que se atribui ao espiritismo, à magia e
a outras “superstições”. Por fim, não posso deixar de assinalar
que, no Vedanta, a metafísica não é uma forma de misticismo,
exceto no sentido em que, como Dionísio * , podemos falar
propriamente de uma Teologia Mística. Em seu sentido comum,
o termo “misticismo” denota uma receptividade passiva –
“temos de ser capazes de deixar que as coisas aconteçam na
psique”, segundo o modo de dizer de Jung (e, nessa afirmação,
ele se autoproclama um “místico”). A metafísica, porém, repudia
por completo a psique. As palavras de Cristo segundo as quais
“ninguém pode ser meu discípulo se não odiar a própria alma”
foram reiteradas inúmeras vezes por todos os gurus indianos; e,
longe de envolver a passividade, a prática contemplativa
envolve uma atividade que se costuma comparar a um fogo tão
quente que nem tremula nem produz fumaça. O peregrino é
chamado um “trabalhador”; e o refrão característico dos
cânticos dos peregrinos é “adiante, sempre adiante”. A “Via” do
vedantista é acima de tudo uma atividade.

II

*
São Dionísio, o Areopagita, autor cristão de tratados metafísicos em que se
expõem os fundamentos da teologia apofática ou negativa. Um de seus livros é
chamado Teologia Mística. (N. do T.)
O Vedanta pressupõe uma onisciência independente de
qualquer fonte de conhecimento exterior a si mesma e uma
bem-aventurança independente de qualquer fonte exterior de
prazer. Dizendo “Tu és Isto” (Tat tvam asi), o Vedanta afirma
que o homem leva em si, e é em si mesmo, “aquela única coisa
que, quando é conhecida, todas as coisas são conhecidas”,
aquela “por amor da qual todas as coisas são queridas”. Afirma
que o homem não tem consciência desse tesouro oculto dentro
de si porque herdou uma ignorância inerente à própria natureza
do veículo psicofísico com o qual erroneamente se identifica. O
objetivo de todo ensinamento é dissipar essa ignorância;
penetradas as trevas, nada resta senão a Gnose da Luz. A
técnica de educação, portanto, é sempre iconoclasta,
destruidora das formas; não se trata de uma transmissão de
informação, mas da educação de um conhecimento latente.
A “grande fórmula” dos Upanichades é “Tu és Isto”. Neste
passo, “Isto” é evidentemente o Átman ou Espírito, o Espírito
Santo, pneuma em grego, ruh em árabe, ruah em hebraico,
Amon em egípcio, ch’i em chinês; Átman é a essência espiritual,
indivisível quer na transcendência, quer na imanência; e sejam
quantas forem as direções em que ele se estenda ou das quais
se retire, permanece imóvel tanto no sentido intransitivo quanto
no transitivo. Presta-se a todas as modalidades do ser, mas
nunca se torna isto ou aquilo. Tu és Isto: aquele fora do qual
tudo é aflição. “Isto”, em outras palavras, é Brahman, ou Deus
no sentido geral de Logos ou Ser, considerado como princípio
universal de todo o Ser – expansivo, manifestante e produtivo,
fonte e origem de todas as coisas, todas as quais estão “nele”
como o finito no infinito, embora não sejam “parte” dele, uma
vez que o infinito não tem partes.
A partir de agora, usarei principalmente a palavra Átman.
Embora esse Átman, que sopra e ilumina, seja primariamente
“Espírito”, pois é esse divino Eros a essência que dá vida a todas
as coisas e constitui assim seu verdadeiro ser, a palavra Átman
também é usada reflexivamente com o sentido de “si” ou “si
mesmo” – quer “eu mesmo” em qualquer sentido possível dessa
noção, mesmo que grosseiro, quer numa referência à pessoa ou
ao si mesmo espiritual (o único sujeito cognoscente, essência de
todas as coisas, que deve ser distinguido do “eu” afetado e
contingente composto do corpo e de tudo aquilo que chamamos
“alma” quando falamos de “psicologia”). Estão assim envolvidos
dois “si mesmos” muito diferentes; e, assim, os tradutores têm
por costume traduzir Átman por “si mesmo”, escrito com inicial
maiúscula ou minúscula segundo o contexto * . São Bernardo, por
*
Outras traduções falam de “eu” e “Eu”, ou ainda “eu empírico” e “Eu Superior”.
(N. do T.)
exemplo, traça a mesma distinção quando diferencia minha
propriedade (proprium) de meu verdadeiro ser (esse). Outra
formulação indiana distingue o “conhecedor do campo” – ou
seja, o Espírito como único sujeito cognoscente em todas as
coisas, o mesmo em todos – do “campo”, ou seja, o composto de
corpo e alma acima definido, englobando ainda as pastagens
dos sentidos e abarcando, portanto, todas as coisas que podem
ser consideradas objetivamente. Em si mesmo, o Átman ou
Brahman não pode ser assim considerado: “Como poderias
conhecer o conhecedor do conhecimento?” – ou, em outras
palavras, como a primeira causa de todas as coisas poderia ser
uma coisa entre outras?
