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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNANBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

XIRÉ ADE

O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O

TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

Florilton Tabosa Jr

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós- Graduação em Com unicação da
Universidade Federal de Pernam buco
com o requisit o parcial para obt enção de
t ít ulo de Mest re, sob a orient ação da
Profa. Dra Ângela Freire Prysthon.

Recife, julho 2004


PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
XIRÉ ADE:
O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNANBUCO


CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

XIRÉ ADE

O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O

TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

Florilton Tabosa Jr

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PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
XIRÉ ADE:
O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

Tabosa Júnior, Florilton


Xiré Ade : o olhar de Pierre Verger sobre o
travestismo no carnaval brasileiro / Florilton Tabosa
Júnior. – Recife : O Autor, 2004.
94 folhas : il., fotos.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal


de Pernambuco. CAC. Comunicação Social, 2004.

Inclui bibliografia.

1. Comunicação social – Identidade nacional. 2.


Carnaval – Identidade masculina – Travestismo. 3.
Pierre Verger – Fotografia – Cultura popular I. Título.

77.044 CDU (2.ed.) UFPE


778.9 CDD (20.ed.) BC2004-379

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______________________________________________

Orientadora – Profa Dra Angela Freire Prysthon

______________________________________________

Examinador Interno – Prof Dr Paulo Cunha

______________________________________________

Examinador Externo – Profa Dra Maria do Carmo Nino

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Quem é ateu e viu milagres como eu

Sabe que os deuses sem Deus

Não cessam de brotar, nem cansam de esperar

E o coração que é soberano e que é senhor

Não cabe na escravidão, não cabe no seu não

Não cabe em si de tanto sim

É pura dança e sexo e glória, e paira para além da história

Oju- obá ia lá e via

Oju- obahia

Xangô manda chamar Obatalá guia

Mamãe Oxum chora lagrimalegria

Pétalas de Iemanjá Iansã- Oiá ia

Ojuobá ia lá e via

Ojuobahia

Obá

É no xaréu que brilha a prata luz do céu

E o povo negro entendeu que o grande vencedor

Se ergue além da dor

Tudo chegou sobrevivente num navio

Quem descobriu o Brasil?

Foi o negro que viu a crueldade bem de frente

E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente

Ojuobá ia lá e via

Ojuobahia

(Milagres do povo – Caetano Veloso)

Ojú- Obá, significa “Olho que vê”.

Este era um dos nomes

pelos quais Fatumbi era chamado

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Para as mulheres da minha vida:


minha mãe por me ensinar tudo e
minha irmã caçula por me fazer aprender

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Agradecimentos

A Deus, por absolutamente tudo e, sobretudo, pela esperança.

A minha família, pelo impossível...

A Daniel, pelo companheirismo, cumplicidade; pelo apoio fundamental.

A minha orientadora, por todas as horas...


“o nosso amor a gente inventa... ”
(que Alfredo não leia! rs)

A Fundação Pierre Verger (TODOS!), que foi de fundamental


importância para a realização deste trabalho,
desde a acolhida ao envio do material.
Muitíssimo obrigado!

A Tiné, Janaína, Ana Luiza, Maria do Carmo

A Janaína Freire, pela luz no caminho...

A Rodrigo Carrero, foi massa te encontrar no caminho...

A Cláudia e Zé Carlos, sem vocês... sei não, viu?

Aos amigos, todos!

Aos meus alunos, todos!

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Resumo

A dissert ação busca invest igar t raços da ident idade nacional na obra
fot ográfica de Pierre Fat um bi Verger. Ela t om a com o obj et o de est udo
fot os realizadas na década de 40, período de int ensa reflexão sobr e a
br asilidade. Alguns dos negat ivos apresent ados na dissert ação
perm aneceram inédit os. O recort e feit o privilegia o t ravest ism o no
carnaval como forma de discutir o caráter sexual do brasileiro por meio
da fest a que m uit as vezes se confunde com nós m esm os. O int eresse
por esta produção ganha relevância quando se pensa que grande parte
do acer vo foi preparada para um a das revist as m ais im port ant es na
hist ória da im prensa brasileira: O Cruzeiro. Em m issão pela revist a, o
olhar est rangeiro de Verger saiu país afora, docum ent ando t raços da
cult ura popular, t ipos hum anos, aspect os religiosos, e t udo que dizia
respeit o ao car át er nacional. Sua obr a sobr e o Br asil nunca foi
t ot alm ent e publicada, apesar de m uit a coisa t er sido veiculada nas
páginas da r evist a e t ant as out ras edit adas em alguns livros. Nem
sempre é fácil encontrar a identidade brasileira na produção de Verger.
Nos vem os, incondicionalm ent e, nas fot ografias, m as o cort e de t em po
e espaço existe e muitas vezes nos afasta do objeto ali presente.

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Abstract

The work searchs t o invest igat e t r aces of t he nat ional ident it y in t he


photographic workm anship of Pierre Fat um bi Verger. I t t akes as st udy
obj ect phot os carried t hrough in t he decade of 40, period of int ense
reflect ion on t he brasilit y. Som e of t he negat ives present ed in t he
st udy had r em ained unknow n. The done clipping privileges t he
t ravest ism in t he carnival as form t o argue t he sexual charact er of t he
Brazilian by m eans of t he part y t hat m any t im es if confuses w it h we
ourselves. The int erest for t his product ion gains relevance when if it
t hinks t hat gr eat part of t he quant it y w as prepar ed for one of t he
m agazines m ost im port ant in t he hist ory of t he Brazilian press: O
Cruzeiro. I n m ission for t he m agazine, t he for eign look of Verger left
count ry m easur es, regist ering t r aces of t he popular cult ure, hum an
t ypes, religious aspect s, e ever yt hing t hat said respect t o t he nat ional
charact er. I t s workm anship on Brazil never t ot al w as published,
alt hough m uch t hing t o have been propagat ed in t he pages of t he
m agazine and as m uch edit ed ot hers in som e books. Nor always it is
easy t o find t he Brazilian ident it y in t he product ion of Verger. I n w e
see t hem , uncondit ionally, in phot ographs, but t he cut of t im e and
space exist s and m any t im es in m ove aw ay t hem from t he t here
present object.

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Sumário

Introdução 11

Capítulo 1- Primeiros passos 16

1.1 Considerações para uma análise da fotografia


de Verger 16
1.2 De como veio parar no Brasil 17
1.3 O Cruzeiro 20
1.4 O olhar da fotografia 21
1.5 Nós diante do espelho 23
1.6 Os passos da análise 24
1.7 A narrativa e o corte identitário 26
1.8 As peças do jogo 28

Capítulo 2 - Algumas considerações sobre identidade 30

2.1 A identidade brasileira 34


2.2 A identidade sexual brasileira 48
2.3 Enfim, brasileiros 52
2.4 O dilema brasileiro 53

Capítulo 3 - a folia no olhar, o carnaval flagrado 57


3.1 Origens do Carnaval 58
3.2 A festa brasileira 59
3.3 Carnaval e o dilema brasileiro 72
3.4 Sobre o travestismo 73
3.5 Masculinidade em xeque? 86

Conclusão 90

Bibliografia 92

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Introdução

Desde 2002, face a com em oração do cent enário de seu


nascim ent o, a obra de Pierre Fat um bi Verger t em ganhado um a
considerável visibilidade dent ro do cenário m idiát ico e edit orial
br asileiro. Som ent e de aut oria do próprio Verger são cerca de 120
t ít ulos no m ercado, ent re art igos cient íficos e livros. Nest e int ervalo de
dois anos, duas biografias for am lançadas t am bém por ocasião das
fest ividades. Dent re os t ít ulos m ais evidenciados est ão Or ixás, os
Deuses I orubás na África e no Novo Mundo; Ret rat os da Bahia, 1946-
1952; Lendas Africanas dos Orixás; Fluxo e Refluxo do Tráfico de
Escravos ent re o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Sant os, dos
Séculos XVII a XIX.
Est e est udo é um t rabalho sobre a am bigüidade e ut opia
ident it ária vivida no Brasil na década de 40. Ele vem se colocar na
busca pela com preensão da ident idade nacional brasileira pelo recor t e
da produção feit a por Verger sobre o t ravest ism o no carnaval. É por
isso que ele que cham a “ Xir é Ade” ( do ioruba xiré=festa;
Ade=afeminado). É a propost a de um viés sobr e a m asculinidade
br asileira pelo prism a do olhar est rangeiro. Pode o olhar est r angeiro
compreender uma identidade que não é a sua?
O est udo da crise nas ident idades nacionais t em se t ornado um a
obsessão nas sociedades cont em porâneas. Vár ios t eóricos t êm
discut ido o t em a frent e ao processo de m undialização da cult ura, que,
sist em at icam ent e visa a quebra das front eiras em prol de um padrão
híbrido cult ural que deixaria o suj eit o no que Hom i Bhabha cham a de
entrelugar. Segundo Angela Prysthon,
“ O ent relugar seria, port ant o, um espaço- t em po em essência
periférico, seria o palco por excelência par a encenar os
m últ iplos em bat es polít ico- cult urais da cont em - poraneidade.
A part ir da delim it ação desse espaço/ t empo- m últ iplo do

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ent r elugar, fica claro que um a vert ent e im por t ant e no


discurso da t eoria cr ít ica da cult ura t em sido a t em at ização
do descent ram ent o ident it ário ocorrido na pós- modernidade.
Um dos clichês m ais recorrent es da t eoria cont em porânea
parece ser o da quebra das identidades (sejam elas culturais,
nacionais ou mesmo individuais)” 1 .

Mais adiante ela contextualiza:

“ O Est ado Híbrido passa a denom inar o carát er m últ iplo da


cult ura cont em porânea m undial, em especial a de regiões
m arcadas pela exist ência de várias ident idades ou “ origens” :
am eríndia, européia, africana, asiát ica...; várias
t em por alidades: pré- indust rial, m oderna, t ecnológica; e pela
possibilidade de abolição das fr ont eiras ent re cult ura erudit a,
popular e de massas.”2 .

Na década de 40, o pensamento sociológico sobre a formação da


ident idade brasileira obedecia a ót ica elit ist a e pat riarcalist a de
Gilbert o Freyr e, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Pr ado Jr. Verger
t eria sido “ cont am inado” por est es olhar es? Com o verger vê o hom em
brasileiro? Com o a obra de Fat um bi dialoga com o pensam ent o
ant ropológico de int elect uais divergent es àquelas t eorias, com o
Robert o DaMat t a e Darcy Ribeiro? Est as quest ões são de ext rem a
relevância post o que apesar de descent ralizadas as ident idades
híbridas m antêm um grau ( ainda que esquizofrênico) com um a
im agem nacional com um . Para chegar a um lugar concret o é preciso
ainda saber: o carnaval reflet e o carát er brasileiro? Verger capt a esse

1
PRYSTHON, Ângela. Margens do mundo: a periferia nas teorias do contemporâneo. Trabalho
apresentado no Núcleo de Teorias da Comunicação, XXVI Congresso Anual em Ciência da
Comunicação, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003. site:
http://intercom.locaweb.com.br/papers/congresso2003/pd f/2003_NP01_prysthon.pdf , em
25/07/04. Pág 4.
2
Idem. Pág 5.

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reflexo? As brincadeiras de t r avest im ent o no carnaval j á apont am um


reflexo da crise do patriarcalismo atingindo o homem brasileiro?
Part im os do pr essupost o que im agens são “ art efat os cult urais” .
Como afirma Novaes em seu artigo “O uso da imagem na Antrpologia”,
t oda a produção im agét ica perm it e a r econst rução da hist ória cultural
de grupos sociais e o ent endim ent o dos processos de m udança social,
do im pact o das frent es econôm icas e da dinâm ica das relações
interétnicas.
“ Arquivos de im agens e im agens cont em por âneas colet adas em
pesquisa de cam po podem e devem ser ut ilizados com o font es
que conect am os dados à t r adição or al e à m em ória dos grupos
est udados. Assim , o uso da im agem acrescent a novas
dim ensões à int erpret ação da hist ória cult ural, perm it indo,
aprofundar a com preensão do universo sim bólico, que se
exprim e em sist em as de at it udes por m eio dos quais grupos
sociais se definem , const roem ident idades e aprendem
m ent alidades. Não é m ais aceit ável a idéia de se r elegar a
im agem a segundo plano nas análises dos fenôm enos sociais e
culturais” 3 .

Em alguns est udos, a im agem serve, fundam ent alm ent e, para
t ransm it ir o que não é possível no cam po lingüíst ico. É im port ant e
salient ar t am bém que, m uit as vezes, não nos apercebem os da nossa
relação com as im agens e com o elas nos influenciam cult uralm ent e.
Revist as com o “O Cruzeiro” e “ Manchet e” , pelo seu car át er
est rit am ent e ilust rat ivo, foram de sum a im port ância par a a const rução
da imagem do brasileiro.
“ Estas imagens não falam por si sós, mas expressam e dialogam
const ant em ent e com m odos de vida t ípicos da sociedade que as
produz. Nest e diálogo elas se r eferem a quest ões cult urais e
polít icas fundam ent ais, expressando a diversidade de grupos e

3
NOVAES, Sylvia Caiuby. O Uso das imagens na antropologia. IN: O fotográfico. SAMAIN,
Etienne. São Paulo, SP: Hucitec, 1998. 113-119. pág 116.

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ideologias pr esent es em det erm inados m om ent os hist óricos. Por


m eio da análise dessas im agens, podem os t am bém m elhor
ent ender as m udanças e t ransform ações por que passar am os
diferent es grupos sociais e as t endências art íst icas que inspir am
tais imagens”4 .

É reificado cult uralm ent e que a fot ografia, pelo seu gr au de


associação com o obj et o, sej a um subst it ut o im aginário do real. Com o
diria Kossoy, um “ subst it ut o port át il” , onde som os personagens e
guardam os nossas experiências de vida. A fot ografia funciona com o
um passado preservado, um m om ent o congelado e et ernizado.
Cont udo, é preciso olhá- la sem os equívocos de t rat á- la apenas com o
um ícone ou índice. A fot ografia é um discurso elaborado a part ir de
fat ores cult urais, est ét icos e t écnicos. A com preensão da fot ografia só
se dá m ediant e a relevância do ent endim ent o do processo de
const rução da represent ação. O sent ido da im agem só se dá m ediant e
a nossa interpretação.
Dividirem os nosso cam inho em t rês et apas. Na prim eir a, vam os
eleger parâm et ros para analisar a docum ent ação dos t raços da cult ura
popular, t ipos hum anos, aspect os religiosos, e t udo que diga respeit o
ao carát er nacional na obra de Verger. Tent arem os ent ender o
cont ext o em que ele chegou ao país e com o com eçou a pr oduzir seu
m at erial iconográfico. Adot arem os, em seguida, alguns procedim ent os
básicos de análise da im agem par a com eçarm os a r econhecer nos
quadros o nosso rosto.
A segunda et apa consist e em t rilhar os cam inhos que levam a
const rução da ident idade m asculina brasileira. Tom am os com o pont o
de part ida o processo de colonização. As est rut uras adot adas pela
sociedade br asileira em consonância com os valores fom ent ados pela
metrópole européia t erm inam por inst it uir o pat riarcalism o em nosso
m eio. Essa est rut ura form ou o perfil de dom inação do “ m acho, adult o,

4
Idem. Pág 116-117.

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br anco, sem pre no com ando” e est ipulou os papéis sócio- sexuais.
Como Verger retratou essa situação?
Frent e ao esboço de nosso ret rat o, ent ram os na últ im a et apa da
cam inhada. Vam os pint ar nosso rost o com as cores do carnaval.
Traçar em os um hist órico da fest a no Brasil e pont uarem os a presença
m asculina nele, bem com o os valores ident it ários nacionais e sexist as
presentes nas fotografias de Verger sobre o carnaval brasileiro.
A seleção das fot ogr afias apresent adas nest e est udo se fez
diret am ent e na sede da Fundação Pierre Verger ( FPV) , em Salvador. A
Fundação foi criada pelo próprio Verger em 1988 e m ant ém em seu
acervo cerca de 62 m il negat ivos do fot ógrafo. Grande part e dest as
im agens foi colhida em suas viagens por t odo o m undo com o repórt er
fot ográfico. Vale salient ar que som ent e sobr e o Brasil o acervo reúne
cerca de set e m il im agens. No processo selet ivo, foram apreciadas
cerca de três mil imagens obedecendo a sistemática de classificação do
próprio fot ógrafo, ou sej a, por ordem geográfica. O est udo, ao
cont em plar o carnaval com o viés const it ut ivo da ident idade nacional
br asileira, ficou cent rado na produção realizada sobr e as cidades do
Rio de Janeiro, Salvador e Recife. A fest a prom ovida nas ruas dest as
cidades foi bastante explorada pelas lentes do francês na década de 40
e, at é hoj e, const it uem pólos de r eferência int ernacional sobre o
event o. O principal crit ério adot ado foi o de prest igiar as im agens que
m elhor represent assem o car át er da m asculinidade brasileira de form a
atemporal e que apresentassem um determinado grau de ineditismo.

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Ca pítulo 1

Primeiros passos

1.1 Considerações para uma análise da fotografia de


Verger

Além de ser um dos m ais renom ados fot ógrafos do m undo,


Pierre Verger é, sobret udo, um brasileiro por adoção. Ou m elhor, por
escolha própria. Nascido na Fr ança em 1902, ele percorr e o m undo
int eiro com o repór t er fot ográfico depois de perder o últ im o de seus
parent es vivos, sua m ãe, em 1932. Durant e um a de suas viagens pela
Am érica do Sul, Ver ger chega, em 1946, ao Br asil. Apaixona- se pelo
país e cria laços que o prenderiam at é fevereiro de 1996, quando
morre de senilidade na casa em que vivia em Salvador.
O caso de am or ent re Verger e o Brasil result ou num pr ecioso
tesouro para os dois. O fotógrafo descobriu aqui seu objeto de reflexão
científico- filosófico, est udado ao longo de 50 anos: t r aços africanos da
m iscigenada cult ura brasileira, em part icular o candom blé. Por out ro
lado, a nação ganhou um dos m ais com plet os acervos fot ográficos j á
feit os sobre si. Est a obr a revela não som ent e um ret r at o afro-
descendent e do ser brasileiro, m as sobret udo t r aços da ident idade
nacional raramente abordados em trabalhos deste tipo.
O int eresse por est a produção ganha relevância quando se
pensa que grande part e do acer vo foi pr eparada par a um a das r evist as
m ais im port ant es na hist ória da im pr ensa brasileira: O Cruzeiro. Em
m issão pela r evist a, Verger saiu país afora, docum ent ando t raços da
cult ura popular, t ipos hum anos, aspect os religiosos, e t udo que dizia
respeit o ao car át er nacional. Sua obr a sobr e o Br asil nunca foi
t ot alm ent e publicada, apesar de m uit a coisa ter sido veiculada nas
páginas da revist a e t ant as out ras edit adas em alguns livros. O
result ado dist o são m ilhares de negat ivos inédit os, esperando por
iniciativas de impressão.

