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METODOLOGIA

e olocado perante diferentes


tendências metodológicas,
DA PESQUISA
o educador/pesquisador

EDUCACIONAL
.deve reinventar seu caminho, que
será único.
É pessoal o itinerário, pois é
produto da vida acadêmica de cada
um - que é única. A coletânea que
aqui apresentamos revela, em suas IVANI FAZENDA
entrelinhas, um po co da história
de vidá de seus autores, através da ORGANIZADORA
for.ma como enfrentam o desafio
da pesquisa . Falar de cada um deles CELESTINO A. DA SILVA JR.
seria desnecessário, pois seus nomes
já fazem parte do ideário pedagógico
DEAFENELON
brasileiro. A oportunidade de ELCIE MASINI
compartilhar com eles em um
momento o espaço da sala de aula
GAUDÊNCIO FRIGOITO
possibilitou-nos uma reflexão mais I VANIFAZENDA
acurada sobre algumas das principais JOEL MARfINS
contradições em educação, comuns a
todos os que optaram por este MARLI ANDRÉ
caminho. OLINDA NORONHA
lvani fuzenda SÉRGIO LUNA
SILV ICJ GAMBOA
ME1DDOIDGIA
DA PESQUISA
EDUCACIONAL

E
sta coletânea tem como objetivo
auxiliar os que pesquisam ou
pretendem investigar o fenômeno
educativo no sentido de orientá-lo à opção
metodológica mais adequada ao seu
projeto de trabalho.
Apresenta textos de diferentes
especialistas nos seus diversos enfoques da
pesquisa educacional, no que se refere à
pesquisa empírica, fenomenológica,
etnográfica, dialética, histórica e
participante. Sem desvincular-se de uma
reflexão teórica, orientadora dos caminhos
apresentados, impulsiona o leitor a
prosseguir em seu trabalho de pesquisa.
CELESfINO ALV ES DA SILVA JUNIOR
BIBLIOTECA DA EDUCAÇÃO
DEA F ENELON • ELCIE MASINI
Série I - ESCOLA GAUDÊNCIO FRIGOITO • I VANI FAZENDA
Volume II JOEL MARrINS • MARLI ANDRÉ
OLINDA NORONHA • SERGIO LUNA • SILV IO GAMBOA

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) IVANI FAZENDA
ORGANIZADORA

\, /\

. _
_?
Metodologia da pesquisa educacional. - 2 e . aum�ntada­
São Paulo : Cortez, 1991. - (Blbhoteca da educaçao. Séne 1. Es­
cola; v. 11)

. Jl"
Coletânea de textos de vários autores.
Bibliografia.
ISBN 85-249-0227-2

ME10DOIDGIA
1. Pesquisa educacional - Metodologia 1. Série.

89-2096 CDD-370.78018
DA PESQUISA
Índices para catálogo sistemático: EDUCACIONAL
I. Metodologia: Pesquisa educacional 370. 78018
2. Pesquisa educacional: Metodologia 370.78018

28 AUMENTADA

EDIÇÃO .

@C.ORTEZ
�EDITORA
· I
METODOLOGIA DA PESQUISA EDUCACIONAL
Ivani C. A. Fazenda (Org.)
SUMÁRIO

Capa: cnaçao: Carla Fazenda


arte-final: Maria Regina Da Silva
Revisão: Ana Maria Lebeis, Celso Duarte, Rita de Cássia M. Lopes
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Apresentação à 2.ª edição (Ivani Fazenda) . ...... .. .. . .. . .. 7

Apresentação (Ivani C. A. Fazenda) . . .... .. . . . .. . . . .. .. .. 9

1. Dificuldades comuns entre os que pesquisam educação (lva-


ni C. A. Fazenda) ... . . _. .. . . . . . . .. . . . . . . . . .. . . . . . . . 11

2. O falso conflito entre tendências metodológicas (Sérgio V.


de Luna) .... .. . . . . ... .· . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

3. A pesquisa no cotidano escolar (Marli E. D. A. André) . . 35

4. A pesquisa qualitativa (Joel Martins) . . ... . . . .. . . . . . . . 47

5. Enfoque fenomenológico de pesquisa em educação (Elcie


Salzano Masini) . .......... ... . ..... . . . ... . . . ...... 59

6,. O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa


educacional (Gaudêncio Frigotto) . ......... .. ........ 69
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização
7. A dialética na pesquisa em educação: elementos de contexto
expressa dos autores e do editor.
(Silvio A. S. Gamboa) . . . .. . ... . . .. . . . . . ... ..... . . . 91

8. Pesquisa em história: perspectivas e abordagens (Dea Fe-


© 1989 by Autores nellon) . . . . . . . . . . . . . . . . . .. ; . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 117

9. Pesquisa participante: repondo questões teórico-metodológi-


Direitos para esta edição
cas (Olinda Maria Noronha) .... . . . . . . .. . . . .. . . . . . . . 137
CORTEZ EDITORA
Rua Bartira, 387 -Tel.: (011) 864-0111 10. Reflexões metodológicas sobre a tese: "Interdisciplinaridade
05009 -São Paulo - SP - um projeto em parceria" (lvani C. A. Fazenda) . .. ... 145

tl . A escola pública como local de trabalho ou a tese do livro-


tese (Celestino Alves da Silva Júnior) . ............... . 163
Impresso no Brasil - dezembro de 1991
1.
1

APRESENTAÇÃO À 2� EDIÇÃO

Nossa mensagem nessa 2.ª edição é de otimismo - um número


muito maior de educadores do que o imaginado, interessa-se hoje
pela pesquisa em Educação no Brasil. Não só nos centros mais
avançados, mas, em todo o país, o educador está buscando uma
Educação de melhor qualidade.
Isso requer cuidados, critérios, rigores, que somente pesquisas
bem conduzidas poderão tratar - a finalidade básica dessa coletânea
continua sendo a de indicar caminhos e rever perspectivas na pesqui­
sa educacional.
Aos artigos anteriores, dois mais se somam, o porquê dessa
intromissão - um novo enfoque na pe�quisa se anuncia: o das meto­
dologias não convencionais em teses acadêmicas. Nossa intenção ao
incluí-los é a de apresentarmos um maior número de elementos para
mantermos viva a polêmica na pesquisa. É também a de indicarmos
novas possibilidades, é sobretudo despertarmo:; o gosto pelo pesquisar,
aos que ainda desse prato não provaram, e aos já iniciados um
aprimoramento do paladar.
-
Ivani Catarina Arantes Fazenda
São Paulo, 24 de julho de 199 1 .

l
OSAUIDRES APRESENTAÇÃO

Celestino Alves da Silva Júnior - Coordenador do Curso de Pós­


Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista,
UNESP e orientador junto ao Curso de Pós-Graduação em Edu­
cação da USP.
Dea Fenelon - Professora da Pós-Graduação de História da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP.
Elcie F. Salzano Masini - Professora da Graduação e Pós-Graduação
da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Gaudêncio Frigotto - Professor da Universidade Federal Fluminense Esta coletânea tem o objetivo de auxiliar os que pesquisam ou
e da Fundação Getúlio Vargas. Autor de A produtividade da pretendem investigar o fenômeno educativo. Os textos foram utilizados
escola improdutiva: um (re) exame das relações entre educação como leitura básica, nos cursos sobre Metodologia da Pesquisa Edu­
e estrutura econômico-social capitalista, São Paulo, Cortez/Auto­ cacional do Programa de Estudos Pós-graduados em Supervisão e
res Associados, 3 .ª ed., 1989. Currículo da PUC-SP, no l.º e 2.º semestres de 1988, coordenados
Ivani Catarina Arantes Fazenda - Professora da Pontifícia Universi­ respectivamente pelos professores Antonio Chizzotti e Ivani C. A.
dade Católica de São Paulo, PUC/SP. Fazenda. Além da coordenação, os cursos tiveram a colaboração dos
demais professores do Programa, desde o planejamento até a
Joel Martins - Professor da Pontifícia Universidade Católica de São
·

avaliação. ·

Paulo, PUC/SP e da Universidade Estadual de Campinas


UNICAMP. O curso surgiu das dificuldades sentidas pelos alunos na escolha
da metodologia mais adequada à elaboração e desenvolvimento de
Marli E. D. A. André - Professora da Faculdade de Educação da um projeto de pesquisa. O objetivo era proporcionar condições aos
Universidade de São Paulo. pesquisadores para:
Olinda Maria Noronha - Professora do Departamento de Filosofia
• conhecer e analisar diferentes direções na pesquisa educacional;
e História da Educação na Faculdade de Educação da Universi­ • escolher a . opção mais adequada a seu. projeto de trabalho.
dade Estadual de Campinas - UNICAMP .
Sérgio V. de Luna - Professor da Faculdade de Educação da Univer­ Professores especialistas em diferentes abordagens metodológicas,
sidade Estadual de Campinas - UNICAMP. de diversas instituições, participaram do curso, e os resultados da
troca de experiências foram muito positivos, como o atesta a quali­
Sílvio Ancízar Sanchez Gamboa - Professor da Faculdade de Edu­ dade das dissertações e teses dos alunos participantes. Esta coletânea
cação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. surge daí. Dela fazem parte alguns textos dos professores convidados.
8 9
Os textos aqui coletados constituíram um recurso inicial ao que
foi trabalhado no curso no que se refere à pesquisa empírica e pes­
quisa qualitativa em seus diferentes enfoques: etnográfico, fenomeno­
lógico, dialético histórico e participante. Havia muitas dúvidas sobre
pesquisa do cotidiano escolar e estudos de sala de aula, além de
outras de natureza genérica sobre as dificuldades comuns encontradas 1
no ato de pesquisar. Alguns desses aspectos foram incluídos nesta
coletânea.
DIFICULDADES COMUNS ENTRE OS QUE
Colocado perante diferentes tendências metodológicas, o educa­
dor/pesquisador deve re-inventar seu caminho, que será único. Pre­ PESQUISAM EDUCAÇÃO
tendemos mostrar apenas algumas das possibilidades, os cuidados a
tomar e os avanços já conquistados. Ivani Catarina Arantes Fazenda
Apesar de haver diferentes formas de pesquisar em educação, a PUC-SP
lógica que deve presidir a pesquisa é a lógica da erudição, pois é
impossível delinearmos caminhos para pensar a prática educativa sem
adentrarmos ao nível de abstração teórica e das generalizações.
Apesar de árduo e solitário, o processo de pesquisar é também
um desafio, pois a paixão pelo desconhecido, pelo novo, pelo inusi­
tado acaba por invadir o espaço do educador, trazendo-lhe alegrias
inesperadas.
Ivani Catarina Arantes Fazenda
São Paulo, outubro de 1989

10
1'

Pretendemos refletir sobre algumas das dificuldades mais comuns


encontradas pelos alunos dos cursos de pós-graduação em Educação,
tentando compreendê-las em suas origens e traçando alguns caminhos
para superá-las.
Muitas destas dificuldades acompanham o aluno desde a escola
de 1.º e 2 .º graus, sem 'que tenham muita consciência do fato. Por
paradoxal que pareça ser, conseguem vencer com alguma tranqüilidade
certos cursos de graduação, onde sua contribuição pessoal não é muito
solicitada. Entretanto, no momento da elaboração de monografias para
o cumprimento dos créditos nos cursos de pós-graduação, essas difi­
culdades se evidenciam, agravando-se no momento da definição da
pesq.uisa de dissertação de mestrado ou tese.
A mais freqüente é a dificuldade para escrever, pois a expressão
escrita requer, antes de mais nada, uma apropriação do objeto da
escrita.
O ato de apropriação do objeto da escrita pressupõe uma exaus­
tiva pesquisa anterior sobre o tema, que deve ser compreendido em

13
seus vários aspectos. Somente depois disso será possível comunicá-lo quando o pesquisador consegue verbalmente expressar com clareza
a outros. suas idéias, e quando se percebe em suas colocações orais uma coe­
rência de raciocínio. Nestes casos, costumo sentar com meus orien­
Um dos produtos da dificuldade para escrever é a chamada "col­ tandos e gravar um diálogo sobre os caminhos que pretendemos
cha de retalhos". Nela, o pesquisador, por não possuir ainda um empreender na pesquisa. Em seguida, o orientado transcreve a fita,
discurso escrito próprio, utiliza-se ou apropria-se do discurso alheio, refazendo a escrita até torná-la "transparente".
e, ao somar textos, não percebe que muitas vezes estes são desconexos
ou conflitantes. Escrever é um hábito que vai sendo aprimorado apenas no seu
contínuo exercício e que infelizmente nem sempre se consolida na
Esta dificuldade, que redunda numa escrita fechada e pouco escolaridade anterior à pós-graduação.
clara, muitas vezes provém da dificuldade em compreender e inter­
pretar textos. Tão difícil quanto o domínio da escrita, não se resolve Dificuldade semelhante à da escrita é às vezes encontrada na
da noite para o dia, num passe de mágica ou muito menos num curso expressão oral; comumente uma escrita truncada decorre de bloqueios
de pós-graduação. 1- no falar.
Entendemos que o objetivo da pós-graduação nãc,' é solucionar Tal como a escrita, a expressão oral também requer contínuo
estas dificuldades, mas sim ajudar os que já têm o hábito da pesquisa exercício. Somos produto da "escola do silêncio", em que um grande
e o exercício da escrita. número de alunos apaticamente fica sentado diante do professor,
esperando receber dele todo o conhecimento. Classes numerosas, con­
Diante da dificuldade para escrever, o pesquisador necessita antes teúdos extensos, completam o quadro desta escola que se cala. Isso
de mais nada parar para pensar em como ocorreu sua formação aca­ se complica muito quando já se é introvertido . . . 1
dêmica. Certamente, encontrará uma série de lacunas para preencher,
antes mesmo de esboçar o seu projeto de pesquisa para mestrado. Uma das formas que considero eficiente para vencer essas difi­
.,
culdades é a formação de grupos de estudos.
Uma das formas de investigar as falhas no processo de formação
é a revisão dos pressupostos teóricos que sustentam ou encaminham Nos grupos de estudos que tenho coordenado, percebo que as difi­
o raciocínio inicial do pesquisador. Assim, se o caminho escolhido culdades iniciais vão sendo gradativamente superadas. Entretanto, um
foi o estudo da sala de aula, o pesquisador precisa ter antes decidido : grupo de estudos só se consolida se houver a intenção de estruturar
qual concepção de educação pretende investigar, como se realizaria um projeto de trabalho conjunto e requer a orientação contínua e
a aprendizagem nesta concepção, quais os agentes que a determina­ sistemática do coordenador do grupo, bem c�mo o envolvimento total
riam, que interferências poderiam ocorrer em seu percurso, qual a de todos os seus membros. O número ideal de participantes é de no
ideologia subjacente a tal concepção. f: necessário também realizar máximo dez pessoas, para que todos possam apresentar suas idéias
um levantamento das possíveis categorias que eventualmente emerjam oralmente.
no processo da pesquisa, bem como o suporte teórico adequado à Tão fundamental quanto o tempo é a limitação do espaço escrito;
análise dessas categorias, ao lado de uma disponibilidade em substi­ este precisa ser compatível com o tempo disponível para sua posterior
tuí-las se o desenvolvimento do projeto assim o determinar. análise. Cada elemento do grupo deve possuir cópia dos escritos de
·
Esses pressupostos teóricos resultam de uma formação acadêmica seus companheiros, para indicar sugestões de aprimoramento do texto
sólida e anterior ao processo de pesquisa, sem a qual esse trabalho seria individual. Espera-se de cada elemento do grupo uma disponibilidade
inviável.
1 . A esse respeito, consultar Suely G. Moreira, Da clínica à sala de aula.
Em alguns casos, entretanto, a origem da dificuldade está na São Paulo, Loyola, 1989, que discute como trabalhar introv ersão e extroversão
falta do hábito de escrever. Pode-se presumir que seja esta a origem, na sala de aula.

14 15
em ouvir críticas (que também pode ser apreendida) e em reescrever o Outra dificuldade ao desenvolvimento da pesquisa é o medo de
texto tantas vezes quantas o grupo solicitar. não ter o problema plenamente delimitado no projeto de pesquisa
inicial. Neste caso, é interessante lembrar que o projeto primeiro
Pesquisar em educação exige, além de uma formação acadêmica acaba passando por inúmeras transformações, e vários pesquisadores
restrita (relativa ao tema que será desenvolvido), uma sólida e pro­ só conseguem definir seu problema com maior clareza ao final da
funda formação acadêmica geral, pois a dificuldade em interpretar e
pesquisa.
compreender textos indicados nos cursos de pós-graduação somente
será vencida se, ao lado de um trabalho com o texto básico, proceder­ O importante aqui é que o pesquisador tenha a coragem de rede­
se à leitura de vários textos complementares. finir seu projeto inicial sempre que necessário, sem abandoná-lo, mas
Entretanto, infelizmente, muitos pesquisadores apenas se dão sempre voltado a ele para perceber com clareza o porquê dos desvios
conta disso ao procurarem desenvolver suas dissertações. Nesse pretendidos e em que direção pretende avançar.
sentido, todo o itinerário da formação acadêmica geral não cumprido Temas muito ou pouco explorados também provocam dificuldades.
necessariamente precisará acontecer na hora em que a pesquisa indi­
vidual se desenvolver. Ao proceder à revisão bibliográfica do tema escolhido, muitas
vezes o pesquisador pode defrontar-se com um grande número de
Essa dificuldade em ler, interpretar e compreender advém de uma obras sobre ele. Isto poderá suscitar-lhe o sentimento de que sua
formação inadequada na escola de 1.º e 2.º graus. contribuição poderá ser redundante ou inoportuna. Considero que
Considero a superação destas dificuldades um dos atributos muitas vezes um tema muito pesquisado pode ser relevante para a
básicos para o exercício do pesquisar, ao lado do aprimoramento do Educação. A abertura a novas formas de investigação poderá revelar
gosto por conhecer, a inquietude no buscar e o prazer pela perfeição. aspectos ainda não desvelados, mas importantes.
Quem não se propuser a desenvolvê-los dificilmente conseguirá termi­ Temas muito pesquisados muitas vezes necessitam de uma orde­
nar uma dissertação de mestrado! r1ação em subtemas quando da revisão bibliográfica. Essa divisão ou
Outro conjunto de dificuldades comumente citado está na escolha classificação poderá indicar ao pesquisador quais os itens a serem
do tema, no enunciado do problema, e em seu encaminhamento. melhor explorados. Evidentemente, a forma de exploração do üem
vai depender das ponderações de ordem metodológica que a pesquisa
Se o hábito em pesquisar já estivesse presente desde o 1 .º grau, suscitar.
evidentemente não haveria dificuldade em encontrar o tema, e ingres­
sar num curso de pós-graduação seria apenas uma forma de apro­ Conheço muitos pesguisadores que, diante de um- grande número
fundamento teórico-metodológico de temas já iniciados ou trabalhados. de obras para estudar sobre determinado tema, decidiram optar por
um estudo compilatório ou classificatório. Considero extremamente
Um pesquisador familiarizado com o tema teria menores difi­
culdades em enunciar o seu problema de pesquisa. O interesse pelo úteis estudos dessa natureza, pois possibilitam a outros pesquisadores
tema pode ser próximo visando solucionar questões presentes no avançarem no aprofundamento dos itens não adequadamente expla­
nados . . . 2
-

cotidiano de seu trabalho - ou remoto - quando o objetivo é


pesquisar um assunto polêmico ou pouco discutido em Educação. Em meu itinerário de pesquisadora, defrontei-me com essa difi­
1?. importante tanto para o orientador como para o orientando culdade no início da década de 80. Minha iptenção era pesquisar os
conhecer a origem do problema a ser pesquisado. 1?. interessante que efeitos da Educação no Brasil na década de 60.
o pesquisador coloque isto num pequeno texto. A análise desse texto
poderá indicar ao orientador a forma como o orientado se coloca 2. Sobre Escola Normal, tema que atualmente venho pesquisando, encon­
trei estudos compilatórios muito interessantes, entre eles: Zélia Mediano, Marli
enquanto sujeito do projeto que pretende desenvolver; revela com Anui.; .: outros, Revitalização da Escola Normal, PUC-RJ. 1988; B. Gatti, A
mais segurança o caminho a ser perseguido em seu projeto de pesquisa. formação do professor de J.0 grau, 1988 (material de estudo).