O Átman não tem partes, mas é aparentemente dividido e
identificado como diverso pelas diferentes formas de seus
veículos, dos camundongos aos homens, do mesmo modo que o
espaço dentro de um vaso é aparentemente assinalado e
distinguível do espaço fora dele. Neste sentido se pode dizer que
“ele é um em si mesmo, mas é muitos em seus filhos”, e que
“participando-se, ele preenche estes mundos”. Isto, porém,
somente no mesmo sentido em que a luz preenche o espaço ao
mesmo tempo em que, em si mesma, não sofre nenhuma
descontinuidade; as distinções entre as coisas não dependem de
diferenças na luz, mas de diferenças no poder de reflexão das
próprias coisas. Quando o vaso se quebra, quando se desfaz o
recipiente que contém a vida, percebemos que o espaço interno
aparentemente delimitado na verdade não tinha limites, que a
“vida” tem um sentido que não se confunde com o do “viver”.
Dizer que o Átman é ao mesmo tempo participado e
imparticipável, “indiviso entre coisas divididas”, não limitado por
posições locais mas ao mesmo tempo atual em toda parte, é
outra maneira de afirmar uma doutrina com a qual estamos mais
familiarizados: a da Onipresença.
Ao mesmo tempo, cada uma dessas aparentes definições
do Espírito representa a atualização no tempo de uma de suas
possibilidades de manifestação formal, possibilidades essas que
são em número indefinido. A existência da “aparição” começa
com o nascimento, termina com a morte e não se repete jamais.
Tudo o que sobrevive de Shankara é um legado. Por isso,
embora possamos falar dele como se ainda fosse um poder vivo
sobre a terra, o homem em si é apenas uma memória. Por outro
lado, o Espírito gnóstico, o Conhecedor do campo, o Conhecedor
de todos os nascimentos, retém perpetuamente o conhecimento
imediato de cada uma de suas modalidades, um conhecimento
que não tem nem antes nem depois (em relação ao
aparecimento ou desaparecimento de Shankara no campo da
nossa experiência). Decorre daí que, no ponto onde
conhecimento e ser se identificam, onde natureza e essência são
uma única e mesma coisa, o ser de Shankara não tem princípio
nem jamais terá fim. Em outras palavras, há um sentido em que
podemos falar com propriedade não só do “Espírito” e da
“Pessoa”, mas do “meu espírito” e da “minha pessoa”, apesar
de o Espírito e a Pessoa serem uma substância perfeitamente
simples e incomposta. Voltarei daqui a pouco a falar do sentido
da “imortalidade”, mas por enquanto quero usar o que acabou
de ser dito para explicar o significado da distinção não-sectária
de pontos de vista. Enquanto o ocidental estudioso de “filosofia”
tem o Samkhya e o Vedanta na conta de dois “sistemas”
incompatíveis, uma vez que o primeiro trata da libertação de
uma pluralidade de Pessoas e o último, da liberdade perene de
uma Pessoa inconumerável, essa antinomia simplesmente não
existe para o hindu. Para explicar isso, podemos assinalar que,
nos textos cristãos “Vós sois todos um em Cristo Jesus” e “Quem
quer que esteja unido ao Senhor é um só espírito”, os plurais
“vós” e “quem quer que” representam o Samkhya, ao passo que
o singular “um” e “um só” representa o Vedanta.
Nesse sentido, a validade de nossa simples consciência de
ser, desvinculada da noção de ser Fulano de Tal com tais e tais
características, é tida como um dado primário da realidade. Não
se deve confundir isto com o argumento “Cogito ergo sum”. O
fato de “eu” sentir ou “eu” pensar não é prova de que “eu” sou;
pois, acompanhando os vedantistas e budistas, podemos dizer
que o “eu” é apenas um conceito, que “os sentimentos se
sentem” e “os pensamentos se pensam” e que tudo isso faz
parte do “campo” que o espírito contempla, do mesmo modo
como poderíamos contemplar um retrato que é de certo modo
uma parte de nós, embora não sejamos parte dele de modo
nenhum. É assim que por fim se coloca a questão: “Quem és?”
“O que é aquele ‘si mesmo’ a que devemos recorrer?” Quando
falamos de um “conflito interno”, reconhecemos que o “si
mesmo” pode ter mais de um sentido: quando dizemos que “o
espírito está pronto, mas a carne é fraca”; ou quando, citando o
Bhagavad Gita, asseveramos que “o Espírito está em guerra com
tudo quanto não é o Espírito”.
Acaso sou “eu” o espírito ou a carne? (Temos de nos
lembrar sempre que, em metafísica, a “carne” inclui todas as
faculdades sensoriais e recognitivas da “alma”.) Se nos pedirem
que olhemos nosso reflexo num espelho, podemos talvez
concluir que lá vemos “nós mesmos”; se formos um pouco
menos ingênuos, consideraremos a imagem da psique refletida
no espelho da mente e entenderemos que é isso que “eu” sou;
ou, num caso ainda mais favorável, compreenderemos que não
somos nenhuma dessas coisas – que elas existem porque nós
somos, e não nós que só existimos na medida em que elas são.