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Nem sem pre é fácil encont rar a ident idade brasileira5 e


masculina na produção feit a por Verger sobre o nosso carnaval. Nos
vem os, incondicionalm ent e, nas fot ografias, m as o cort e de t em po e
espaço exist e e m uit as vezes nos dist ancia do obj et o ali present e.
Como nos fala Joly,
“ de fat o, reconhecer est e ou aquele m ot ivo nem por isso
significa que se est ej a com pr eendendo a m ensagem da im agem
na qual o m ot ivo pode t er um a significação bem part icular,
vinculada t ant o a seu cont ext o int erno quant o ao do seu
surgimento, às expectativas e conhecimentos do receptor” 6 .

Est e exercício de invest igação nos deixa com um a enor m e


responsabilidade, pois com preender o que est as fot ografias nos dizem
at ualm ent e é um grande desafio de descobert a ident it ária. Nest a
empreit ada, é necessário est ar at ent o par a saber dist inguir o que
det erm inada im agem nos fala em colet ivo ( ident idade) e o que fala em
particular ( proj eção pessoal) . É cert o que nossas int erpret ações serão
perm eadas por refer enciais cont em porâneos, diver gindo m uit as vezes
das int erpret ações ou leit uras suscit adas na época. É encontrar um
caráter ao mesmo tempo atemporal e radical.

1.2 De como veio parar no Brasil

Ant es de ficar definit ivam ent e no Br asil, em 1946, Pierre


Édouard Léopold Ver ger j á havia passado rapidam ent e pelo Brasil por
duas vezes. A prim eira foi em j unho de 1939, no Rio de Janeiro, em
busca de docum ent ação para at ender ao cham ado do exércit o francês
em ocasião da Segunda Guerra Mundial.A segunda foi t am bém no Rio
de Janeiro, em novembro de 1940, ficando até depois do carnaval.

5
Vamos tratar mais detalhadamente das questões constitutivas da identidade nacional em outro
momento. Aqui, nos ateremos a questão da fotografia e de seu método de análise.
6
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 1996. 6ª ed. pág 42.

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Em 16 de abril de 1946, depois de passar por Corum bá, Ver ger


chega a São Paulo, onde vai encont r ar um cont errâneo seu. Est e
encont ro m arcaria definit ivam ent e sua t raj et ória, pois inaugur aria um a
nova ( das out ras m uit as) fases da sua vida. O cont errâneo era
ninguém m ais que Roger Bast ide ( 1898- 1974) , subst it ut o da vaga do
ant ropólogo Claude Lévi- St r auss com o professor da cát edra de
Sociologia do Depart am ent o de Ciências Sociais da Universidade de
São Paulo. Foi Bast ide quem prim eiro falou da Bahia par a Verger,
convencendo- o a seguir viagem para lá, dando- lhe indicações de
algumas pessoas a serem procuradas.
Par a ficar no Br asil, Verger precisava r esolver sua sit uação de
est rangeiro. Sendo assim , part iu em seguida par a o Rio de Janeiro,
onde resolveu o problem a de sua perm anência e foi procurar Vera
Pacheco Jordão, um a am iga brasileira do int elect ual francês Alfred
Métraux. Mét raux er a am igo de Verger de longa dat a. Vera foi o canal
para que o fot ógrafo t erm inasse por firm ar um cont rat o, em 8 de j ulho
de 1946, com a m aior revist a do país, O Cruzeiro. Na época, Verger j á
era um renom ado fot oj ornalist a e Assis Chat eaubriand er a o dono da
revist a. Chat eaubriand t endo out ro grande profissional no m esm o
núcleo de redação e sabendo dos planos do francês de ir para a Bahia,
o m andou par a Salvador com cart a branca para fazer fot os sobre a
região Nordeste.
O francês chega à Salvador em 5 de agost o de 1946. Desde os
prim eiros t em pos, Verger criou laços fort es de afet ividade com a
Bahia. No escrit ório de seu diret or na sucursal da r evist a, Odorico
Tavares, ele logo se inseriu num grupo de int elect uais que se reunia
por lá. Dentre eles: Mário Cravo Júnior, Jorge Amado, Dorival Caymmi,
Carybé, ent re out r os. Esse convívio, com cert eza, lhe rendeu um bom
entendimento da cultura baiana e nordestina.
Em cerca de um ano, Verger r ecolhe um vast o m at erial
docum ent al do cot idiano de Salvador, Recife e suas redondezas, do
sert ão nor dest ino e das regiões ribeirinhas do São Fr ancisco. No
acervo dest a época, est ão suas fot os do carnaval de Per nam buco

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( 1947) , que ret rat am a pluralidade da fest a com seus vários rit m os e
rit uais. Aliás, Pernam buco foi um a grande refer ência para Ver ger. Da
prim eira vez que veio, som ent e para docum ent ar o carnaval, ficou
pouco m ais que alguns dias. No m ês de m aio, volt ou à capit al
pernam bucana e ficou at é out ubro. Com o correspondent e de O
Cruzeiro, fez várias report agens sobre cult ura ao lado de Gilbert o
Freyre.
Foi em recife que ele produziu seus prim eiros docum ent os sobre
as cerim ônias de candom blé. Para t ant o, cont ou com a aj uda de René
Ribeiro, m édico psiquiat ra pernam bucano que pesquisava o viés
antropológico dos terreiros de Xangô no Recife.
Durant e sua perm anência no est ado, Verger viveu ent r e gent e
hum ilde, docum ent ando o cot idiano dos lugar es que conhecia. Ele
fot ografa o Xangô Rosendo, o bum ba- meu- boi, o port o e o bairro do
cent ro da cidade e os bairr os populares da periferia. Ent re seus
t rabalhos, est á um a cent ena de fot os do Circo Nerino, em Casa
Am arela. A produção cont em pla desde a m ont agem da lona e das
arquibancadas at é o espet áculo. Fez t am bém viagens ao int erior do
est ado par a fot ografar a plur alidade cult ural do mesmo. Passou por
Vitória de Santo Antão, Caruaru, Bom Nome, Garanhuns, entre outras.
Sobre este período ele relata:
“ est abelecer relações am ist osas num m eio em que ant es eu
apenas havia me aproxim ado sem nele penet rar. Um a
performance difícil para um filho de ‘burguês’ europeu. Tornei-
m e am igo de gent e de condição bem m odest a e num pé de
igualdade bast ant e sat isfat ório. Est a am izade nasceu durant e
uma viagem sobre a carga de um caminhão, por ocasião de uma
excursão ao int erior de Pernam buco. São carregadores negros,
int egrant es de um bum ba- meu- boi. Divert idos, est es beberrões
em gr ande est ilo m e lem bram os bufões da nossa idade m édia”.
(APUD NÓBREGA)

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O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

A cidade parece que deu m uit a sort e a Verger. Foi nela que ele
conheceu um navegador fr ancês ( nom e não inform ado) , da
Aerospat iale, que orient ava os aviões da rot a Dakar ( África) e Recife.
Verger ent rega ao navegador fot os e um a cart a par a Théodore Monod,
diret or do I FAN ( I nst it ut Fr ançais d’Afrique Noir e) , em que o quest iona
sobre a origem dos cult os afro- brasileiros. A respost a de Monod, foi
um convit e a pesquisar no cont inent e africano est es aspect os, o que,
ao aceit ar, deu a Verger um a nova condição: a de et nólogo. Daí para
fr ent e, não parou m ais de pesquisar e publicar art igos e livros sobre a
relação África- Brasil- África. O pont o alt o de sua produção é o est udo
que lhe deu o t ít ulo de dout or pela École Prat ique de Haut es Ét udes,
cham ado “ Flux et reflux de la t rait e dês nègres ent r e lê Golfe de Benin
at Bahia de t odos os sant os, du dix- sept ièm e au dix- neuvièm e siècle”.
A obra foi publicada post eriorm ent e no Brasil pela edit or a Corrupio
com o t ít ulo Fluxo e refluxo do t r áfico de escravos ent r e o Golfo de
Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX.

1.3 O Cruzeiro

O Cruzeiro foi um dos m eios de com unicação de m assa m ais


importantes do século XX no Brasil. Lançada no Rio de Janeiro, no final
dos anos 20 por Assis Chat eaubriand, inaugurou a ilust ração com o
um a det erm inant e em sua linha edit orial. Foi um a revolução na
imprensa br asileira. Dent r e out ras inovações, a revist a t razia, por
exem plo, desde o seu prim eiro núm er o ao lado de cada t ext o o t em po
m édio de leit ur a a ser ut ilizado na report agem . I sso dem onst ra a
extrema sintonia da proposta da revista com seu momento histórico.
Em poucos m eses, O Cruzeiro t orna- se a revist a m ais
importante do país. Segundo a pesquisadora Marialva Barbosa,
“ as est r at égias adot adas para conquist ar leit or es são inúm eras:
(a revist a) propõe m ant er cont at o diret o com o público
recebendo cart as em vár ias seções, com o a j urídica, a m édica, a
de arquit et ura dom ést ica. Além disso, abusam das ilust rações,

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O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

que dão o t om m esm o da revist a. Dist ribuem pr êm ios variados.


I nst it uem concursos os m ais diversos para a part icipação do
público” 7 .

A consolidação no m ercado viria na década seguint e com o


pioneirism o da rot ogravur a na im prensa ilust rada nacional. O m at erial
de im pr essão, vindo da Alem anha, serviu de cam po experim ent al para
a rot ogravura a cores. Se no cam po com unicacional a revist a foi
vanguarda em muitos aspectos; no campo político, não. Chateaubriand
põe a publicação à disposição de Get úlio durant e a revolução de 30 e
no período do Estado Novo.
Nos anos 40, a r evist a sofr e um a grande m udança de nat ureza
edit orial, pois funda a r eport agem invest igat iva na im prensa nacional.
O Cruzeiro possui, no com eço da década, agências em t odo o país e
correspondent es nas principais capit ais do ext erior, um a coisa
im pensada para qualquer out ro veículo no Brasil. É nest e cont ext o que
se insere Verger, recém - chegado do ext erior, fugindo do pós- guerra
europeu e com cart a branca do dono da revist a par a produzir o que
quisesse.

1.4 O olhar da fotografia

Verger dizia explorar a idéia do “ aut om at ism o da gênese


técnica”8 da fot ografia, ou sej a que a fot ografia era um m eio m ecânico
de exploração/ docum ent ação do real e que o r epresent ava com
isenção e fidedignidade. Alinhava- se com o discurso m im ét ico em
t orno da im agem , afirm ando que apenas apert ava o dispar ador. “ Faço
um as fot ografias das quais gost o sem nenhum a consciência dist o no
momento da foto, não sou eu quem fotografa mas alguma coisa dentro
de mim”.

7
BARBOSA, Marialva. O Cruzeiro: uma revista síntese de uma época da história da imprensa
brasileira. (http://www.uff.br/mestcii/marial6.htm), em 20 julho de 2004.
8
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas, SP: Papirus, 1993.

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Est a post ura diant e da produção fot ográfica é m uit o com um


ent re os int elect uais do século XI X e do início do século XX, todos
encabeçados por Baudelair e. Sendo assim , “ a fot o é percebida com o
um a espécie de prova, ao m esm o t em po necessária e suficient e, que
atesta indubitavelmente a existência daquilo que mostra”9 .
Além , do discurso da m im ese t em os que dest acar t am bém
out ros dois aspect os do olhar fot ográfico. Em sua obr a “ O at o
fot ográfico” , Philippe Dubois apont a discursos da fot ogr afia com o
transformação do r eal e com o t raço do r eal, am bos surgidos no século
XX. No primeiro caso, ele afirma que
“ a im agem fot ogr áfica não é um espelho neut r o, m as um
inst rum ent o de t ransposição, de análise, de int erpr et ação e at é
t ransform ação do r eal, com o a língua, por exem plo, e assim ,
também, culturalmente codificada” ( DUBOIS, 1993:26).

A fot ografia com o t raço do real é j ust ificada pela t eoria


peirceana, dest a vez não rest rit a ao carát er de ícone ( r epr esent ação
por sem elhança) , m as ao de índice ( represent ação por cont igüidade
física do signo com o seu referent e) . Dubois defende sua colocação
explicando que a fot ogr afia é frut o de um a em anação de luz do obj et o.
É a luz em it ida/ reflet ida pelo obj et o que im prim e a fot ografia. Sendo
assim , é o rast ro lum inoso do obj et o que fica gravado, do m esm o
m odo que um a pegada na ar eia. A fot ogr afia se t orna t raço do r eal.
Dest a for m a, poderíam os afirm ar que a fot ografia de Verger é,
portanto, um índice de nossa ident idade cult ural, porque ainda hoje
nos reconhecem os com o br asileiros nas fot os, apesar de t odas as
t ransform ações sociais, cult urais e at é m esm o físicas ( no caso das
paisagens) pelas quais passamos.

9
Idem. pág 25.

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O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

1.5 Nós diante do espelho

A busca pelo cerne do ser cult ural foi a cruzada m aior de nosso
fotógrafo. Verger buscava sem pr e capt ur ar a verdadeira ident idade
das pessoas, inseridas em seu habit at físico e social. Cont udo, não nos
pr eocuparem os com as int enções de Verger. Sem dúvida, em alguns
m om ent os, ponderar em os algum as de suas colocações sobre a sua
obra e seu olhar, afinal de cont as t oda im agem é um a r epr esent ação,
um cort e int encional de um a dada realidade. Porém, vam os nos
posicionar sem pre no local do recept or ( ao cont rário do aut or) , j á que
nossa leit ura busca o que nos é int rínseco, o que nos reflet e ainda
hoj e. Est arem os at ent os para o discurso da obr a em nosso cont ext o,
para a expect at iva de nosso olhar com o form a de perceber os t raços
que nos desenham . Afinal, a fot ogr afia não se “ lim it a t rivialm ent e
apenas ao gest o da produção propriam ent e dit a, m as inclui t am bém o
ato da recepção e de sua contemplação”10.
Concordam os com Aum ont , ao com ent ar Gom brich, quando
aquele afirm a que não há olhar fort uit o. Sem pre, ao cont em plarm os
uma im agem , t em os expect at ivas sobre ela e lançam os hipóteses
sobre ela, que logo em seguida são confirmadas ou não.
“ Esse sist em a de perspect ivas é am plam ent e inform ado por
nosso conhecim ent o pr évio do m undo e das im agens: em nossa
apreensão das imagens, antecipamo- nos, abandonando as idéias
feitas sobre nossas percepções” 11.

Ainda segundo Aum ont , o espect ador, ao ut ilizar seu


conhecim ent o prévio do m undo, est á suprindo um a lacuna im port ant e
no sist em a de represent ação da im agem , que é a do não-
representado. I nt erpret ar um a im agem é cont ext ualizá- la dent ro da
realidade, t odavia não há com o fazê- lo sem esse conhecim ent o prévio
do m undo, j á que um a im agem ( principalm ent e a fot ografia) é um

10
Idem. pág 15.
11
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus. 1993. pág 86.

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recort e espacial e t em poral específico da r ealidade. Seguindo essa


linha de raciocínio, chegam os à conclusão que t ant o o aut or quant o o
espectador fazem a imagem cada um ao seu modo.

1.6 Os passos da análise

Para sistematizar nossa análise, adotaremos alguns procedimentos que


levam em conta os vários significantes componentes da imagem e seus
significados reificados dent ro do im aginário social brasileiro. Terem os
t am bém com o referenciais os princípios de oposição ( o que vej o
diret am ent e X o que não vej o) e segm ent ação ( o que significa X o que
não significa) . Est e t ipo de abordagem da im agem leva a reflexão de
que
“ considerar a im agem com um a linguagem visual com post a de
diversos t ipos de signos equivale, a considerá- la com o um a
linguagem e, port ant o, com o um a ferram ent a de expressão e de
com unicação. Sej a ela expressiva ou com unicat iva, é possível
adm it ir que um a im agem sem pre const it ui um a m ensagem para
o out r o, m esm o quando o out ro som os nós m esm os. Por isso,
um a das precauções necessárias para com pr eender da m elhor
forma possível uma mensagem visual é buscar para quem ela foi
produzida” 12.

Um pont o a ser ressalt ado em nossa análise é a função


pedagógica de t ais fot ografias. Produzidas para a im prensa - que,
nat uralm ent e, j á desenvolve est e processo - num m om ent o de
descobert as e deslum br e da sociedade brasileira; elas reforçam o
sentimento de revelação do país de si para si. É semelhante ao mito de
Narciso, que se vê e se encanta consigo. Joly considera que
“ é difícil classificar cer t as im agens. È o caso das fot ogr afias de
im prensa: supost am ent e, deveriam t er um a função referencial,
cognitiva, mas na realidade, situam- se entra a função referencial

12
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 1996. 6ª ed. Pág 55.

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e a função expressiva ou em ot iva. Um a fot o de r eport agem


t est em unha bem um a cert a realidade, m as t am bém r evela a
personalidade, as escolhas, a sensibilidade do fot ógrafo que as
assina” 13.