16 17
Ao levantar a bibliografia sobre o tema, encontrei uma quantidade desenvolvida. Então foi lançado o livro Interdisciplinaridade
. e pato­
enorme de títulos referentes à situação política e econômica do Brasil logia do saber de H. Japiassú - e com ele pude conhecer outros
na época, mas pouco se falava sobre Educação. O material existente, pesquisadores na área como Gusdorf, Palmade, Houtart. Entretanto,
além de escasso, nem sempre estava completo, pois não há interesse passei grande parte da pesquisa compilando os estudos desenvolvidos
em preservar os documentos sobre Educação no Brasil. Ao final de na época, para chegar a uma conclusão pessoal sobre a Interdisciplina­
cada gestão, estes são queimados, e começa-se tudo da estaca zero -
ridade. Isto possibilitou-me indicar alguns equívocos quanto a ela, na
Legislação Educacional Brasileira na década de 70.4
isto constitui uma dificuldade imensa ao pesquisador e ao educadores
de maneira geral. Desde essa época, continuo pesquisando essa temática, embora
A intenção da referida pesquisa - que seria inicialmente um ainda a considere muito pouco pesquisada. Há dois anos o pós-gra­
anúncio de proposta para trabalhar-se a educação na década de 80
duação em supervisão e currículo da PUC-SP vem sediando um grupo
- passou a ser uma denúncia dos motivos que conduziram os educa­ de pesquisadores, por mim coordenado, sobre Interdisciplinaridade no
dores da década de 60 ao silêncio. Ensino. Entretanto, como todo tema pouco explorado, exige dos que
a ele se dedicam muito empenho em construir novos caminhos.
Percebi que não poderia ir além sem um estudo compilatório
inicial, que seria impossível pular etapas, que embora as questões
econômico-políticas já houvessem sido amplamente discutidas pelos Conclusão
economistas e cientistas sociais, as relativas à Educação ainda eram
muito pouco exploradas.3 O tema inicial, que me parecia demasiado Ao assumir a tarefa de investigar, o educador se depara com
amplo, acabou se tornando bastante restrito. estas e muitas outras dificuldades. Só um trabalho contínuo e sério
A década de 60 foi a época da denúncia velada. Somente em pode vencê-las. Muitas delas poderiam ser inicialmente corrigidas, a
70 o que era velado começou a ser explicitado. Sem essa explicitação partir de uma escolaridade eficiente, desde o 1 .º grau. Algumas 6scolas
é difícil entender o movimento de avanços e recuos da Educação na já trabalham para isso, mas são poucas. Em geral, o nosso aluno é
década de 80. mal preparado tanto para enfrentar o cotidiano de seu trabalho como
os desafios da vida acadêmica.
Temas pouco explorados também geram dificuldades na pesquisa.
Neles o pesquisador age como o garimpeiro que de repente, no meio A formação do pesquisador, desde cedo, precisaria desenvolver
do cascalho, encontra uma pedra valiosa. Pedras valiosas são raras, o compromisso por "ir além" - além do que os livros já falam, além
tanto nos temas muito explorados como nos pouco explorados, pois das possibilidades que lhe são oferecidas, além dos problemas mais
algo se torna valioso, na medida do interesse específico do indivíduo conhecidos.
que pesquisa. Como esta formação não é outorgada pela escola, ela necessita ser
Pessoalmente já enfrentei essa dificuldade com o tema Interdisci­ conquistada; é a conquista da autonomia, tarefa de cada um, em
plinaridade no ensino. Embora já pensasse no tema desde 1965, apenas particular dos que buscam obter um saber mais elaborado e uma
em 1973 comecei a trabalhar nele, e pude constatar que era um tema titulação.
muito pouco pesquisado tanto pelos educadores do Brasil como nos A tarefa não termina aí. Consciente desta problemática e tendo
de outros países. Durante muito tempo apenas pude encontrar a em parte vencido suas dificuldades próprias, o educador tem a obri­
palavra enunciada num ou noutro texto, sem que a temática fosse gação de incentivar e propiciar a formação de novos pesquisadores.

3 O referido trabalho encontra-se publicado sob o nome de A educação


.
4. Esse trabalho foi publicado sob o título : Integração e Interdisciplinari­
no Brasil - anos 60. O pacto do silêncio, São Paulo, Loyola, 1985. dade 110 Ensino Brasileiro, São Paulo, Loyola, 1979.

18 19
Mas as dificuldades não param por aí, apenas mudam de nome ou
enfoque. Em conseqüência, penso que um caminho bastante promissor
à pesquisa em educação é o contato constante com outros pesquisa­
dores da área ou de áreas correlatas.

Referências bibliográficas
2

FAZENDA, Ivani C.A. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro. O FALSO CONFLI1D ENTRE TENDÊNCIAS
São Paulo, Loyola, 1979.
----- . Educação no Brasil - anos 60. O pacto do silêncio. São Paulo, ME1DDOLÓGICAS
Loyola, 1985.
GATTI, B. A formação do professor de 1.0 grau, 1988 - (material de estudo). Sérgio V. de Luna
MEDIANO, Zélia; ANDR�, M. et al. Revitalização da Escola Normal. Rio de PUC-SP/UNICAMP
Janeiro, PUC-RJ, 1988 (mimeografado) .
MOREIRA, Suely G . D a clínica à sala d e aula. São Paulo, Loyola, 1989.

20
Este texto foi concebido para apresentação no fórum "Correntes
teóricas na pesquisa educacional no Brasil" mantido durante o 1 Semi­
nário de Pesquisa em Educação no Estado do Pará, organizado pelo
Serviço de Planificação e Pesquisa em Educação da Universidade Fe­
deral do Pará. Contatos iniciais haviam dirigido minha atenção para
uma série de questões que me preocupavam havia tempo e foi com
base nelas que organizei o texto. Todavia, com a formalização do con­
vite a mim feito, dei-me conta de que o item . que me cabia no debate
era mais específico e referia-se exclusivamente ao positivismo. Por essa
razão, tornou-se necessária esta pequena introdução (à guisa de justi­
ficativa) e os quatro parágrafos seguintes.
Minha formação acadêmica foi toda calcada sobre uma metodo­
logia experimental e ainda hoje trabalho em função da análise do
comportamento, embora não nec�ssariamente ou nem sempre com ex­
perimentação. E provável que minha inclusão no fórum e no tema
·

tenha sido devida a isso.


Contudo, não me considero um positivista, mesmo porque não sei
exatamente a que as pessoas se referem com a utilização do termo,
além do fato de se pretender que ele carregue conotações pejorativas.
Ao longo da história, o positivismo de Comte foi se transformando,

23
deu origem a novas tendências associadas a diferentes autores e mis­ pesquisa. Em alguns âmbitos profissionais, Metodologia é associada a
turou-se a um conjunto de desdobramentos com denominações variadas Estatística, e Demo (1981) sugere que, na América Latina, Metodo­
(incluindo o neopositivismo) . Anos atrás, Bento Prado Júnior, em uma logia se aproxima mais do que se poderia chamar de Filosofia ou
conferência na Reunião Anual da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Sociologia da Ciência, enquanto que a disciplina instrumental é refe­
Preto, enfatizava esta questão e concluía afirmando que, a seu ver, o rida como Métodos e Técnicas.
positivismo havia morrido com Augusto Comte e não havia análise que
permitisse caracterizá-lo nas tendências posteriores. Qualquer que seja a conceituação que se ·adote, discussões rele­
vantes foram sendo produzidas a respeito de Metodologia. Talvez a
Com exceção de alguns pesquisadores efetivamente engajados no mais importante delas seja o reconhecimento de que a Metodologia
compromisso da análise epistemológica, a maioria das pessoas faz re­
não tem status próprio, e precisa ser definida em um contexto teórico­
ferência ao positivismo muito mais em função de um referente que
congregue o que julgam de pior na pesquisa do que efetivamente em metodológico qualquer. Em outras palavras, abandonou-se (ou vem-se
função de um. conhecimento de causa quanto a uma corrente episte­ abandonando) a idéia de que faça qualquer sentido discutir a meto­
mológica. Voltarei a esta questão posteriormente. dologia fora de um quadro de referência teórico que, por sua vez, é
condicionado
/
por pressupostos epistemológicos.
Um exemplo típico disto pode ser observado nas críticas
usualmente feitas a Skinner. Sobre ele tem recaído a pecha de posi­ Embora este já seja um passo importante no contexto da pes­
tivista (mesmo que na maioria das vezes não se assuma o risco de quisa e, principalmente, no ensino do pesquisar, há algumas questões
identificar no que exatamente consiste o seu positivismo) . No entanto, derivadas cuja análise conjunta: eu gostaria de enfatizar. Nessa análise
há muitos anos (Skinner, 1974) ele escreveu um texto onde analisa eu pretendo discutir:
características marcantes dessa corrente e assinala por que sua pro­
posta foge dela. Posteriormente, pelo menos dois pesquisadores (Rose 1 A diferença entre o pesquisar e o prestar serviços.
.

e Abib, ambos em Prado Jr., 1982) refizeram a análise chegando à


mesma conclusão. Curiosamente, embora nenhuma dessas análises 2 Alguns requisitos pr.ra o pesquisar.
.

tenha sido formalmente contestada, os textos raramente são mencio­ 3 A relação entre problema de pesquisa e os procedimentos em­
.

nados e as análises são desconsideradas (possivelmente porque nunca pregados.


lidas) .
4. O problema e as suas relações com a teoria.
Experimentem perguntar às pessoas exatamente no que consiste
o positivismo enquanto corrente epistemológica e, especialmente, quem Certamente alguns destes itens não constituem novidade e, por
é ou tem sido positivista. � pouco provável encontrar resposta para esta razão, não necessitariam ser aqui incluídos. Decidi fazê-lo, no
a segunda pergunta. Quanto à primeira, os indicadores apontarão entanto, porque ajudarão a explicitar algumas concepções minhas sobre
mais provavelmente para características de uma pesquisa malfeita ou pesquisa, facilitando o esclarecimento de análises posteriores.
para pressupostos que todos defendemos um dia mas que vimos aban­
donando há tempos. 1. Pesquisar x prestar serviços ·

Por estas razões, o texto a seguir não pretendeu discorrer sobre


o positivismo, mas ·sim rever as bases sobre as quais erroneamente se Há diferentes razões pelas quais um profüsional se engaja em um
têm estabelecido conflitos entre tendências metodológicas, e a discutir trabalho. Garantidas a sua qualidade e a sua relevância por meio da
bases mais reais e saudáveis para um conflito honesto. avaliação de seus pares e do seu consumidor, o trabalho ·é importante
e não há por que tratar dele aqui. Entretanto, a relevância e a qua­
O sentido da palavra Metodologia tem variado ao longo dos anos. lidade de um trabalho não são suficientes para caracterizar. uma pes­
Mais importante, tem variado o status a ela atribuído no contexto da quisa. Para isso, é necessário que o profissional e/ou equipe sistema-

24 25
tize a ação e o seu produto e demonstre que o resultado avança no 2. Alguns requisitos para o pesquisar
que até então se conhecia a respeito dos fenômenos envolvidos.
Qualquer que seja o problema, o referencial teórico ou a meto­
Apenas como exemplo da distinção, consideremos uma pesquisa dolo .empregada, uma pesquisa implica o preenchimento de três
gia
que estou orientando. A aluna trabalhava em uma instituição escolar requisitos:
para deficientes mentais. Sua preocupação voltava-se para a partici­ - a existência de uma pergunta que se deseja responder;
pação da família no processo educacional e a tônica era dada pelo
fato de se tratar de famílias de baixíssimo poder aquisitivo. - a elaboração (e sua descrição) de um conjunto de passos que
permitam obter a informação necessária para respondê-la;
Em um determinado momento do trabalho, confrontei-a com a - a indicação do grau de confiabilidade na resposta obtida.
questão da definição da natureza do trabalho: ou os seus resultados
caracterizariam uma prestação de serviços para aquela população (pro­ Em outras palavras, é necessário haver um problema de pesquisa
duto cuja relevância social eu não colocava em dúvida, mas que, por (o que não significa uma hipótese formal), um procedimento que gere
informação relevante para a resposta e, finalmente, é preciso demons­
outro lado, não me permitia enxergar a pesquisa) ou ela avançaria trar que esta informação decorre do procedimento empregado e que
de modo a estudar fatores que interfeririam na participação de famí­ a resposta produzida por ele não é apenas uma resposta possível,
lias de deficientes mentais na educação escolar de seus filhos (apro­ como também é a melhor nas circunstâncias (o que inclui, certamente,
ximando-se do que eu chamo de pesquisa). o referencial teórico) .
Mesmo com o risco de desviar demais a atenção do leitor da Antes de prosseguir, paro neste ponto para sugerir ao leitor que
questão central, duas observações precisam ser feitas a propósito reflita sobre uma questão: exatamente, que tendência metodológica
deste exemplo. Seria perfeitamente possível descobrir, ao final da particular é caracterizada por estes três requisitos? Ou, de outra
pesquisa, que as peculiaridades culturais da região e/ou daquela forma, que corrente metodológica poderia dispensar qualquer um
população particular tornavam os resultados absolutamente não gene­ deles? Neste caso, se a resposta for afirmativa, o que permitiria con­
ralizáveis, ficando restritos à situação sob estudo. Este fato em nada tinuar falando em pesquisa?
alteraria o status de pesquisa do estudo na medida em que para chegar Minha resposta a ambas as perguntas acima é "nenhuma" e
a esta conclusão teria sido necessário avaliar um conjunto mais amplo passo a j ustificá-la usando cada um dos re,�uisitos acima.
de fatores e de situações. Em segundo lugar, estas considerações não
põem em dúvida o estudo de caso como uma técnica válida de pes­ Os efeitos da inexistência de um probl�ma de pesquisa (ou de
quisa, aliás empregada há muito mais tempo do que se costuma supor. uma pergunta que se quéira responder) parecem claros e não depen­
O que parece discutível é que o emprego do estudo de caso em uma dem de muita discussão. Ele precisa existir, mesmo que sob a forma
de mera curiosidade, para dirigir o trabalho de coleta de informações
avaliação institucional (por exemplo) constitua em si mesmo uma
e, posteriormente, para organizá-las. E. difícil argumentar contra a
pesquisa. O que deveria ser uma avaliação em profundid{lde de uma formulação de problemas de pesquisa e desconheço a existência de
realidade menor, tendo em vista a identificação de proce.ssos e inte­ uma corrente metodológica que o faça seriamente.
rações (em geral não captáveis em pesquisas com grandes populações)
para conhecimento e interpretação de determinados fenômenos, vira Vez por outra surgem alegações de que a formulação de pro­
um fim em si mesmo, caracterizando uma prestação de serviços. blemas de pesquisa é uma imposição de metodologias tradicionais
(quase certamente o positivismo entrará como vilão) . No entanto, a
Doravante, portanto, estarei me referindo à pesquisa como uma meu ver, a maioria dos argumentos oferecidos nesse sentido é equi­
atividade de investigação capaz de oferecer (e, portanto, produzir) um vocada por manter uma concepção estreita de "problema de pes­
conhecimento "novo" a respeito de uma área ou de um fenômeno, quisa". Por exemplo, defensores da chamada pesquisa-ação sustentam
sistematizando-o em relação ao que já se sabe a respeito dela(e) . não ser possível a formulação prévia de problemas em virtude de

26 27
isto ser' parte do próprio processo de pesquisa, devendo, portanto, u
recer garantias quanto à s a adequação. Freqüentemente (e cada vez
brotar dele. mais), as informações geradas pelos procedimentos de pesquisa consis­
Não tenho objeções ao objetivo. Entretanto, se cabe ao pesqui­ tem de massas de relatos verbais, verdadeiros discursos (como se diz
sador um papel de desencadeador desse processo ou, ainda, se cabe hoje), que em geral não são colocados à disposição do leitor, ou pelo
a ele qualquer papel diferencial que o qualifique como pesquisador, seu volume ou mesmo pela necessidade de manutenção do sigilo.
então é necessário que ele nos devolva uma análise que indique qual Contudo, ainda nestes casos, o pesquisador não pode se furtar à dívida
era o problema original (que poderia perfeitamente ter sido "como de expor os meios de transformação da informação em dado e de
levar este grupo a descrever e identificar suas dificuldades? " ou algo argumentar a favor da sua adequação. A ausência deste compromisso
no gênero) e que resposta obteve. Note-se que estou fazendo uma clara tem transformado muito do que começou como pesquisa em manifesto
distinção entre a resposta às questões sociais que poderiam ter gerado ou em romance.1
a sua ação no grupo ou comunidade, e a resposta que ele oferece Embutida na questão da fidedignidade, existe outra questão. Uma
enquanto pesquisador à comunidade científica. Aproveito para dizer vez tratada s e analisadas as informações, o pesquisador chega à res­
que pode residir aq_ui uma confusão que já se estabeleceu entre pes­ posta (ou respostas) ao seu problema. Consideradas as circunstâncias,
quisadores sobre a necessidade/adequação de se devolver à população por que ela é a melhor resposta possível? Por que respostas alter­
os resultados da pesquisa. A questão central deveria ser: que população nativas puderam ser descartadas? Apenas como exemplo da impor­
precisa ser informada de que resposta a que problema? tância desta avaliação, lenibro a freqüência com que termino a leitura
Em resumo, toda pesquisa tem um problema, embora a sua for­ de uma "pesquisa" com a sensação de que a resposta estava pronta
mulação possa variar quanto à natureza ou molaridade. antes da pesquisa e teria sido oferecida independentemente das
informações coletadas e das análises realizadas .
O segundo requisito mencionado diz respeito à existência
- de um
conjunto de passos que gerem informação relevante, isto é,' o procedi­ Mais uma vez, a pergunta que se faz é: sob que condições uma
mento. Nenhuma metodologia pode dispensar procedimentos. O erro corrente metodológica qualquer poderia se eximir de oferecer respostas
cometido durante muito tempo, aliás, foi exagerar esta vinculação e a · estas questões? E se puder, por que razão as respostas oferecidas
associar a metodologia exclusivamente a procedimentos de coleta de por uma pesquisa realizada sob essa orientação deveriam merecer
informações. algum crédito?
A razão· da inviabilidade de se dispensar procedimentos é sim­ Do meu ponto de vista, estas considerações sugerem que o con­
ples. Se o problema que gera a pesquisa não pode ser respondido flito entre tendências metodológicas não pode residir nestes aspectos
diretamente (caso contrário não teríamos um problema! ), isto signi­ discutidos. Eles presidem a qualquer investigáção científica, indepen­
fica que a realidade não pode ser apreendida diretamente, mas depende dentemente da vinculação teórico-metodológica do pesquisador. Passe­
de um recorte que faça sentido. Este recorte é garantido pelo pr,oce­ mos, então, a um outro aspecto da questão, e vejamos que respostas
dimento que seleciona as informações necessárias para uma leitura podemos obter da sua análise.
pelo pesquisador. Diferentes tendências farão recortes diferentes mas
não poderão prescindir de procedimentos de coleta de informa�ões. 3. A relação entre problema de pesquisa e os
procedimentos empregados
Finalmente, o critério de confiabilidade da resposta oferecida .
pela pesquisa. A questão é espinhosa e já recebeu as mais diferentes Por uma razão ainda não muito clara para mim, a técnica de
interpretáções. Não pretendo fazer incursões nesta área e, muito pesquisa, o procedimento, assume entre alguns pesquisadores (espe­
menos, discutir possíveis parâmetros que diferenciem atividades cien­ cialmente mas não exclusivamente entre os iniciantes) uma autonomiá
tíficas, estéticas, religiosas etc. Pretendo pura e simplesmente rea­
firmar minha posição de que se a resposta depende da interpretação 1 . Nada tenho contra estes gêneros de literatura. Simplesmente não os
das informações geradas pelo procedimento, o pesquisador deve ofe- considero como pesquisas.

28 29
que não encontra qualquer justificativa. Por exemplo, não raro um _ que, no caso de dificuldades do aluno, ela não é parte do
aluno respondera à pergunta "Qual é o seu problema de pesquisa?" problema ou que, sendo, admite o fato e dispõe-se a relatá-lo.
com "Vou usar u,.i questionário para . . . " ou "Não sei ainda, mas
sei que não quero fazer observação! " Recentemente, dei-me conta de O s dados de pesquisa e a experiência com professores indicam
que uma aluna, que não conseguia decidir-se quanto à formulação fortemente a necessidade de esses aspectos serem trabalhados junto
do seu problema, vivia pedindo bibliografia sobre pesquisa-participante. ao professor ; conseqüentemente, a fidedignidade das informações cole­
Conversando um pouco mais com ela, percebi que ela já optara pela tadas junto a essa fonte, considerado este problema, é no mínimo
pesquisa-participante embora não soubesse exatamente como nem por duvidosa.
que fazê-lo.
Da mesma forma, determinados projetos de pesquisa selecionam
O ponto em questão é que nenhuma técnica pode ser escolhida a observação como método preferencial (ou exclusivo) de coleta de
a priori, antes da clara formulação do problema, a menos que a pró­ informações, quando uma formulaç�o clara do problema indicaria
pria técnica seja o objeto de estudo (como seria o caso em uma ava­ que 0 objeto de estudo é um processo que não se mostra claramente
liação dos limites e possibilidades de uma determinada técnica de na situação sob observação.
pesquisa ou, mesmo, de uma pesquisa de natureza didática onde a Deste ponto de vista, os possíveis conflitos entre tendências me­
técnica é previamente selecionada para treino do aluno) . Fazê-lo sig­ todológicas não se explicam pelo uso preferencial de técnicas de coleta
nifica atribuir à técnica um poder que ela não tem e a tendência só
· de informações. Na verdade, seus diferentes usos decorrem da for­
pode ser atribuída ao modismo.2 mulação do problema e não de características peculiares de cada uma
Tomemos alguns exemplos do cotidiano. Suponhamos que um delas. Neste caso, o centro da questão parece estar no problema ou,
pesquisador esteja interessado em investigar o nível, a qualidade do mais propriamente, na relação teoria-problema.
rendimento de alunos do primeiro grau. A moda atual é, neste ponto,
estabelecer um roteiro de entrevistas e marcar um horário com pro­ 4. O problema e suas relações com a teoria
fessores na tentativa de obter as informações necessárias. Quase com
certeza será empregada a análise de conteúdo (cujos pr�ssupostos, na A realidade empírica é complexa mas objetiva. Não traz nela
maioria das vezes, são desconsiderados) e, muito provavelmente, ha­ mesma ambigüidades. O homem individual é subjetivo porque é in­
verá um longo questionário para caracterização do nível socioeconô­ capaz de separar o objeto da concepção que faz dele, o que vê do
mico da família do aluno (que ao final será desprezado por falta de que imagina e, sobretudo, porque incapaz de ler, na observação, o
critérios de análise) .
·
processo que determina um fenômeno particular momentâneo (mesmo
porque dificilmente ele se · evidenciaria nesta situação).
Minha primeira tendência, nestes casos, é sempre a de questionar
Não há novidade nisto. Autores tão diferentes quanto Kerlinger
as decisões metodológicas na medida em que o problema não me pa­ ( 1980) e Demo ( 1981) já o disseram explicitamente. Sua recuperação
rece suficientemente claro para entendê-las. No caso em questão, a interessa-me, aqui, porque permite circunscrever o papel da teoria
escolha de entrevista pressupõe duas decisões a meu ver temerárias: dentro da ciência.
que a profesora é uma boa informante sobre o rendimento do A partir de conhecimentos parciais obtidos pela limitação do
aluno; homem, a teoria surge como uma possibilidade. de integrá-los e, neste
sentido, é sempre um recorte, um retrato parcial e imperfeito da
2 . Devo ressaltar, a bem da verdade, que um pesquisador pode ter e realídade .
freqüentemente tem preferências e rejeições em relação a determinados proce­
dimentos de pesquisa. Mas, nestes casos, ou ele encontra alteri1ativas viáveis ou Uma vez elaborada, a teoria passa a servir a dois propósitos im­
abandona o projeto. A experiência, contudo, indica que ele aprende a formular portantes à nossa discussão: ela indica lacunas em nos·so conhecimento
problemas já compatíveis com suas crenças e/ou preferências. da realidade e, com isto, gera novos problemas de pesquisa; ao mesmo