O Vedanta afirma que “eu”, em minha essência, sou tão pouco
afetado por todas essas coisas quanto um dramaturgo é afetado
pela contemplação dos sofrimentos e alegrias daqueles que se
movimentam no palco – neste caso, no palco da “vida” (em
outras palavras, no “campo” ou no “pasto”, considerado como
algo distinto de seu aquilino sobrevidente, o Homem Universal).
Nesse sentido, todo o problema do fim último do homem, de sua
libertação, bem-aventurança ou deificação, se reduz a que ele
não encontre mais a “si mesmo” “neste homem”, mas sim no
Homem Universal, na forma humanitatis, que é independente de
todas as ordens de tempo e não tem princípio nem fim.

Conceba que o “campo” é a roda ou círculo do mundo; que


o trono do Espectador, o Homem Universal, é central e elevado;
e que seu olhar aquilino abarca em todo momento o campo
inteiro (igualmente antes e depois da atualização de qualquer
acontecimento particular), de tal modo que, do seu ponto de
vista, todos os eventos estejam sempre acontecendo. Nossa
tarefa é a de transferir nossa consciência de ser desde a posição
que ocupamos no campo, onde se desenrolam os jogos, até o
pavilhão em que o Espectador, de quem depende todo o
espetáculo, está tranqüilamente refestelado.
Conceba que as linhas retas de visão pelas quais o
Espectador se liga a cada um dos atores, e ao longo das quais
cada ator pode olhar para cima (para dentro) na direção do
Espectador se tiver a visão forte o suficiente, são linhas de força
ou fios através dos quais o mestre de marionetes move os
marionetes para si mesmo (sendo ele a totalidade do público).
Cada um dos atores-marionetes está convicto de sua própria
existência independente; está consciente de si mesmo como um
entre muitos, entre outros que ele vê em seu ambiente imediato
e que distingue pelo nome, pela aparência e pelo
comportamento. O Espectador não vê, nem pode ver, os atores
como estes vêem a si mesmos, de modo imperfeito; pelo
contrário, conhece o ser de cada um deles como realmente é –
não meramente eficaz numa determinada posição local, mas
simultaneamente em todos os pontos da linha de força visual
pela qual o marionete se liga a ele, e sobretudo aquele ponto
aonde todas as linhas convergem e onde o ser de todas as
coisas coincide com o ser em si mesmo. Ali, o ser do marionete
subsiste como uma razão eterna no intelecto eterno – também
chamado de Sol Superno, Luz das luzes, Espírito e Verdade.
Suponha agora que o Espectador vá dormir: quando fecha
os olhos, o universo desaparece e só reaparece quando ele os
abre novamente. A religião chama a abertura do olhos (“Que
haja luz”) de ato de criação, mas a metafísica a chama de
manifestação, fala ou espiração (o brilho, a palavra e o sopro
são uma única e mesma coisa in divinis); a religião chama o
fechamento dos olhos de “fim do mundo”, mas a metafísica o
chama ocultação, silêncio ou despiração. Para nós, portanto,
existe uma alternância, ou seja, evolução e involução. Para o
Espectador central, porém, não há sucessão de acontecimentos.
Ele está sempre desperto e sempre adormecido; ao contrário do
marinheiro que às vezes se senta e pensa e às vezes não pensa,
nosso Espectador se senta e pensa, e não pensa, agora-e-
sempre.
Desenhamos uma imagem do cosmos e do “Olho” que o
sobrevê. Só deixei de dizer que o campo é dividido por muralhas
concêntricas que, por conveniência e não por necessidade,
podem ser concebidas em número de vinte e uma. O Espectador
encontra-se, portanto, a vinte e um graus de distância da
muralha mais exterior que define nosso ambiente atual. A
atuação de cada ator se reduz às possibilidades representadas
pelo espaço entre duas muralhas. Aí ele nasce e aí morre.