Esse car át er de subj et ividade pode ser t raduzido pelo discurso


lingüíst ico. Não quero ent r ar aqui no em bat e “ imagem versus escrit a” ,
pois acr edit o que am bas as linguagens se com plem ent am - sobretudo
no âm bit o j ornalíst ico, onde as duas andam sem pr e de m ãos dadas,
servindo um a de suport e a out ra. É fundam ent al salient ar que a
intenção prim eira do aut or, no at o de r ealização da m aioria de suas
fot ografias, ficou volt ada par a at ender às dem andas das agências e
dos veículos de com unicação que o cont r atavam. Port ant o, est e
recurso pode perfeit am ent e ser usado para explicar e cont ext ualizar
det erm inadas fot ografias, bem com o lançar novas idéias sobre as
com posições apresent adas. Além do m ais, a conform idade nas
relações est abelecidas ent r e im agem e t ext o podem ser am plam ent e
discut idas, j á que um est udo nunca esgot a os argum ent os lançados
para abordar um tema e sua relação com determinado objeto.
Muit as vezes, um discurso sobre a im agem ext rapola a
obj et ividade dest a. O m ot ivo é a oper acionalidade de nossa
consciência que nos faz regularm ent e “ t r aduzir” os sent idos
despert ados pessoal ou colet ivam ent e. I m agens r em et em a palavras e
est as a novas im agens num sistema de referência que se t ransform a
num círculo vicioso ou num a espiral infinit a. Segundo Aum ont , a
im agem oper a de m odo epist êm ico dent ro das relações est abelecidas
pelo hom em ent re suas produções e o m undo. Diz ele: “ a im agem t raz
informações (visuais) sobre o mundo, que pode assim ser reconhecido,
inclusive em alguns de seus aspectos não- visuais”14.
Na busca pela ident idade nacional, os sím bolos que com põem as
fot os de Ver ger e que nos t oca com o sendo part iculares a nosso m odo

13
Idem. Pág 58.
14
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus. 1993. pág 80.

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cult ural de ser, fat alm ent e não serão int erpret ados do m esm o m odo
por est rangeiros que por nós ( por m ais int eirados que est ej am de
nossos cost um es) . É, port ant o, m ais que um sim ples t rabalho de
reconhecim ent o da realidade. È um t rabalho de aut o- conhecimento
cultural. Pelo que se vê pode- se alcançar o que não se vê.
Poderíam os afirm ar t am bém que a im agem const rói o suj eit o do
espectador. Para reforçar este argumento, basta levar em conta a idéia
de que som os um a perm anent e const rução no real e que t odas as
nossas experiências de quest ionam ent o e reflexão sobre o m undo nos
levam cot idianam ent e a um a nova condição per ant e ele. As imagens,
fazendo parte de forma quase onipresente de nossa vida, contribuiriam
decisivam ent e sobre a nossa percepção, inserção e int ervenção no
social.
I m port ant e salient ar que a vida de um a im agem não acaba com
os significados que ela passa a carregar arbit r ariam ent e consigo, por
m eio de um discurso im pet rado por um ou pelo social. Haverá sem pre
interpretações diversas a partir dos mesmos significantes componentes
da mensagem imagética.
Seguindo todas estas linhas de raciocínio, nos pom os diant e de
uma im por t ant e conclusão: a de que o espect ador const rói a im agem
( pois im põe um sent ido a ela) no m esm o t em po em que a im agem
constrói o espectador (informa, educa, soma significados ao imaginário
deste).

1.7 A narrativa e o corte identitário

Dent ro dos padrões que consider am os at é agora, poderíam os


dizer que t oda im agem , sobret udo a fot ografia, é um a const rução
narrat iva. Mesm o que localizadam ent e, t oda im agem nos cont a, nos
t raz algo novo ou m esm o confirm a alguns pont os de vist a que j á
const ruím os acerca de nós ou da r ealidade. Um a nar rat iva t em vida
própria é pont uada dent ro de um espaço e de um t em po, t al com o o
fotográfico.

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“ A represent ação do espaço e do t em po na im agem é quase


sem pre, port ant o, um a oper ação det erm inada por um a int enção
mais global, de ordem narrativa: o que se trata de representar é
o espaço e o t em po diegét icos, e o própr io t r abalho de
repr esent ação est á na t ransform ação de diegese, ou de
fragmento de diegese em imagem” 15.

Toda im agem t em que ser lida, percebida sej a no cont ext o de


um a at ualidade ou de sua realização. Nem t odas as im agens deixam
explícit as em si a nat ureza de sua narr at iva. Por est e carát er , m uit as
vezes é preciso descort inar ou descobrir narr at ivas expr essas na
imagem e uma dessas narrativas é a identitária.
Levando- se em cont a a fot ografia com o fat ia única e singular do
espaço- tempo, sugiro que ela de fat o apreenda t am bém um aspect o,
um a fat ia da ident idade. Tem os aqui a ident idade com o um a
caract eríst ica m ult ifacet ada e com post a a part ir de vários fat ores e
contribuições sociais. Para Malysse,
“ o olhar fot ográfico não pode m ost rar t odos os lados do que ele
vê, ele deve escolher um m om ent o específico, um angulo. O
olhar faz um a pausa cega no t em po cuj a rapidez e
irreversibilidade parecem t ransform ar o inst ant e fotografado
num ato inconsciente” 16.

Por isso, precisam os de um conj unt o m aior de fot ografias, de


m odo a oferecer um a visão m ais am pla da ident idade nacional. A
fot ografia recor t a, m as t am bém rem et e e recria as sit uações
apreendidas. Ainda segundo Malysse,

15
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus. 1993. pág 248. Em seguida, Aumont
explica: “Diegese é uma construção imaginária, um mundo fictício que tem leis próprias mais ou
menos parecidas com as leis do mundo natural, ou pelo menos com a concepção, variável, que dele
se tem. Toda construção diegética é determinada em grande parte por sua aceitabilidade social,
logo por convenções, por códigos e pelos simbolismos em vigor em uma sociedade”.
16
MALYSSE, Stéphane Rémy. Um olho na mão: imagens e representações de Salvador nas
fotografias de Pierre Verger. IN: Revista Afro-ásia. n24. Centro de estudos Afro-orientais.
FFCH/UFBA. Salvador, BA. 2000. pág 340.

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“ as pessoas fot ografadas falam do alt o do olhar de Verger sobre


elas, m ost rando que par a ler um a fot ografia é preciso pensar
at r avés da dim ensão sensual e subj et iva do olhar, t ant o do lado
do observante quanto do lado do observado. Na interpretação de
uma fot ografia ent ra em j ogo a com plexidade da relação
observador/ observado em suas conot ações sexuais, raciais e
culturais”17.

Tem os a consciência que a obr a de Verger reflet e seu m odo


particular de ver a sociedade brasileira, seus tipos e seus costumes. Da
m esm a form a com que reflet e o que o encant ava em nós. Por m eio do
olhar part icular de Verger, nossa ident idade ali expost a j am ais poderia
ser apreendida em sua t ot alidade, j á que se apresent a fragm ent ada,
m ovediça e m ut ant e. Tent arem os, port ant o, m ont ar part e dest e
quebra- cabeça e vislumbrar pedaços de nosso rosto.

1.8 As peças do jogo

Em relação à fot ografia, é r eificada socialm ent e a idéia de que


ela congela e perpet ua o m om ent o e as coisas ali present es, sendo
estas físicas ou não. Se o m om ent o est á ali congelado e bem com o
est ão t odas os obj et os e circunst âncias que o com põem , a ident idade
t am bém est ará. Ela, m ais um a vez, não deixará de exist ir, m esm o que
passe por transformações como todas as coisas.
“ O at o fot ográfico im plica, port ant o, não apenas um gest o de
cort e na cont inuidade do real, m as t am bém a idéia de um a
passagem , de um a t ransposição irredut ível. Ao cort ar, o at o
fot ogr áfico faz passar par a o out ro lado ( da fat ia) ; de um t em po
evolut ivo a um t em po pet rificado, do inst ant e à perpet uação, do
m ovim ent o a im obilidade, do m undo dos vivos ao reino dos
mortos, da luz às trevas, da carne à pedra”18.

17
idem. pág 333.
18
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas, SP: Papirus, 1993.

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É im port ant e lem brar que algum as caract eríst icas, t raços
identitários assim o são, porque perm anecem a sabor dos t em pos. Ao
se t rat ar de ident idade nacional, essas caract eríst icas perm anecem
com o const it uint e m ais geral. Se são objetos, t raços, caract eríst icas
transitórias, est es reflet irão apenas seu t em po, que pode, inclusive, se
t ransform ar de local para local dent ro de um a m esm a nação. Cont udo,
para um a caract eríst ica ser t ida com o com ponent e da ident idade
nacional, é necessária que ela sej a ger al, em t em po e lugar, e que a
im ensa m aioria se reconheça e se espelhe nest e t raço. Mesm o que
m uit as de nossas caract eríst icas nacionais sej am mutantes ao sabor
dos t em pos e das t ransform ações hist óricas, ainda assim é preciso que
nos reconheçamos na radicalidade delas.
Fazendo um a análise da obr a Ret rat os da Bahia 19, Malysse
afirma:
“ assim nos Ret rat os da Bahia dão a ver o que os baianos da
época podiam ver neles m esm os, um t ipo de senso com um
visual, r epr esent ações ordinárias dent ro do cenário cult ural
visível dos m orador es, os quais podem os encont r ar cinqüent a
anos m ais t arde na m esm a posição, repet indo os m esm os
gestos e mostrando os mesmos sorrisos”.

19
VERGER, Pierre. Retratos da Bahia. Corrupio. Salvador, BA. 2002. 288p.

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Capítulo 2
Algumas considerações sobre identidade

A quest ão da ident idade nacional brasileira é, ant es de t udo, um


gr ande nó a ser desat ado. Meu int uit o é afr ouxá- lo um pouco e t raçar
um a abor dagem do t em a, form ando um a colcha de ret alhos que
contemple m eus int er esses im ediat os de revelar na obra de Pierre
Verger as car act eríst icas est ét icas e cult urais de nosso povo m ais
precisamente o que nos toca em relação à sexualidade e ao carnaval.
A descobert a da ident idade, t ant o no âm bit o pessoal quant o no
histórico- nacional, é um processo cont ínuo, m ut ant e. O cam inho t raz
em si a necessidade de um a perm anent e sensação de est ranham ent o,
para que possam os vislum brar o óbvio que est á a nossa frent e. Tem os
que nos fazer estrangeiros de nós mesmos para reconhecermo- nos. No
Brasil da década de 40, fot ogr afado por Verger, est ávam os ext asiados
com as visões elitistas de brasilidade apresentadas por Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr.
Nosso pont o de part ida para discut ir est a quest ão é a im agem
de quat ro m oleques de braços cruzados a beir a da praia. Apesar de
est ar em volt ados para a m esm a direção, quat ro pessoas que
cont em plam part icularm ent e um horizont e diferent e. Um horizont e
límpido revelado pela ausência de nuvens e pela presença marcante da
luz do sol. A mesma luz que é refletida pela cor negra das peles, dando
um brilho m aior aos corpos e aos personagens com o se est ivessem
num m om ent o de fat o m uit o par t icular. Todos t êm em seu sem blant e
um a sisudez im própr ia para a idade, revelada pelos t raços ainda não
fust igados pelo t rabalho. Cont udo, o olhar dest es m eninos busca um a
razão de ser. Talvez a m esm a razão pela qual seus corpos j á
apresent em o cont orno da força em pregada no esforço braçal, expost a
por peit orais e braços bem definidos ( o que ainda não acont ece com a
face, o abdom e nem com as pernas finas e fr ágeis) . Os calções que
vest em revelam a origem hum ilde a que pert encem . O cenário,

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O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

pr esent e na m argem opost a, é um a afirm ação dos t rópicos com seus


coqueiros no areal e a exuberância da m at a virgem ao fundo. Essa
fot ografia t irada por Verger reflet e a sit uação em que nos
encontrávamos na época em que ela foi tirada: moleques (ou narcisos)
descobrindo seu rosto e se encantando com sua beleza.

Rio Vermelho, Salvador, BA – 1946/1978

Mas, o que vem a ser ident idade nacional? Trat a- se de


responder, basicam ent e, a t r ês quest ões, ao m esm o t em po, sim ples e
com plexas: é saber quem, como e porque som os. Ao olharm os para
o nosso cot idiano e par a a nossa sociedade, poderem os t er um reflexo

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O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

do quem e de com o som os. Todavia, o pr ocesso de explicação de “ por


que som os?” esbarr a na com plexidade de um a int erpret ação hist órica
e social, que nem sempre é tão óbvia e consensual. Essa complexidade
t erm ina, m uit as vezes, por m udar a própria im agem que fazem os de
nós m esm os e das car act eríst icas que nos const it uem no im ediat ism o
do cotidiano.
Manuel Cast ells define ident idade com o sendo um a font e de
significado e experiência de um povo. São as part icularidades de cada
nação que a distingue das outras.
“ A construção de identidades vale- se da matéria- prima fornecida
pela hist ória, geografia, biologia, inst it uições pr odut ivas e
reprodut ivas, pela m em ória colet iva e por fant asias pessoais,
pelos apar at os de poder e r evelações de cunho religioso. Porém
t odos est es m at er iais são processados pelos indivíduos, grupos
sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função
de t endências sociais e proj et os cult ur ais enr aizados em sua
estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço”20.

Elisabeth Badinter comunga da idéia que


“ a aquisição de de um a ident idade ( social ou psicológica) é um
processo ext er em am ent e com plexo, que com port a um a relação
posit iva de inclusão e um a r elação negat iva de exclusão. Nós
nos definim os pelas sem elhanças com algum as pessoas e as
diferenças com outras” 21.

At ualm ent e, as discussões em t orno da ident idade t êm ganhado


um a relevância cada vez m aior dent ro do cenário globalizado. Em seu
est udo sobr e a ident idade nacional na pós- m odernidade, St uart Hall
apont a j unt o ao processo de m undialização da cult ura um a
descent ralização, deslocam ent o, fragm ent ação das ident idades. Ele
argum ent a que o volum e de inform ações e r eferências a que est á

20
CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2001. pág 23.
21
BADINTER, Elisabeth. XY: Sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fornteira,
1993. pág 33.

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O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

expost o o hom em cont em porâneo t erm ina por m udar as “ paisagens


cult urais” nas suas m ais diferent es esferas ( sexual, ét nica, nacional,
etc...). Para Hall, o sujeito pós- moderno tem identidades múltiplas e se
port a de várias m aneiras difer ent es conform e a sit uação apresent ada.
Essa pr át ica seria j ust ificada pela crise dos par adigm as sociais, pelas
form as nas quais “ som os repr esent ados ou int erpelados nos sist em as
cult urais que nos rodeiam ” 22 e pelos at ribut os cult urais int er -
relacionados.
Em linhas gerais, a formação de uma identidade é feita por meio
de posicionam ent os, escolhas frent e a cert as quest ões de organização
social. Segundo Roberto DaMatta,
“ t ant o os hom ens com o as sociedades se definem por seus
est ilos, seus m odos de fazer as coisas. Se a condição hum ana
det er m ina que t odos os hom ens devem com er, dorm ir ,
t rabalhar, reproduzir - se e rezar, essa det erm inação não chega
ao pont o de especificar t am bém que com ida ingerir, de que
m odo produzir, com que hom em ou m ulher acasalar- se e para
quant os deuses e espírit os r ezar. É precisam ent e aqui, nessa
espécie de zona indet erm inada, m as necessária, que nascem as
difer enças e, nelas os est ilos, os m odos de ser e de est ar, os
‘j eit os’ de cada qual. Porque cada grupo hum ano, cada
colet ividade concret a, só pode pôr em prát ica algum as dessas
possibilidades de at ualizar o que a condição hum ana apresent a
como universal” 23.

22
HALL, Stuart. A identidade Nacional na Pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: DP&A Editora,
1997. pág 12.
23
DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil?. Rio de Janeiro,RJ:Rocco,1977. pág 15

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2.1 A identidade brasileira

Palmeira dos índios, AL – 1947/1951

Verger explora seu olhar de est rangeiro para buscar o que há de


m ais aut ênt ico em nós. Parece som ent e se im port ar com a essência.
Busca no fundo dos olhares a brasilidade que t ent am os or a descobrir
ora ocultar.
As reflexões sobre a brasilidade t êm início ainda no Br asil-
colônia. Cont udo, a nossa at ual concepção de ident idade nacional
com eça a ser const ruída na segunda m et ade do século XI X e início do
século XX, fort em ent e influenciada pelas t eorias raciais defendidas
pelos pensadores posit ivist as europeus. Aut or es com o Sílvio Rom ero,

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Nina Rodrigues, Oliveir a Viana e Euclides da Cunha oper am sob est a


óptica.
“ Todos eles t inham em com um a consideração da m est içagem
( t ant o das raças com o das cult uras) com o caract eríst ica
( difer ença) que definir ia a ident idade brasileira. Mas a
m est içagem basicam ent e não era um dado posit ivo. Se por um
lado a m est içagem ser via com o pedr a de t oque da originalidade
nacional, por out ro, denot ava um defeit o na fundação dessa
originalidade (as raças inferiores que compunham o mestiço)” 24.

A figur a do m est iço só com eça a ser valorizada na década de 30


quando t rês cient ist as sociais redim ensionaram o pensam ent o
br asileiro com suas obras sobr e a const it uição da ident idade nacional.
Gilbert o Freyre, Sér gio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior
t ornar am vigent e, ent re os int elect uais brasileiros inseridos no
cont ext o da m odernidade, a concepção sociológica clássica de que a
identidade é tão somente fruto do meio social e cultural. Ainda que sob
considerações elit ist as e pat riarcais, eles deixam de lado as
im plicações biológicas e concent ram - se nas cont ribuições sócio-
cult urais que as t rês raças for necem par a a const r ução da ident idade
brasileira.
Ângela Prysthon, em seu artigo “Pensando o Brasil: percursos da
identidade nacional”, argumenta que
“ Casa Grande e Senzala e os subseqüent es livros de Gilbert o
Freyre for am post eriorm ent e acusados de t erem criado o m it o
da dem ocracia racial br asileir a e da br andura das relações ent re
senhores e escravos e encobert o a violência das est rut uras
econôm icas e sociais at r avés do elogio ao pat riarcalism o. ( ...)
Tais acusações procedem na m edida em que desvelam não os
problem as inerent es à obra de Fr eyre, m as a influência de cert o
m odo det urpadora que est a obr a t eve na cult ura e sociedade

24
PRYSTHON, Ângela. Pensando o Brasil: percursos da identidade nacional. Recife, PE: Edições
Bagaço, 2001. Pág 50.

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br asileir as com o um t odo ( principalm ent e est a crença na


convivência harm oniosa ent re as raças e as classes sociais, m as
25
também a exacerbação do regionalismo)” .