30 31
tempo, apesar de parcial, ela serve de referencial explicativo para os - a explicitação de �ma pergunta/problema;
resultados que vão sendo observados. Uma teoria que não sirva a - a elaboração (e clara descriçã0) de um conjunto de passos que
estes propósitos terá muito pouca utilidade e tenderá a ser reformulada obtenham informação necessária para respondê-la(o) ;
ou mesmo abandonada.
- a indicação do grau de confiabilidade na resposta obtida;
Apesar do poder de abrangência e de generalidade que se espera então será possível avaliar o seu produto segundo os parâmetros do
da teoria ou que se lhe atribui, ela continua sendo um recorte da seu referencial. Fora disto, corremos o risco de criticar um pesqui-,
realidade. Mesmo teóricos tão antigos e prestigiados como Freud, sador por não ter feito a pesquisa como nós a faríamos ou, pior, a
Piaget e Marx circunscreveram claramente o âmbito de explicação de avaliação da produção científica dependerá da crença em valores
suas teorias. Em virtude desta restrição no âmbito de explicação, a compartilhados por iniciados em uma mesma confraria.
teoria acaba, por sua vez, restringindo ou pelo menos priorizando, no
planejamento, a coleta de informações capazes de serem absorvidas Parte da imprecisão na maneira de encarar as diferenças entre
pela explicação. E neste aspecto, a meu ver, que reside o conflito. E, as correntes metodológicas explicita-se na consideração das diferentes
este sim, é um conflito saudável que vale a pena enfrentar em virtude técnicas de pesquisa como se elas revelassem algo além da possível
dos benefícios mútuos para os diferentes pesquisadores que nele en­ adequação entre a formulação do problema e as informações neces­
trarem honestamente. Por isso, quero comentá-lo mais detalhadamente. sárias para a pesquisa. Este tipo de deslocamento da questão tem
apresentado ramificações. A necessária discussão a respeito da ade­
O referencial teórico de um pesquisador é um filtro pelo qual quação de métodos qualitativos em relação à captação de determinados
ele enxerga a realidade, sugerindo perguntas e indicando possibilida­ fenômenos e processos desenvolveu uma caça às bruxas aos métodos
des. E tão improvável que um psicanalista cogite dos efeitos da estru­ quantitativos, como se não houvessem problemas para os quais estes
tura cognitiva de uma criança sobre seu desempenho, quanto um fossem úteis ou mesmo indispensáveis.
piagetiano procurar levantar informações sobre a resoluçãó do com­
plexo de Edipo das crianças que estude. Outro deslocament0 da questão evidencia-se na tentativa de con­
frontar diferentes tendências teórico-metodológicas como se a verdade
Desta forma, os problemas de pesquisa gerados por cada um de cada uma pudesse ser atestada pela fragilidade da outra. Ao con­
deles tenderão a refletir seus vieses teóricos. N ão haverá razão par� trário, a força de uma abordagem teórico-metodológica é demonstrada
espanto se cada um deles enveredar por procedimentos metodológicos pela sua resistência à crítica que se exerce contra ela mesma. Um
diferentes, nem se ambos optarem pelos mesmos procedimentos. Mas trabalho mais produtivo seria realizado se pudéssemos nos aproveitar
seria extremamente curioso descobrir que ambos coletaram as mesmas da produção científica derivada das várias çorrentes metodológicas
informações e, principalmente, que chegaram à mesma resposta para como fonte de inspiração para o exercício da crítica interna.
um problema (que, aliás, dificilmente seria formulado da mesma ma­
neira) . As decisões metodológicas são pura decorrência do problema Referências bibliográficas
formulado e este só se explica ·devidamente em relação ao referencial
teórico que deu origem a ele. Qualquer tentativa de confronto entre ABIB, J.A.D. "Skinner, materialista metafísico? Never mind, no matter" in Prado
métodos e técnicas de pesquisa, portanto, só poderá ser resolvido Júnior, Bento (org.) , Filosofia e comportamento. São Paulo, Brasiliense,
levando-se em conta os objetivos contidos no problt>.ma e a capacidade 1982.
de explicação do referencial teórico. DEMO, P. Metodologia científica em Ciências Sociais. São Paulo, Atlas, 1 9 8 1 .
KERLINGER, F.N. Metodologia da pesquisa e m CÜncias Sociais. São Paulo,
Considerações finais EPU/EDUSP, 1980.
ROSE, J.C. de. "Consciência e propósito no Behaviorismo Radical" in Prado
A questão das diferenças metodológicas tem sido formulada em Júnior, Bento (org.) , Filosofia e comportamento. São Paulo, Brasiliense,
termos imprecisos. Se um pesquisador atender aos requisitos apontados 1982.

· no início deste trabalho, a saber: SKINNER, B.F. A bout Behaviorism. New York, Alfred A. Knopf, 1974.

32 33
3

A PESQUISA NO COTIDIANO ESCOLAR*


Marli E. D. A. André
FEUSP

* Trabalho apresentado no VIII Encontro de Pesquisadores da Região Sul.

Porto Alegre, novembro de 1987.


Entre os tipos de pesquisas que vêm sendo utilizadas na área de
educação, destacam-se os estudos que focalizam as situações específicas
do cotidiano escolar. O presente trabalho pretende identificar algumas
das características desses estudos, assim como destacar questões que
emergem quando se desenvolve este tipo de investigação.

1. A pesquisa do tipo etnográfico no Cotidia�o Escolar

A pesquisa aqui focalizada se aproxima muito do "trabalho de


campo" tal como é proposto por Cicourel ( 1980) e Junker ( 197 1 ) ,
podendo também ser identificada como uma pesquisa do tipo etno­
gráfico já que utiliza técnicas tradicionalmente adotadas pela etno­
grafia, como a observação participante e a entrevista não-estruturada.
Entretanto, enquanto antropólogos e sociólogos se preocupam com a
descrição da "cultura" de grupos e sociedades primitivas ou comple­
xas, o trabalho aqui proposto se volta para as experiências e vivências
dos indivíduos e grupos que participam e constroem o cotidiano
escolar.
Essa abordagem se diferencia da pesquisa partiCipante tal como
é defendida por Carlos Brandão e Fals Borda ( 1981) que propõem um

37
intenso envolvimento do grupo pesquisado nas diversas fases da pe�:­
quisa, inclusive na definição do objeto de estudo, uma restituição
sistemática dos conhecimentos da pesquisa aos pesquisados e um pro­
1
constante entre ob servaçao e ana'l'1se, entre teoria
- · . e empma. o pro-
cesso etnográfico pode partir de questões bem claras e definidas ou
de um esquema teórico incipiente que vai se construindo e estruturan­
do ao longo da pesquisa. A flexibilidade do esquema de trabalho deve
cesso coletivo da avaliação dos resultados para transformá-los em
ser, no entanto, aproveitada para uma ampliação e enriquecimento da
ações concretas. Para esses autores a pesquisa deve dirigir-se aos
grupos populares de modo que estes possam "entender melhor seus teorização e não como pretexto para justificar a falta de um caminho
problemas e agir em defesa de seus interesses" (Fals Borda, 198 1 : 50) . teórico definido.
A utilização de diferentes técnicas de coleta' e de fontes variadas
O tipo de trabalho aqui focalizado também não se confunde com de dados também caracteriza os estudos etnográficos, ainda que o
a pesquisa-ação tomada em sua acepção mais tradicional, ou seja, método básico seja a observação participante. O pesquisador em geral
como um processo de controle sistemático da própria ação do pes­ conjuga dados de observação e de entrevista com resultados de testes
quisador, ou como um estudo que envolve alguma forma de inter­ ou com material obtido através de levantamentos, registros documen­
venção. tais, fotografias e produções do próprio grupo pesquisado, o que lhe
A pesquisa do tipo etnográfico pode até incluir algum tipo de permite uma "descrição densa''. da realidade estudada.
ação ou intervenção por parte do pesquisador ou do grupo pesquisado, Uma vez explicitado o que está sendo entendido por abordagem
mas isso ira ocorrer mais em função do esquema flexível que o de tipo etnográfico, faz-se necessário justificar por que o enfoque no
processo etnográfico assume do que de uma proposta intencional de cotidiano escolar.
intervenção. O estudo do cotidiano escolar se coloca como fundamental para
O que caracteriza mais fundamentalmente a pesquisa do tipo se compreender como a escola desempenha o seu papel socializador,
etnográfico é, primeiramente, um contato direto e prolongado do pes­ seja na transmi·ssão dos conteúdos acadêmicos, seja na veiculação das
quisador com a situação e as pessoas ou grupos selecionados. Eviden­ crenças e valores que aparecem nas ações, interações, nas rotinas e nas
temente deve ficar claro, desde o início da pesquisa, o grau de relações sociais que caracterizam o cotidiano da experiência escolar.
envolvimento ou de participação do pesquisador na situação pesqui­ Esse processo de socialização, no entanto, não é tão determinís­
sada. A intensidade do envolvimento pode variar ao longo do pro­ tico ou mecanicista como se poderia imaginar. Da mesma maneira
cesso de coleta dependendo das exigências e especificidade do próprio como a realidade social se configura contraditória, expressando no
trabalho de campo. O que parece fundamental é que o pesquisador seu cotidiano uma correlação de forças entre .classes sociais, a escola,
tenha muito claro em cada momento por que certo grau de partici­ como constitutiva dessa práxis, vê refletidas no seu dia-a-dia todas
pação e não outro está sendo assumido e saiba avaliar prós e contras essas e outras contradições sociais.
desta ou daquela opção. É captando o movimento que configura esta dinâmica de trocas,
Um outro requisito da pesquisa do tipo etnográfico é a obtenção de relações entre os sujeitos - que por sua vez reflete os valores,
de uma grande quantidade de dados descritivos. Utilizando principal­ símbolos e significados oriundos das diferentes instâncias socializa­
mente a observação, o pesquisador vai acumulando descrições de lo­ doras -, que se pode visualizar melhor como a escola participa do
cais, pessoas, ações, interações, fatos, formas de linguagem e outras processo de socialização dos sujeitos que são, ao mesmo tempo, de­
expressões, que lhe permitem ir estruturando o quadro configurativo terminados e determinantes. Todo este processo se materializa no
da realidade estudada, em função do qual ele faz suas análises e cotidiano, quando o indivíduo se coloca na dinâmica de criação e
interpretações. recriação do mundo.

Outro aspecto peculiar aos estudos etnográficos é a existência de


um esquema aberto e artesanal de trabalho que permite um transitar
O estudo da atividade humana na sua manifestação mais ime­
diata - o existir e o fazer cotidiano - parece fundamental para co :
38
preender, não de forma dedutiva, mas de forma crítica e reflexiva, o 2 . Algumas questões da pesquisa do tipo etnográfico .
momento maior da reprodução e da transformação da realidade social. no Cotidiano Escolar
A importância do estudo do cotidiano escolar se coloca aí: no dia-a-dia
da escola é o momento de concretização de uma série de pressupostos
O lugar da teoria na pesquisa
subjacentes à prática pedagógica, ao mesmo tempo que é o momento e
o lugar da experiência de socialização que envolve professores e alu­
Como em qualquer tipo de investigação, o primeiro passo na
nos, diretor e professores, diretor e alunos e assim por diante.
pesquisa do tipo etnográfico é a tentativa de delimitação do problema
Conhecer a realidade concreta desses encontros desvenda, de al­ em estudo, para o que o pesquisador recorre a um referencial teórico
guma forma, a função de socialização não-manifesta da escola, ao mais ou menos definido. A teoria é, pois, uma preocupação inicial do
mesmo tempo em que indica as alternativas para que esta função seja pesquisador para formular a pergunta ou questão que orienta a
concretizada da maneira o mais dialética possível. pesquisa. ·
Um estudo do cotidiano escolar envolve, assim, pelo menos três Este referencial teórico pode consistir na adoção de uma deter­
dimensões principais que se inter-relacionam. A primeira refere-se ao minada perspectiva, como por exemplo a abordagem humanista. Ou
clima institucional que age como mediação entre a práxis social e o pode envolver as concepções de um determinado autor, como por
que acontece no interior da escola. exemplo Paulo Freire. Ou pode ainda envolver a explicitação de
alguns conceitos básicos que, embora não constituam um corpo teórico
A práxis escolar sofre as determinações da práxis social mais definido, configuram uma determinada direção, como por exemplo a
ampla através das pressões e das forças advindas da política educa­ discussão dos conceitos de ideologia, poder, dominação e resistência,
cional, das diretrizes curriculares vindas de cima para baixo, das dentro de uma perspectiva dialética.
exigências dos pais, as quais interferem na dinâmica escolar e se con­
frontam com todo o movimento social do interior da instituição. A B importante assinalar que, sem um referencial básico de apoio,
escola resulta, portanto, desse embate de diversas forças sociais. a pesquisa pode cair num empirismo vazio e conseqüentemente não
contribuir para um avanço em relação ao já conhecido. Por outro
A segunda dimensão diz respeito ao processo de interação de sala lado, a escolha de uma dada perspectiva não deve significar uma
de aula que envolve mais diretamente professores e alunos, mas que orientação pronta e única, mas um dos possíveis caminhos de apro­
incorpora a dinâmica escolar em toda a sua totalidade e dimensão ximação do real, e esse caminho pode e deve ser questionado e revisto
social. durante todo o desenrolar da pesquisa. A teoria vai, assim, sendo cons­
A terceira dimensão abrange a história de cada sujeito manifesta truída e reconstruída ao . longo da pesquisa. ·
no cotidiano escolar, pelas suas formas concretas de representação Para que isto possa ocorrer, no entanto, é preciso uma atitude
social, através das quais ele age, se posiciona, se aliena ao longo do flexível para fazer as mudanças, ajustes e reformulações necessários,
processo educacional. A dimensão subjetiva do indivíduo numa dada seja nas questões iniciais, seja na escolha dos sujeitos participantes,
posição socializadora é fundamental para se verificar como se concre­ seja na definição das estratégias de coleta e análise ou mesmo no
tizam, no dia-a-dia escolar, os valores, símbolos e significados trans­ "esquema" básico do trabalho. Mas, além disso tudo, é preciso um
mitidos pela escola. interesse especial em ampliar o conhecimento já disponível, o que vai
Essas três dimensões, vistas como unidade de múltiplas · inter­ exigir uma constante atitude de busca e de teptativa de descoberta de
relações, possibilitam a compreensão das relações sociais expressas no novos conhecimentos.
cotidiano escolar, num enfoque dialético homem-sociedade nos diver­ A explicitação do papel da teoria na pesquisa ajuda-nos a com­
sos momentos dessa relação. A identificação e explicação desse movi­ preender mais claramente as questões comumente postas pelos pes­
mento permite captar a direção do que acontece dentro da escola sem quisadores sobre a relação teoria-método. Se admitifuos que a teoria
desvinculá-la da práxis social mais ampla. vai sendo construída e reconstruída no próprio processo da pesquisa,
40 41
temos de aceitar que as opções metodológicas também vão sendo ex­ A pergunta relevante neste caso parece ser a seguinte: Como
plicitadas e redefinidas à medida que a investigação se desenvolve. O conseguir um distanciamento do objeto estudado que permita por um
que não podemos deixar de assinalar é a estreita articulação que deve lado fugir ao senso comum, já que se estuda em geral um contexto
existir entre teoria e método; sem ela o próprio processo de pesquisa "familiar", e por outro lado possibilite um controle dos próprios
perde seu sentido. preconceitos e limitações péssoais?

A relação entre o micro e o macrossocial


A resposta evidentemente não é simples nem direta. Os antro­
pólogos e sociólogos sugerem o "estranhamento", uma atitude de
A opção pela escola como foco de estudo não implica abordá-la policiamento contínuo do pesquisador para transformar o familiar em
apenas em função de suas relações internas. Trata-se, ao contrário, de estranho. É um esforço ao mesmo tempo teórico e metodológico: por
considerá-la como parte de uma totalidade social que de alguma ma­ um lado deve-se jogar com as categorias teóricas para poder ver além
neira a determina e com a qual ela mantém determinadas formas de do aparente e por outro treinar-se para "observar tudo", para "en­
relacionamento. xergar" cada vez mais, tentando vencer o obstáculo do processo na­
turalmente seletivo da observação.
O enfoque no cotidiano escolar significa, pois, estudar a escola
em sua singularidade, sem desvinculá-la das suas determinações sociais Mais uma vez a teoria parece exercer um papel extremamente
mais amplas. O propósito é compreender o cotidiano como momento importante no sentido de caminhar paralelamente à observação, pos­
singular do movimento social, e isso vai exigir, do ponto de vista sibilitando uma ampliação do campo do observador, indicando "pis­
teórico, o manejo de grandes categorias sociais como classe, cultura, tas" para um estudo mais aprofundado ou sugerindo focos para uma
hegemonia etc. Do ponto de vista metodológico isto implica comple­ atenção mais sistemática.
mentar as observações de campo com dados advindos de outras ordens
sociais, como por exemplo a política educacional do país, as diversas Outra questão que se poderia trazer ainda com relação ao con­
organizações sociais que exercem alguma influência na escola etc. trole da subjetividade é a prática do trabalho individual de pesquisa.
Admitindo-se que a realidade pode ser vista sob diferentes prismas,
O que é necessário, em síntese, é tentar transcender o nível que há padrões diversificados e conflitantes de interpretação do real,
micro, acompanhando os diversos "fios" que o vinculam às estruturas o trabalho de pesquisa, principalmente o que se volta aos processos
macrossociais, com o cuidado de não cair no outro extremo, ou seja, sociais, deveria no mínimo tentar refletir esta diversidade de pers­
querer analisar uma realidade particular como uma "totalidade so­ pectivas.
cial", isto é, como uma situação que se esgote em si mesma.
Uma das formas pelas quais isto poderia ocorrer seria através
A pesquisa precisa buscar estabelecer esta mediação entre o mo­
de um processo coletivo de trabalho, se possível interdisciplinar. O
mento singular expresso no cotidiano escolar e o movimento social,
envolvimento de um grupo de pesquisadores no estudo de temas
o que, parece, só pode ser conseguido através de uma postura teórica
muito consistente, de uma visão de escola muito definida e de um geralmente passíveis de enfoques divergentes pode ser extremamente
esforço analítico bastante árduo. benéfico no caminhar teóric_o-metodológico que se empreende atual­
mente na área educacional.
O controle da subjetividade e a busca do rigor científico
A problemática da análise de dados
Na própria definição de trabalho etnográfico - em que "o ob­
servador está em relação face a face com os observados e, ao parti­ Embora no processo etnográfico a atividade de análise se faça
cipar da vida deles no seu cenário natural, colhe dados" (in Cicourel, paralelamente à de observação à medida que o pesquisador vai sele­
1980) - , aparece implicitamente a questão da subjetividade na pes­ cionando os aspectos que merecem ser melhor explorados, quando ele
quisa de campo. decide que elementos devem ser privilegiados e quais podem ser

42 43
abandonados, a fase mais concentrada de análise ocorre no final do mensagens implícitas, dimensões contraditórias e pontos sistematica­
trabalho de campo. mente omitidos.