Consideremos esse ser nascido, Fulano de Tal, como ele é em si
mesmo e como se acredita ser – “um animal, racional e mortal;
isto eu sei, e isto confesso ser”, como exprime Boécio. Fulano de
Tal não acha que pode se deslocar para a frente e para trás no
tempo a seu bel prazer, mas sabe que fica mais velho a cada
dia, quer o queira, quer não. Por outro lado, concebe que sob
outros aspectos pode fazer o que quiser, desde que não seja
obstaculizado por seu ambiente – por um muro de pedra, um
policial ou os costumes da época, por exemplo. Não percebe que
esse ambiente do qual ele faz parte e do qual não pode escapar
é um ambiente sujeito a uma determinação causal; não percebe
que ele faz o que faz por causa do que já foi feito. Não percebe,
ainda, que ele mesmo é o que é e faz o que faz porque outros,
antes dele, foram o que foram e fizeram o que fizeram, tudo isso
sem nenhum ponto inicial concebível. Ele é literalmente um
produto das circunstâncias, um autômato, cujo comportamento
poderia ser previsto e completamente explicado por um
conhecimento das causas passadas, agora representadas pela
natureza das coisas – a própria natureza dele inclusive. É essa a
conhecidíssima doutrina do karma, uma doutrina da fatalidade
intrínseca, que o Bhagavad Gita (XVIII.20) declara da seguinte
maneira: “Preso pelo funcionamento (karma) de uma natureza
que nasce em ti e é tua, mesmo aquilo que não desejas fazer tu
o fazes, quer o queiras, quer não.” Fulano de Tal nada é senão
um elo numa corrente causal da qual não podemos imaginar um
início nem um fim. Nisto não há nada de que o mais ferrenho
determinista possa discordar. O metafísico – que, ao contrário do
determinista, não é “alguém que acredita que nada mais existe”
(nastika) – limita-se a observar, a esta altura, que somente o
funcionamento da vida, a maneira pela qual ela se perpetua,
pode ser explicado causalmente dessa maneira; que a existência
de uma cadeia de causas presume a possibilidade logicamente
anterior dessa existência – presume, em outras palavras, uma
causa primeira que não pode ser concebida com uma entre
outras causas mediatas, quer no espaço, quer no tempo.
Voltando a nosso autômato, consideremos o que acontece
quando ele morre. O ser composto se desfaz no cosmo; não há
absolutamente nada que possa sobreviver com a consciência de
ser Fulano de Tal. Os elementos da entidade psicofísica se
separam e, como um legado, passam a outros seres. Trata-se,
na verdade, de um processo que já vinha acontecendo no
decorrer da vida de Fulano de Tal e que se pode vislumbrar de
modo mais evidente na propagação da espécie, reiteradamente
descrita na tradição indiana como “o renascimento do pai no
filho e enquanto filho”. Fulano de Tal vive em seus descendentes
diretos e indiretos. É esta, muito simplesmente, a chamada
doutrina indiana da “reencarnação”; é idêntica à doutrina grega
da metassomatose e da metempsicose; é a doutrina cristã de
nossa preexistência em Adão “segundo a substância corporal e a
virtude do sêmen”; e é a moderna doutrina da “recorrência dos
caracteres hereditários”. O simples fato dessa transmissão dos
caracteres psicofísicos nos permite compreender o que significa,
na religião, a herança do pecado original, que a metafísica
chama de herança de ignorância e o filósofo, de nossa
capacidade congênita de conhecer em termos de sujeito e
objeto. É só quando nos convencemos de que nada acontece por
acaso que a idéia de uma Providência se torna inteligível.
Acaso preciso dizer que esta não é uma doutrina da
reencarnação? Preciso dizer que jamais uma doutrina da
reencarnação (segundo a qual o próprio ser e a próprio pessoa
de um homem que já viveu na terra e agora está morto
renascerá de outra mãe terrestre) foi ensinada na Índia, nem
mesmo pelo Budismo – nem pela tradição neoplatônica, nem por
nenhuma outra tradição ortodoxa? Os Brahmanas, com a mesma
veemência do Antigo Testamento, afirmam que aqueles que
partiram deste mundo partiram de uma vez por todas e não
serão mais vistos entre os vivos. Do ponto de vista indiano,
como do platônico, toda mudança é um tipo de morte. Morremos
e renascemos a cada dia e a cada hora, e, “quando chega a
hora”, a morte é só um caso especial desse mesmo princípio.
Não digo que a crença na reencarnação nunca existiu na Índia.
Mas digo que essa crença só pode ter resultado de uma
interpretação errônea, popular, da linguagem simbólica dos
textos; e que a crença dos modernos orientalistas e teosofistas
resulta de uma interpretação igualmente ingênua e mal
informada. Se você pergunta de que modo um tal engano pode
ter surgido, peço que considere as seguintes declarações de
Santo Agostinho e São Tomas de Aquino: que nós estávamos em
Adão “segundo a substância corpórea e a virtude do sêmen”;
que “o corpo humano preexistiu nas obras anteriores em suas
virtudes causais”; que “Deus não governa o mundo diretamente,
mas também por meio de causas mediatas, e, se assim não
fosse, o mundo seria privado da perfeição da causalidade”; que,
“assim como a mãe está prenhe de sua progênie ainda não
nascida, assim também o próprio mundo está prenhe das causas
das coisas não nascidas”; que “o destino reside nas próprias
causas criadas”. Se esses textos tivessem sido extraídos dos
Upanichades ou do Budismo, você não teria, por acaso, visto
neles não só o que eles de fato contêm – a doutrina do karma –,
mas também uma doutrina da “reencarnação”?