De acordo com Gilberto Freyre,


“ o hom em vivent e e convivent e não pode ser definido apenas
em t erm os abst rat os, m at em át icos, est at íst icos. Precisam os de
nos defront ar com o que nele sej a o que Unam uno cham ava de
‘carne e osso’. Precisam os de considerá- lo, o m ais possível, na
sua t ot alidade biossocial, não só o ser que pensa, sent e, sonha,
fala, ri, reza, dança, fabrica, pint a, t oca viola, fum a,
distinguindo- se, por essas apt idões hum anas, dos dem ais
anim ais com o o que copula, com e, defeca, sua, corre, gr it a,
sobe às ár vores, desce às águas, nada, sendo, nessas
expressões de vida, ao m esm o t em po que universal com o
indivíduo biológico. Part icular, diverso, regional, pré- nacional,
com o pessoa, ist o é, com o indivíduo socializado e acult urado de
acordo com um a ecologia, um a cult ura, um grupo a que
pert ença, ou dent ro do qual nasceu ou cresceu; e, de acordo
com esses condicionam ent os, prat icando at os anim ais –
com endo, copulando, nadando – de difer ent es m aneiras
biossociocult ur ais. É em virt ude dessas part icularizações de
com port am ent o, decorrent es de sit uações ecológicas e cult urais
particularizadoras da condição hum ana, que se pode falar de um
hom em brasileiro com o de um hom em francês, de um hom em
port uguês, de um hom em espanhol, de um hom em russo, de
um hom em m exicano, de um hom em paraguaio, de vários
out ros hom ens nacionais; de vários out ros t ipos nacionais ou
regionais de Hom em . Para esse t ipo nacional de Hom em
brasileiro – ainda em form ação m as j á bast ant e definido,
ant ropológica e socialm ent e – sabem os que t êm concorrido, e
cont inuam a concorr er, vários subt ipos regionais, alguns

25
Idem. Pág 53.

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dinam izados e t ransregionais: o caso clássico do Bandeirant e. O


do nordest ino. O do próprio gaúcho que se t em pr oj et ado pelo
26
Brasil Central.”

Verger com unga dessa idéia at é m esm o por ilust rar os t ext os
escrit os por Freyre para a r evist a em que t r abalhava nos anos 40. O
fr ancês fot ografa sem pr e nos inserindo num cenário próprio de cada
t ipo hum ano br asileiro. Suas fot ografias m ost ram um Brasil
marcadamente regional, quase folclórico.
Par a alguns int elect uais, a discussão sobre a ident idade nacional
br asileira deve com eçar a ser abordada a par t ir da perspect iva das
sociedades indígenas que aqui est avam quando da chegada do
colonizador por t uguês. Se for consenso que nossa ident idade é frut o
da miscigenação que se deu no processo formador de nossa sociedade,
fat o é que o ser br asileiro part e das prim eiras com binações feit as pelo
encont ro de r aças. Sendo o port uguês o colonizador, im pôs, a priori,
seus cost um es e valores sociais às com unidades nat ivas. Nest e
aspect o t om arem os as considerações de alguns pensadores de nossa
sociedade par a esclarecer alguns pont os sobre o assunt o. Vale
salient ar aqui que cada um sit ua sua perspect iva num cont ext o
específico.
Sérgio Buar que de Holanda, em seu “ Raízes do Br asil” ( 1936) ,
afirm a que nosso carát er m iscigenado e nossa condição de “ hom em
cordial” t iver am a m esm a raiz: o personalismo port uguês. Ent enda- se
o conceit o “ personalism o” usado por Buarque com o a “ cult ura da
personalidade” . No sent ido usado por ele, o t erm o é vinculado à
responsabilidade individual e respeit o ao m érit o pessoal enquant o
aspect os subordinados à própria personalidade. Est a caract eríst ica
social deu perm eabilidade à nobr eza lusit ana, que apesar de fidalga e
arist ocrát ica perm it ia que pessoas da plebe pudessem alm ej ar um a
m udança de classe social por m eio do m érit o. Esses valores chegando

26
FREYRE, Gilberto. O brasileiro como tipo nacional de homem situado no trópico e, na sua
maioria, moreno: Comentários em torno de um tema complexo. Rio de Janeiro: Conselho federal
de Cultura, 1970. p. 41-57. Versão on line http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/português/obra/index.htm

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aqui result ar am , segundo Buarque, em m ando e obediência irrest rit a


por m eios vert icais de hier arquia, pois t oda pessoa que chefiava t inha
em si um hist órico, um a razão para est ar ali. Gilbert o Freyre, em seu
“Casa- gr ande e Senzala” ( 1933) , t am bém com unga dessa opinião.
Para ele, na sociedade port uguesa, não se havia est rat ificado as
classes sociais nem exclusivismos intransponíveis.
“ O que vem a reforçar a nossa convicção de ter sido a sociedade
port uguesa m óvel e flut uant e com o nenhum a out ra,
constituindo- se e desenvolvendo- se por um a int ensa circulação
t ant o vert ical com o horizont al de elem ent os os m ais diversos na
27
procedência” .

Par a Buarque, o personalism o port uguês t am bém dá vazão para


que a ét ica avent ureira se sobreponha a um a ét ica do t rabalho. A
lógica é a de que m andar e t er em m ãos é m uit o m ais fácil que
produzir. Est a seria a origem de algum as de nossas caract eríst icas
com o a preguiça ou a subordinação do elem ent o cooper at ivo e racional
ao pessoal e afet ivo, por exem plo. Para o sociólogo, o ideal t razido
pelo português é colher o fruto sem plantar a árvore.

Pierre Verger, Mercado de S. José (esq) e Cais de Stª Rita (dir), Recife, 1947

“Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se


apresent a a ele com generosa am plit ude e, onde quer que se

27
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1999. 35ª ed. pág 217

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erij a um obst áculo a seus propósit os am biciosos, sabe


t ransform ar esse obst áculo em t ram polim . Vive dos espaços
ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes.
O t rabalhador, ao cont rário, é aquele que enxerga
prim eiro a dificuldade a vencer, não o t riunfo a alcançar. O
esforço lent o, pouco com pensador e persist ent e, que, no
ent ant o, m ede t odas as possibilidades de esperdício ( sic) e sabe
t irar o m áxim o de proveit o do insignificant e, t em sent ido bem
nít ido para ele. Seu cam po visual é nat ur alm ent e rest rit o. A
parte maior que o todo.
Exist e um a ét ica do t rabalho, com o exist e um a ét ica da
avent ura. Assim , o indivíduo do t ipo t rabalhador só at ribuirá
valor m oral posit ivo às ações que sent e ânim o de prat icar e,
inversam ent e, t erá por im orais e det est áveis as qualidades
próprias do avent ureiro – audácia, im pr evidência,
irresponsabilidade, inst abilidade, vagabundagem – t udo, enfim ,
quant o se r elacione com a concepção de espaçosa do m undo,
característica desse tipo”28.

O personalism o at relado à ét ica avent ureira levaria os


port ugueses a nos t razerem que o aut or cham a de plast icidade, que
nada m ais é do que um a pr edisposição para o aj ust e her dada do
processo hist órico de cont at o do lusit ano ( e da Península I bérica com o
um t odo) com out r as cult uras. Est aria nest a plast icidade, m ais t arde
incrust rada no br asileiro, a r aiz ou a explicação par a o processo de
miscigenação que se deu no Brasil desde os primeiros contatos.
“ E, no ent ant o, o gost o da avent ura, responsável por t odas
est as fraquezas, t eve influência decisiva ( não a única decisiva, é
pr eciso porém , dizer - se) em nossa vida nacional. Num conj unt o
de fat ores t ão diversos, com o as r aças que ali se chocaram , os
cost um es e padrões de exist ência que ali nos t rouxeram , as

28
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 26ª
ed. pág 44

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condições m esológicas e clim at ér icas que exigiam longo


processo de adapt ação, foi o elem ent o orquest rador por
excelência. Favorecendo a m obilidade social, est im ulou os
hom ens, além disso, a enfrent ar com denodo as asperezas ou
resist ências da nat ureza e criou- lhes as condições adequadas a
tal empresa.
Nesse pont o, precisam ent e, os port ugueses e seus
descendent es im ediat os foram inexcedíveis. Procurando r ecriar
aqui o m eio de sua origem , fizeram - no com um a felicidade que
ainda não encont rou, segundo exem plo na hist ória. Onde lhes
falt asse o pão de t rigo, aprendiam a com er o da t erra, e com t al
requint e, que a gent e de t rat am ent o só consum ia farinha de
m andioca fresca, feit a no dia. Habit uaram - se t am bém a dorm ir
em redes, á maneira dos índios. Alguns, como Vasco Coutinho, o
donat ário do Espírit o Sant o, iam ao pont o de beber e m ascar
fum o, segundo nos referem t est em unhos do t em po. Aos índios
t om ar am ainda inst rum ent os de caça e pesca, em barcações de
casca ou t ronco escavado, que singravam os rios e águas do
lit or al, o m odo de cult ivar a t err a at eando prim eiram ent e fogo
aos m at os. A casa peninsular, severa e som bria, volt ada para
dent ro, ficou m enos circunspect a sob o novo clim a, perdeu um
pouco de sua aspereza, ganhando a varanda ext erna; um
acesso para o m undo de fora. Com essa nova disposição,
im por t ada por sua vez da Ásia orient al e que subst it uía com
vant agem , em nosso m eio, o t r adicional pát io m our isco,
form aram um padr ão prim it ivo e ainda hoj e válido para as
habit ações européias nos t rópicos. Nas suas plant ações de cana,
bast ou que desenvolvessem em grande escala o processo j á
inst it uído, segundo t odas as probabilidades, na Madeir a e em
out ras ilhas do At lânt ico. Onde o negro da Guiné er a ut ilizado
nas fainas rurais”29.

29
idem. Pág 46

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De acor do com Buarque, a plast icidade e subserviência ger ada


pelo personalism o im post o no processo de colonização é a origem do
“homem cordial” que se tornou o brasileiro.
“ Já se disse, num a expressão feliz ( de Ribeiro Cout o) que a
contribuição brasileir a par a a civilização será de cordialidade –
darem os ao m undo o ‘hom em cordial’. A lhaneza no t rat o, a
hospit alidade, a generosidade, vir t udes t ão gabadas por
estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço
definido do car át er br asileir o, na m edida, ao m enos, em que
perm anece at iva e fecunda a influência ancest ral dos padr ões de
convívio hum ano, inform ados no m eio rural e pat riarcal. Seria
engano supor que est as virt udes possam significar ‘boas
m aneiras’, civilidade. São ant es de t udo expressões legít im as de
um fundo em ot ivo ext rem am ent e rico e t ransbordant e. Na
civilidade, há qualquer coisa de coercit ivo – ela pode exprim ir - se
em mandamentos e sentenças” 30.

I m port ant e reforçar o m odo elit ist a de considerar a form ação da


sociedade brasileira propost o t ant o por Buarque quant o por Fr eyre.
São pont os de vist a ora burgueses ora da Casa Grande. Todavia,
desde o seu lançam ent o, am bas as obr as foram m uit o bem recebidas
pela com unidade acadêm ica nacional e int ernacional. Verger circulava
nest e m eio, fazia parceria com Gilbert o Fr eyre nas páginas de “ O
Cruzeiro” . Não é de se adm irar que ele t enha sido influenciado
diretamente por estas idéias.
Est as visões da for m ação do povo brasileiro é confront ada
diret am ent e pelo ant ropólogo Darcy Ribeiro, em seu livro “ O povo
brasileiro”. Segundo Darcy,
“ às vezes se diz que nossa caract eríst ica essencial é a
cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gent il e
pacífico. Será assim ? A feia verdade é que conflit os de t oda
ordem dilaceram a hist ória brasileira, ét nicos, sociais,

30
idem. Pág 146

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econôm icos, religiosos, raciais, et c. o m ais assinalável é que


nunca são conflit os puros. Cada um se pint a com as cores dos
out ros. ( ...) O processo de form ação do povo brasileiro se fez
pelo ent rechoque de seus cont ingent es índios, negros e brancos,
foi, por conseguint e, alt am ent e conflit ivo. Pode- se afirm ar,
mesmo, que vivemos praticamente em estado de guerra latente,
que, por vezes, e com freqüência, se t orna cruent o,
31
sangrento” .

Ele defende que o início de nossa form ação cult ural foi m arcado
pelo desej o de hegem onia racial que se deu logo nos prim eiros
cont at os ent re brancos e índios. Darcy desconsidera a quest ão da
plast icidade port uguesa e nos diz que o cunhadism o foi a principal
estratégia de dominação étnica do colonizador.
“ A inst it uição social que possibilit ou a form ação do povo
br asileir o foi o cunhadism o, velho uso indígena de incorporar
est ranhos à sua com unidade. Consist ia em lhes dar um a m oça
índia com o esposa. Assim que ele a assum isse, est abelecia,
automat icam ent e, m il laços que o aparent avam com t odos os
membros do grupo” 32.

Os frut os dest e processo foram os prim eiros m est iços que eram
rechaçados pelos dom inadores port ugueses e não queriam ser iguais
aos dom inados am eríndios. Sem um lugar definido nest a est rut ura
social, est ranhos em sua própria t er ra, serviam de algozes dos co-
nativos e subservientes dos estrangeiros.
A bem da verdade, é pr eciso chegar a um m eio t erm o, pois
t em os sim um alt o gr au de passividade fr ent e aos problem as
cot idianos e sociais. Est am os sem pre a espera do Est ado ou das
pessoas que ocupam lugar es de dest aque para resolverem nossos
problem as pessoais e colet ivos. Ao est arm os em sit uação de dest aque

31
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. 2ª ed. pág 167/ 168
32
idem. Pág 81

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ou privilégio, agim os com o m andat ários. Cont udo, som os t am bém


result ado de um pr ocesso de dom inação ét nica, que por força das
circunst âncias se deu por m eio da m iscigenação. Em suas fot os no
Brasil, Verger explora essa mistura. Gilberto Freyre defende que
“ t odo br asileiro, m esm o o alvo, de cabelo louro, t raz na alm a,
quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou
m ancha m ongólica pelo Br asil – a som bra, ou pelo m enos a
pint a, do indígena ou do negro. No lit oral, do Mar anhão ao Rio
Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalm ent e do negro. A
influência, direta ou vaga, do africano” 33.

Casa Amarela, Recife, PE - 1947

33
Freyre. Pág 283

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Pela dizim ação do cont ingent e am eríndio em nossa sociedade,


t alvez a presença m ais visível do processo de m est içagem venha a ser
a do negro. Apesar de vários cost um es indígenas est ar em perpet uados
em nossa cult ura ( t alvez pela rápida assim ilação por par t e dos
port ugueses) , os t raços físicos e de cor dos prim eiros habit ant es j á
foram diluídos em t odos nós. At é m esm o grande part e dos m em bros
das com unidades indígenas rem anescent es são m iscigenadas. Raras
são aquelas tidas como puras e livre do gene estrangeiro.
Se o processo de m est içagem , e consecut ivam ent e de for m ação
de nosso povo, com eçou ent re br ancos e índios, foi com a chegada do
negro africano que ele se concret izou. O cont ingent e africano foi o
br aço fort e de const rução da colônia e do im pér io. Est im a- se que
m ilhões de negros foram t razidos para cá na condição de escravos.
Pela inerent e condição de t am bém subordinados, os negros além de
t rabalhadores foram m uit as vezes o vent re gerador de nossa
população.
“ Na t ernur a, na m ím ica excessiva, no cat olicism o em que se
deliciam nosso sent idos, na m úsica, no andar, na fala, no cant o
de ninar m enino pequeno, em t udo que é expressão sincera de
vida, t razem os quase t odos a m arca da influência negra. Da
escr ava ou sinham a que nos em balou. Que nos deu de m am ar .
Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão
de com ida. Da negr a velha que nos cont ou as prim eiras est órias
de bicho e de m al- assom brado. Da m ulat a nos t ir ou o prim eiro
bicho- de- pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor
físico e nos t ransm it iu, ao ranger da cam a- de- vent o, a prim eira
sensação com plet a de hom em . Do m uleque ( sic) que foi nosso
primeiro companheiro de brinquedo”34.

Est a é, com cert eza, um a visão rom ânt ica de sua “ dem ocracia
racial” , t endo em vist a que at é hoj e o negros sofrem discrim inação

34
FREYRE. Pág 283

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sócio- racial no Br asil. Se out rora fora explícit a, a discrim inação


silenciosa dos dias atuais dá uma cara hipócrita à sociedade brasileira.
Contudo, talvez seja a questão da sexualidade que mais povoe o
im aginário do brasileiro quant o a nossa herança negra. Não quero
passar a vist a grossa em t odas as cont ribuições cult urais dos africanos
em seus m ais am plos aspect os de vest uário, culinária, art es,
utensílios, hábitos.
É inegável, desde os prim eiros cont at os por m eio do
cunhadism o, que nossa sexualidade com eça a ser desenvolvida de
form a bast ant e cont undent e. O port uguês encont r ou em nossas índias
os vent r es abert os e a possibilidade de dom ínio pela sim ples relação
sexual. Se com o índio foi assim , com os negr os ( que j á chegaram
dom inados) er a por luxúria e por ordem econôm ica ( m ult iplicação de
“ peças” ) que os senhor es e senhorzinhos usavam as negras escravas.
A liberdade sexual no Brasil era vivida de t al form a que dest e cenário
de libert inagem t ot al e irr est rit a, m uit o foi escrit o nos relat os dos
j esuít as e nos aut os da inquisição no Brasil. Vale salient ar que as m ais
diversas prát icas sexuais em at ividade em nosso país ocorriam por
t odos os cant os, m as perm aneciam de cert a form a veladas pelos
valores cat ólicos da sociedade port uguesa. Nas ruas, valia a m oral
cristã. Nas casas e nos matos, a libertinagem.
“ Nas condições econôm icas e sociais favoráveis ao m asoquism o
e ao sadism o criadas pela colonização port uguesa – colonização,
a princípio, de hom ens quase sem m ulher – e no sist em a
escr avocrat a de organização agrária do Br asil; na divisão da
sociedade em senhores t odo- poderosos e em escravos passivos
é que se devem procurar as causas principais do abuso de
negr os por brancos, at ravés de form as sadist as de am or que
t ant o se acent uaram ent r e nós; e em geral at ribuídas à luxúria
africana” 35.