B quando surgem várias indagações como: Por onde devo come­ Num momento imediatamente subseqüente e sempre em con­
çar a análise? Como devo elaborar o meu sistema de categorias? Que fronto com os pressupostos teóricos colocados, este conjunto primeiro
caminhos me possibilitarão ir além dos dados para chegar à estrutu­ de categorias deverá ser reexaminado e modificado em função da as­
ração de conceitos mais abrangentes'! sociação ou dissociação de idéias e conceitos identificados. Este
movimento ininterrupto de confronto entre teoria e empiria deve re­
Mais uma vez não existem respostas simples para estas questões. sultar numa aproximação maior da realidade que a pesquisa pretende
O processo de análise dos dados qualitativos é extremamente comple­ representa r.
xo, envolvendo procedimentos e decisões que não se limitam a um
conjunto de regras a serem seguidas. O que existem são algumas
indicações e sugestões muito calcadas na própria experiência do pes­ Referências bibliográficas
quisador e que servem como possíveis caminhos na determinação dos
procedimentos de análise. BRANDÃO, C.R. (org.) . Pesquisa participante. São Paulo, Brasiliense, 198 1 .
CICOUREL, A . "Teoria e métodos e m pesquisa d e campo", i n Guimarães, A.Z.
Na fase final do trabalho de campo, o pesquisador se defronta (org. ) . Desvendando máscaras sociais. Francisco Alves, 1980.
com uma série de tarefas, tais como a codificação dos registros e de FALS BORDA, O. "Aspectos teóricos da pesquisa participante" in C.R. Brandão
outros materiais coletados, a criação ou especificação de categorias (org.) Pesquisa participante. São Paulo, Brasiliense, 198 1 .
e a estruturação dos conceitos e concepções mais abrangentes. JUNKER, B. A importância do trabalho de campo. Lidador, 197 1 .
MICHELAT, G. "Sobre a utilização da entrevista não-diretiva em Sociologia" in
O processo de codificação pode variar muito. Alguns preferirão M. Thiollent. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária.
letras, outros números e outros ainda farão as anotações no próprio São Paulo, Polis, 1980.
registro. Estes sinais e seus respectivos conteúdos-temas, tópicos, ex­
pressões serão reunidos para formar conjuntos de categorias que
indicarão as tendências mais marcantes ou mais significativas na pro­
blemática estudada.
A formação de categorias também envolve procedimentos variados.
Algumas dessas categorias analíticas podem derivar diretamente da
categorização teórica que constitui o referencial de apoio. Outras
surgirão a partir do próprio conteúdo das anotações feitas, especifi­
cando ou expandindo as categorias iniciais.
O essencial é que, para a elaboração destas categorias analíticas,
se faz necessária uma leitura exaustiva das anotações até chegar ao que
Michelat ( 1 980) chamou de "impregnação" de seu conteúdo. Nestas
leituras sucessivas vão aparecendo as dimensões mais evidentes, os
elementos mais significativos, as expressões e as tendências mais
relevantes.
B importante ainda que o pesquisador não se restrinja ao con­
teúdo manifesto das anotações, mas procure aprofundar-se, desvelando

44 45
4

A PESQUISA QUALITATIVA*
Joel Martins
PUC-SP/UNICAMP

* Roteiro entregue aos alunos para iniciar a reflexão, em curso ministrado


na PUC-SP.
1 Seria melhor dizer-se a análise qualitativa na pesquisa como
.

forma de trabalho metodológico das Ciências Humanas. No desenvol­


vimento ou trajetória desenvolvida pelas Ciências Humanas no ·seu
trabalho de pesquisa, o recurso básico e inicial é a descrição.
Os cientistas naturais trabalham com descrições e, de fato, o fa­
zem. As Ciências exatas como as Matemáticas e, especificamente a
Geometria, não estão interessadas em forma!l reais intuitivas através
dos sentidos, como estão 'os pesquisadores descritivos da natureza.
2 . O geômetra não constrói conceitos morfológicos, isto é, con­
ceitos que se referem à estrutura dos tipos orgânicos, base da intuição
sensorial e que são apreendidos diretamente. Estes conceitos morfo­
lógicos são vagos terminologicamente.
O aspecto vago dos conceitos, as circunstâncias de que eles per­
tencem a esferas móveis de aplicação, não é· um defeito que se lhe
possa atribuir, pois são simplesmente indispensáveis à esfera de co­
nhecimentos a que eles servem ou, como se poderia também dizer,
eles são nessa esfera os únicos conceitos justificáveis. Se fosse do
interesse das Ciências Humanas e da Ciência Natural chegar a uma
expressão conceitua! adequada dos dados corpóreos intuíveis, no seu

49
caráter essencial dado, precisaríamos, de fato, aceitá-los como os en­ conceitua! própria, fundamentada nas Idéias, as Ciências Naturais
contramos, isto é, como eles estão ou são. Eles não são encontrados conceitos que são diretamente apreendidos através dos sentidos, as
de outra forma senão num fluxo e a sua estrutura típica só pode, em Ciências Humanas fundamentam-se no modo de ser do homem, tal
tal caso, ser apreendida naquela intuição essencial que pode ser como se constituiu no pensamento moderno, como fundamento de
imediatamente analisada. todas positividades e, ao mesmo tempo, situado no elemento das
O geômetra mais perfeito, com seu controle prático, não pode coisas empíricas.
auxiliar o pesquisador descritivo da natureza a expressar, precisamente, 2 . Diferentemente das outras Ciências, a Humana não recebeu
em conceitos geométricos exatos, aquilo que é tão simples, compreen­ por herança um domínio já delineado, dimensionado em seu conjunto,
sivo e tão inteiramente adequado e que se expressa em palavras, con­ mas não-desbravado e que elas teriam por tarefa elaborar com con­
ceitos simples, que são essencialmente inexatos e, portanto, não ma­ ceitos enfim científicos e métodos positivos.
temáticos.
Pode-se, portanto, fixar o lugar das Ciências Humanas nas vizi­
Os conceitos geométricos são idéias, no sentido Kantiano mesmo,
nhanças, nas fronteiras imediatas, e em toda a extensão das ciências
isto é, objetos de apreensão puramente racional, em oposição à per­
que tratam da vida do homem, do trabalho e da linguagem (Fou­
cepção. A idéia para Kant é um objeto que é concebido, pela razão, e
que não pode ser dado através da experiência sensorial. B um objeto cault) . *
.

desconhecido cuja existência é teoricamente problemática . Digamos, 3 Todavia, pode-se dizer que só haverá Ciência Humana se nos
.

um conceito transcendente, mas não empírico da razão - um noume­ dirigirmos a maneira como os indivíduos ou os grupos representam
non (coisa percebida, particípio passado de noein, ou seja, do verbo, palavras para si mesmos utilizando suas formas de significados, com­
perceber) . põem discursos reais, revelam e ocultam neles o que estão pensando
As idéias como conceitos para os geômetras expressam algo que ou dizendo, talvez desconhecido para eles mesmos, mais ou menos
não pode ser visto. Sua origem e, portanto, seu conteúdo são essen­ o que desejam mas, de qualquer forma, deixam um conjunto de
cialmente diferentes dos conceitos descritivos, isto é, daqueles con­ traços verbais daqueles pensamentos que devem ser decifrados e res­
ceitos que caracterizam ou classificam e que expressam a natureza tituídos, tanto quanto possível, na sua vivacidade representativa.
essencial das coisas que são resultantes, tiradas diretamente de uma 4 . Os conceitos, portanto, sobre os quais as Ciências Humanas se
intuição simples. fundamentam, num plano de pesquisa qualitativa, são produzidos
Se os conceitos exatos têm seus correlatos nos essenciais, que pelas descrições. Não se e.stá colocando aqui a linguagem como objeto
têm o seu caráter de Idéias, no sentido Kantiano, os conceitos des­ das Ciências Humanas, mas estamos tentando focalizar o que surge
critivos, que dependem de um intermediário sensorial e perceptual, a partir do interior da linguagem na qual o homem está mergulhado,
opondo-se à proposta Kantiana, permanecem como conceitos morfo• na maneira pela qual representa para si mesmo, falando o sentido das
lógicos, como correlatos de conceitos descritivos. São conceitos mor­ palavras ou das proposições e, finalmente, obtendo uma representação
fológicos porque dão uma estrutura, uma forma à pesquisa que se da própria linguagem.
realiza num determinado campo das Ciências Naturai;, ou das Ciências
As Ciências Humanas não são, portanto, uma análise daquilo
Humanas.
que o homem é na sua natureza, mas, antes, porém, uma análise que
A descrição na análise qualitativa
se estende daquilo que o homem é, na sua positividade (vivendo,
falando, trabalhando, envelhecendo e morrendo) , para aquilo que
1 . A questão da descrição na análise qualitativa é, em Ciências * Foucault, M. As Palavras e as Coisas (A Ordem daLCoisas) . Uma Ar­
Humanas, ainda mais complexa que nas Ciências Naturais. Portanto, queologia das Ciências Humanas. New York: in series: World of Man, Random
.
em níveis de análise, teríamos as Ciências Exatas com sua estrutura House, 1970. Edição brasileira: São Paulo, Martins Fontes, 1 987.

50 51
habilita este mesmo homem a conhecer (ou buscar conhecer) o que 2 .31 na primeira parte do seu relato o pesquisador "descre-
a vida é, em que consiste a essência do trabalho e das leis, e de que
-

ve" o aparelho
·

forma ele se habilita ou se torna capaz de falar.


2 . 32 - a primeira parte do relato do pesquisador "descreve"
A descrição propriamente dita o aparelho
2 . 33 a primeira parte do relato do pesquisador é uma
A descrição constitui, portanto, importância significativa no de­
-

"descrição"
senvolvimento da pesquisa qualitativa. Por isso, vamos iniciar,
dedicando algum tempo, a análise da descrição que será feita através 2 . 34 - a primeira parte do relato do pesquisador é descritiva.
de cinco momentos:
Note-se, porém, que ao fazer-se tais afirmações ou ao construir-se
1 . condições que devem ser satisfeitas para poder-se usar o verbo tais proposições não se está atribuindo nenhuma ação ao pesquisador.
"descrever" adequadamente; Está-se fazendo referências a um texto e, aí, é possível iniciar uma
distorção do termo "descrever" .
2 . atividades a que o termo "descrever" refere-se;
3 . o termo "descrição" e como ele se aplica aos usos das sen­ Audiência
tenças;
3.1 descrever algo envolve uma ação que é dirigida a alguém.
as divergências entre os usos comuns dos termos " descrever",
-

4. Descrever uma montanha, por exemplo, fazer isso é antever o tempo


"descrição'', "descritivo" o uso técnico dos termos; quando as sentenças compostas ou ensaiadas, ou anotadas, serão pos­
5 . o sentido do falso e do verdadeiro na descrição. sivelmente publicadas ou proferidas para um público. O momento em
que isto se dá não é, ainda, uma descrição, mas apenas um monólogo
Condições que devem ser satisfeitas para o uso do verbo "des­ que o sujeito faz consigo mesmo sobre a montanha, ou sobre aquilo
crever" : que está observando.
·

1 . 1 . As descrições podem ser emotivas, tanto quanto se deseje Mesmo que uma publicação seja possível e de fato feita a res­
que elas sejam, mas nunca serão certas ou erradas. Este critério de peito da montanha, ela será um monólogo que parece assumir a
certo e de errado não se aplica às descrições. forma de uma descrição da montanha, mas que não é uma descrição.
Se parece haver algo contrário ao senso comum, ou mesmo pró­ 3.2 - as palavras ·que X emitiu para ·si mesmo podem ser as
ximo ao absurdo na proposição 2 . 1 , isto só nos mostra como os termos mesmas palavras que ele mais tarde tentará usar para descrever a
"descrever", "descrição", "descritivo" têm sido definidos. montanha para Y; o significado das palavras pode ser o mesmo;
entretanto, quando ele emitiu tais palavras para si mesmo não estava
Nesta primeira parte, vamos considerar de forma sucinta al­ descrevendo a montanh;;i. Descrever a montanha para alguém é uma
gumas condições que precisam ser satisfeitas para se poder fazer uso coisa, envolve alguém que está diante do objeto descrito, que a conhece
adequado do verbo "descrever". A razão para concentrarmos nossos e que a apresenta a outra pessoa que não a conhece. Não é possível
esforços no verbo "descrever", mais do que no substantivo "descri­ descrever algo para alguém que conhece essa mesma coisa e, algumas
ção" ou no adjetivo ou no advérbio "descritivo" ou "descritivamente", vezes, até melhor do que o próprio sujeito que a descreve.
deverá tornar-se clara à medida que prosseguirmos na discussão.
3.3 - quando pedimos ao nosso aluno que descreva, por exem­
Pode-se dizer, porém, de início, que estas diferentes partes do plo, uma determinada técnica, ou recurso metodológico em Ciências
discurso são geralmente usadas de maneira equivalente, algumas vezes, Naturais, para o professor de Ciências daquele aluno, não se tem uma
nos relatos de pesquisa. Vemos algumas vezes que: descrição, tem-se um possível relato da experiência do aluno, daquilo
52 53
-

que ele aprendeu ou viu. A descrição nesse caso está sendo dirigida Se X descrevesse Y para Z, como se estivesse falando de um
para alguém que conhece melhor, ou que sabe mais, ou que conhece personagem numa novela, seria uma coisa, mas se ele quisesse des­
melhor a técnica solicitada. crever Y como sendo seu amigo real, talvez seu melhor amigo então
Portanto, o primeiro característico da descrição é que haja al­ Z sentiria ou diria que a descrição diverge, que X não está falando
guém, um outro sujeito a quem a descrição seja dirigida e que "não superficialmente de um personagem.
conhece" o assunto ou o objeto descrito. Se X esvaziar seu cofre na firma onde trabalha, amarrar-se a uma
·cadeira e chamar a polícia, a estória que ele conta à polícia sobre hu­
A descrição tem o sentido de "des" "ex-crivere", isto é, algo que manos mascarados que roubaram a firma não pode ser chamada de
é escrito para fora. uma descrição de roubo, pois não houve tal coisa. Tudo o que ele
4. Tópico ou Assunto disser é imaginação.
Se desejarmos usar o verbo "descrever" para designar o que X 4.2 - característicos apenas não são comumente, suficientes
diz para Y, é preciso perguntar "o que" X descreve, qual é o tópico ar
p � satisfazer os �ritérios da descrição. A menos que X tenha já
ou assunto para sua descrição. X descreve algo para Y, portanto, há md1cado o que esta sendo descrito, as palavras de X devem, entre
um objeto presente no uso do termo "descrição" e um certo número outras coisas, produzir o seguinte:
de pontos surge sobre a natureza deste objeto. Ao relatar à polícia a perda de um animal, ele poderia dizer que
4. 1 não é tudo e nem qualquer coisa que pode ser descrita perdeu um gato de seis semanas com peito branco, com algumas
marcas indicadoras como, por exemplo, a ponta do rabo está torta,
-

ou que constitua tópico para descrição. Podemos descrever pessoas e


coisas, acontecimentos e acidentes, processos e técnicas. Mas um folo resultad � de �?1ª quebra �o osso. Pode continuar com minúcias que
que seja do domínio apenas do pensamento ou da imaginação dificil­ possam identificar e localizar o gato.
mente pode constituir objeto de descrição, pode sim ser relatado, Se ele, ao contrário, disser:
posto em proposições ou sentenças sem, todavia, constituir uma des­
Perdi um animal que anda nas quatro patas de manhã, duas ao
crição. Há uma diferença entre "descrição" de objetos, acontecimentos meio-dia e em três à noite, isto será uma charada e deve ser advi­
ou situações vividas, que se realizam no plano do real, e um conjunto nhado.
de proposições que constituem apenas um relato imaginário.
Aquilo que é descrito deve ser aquela possibilidade que se man­ 5 . Posição relativa do falante e dos ouvintes
tém como tendo um ser, uma entidade. Não se pode dizer, em geral,
com precisão, o que isto significa, porém, um exemplo talvez possa Se X está descrevendo algo para Y, X deve estar numa posição
auxiliar no esclarecimento : ?1e �hor do que Y para poder descrever. X, ao descrever algo para y
md1c� qu� X �stá numa posição diferente de Y em relação ao objeto
Se uma emissão, ou conjunto de emissões tem como finalidade descnto, isto e, ele deve conhecer algo que Y não conhece.
descrever um certo objeto como uma casa, uma cadeira, uma roupa,
5 . 1 - um comentarista de rádio descreve uma partida de fu­
ou mesmo a aprendizagem que ocorreu para o sujeito, então esse
tebol para uma audiência que não vê o jogo; nesse caso ele está
objeto precisa de fato existir ao tempo em que está sendo descrito.
?escrevendo. Um comentarista de televisão GiJ.Ue acompanha o jogo,
No caso de personagens de uma novela, um conto ou mitologia, Junto com os telespectadores, não está descrevendo, apenas está co­
as figuras devem aparecer como existindo, estando realmente presentes mentando o jogo. Entretanto, as palavras usadas por ambos os comen­
à época da descrição, na novela, conto ou situação mitológica. Se taristas podem até ser as mesmàs.
Úm certo processo, método ou técnica estão sendo descritos, então 5.2 - X pode descrever a montanha Saint Victoire para Y
devem, de fato, existir. desde que Y não tenha visto a montanha. Mas se ambos estiverem

54 55
7 . O sucesso de umà descrição
diante da montanha pode-se dizer que X descreve a montanha para
Y somente se Y for cego ou incapaz de ver por si mesmo.
A fim de se descrever alguma coisa, precisamos comumente men­
5 . 3 - a mesma coisa acontece com nossos exames nas escolas cionar um número de atributos dessa coisa. Uma pincelada numa tela
quando dizemos aos nossos alunos "Descreva a técnica de . . . " quando não pode produzir um quadro ou uma pintura. Gramaticalmente, uma
o professor conhece muito melhor do que o aluno a técnica e suas descrição é normalmente uma atividade complexa. Conseqüentemente,
particularidades. O que o aluno pode fazer é simplesmente um co­ pode-se perguntar se as proposições sistemáticas que compõem uma
mentário sobre a técnica e o seu uso. descrição são verdadeiras ou falsas, mas nunca perguntaríamos se uma
descrição, no seu todo, é falsa ou verdadeira. As questões que podem
6. Funções surgir ao se obter descrições são:
7 . 1 - há suficiente informação oferecida? A descrição está tão
Diríamos que X descreve algo para Y somente se o propósito
de X for uma espécie de pintura. completa quanto possível? Ela é precisa? Foi selecionada de forma
adequada e adequadamente apresentada? f: equilibrada?
6 . 1 - o propósito de uma descrição, assim como de uma pin­
tura, é, em muitos casos, o de agir como um auxiliar para o reconhe­ 7 . 2 - algumas vezes, alguns pesquisadores insistem em facilitar
cimento. Assim, a queixa dada à polícia sobre um animal que sumiu a obtenção dos dados e, nesse caso, desejam melhorar a descrição,
consistirá de uma descrição detalhada-do animal, como acontece, tam­ voltando aos sujeitos pedindo-lhes mais informações, alguns compo­
bém, com os criminosos, uma fotografia pregada nos lugares mais nentes. Nesse caso o pesquisador está criando novas condições, con­
óbvios. A descrição será tão melhor quanto mais facilite ao leitor tingentes.
reconhecer o objeto perdido ou buscado. 7 . 3 - no que se refere à descrição em si, porém, não há lugar
6 . 2 - o mérito principal de uma descrição não é sempre a para uma distinção branco-preto dizendo-se que ela é verdadeira ou
sua exatidão ou seus pormenores, mas a capacidade que ela possa falsa. Descrição, descrever implicam sempre um sucesso. Quando X
ter de criar uma reprodução tão clara quanto possível para o leitor da descreve algo para Y isto implica dizer-se que sua emissão satisfaz
descrição. Poderá haver tantas descrições de uma mesma coisa quantas as condições para uma descrição, isto é, que ela é suficientemente am­
sejam as pessoas especialistas que vejam essa mesma coisa. pla, justa, precisa e equilibrada. Se sentirmos que este não seja o caso,
o máximo que poderemos dizer é que X não descreveu a coisa - que
6 . 3 - dizer o que uma coisa é não significa descrevê-la, assim o que ele disse é uma interpretação má, nunca que está errada, falsa
como dizer onde a coisa está também não é, dizer qual é o caminho
entre Campinas e São Paulo não é descrever tal caminho. ou que não seja verdadeira.
Descrever algo é poder dizer como uma certa coisa pode ser 7 .4 - há um caso em que usamos a frase "uma verdadeira
diferenciada de outra, ou ser reconhecida entre outras coisas. descrição". Quando fazendo uma afirmação ou proposição formal
precisamos assinar a declaração para validar os fatos apresentados,
X convida Y para ver seu animal de estimação - (uma zebra) . dizendo que eles constituem uma descrição completa do aconteci­
"Onde está ele?, pergunta Y". Você o encontrará na cocheira diz X.
mento. Mas este é um uso declaratório da palavra - ao assinar, o
Dada tal informação, Y está habilitado a encontrar a zebra de autor certifica a descrição e, portanto, compromete-se de várias formas
X, a menos que ele encontre várias zebras ali; nesse caso, quando com ela, como, por exemplo, submete-se à pl.mição se a informação
encontra várias zebras não será capaz de identificar aquela que per­ não for correta.
tence a X, Y necessitaria de melhores esclarecimentos.
Não há lugar para o verdadeiro em oposição ao falso. Escrever
Dizer a alguém o que aconteceu é uma coisa, descrever o acon­ uma descrição de algo e assinar embaixo declarande- que a descrição
tecimento é outra coisa. Uma bomba caiu numa casa diz o que acon­
acima é falsa seria uma forma estúpida.
teceu. Descrever o evento seria por exemplo -
57
56
-

7 .5 - quando se obtêm descrições, no caso da pesquisa qua­


litativa, pode-se perguntar aos sujeitos : Você completou sua descrição?
Esta é uma descrição tão completa quanto você desejaria que fosse?
Isto não quer dizer: Você terminou de dizer tudo o que queria dizer?
mas Você incluiu toda a informação relevante que você conhece ou
sabe? 5
8 . Síntese desta primeira parte
ENFOQUE FENOMENOLÓGICO DE
8. 1 - No que se refere à pesquisa qualitativa pode-se _dizer PESQUISA EM EDUCAÇÃO
que os dados são coletados através da descrição feita pelos sujeitos nos
moldes como foi a descrição apresentada até aqui.
Elcie E Salzano Masini
8.2 - Na análise qualitativa a descrição não se fundamenta FEUSP
em idealizações, imaginações, desejos e nem é um trabalho que se
realiza na subestrutura dos objetos descritos.
8.3 - Na pesquisa qualitativa descreve-se e determina-se com
precisão conceitua 1_ rigorosa a essência genérica da percepção ou das
espécies subordinadas, como a percepção da coisalidade etc. Mas a ge­
neralidade mais elevada está na experiência em geral, no pensamento
em geral, e isto torna possível uma descrição compreensível da natu­
reza da coisa.
8.4 - Na pesquisa qualitativa, uma questão metodológica im­
portante é a que se refere ao fato de que não se pode insistir em
procedimento sistemáticos que . possam ser previstos, em passos ou
sucessões como uma escada em direção à generalização.
8.5 - Pode-se já visualizar que uma teorização dedutiva está
excluída das análises qualitativas.