“Reencarnação” significa um nascimento, aqui, do próprio
ser e da própria pessoa do morto. Afirmamos que, por razões
metafísicas boas e suficientes, isso é uma impossibilidade. A
razão principal é esta: na medida em que o cosmos abarca uma
gama indefinida de possibilidades, todas as quais devem
realizar-se no decorrer de uma duração igualmente indefinida, o
universo atual terá chegado ao fim quando todas as suas
potencialidades tiverem se reduzido ao ato – assim como cada
vida humana chega ao fim quando todas as suas possibilidades
se exaurem. O fim de uma eviternidade terá chegado,então, sem
deixar nenhum espaço para a repetição de acontecimentos ou a
recorrência de condições passadas. A sucessão temporal é
necessariamente uma sucessão de coisas diferentes. A história
se repete em tipos, mas não pode se repetir nas
particularidades. Podemos falar de uma “migração” dos genes e
denominá-la um renascimento de tipos, mas é preciso distinguir
essa reencarnação do caráter de Fulano de Tal, de um lado, da
“transmigração” de sua verdadeira pessoa, de outro.
Tais são a vida e a morte de Fulano de Tal, animal racional
e mortal. Porém, quando Boécio confessa que não passa de um
desses animais, a Sabedoria responde que Fulano de Tal, o
homem, esqueceu-se de quem realmente é. É neste ponto que
nos separamos daquele que acredita que “nada mais existe”, o
“materialista” e “sentimentalista” (ponho essas duas palavras
entre aspas porque a “matéria” é o objeto do “sentimento”).
Lembremo-nos da definição cristã do homem: “corpo, alma e
espírito”. O Vedanta assevera que o único ser verdadeiro do
homem é espiritual, e que este ser não está “em” Fulano de Tal
nem em alguma “parte” dele, mas somente se reflete nele.
Assevera, em outras palavras, que este ser não se encontra no
plano do campo de existência de Fulano de Tal nem é de
maneira alguma limitado por esse campo, mas se estende desde
esse campo até o centro, sem se deter em nenhuma das
muralhas. O que ocorre na morte, além e acima da dissolução de
Fulano de Tal, é que o espírito se retira do veículo fenomênico
de que fora a única “vida”. É com a mais perfeita precisão,
portanto, que dizemos que a morte é “render o espírito” ou que
Fulano de Tal “expira”. E, de passagem, devo lembrar que esse
“espírito” não o é num sentido espírita, não é uma
“sobrevivência da personalidade”, mas um princípio puramente
intelectual, como aqueles de que são feitos as idéias platônicas;
é “espírito” no mesmo sentido em que podemos falar de um
“Espírito Santo”. Na morte, portanto, o pó volta ao pó e o
espírito volta para sua fonte e origem.
Decorre daí que a morte de Fulano de Tal envolve duas
possibilidades, que são aproximadamente aquelas implicadas
pelas expressões ocidentais “salvo” ou “perdido”. Ou a
consciência de ser de Fulano de Tal esteve sempre centrada
nele mesmo e deve perecer junto com ele, ou então esteve
centrada no espírito e com ele se retira. Como dizem os textos
vedânticos, é o espírito que “sobremanece” quando corpo e
alma se desfazem. Começamos agora a perceber o significado
do grande mandamento “Conhece-te a ti mesmo”. Supondo que
nossa consciência de ser tenha estado centrada no espírito,
podemos dizer que, quanto mais completamente “nos tivermos
tornado o que somos”, quanto mais perfeitamente tivermos
“despertado” antes da dissolução do corpo, tanto mais próximo
ao centro do campo será nosso aparecimento ou “renascimento”
seguinte. Na morte, nossa consciência de ser não vai para
nenhum lugar onde já não esteja de antemão.
Mais adiante consideraremos o caso daquele cuja
consciência de ser já despertou para além de nossas vinte e
uma muralhas ou níveis de referência e para quem só resta uma
vigésima segunda passagem. Por enquanto, consideremos
somente o primeiro passo. Se tivermos dado esse passo antes
de morrer – se já estávamos, em algum grau, vivendo “no
espírito” e não somente como animais raciocinantes –, teremos,
quando do desfazimento da alma e do corpo no cosmos,
transposto a primeira das muralhas ou circunferências que
existem entre nós e o Espectador central de todas as coisas, o
Sol Superno, Espírito e Verdade. Teremos vindo a ser num novo
ambiente onde, por exemplo, talvez ainda haja uma duração,
mas não a passagem do tempo no sentido que ela tem neste
mundo. Não teremos levado conosco nenhum fragmento do
aparelho psicofísico que poderia servir de suporte a uma
memória sensorial. Só as “virtudes intelectuais” sobrevivem.
Não se trata da sobrevivência de uma “personalidade” (que foi
devidamente legada quando partimos); é a continuidade do ser
da própria pessoa de Fulano de Tal, já livre do fardo da mais
grosseira de suas anteriores definições. Teremos passado
adiante, cruzando a primeira muralha, sem nenhuma interrupção
de nossa consciência de ser.
Desse modo, mediante uma sucessão de mortes e
renascimentos, todas as muralhas podem ser transpostas.