35
idem. Pág 321

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O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

“ Se há hábit o que faça o m onge é o do escravo, e o africano foi


m uit as vezes obrigado a despir a cam isola de m ale par a vir de
t anga, nos negreiros im undos, da áfrica para o Brasil. Para de
t anga ou calça de est opa t ornar- se carregador de t igre. A
escr avidão desenraizou o negro de seu m eio social e de fam ília ,
soltando- o ent re gent e est ranha e m uit as vezes host il. Dent ro
de t al am bient e, no cont at o de forças t ão dissolvent es, seria
absurdo esper ar do escravo out ro com port am ent o senão o
imoral, de que tanto o acusam.
Passa por ser defeit o da raça africana, com unicado ao
br asileir o, o erot ism o, a luxúria, a depravação sexual. Mas o que
se t em apurado ent re os povos negros da África, com o ent re os
prim it ivos em geral, é um a m aior m oderação do apet it e sexual
que ent re os europeus. É um a sexualidade, a dos negros
africanos, que par a excit ar- se necessit a de est ím ulos picant es.
Danças afrodisíacas. Cult o fálico. Orgias. Enquant o que no
civilizado o apet it e sexual de ordinár io se excit a sem grandes
provocações. Sem esforço. A idéia vulgar de que a raça negra é
chegada, m ais do que as out r as, a excessos sexuais, at ribui- a
Ernest Crawley ao fat o do t em peram ent o expansivo dos negros
e do carát er orgiást ico de suas fest as criar em a ilusão de
desbragado erot ism o. Fat o que ‘indica j ust am ent e o cont rário’ .
Havelock Ellis coloca a negr a ent re as m ulheres ant es frias que
fogosas: ‘indiferent es aos refinam ent os do am or’. E, com o Ploss,
salient e o fat o de os órgãos sexuais ent re os povos prim it ivos
serem muitas vezes, pouco desenvolvidos.
Diz- se geralm ent e que a negr a corrom peu a vida sexual
da sociedade brasileira, iniciando precocem ent e no am or físico
os filhos- fam ília. Mas essa corrupção não foi pela negr a que se
realizou, m as pela escr ava. Onde não se realizou pela africana,
realizou- se pela escrava índia. O padre Manuel da Fonseca, na
sua ‘Vida do Padre Belchior de Pont es’, é quem responsabiliza
pela fácil depravação dos m eninos coloniais a m ulher índia. E de

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um zona quase sem salpico nenhum de sangue negro é que


escr eveu no século XVI I I o Bispo do Pará: ‘a m isér ia dos
cost um es dest e paiz m e faz lem br ar o fim das cinco cidades por
m e parecer que m or o nos subúrbios de Gom or ra, m ui próxim o,
e na vizinhança de Sodoma’.
É absurdo responsabilizar- se o negro pelo que não foi
obra sua nem do índio m as do sist em a social e econôm ico em
que funcionavam passiva e m ecanicam ent e. Não há escr avidão
sem depravação sexual. É da essência m esm a do regim e. Em
prim eiro lugar, o próprio int eresse econôm ico favorece a
depr avação criando nos propr iet ários de hom ens o im oder ado
desej o de possuir o m aior núm ero possível de crias. Joaquim
Nabuco colheu num m anifest o escravocrat a de fazendeiros as
seguintes palavr as t ão ricas de significação: ‘a part e m ais
produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador’” 36.

Darcy Ribeiro r eforça est a idéia e conclui dizendo ser a sociedade


brasileira, talvez, a primeira civilização de âmbito mundial.
“ A fam ília pat riarcal do senhor, seus filhos e aparent ados m ais
diret os, ocupava t ão exaust ivam ent e as funções do lar de t ipo
rom ano que não deixava espaço para out ras form as dignas de
acasalam ent o. O próprio senhor e seus filhos eram , de fat o,
reprodut ores solt os ali par a em prenharem a quem pudessem .
Nenhum a hipót ese havia nesse am bient e par a que os negros e
m est iços t ivessem qualquer chance de se est rut urar
familiarmente.
A hist ória do Brasil é, por isso, a hist ória dessa
alt ernidade original e das que a ela se sucederam . È ela que dá
nascim ent o à prim eira civilização de âm bit o m undial, art iculando
a Am érica com o assent am ent o, a África com o provedora de

36
idem. 315/316

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força de t rabalho e a Europa com o consum idor privilegiado e


como sócio principal do negócio” 37.

2.2 A identidade sexual brasileira

Comércio, Salvador, BA – 1946/1978

A quest ão da ident idade sexual perpassa t oda a hist ória da


hum anidade. Desde a ant iguidade, o pat riarcalism o surge com o form a
de dom inação e exploração do hom em sobre a m ulher. Cont udo, o
carát er da m asculinidade t em sido post o em cheque nas últ im as

37
RIBEIRO. Pág 278

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décadas por vários m ovim ent os sociais, onde se dest aca a at uação da
m ilit ância gay e fem inist a. At ualm ent e, o m undo assist e a um a crise
dos paradigm as do pat riarcalism o em quase t odas as sociedades. De
acordo com Castells,
“ o pat riarcalism o é um a das est rut uras sobre as quais se
assent am t odas as sociedades cont em porâneas. Caract eriza- se
pela aut oridade, im post a inst it ucionalm ent e, do hom em sobre a
m ulher e filhos no âm bit o fam iliar. Para que essa aut oridade
possa ser exercida, é necessário que o pat riarcalism o perm eie
t oda a organização da sociedade, da produção e do consum o à
polít ica, à legislação e à cult ura. Os r elacionam ent os
int erpessoais e, conseqüent em ent e, a personalidade, t am bém
são m arcados pela dom inação e violência que t êm sua origem
na cult ura e inst it uições do pat riarcalism o. É essencial, por ém ,
t ant o do pont o de vist a analít ico quant o polít ico, não esquecer o
enraizam ent o de pat riarcalism o na est rut ura fam iliar e na
reprodução sócio- biológica da espécie, contextualizados histórica
e cult ur alm ent e. Não fosse a fam ília pat r iarcal, o pat riarcalism o
ficaria expost o com o dom inação pur a e acabaria esm agado pela
revolt a da ‘out ra m et ade do paraíso’, hist oricam ent e m ant ida
em submissão” 38.

O Brasileiro fot ografado, na década de 40, não foge à regra.


Herdadas as relações de dom inação do período colonial e im perial, a
est rut ura fam iliar, social, polít ica, econôm ica e cult ural perm anece
quase que inalt erada. É um país de difer enças e difer ent es. O abism o
que r eforça as difer enças surge das r elações de poder dos ricos sobre
os pobres, dos hom ens sobre as m ulheres, dos brancos sobre negros,
índios e m est iços. Cont udo, Verger er ot iza t odos os hom ens que
fot ografa, buscando um olhar, um a pose, um ângulo que o deixe
provocante.

38
CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2001. pág 169.

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No paradigm a pat riarcal do século XX, para exercer seu “ poder”


por sobre as mulheres, o homem precisa, antes de tudo, provar que de
fat o o é. Em t udo, o hom em é forçado a difer enciar- se das m ulher es e
de t udo que se j ulga fem inino. São t rês as negações básicas par a se
afirm ar um a ident idade m asculina: provar que não é um a m ulher, não
é um bebê e não é um hom ossexual ( vist o que o hom ossexualism o,
quase sem pr e, é ident ificado, na cont em por aneidade, com o gênero
feminino).
O pat riarcalism o m olda seus at or es por m eio da ocult ação de
suas fr agilidades. O hom em não pode dem onst rar sent im ent os, não
pode expor sua sensualidade, deve se ater às questões da liderança de
sua família.
“ O pat riarcalism o exige het erossexualidade com pulsória. A
civilização, conform e conhecida hist oricam ent e, é baseada em
t abus e repressão sexual. Segundo Foucault , a sexualidade é
const ruída socialm ent e. A regulam ent arização do desej o est á
subordinada às inst it uições sociais, canalizando assim a
t ransgressão e organização a dom inação. Quando a epopéia da
hist ória é observada pelo lado ocult o da experiência, not as- se a
exist ência de um a espiral infinit a ent re desej o, repr essão,
sublim ação, t r ansgressão e cast igo, r esponsável em grande
part e, pela paixão, r ealização e fracasso. Esse sist em a coerent e
de dom inação, que liga as art érias do est ado à pulsação da
libido pela m at ernidade, pat er nidade e fam ília, t em seu pont o
fr aco: a prem issa het erossexual. Se essa prem issa for
quest ionada, t odo o sist em a desm orona: a r elação ent re o sexo
cont rolado e a reprodução da espécie é post a em dúvida; a
congregação de ir m ãs e a revolt a das m ulher es t ornam - se
possíveis pela ext inção da separação por gênero do t rabalho
sexual que diverge as m ulheres; e o vínculo m asculino é um a

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am eaça à m asculinidade, solapando a coerência cult ural das


instituições dominadas pelos homens” 39.
Sendo assim, os movimentos gays têm um efeito crucial na crise
do patriarcalismo, pois não apenas exigem o direito a outras formas de
afet ividade, m as explicit am out ras ident idades sexuais e,
consecutivamente, liberação sexual.
As fot ografias feit as de hom ens por Verger carr egam em si um a
enorm e carga de hom oerot ism o. Não são raras as poses sensuais, os
olhar es indiscret os, as roupas j ust íssim as. Verger fet ichiza o hom em
por m eio da exploração de t odo e qualquer elem ent o que possa
erotizá- lo. As lent es do fot ógrafo subvert em papéis. De caçadores,
num “click”, os homens passam à caça.

Ribeira, Salvador, BA - 1947

39
Idem. Pág 238.

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Enfim, brasileiros

Quando é que nasce de fat o o nosso reconhecim ent o ét nico


enquant o br asileiros? De onde com eça a ser form ada nossa
identidade? Darcy Ribeiro responde dizendo que
“ É bem provável que o brasileiro com ece a surgir e a
reconhecer- se a si próprio m ais pela per cepção de est r anheza
que provocava no lusit ano, do que por sua ident ificação com o
m em bro das com unidades sociocult urais novas, porvent ura
t am bém porque desej oso de r em arcar sua diferença e
superioridade frent e aos indígenas. Naquela busca de sua
própria identidade, talvez até se desgostasse da idéia de não ser
europeu, por considerar, ele t am bém com o subalt erno t udo que
era nat ivo ou negr o. Mesm o o filho de pais brancos no Brasil,
m azom bo, ocupando em sua própria sociedade um a posição
inferior com respeit o aos que vinham da m et r ópole, se vexava
muito de sua condição de filho da t erra, recusando o t rat am ent o
de nat ivo de discrim inando o brasilíndio m am eluco ao considerá-
lo como índio. O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o
m am eluco, esse brasilíndio m est iço na carne e no espírit o, que
não podendo ident ificar- se com os que for am seus ancest rais
americanos – que ele desprezava- , nem com os europeus – que
o desprezavam- , e sendo objeto de mofa dos reinóis e dos luso-
nativos, via- se condenado à pretensão de ser o que não era nem
exist ia: o brasileiro. At ravés dessas oposições e de um
persist ent e esforço de elabor ação de sua própria im agem e
consciência com o correspondent es a um a ent idade ét nico-
cult ural nova, é que surge, pouco a pouco, e ganha corpo a
brasilianidade. É bem provável que ela só t enha se fixado
quando a sociedade local enriqueceu, com cont ribuições m aciças
de descendent es dos cont ingent es africanos, j á t ot alm ent e
desafricanizados pela m ó acult urat iva da escravidão. Esses

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m ulat os ou eram brasileiros ou não eram nada, j á que a


ident ificação com o índio, com o africano ou com o brasilíndio
era im possível. Além de aj udar a propagar o port uguês com o
língua cor rent e, esses m ulat os, som ados aos m am elucos,
form aram logo a m aioria da população que passaria, m esm o
cont ra sua vont ade, a ser vist a e t ida com o gent e brasileira.
Ainda que a especialização produt iva ecológico- regional –
açúcar, gado, ouro, borracha, et c – conduzisse a difer enciações
locais r em arcadas, aquela com unidade básica originalm ent e
luso- t upi se m ant ém , sem pre dando um a linha de cont inuidade,
que t ant o dest aca sua especificidade ét nica com o opõe as
matizes das quais surgiu e que matou ao constituir- se” 40.

O dilema brasileiro

Diant e do processo de form ação da nossa sociedade, Robert o


DaMat t a nos apresent a um a dualidade const it ut iva do br asileiro. De
acordo com o ant r opólogo, podem os sem pre fazer um a leit ura
inst it ucionalist a e out r a cult uralist a da nossa form ação, sem perder de
vista que ambas nos são inerentes como dois lados de uma moeda.
Ao t rilhar m os o cam inho inst it ucionalist a, serem os forçados a
olhar o brasileiro com o indivíduo, que na t r adição inst it ucional é,
geralm ent e, um ‘João Ninguém ’. Cairem os inefavelm ent e nos
m acroprocessos polít icos e econôm icos, que nunca levaram em
consideração o cidadão com um . Em sua grande m aioria, as decisões
nas alt as inst âncias do poder beneficiar am sem pre um núm ero bem
pequeno de componentes da elite.
Ainda dent ro da abordagem inst it ucionalist a, vislum bram os o
âm bit o do público e da rua. DaMat t a considera que ent re nós a rua é
uma instituição fortíssima, onde imperam todas as condutas oficiais, as
leis, as regr as, as r epr essões. Seria um am bient e host il para t odos.

40
RIBEIRO. Pág 127

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Não é de se est ranhar as conclusões a que chegam os diant e do


cruzam ent o dest a inform ação com as inform ações do período colonial.
Elas nos dizem a mesma coisa: na rua, a ordem; em casa, a liberdade.
“ Mas, além disso tudo, a rua é o espaço que permite a mediação
pelo t rabalho – o fam oso ‘bat ent e’, nom e j á indicat ivo de um
obst áculo que t em os que cruzar, ult r apassar ou t ropeçar.
Trabalho que no nosso sist em a é concebido com o cast igo. E o
nom e diz t udo, pois a palavra deriva do lat im t ripaliare, que
significa castigar com tripaliu, instrumento que, na Roma Antiga,
era um obj et o de t ort ura, consist indo num a espécie de canga
usada para supliciar escravos” 41.

Se Buarque est á cert o e herdam os o personalism o dos ibéricos,


ele se põe não no âm bit o do indivíduo, m as no da pessoa. A pessoa é
o foco da leit ura cult uralist a, é sem pre o personagem do nosso dia- a-
dia. É na pessoa que vem os o cot idiano, os usos e os cost um es. É na
sociologia da pessoa que vam os adent r ar o ínt im o de nossa sociedade.
Vam os sent ar no sofá da sala e conversar conosco, pois a casa é o
lugar onde m oram os, o lugar da solidariedade, da cordialidade. Est ar
em casa é estar à vontade. É poder ser.
Todavia, há um período onde ocorre uma troca, uma inversão de
valores onde a rua vira casa. Esse período cham a- se carnaval. O
carnaval é a fest a m ais im port ant e de nosso calendário e de nossa
sociedade. Seu car át er popular e dem ocrát ico perm it e por m eio da
fant asia que o João Ninguém se t orne Alguém , que passe de anônim o
a rei, ou ainda à personagem m it ológico ou figura alheia de si no
cotidiano. No carnaval, se é quem quiser ser.
O carnaval reúne vários aspect os, folguedos e m anifest ações
populares, ret irados do dia- a- dia da cult ura nacional. Tenham os
sem pre com o idéia de cult ura os significados associados pelas
sociedades às coisas e aos m odos com o os hom ens m odificam o
am bient e nat ural, por m eio dos inst rum ent os por eles criados. Alguns

41
DAMATTA, Roberto. Pág 31

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períodos ext raordinários, ou sej a, a m aioria das fest as ganha um


carát er folclórico, onde são per m anent em ent e at ribuídos aut ent icidade
e pur eza pelos grupos t radicionalist as. Est es aspect os são vist os
fr eqüent em ent e com o a “ essência cult ural da nação” e devem ser
pr eservados das renovações da cont em por aneidade. Segundo Muniz
Sodré,
“ o carnaval j á foi um a expressão espont ânea da vont ade
colet iva de liber ar- se, divert indo- se. No Rio, as m ult idões
realm ent e se em penhavam de corpo e alm a nas violentas
bat alhas do ent rudo, em que lim ões de cheiro, farinha de gom a
e hort aliças faziam as vezes de arm as da anim ação. Mais t arde,
os bairros, os subúrbios organizavam suas fest as, const ruindo
coret os, palanques e prom ovendo corsos, blocos e ranchos. Os
com erciant es, abast ados e pobres, aj udavam a pagar os cust os
da decor ação. Depois de 1930 – quando com ércio, em
conseqüência de várias alt er ações nas r elações de produção,
reorganizou- se em bases m ais capit alist as, im pessoalizando- se
[sic] – os com erciant es deixaram de auxiliar os grupos
carnavalescos. Ent ão, porém , o carnaval j á se oficializava, e as
t ar efas de organização da fest a popular com eçavam a ser
encam padas pelas aut oridades m unicipais. ( ...) a cult ura de
m assa assim ilou o carnaval, m as deixando de lado seu car át er
dionisíaco, t alvez m esm o hist érico ( no sent ido grego de rit o
colet ivo ut erino ou afrodisíaco) , que im prim ia à diversão um
forte sentido de contestação psicossocial. O que era consagração
rit ual de alegria t ransform ou- se na sugest ão est ét ica ( sem
42
nenhuma transfiguração criadora) desse estado de espírito” .