58
Introdução

Este enfoque de Pesquisa caracteriza-se pela ênfase ao "mundo


da vida cotidiana'', pelo retorno àquilo que ficou esquecido, encoberto
pela familiaridade (pelos usos, hábitos e linguagem do senso comum) .
Remonta àquilo que está estabelecido como critério de certeza
e pergunta sobre seus fundamentos. Por exemplo, como educadores
afirmamos que o aluno aprende porque é rácional. Essa afirmativa
funda-se no critério de certeza de que "o homem é um animal ra­
cional" - critério ao qual aderimos na convivência do estabelecido.
Como educadores agimos com nosso aluno a partir dessa concepção
de ser racional, ensinando-o a desenvolver as regras do bem pensar
(do pensar matemático - do pensar lógico) . Esperamos com isso
que adquira um conhecimento correto, considerado conhecimento
verdadeiro.
Husserl, fundador da Fenomenologia Moderna, retoma o conceito
de homem animal racional (sintetizado no "Cogito, ergo sum" de
Descartes) e mostra que nele o ser humano tem sua identidade asse­
gurada por ser racional, ao invés de a racionalidade ser vista como
um modo de ser do humano. O Cogito husserliano não é mais o.. de

61
Heidegger quis reeducar nossos olhos e reorientar nosso olhar . .
um conhecimento científico, matemático, fundado numa conc1:pção de
um ser que pensa e de algo que é pensado - o que supõe a crença Rompeu com os debates do método e da Teoria do conhecimento que
de que esse ser pensante pode separar-se de tudo que o rodeia como estudava o Sujeito que conhece o Objeto. Compreender deixa de
observador imparcial. O Cogito de Husserl é uma volta ao mundo da ser visto como um modo de conhecer, para ser visto como um modo
vida, no confronto com o mundo de valores, crenças, ações con­ de ser - o .ser que existe como modo de compreender (não há sepa­
juntas, pelo qual o ser humano se reconhece como aquele que pensa ração Sujeito-Objeto) .
a partir desse fundo anônimo que aí está e aí se visualiza como O método fenomeno]ógico trata de desentranhar o fenômeno, pô­
protagonista, nesse mundo da vida. Amplia-se assim o conceito de descoberto. Desvendar o fenômeno além a aparência. Exatamente
lo a
verdade - não mais de verdade objetivada advinda da concepção porque os fenômenos não estão evidentes d� imediato e com regula­
do ser racional. ridade faz-se necessário a Fenomenologia.
Se como pesquisadores visualizamos o aluno como ser racional,
O método fenomenológico não se limita a uma descrição1 pas­
trabalhamos com um modelo abstrato, investigando sua maneira de
pensar e os fatores que nela influem como inteligência, rapidez, atenção siva . � simultaneamente tarefa de interpretação2 (tarefa da Hermenêu­
tica) que consiste em pôr a descoberto os sentidos menos aparentes,
etc. Assim deixamos de ver o aluno na sua totalidade do seu pensar,
os que o fenômeno tem de mais fundamental.
sentir e agir na vida cotidiana.
Na pesquisa (como em qualquer outr� situação) a apropriação
A pesquisa fenomenológica propõe um retorno a essa totalidade
do conhecimento dá-se através do círculo hermenêutico: compreensão­
no mundo vivido. Para isso propõe um caminho próprio - o método
interpretação-nova �reensão :
fenomenológico.
A Pesquisa Fenomenológica, portanto, parte da compreensão de
Método fenomenológico nosso viver - não de definições ou conceitos - da compreensão
que orienta a atenção para aquilo que se vai investigar. Ao perce­
Alguns autores dizem que fazer fenomenologia não é utilizar um bermos novas características do fenômeno, ou ao encontrarmos no
método previamente considerado, mas cingir-se a regras formais diri­ outro interpretações, ou compreensões diferentes, surge para nós uma
gidas especialmente ao fenômeno (fenômeno entendido como aquilo nova interpretação que levará a outra compreensão.
que se mostra como é, ou que se mostra a si mesmo) . Não existe
"o" ou "um" método fenomenológico, mas uma atitude. Qual essa Toda hermenêutica é explícita ou implicit9mente compreensão de
atitude? si mesmo mediante a comprensão do outro. Ricoeur afirma que para
compreender-se a si mesmo o ser humano necessita refletir. Porque:
� a atitude de abertura do ser humano para compreender o que
se mostra (abertura no sentido de �star livre para percebei: o que se 1 . Descrição é considerada em Fenomenologia um caminho de aproxima­
mostr� e não preso a conceitos ou predefinições) . Estamü's livres ção do que se dá, da maneira que se dá e tal como se dá. Refere-se ao que é
quando sabemos de nossos valores, conceitos e preconceitos e podemos percebido do que se mostra (ou do fenômeno) . Não se limita à enumeração
dos fenômenos como o positivismo, mas pressupõe alcançar a essência do fenô­
ver o que se mostra cuidando das possíveis distorções. meno.
Essa atitude é apresentada por Heidegger ao referir-se ao método 2. Interpretação - "trabalho do pensamento que consiste em decifrar o
sentido aparente, em desdobrar os sinais de significação implicados na signifi­
fenomenológico de investigação (método tomado do grego meta-odas - cação literal . . . há interpretação onde houver sentido múltiplo e é na inter­
meta significando após, além, e odas significando caminho - poderia pretação que a pluralidade de sentidos torna-se manifesta".
ser traduzido para além do caminho, ou continuar o caminho) . A ati­ Interpretação e símbolo são aqui definidos no sentido que o faz Ricoeur
tude fenomenológica para Heidegger é pois de retomar um caminho em Conflito das Interpretações - ensaios de hermenêuticã, Rio de Janeiro,
que nos conduza a ver nosso existir simplesmente como ele se mostra. Editora Imago, 1978.

62 63

-
,..

1 . E através da reflexão que se dá a apropriação do nosso ato 2) Reflexão7 - Esta fase constitui um recuo qa pesquisadora
de existir, através de uma crítica aplicada às obras e atos - uma para enfocar a vivência aconselhadora/ aconselhando sob um outro
interpretação dos símbolos3 dessas obras e atos. ângulo. A análise fenomenológica dos relatos das aconselhadoras, feito
2 . A consciência inicialmente é falsa consciência4 e é necessário pela pesquisadora e colaboradores (psicólogos e filósofos) , buscou os
elevar-se através de uma crítica corretiva (caminhos da má compreen­ significados manifestos nessa situação, sem utilizar qualquer quadro
são para compreensão) - desvendando os símbolos do agir/ pensar/ categorial como referência. A preocupação "compreender o aluno como
sentir de cada um de nós. ele é'', que deu origem à Pesquisa, orientou também a análise.
Vamos retomar alguns pontos de uma Pesquisa que realizamos De cada relato foi feita uma descrição e uma interpretação em
para ilustrar como essa atitude fenomenológica se desenvolve. 2 momentos :
Pesquisa Fenomenológica em Psicologia Educacional - A inves­ No primeiro buscou-se o que propicia abertura de possibilidades
tigação parte de uma pergunta orientadora. No caso desta Pesquisa ao aluno; no segundo buscou-se o que limita o aluno.
de aconselhamento ao aluno difícil a pergunta foi: "Como compre­ Este segundo momento de interpretação surgiu no decorrer da
ender o aluno - o que propicia a ele abertura de h9rizonte5 e reen­ análise, que mostrou ser insuficiente o primeiro momento de Inter­
contro das próprias possibilidades?''6 pretação, ocorrendo em detrimento de uma compreensão mais global
A Pesquisa desenvolveu-se em 3 etapas : 1 ) de discussão e ação; do aluno. Assim, a própria análise das possibilidades evidenciou os
2) de reflexão; 3) de ação. limites da pergunta orientadora da Análise.
O que constituiu o discurso analisado foram todas as dimensões
1 ) Discussão e ação - Constitui-se do atendimento do "aluno
cotidianas do Aconselhando, percebidas pela Aconselhadora na sua
difícil" e de grupos de discussão das aconselhadoras e da pesquisadora
vivência junto a ele.
sobre as situações vividas pela aconselhadora junto ao aluno difícil.
3) Ação - Esta etapa constitui-se numa Proposta de Aconse­
Cada aconselhadora fez um relato por escrito desse aconselha­ lhamento, ou numa nova compreensão da situação de Aconselhamento,
mento (que durou 2 semestres) atenta à descrição e interpretação. surgida das etapas anteriores. Embora apresentada como proposta,
novamente ela se apresenta como pergunta - deixa no seu interior
3 . Símbolo - "estrutura de significação em que um sentido direto, primá­
rio, literal, designa por acréscimo outro indireto, secundário figurado que não e nos seus interstícios espaços e brechas para ser questionada e a
pode ser entendido senão através do primeiro".
·
partir dela provocar novas questões.
4 . Falsa consciência entendida como ilusão ou distorção de percepção.
Pode-se citar como exemplos a ideologia e a racionalização.
Essas 3 etapas podem ser vistas compondo um círculo herme­
Ideologia entendida como lógica da ocultação e dissimulação que se baseia nêutico sob�e o tema da Pesquisa. Parte-se de uma compreensão que
na idéia de uma Sociedade e não no que acontece nessa Sociedade. As pessoas orienta a atenção para aquilo que se vai investigar. A l .ª etapa reú­
pensam, sentem, agem guiados por essa ilusão da Sociedade, sem estar atentas ne dados do vivido, fixado em sucessivos registros num Relato que
ao que acontece. A consciência fica na aparência e forja explicações a partir leva a uma compreensão da situação. A 2 .ª etapa (análise) constitui
das idéias da Sociedade. uma interpretação desse Relato do vivido, que poderá ser retomado
Racio11alização mecanismo de defesa do ego, a que se refere a Psicanálise,
que consiste no uso que o ser humano faz da razão, para justificar atos que para novas Interpretações. A 3 .ª etapa constitui uma nova compreensão
desviam ou fecham suas possibilidades de convívio com o outro e com o mundo do Aconselhamento ao aluno difícil, que se co11cretiza numa Proposta,
a seu redor. apresentada como pergunta. Neste sentido traz um caráter heidegge­
5 . Horizonte - o mundo de significados do aluno. Significado definido riano. "Toda resposta só guarda sua força de resposta enquanto per­
como aquilo que ele organiza a partir de sua maneira própria de pensar, sentir manecer enraizada no questionamento" (Heidegger, L'origine de
e agir. l'Oeuvre d'art, Chemins, p. 56) .
6 . Possibilidades - as diferentes maneiras de ser do aluno, manifestas
em seu pensar, sentir e agir.
7. Reflexão é um esforço para apreender o sentido ou essência do vivido.
64 65
Considerações Finais FORGHIERI, Y.C. (org.) Fenomenologia e Psicologia. São Paulo, Cortez Edi­
tora, 1984.
O enfoque fenomenológico de pesquisa é uma abordagem que HEIDE GGER, M. Being und Time. New York, Harper and Row Publisher,
busca, não destruir os resultados das abordagens empiricistas, mas sim 1 9 62.
chamar atenção para as suas limitações e lacunas. O ponto nevrálgico -----· Sobre a essência da verdade. São Paulo, Livraria Duas Cidades,
apontado como limitação é o da suposta neutralidade e objetividade 1970.
do Pesquisador. Evidencia que a Pesquisa positivista, referindo-se ao MARTINS, J./BICUDO, M.V. Existencialismo, Fenomeno/Ogia e Educação. São
Pesquisador como o ser que pensa objetivamente o objeto pensado, Paulo, Ed. Moraes, 1983.
-----. /Dichtchekenian, M.F.F. (org.) . Temas de Fenomenologia. São
lida com uma abstração e perde de vista o ser humano em sua tota­
Paulo, Ed. Moraes, 1984.
lidade no mundo com os outros - não leva em conta as crenças,
os valores, a linguagem do Pesquisador que estão presentes em seus MASINI, E.F.S. Aconselhamento Escolar - uma proposta alternativa. São
Paulo, Ed. Loyola, 1 984.
atos e pensamentos. Dessa forma, portanto, a Pesquisa positivista lida
com conceituações não rigomsas. MERLEAU-PONTY, M. Ciências do Homem e Fenomenologia. São Paulo,
Edição Saraiva, 1973.
·O enfoque fenomenológico furta-se à validação do já conceituado RICOEUR, P. Interpretação e ideologia. Rio de Janeiro, Editora Francisco Al­
(do já pensado) sem prévia reflexão e volta-se para o não pensado ves, 19í7 .
(seu subsídio) . Propõe uma reflexão exaustiva, sempre e contínua SMART, B. Sociologia, Fenomenologia e Análise Marxista. Rio de Janeiro, Zahar
sobre a importância, va.lidade e finalidade dos processos adotados. Editores, 1978.
As pesquisas de enfoque fenomenológico constituem-se pois como
etapas de compreensão e interpretação do fenômeno - que podet"á ser
retomado e visto sob nova interpretação.
Isso diz respdto ao inacabamento da fenomenologia - recomeçar
incessante de um enfoque que recusa cristalizações em sistemas aca ·

bados e fechados. Esta característica da Pesquisa Fenomenológica -


de apresentar-se como exploratória - como interpretação aberta á
outras interpretações - tem sido criticada por pesquisadores empi­
ristas, considerando essa Pesquisa como trabalho não concluído, ou
ainda por se completar. Do ponto de vista dos fenomenólogos, o
inacabamento não constitui sinal de fracasso ou indefinição mas sim
uma maneira da fenomenologia mostrar-se em sua verdadeira tarefa
e fertilidade.
Nessa ação sem fechamentos ou sistemas acabados o Pesquisador
mostra sua maneira de estar no mundo interrogando-o. "O mundo
não é aquilo que eu penso, mas aquilo que vivo, sou aberto ao mundo,
me comunico indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é
inesgotável" (Merleau Ponty) .

Referências bibliográficas
BOSS, M. "Encontro com Boss" em Daseinsanalyse, l, 1976. (Publicação da
Associação Brasileira de Análise e Terapia Existencial - ABATE.)
CIRIGLIANO, G.D.F. Fenomenologia da Educação. Petrópolis, Editora Vozes,
1 976.

66 67
6

O ENFOQUE DA DIALÉTICA
·MATERIALISTA HISTÓRICA
NA PESQUISA EDUCACIONAL*
Gaudêncio Frigotto
UFF-IESAEIFGV

* Texto apresentado ao Encontro Regional de .Pesquisa Sudeste, no Sim­

pósio sobre Diferentes Enfoques Teóricos na Pesquisa Educacional Brasileira,


Vitória, 1 1-9-1987.
Foi-me solicitado redigir um pequeno texto cujo objetivo básico
é suscitar o debate sobre o enfoque dado pela dialética.
Mas a que dialética vou referir-me?
A concepção de Zenon de Eléa (490-430 a.C.) ou de Sócrates
(469-399 a.C.), considerados fundadores da dialética entendida como
"arte do diálogo", ou a "arte de, no diálogp, demonstrar uma tese
por meio de uma argumentação capaz de definir e distinguir clara­
mente os conceitos envolvidos na discussão"? (Konder, 1 986) .
À dialética de Heráclito de :Éfeso (540 a.C.), cuja acepção incor­
pora o seu sentido moderno, ou seja, "o modo de compreendermos
a realidade como essencialmente contraditória e em permanente trans­
formação"? (Konder, 1986) .
À dialética de Hegel, de Feuerbach, ou â dialética de Marx?
Propor-se falar da dialética como método de investigação é, ao
mesmo tempo, abordar um tema candente e relevante política, ideo­
lógica e teoricamente, e, contraditoriamente, expor-Sê a um conju.nto
de riscos dos quais o fundamental é o da banalização ou simplificação.

71
Em recente publicação sobre trabalho e conhecimento, assinalo impossível pensar Marx e sua obra sem a imensa contribuição de
algumas dimensões relativas à simplificação tanto do entendimento Hegel, do qual é discípulo e, posteriormente, severo · crítico, ou mais
como da aplicação, no campo da investigação educacional, da dialética amplamente, da filosofia alemã, da economia política clássica inglesa
materialista histórica: e do pensamento socialista francês.

"Se é verdade, de modo geral, que as décadas de 70 e 80 sinalizam um


Finalmente, como advertência prévia em relação ao que me re­
avanço claro na construção teórica que permitiu uma crítica às !:;ases do firo , é importante enfatizar que a dialética, para ser materialista e
pensamento humanista tradicional e moderno, ao positivismo, ao funcio­ histórica, não pode constituir-se numa "doutrina" ou numa espécie
nalismo e às visões estruturais-reprodutivistas da educação, talvez não de suma teológica. Não se pode constituir numa_ camisa-de-força fun­
seja menos verdade que esta construção, que se funda numa perspectiva dada sob categorias gerais não-historicizadas. Para ser materialista e
do materialismo histórico, é de domínio (relativo) de um reduzido núme­ histórica tem de dar conta da totalidade, do específico, do singular e
ro de intelectuais da área. A crise de aprofundamento teórico se mani­
festa, num nível mais imediato, pela homogeneização superficial do dis­
do particular. Isto implica dizer que as categorias totalidade, contra­
curso crítico, mas cuja prática reflete a interiorização das concepções e dição, mediação, alienação não são apriorísticas, mas construídas
categorias do humanismo, do positivismo e do funcionalismo" (Frigotto, historicamente.
1987 ) .
B) Onde quero chegar?
Para maior clareza, é preciso, então, delimitar de imediato de
onde parto, ou seja, de que dialética vou falar e onde quero chegar. Como subsídio para o debate, no tempo limitado de exposição,
.
quero demarcar pnmeiramente a dialética materialista histórica en­
A) De onde parto quanto uma postura, ou concepção de mundo; enquanto um método
que permite uma apreensão radical (que vai à raiz) da realidade e
Não vou falar da dialética em geral, nem da dialética pré-socrá­ enquanto práxis, isto é, unidade de teoria e prática na busca da trans�
tica, e nem mesmo vou ater-me à imensa e importante contribuição formação e de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano
de Hegel e Feuerbach. Vou prender-me tão-só à dialética materialista da realidade histórica.
histórica, ou, mais precisamente, ao materialismo histórico.
Num segundo momento, trabalhar a idéia do "monismo materia­
Ao referir-me somente à dialética materialista histórica, quero lista" em contraposição à concepção do pluralismo e ecletismo meto­
demarcar aquilo que entendo como a ruptura entre a ciência da hi; dológicos, uma espécie de "sopa metodológiéa" (Lefebvre) .
tória ou do humano-social e as análises metafísicas de diferentes
matizes e níveis de compreensão do real - que vão do etl}E_ir1CISillci Por fim, vou ater-me a uma sinalização de como na prática de
ao positivismo, idealismo, materialismo vulgar e estruturalis.!!1º · - u �a ?esquisa �ue d�senvolvemos se tenta incorporar a perspectiva
,
dialetica. Neste item mteressa-me sobretudo mostrar que não há razões
Essa delimitação não autoriza, porém, que se coloquem numa �e �essárias para se ritualizar a pesquisa em etapas estanques, ou mis­
mesma "bruaca" os diferentes enfoques acima aludidos, e nem mesmo tificar o formalismo dos projetos.
que tais abordagens não dêem conta de um certo nível de compre­
ensão da realidade. As visões pseudoconcretas, metafísicas, ou empi­ Não vou fazer, nesta exposição, a não ser. sob a forma de alusões
ricistas da realidade são determinadas leituras desta realidade. � pre­ bastante rápidas, um inventário de como a perspectiva da dialética
ciso frisar, porém, que os métodos que se fundam nesta perspectiva materialista histórica se efetiva atualmente no campo educacional. Esta
não são epistemologicamente radicais. Não atingem as leis funda­ discussão, relativa aos últimos 20 anos, é efetivada, em boa medida,
mentais da organização, desenvolvimento e transformação dos fatos por Nízia H. Nagel no trabalho de doutoramento Quando o conteúdo
e problemas histórico-sociais. Não se pode também ignorar que é vai além da frase ( 1 986).

72 73
1. A dialética materialista histórica: uma postura,
· dologia que reduz o objeto de estudo a unidades, .individualidades,
um método e uma práxis fatores ou variáveis isolaúas, autônomos e mensuráveis.
"Uma tal concepção de mundo faz ver todos os fenômenos, formas, cate­
Para efeito de compreensão. e de organização didática, e como gorias como eternamente isolados uns dos outros, como eternamente imutá­
recurso de exposição formal, disting�em-se aqui dimensões de uma veis" (Mao Tse-Tung, 1979 ) .
mesma unidade: o materialismo histórico enquanto postura, enquanto
método e enquanto práxis. A segunda perspectiva - materialista histórica - funda-se na
concepção de que o pensamento, as idéias são "o reflexo"1, no plano
A dialética materialista histórica enquanto postura ou concepção da organização nervosa superior, das realidades e leis dos processos
1 que se passam no mundo exterior, os quais não dependem do pen­
Uma análise da história do pensamento humano vai nos indicar 1 samento, têm suas leis específicas, as únicas reais, de modo que só
duas grandes linhas de construção filosófica (Vieira Pinto), "duas �ompete à reflexão racional apoderar-se das determinações existentes
1 entre as próprias coisas e dar-lhes expressão abstrata, universalizada,
concepções acerca do desenvolvimento do mundo" (Mao Tse-Tung) , 1 '
"duas concepções fundamentais ou duas possíveis ou duas dadas pela que corresponde ao que se chamará então de "idéias" e "proposições"
história" (Lenin) , concepções opostas sobre o mundo, a realidade no (Vieira Pinto, 1979).
seu conjunto - uma metafísica e outra dialética materialista.
Tome-se o conceito de reflexo sob sua dimensão genética, socio­
A primeira concepção, que "reúne visões metafísicas de todas lógica ou gnosiológica. Em qualquer destas acepções está implícita a
as matizes", parte de uma compreensão organicista e fisicalista da admissão da existência da realidade objetiva, isto é, uma realidade
realidade social, das idéias e do pensamento. que existe independentemente das idéias e do pensamento. B impor­
tante compreender, porém, que o reflexo não é toda a realidade, mas
"O pensamento constitui um reino original irredutível por essência ao da constitui-se na apreensão subjetiva da realidade objetiva. Ou seja, o
realidade material circundante. Neste caso as idéias têm existência abso­ reflexo implica a subjetividade.
luta, quer pertençam à própria constituição do espírito, isto é, sejam
inatas, quer lhe venham, pelo menos algumas, de fora, mas por um me­ A dialética situa-Se, então, no plano de realidade, no plano his­
canismo que as institui em essências inteligíveis cujas leis imanentes se­ tórico, sob a forma da trama de relações contraditórias, conflitantes,
riam as verdadeiras leis da realidade" (Vieira Pinto, 1 979 ) .
de leis de construção, desenvolvimento e transformação dos fatos.
Essa postura, denominada, pelos autores acima enunci� dos, de O desafio do pensamento - cujo campo próprio de mover-se
metafísica, orienta os métodos de investigação de forma lmear, a­ é o plano abstrato, teórico - é trazer para o plano do conhecimento
histórica, lógica e harmônica. Por esta perspectiva, ainda que com essa dialética do real.
diferenças significativas de complexidade e alcance, incluem-se as
B sobretudo na ldeologia alemã que Marx estrutura a concepção
abordagens empiricistas, positivistas, idealistas, ecléticas e estrutura­
listas. Cada uma, a seu modo, estabelece representações sobre a reali­ básica do materialismo histórico e de sua dialética materialista.
dade. Essas representações, como assinalamos acima, não atingem as A concepção materialista funda-se no imperativo do modo humano
leis de organização, desenvolvimento e transformação dos fatos sociais. de produção social da existência.
Esta concepção mais geral da investigação no interior das ciências 1 Ao discutir a questão da relação linguagem e conhecimento, Schaff
.

sociais se apresenta sob o pressuposto de que os fenômenos sociais desenvolve uma discussão, baseada em H. Einstein, sobre a acepção genética,
se regem por leis "do tipo natural" e, enquanto tais, são passíveis de sociológica e gnosiológica de reflexo. Em seu sentido gnosiológico - o que nos
observação neutra e objetiva. A separação de fatos e valores, ideologia importa particularmente - o reflexo designa a "relação cognitiva específica
que se estabelece entre os conteúdos de certos atos psíquicos. e os seus correla­
e ciência, sujeito e objeto não só é possível, mas necessária à obje­ tivos sob a forma de elementos definidos no mundo material" (Schaff, 1964 :
tividade. Esse pressuposto concretiza-se na pesquisa por uma meto- 223 ) .