Seguiremos o caminho do raio espiritual que nos liga ao Sol
central. Esse caminho é a única ponte que atravessa o rio da
vida, o rio que separa esta margem da outra. Não é à toa que se
usa a palavra “ponte”, pois é este “o caminho elevado mais
agudo que um fio de navalha”, a ponte Cinvat do Avesta, a
“ponte do terror” que os folcloristas conhecem e que só pode
ser atravessada por um herói solar; é uma longa ponte de luz,
consubstancial com o ponto de onde se origina. O Veda o
exprime como “Ele Mesmo, a Ponte” – descrição que
corresponde à frase de Cristo “Eu sou o Caminho”. Você já terá
adivinhado que a passagem dessa ponte, através dos estágios
definidos pelos seus pontos de intersecção com nossas vinte e
uma circunferências, constitui o que se pode chamar uma
transmigração ou regeneração progressiva. Cada passo desse
caminho é marcado pela morte de um “eu” anterior e o
“renascimento” conseqüente e imediato de “outro homem”. A
título de interpolação, devo acrescentar que esta exposição é
inevitavelmente super-simplificada. Distinguimos duas direções
de movimento, uma determinada, no sentido das
circunferências, e outra livre, no sentido centrípeto; mas não
deixei claro que o caminho resultante só pode ser indicado
adequadamente por uma espiral.

Porém, chegou a hora de romper com o materialismo


espacial e temporal de nossa imagem do cosmos e da
peregrinação do homem desde sua circunferência até seu
coração e centro. Todos os estados do ser, todos os Fulanos de
Tais que, segundo nossa concepção, vêm à existência em níveis
de referência sobrepostos – todos estes estão dentro de você, à
espera de serem reconhecidos: todas as mortes e renascimentos
envolvidos são sobrenaturais – isto é, não “contra a Natureza”,
mas extrínsecos às possibilidades particulares de cada estado
de ser de onde, em tese, a transmigração parte. Tampouco está
envolvido um elemento temporal qualquer. Antes, uma vez que
as vicissitudes do tempo não desempenham papel algum na vida
do espírito, a jornada pode ser cumprida, em parte ou no todo,
quer antes da ocorrência da morte natural, quer no momento da
morte, quer depois dela. O pavilhão do Espectador é o Reino dos
Céus dentro de você, no “coração” (que, em todas as tradições
orientais e antigas, não é somente a sede da vontade, mas
também a do intelecto puro, o tálamo onde se consumam as
núpcias do Céu e da Terra); é ali e somente ali que o próprio
Espectador pode ser visto pelo homem contemplativo – cujo
olhar se inverte e percorre assim, do fim ao começo, o caminho
do Raio que liga o olho exterior ao Olho interior, o sopro de vida
à Brisa do Espírito.
Talvez nos seja mais fácil, agora, compreender todo o
sentido das palavras penetrantes do réquiem védico: “O Sol
receba teu olho, a Brisa receba teu espírito”, e reconhecer que
elas equivalem a “Em tuas mãos entrego meu espírito”; ou ao
“olho com qual vejo Deus, que é o mesmo olho com o qual Deus
me vê; meu olho e o olho de Deus são um olho, uma visão, um
conhecimento e um amor”, de Eckhart; ou, ainda, ao “serão um
só espírito” de São Paulo. Os textos tradicionais não deixam
margem a dúvidas. Nos Upanichades, por exemplo, afirma-se
que todo aquele que adora uma divindade concebendo-se como
diferente dela é pouco melhor que um animal. Esta atitude se
reflete no provérbio “para adorares a Deus, tens de te tornares
Deus” – sendo esse também o sentido das palavras “adorar em
espírito e em verdade”. Voltamos assim ao grande dito “Tu és
Isto”, e adquirimos agora uma idéia melhor de o que “Isto”
significa, muito embora nossa compreensão dessa realidade seja
ainda demasiado imperfeita, uma vez que ainda nos resta dar o
último passo. Vemos agora como as doutrinas tradicionais
(distinguindo o exterior do interior, o homem mundano do
transmundano, o autômato do espírito imortal), ao mesmo
tempo em que admitem e até insistem em que Fulano de Tal não
passa de um elo numa corrente causal infinita, podem não
obstante afirmar que as correntes podem ser quebradas e a
morte, derrotada, independentemente do tempo: que isso pode
acontecer, portanto, não só no momento do trespasse ou depois
da morte, mas também aqui e agora.
Porém, nem sequer chegamos ainda àquilo que, do ponto
de vista da metafísica, é definido como o fim último do homem.