Cont udo, as m anifest ações popular es são dinâm icas e int egram
os novos elem ent os da m odernidade, bem com o dialogam com out ras
expressões artísticas e comemorativas.

42
SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco: introdução à cultura de massa brasileira.
Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1977. pág 34-35

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Como observa Maria Laura Viveiros de Castro,


“ as fest as m ant êm com o cot idiano um a relação de licença
poética: sem dele se esquecerem, até porque supõem laboriosos
pr eparat ivos e m et iculosa organização, dele se afast am
t em porariam ent e, int roduzindo- nos num t em po especial por
m eio de elaborada linguagem ar t íst ica e sim bólica. Um t em po
cíclico, fort em ent e ligado à experiência vit al; cheio de cont eúdos
cognit ivos e afet ivos. Um t em po que ent r ecruza o calendário
hist órico e t raz de volt a, a cada ano, as diferent es fest as do
calendário popular. Sem pre, ao volt arem , as fest as t razem
consigo algum a novidade, e assim , de m odo lent o, m uit as vezes
im percept ível, vão se m odificando, se recom pondo, às vezes
m esm o se reinvent ando. Tom am elem ent os em pr est ados daqui
e ali ( pois reparem bem : as diferent es fest as conversam ent re
si! ) , conferem sent ido novo a velhos aspect os. Às vezes, algum
elem ent o int egrant e de um a t ot alidade fest iva dest aca- se de
43
modo tão acentuado que parece alçar vôo próprio”.

As fest as, com o o carnaval, expõem a cult ura popular num


uníssono ent re si e com o cot idiano. Elas são um inst rum ent o de ação
e renovação da identidade nacional, pois ligam o passado e o presente,
num const ant e m ovim ent o regener at ivo. Mesm o com o advent o da
m odernização, da sociedade da inform ação e da onipr esença dos
m eios de com unicação de m assa; os m ovim ent os de cult ura popular
nos m ost ram um vigor ím par de persist ência fr ent e às quest ões da
atualidade.

43
VIVEIROS DE CASTRO, M.L. Um olhar sobre a cultura brasileira: Superproduções populares.
Disponível em http://www.minc.gov.br/textos/olhar/superproduções.htm

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Capítulo 3

A folia no olhar
O carnaval flagrado

Todas as sociedades t êm em seu calendár io períodos ordinários


e ext r aordinários. O prim eiro deles é car act erizado pela rot ina e pela
vigência dos parâm et ros t idos com o cot idianos. Já, o segundo é regido
pelo novo, ou pelo m enos, pelo desvio nas at ividades e valor es do dia-
a- dia. Na organicidade social, a passagem de um para o outro pode ser
realizada colet iva ou individualm ent e, dependendo dos espaços e das
circunst âncias. Junt os eles aj udam a form ar o r et rat o, a ident idade de
determinado grupo.

Na sociedade brasileira, a rot ina est á sem pre ligada a quest ão


do t rabalho e das obrigações cot idianas. Tant o na r ua quant o em casa
desem penham os o m esm o papel social t odos os dias; ao passo que,
nos períodos ext raor dinários, subvert em os as ordens e os valores num
menor ou maior grau. O período extraordinário de maior relevância em
nosso m eio social cham a- se carnaval. Tam anho é o grau de r elevância
dest a fest a par a nós, que som os com um ent e ident ificados e
caracterizados com as idéias e valores atrelados a ela.
Segundo Roberto DaMatta,
“ sabem os que o carnaval é definido com o ‘liberdade’ e com o
possibilidade de viver um a ausência fant asiosa e ut ópica de
m iséria, t rabalho, obrigações, pecado e dever es. Num a palavra,
trata- se de um m om ent o onde pode- se deixar de viver a vida
com o far do e cast igo. É, no fundo, a oport unidade de fazer t udo
ao cont r ár io: viver e t er um a experiência do m undo com o
excesso – m as agora com o excesso de pr azer, de riqueza ( ou de
‘luxo’, com o se fala no Rio de Janeiro) , de alegria e de riso; de
pr azer sensual que fica – finalm ent e – ao alcance de t odos. A
‘cat ást rofe’ que o carnaval brasileiro possibilit a é a da
dist ribuição t eórica do pr azer sensual par a t odos. Tal com o o

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desast re dist ribui o m alefício ou a infelicidade par a a sociedade,


sem escolher ent re r icos e pobr es, com o acont ece normalmente,
o carnaval faz o m esm o, só que ao cont r ário. O Rei Mom o,
Dionísio, o Rei da I nversão, da Ant iest rut ura e do
Desregram ent o, coloca agor a um a possibilidade curiosa e, por
isso m esm o, carnavalesca e im possível no m undo real e das
coisas sérias e planificadas pelo t rabalho. E que ele sugere um
universo social onde a regra é prat icar sist em at icam ent e t odos
44
os excessos!” .

3.1 Origens do Carnaval

A origem do carnaval é m uit o discut ida, pois apr esent a várias


versões. A m ais usual é que a fest a t enha m igrado do Egit o Ant igo
para a Grécia Ant iga e post eriorm ent e para o I m pério Rom ano.
Cont udo, o sent ido original da fest a é consenso: o cult o de celebração
a t erra e sua fert ilidade, sem eadura e colheit a. Nest as ocasiões, er am
com uns a fart ura de com ida e bebida, além da exacerbação e
efervescência dos prazeres humanos estendidos a todos os mortais.

O sentido destas festas é explicado por Sebe da seguinte forma:

“ A noção da t erra com o fêm ea fecundada e responsável pela


vida se cont rapõe à de um ser m asculino que, depois de
exper im ent ar t odos os prazer es, deveria m orrer ou
sim plesm ent e sum ir. O rei, ou deus, fecundador encerraria, com
sua m ort e, a época da fest a e abriria um out ro espaço no
calendário: a fase de resignação, recolhim ent o, m ort ificação e
disciplina, enfim um a época de ‘cinzas’. A m edit ação e a culpa
45
seriam constantes deste tempo” .

44
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1997.pág 73
45
SEBE, José Carlos. Carnaval, Carnavais. São Paulo: Ed Ática, 1986. pág 11.

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Est a lógica explica perfeit am ent e a figura do Rei Mom o ( m esm o


que seu aparecim ent o propriam ent e dit o venha a ocorrer m uit o t em po
depois) e da festa em nossos dias.

Com a ascendência do crist ianism o ainda no I m pério Rom ano,


alguns dest es elem ent os foram incorporados às pr át icas crist ãs. De
form a t al que alguns papas pat rocinavam as fest as com o m eio de
obt er respaldo polít ico e popular dent ro da sociedade. Alguns
est udiosos at ribuem a est a época o surgim ent o do carnaval com o
popular.

O período das cinzas, ou sej a, da reflexão, expurgação e


recuper ação física do corpo ficaria conhecido no sent ido crist ão com o
quaresm a. Depois da fest a, os fiéis dariam “ adeus à carne”
( carnelevamen em baixo lat im ) e iniciariam a celebração do período
conhecido com o paixão de Crist o. A t radição carnavalesca se espalhou
por t odos os t errit órios pagãos ( por m eio do im pério) e crist ãos ( por
m eio da igrej a) , t om ando, de form a quase onipresent e, t odo o
continente europeu.

3.2 A festa brasileira

Se o carnaval t inha na Europa um a est reit a relação r eligiosa, ele


surge no Br asil, sobret udo, propost o pelas aut oridades port uguesas
com a função social de int egração do cont ingent e negro e índio.
Segundo o pensam ent o dom inador port uguês, er a preciso disciplinar
as m anifest ações cult urais dos subalt ernos. Nada m ais apropriado,
ent ão, que se propusesse ent ret enim ent os t ípicos da m et rópole com o
forma de domesticação sócio- cultural.

Coroa e I gr ej a j unt as faziam fest as e cerim ônias públicas


pom posas com o form a de m aravilhar a sociedade e se perpet uar na
m em ória da população. A adm inist ração, cont udo, ficava cent r alizada
nas mãos das autoridades civis em detrimento das religiosas.

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O brasileiro não foi barroco som ent e na art e ( de decorar


igrej as) . Ele o é t am bém no m odo de exist ir. De acor do com Roger
Bast ide, esse est ilo de vida invade as ruas nas procissões r eligiosas e,
porque não, dur ant e o período m om esco 46. A hist ória de nosso
carnaval com eça j ust am ent e quando herdam os de Port ugal o j ogo do
entrudo. Na metrópole, quando na realização de festas, o espírito era o
dom inant e em t odo o cont inent e, onde t rabalho e devoção est avam
intimamente ligados.

O ent rudo, foi, sem dúvidas a cont ribuição port uguesa m ais
significante para o carnaval brasileiro. Quando a festa chegou por aqui,
ainda no Brasil Colônia, era com um a part icipação de religiosos.
Padr es, fr eir as e bispos part icipavam das fest as com a m esm a
liberdade que os fiéis. Era um a prova de int egr ação com as out ras
cast as da sociedade. Nest e período ( t rês dias que ant ecedem a
quaresm a) , t odos os excessos eram perm it idos. Segundo José Carlos
Sebe,
“ pelas descrições, sabe- se que o ent rudo era um a ‘verdadeira
bat alha’ e a m unição era: pós brancos e coloridos; folhas e
obj et os com o ovos e frut as, m as sobret udo j at os de água
despej ados das j anelas ou lançados por seringas enorm es, e é
cert o que havia um prazer incont ido em m olhar as pessoas. O
ent rudo era um a pr át ica de rua, a céu abert o. Os part icipant es,
sem pre em grupos, ent r avam em confr ont os, algum as vezes
anim ados pela sim ples vont ade de br incas; out ras, cont udo,
agressivam ent e com o revide. A cada ‘at aque’ deveria
corresponder um a respost a, chegando sem pre ´ j ogo’ a
conseqüências sérias. Os produtos utilizados variavam muito. No
caso de líquidos, ia desde per fum e, ‘caldos coloridos’ conhecidos
com o ‘sangue de diabo’, at é urina. Em regra, t ais líquidos eram
acondicionados nas cham adas ‘frut as do ent rudo’ ou

46
BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste Místico em Preto e Branco. Rio de Janeiro: Empresa
Gráfica “O Cruzeiro”,1945. pág 32

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sim plesm ent e ‘lim ões’ ou ‘lar anj inhas’. Os pós variavam desde
farinha do reino ( t rigo) , rapé, areia, at é o arom át ico pó- de- arroz
47
ou pó- da- china.”

Segundo Verger, nas “ fest as nas quais t om avam part e padres e


cônegos e que eram senão sat urnais burlescas e obscenas que se
48
perpet uar am at é o século XVI ” havia a part icipação de dançarinos
africanos. Est e fat o explica com o a part icipação negra nas procissões e
nos j ogos do ent rudo no Brasil er a perm it ida. Para t erm os um a idéia
do que eram as pr ocissões em Port ugal, Gilbert o Freyre descreve um
cortejo de Corpus Christi:

“ Não se faz idéia do que foram as procissões de Corpus Christ i


em Portugal nos séculos XVI e XVII. Uma do século XV, que vem
descrit a em O Panoram a ( Lisboa) , vol.2, 1838, pode servir de
exem plo. Prim eiro a procissão, organizando- se ainda dent ro da
igrej a: pendões, bandeiras, dançarinos, apóst olos, im peradores,
diabos, sant os, rabis com prim indo- se , pondo- se em ordem .
Pranchadas de soldados para dar m odos aos saleint es. Àfr ent e,
um grupo dançando a ‘j udinga’, dança j udia. O Rabi levando a
Torá. Depois dessa seriedade t oda, um palhaço fazendo
m ungangas. Um a serpent e enorm e, de pano pint ado sobre um a
arm ação de pau, e vários hom ens por debaixo. Ferreiros.
Car pint eiros. Um a dança de ciganos. Out ra de m ouros. São
Pedro. Pedreiros trazendo nas mãos castelos pequenos, como de
brinquedo. Regat eiras e peixeiras dançando e cant ando.
Barqueiros com im agens de São Crist óvão. Past ores. Macacos.
São João rodeados de sapat eir os. A Tent ação represent ada por
m ulher dançando, aos r equebros. São Jorge, prot et or do
Exércit o a cavalo e aclam ado em oposição a Sant o I ago,
prot et or dos espanhóis. Abr aão. Judit e. Davi. Baco sent ado

47
SEBE, José Carlos. Carnaval, Carnavais. São Paulo: Ed Ática, 1986. pág 11.

48
VERGER, Pierre. Procissões e Carnaval no Brasil. In: Verger- Bastide: Dimensões de uma
amizade. LÜHNING, Ângela (ORG). Bertrand Brasil. Pág 237

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num a pipa. Um a Vênus sem inua. Nossa senhor a num


j um ent inho. O Menino Deus. São Jor ge. São Sebast ião nu
cercado de hom ens m alvados fingindo que vão at irar nele.
Frades. Freiras. Cruzes alçadas. Hinos sacros. O Rei. Fidalgos.
Toda a vida portuguesa, enfim.” (APUD Verger)49

Com os m ovim ent os da Refor m a e Cont ra- Refor m a som ado às


críticas, cada vez m ais ferrenhas, aos pagãos; as procissões e as
fest as eur opéias ficar am m ais sóbrias. A part icipação do clero nas
fest as profanas foi vet ada pela cúpula da I grej a, que buscava apagar
os cost um es carnavalescos m edievais da sociedade. Os negros que
part icipavam dessas procissões passaram a não m ais dançar e se
tornaram devotos, muitas vezes até membros de confrarias religiosas.

No Brasil, esse aspect o fez com que as organizações religiosas


dos negros t om assem um carát er especial no qual se m ist uravam
valores cult urais e de fé t razidos do cont inent e africano ao cat olicism o
imposto pelos portugueses.

“ Est a influência africana era clar am ent e visível ( e ainda é) na


devoção m uit o popular na Bahia, ao Senhor do Bonfim ,
sincret izado com Oxalá, divindade nagô- iorubá da Criação.
Tinha- se adquirido o hábit o, ent re os devot os do Senhor do
Bonfim e de Oxalá, de lavar o piso da igr ej a na quint a- feira
pr ecedent e ao t erceiro dom ingo de j aneir o. ( ...) Ant igam ent e, a
lavagem do piso do t em plo dava lugar a barulhent as
m anifest ações. Er am só grit os e cânt icos sonoros, a água
despejada dos vasos em torrentes, as mulheres esfregavam com
energia e vigor o piso com vassouras decoradas com fit as
br ancas, encoraj adas pelos num erosos assist ent es. O
ent usiasm o crescia t ant o, o álcool aj udando a com bat er os
efeit os nocivos da um idade, que em pouco t em po era um a
verdadeir a bacanal e os j ornais no dia seguint e se queixavam

49
Idem. pág 238

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( ...) m ais t arde a or dem foi int roduzida nessas m anifest ações
barulhent as, às quais falt ava o recolhim ent o. Foi exigido m ais
respeit o no recint o da igr ej a. A lavagem foi lim it ada às
escadarias ext eriores do adro, t om ando assim carát er m ais
folclórico que r eligioso. A alegria t ransbordant e que
acom panhava a lavagem foi derivada para um a out ra fest a que
foi organizada em local próxim o, a Ribeira, na segunda- feira
seguinte. Celebr a- se, ent ão, o m ais alegre dos ‘carnavais’ com
uma fogosidade e uma animação trepidante e contagiosa” 50.

Ent r e nós, o período do ent rudo, os dias gordos, corr esponde ao


auge do verão. A fest a consist ia num a verdadeira guerr a, de form a
que t udo era m uit o grot esco. A fest a era t ão bem aceit a, na sociedade
brasileira, que at é nos t eat ros er a perm it ido o j ogo. Nas ruas, os
negros desfilavam m ascarados, dançando, cant ando, seguidos de um a
chanchada.

“ Esses grupos são, par ece, os ant epassados dos blocos e


cordões que deram , em seguida, um carát er part icular ao
Carnaval de rua nas principais cidades do Brasil e t ornou
fam osos os do Rio de Janeir o, Bahia e Recife. Est a form a de
divert im ent o carnavalesco ( os cort ej os) se organizou a part ir da
m et ade do século XI X após a proibição de 1853 do grosseiro
j ogo do ent rudo. A part ir dessa época, dois t ipos de Carnaval se
desenvolveram, o dos salões (depois dos clubes) e o das ruas. O
prim eiro fr eqüent ado pelos brancos e m ulat os da ‘boa
sociedade’; e o segundo pelas cam adas populares das cidades,
51
compostas em sua maioria por negros e mulatos escuros” .

50
idem. Pág 244- 245- 246
51
idem. Pág 248

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No Recife,
“ os prim eiros divert im ent os carnavalescos, alt er nat ivos aos
j ogos de Ent rudo, foram desfrut ados nas casas grandes e sít ios
de gent e abast ada da t erra. Naquela época, er a cost um e as
famílias das classes dominantes locais passarem a temporada de
ver ão e de fest as em casas de sít ios, refrescando- se nas
margens, então aprazíveis, do rio Capibaribe” 52.
Proibido o j ogo do Ent rudo, as classes popular es, im pedidas de
realizar em a guerra de lim ões, t om avam as ruas dançando e
fest ej ando. A m ult idão enfurecida assust ava as elit es, que ainda
organizavam as fest as, m as se refugiavam nos int erior dos seus carros
e divertiam- se entre si, nos corsos.

Recife, PE - 1947

52
ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Festas: máscaras do tempo: entrudo, mascarada e frevo no
carnaval do Recife. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1996. pág 179.