74 75
"O primeiro pressuposto de toda a história humana é naturalmente a exis­ fenômenos sociais, que nas perspectivas que aqui denomino de meta­
tência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, físicas é tomada como garantia da "cientificidade , da objetividade e
a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação
dada com o resto da natureza. Pode-se distinguir os homens dos animais da neutralidade".
pela consciência, pela religião, ou por tudo o que se queira. Mas eles
próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a , Na perspectiva materialista histórica, o método está vinculado a
produzir seus meios de vida; passo esse que é condicionado por sua orga­ uma concepção de realidade, de mundo e de vida no seu conjunto.
nização corporal" (Marx & Engels, 1986 ) . i A questão da postura, neste sentido, antecede ao método. Este cons­
titui-se numa espécie de mediação no processo de apreender, revelar
Após examinar a s diferentes formas de divisão de trabalho nas e expor a estruturação, o desenvolvimento e transformação dos fenô­
sociedades tribais, antiga e feudal, Marx completa esta concepção, menos sociais.
sinalizando :
Antes, pois, de responder-se à questão fundamental que sinaliza
"O fato, portanto, é o seguinte: indivíduos determinados, que corno pro­ a natureza do processo dialético de conhecimento - como se produz
dutores atuam de modo também determinado, estabelecem entre si relações a realidade social - é necessário responder-se qual a concepção que
sociais e políticas determinadas. É preciso que em cada caso particular a
observação empírica coloque necessariamente em relevo empiricamente e
temos da realidade social. � por isso que, como nos assinala Gramsci,
sem qualquer especulação ou mistificação a conexão entre a estrutura so­ "uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em uma
cial e política e a produção [o grifo é meu]. ( . . . ) A produção de idéias, atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar
de representações da consciência está, de início, diretamente entrelaçada precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural
à atividade material e com o intercâmbio material. ( . . . ) Os homens são existente) . E, portanto, antes de tudo, como crítica do 'senso comum" '
os produtores de suas representações, de suas idéias etc., mas os homens
reais e ativos, tal corno se acham condicionados por um determinado (Gramsci, 1978).
desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele Romper com o modo de pensar dominante ou com a ideologia
corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência
jamais pôde ser outra do que o ser consciente, e o ser dos homens é o dominante é, pois, condição necessária para instaurar-se um método
seu processo de vida real" (Marx & Engels, 1986 ) . dialético de investigação. Aqui reside, a meu ver, uma armadilha,
entre outras, na qual tem-se caído comumente no processo de inves­
Estas duas concepções básicas orientam, como assinalamos ante­ tigação nas ciências sociais, de modo geral, e na área de educação em
riormente, as formas metodológicas conflitantes e antagônicas de especial. Trata-se de não dar a devida importância ao inventário
apreender o real. Enquanto as concepções "metafísicas" se fixam no crítico das diferentes e conflitantes concepções de realidade gestadas
fenômeno, no mundo da aparência ou na aparência exterior dos fe. no mundo cultural mais amplo, nas concepções religiosas, nos diferen­
nômenos, na existência positiva, no movimento visível, na re­ tes sensos comuns, especialmente o da concepção positivista da
presentação, na falsa consciência, na sistematização doutrinária das ciência.2
representações (ideologia) , a concepção materialista histórica, respec­
tivamente, se fixa na essência, no mundo real, no conceito, na cons­ "Pela própria concepção de mundo pertencemos sempre a um determinado
ciência real, na teoria e ciência (Kosik, 1976: 16) . grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que partilham de

Em termos de categorias básicas, a primeira concepção se funda 2 . A crítica da Filosofia do Direito de Hegel, feita por Marx, exemplifica
sob a linearidade, harmonia, fator, a-historicidade, e a segunda, sob o sentido necessário do inventário no processo de conhecimento histórico. Após
as categorias totalidade, contradição, mediação, ideologia, práxis etc. fazer a crítica à "ilusão religiosa", Marx conclui: r'A missão da história con­
siste, pois, já que desapareceu o além da verdade, em descobrir a verdade do
A dialética materialista histórica enquanto um método de análise aquém. Em primeiro lugar, a missão da filosofia, que está a serviço da história,
consiste, uma vez que foi desmascarada a forma sacra da auto-alienação huma­
na, em desmascarar a auto-alienação em suas formas profanas. A crítica do céu
O método de análise, na perspectiva dialética materialista, não transforma-se, com isto, na crítica da terra, a crítica da religião na crítica do
se constitui na ferramenta asséptica, uma espécie "de metrologia" dos direito, a crítica da teologia na crítica da política" (Marx, 197 7 ) .

76 77
um mesmo modo de pensar. Somos conformistas de algum conformismo, Quando o faz é através de seus críticos. Assim é que no posfácio
somos sempre homem-massa ou homens coletivos. O problema é o se­ à 2.ª edição de O capital Marx fala de seu método de forma sucinta,
guinte: qual o tipo histórico do conformismo e do homem-m�ssa do qu�l
·

. . daqui­ através de um de seus críticos:


fazemos parte? ( . . . ) O início da elaboração crítica é a consc1enc1a
lo que somos realmente, isto é, u� 'conhece-�e a ti m�smo' :o�� um "Para Marx, só importa uma coisa: descobrir a lei do fenômeno de cuja
produto histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma mf1md�de investigação ele se ocupa. E para ele é importante não só a lei que os
· ·
de traços recebidos em seu benefício no inventário. Deve-se fazer, m1c1al­ rege, à medida que eles têm forma definida e estão numa relação que
mente, esse inventário" (Gramsci, 1978 ) . pode ser observada em determinado período de tempo. Para ele o mais
importante é a lei de sua modificação, de seu desenvolvimento, isto é,
O não-entendimento. . do método ligado à concepção da realidade transição de uma forma para outra, de uma ordem de relações para outra.
e o não-inventário rigoroso desta concepção não só definem clara�en�e Uma vez descoberta essa lei, ele examina detalhadamente as conseqüên­
o horizonte positivista que separa o sujeito do objeto, a . consc.1enc!a cias por meio das quais ela se manifesta na vida social ( . . . ) . Por isso
Marx só se preocupa com uma coisa: provar mediante escrupulosa pes­
da realidade como nos indicam que muitos trabalhos de mvestlgaçao quisa científica a necessidade de determinados ordenamentos de relaçõ·�s
que se defin�m como críticos e dialéticos seguem, na prática, os parâ­ sociais e, tanto quanto possível, constatar de modo irrepreensível os
metros positivistas. fatos que lhe servem de ponto de partida e de apoio" (Marx, 1983 ) .
A expressão mais clara que tenho para assinalar a d?minância
das concepções metafísicas na formação dos educa�ores e qi:_e , n�
Após a citação do seu crítico, Marx pergunta : "O que descreveu
ele senão o método dialético?"
concepção de nossos currículos de graduação e de pos-graduaçao '. ha
grande ênfase e obrigatoriedade na disciplina de. i:i�todos e técn.1cas Aqui se explicita, a meu ver, a dialética materialista, ao mesmo
de pesquisa. A concepção de que existe a poss1b1hdade de e? s1�ar tempo como uma postura, um método de investigação e uma práxis,
,
métodos e técnicas alheios a um objeto a ser construido nos md1ca um movimento de superação e de transformação. Há, pois, um tríplice
a origem positivista da organização curricular e do processo de conhe­ movimento : de crítica, de construção do conhecimento "novo", e da
cimento. Todavia, é preciso assinalar que incorre no mesmo e�·r� . uma nova síntese no plano do conhecimento e da ação.
outra tendência - aparentemente crítica - que consiste na ideia de
que primeiro temos de aprender a teoria, as categorias, o referencial Um primeiro aspecto a ser caracterizado nesta compreensão de
teórico, depois passamos a investigar a realidade. método é que a "dialética" é um atributo da realidade e não do pen­
samento. Como assinala Kosik, "a dialética trata da coisa em si".
Enfatizada a idéia de que não existe método alheio a uma con­ Mas a "coisa em si" não se manifesta imediatamente ao homem. Para
cepção de realidade e, como vimos, duas concep��es fund�mentais chegar à sua compreensão é necessário fazer não só um certo esforço,
se contrapõem na história do pensamento (a me:aflSlca de d1fere� tes mas também um detour. Por este motivo o pensamento dialético dis­
matizes e a dialética), vamos responder à questao: em que consiste tingue a representação do conceito da coisa . . . (Kosik, 1976) .
o método dialético materialista?
E como se atinge a "coisa em si"? Como se dá esse detour para
O entendimento do que seja o método dialético materialista ini­ apreender as leis dos fenômenos na sua concretude, na sua totalidade
cia sua e�plicitação mediante a questão : como se produz concretamente concreta?
um determinado fenômeno social? Ou seja, quais as "leis sociais", .
Esse detour implica necessariamente ter como ponto de partida
históricas, quais as forças reais que o constituem enquanto tal? Esta os fatos empíricos que nos são dados pela · realidade. Implica, em
questão indica, ao mesmo tempo, no âmbito das ciências humano- segundo lugar, superar as impressões primeiras, as representações
1 sociais o caráter sincrônico e diacrônico dos fatos, a relação sujeito
J' e obje�o, em suma, o c ráter histó ico dos objetos_ que investigamos.
fenomênicas destes fatos empíricos e ascender ao seu âmago, às suas
leis fundamentais. O ponto de chegada será não mais as representações
Marx como fundador do materialismo histórico, curiosamente primeiras do empírico ponto de partida, mas o concreto pensado. Es­
não se oc�pa, senão em poucas passagens, em falar do seu método.
\ sa trajetória demanda do homem, enquanto ser cognoscente, um es-

L
78 79
forço e um trabalho de apropriação, organização e exposição dos fatos. mente, a apreensão do caráter histórico do objeto de conhecimento.
Por isso mesmo, "o conhecimento da realidade histórica é um processo Isso faz com que as categorias totalidade, contradição; mediação sejam
de apropriação teórica - isto é, de crítica, interpretação e avaliação tomadas abstratamente e, enquanto tal, apenas especulativamente. Corn
dos fatos - processo em que a atividade do homem, do cientista é isso confunde-se a necessária relação parte-todo e todo-parte com ::.
condição necessária ao · conhecimento objetivo dos fatos" (Kosik, idéia de um método capaz de exaurir todos os infinitos aspectos de
1976: 45). uma determinada realidade, captar todas as contradições e todas as
mediações. Ignora-se, assim, o caráter relativo, parcial, provisório, de
� preciso, então, não confundir o movimento do real com suas todo o conhecimento histórico, e que o conhecimento científico não
contradições, conflitos, antagonismos, com o movimento do pensamento busca todas as determinações, as leis que estruturam um determinado
no esforço de apreender esse movimento da forma mais completa fenômeno social, senão que busca as suas determinações e leis fun­
possível.
damentais. A distinção entre o fundamental e o secundário, o neces­
"O método de ascensão do abstrato ao concreto é o método do pensa­ sário e o fortuito é princípio epistemológico sem o qual não é possível
mento, no elemento da abstração. A ascensão do abstrato ao concreto construir conhecimento científico.
não é uma passagem do plano (sensível) para outro plano (racional) :
é um movimento no pensamento e do pensamento. Para que o pensamento Pode-se perceber, como decorrência desta confusão, que muitos
possa mover-se do abstrato ao concreto, tem de mover-se no seu próprio trabalhos de pesquisa na área de educação - principalmente disser­
elemento, isto é, no plano abstrato, que é a negação da imediaticidade, tações e teses -, no esforço de superação do empiricismo e positi­
da evidência e da concreticidade sensível. A ascensão do abstrato ao
concreto é um movimento para o qual todo o início é abstrato e cuja vismo , se esmeram em expor um quadro referencial de análise. Ora,
dialética consiste na superação desta abstratividade. O progresso da abstra­ quando esse quadro de análise é feito tomando-se as categorias abs­
tividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral movimento da parte tratamente, o resultado de análise é uma relação externa com essas
para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da categorias ou elas funcionam como camisas-de-força dentro da qual ·
essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contra­
dição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o os fatos reais têm de se enquadrar. Para que o processo de conheci­
objeto" (Kosik, 1976: 3 0 ) . mento seja dialético, a teoria, que fornece as categorias de análise,
necessita, no processo de investigação, ser revisitada, e as categorias
Não é fortuita a distinção, ainda que formal, que Marx faz entre reconstituídas. Ou por acaso a "totalidade", as contradições e as me­
método de investigação e de exposição. � na investigação que o diações são sempre as mesmas? Que historicidade é essa?
pesquisador tem de recolher a "matéria" em suas múltiplas dimensões;
apreender o específico, o singular, a parte e seus liames imediatos A dialética materiali�ta histórica enquanto práxis
ou mediatos com a totalidade mais ampla; as contradições e, em suma,
as leis fundamentais que estruturam o fenômeno pesquisado. A expo­ No processo dialético de conhecimento da realidade, o que im­
sição busca ordenar de forma lógica e coerente a apreensão que se
porta fundamentalmente não é a crítica pela crítica, o conhecimento
fez da realidade estudada.
pelo conhecimento, mas a crítica e o conhecimento crítico para uma
"f: sem dúvida necessário distinguir o método de exposição, formalmente, prática que altere e transforme a realidade anterior no plano do conhe­
do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a ma­ cimento e no plano histórico-social.
téria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão
íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor ade­ A teoria materialista histórica sustenta que o conhecimento efeti­
quadamente o movimento do real. Caso se consiga isso, e espelhada ideal­ vamente se dá na e pela práxis. A práxis expressa, justamente, a uni­
mente agora a vida da matéria, talvez possa parecer que se esteja tra­
tando de uma construção, a priori (Marx, 1 983 : 20 ) . dade indissolúvel de duas dimensões distintas, diversas no processo de
conhecimento: a teoria e a ação. A reflexão teórica sobre a realidade
Uma dificuldade concreta que percebo nos trabalhos de pesquisa não é uma reflexão diletante, mas uma reflexão em função da ação
que se esforçam por assumir uma perspectiva dialética é, primeira- para transformar.

80 81
A ação, prática como critério de avaliar a objetividade do conhe­
expor o real e como práxis transformadora, nos sinaliza alguns. pontos,
cimento, é insistentemente clara em Marx, Lenin, Gramsci e Mao.
no campo educacional, que merecem atenção. Limito-me aqui apenas
Nas teses II e XI, sobre Feuerbach, Marx situa a ação refletida a enunciá-los.
(a práxis) como critério de verdade: Um primeiro aspecto que se pode observar no campo da pesquisa
é que há uma tendência de tomar o "método", ainda que dialético,
"A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva
não é uma questão teórica, mas prática. B na práxis que o homem deve como um conjunto de estratégias, técnicas, instrumentos. Não só o
demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de método aparece isolado, cbmo a questão da concepção de realidade,
seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade do pensa­ de mundo, a questão ideológica, as relações de poder e de classe nem
mento é uma questão puramente escolástica" (tese II) . sequer aparecem.
"Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras;
o que importa é transformá-lo" (tese XI ) . A teoria, as categorias de análise, o referencial teórico, por outro
lado , aparecem como uma camisa-de-força, um capítulo primeiro. A
A ruptura radical da filosofia da práxis, em relação ao pensa­ teoria, as categorias não são historicizadas, isto é, construídas, e por
mento filosófico anterior, é exatamente que a preocupação funda­ isso se tornam vazias de historicidade, abstratas, especulativas.
mental é refletir, pensar, analisar a realidade com o objetivo de Há, ainda, uma falsa contraposição entre qualidade e quantidade,
transformá-la. e uma confusão entre uma leitura empiricista da realidade e a reali- ·

Para Lenin, o critério básico da verdade do conhecimento é a dade empírica. Isto tem desdobramento num certo senso comum de
prática social. A prática constitui-se no aspecto básico da concepção que o método dialético trabalha só com análises qualitativas .
materialista do conhecimento. Finalmente, há duas dimensões que merecem ser pensadas em
relação ao processo de conhecimento enquanto práxis no campo edu­
"A prática é superior ao conhecimento (teórico) , pois ela tem não so­ cacional.
mente a dignidade do geral, mas também a do real imediato" (Lenin, apud
Mao Tse-Tung, 1979 ) . Trata-se, primeiro, de perguntarmos qual o sentido "necessário"
e prático das investigações que se fazem nas faculdades, centros, mes­
Mao Tse-Tung vale-se do provérbio chinês - "se não se penetra trados e doutorados de educação? Não se trata do sentido utilitarista·
no covil do tigre, não se lhe podem apanhar as crias" - para enfa­ e apenas imediato, ou de uma espécie de ativismo. Trata-se de inda­
tizar que o conhecimento desligado da prática é inconcebível (ibid.) . gar sobre o sentido histórico, social, político e técnico de nossas pes­
quisas. A serviço de que e· de quem despendemos nosso tempo, nossas
O trabalho, as relações s0ciais de produção se constituem, na forças, e grande parte de nossa vida?
concepção materialista histórica, nas categorias básicas que definem
o homem concreto, histórico, os modos de produção da existência, o A outra questão, mais complexa, ao meu ver, é a necessidade de
pressuposto do conhecimento e o princípio educativo por excelência. examinarmos com maior rigor qual de fato a novidade que traz hoje
a "metodologia da pesquisa-ação". Em que nos ajuda aprofundar o
Para a teoria materialista, o ponto de partida do conhecimento, entendimento da pesquisa como crítica, como produção de conhecimen­
enquanto esforço reflexivo de analisar criticamente a realidade e a to e como sustentação de uma ação prática mais conseqüente? Em
categoria básica do processo de conscientização, é a atividade prática que, por outro lado, pode banalizar o proces�o mesmo de apreensão
social dos sujeitos históricos concretos. A atividade prática dos homens rigoroso dos fatos que analisamos?
concretos constitui-se em fundamento e limite do processo de conhe­
cimento. 2. Em que consiste a tese do monismo materialista?
A compreensão da dialética materialista histórica, ao mesmo tem­ Um último ponto, mal apreendido, em relação ao processo mate­
po como uma concepção de realidade, como método de perquirir e

\
rialista histórico de conhecimento, é a questão do monismo metodo-
82 83
-

lógico. Esta é uma questão crucial, sobretudo no momento presente c) que o materialismo histórico constitui-se na ciência do prole­
doS êõnfrontos de enfoques na pesquisa e na prática educacional. tariado, classe social empenhada com a superação da sociedade de
classes e instauração da sociedade socialista;
A simples exposição dos termos monismo materialista soa, ao
senso comum, como uma posição dogmática, doutrinária e determi­ d) que as concepções do "pluralismo ou do ecletismo metodoló­
nística. gico" representam apenas uma variação ou uma das expressões das
B preciso, todavia, compreender, de dentro do materialismo histó­
perspectivas metafísicas.
rico, o significado de tal enunciado. A tese do monismo materialista A idéia central do pluralismo é de que o complexo social ora
funda-se na concepção de que o real, os fatos sociais - fatos esses se estrutura tendo como determinação básica o fator econômico, ora
produzidos pelos homens em determinadas circunstâncias - têm leis os fatores políticos, culturais, religiosos, psicossociais. Historicamerite
históricas que os constituem assim e não diferentemente, e que tais haveria uma alternância de "fatores". Dewey expressa claramente a
leis condicionam seu desenvolvimento e sua transformação. tese pluralista quando afirma:
Dentro deste pressuposto histórico, a tese do monismo materia­
lista sustenta que a estrutura econômica - entendida como o conjun­ "A questão consiste em saber se algum dos fatores é tão preponderante
to de relações sociais (políticas, ideológicas, culturais, educacionais) a ponto de constituir a força preponderante, enquanto os outros fatores
são conseqüências secundárias e derivadas. Existe um fator ou uma fase
que os homens estabelecem na produção e reprodução material de ' de cultura que seja preponderante ou que crie e coordene os outros fato­
sua existência - é que define, em última instância, o complexo social res? Ou a economia, a moral, a arte, a ciência etc., são apenas aspectos
em suas diferentes dimensões.3 Essa concepção "pode constituir-se na da interação de fatores, cada um dos quais atua sobre os outros e é in­
base de uma coerente teoria das classes sociais e ser critério objetivo fluenciado pelos outros?" (apud Kosik, 1976: 104-5 ) .
para a distinção entre mutações estruturais - que mudam o caráter
da ordem social - e mutações derivadas, secundárias, que modificam A postura do ecletismo metodológico, que Lefebvre denomina
a ordem social, sem porém mudar essencialmente seu caráter" (Kosik, "sopa metodológica", historicamente representa uma aparente conces­
1976: 105). são do "mito positivista" de uma ciência social neutra, imparcial, em
face do avanço do pensamento marxista . Quem formula de modo
A tese do monismo materialista indica, ao mesmo tempo :
mais organizado este pensamento é Mannheim, que vai defender a
a) que o caráter radical do conhecimento histórico se explicita idéia de que os diferentes pontos de vista são complementares. Plei­
mediante rupturas, críticas ao status quo ante, e que por isso mesmo teia, então, a "integração dos diferentes pontps de vista mutuamente
o embate teórico revela que há teorias que explicitam e revelam a complementares num todo compreensivo". Quem faria essa síntese
realidade de forma mais completa, ainda que relativa, e outras que seriam os intelectuais que atuam especialmente nas universidades
são mais parciais ou até obnubilam a realidade dos fatos; uma espécie de inteligência sem vínculo (Lowy, 1 985) .
b) que a ciência do social é uma ciência não-neutra. A ciência
e o processo científico não são imunes aos embates reais que se dão , A concepção do "pluralismo formal" e do ecletismo consubstan­
na sociedade de classe. Neste sentido, o conhecimento histórico-crítico ciada no senso comum, na crença de que a "verdade" resulta de um
é um instrumento de luta; mosaico montado pela junção de diferentes posturas, ideologias, pers­
pectivas metodológicas tem sido, historicamente, no Brasil, uma idéia
3 . Em carta de 22-9-1 890, a J. Bloch, Engels adverte para o que ele e das elites dominantes no campo político, cultu;al, e se manifesta forte­
Marx entendem por concepção materialista da história. "De acordo com a con­ mente nos centros de pesquisa e universidades. Trata-se de posturas
cepção materialista da história, o elemento finalmente determinante é a produ­
ção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu asseveramos mais do que ainda dominantes.
isso. Logo, se alguém torce isso, dizendo que o elemento econômico é o único
determinante, ele transforma aquela proposição em uma frase sem sentido, No campo político esse traço histórico-cultural âas elites se ma­
abstrata e tola." nifesta nas teses da "Conciliação" (Debrum, 1983), consenso, negocia-