Falando do fim do caminho, só pensamos, por enquanto, na
transposição das vinte e uma muralhas e na visão final do Sol
Superno, da Verdade em si; só pensamos na chegada ao próprio
pavilhão do Espectador; em estarmos presentes, no paraíso,
face a face com o Olho manifesto. É essa, com efeito, a
concepção do último fim do homem tal como a vislumbra a
religião. Trata-se de uma bem-aventurança eviterna que se
alcança no “Topo da Árvore”, no “Cume do ser contingente”; é
uma salvação em relação a todas as vicissitudes temporais do
campo que deixamos para trás. Porém, é esse um paraíso em
que cada um dos salvos ainda é um entre outros, cada um deles
diferente do próprio Sol dos homens e da Luz das luzes (sendo
essas expressões não somente védicas, mas também cristãs);
um paraíso que, como o Elísio dos gregos, está fora do tempo
mas dentro dos domínios da duração; um lugar de descanso,
mas não uma morada final (assim como não é tampouco nossa
origem primeira, que se “situa” no não-ser da Divindade). Resta-
nos passar através do Sol e chegar ao Empíreo, à “morada” do
Pai. “Ninguém chega ao Pai senão por meio de mim.” Passamos
pelas portas abertas da iniciação e da contemplação; mediante
um processo progressivo de auto-aniquilamento, passamos do
pátio mais exterior do nosso ser ao mais interior, e agora não
vemos mais caminho algum à nossa frente – conquanto
saibamos que, por trás dessa imagem da Verdade, pela qual
fomos iluminados, existe algo que não tem imagem; conquanto
estejamos cientes de que, por trás dessa face de Deus que
brilha sobre o mundo, há uma outra face, mais terrível, que não
olha para o homem, mas volta-se unicamente para si mesma –
um aspecto que não conhece nem ama absolutamente nada
exterior a si mesmo. É nossa própria concepção da Verdade e do
Bem que nos impede de ver Aquele que não é verdadeiro nem
bom em nenhum sentido concebível. O único caminho que nos
levará adiante passa através de tudo o que pensamos que
tínhamos começado a compreender: para entrarmos, a imagem
de “nós mesmos” que ainda acalentamos – por exaltada que
seja – e a imagem da Verdade e do Bem que “imaginamos” per
excellentiam devem ser despedaçadas, as duas de um só golpe.
“É necessário que a alma perca Deus, mais que ela perca as
criaturas [...] a alma mais honra a Deus quando se livra de Deus
[...] resta-lhe ser algo que Ele não é [...] morrer para toda
atividade denotada pela natureza divina, para que possa entrar
na divina natureza onde Deus é completamente ocioso [...] ela
abandona seu próprio ser e, seguindo seu próprio caminho, já
não busca Deus” (Eckhart). Em outras palavras, temos de ser
um com o Espectador, tanto quando tem os olhos abertos como
quando os tem fechados. Se não formos, o que será de nós
quando ele dormir? Tudo quanto aprendemos pela teologia
afirmativa deve ser complementado e cumprido por uma espécie
de Não-Saber, a Douta Ignorância dos teólogos cristãos, a
agnosia de Eckhart. É por isso que homens como Shankara e
Dionísio insistiram tanto na via remotionis, e não porque um
conceito positivo da Verdade ou do Bem era menos caro a eles
do que é a nós. Com efeito, diz-se que a prática pessoal de
Shankara era devocional – ao mesmo tempo em que ele pedia
perdão por adorar a Deus chamando-o por um nome, a Ele que
não tem nome. Homens como esses não tinham absolutamente
nada de precioso que não estivessem dispostos a abandonar.
Enunciemos primeiro a doutrina cristã, para melhor
compreender a indiana. São estas as palavras de Cristo: “Eu sou
a porta; todo aquele que entrar por mim será salvo; entrará, e
sairá.” Não basta ter chegado à porta; precisamos ainda que nos
deixem entrar. A entrada, porém, tem um preço. “Quem quiser
salvar a sua alma, que a perca.” Dos dois “si mesmos” do
homem, os dois Átmans dos textos indianos, aquele que era
conhecido pelo nome de Fulano de Tal deve matar a si mesmo
para que o outro esteja livre de todos os fardos – “livre como a
Divindade em sua não-existência”.
Também nos textos vedânticos é o Sol dos homens e a Luz
das luzes que é chamado portal dos mundos e guardião da
porta. Todo aquele que chega até aí é posto à prova. O Guardião
lhe diz, em primeiro lugar, que poderá entrar segundo a
ponderação do bem e do mal que tiver feito. Se o peregrino for
um homem de entendimento, responderá: “Não podes me pedir
isto; sabes que tudo quanto ‘eu’ fiz não fui ‘eu’ quem fiz, mas
Tu.” Essa é a Verdade; e o Guardião da Porta, que é ele mesmo
a Verdade, não pode negar a si mesmo. Também se lhe pode
propor a pergunta: “Quem és tu?” Se ele responder pelo próprio
nome ou por um nome de família, será literalmente arrastado
dali pelos fatores do tempo; mas se responder “Sou a Luz, Tu
mesmo, e como tal venho a Ti”, o Guardião lhe responderá com
as palavras de boas-vindas: “Quem tu és, eu sou; e quem eu
sou, tu és. Entra, pois.” Deve estar claro, a esta altura, que
ninguém que ainda seja “alguém” pode retornar a Deus, pois,
como dizem nossos textos, “Ele não veio de lugar algum, nem se
tornou pessoa alguma”.