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Verger fot ografa essa m ult idão em seu est ado de ebulição. São
t odos os t ipos hum anos e t odas as raças m ist uradas. Som brinhas ao
ar, cam isas encharcadas, espaço nenhum ent re um e out ro.
Cont rariando as leis da física, não apenas dois corpos ocupam o
mesmo espaço ao m esm o t em po, m as vários. I núm eros. No quadro,
vê- se apenas braços, om bros, pescoços, cabeças, bonés, chapéus,
t oucas. Em m eio à t urba apenas dois rost os virados para a câm era. O
prim eiro int encionalm ent e. De braços abert os, o personagem t om a o
negat ivo para si. Faz quest ão de exist ir, de se m ost rar. O segundo
parece em êxt ase. Traduz o sent im ent o de dionisíaco que a fest a
carr ega. Olhos fechados t raduzem o gozo. O rost o virado para o sol
parece irradiar a energia propulsora da massa.
Apesar do carnaval em Recife e Olinda t er se desenvolvido por
m eio do pat rocínio das fam ílias t radicionais e abast adas das duas
cidades, t alvez t enha sido o cort ej o do m aracat u a prát ica que deu
m ais personalidade à fest a pernam bucana. Mesm o exist indo em out ras
regiões do Nordest e e t r anspondo a barreir a dos dias m om escos, a
encenação da coroação do Rei do Congo é um dos m om ent os m ais
solenes e ricos de folclore, t r adição e reafirm ação da cult ura negra na
sociedade.
Est a é um a cerim ônia m ant ida desde a época colonial. Em
m eados do século XI X, a pr át ica da coroação foi subst it uída pelo “ Aut o
do Congo” , encenação que deu origem ao m aracat u. Cada grupo de
m aracat u const it ui um a nação e seus m em bros desfilam ricam ent e
pelas ruas com suas roupas de época, dançando um a coreografia
própria e entoando, alternadamente, cânticos religiosos e festivos.
No Recife, as nações eram form adas ger alm ent e por negros
descendent es de Angola, apesar de haver gent e de vários lugares.
Dois t ipos de m ar acat u se apr esent am no carnaval: os de baque solt o
e as nações de baque virado. Mais ant igas e t r adicionais nas canções
( loas) e na dança, est as últ im as t r azem em seu inst rum ent al
exclusivam ent e a percussão - predom inant em ent e form ada por

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gonguês, t aróis, caixas de guer ra, alfaias e zabum bas. As m úsicas em


muito se assemelham ao toque do Xangô e do candomblé.

Maracatu Elefante, Recife, PE – 1947

No carnaval de 1947, em sua passagem pelo carnaval


pernambucano Verger faz um registro raro de um dos mais tradicionais
m aracat us de baque virado do Recife, o Elefant e. Conduzido pela
lendária D. Santa, o próprio fotógrafo descreve sua experiência:
“ Os grupo de m aracat u de Recife eram um a versão fest ivada
inst it uição dos ‘Reis Congos’, da qual já falam os acim a.
Apareciam , out ror a, nas ruas da cidade, na noit e da véspera da

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Fest a dos Reis Magos ( Epifania) , para represent ar a chegada a


Belém do Rei Balt azar vindo adorar o Jesus Menino. As
aut oridades religiosas t ransferiram , em seguida, a r ealização
dest e pom poso m as ruidoso desfile para a época do carnaval,
transformando um ato de fé numa diversão de caráter mais fútil.
O espírit o religioso que anim a esses grupos cont udo não
desapareceu, e se m anifest a sob um a form a sincrét ica, onde
est ão present es a religião cat ólica e a dos deuses africanos, cuj o
cult o se m ant eve no Brasil ent re os descendent es dos negros
t razidos de além - at lânt ico pelo t r áfico. Ant es de part ir para as
ruas o cort ej o for m ado pelos m em bros do m aracat u, um a breve
cerim ônia era realizada na sede da sociedade, para solicit ar a
prot eção dos deuses da África. Sua prim eira visit a na cidade é à
Igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde todos os participantes
do m ar acat u vão fazer , em conj unt o, sua devoção. Lem bro- me
de t er acom panhado assim o Maracat u do Elefant e, cuj a r ainha
era dona Sant inha. Filha de africanos, t inha um a dignidade
ext raordinária em sua roupa de cauda e com sua cor oa de
cobre. Real e m aj est osa, ai segurando um cet ro de m adeira
dourada em sua m ão enluvada de br anco, a cabeça prot egida
por um pára- sol de soberano africano, seguro por um pr et inho.
Vinha acom panhada por um príncipe consort e, precedido pelo
porta- bandeir a ( bandeira de veludo bordada de ouro) e do
calunga ( boneca com poderes m ágicos) , seguida de grupos de
baianas ( m ulher es de cor vest idas à m oda da Bahia, fazendo
inchar suas saias e sussurrar a cada passo suas anáguas
engom adas, o pescoço e os braços cobert os com colares e
br acelet es que se ent rechocavam ) , caboclos ( negros disfarçados
de índios, cheios de plum as, arcos e flechas à m ão) e enfim de
carr egadores e car regadoras de obj et os im precisos e
pr est igiosos, feit os de plum as de pavão, de avest ruz e de cisne,
ornados de flor es ar t ificiais e const elados de lant ej oulas. Toda
essa gent e desfilava com o em êxt ase, ao som de um a orquest ra

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de at abaques e agogôs, sem elhant es aos inst rum ent os m usicais


africanos que ressoam à noit e nos candom blés da Bahia e nos
xangôs do Recife. O efeit o produzido por essa m archa ao
anoit ecer é im pressionant e. O barulho dos t am bores t ocados
com força repercut ia nas ruelas est r eit as que levavam à igrej a
de Nossa Senhora do rosário e era difícil de escapar à espécie de
encant am ent o provocado por esses rit m os de t em pos fort es e
53
pesados alternando- se com passagens mais leves e aéreas.”

Maracatu Rural, Recife, PE - 1947

No m esm o carnaval (1947) , o fot ógrafo docum ent ou m aracat us


de baque solt o. Est es exist em som ent e em Pernam buco e for am
cham ados assim , pela prim eira vez, pelo m aest ro Guerra Peixe nos
anos 50. Provavelm ent e eles surgiram em Nazaré da Mat a e derivam
das Cabindas, brincadeiras de t r avest im ent o m asculino, sendo frut o da
fusão de vários folguedos da região da Zona da Mat a pernam bucana.
Dent r e seus personagens est ão os caboclos de lança, os caboclos de
pena, as baianas, a dam a do paço, Mat eus, Bast ião, Cat irina, a burra,
os bandeir ist as, os caçador es e o m est re. A orquest ra é form ada por
percussão e sopro, além dos enorm es chocalhos que os caboclos de
lança carregam nas cost as. As m archas são execut adas em quat ro,

53
VERGER, Pierre. Procissões e Carnaval no Brasil. In: Verger- Bastide: Dimensões de uma
amizade. LÜHNING, Ângela (ORG). Bertrand Brasil. Pág 249- 250

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seis e dez linhas rít m icas e as loas puxadas pelo “ m est re” . A orquest ra
só t oca quando o m est re t erm ina de puxar os versos das t oadas,
alternando canto e instrumental.
As figuras que apar ecem nas fot os do m aracat u de baque solt o
produzidas por Verger são o “ caboclo de pena” , o Mat eus e a burra -
est es dois últ im os são um a derivação dos personagens do folguedo
“cavalo- m arinho” . Em sua cat alogação, Verger at ribui essas fot os ao
cavalo m arinho. Cont udo, a presença do caboclo de pena nos rem et e
ao m ar acat u de baque solt o, que, com o vim os, som ent e seria
conhecido assim na década seguinte.
O caboclo de pena t em fort e conot ação indígena ( realçada pela
pr esença do arco e flecha nas m ãos) e usa um a coroa ador nada por
penas e m içangas. A burrinha ( “ Capit ão” , no cavalo- m arinho) indica
alguém de m uit o prest ígio das redondezas, que vem com um a roupa
de m ilit ar e m ont ado em seu cavalo. O Mat eus represent a
originariamente a figura do negro em busca de trabalho. Sobre a figura
do Mat eus, ressalt am os ainda seu papel em vários out ros folguedos
nordest inos, dent re eles o bum ba- meu- boi e o reisado. Verger
encont rou out ra versão para o Mat eus em suas viagens pela África,
assist indo a folguedos dos descendent es de brasileiros que volt ar am lá
depois da alforria.

Porto Novo (Benin) – 1948/1979

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Em suas fot os de carnaval de rua, Verger docum ent a sem pr e a


face popular da fest a. Ao fot ografar a folia pernam bucana, o francês
volt a seu equipam ent o par a capt ur ar o espírit o do rit m o m ais
caract eríst ico do período m om esco em Recife e Olinda: o fr evo. Não se
sabe ao cert o quem veio prim eiro se o passo ou a m úsica. Fat o é que
desde o fim do século XI X o rit m o e o passo j á cont agiavam os
brincant es. A rivalidade ent r e os adm iradores da Banda da Guarda
Nacional e os da Banda do 4º Bat alhão t rouxe os gest os largos da
dança, baseados nos golpes de capoeira que os foliões desferiam uns
cont ra os out ros. A som brinha, inst rum ent o de adorno indispensável
ao passo, t am bém vem dessa época, j á que os “ capoeiras” as usavam
para se defender quando imersos na multidão.
O nom e “ frevo” deriva de “ frever” ( “ ferver” na linguagem dos
populares) e t em a conot ação de “ fervura” . Não poderia t er sent ido
m ais apr opriado para a sensação que se t em ao olhar os
agrupam ent os ao som das orquest ras. O rit m o pode ser execut ado em
três categorias de cadências diferentes. A saber: Frevo- canção, Marcha
de Bloco e Frevo- de- rua.
A fot o de Verger t r az a espont aneidade e a alegria do passo. O
sol a pino, denunciado pela som br a no chão, não int im ida o folião. Ele
brinca sozinho na rua. A fest a é sua e feit a por ele. Toda a sort e de
elem ent os serve para com por a fant asia. Mas, fant asia de quê? De
nada ou dele m esm o. Os pinduricalhos, que enfeit am a som brinha,
t êm significado par t icular e próprio som ent e para ele m esm o, assim
como a revista e o abano na mão.

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Frevo, Recife, PE - 1947

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3.3 Carnaval e o dilema brasileiro

É por m eio do carnaval, por exem plo, que invert em os a lógica


do que DaMat t a cham a de dilem a br asileiro. Para o ant ropólogo, um a
das características que forma o ser brasileiro é seu carát er dual no que
diz r espeit o às duas m ais im port ant es esferas de ação social: a casa e
a rua. Ele defende que na rua é t rabalhada a ót ica do indivíduo ou do
João Ninguém . É nest a esfera que um a leit ur a inst it ucionalist a é feit a
da sociedade. Nela, valem os m acro processos polít icos e econôm icos,
onde o ambiente - baseado na lei, nas regr as e na repressão - é
host il. Diam et ralm ent e opost a é a esfera da casa, lugar da leit ura
cult uralist a, baseada nos usos e cost um es do cot idiano ínt im o. Aqui, o
br asileiro t orna- se pessoa, personagem de um a hist ória, favorecido
pelo am bient e cor dial, r egido pela solidariedade. No carnaval,
subvert em os essa lógica e a rua t orna- se casa. Dam os vazão às
nossas m ais ínt im as fant asias e as pom os no espaço público, t ornado
palco simultâneo de todos os anseios. “É a fantasia que permite passar
de ninguém a alguém; de m arginal do m ercado de t rabalho a figur a
m it ológica de um a est ória absolut am ent e essencial par a a criação do
54
momento do carnaval” .
De acordo com Muniz Sodré,
“há proposições intelectuais no sentido de encará- lo (o carnaval)
com o a inversão das leis ou das regras. Par a o russo Bakht ine, o
carnaval – onde coexist em elem ent os ant it ét icos com o loucura e
razão, sagrado e profano, sublim e grot esco é um a font e de
liberação ( Eros) , de dest ruição ( Tanat os) , m as t am bém de
recom eço. No t em po de Rabelais, segundo Bakht ine, era o
carnaval que abria o cam inho popular para um a experiência não
hierárquica da vida, cont ra os códigos rígidos da ordem
m edieval. Diant e da sociedade feudal ( inclusive a do século
XVI ) , o carnaval t ornava- se a possibilidade de exist ência
paralela ( à m argem do Est ado) par a segm ent os popular es. As

54
idem. Pág 75

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verdades oficiais seriam deslocadas ou invert idas pela paródia


carnavalesca. ( ...) Na r ealidade, a inversão de um a est rut ura
pouco m uda. Colocar a lei de cabeça para baixo é fazer a ‘ant i-
lei’, é obter a reversão ( e não a reversibilidade), que é efeito de
espelho. A paródia pela paródia, ist o é, enquant o puro efeit o
caricat ur al de um a im agem , é a ordem da reversão. O m esm o
ocorre com a ‘liberação’ pura e sim ples da fest a ou das
pequenas escam ot eações. Por saber dist o é que o crist ianism o –
est a grande ordem inst it uída a part ir de um a dialét ica de
salvação e liberação – sem pre t olerou a carnavalização,
especialm ent e depois da Cont ra- Refor m a e nos t errit órios
55
coloniais” .

3.4 Sobre o travestismo

No cenário de inversão e subversão, não im pr essiona o


complexo jogo de máscaras que se instaura no período momesco.
“ A máscara do carnaval se torna, na verdade, uma oportunidade
única de revelar os aspect os m ais profundos da realidade
quotidiana – aqueles que t alvez sej am pert urbadores dem ais
para se m ost rar abert am ent e. Refiro- m e ao desvio lat ent e, que
a m áscar a revela, quando pret ende ocult ar a superfície da
norm alidade. Com t am anha inversão, t am bém é verdade que a
alegria carnavalesca adquiriu no Brasil conot ações de fat alidade,
pois se t r at a do derradeiro delírio carnal ant es da penit ência
quaresm al, que int errom pe crist ãm ent e a fest a pagã. O carnaval
tornou- se ent re nós um a dança que precede a m ort e, a últ im a
alegria que pr enuncia o fim . Mist uram - se m ort e e fest a at é o
pont o de não ser m ais possível dist inguir um a da out ra – e isso

55
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro, RJ:
Livraria Francisco Alves Editora, 1988. pág 171, 172, 173

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ocorre quase lit eralm ent e, durant e as folias carnavalescas.


Entra- se no jogo do vale tudo” 56.

No carnaval, facilmente troca- se o masculino pelo feminino.

Boneca de Piche, Rio de Janeiro, RJ - 1941

Verger flagra a boneca de piche fazendo graça na rua, quase


nua na rua. De “ piche” só t em a m áscar a e o vest ido. A referência à
m ulat a é explícit a, apesar da pele branca. O br anco dos olhos, o
verm elho da boca im ensa, o brinco de ar gola dão o t om racial. O laço
no cabelo e o vest ido dão um a conot ação infant il. Talvez a nudez sej a

56
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: (a homossexualidade no Brasil, da Colônia à
atualidade). 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. pág 391- 2

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perdoada j ust am ent e pelo ar infant il. É o álibi perfeit o. Afinal, crianças
( quase) não são sexuadas. Verger denuncia sua erot ização quando,
por meio do ângulo usado, causa a impressão de um busto feminino.
Não r aro, o t ravest ism o é um a const ant e no cont ext o
carnavalesco. Com o podem os observar em várias fot ografias de
carnaval da década de 40 - e t am bém nas de Verger do m esm o
período - , o fenômeno povoa o imaginário da festa. Para Trevisan,
“ não é exager o dizer, por conseguint e, que carnaval e desvio
correm j unt os, coisa que se not a num sim ples passar de olhos,
quando se está em meio à festa carnavalesca, seja na rua ou em
salões. ( ...) Em Olinda,conhece- se o t radicional Bloco das
Virgens, com 200 a 300 hom ens – pr eviam ent e inscrit os –
desfilando vest idos de m ulher. As fant asias cost um am ser m uit o
rigorosas, com modelos chiques, perucas e sapatos de salto alto.
Os par t icipant es im it am at rizes e cant or as fam osas . No final do
desfile, ocorr e um concurso no qual se escolhe a ‘virgem m ais
bela e sensual’, que recebe um t roféu oferecido pelas indúst rias
e prefeit ur a locais. O m ais est r anho nesse clube carnavalesco
organizado por m ilit ares é que o regulam ent o não perm it e a
part icipação de hom ossexuais not órios, nem dem asiados
t rej eit os fem ininos. Em out ras palavr as, recom enda- se o uso da
m áscar a sob a m áscara – o que não deixa de indicar a m esm a
afirm ação barroca que revela duplam ent e, quando pret ende
duplamente ocultar aquilo que se teme” 57.

57
idem. 392- 3

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Salvador, BA – 1946/1978

Todas as demais: Rio de Janeiro, RJ - 1941

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Em seus regist ros de carnaval, as lent es de Verger capt am a


espont aneidade e irrever ência desses grupos, que incorpor am
elem ent os de t odas as idades, classes e et nias. Ele erot iza os
personagens. Explora a vulgaridade das m ulher es r epr esent adas. Faz
quest ão de m ost r ar pernas, bocas, bust os, “ calcinhas” . Vest idas de
colegiais, havaianas, bebês, nenhum a escapa ao seu olhar. Os grupos
são flagrados na alegria de expor sua “feminilidade”.
Os mais antigos registros do carnaval brasileiro feitos por Verger
dat am da sua segunda e breve passagem pelo Brasil ( o fot ógr afo j á
havia visit ado o país em m eio a um a viagem de t r abalho pela Am érica
Lat ina, em j unho de 1939. Verger veio em busca de docum ent ação
para at ender ao cham ado do exércit o francês por ocasião do início da
I I Guer ra Mundial) . Ele ficou de set em bro de 1940 at é fevereiro de
1941, o que lhe pr oporcionou conhecer a fest a pr eparada pelo Rio de
Janeiro, naquele ano. Sobre sua experiência, o francês relata:
“ Três m eses depois de m inha chegada r esolvi part ir, após t er
assist ido ao carnaval, que na época não t inha a im port ância que
ainda t eria. As escolas de sam ba desfilavam na Pr aça Onze e
t am bém não t inham a not oriedade, o esplendor e gigant ism o
que vieram a t er em seguida. Exist iam , sobret udo, os blocos os
cordões que passavam vagando pelas r uas. Hom ens vest idos
com saias curt as de palhas ou roupas em prest adas de suas
m ulheres. A Guerra Mundial est ava no auge. Os j ornais,
aproxim ando t ít ulos de art igos de m aneira t alvez um pouco
m aliciosa, proclam avam que ‘Mussolini falava em plena folia’.
Sent ados nas carrocerias dos carros ou nos bondes ou, ainda,
desfilando nas ruas, a euforia dos foliões se t raduzia sem pre em
gest os largos de braços abert os, fest ej ando a alegria de viver e
58
se divertir” .