84 85
ção e· .entendimento (Benevides, 1984) . O que está ocorrendo no País, 3. Considerações finais
hoje, na Constituinte, reedita esta tendência histórica tanto no campo
�conômico-social, como no político, cultural e educacional. A questão que comumente aparece nos cursos ao se discutir as
dife rentes posturas e métodos decorrentes da investigação educacional
No âmbito da pesquisa social e educacional estas concepções se é a seguinte: mas como na prática se pesquisa dialeticamente? Ou
explicitam pelo caráter inorgânico dos currículos e dos cursos; no como ter presente que a dialética materialista é, ao mesmo tempo,
privilegiamento de cursos de "metodologia" de pesquisa desenraizados uma visão de mundo, um método de investigação e análise e uma
e desvinculados do inventário das concepções, ideologias e dos dife­ práxis?
rentes sensos comuns existentes; pelo formalismo e mistificação dos
projetos de pesquisa; po?uma compreensão falsa de interdisciplinari­ Trata-se de questões cuja resposta não é simples. Tal procedimen­
dade. Neste particular confunde-se a unicidade do objeto das ciências to implica rupturas - no dizer de Gramsci, uma catarse e um processo
sociais - o homem e suas relações sociais - apreendido por dife­ de trabalho de aproximações sucessivas da verdade que, por ser histó-·
rentes campos de conhecimento ou ciências sociais (economia, polí­ rica, sempre é relativa.
tica, sociologia etc.) com a junção mecânica de especialistas destes Com o intuito de apenas sinalizar, no plano da prática, como isso
campos científicos indiferentemente às suas perspectivas teórico-meto­ pode ocorrer, indicarei a estratégia de condução de uma pesquisa sobre
dológicas.
formação do trabalhador no processo produtivo que vínhamos reali­
Parece-me que um dos desafios mais cruciais que enfrentamos zando, em equipe, no IESAE/FGV.4
hoje na pesquisa educacional, e que merece um esforço sistemático,
Esta estratégia envolve cinco momentos fundamentais :
é superar a confusão bastante generalizada entre a necessária liberdade
de pensamento, convívio de posturas divergentes e o pluralismo formal a) Ao iniciarmos uma pesquisa, dificilmente temos um problema,
ou ecletismo. mas uma problemática. O recorte que se vai fazer para investigar se
situa dentro de uma totalidade mais ampla.
O processo de perquirir e analisar as leis históricas que estru­
turam, desenvolvem e transformam os fatos sociais não é algo que De outra parte, quando iniciamos uma pesquisa não nos situamos
dependa de negociação, conciliação ou consenso. Ao contrário, é algo num patamar "zero" de conhecimento; pelo contrário, partimos de
a ser prática e historicamente demonstrado. Neste sentido não há duas condições já dadas, existentes, e de uma prática anterior, nossa e de
teorias que expliquem igualmente o mesmo fato. A ciência se faz outros, que gerou a necessidade da pesquisa ao problematizar-se. Na
mediante rupturas. E preciso entender, então, que, apesar de sapos e definição da problemática deve, pois, aparecer de imediato a postura,
rãs serem batráquios e conviverem num mesmo lago, não são a mesma o inventário (provisório) do investigador. Essa postura delineia as
coisa. A tentativa de metamorfoseá-los em lagartos - numa espécie questões básicas - a problematização, os objetivos, em suma, a dire­
de síntese integradora - certamente não será um avanço para a espécie. ção da investigação. Neste âmbito já se coloca a contraposição, as
rupturas, da concepção do investigador em relação ao que está posto.
Por fim, vale ter presente que a busca consciente de uma postura
O processo de ir à raiz dos problemas, ou seja, ao desvendamento das
materialista histórica na construção do conhecimento não se limita à
"leis" que os produzem. Não só o recorte ou a problemática específica
"apreensão de um conjunto de categorias e conceitos. Não se trata
a ser investigada necessita ser apreendida com a totalidade de que faz
de homogeneizar o discurso. E preciso superar a abstratividade inicial
parte, como é importante ter presente a que ;ujeitos históricos reais a
dando-lhe concretude. Esse movimento é um movimento prático, empí­
pesquisa se refere.
rico. Há, pois, a exigência necessária de uma concepção de realidade,
um método capaz de desvendar as "leis" fundamentais que estrutu­ 4 . Esse esquema foi por mim trabalhado no texto O enigma da teoria nas
ram um problema que se investiga, da exposição orgânica dos avanços pesquisas e análises da relação trabalho-educação: pontos para debate. Rio de
no conhecimento e de novas sínteses no plano da realidade histórica. Janeiro, IESAE/FGV/UFF, 1987, mimeo.

86 87
b) No trabalho propriamente de pesquisa, de investigação, um assim do plano pseudoconcreto ao concreto que expressa o conheci­
primeiro esforço é o resgate crítico da produção teórica ou do conhe­ mento apreendido da realidade. E na análise que se estabelecem as
cimento já produzido sobre a problemática em jogo. Aqui se podem relações entre a parte e a totalidade.
identificar as diferentes perspectivas de análise, as conclusões a que
se chegou pelo conhecimento anterior e a indicação das premissas do "A compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se
encontram em relação de interna interação e conexão entre si e com o
avanço do novo conhecimento. Ou seja, esse conhecimento se expressa todo, mas também que o todo não pode ser petrificado na abstração si­
por idéias, conceitos, categorias que precisam ser revisitadas tanto no tuada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na inte­
sentido de ruptura - quando se trata de falsas apreensões, conheci­ ração das partes" (Kosik, 1 976: 42) .
mentos pseudoconcretos ou positivação da "verdade" ideológica de um
grupo ou classe dominante - quanto de superação, por inclusão - e ) Finalmente busca-se a síntese d a investigação. A síntese resulta
quando se trata de concepções, categorias, teorias que, embora dentro de uma elaboração. E a exposição orgânica, coerente, concisa das
de uma perspectiva crítica, histórica e transformadora, revelam-se insu­ "múltiplas determinações" que explicam a problemática investigada.
ficientes pela própria dinâmica da realidade histórica. Aqui não só aparece o avanço em cima do ·conhecimento anterior, mas
também questões pendentes e a própria redefinição das categorias,
Definido o embate no plano teórico-metodológico, partindo do conceitos etc. Na síntese, de outra parte, discutem-se as implicações
conhecimento existente, começa a pesquisa dos múltiplos elementos para a ação concreta. Repõe-se aqui o ciclo da práxis, onde o conhe­
e dimensões do problema que se está querendo desvendar. B impor­ cimento ampliado permite ou deveria permitir uma ação mais conse­
tante ressaltar que quem conduz a investigação é o investigador e não qüente, avançada, que por sua vez vai tornando o conhecimento am­
os dados, sejam primários ou secundários. B o pesquisador que estru­ pliado base para uma nova ampliação. Por essa razão a pesquisa
tura as questões e sua significação para conduzir a análise dos fatos, mantida como "segredo do pesquisador", ou dos pesquisadores, é uma
dos documentos etc. Com isso está-se afirmando que o investigador dupla sonegação: não questiona e nem permite ser questionada e
vai à realidade com uma postura teórica desde o início. A questão acaba não tendo, por isso, nenhum sentido histórico e político.
crucial é estabelecer o inventário crítico desta postura em face do
objeto que se está investigando, e não abstratamente. Como se poderá perceber, os passos acima enunciados têm apenas
uma fronteira "didática" e formal, mas não real. No processo de pes­
c) Feito o levantamento do material da realidade que se está in­ quisa, o que ocorre de fato é que há momentos em que haverá maior
vestigando, necessita-se definir um método de organização para a ênfase num dos aspectos apontados. De outra parte, a literatura sobre
análise e exposição. Trata-se de discutir os conceitos, as categorias que pesquisa nos oferece inúmeros esquema� que sinalizam as diferentes
permitem organizar os tópicos e as questões prioritárias e orientar a "etapas" de um processo. de pesquisa. Quanto mais detalhadas -
interpretação e análise do material. Que categorias interessam? A alguns textos chegam a enunciar 16 etapas - tanto mais se tornam
discussão teórica que se põe desde o início reaparece aqui com novas formais. o que importa aqui, ao invés disso, é que buscamos expor
determinações produzidas pelo movimento da investigação. B como ao debate o movimento real de uma pesquisa em andamento.
se estivéssemos, o tempo todo, desafiando o movimento do pensamento,
que é um movimento que se dá no seu terreno próprio, abstrato (Kosik, Referências bibliográficas
1 976), a dar conta do movimento do real no plano histórico.
COLEÇÃO Teoria Hoje. "Filosofia de Mao Tse-Tung". Belém, Boitempo, 1979.
d) A análise dos dados representa o esforço do investigador de DEBRUM, H. São Paulo, Brasiliense, 1983.
A conciliação e outras estratégias.
estabelecer as conexões, mediações e contradições dos fatos que cons­ FRIGOTTO, G. "Trabalho, conhecimento, consciência e a educação do trabalha-
tituem a problemática pesquisada. Mediante este trabalho, vão-se iden­ dor: impasses teóricos e práticos" in Trabalho e conhecimento: Dilemas na
tificando as determinações fundamentais e secundárias do problema. educação do trabalhador. São Paulo, Cortez/Autores Associados, 1 977,

B no trabalho de análise que se busca superar a percepção imediata, ----- . "A questão metodológica do trabalho interdisciplinar: indicações
de uma pesquisa sobre vestibular". Cadernos de Pesquisa ( 55 ) , São Paulo,
as impressões primeiras, a análise mecânica e empiricista, passando-se Fundação Carlos Chagas, nov. 1985.
·

88 89
-

FRIGOTIO, G. O enigma da teoria nas pesquisas e análises da relação traba­


lho-educação: pontos para debate. Rio de Janeiro, IESAE/FGV, 1987,
mimeo.
GRAMSCI, A. A concepção dialética da história. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1978.
KONDER, L. O que é· dialética. São Paulo, Brasiliense, 1 986.
· KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
7
LOWY, M. Método dialético e teoria política. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1985. A DIALÉTICA
MARX, K. "Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução" in Temas
de ciências sociais. Grijalbo, n.0 2, 1977.
NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO:
----- . "Posfácio à 2.ª Edição de O capital", in O capital. São Paulo, ELEMEN1DS DE CONTEX1D
Abril Cultural, 1 983.
MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo, Hucitec, 1986. Sílvio Ancízar Sanchez Gamboa
NAGEL, Lízia H. Quando o conteúdo vai além da frase. Tese de doutoramento. UNICAMP
São Paulo, PUC-SP, 1986.
SCHAFF, A. Linguagem e conhecimento. Coimbra, Almedina, 1964.
VIEIRA PINTO. Ciência e existência. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

90
Falar da dialética como uma das tendências da pesquisa educa·
cional supõe contextualizá-la com relação às outras abordagens que
fundamentam a prática da pesquisa em educação numa determinada
situação históricà e geográfica.
Essa contextualização nos permite dimensionar sua importância
como alternativa teórico-metodológica e sua perspectiva na fasé atual
do desenvolvimento da pesquisa em educação.
Para caracterizar a dialética como tendência, recorremos aos re·
sultados obtidos numa pesquisa sobre a produção discente dos cursos
de pós-graduação em Educação do Estado de São Paulo (1971-1984),
tomando como universo de análise 502 dissertações e teses produzidas
nesses cursos.1
Esses resultados surgiram de uma análise epistemológica da pro­
dução da pesquisa em educação na qual utilizamos como categoria
metodológica fundamental a relação entre o lógico e o histórico. No
1 Esses cursos de pós-graduação correspondem às universidades: Ponti­
.

fícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) , Universidade de São


paulo (USP), Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), Universida·
de Estadual de Campinas (Unicamp) , Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar) .

93
lógico, procurou-se reconstituir as estruturas internas das abordagens mo, nem soma de partes ou tópicos vindos de outras abordagens;
encontradas no universo estudado: as empírico-analíticas (66 % ) , as é uma nova maneira de ver, conceber e organizar categorias, muitas
fel)omenológico-hermenêuticas (22,5 %) e as crítico-dialéticas (9,5 % ) , delas originadas dentro de outras visões, mas recriadas em ·novas con­
explicitando-se como componentes de suas lógicas as categorias técni­ dições e sob outros interesses cognitivos.
co-metodológicas, teóricas, epistemológicas (níveis de articulações
explícitas), gnosiológicas e ontológicas (pressupostos implícitos) . No Neste texto apresentamos os resultados que explicitam: 1) as
histórico procurou-se elucidar as tendências das várias abordagens, generalizações e os elementos comuns com relação à articulação lógica
verificando-se que as primeiras, quase hegemônicas num primeiro pe­ encontrados no confronto das diversas abordagens; 2) as informações
ríodo, foram diminuindo progressivamente ante o surgimento e conso­ sobre as condições históricas que permitiram o surgimento e o desen­
lidação de outras alternativas. Na última fase analisada ( 1 981-1984) , volvimento dessas abordagens.
as abordagens crítico-dialéticas tendem a aumentar, indicando maiores
perspectivas de crescimento com relação às outras tendências. 1. Elementos lógicos

Dentro desse contexto e com as características apresentadas nessas Agrupando os resu.ltados da análise epistemológica e levando em
pesquisas colocamos em continuação algumas diferenças entre as três conta seus elementos lógicos, conseguimos identificar os principais
grandes abordagens epistemológicas que permeiam a pesquisa em edu­ tópicos comuns às pesquisas crítico-dialéticas e elucidar suas diferen­
cação.2 O confronto entre as abordagens nos permite elucidar melhor ças marcantes com relação aos outros tipos de pesquisa (empírico­
as características destas, e, particularmente, as especificações da dia· analíticas e fenomenológico-hermenêuticas) . Esses tópicos se referem
!ética que como tendência alternativa serve de base para um número aos níveis de articulação lógica (técnico, teórico e epistemológico) e
crescente de pesquisas em educação. aos pressupostos (gnosiológicos e ontológicos) que caracterizam cada
Desde sua elaboração como método de pesquisa cfentífica (Marx), abordagem.
a dialética tem pretendido aproveitar os elementos gerados dentro das Com relação ao nível técnico, as pesquisas mais numerosas - as
abordagens empíricas (empirismo inglês) e das abordagens fundadas empírico-analíticas -, que correspondem a 66 % da produção dos
nos postulados da fenomenologia (idealismo alemão) , realizando sín­ cursos de pós-graduação, apresentam em comum a utilização de técni­
teses entre essas duas grandes tendências filosóficas. Hoje a dialética cas de coleta, tratamento e análise de dados marcadamente quantita­
aplicada à educação não escapa a essa pretensão. Surge como nova tivas com uso de medidas e procedimentos estatísticos. Os dados são
opção entre a pesquisa empírico-analítica e a fenomenológico-herme­ coletados através de testes padronizados e questionários fechados e
nêutica, apropriando-se, no nível de nova ,síntese, de algumas catego­ são codificados em categorias numéricas que permitem a descrição dos
rias desenvolvidas nessas duas abordagens. sujeitos através de um perfil, um esquema cartesiano, um gráfico, uma
� por isso que, ao pretender contextualizar a dialética na pesquisa tabela de correlação etc. Também aparecem algumas técnicas descri­
em educação, é importante conhecer também as especificações das tivas que utilizam categorias nominais com definição operacional dos
outras opções, dada sua pretensão de síntese. A síntese não é ecletis- termos utilizados e passíveis de codificação numérica, e algumas técni­
cas de análise de conteúdos, especialmente em pesquisas que operam
2 . Aqui priorizamos as características "reais" apresentadas · nas pesquisas
. com textos e documentos. Por outro lado, as pesquisas fenomenológico­
analisadas; não abordamos as características "teóricas" apresentadas na litera­
tura especializada de cada tendência epistemológica. Por exemplo, apresentam�s ' hermenêuticas utilizam técnicas não-quantitativas como entrevistas,
os elementos das pesquisas fenomenológicas tal como se apresentam nas dis­ _depoimentos, vivências, narrações, técnicas biblÍográficas, histórias de
sertações, embora sabendo que são uma aplicação mais ou menos fiel da vida e análise do discurso, e as pesquisas crítico-dialéticas, além das
proposta fenomenológica segundo os clássicos dessa tendência, mas não apresen­
. anteriores, utilizam a "pesquisa-ação" e a "pesquisa participante ".
tamos esses elementos segundo a visão de Husserl, Heidegger, Gadamer, R1coeur
ou Ladriére. Esse estudo da coerência entre os modelos clássicos e a prática na Com relação ao nível teórico, podemos constatarque o primeiro
pesquisa seria objeto de pesquisas mais específicas sobre cada abordagem. grupo privilegia autores clássicos do positivismo e da ciência analítica.
94 95
O tratamento dos temas obedece à definição de variáveis, sejam estas Expressam um interesse específico na recuperação da harmonia e equi­
independentes, dependentes, de contexto, de entrada, de processo, de líbrio das organizações educativas para assegurar o máximo de produ­
controle, de saída, ou definidas como facetas, funções ou papéis. A tividade. As propostas têm um caráter técnico, restaurador e incre­
fundamentação teórica, na maioria das vezes, aparece na forma de revi­ mentalista.
sões bibliográficas sobre o tema tratado, de apresentação sucinta dos
resultados de outras pesquisas na área, ou como elementos que ajudam As pesquisas do segundo grupo (fenomenológico-hermenêuticas)
a formular os "construtos" utilizados na definição operacional dos explicitam críticas às abordagens fundadas no experimentalismo, nos
termos e na especificação das variáveis manipuladas nas situações métodos quantitativos e nas propostas tecnicistas. Essas pesquisas ex­
experimentais. pressam interesse específico na denúncia e na explicitação das ideolo­
A preocupação por uma argumentação mais sólida sobre o tema gias subjacentes, propõem desvendar e decifrar os pressupostos implí­
ou por uma discussão mais abrangente parece ser exclusividade das citos nos discursos, textos e comunicações. Os elementos críticos são
pesquisas que têm como fonte de infprmações e de dados publicações, abundantes e as propostas têm geralmente um marcado interesse na
textos, documentos, leis etc. Esse tipo de pesquisa, que representa uma "conscientização" dos indivíduos envolvidos na pesquisa e manifestam
parcela reduzida, no primeiro grupo, é quantitativamente expressiva interesse por práticas alternativas e inovadoras.
nos outros grupos, que privilegiam os estudos teóricos e a análise de As pesquisas crítico-dialéticas (terceiro grupo) questionam funda­
documentos e textos (fenomenológico-hermenêuticas), e os estudos so­ mentalmente a visão estática da realidade implícita nas abordagens
bre experiências, práticas pedagógicas, processos históricos, discussões anteriores. Esta visão esconde o caráter conflitivo, dinâmico e histórico
filosóficas ou análises contextualizadas a partir de um prévio referen­ da realidade. Sua postura marcadamente crítica expressa a pretensão
cial teórico (crítico-dialéticas) . de �esvendar, mais que o "conflito das interpretações", o conflito dos
Nesse mesmo nível teórico, as pesquisas apresentam característi­ interesses. Essas pesquisas manifestam um "interesse transformador"
cas bastante diferentes com relação ao tipo de críticas e de propostas das situações ou fenômenos estudados, resgatando sua dimensão sempre
de mudança. histórica e desvendando suas possibilidades de mudança.
Com relação às críticas encontramos, no primeiro grupo, algumas As propostas nelas contidas se caracterizam por destacar o dina­
pesquisas que excluem qualquer discussão, confronto, debate ou ques­ mismo da práxis transformadora dos homens como agentes históricos.
tionamento. Essa exclusão se ampara na neutralidade axiológica do Para isso, além da formação da consciência e da resistência espontânea
método científico e na imparcialidade do pesquisador. Algumas pes­ dos sujeitos históricos nas situações de conflitQ, propõem a participa­
quisas defendem a necessidade de diferenciar a pesquisa da crítica. A ção ativa na organização social e na ação política.
pesquisa é tida como processo técnico de descrição e explicação de
fenômenos, e a crítica como postura que inclui valores, apreciações . Com relação ao nível epistemológico, as pesquisas do primeiro
subjetivas ou propostas "ideológicas e políticas". Nesse mesmo grupo grupo têm algumas especificações comuns relativas à concepção de
temos pesquisas que apresentam algumas críticas, destacando-se aque­ causalidade. O conceito de causa é fundamental para este primeiro
las que questionam aspectos técnicos, tais como a defasagem e incoe­ grupo, já que é tido como eixo da explicação científica . .
rências entre fins e meios, objetivos e atividades, propostas e ações, e
aquelas que denunciam o descompasso entre as necessidades e as A relação causal se explicita no experimento, na sistematização e
soluções, a inadequação e deficiência dos instrumentos e técnicas utili­ controle dos dados empíricos e através das -nnálises estatísticas e
zadas nas várias áreas da educação, e a falta de recursos para imple­ teóricas.
mentar ou manter uma determinada atividade ou proposta. O esquema a seguir explicita as várias modalidades do conceito
Os interesses explícitos também têm um caráter técnico de conhe­ de causalidade encontradas nas abordagens mais comuns da pesquisa
cimento e controle das situações, fenômenos ou clientela estudada. empírico-analítica.