Do mesmo modo, Eckhart, baseando suas palavras no
logos “se o homem não odiar pai e mãe, [...] se não odiar até
mesmo sua própria alma, não pode ser meu discípulo”, afirma
que “enquanto conheceres quem foram teu pai e tua mãe no
tempo, não estarás morto com a morte verdadeira”; e, ainda do
mesmo modo, Rumi, equivalente muçulmano de Eckhart, atribui
estas palavras ao Guardião da Porta: “A quem quer que entre
dizendo ‘Sou Fulano de Tal’, bato-lhe na cara.” Com efeito,
nenhum definição dos textos védicos é tão boa quanto as
palavras de São Paulo: “A palavra de Deus é viva, eficaz, mais
penetrante que uma espada de dois gumes, e atinge até a
separação da alma e do espírito”: “Quid est ergo, quod debet
homo inquirere in hac vita? Hoc est ut sciat ipsum.” * “Si ignoras
te, egredere!” **
O último problema, e o mais difícil, surge quando
perguntamos: qual é o estado do ser que, desse modo, libertou-
se de si mesmo e voltou à sua origem? É mais que óbvio que
uma explicação psicológica está fora de questão. Com efeito, é
bem a esta altura que, acompanhando nossos textos, podemos
confessar: “Aquele que tem mais certeza de compreender, mais
certamente não compreende.” O que se pode dizer do Brahman
– que “Ele é, unicamente por isto pode Ele ser apreendido” –
também se pode dizer de quem se tornou o Brahman. Não se
pode dizer o que isto é, pois não se trata de um “quê”. O ser
“liberto nesta vida” (o “morto ambulante” de Rumi) “está no
mundo, mas não é do mundo”.
Podemos, não obstante, abordar o problema considerando
quais os termos usados para designar os Perfeitos. Eles são
chamados Raios do Sol, Rajadas do Espírito e Aqueles que Vão
Aonde Querem. Diz-se também que estão aptos a encarnar-se
em todos os mundos manifestados: ou seja, aptos a participar da
vida do Espírito quer ele se mova, quer permaneça em repouso.
São um Espírito que sopra onde quer. Todas essas expressões
correspondem à do Cristo: “entrará, e sairá, e encontrará
pastagens”. Podemos também compará-los com o peão no jogo
de xadrez. Quando o peão passa desta à outra margem, ele se
transforma. Torna-se um ministro e vai aonde quer. Morto para
seu eu anterior, já não está limitado por movimentos e posições
determinadas, mas pode entrar e sair à vontade do lugar onde
sua transformação se efetuou. Essa liberdade de movimento é
outro aspecto do estado dos Perfeitos, mas está além da
concepção daqueles que ainda são meros peões. Pode-se
observar também que o ex-peão, embora corresse o perigo
inevitável de morrer em sua jornada de um lado a outro do
tabuleiro, depois de transformado é livre para sacrificar-se ou
escapar do perigo. Em termos rigorosamente indianos, seus
anteriores movimentos foram uma travessia; seus movimentos
depois da regeneração são uma descida.
A questão da “aniquilação”, tão solenemente discutida
pelos eruditos ocidentais, sequer se coloca. Essa palavra não
tem sentido na metafísica, que só conhece a não-dualidade da
permutação e da identidade, da multiplicidade e da unidade.
Tudo aquilo que já foi uma razão eterna, uma idéia ou um nome
de uma manifestação individual não pode jamais deixar de sê-lo;

*
“O que é, pois, que o homem deve investigar nesta vida? Deve conhecer a si
mesmo.” (N. do T.)
**
“Se não sabes quem és, vai-te!” (Cântico dos Cânticos, I, 7). (N. do T.)
o conteúdo da eternidade não muda. Portanto, como diz o
Bhagavad Gita, “Nunca eu não existi, e nunca tu não exististe.”
A relação de identidade entre “Isto” e “tu” no logos “Tu és
Isto” é expressa no Vedanta por designações como “Raio do Sol”
(implicando filiação) ou pela fórmula bhedâbheda (cujo sentido
literal é “distinção sem diferença”). É expressa pelo símile dos
amantes, abraçados tão de perto que já não têm consciência de
“dentro ou fora”, e pela equação que fazem os vaishnavas * :
“Cada um é ambos.” Expressa-se também na concepção
platônica da unificação do homem interior e do homem exterior;
na doutrina cristã da participação no corpo místico de Cristo; na
frase “quem quer que esteja unido ao Senhor é um espírito”; e
na fórmula admirável de Eckhart, “fusão sem confusão”.

Procurei deixar claro que a chamada “filosofia” do


Samkhya não é uma “investigação”, mas uma “explicitação”;
que, para o vedantista ou qualquer outro tradicionalista, a
Verdade última não é algo a ser descoberto, mas algo que cada
homem, com seu trabalho pessoal, deve compreender. Do
mesmo modo, procurei explicar o que Shankara entendia em
textos como o do Atharva Veda, X.8.44: “Sem necessidades,
contemplativo, imortal, originado de si mesmo, satisfeito com
sua quintessência, sem que absolutamente nada lhe falte:
aquele que conhece este Espírito constante, sem idade e sempre
jovem, conhece com efeito a Si Mesmo e não tem medo de
morrer.”

*
Aqueles para quem Vishnu representa a divindade suprema. (N. do T.)

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