58
VERGER, Pierre. Texto inédito para o livro Retratos do Rio de Janeiro, projeto da Corrupio ainda
não concretizado. IN: Nóbrega, Cida e Echeverria, Regina. Pierre Verger: um retrato em preto e
branco. Salvador: Corrupio, 2002. pág 135

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Rio de Janeiro, RJ - 1941

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Desde quando o carnaval ainda não r epresent ava t ão bem o


caráter festivo br asileiro, o t ravest ism o j á se inst aurava com o principal
caract erização por part e dos foliões em t odas as cidades do país.
Repare- se que nos docum ent os da época as m ulheres não
part icipavam at ivam ent e da fest a popular . Raram ent e est ão num a ou
out r a fot ogr afia. Quando m uit o, est avam pr esent es nas at ividades
folclóricas, religiosas ( cult ura negra) , nos corsos ou nos salões da alt a
burguesia. Est as sem pr e com roupas m uit o bem com post as, saias
longas, cam isas sem decot es, m uit os panos e adornos. As m ulheres
que part icipavam deliberadam ent e das fest as e dos cordões de rua,
geralm ent e eram m al vist as pois em seu grande núm ero eram as
prostitutas que se permitiam à brincadeira na festa mundana.
Roger Bast ide em seu “ Sociologia do folclore brasileiro” ,
dispensa um capít ulo a explicar o t ravest im ent o m asculino no
carnaval. O antropólogo francês afirma que na visão que as sociedades
t êm da nat ur eza, est a est á dividida em “ dom ínios est anques e
com part im ent os separados” que não podem se m ist urar sob o perigo
de invocar o caos. São os cham ados t abus, que devem ser
pr eservados em respeit o a um “ halo m íst ico” , sagrado que os envolve.
A dist inção ent r e m asculino e fem inino é, sem dúvidas, o t abu m ais
com um em t odas as sociedades. Em basados nas dist inções nat urais
que envolvem os dois sexos, os grupos sociais im põem m it os, papéis,
rit os e habit at s próprios de cada gêner o de form a que “ a vida das
coisas e dos sêres (sic) só é possível graças ao respeito dessa distinção
59
primordial”.
Frent e aos j ogos de inversão present es no período de carnaval,
Bastide afirma que
“ at ravés de suas m et am or foses, a fest a carnavalesca m ant eve
dois dos seus m ais ant igos caract eres: em prim eiro lugar é a
época da inversão dos papéis, não da volt a ao caos,
propriamente, mas da passagem do indivíduo, por um momento,
de um dom ínio a out ro, por exem plo, nas Sacrea, da condição

59
BASTIDE, Roger. Sociologia do folclore brasileiro. São Paulo: Editora Anhambi, 1959. pág 60

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servil à do senhor. E é t am bém a época da degradação do


sagr ado em côm ico. ( ...) Êsses dois elem ent os t ant o podem
est ar separados com o confundidos – e no nosso carnaval eles se
confundem . A m ulher vest e r oupas m asculinas; o hom em se
fant asia de m ulher. Há m udança de sexos. Aliás, nesses dois
casos não é a m esm a a significação do gest o, t endendo, em
relação a mulher que se veste de homem, para o erotismo, e, ao
cont rário, em relação ao hom em enfeit ado de ouropéis
fem ininos, para a caricat ura. É que a ordem dos sexos ainda
cont inua a t er par a nós um aspect o sagrado; pois a I gr ej a não
proíbe a m udança das vest im ent as? A violação dessa ordem
am edront a, acorda nas profundezas do ser um a angústia
m íst ica. Tam bém o hom em que se vest e de m ulher com et e um a
espécie de sacrilégio: age cont ra o t abu original. E é por isso
que, na m aioria dos casos, seu disfarce não é pròpriam ent e um
disfarce; t em por função m enos enganar, inver t er a ordem
natural, que, ao cont r ário, sublinhá- la; o disfarce, quase
sem pre, em vez de fazer desaparecer, de encobrir a
m asculinidade e t orná- la equívoca, acent ua- a: calças que
surgem debaixo da saia, bust o desigual, pêlos nas pernas nuas,
sapat os enorm es, andar volunt ar iam ent e m asculino. Ao m esm o
t em po que sim ula a m ulher, o m ascar ado t em cuidado que se
est á divert indo, que não deixa de ser um hom em , que r espeit a,
port ant o, a ordem das coisas. ( ...) O hom em fant asiado de
m ulher realiza um a função út il, j ogando com essa t entação, com
a violação do t abu, e t ransform ando- a em caricat ura, ele nos
lem bra que ordem cont inuará a exist ir, a ordem que provém da
divisão bipolar do universo, do equilíbrio sexual das coisas, e
60
que, por conseguinte, nós não retornaremos ao caos”.

Bast ide vai afirm ar que a m ult idão que cont em pla o hom em
t ravest ido reage cont ra o m al- est ar m et afísico “ por m eio de um riso

60
idem. Pág 63-64

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largo, um riso violent o” . O ant ropólogo cham ar á o riso carnavalesco


br asileiro de “ m et afísico” . Ele o caract er izar á com o “ riso poderoso,
61
descont rolado, quase selvagem no seu furor corporal” . Podem os
flagrar o momento desse riso numa seqüência de fotos feita por Verger
no Carnaval do Rio de Janeiro de 1941. Nela um m ascarado se exibe
para as lent es diant e da m ult idão. Mesm o vest ido com far rapos da
cabeça aos pés, o personagem ost ent a classe e refinam ent o próprios
daqueles que nasceram em berço de ouro. O ‘punct um ’ da fot o é
inegavelm ent e a pit eira volt ada par a cim a num at o que revela a
ext rem a liberdade e alegria carnavalesca. Apesar do est ranham ent o, o
espet áculo da inversão arr anca o riso e revela a “ concessão” de
comportamento dos dias de carnaval.

Rio de Janeiro, RJ – 1941

61
idem pág 64

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Rio de Janeiro, RJ - 1941

Com o no exem plo acim a, podem os observar nas fot os de Ver ger
a irreverência das brincadeiras de rua. Abrindo algum as exceções na
t eoria do cont errâneo e am igo Bast ide, o fot ógr afo insist e em nos
m ost rar a sexualidade na fest a realizada nas ruas. Hom ens encarnado
a sensualidade feminina, desfilam em suas lentes entregues ao espírito
da m ais com plet a liberdade. Talvez a m ais inquiet ant e dessas
fot ografias sej a o flagr ant e no Rio de Janeiro ( t am bém no ano de
1941) de um m ulat o “ passeando im punem ent e” em m eio a out ros
hom ens. Traj ando um curt íssim o vest ido branco rodado, ele nos

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provoca com o olhar e nos seduz exibindo suas pernas, ainda m ais
expost as ao segurar a barra da saia de sua roupa. Apesar do ícone
m asculino ( os sapat os que usa) , a fot o cham a at enção pelo cont ext o
em inent em ent e m asculino em que o personagem se insere e a
desenvoltura com que, literalmente, transita.

Salvador, BA – 1946/1978

Da m esm a form a, vem os em Salvador um m ascar ado a espera


de algo ou alguém . A fot ografia t em um for t e apelo sexual e t raz
consigo a referência da libert inagem nos dias de carnaval. É clar a a
alusão à prost it uição. Encost ado à parede, m ãos no queixo e na

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cint ura, coxas à m ost r a, ele se deixa flagrar em seu chique “ t rot t oir”
na calçada. O m enino ao lado parece não se surpr eender ou im port ar
com o exagero de sensualidade. Ele não incom oda o personagem , que
sequer o nota. A câmera o interessa mais que a dama ao lado.

Recife, PE – 1947

Há t am bém as cenas do t r avest ism o no carnaval recifense de


1947. I m erso na m ult idão, o prim eiro personagem perde- se em m eio
aos brincant es. De saia, sut iã e t urbant e eleva ao ar um a enigm át ica
caixinha. O que cont eria ali? Jóias, bibelôs, cart as? Com cert eza as
est órias foram t odas perdidas ( ou ignoradas) para serem reescrit as

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( ou r econt adas) em m eio à folia. A figura se dest aca pelos m úsculos


bem definidos dos br aços e das cost as, além da alt ur a, nudez,
languidez e nat uralidade com que se apresent a na m ult idão. Enquant o
o povo “freve”, ele parece flutuar acima do bem e do mal.

Recife, PE – 1947

Nout r a fot o, Verger nos faz novam ent e refer ência à prost it uição.
Ao cont rário do ar de sofist icação da “ prost it ut a” sot eropolit ana, o
personagem recifense é bem m ais grot esco, popular. De bigode e com
os braços abert os, ele exibe brincos, colar, bat om , corselet t e, flores no
cabelo. O exagero e o clim a de alegria cont agiant e são a t ônica do

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quadro. Cham a a at enção o bico do peit o à m ost ra, denot ando a


ent rega irrest rit a à orgia. Est e é um dos raros m om ent os onde
apar ecem m ulheres brincando. Ao fundo, o cenário é bast ant e fam iliar
para os pernam bucanos: a esquina do Edifício Chant eclair, às m argens
do Rio Capibaribe, no bairro do Recife Ant igo. Recent em ent e, nos
últimos anos, o carnaval do bairro, que estava esquecido, foi resgatado
e, hoj e, volt a a ser um dos grandes focos de anim ação da folia no
est ado. O pr édio ( à esquerda da fot o) est á sendo rest aurado e
abrigará um centro cultural.

3.5 Masculinidade em xeque?


Por que seria o t r avest ism o t r adicionalm ent e a recorrência
m asculina m ais ululant e do car naval? A respost a t alvez est ej a im plícit a
nos j ogos de erot ism o decor rent es da pr ópria fest a. No carnaval, não
há regras. Todo o excesso é permitido. As relações sociais em períodos
ordinários cast ram o m asculino em suas m anifest ações m ais
exageradas. Ent re out ras coisas, ser um hom em br asileiro é ser
com edido no m odo de falar, gest icular, dançar e de t rat ar os out ros.
No imaginário masculino do brasileiro, não é permitido o exagero.

Recife, PE – 1947

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Recife, PE - 1947

Em suas fot os de t ravest im ent o no carnaval, Verger parece


querer sem pre nos ressalt ar a cont r ariedade exist ent e ent re a
est rut ura pat riarcal da época e a nossa fest a de rua. Os negat ivos nos
revelam os “ casais” passeando im punem ent e de braços dados,
desafiando qualquer lógica da est rut ura social. As lent es exageram o
que já é. Reforçam o glam our ou o grot esco. Se est ão
“ acom panhados” , o cont ext o é respeit oso. Se sozinhos, fazem quest ão
que os hom ens exerçam um a liberdade de condut a sexual e levant em
suas saias para quase mostrar os genitais.

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Ao se t r avest ir e agir com o m ulher, m uit os hom ens invert em


seus padrões de com port am ent o ( inclusive os sexuais, afinal se t udo
em nossa sociedade é desculpado pela “ cachaça de carnaval” , porque
o hom oer ot ism o não seria?) . Esse fat o m er eceu algum as reflexões
feit as por Denílson Lopes sobre o t ravest ism o, j ogo de m áscaras e
simulacro. Para o professor da UNB,
“ o t ravest i não é um a sim ples const rução int elect ual, que coloca
o ar t ifício com o um a cat egoria cent r al dessa sociedade de
im agens, em que ident idades perform at ivas são const it uídas,
bem ant es das at uais discussões sobre corpo e t ecnologia. Não
se t rat a aqui de falar de um out ro, est igm at izado e/ ou
espet acularizado, m as do t r avest im ent o, com o algo que
at r avessa nossos desej os e em oções, nossas incert ezas e nosso
lugar no m undo 62.( ...) As possibilidades do j ogo que vivificam a
subj et ividade pelo uso de m áscar as reside na com preensão da
natureza imagética da sociedade atual. A máscara não é disfarce
de um vazio exist encial, m as um a t át ica de coexist ir num a
sociedade onde o prim ado é a velocidade 63.( ...) Sua busca pelo
feminino não é out ra coisa senão a busca da androginia, da
ambigüidade. A identidade como devir”64.

É j ust am ent e essa ident idade com o devir que difer encia a
brincadeira dos hom ens ent r e si. Het eros e hom ossexuais encont r am -
se m ist urados e t ravest idos. Cont udo quant o m ais “ fidedigna” for a
caract erização, m aior ser á a ident ificação com o universo fem inino e,
port ant o, m ais próxim o do universo gay. Sócrat es Nolasco considera
que
“ dos desfiles das ‘pir anhas’ aos bailes gays, o com pr om isso com
a própria fant asia de ser um a m ulher delim it a o cam po para a

62
LOPES, Denílson. E eu não sou um travesti também? IN:O homem que amava rapazes e outros
ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. pág 68
63
idem. Pág 70
64
idem. Pág 72

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classificação de quem é o ‘m acho’ e de quem é veado, um a


t ent at iva em pír ica par a dar duas significações ao que no
im aginário apar ece com o sendo variação da m esm a coisa: um a
ident ificação m aciça com a m ulher, de m odo que o j ogo erót ico
faz- se mediante a indiferenciação de ser uma mulher se sabendo
um homem” 65.

A m ulher que apar ece nest as r epr esent ações é sem pre
espalhafat osa, vulgar, ninfom aníaca e descont rolada. É a
repr esent ação do universo fem inino pelo im aginário m asculino. Os
hom ens que se t ransform am em gest ant es abandonadas, prost it ut as,
fr eir as, colegiais, havaianas, m elindrosas, ent r e out ras. A aut orização
carnavalesca possibilit a a realização das fant asias sem que os at ores
sej am possuídos por elas. Tudo é apenas um a brincadeir a, m as que
demanda uma licença social.
Nolasco aponta que é preciso
“ represent ar par a com preender. Talvez est a possa ser um a das
razões pelas quais os hom ens se fazem passar por m ulher es.
Por out ro lado, no carnaval obser vam os a caricat ur a não de
qualquer m ulher, m as de um a ‘m ulher pir anha’, cuj o
com port am ent o é definido pela posse e pelo exercício da própria
sexualidade. Est e com port am ent o m asculino, aparent em ent e
cont radit ório, é sinal da am bigüidade pela qual poderem os
com preender a represent ação que um a m ulher t em par a um
hom em . No cot idiano, as queixas m ais cont undent es das
m ulheres recaem sobre at it udes violent as e de desvalorização
dos hom ens para com elas. Cont udo, por m eio das
m anifest ações cult urais, em diferent es épocas e países,
percebem os o desej o dos hom ens de ‘se passar por um a
mulher’, ou ainda, o receio de em uma delas se transformar” 66.

65
NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1995. pág137.
66
Idem. Pág 138.

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Conclusão

Percorrendo os cam inhos da form ação da ident idade m asculina


br asileira podem os concluir que Verger usou de sua sensibilidade e
rigor profissional para t raçar um r et rat o fiel do que se j ulgava ser o
br asileiro na década de 40. Ele est ava em plena consonância com o
pensam ent o vigent e da época, m as conseguia ext r air algo m ais que o
sim ples ‘aut om at ism o da gênese t écnica’ propõe. Ele ia m ais além que
a visão elit ist a e pat riarcal das t eorias de Gilbert o Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda.
Sendo assim , ele vislum bra o hom em brasileiro em quase t odas
as suas facet as. Prova dist o est á na vast a produção sobre o nosso
país, no qual o seu olhar de j ornalist a e et nólogo firm a os t raços
m iscigenados e dá o poder de fala ao subalt erno. Se levarm os em
cont a o que Spivak escreve em seu art igo “ Can t he subalt ern speak?” ,
isso seria im provável; pois, se discursasse, perderia sua condição de
subalt erno. Todavia, Verger parece ignorar Spivak e coloca seu olhar a
serviço de um proj et o de const rução de um a im agem ( hom o) erot izada
do hom em brasileiro. Um a im agem fet ichizada, m as sem m ácula, sem
ferir a “ hom bridade” nacional. Nos descobrim os narcisos frent e aos
retratos feitos pelo francês.
Por ir além das t eorias propagadas por Freyr e e Buarque, o
fot oj ornalist a dialoga com os t eóricos at uais, provando ser a sua
produção dona de um a força de represent ação m uit o m ais apurada do
que sim plesm ent e o flagrant e do m om ent o. Seus personagens são
const ruídos dent ro de um cont ext o que t ransit a ent re a m alícia do
desej o sexual e a reprodução cult ural do am bient e t rabalhado.
Poderia- se dizer que, j á na década de 40, Pier re Verger explor a o
br asileiro no ‘entrelugar’ de Hom i Bhabha ou no ‘hibridismo’ de
Canclini.

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Com sensibilidade, Verger produz fot os para a r evist a de m aior


circulação da mídia nacional flagrando o caráter brasileiro em sua festa
m ais part icular: o carnaval. Ele com põe o nosso ret r at o com os
element os que lhe explicit am os sem saber. Ele nos desvenda com seu
olhar agudo. Percebe- nos nos det alhes. Firm a o punct um onde não
esperam os. Faz- nos r econhecerm os em m eio a orgia, ao caos, a
t ransgr essão. Most ra nosso rost o sem im por sua verdade. Disseca- nos
e nos deixa ser no dilema que nós próprios nos pomos. Insere em suas
fotos a narrativa de nossa identidade.
Em suas fot ogr afias, Verger não coloca em xeque nossas
cert ezas de hom em . Ele nos coloca hipót eses. Quando brincam os de
ser m ulher , ele nos leva a sério. Sej a qual for a propost a: vulgar ou
glam ourosa, com port ada ou depravada; suas lent es vão nos exagerar
para pint ar a caricat ura da caricat ur a que fazem os de nós m esm os. O
j ornalist a vai docum ent ar os dom inadores em sua hora de fragilidade,
irreverência e descom prom isso. Ele vai nos m ost rar o lado fraco da
nossa corda. Não é à t oa que ele exibia um sorriso quando apont ava
sua reflex para nós.

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