96 97
CONCEITO DE CAUSALIDADE NAS PESQU ISAS EMPIRICO·ANALITICAS A concepção de ciência, no primeiro grupo, está relacionada
com
a concepção de causalidade. A ciência tem como finalidade a
procura
Abordagem Causalidade das causas dos fenômenos, a explicação dos fatos pelos condic
ionantes
e os antecedentes que os geram. A racionalidade científica implíc
- Empirista: Relação di reta causa-efeito, estímulo-resposta, variável in· ita
dependente-variável dependente. na situação experimental, na análise estatística dos dados, na
sistema­
ti�a9ão rigorosa das variáveis ou na lógica da explicação dos
- Positivista: Concomitância de variáveis, variáveis que vão juntas, se fatos
apresentam ao mesmo tempo, i nteração de elementos, pelas causas finais, exige um processo hipotético-dedutivo, que se
fun­
correlação múltipla etc. damenta na percepção e registro dos dados de origem empírica e
Multicausalidade do "produto" (variáveis d � saída ?�
na
- Slstêmica: lógica da demonstração matemática, próprias das ciências analíti
outputs). O produto é o resultado da interaçao de vana­ cas.
veis de entrada (inputs) e de processo (mecan _is � os de
Esse grupo de pesquisas se identifica pelo uso obrigatório de hipóte
ses
controle - feedback -, context0s Internos, ou sistema e de processos lógico-dedutivos para a verificação, refutação ou falsea­
de causas). ção dessas hipóteses. Tanto o empirismo, o positivismo, o funcio
na­
- Funcionalista: Causa final (o para quê) , o te/os, a intencionalidade, a lismo como o sistemismo se negam a aceitar outra realidade fora
dos
finalidade, o propósito que determina a causa. "dados empíricos", dos "fatos objetivos", das "conseqüências observ

das", ou dos "elementos da rede causal". O esquema básico do
As outras abordagens, embora não priorizem a relação causal, pro­
cesso lógico-dedutivo se expressa com uma seqüência que parte
também têm uma concepção da causalidade entendida como u?1ª rela­ de
enunciados prévios chamados premissas e realiza operações segund
ção entre 0 fenômeno e a essência, o todo e as par:es, o ob3eto e � as regras e as leis da demonstração lógica, para chegar a conclu
o
_
contexto (fenomenológicas), ou como uma mter-relaçao entre os feno· sões
válida s. As premissas, como as conclusões, são enunciados científ
menos( lei da interdependência universal) , inter-relação do todo com icos
considerados hipóteses dedutíveis e sustentáveis . A validade dos
as partes e vice-versa, da tese com a antítese, dos ele�:ntos d� :stru· enun­
. ciados reside na origem empírica dos dados e na dedução lógica
tura econômica com os da superestrutura social, pohtica, 3und�ca e . Nessa
dedução, as hipóteses passam a ser afirmações científicas ou
intelectual etc. (dialéticas) .3 teses
depois de verificadas ou de terem resistido às refutações.
Os critérios de cientificidade variam segundo a abordagem. A
validação da prova científica, nas pesquisas empírico-analíticas, se As abordagens empírico-analíticas aplicadas ao estudo dos fenô­
fundamenta no teste dos intrument0s de coleta e trata?1ento �os �ados, menos educativos seguem, em termos gerais, os mesmos princípios vá­
no grau de significância estatística, nos modelos de s�stematlzaça� das lidos para as ciências físicas e naturais que exigem, no tratamento do
. objeto, a utilização de variáveis, sejam estas organizadas experimen­
variáveis e na definição operacional dos termos utlhz� �os (rac1�na­
lidade técnico-instrumental) . Já as pesquisas fenomenolog1cas confiam talmente como variáveis independentes ou depe"ndentes, ou sistematiza­
no processo lógico da interpretação e na capacidade de r:flex�o do das como variáveis de entrada, saída, de contexto, ou organizadas
pesquisador sobre o fenômeno objet� �e seu estudo (rac1onahdad: segundo determinem papéis, facetas, funções, ou tidas como indica­
. . dores que se apresentam concomitantemente. Todas elas se referem à
prático-comunicativa) . As pesquisas dialeticas se �undament?� na lo­
gica interna do processo e nos métodos que e�phc1tam . . e
a di� am1ca dimensão quantificável do fenômeno. A quantidade possibilita a de­
composição dos fenômenos nas suas variáveis básicas, processo que
as contradições internas dos fenômenos e exph�am ª� relaçoes entre
, _ trans- nos levaria a seu conhecimento científico.4
homem-natureza, entre reflexão-ação e entre teoria-pratica (razao
formadora) . As variáveis, em um nível de maior aprimoramento metodológico,
são relacionadas entre si obedecendo a delineamentos (designs) previa­
3 . Nesse sentido, Lenin se apropria de uma compreensão d � alética da
mente escolhidos. Nesses casos, o uso das hipóteses que prevêem as
causalidade. "A causa e o efeito não são ergo senão momentos da mt�rdepe��
dência universal, do elo (universal) , da conexão recíproca dos acontecimentos 4 . As ciências analíticas foram inicialmente identificadas com as ciências
(Cahiers philosophiques. Paris, Ed. Sociales, p. 1 3 2 ) , citado por Lowy ( 1975 :
físicas e naturais e, pela influência do positivismo, foram posteriormente tam­
1 34 ) .
bém aplicadas às ciências sociais e humanas.

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relações entre as variáveis tem um papel fundamental na organizaç�o pelo desejo de comunicação e diálogo e não de dom_ínio próprio das
da pesquisa. A partir dessas hipóteses - que na sua formulaçao ciências naturais analíticas.6
seguem as regras da lógica dedutiva (processo hipotético-deduti:�) ,
A compreensão de um fenômeno só é possível com relação
-

a pesquisa levaria à confirmação ou não (validação ou falseabihdade) à tota­


lidade à qual pertence (horizonte da compreensão) . Não há comp
dessas hipóteses. Essa confirmação é conclusiva e, como tal, não pode
são de um fenômeno isolado; uma palavra só pode ser comp reen­
ir além dos dados coletados e controlados (neutralidade axiológica) , reendida
nem dos construtos previstos nas premissas, sob pena de cair em dentro de um texto, e este, num contexto. Um elemento é
compreen­
apreciações subjetivas ou especulações que a invalidariam. dido pelo sistema ao qual se integra e, reciprocamente, uma
totalidade
só é compreendida em função dos elementos que a integr
am.
A concepção de ciência nas outras abordagens tem características
diferentes. Com relação às ciências analíticas, a hermenêutica denun
limites e a impossibilidade daquela de abordar os fenôm cia os
enos huma­
Para as pesquisas fenomenológico-hermenêuticas, a ciê�cia c�n­ nos, colocando-se como sua alt�rnativa. A ciência da interpretaçã
. o não
siste na compreensão dos fenômenos em suas diversas mamfestaçoe.s pretende, simplesmente, tomar o lugar da ciência analítica,
plementá-la e superá-la, respeitando, porém, o tratamento mas com­
(variantes) através de uma estrutura cognitiva (invariante) ou na expli­
científico­
citação dos pressupostos, das implicações e dos mecanismos ocultos analítico dos fenômenos humanos onde ele é possível.
(essência) nos quais se fundamentam os fenômenos.
As abordagens dialéticas, ao contrário da postura do positi
Os fenômenos objetos da pesquisa (palavras, gestos, ações, sím­ que no estudo do fenômeno reconhece a sua vigência na manif vismo
empírica, não renuncia, à semelhança da hermenêutica, estação
bolos, sinais, textos, artefatos, obras, discursos etc.) precisam ser à distinção
compreendidos. Isto é, pesquisar consistt� em captar o si�nificado dos entre fenômeno e essência que se inter-relacionam entre
si
fenômenos saber ou desvendar seu sentido ou seus sentidos. A com­ uma lógica interna ou estrutura, embora, para a dialética, formando
essa forma­
preensão s�põe uma interpretação, uma maneira de conhecer seu signi­ ção lógica tenha uma dinâmica (gênese ou história) que a
fenomenolo­
. gia não considera importante. A própria ciência, como produ
ficado que não se dá imediatamente; razão pela qual precisamos da
to
interpretação (hermenêutica) . A hermenêutica é entendida como inda­ do homem, é tida como uma categoria histórica, um fenôm da ação
gação ou esclarecimento dos pressupostos, das modalidades, e dos contínua evolução inserido no movimento das formações eno em
sociais. A
princípios da interpretação e da compreensão. produção científica é uma construção que serve de media
ção entre o
homem e a natureza, uma forma desenvolvida da relação
Para as abordagens hermenêuticas, a interpretação-compreensão é ativa entre
o sujeito e o objeto, na qual o homem, como sujeito, veicu
indispensável à necessidade que os homens têm de se comunicar �om la a teoria
e a prática, o pensar e agir, num processo cognitivo-trans
seus semelhantes. O interesse cognitivo que comanda as pesquisas formador da
natureza.
fenomenológico-hermenêuticas é a comunicação.
A abordagem dialética também não renuncia à origem empírica
Conhecer a realidade significa compreendê-la, algo diferente de objetiva do conhecimento, à semelhança da ciência analítica, nem re­
manipulá-la, ainda mais tratando-se da realidade humana. Essa com­ nuncia à interpretação e compreensão fenomenológicas que as conside­
preensão exige procedimentos ordenados e rigorosos que supõem um ra como elet}.1entos abstratos, necessários à construção do conhecimento
método de pesquisa e uma concepção de ciência diferentes da ciência (o concreto no pensamento) . É por isso que, na concepção de ciência
natural analítica.5 As ciências hermenêuticas deveriam estar motivadas da dialética, as outras concepções são constani-emente retomadas, criti-
5 . Entre os autores clássicos, essa concepção de ciência não é bem defi­
6 . As abordagens fenomenológico-hermenêuticas aceitam uma diferença
nida. Para Ladriére e Radnizky, a hermenêutica parece ser um modelo especial .
m�rcante entre as ciências naturais e as ciências humanas com relação ao
de ciência (ciências hermenêuticas) ; para Gadamer, Ricoeur e Coreth, a herme­ ob1eto de estudo ( �enômenos naturais e fenômenos humano� e se autodefinem
nêutica consiste em outro tipo de saber, mais de caráter filosófico que propria­ como mais apropriadas para o estudo dos fenômenos humanos (ver Cupani,
mente científico, no sentido da ciência natural. 1986: 7 8 ) .

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relações entre as variáveis tem um papel fundamental na organizaç�o pelo desejo de comunicação e diálogo e não de domínio próprio das
da pesquisa. A partir dessas hipóteses - que na sua formulaçao ciências naturais analíticas.6
·

seguem as regras da lógica dedutiva (processo hipotético-dedutivo) -,


a pesquisa levaria à confirmação ou não (validação ou falseabilidade) A compreensão de um fenômeno só é possível com relação à tota­
dessas hipóteses. Essa confirmação é conclusiva e, como tal, não pode lidade à qual pertence (horizonte da compreensão) . Não há compreen­
ir além dos dados coletados e controlados (neutralidade axiológica) , são de um fenômeno isolado; uma palavra só pode ser compreendida
nem dos construtos previstos nas premissas, sob pena de cair em dentro de um texto, e este, num contexto. Um elemento é compreen­
apreciações subjetivas ou especulações que a invalidariam. dido pelo sistema ao qual se integra e, reciprocamente, uma totalidade
só é compreendida em f�nção dos elementos que a integram.
A concepção de ciência nas outras abordagens tem características
diferentes. Com relação às ciências analíticas, a hermenêutica denuncia os
limites e a impossibilidade daquela de abordar os fenômenos huma­
Para as pesquisas fenomenológico-hermenêuticas, a ciência con­ nos, colocando-se como sua alt�rnativa. A ciência da interpretação não
siste na compreensão dos fenômenos em suas diversas manifestaçõe.s pretende, simplesmente, tomar o lugar da ciência analítica, mas com­
(variantes) através de uma estrutura cognitiva (invariante) ou na exph­ plementá-la e superá-la, respeitando, porém, o tratamento científico­
citação dos pressupostos, das implicações e dos mecanismos ocultos analítico dos fenômenos humanos onde ele é possível.
(essência) nos quais se fundamentam os fenômenos.
As abordagens dialéticas, ao contrário da postura do positivismo
Os fenômenos objetos da pesquisa (palavras, gestos, ações, sím­ que no estudo do fenômeno reconhece a sua vigência na manifestaçã
bolos, sinais, textos, artefatos, obras, discursos etc.) precisam ser empírica, não renuncia, à semelhança da hermenêutica, à o
distinção
compreendidos. Isto é, pesquisar consiste em captar o significado dos entre fenômeno e essência que se inter-relacionam entre si forma
fenômenos saber ou desvendar seu sentido ou seus sentidos. A com· ndo
uma lógica interna ou estrutura, embora, para a dialética, essa
forma­
preensão s�põe uma interpretação, uma maneira de conhecer seu signi­ ção lógica tenha uma dinâmica (gênese ou história) que a fenom
. enolo­
ficado que não se dá imediatamente; razão pela qual precisamos da gia não considera importante. A própria ciência, como produto
da ação
interpretação (hermenêutica) . A hermenêutica é entendida como inda­ do homem, é tida como uma categoria histórica, um fenômeno
gação ou esclarecimento dos pressupostos, das modalidades, e dos contínua evolução inserido no movimento das formações sociai em
produção científica é uma construção que serve de media s. A
princípios da interpretação e da compreensão. ção entre o
homem e a natureza, uma forma desenvolvida da relação ativa
Para as abordagens hermenêuticas, a interpretação-compreensão é o sujeito e o objeto, na qual o homem, como sujeito, veicula entre
a
indispensável à necessidade que os homens têm de se comunicar com e a prática, o pensar e agir, num processo cognitivo-transforma teoria
seus semelhantes. O interesse cognitivo que comanda as pesquisas natureza. dor da
fenomenológico-hermenêuticas é a comunicação.
A abordagem dialética também não renuncia à origem empírica
Conhecer a realidade significa compreendê-la, algo diferente de objetiva do conhecimento, à semelhança da ciência analítica, nem re­
manipulá-la, ainda mais tratando-se da realidade humana. Essa com­ nuncia à interpretação e compreensão fenomenológicas que as conside­
preensão exige procedimentos ordenados e rigorosos que supõem um ra como elementos abstratos, necessários à construção do conhecimento
método de pesquisa e uma concepção de ciência diferentes da ciência (o concreto no pensamento) . É por isso que, na concepção de ciência
natural analítica.5 As ciências hermenêuticas deveriam estar motivadas da dialética, as outras concepções são constantemente retomadas, criti-
5 Entre os autores clássicos, essa concepção de ciência não é bem defi·
·nida. Para Ladriére e Radnizky, a hermenêutica parece ser um modelo especial
6 . As abordagens fenomenológico-hermenêuticas aceitam uma diferença
.
marcante entre as ciências naturais e as ciências humanas com relação ao
de ciência (ciências hermenêuticas) ; para Gadamer, Ricoeur e Coreth, a herme­ objeto de estudo (fenômenos naturais e fenômenos humanos.l e se autodefinem
nêutica consiste em outro tipo de saber, mais de caráter filosófico que propria· como mais apropriadas para o estudo dos fenômenos humanos (ver Cupani,
mente científico, no sentido da ciência natural. 1986: 78).

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t

cadas e reintegradas, visando sua superação. :e. também por isso que Esse processo supõe o comando do intérprete que assume a "sub­
recebe críticas das outras posturas, sendo acusada de ciência analítico­ jetividade fundante do sentido" e organiza os dados de realidade, tendo
positivista, por parte de alguns setores da fenomenologia, o� de teoria como ponto de partida a manutenção e extensão da intersubjetividade.
filosófica ideológica e subjetiva, pelos que seguem os parametros da "Por sua estrutura, a compreensão do sentido orienta-se para um con­
concepção positivista. senso possível do sujeito agente no quadro autocompreensivo" (Haber­
Comparativamente com as outras concepções de c�ência, ??demos mas, 1 983 : 307 ) .
colocar ainda algumas diferenças. Enquanto a concepçao anahhca · tem A "concreticidade" se constrói na síntese objeto-sujeito que acon­
a causalidade como eixo da explicação científica e a fenomenológico­ tece no ato de conhecer. O concreto é construído como ponto de
hermenêutica tem a interpretação como fundamento da compreensão chegada de um processo que tem origem empírico-objetiva, passa pelo
dos fenômenos, a dialética considera a ação como a categoria episte- abstrato, de características subjetivas, e forma uma síntese, validada
mológica fundamental.
na mesma ação de conhecer, quando o conhecido (concreto no pensa­
Depois de confrontar as três grar{des tendências nos seus funda­ mento) é confrontado com seu ponto de partida através da prática.
mentos epistemológicos, através da explicitação de suas sei;i�lhanças
. Os pressupostos gnosiológicos são melhor compreendidos quando
e diferenças, podemos apresentar seus pressupostos gnosiologic�s, s�­
,
guindo a mesma sistemática de confronto. Os �r�ssupostos gnosi�logi­ nos aprofundamos nos pressupostos ontológicos. Decorrentes da noção
cos se referem às concepções de objeto e de su1eito e a sua relaçao no de sujeito e da postura deste diante do objeto aparecem, nas pesquisas
processo do conhecimento. estudadas, as noções de homem e educação.
A "objetividade" - processo cognitivo centralizado no objeto -, Nas abordagens empírico-analíticas a noção de homem está mar­
pretendida pelas abordagens empírico-analíticas, diferencia-se da "subje­ cada pelas concepções tecnicistas e funcionalistas. :e. definido pelo seu
tividade" - processo centralizado no sujeito das abordagens fenome­ "perfil" ou sistema de variáveis organizadas num gráfico ou descritas
. numa caracterização, é tido como recurso humano (input) ou produto
nológico-hermenêuticas - e da "concreti�idade" --: c��trahzada na
relação dinâmica sujeito-objeto - pretendida pela dialetica. (output) de processos educativos, como agente, funcionário etc., desta­
cando seu caráter técnico funcional. A educação, para esse homem,
A "objetividade" é garantida na observação controlada que dá diz respeito ao treinamento através de estímulos, reforços e processos
origem aos dados, na formalização desses dados através de instru�en­ que visam ao desenvolvimento de suas aptidões, habilidades ou poten­
tos devidamente testados, na unívocidade dos enunciados, na codifica­ cialidades, a aprendizagem de papéis, de nor�as sociais e padrões de
ção - quase sempre numérica � que express� �m valor passível de §er comportamento etc.
traduzido para a linguagem lógica das proposiçoes protocolares e orga­
nizado segundo as leis do raciocínio lógico-dedutivo. Tal p�ocesso Nas abordagens fenomenológico-hermenêuticas predomina a visão
.
_ sub1etivas.
supõe a existência do dado imediato despido de conotaçoes existencialista de homem. O homem é tido como projeto, ser inacabado,
A "subjetividade" entendida como a presença marcante do sujeito ser de relações com o mundo e com os outros. Educar é desenvolver
na interpretação do objeto, é garantida no processo rig�ro�o da pa�­ e possibilitar o projeto humano, criando as condições para que o
sagem da experiência fenomênica à compreensão da essencia, atraves homem consiga "ser mais"; é relação dialógica entre o educador e o
da recuperação da totalidade implícita ou do contexto no qual se educando; é passar das percepções ingênuas e aparentes da realidade
insere o fenômeno. às percepções críticas e desvelador61S do mundo, é conscientizar.
Nas pesquisas dialéticas, o homem é tido como ser social e histó­
"O acesso aos fatos é dado através da compreensão do sentido, em �ug�r
.
da observação. À verificabilidade sistemática das leis no quadro da c1enc1a rico; embora determinado por contextos econômicos, · políticos e cultu­
analítico-empírica contrapõe-se a exegese dos textos" (Habermas, 1983 : rais, é o criador da realidade social e o transformador-clesses contextos.
306 ) . A educação é vista como uma prática nas formações sociais e resulta

102 1 03
de suas determinações econômicas, sociais e políticas; faz parte da descrição de uma realidade estruturada, assumindo ante a mesma uma
superestrutura e, junto com outras in,stâncias culturais, atua na repro­ postura teórica" (Habermas, 1 983 : 302 ) .7
dução da ideologia dominante. Numa outra versão, a educação também A preocupação ·diacrônica se apresenta em algumas pesquisas
é espaço da reprodução das contradições que dinamizam as mudanças fenomenológicas existencialistas, que privilegiam, na análise, a existên­
e possibilitam a gestação de novas formações sociais. cia viva e dinâmica à essência realizada, definida ou pré-definida, e
A História, tomada como categoria gnosiológica inerente aos pres­ em algumas pesquisas hermenêuticas, que colocam o fio condutor da
supostos mais gerais próximos à concepção ontológica de realidade, interpretação na "estrutura encarnada", no acontecer ou na história
marca também a diferença entre as várias abordagens. Nas pesquisas dos fenômenos ou na presença do "símbolo encarnado". Essa preo­
estudadas destacam-se duas grandes concepções. Por um lado, aquela cupação diacrônica é mais marcante nas pesquisas dialéticas que con­
que tem uma preocupação sincrônica, presente nas pesquisas empírico­ sideram a história como eixo da explicação e da compreensão científi­
analíticas e nas pesquisas fenomenológicas mais estruturalistas; por cas, e têm na ação uma das principais categorias epistemológicas.
outro lado, aquela que se preocupa com a diacronia, caso de algumas A at;ão é, na sua concretude, critério de verificação da relação
pesquisas fenomenológicas (existencialistas e hermenêuticas) e das pes­ cognitiva e prova da coincidência das leis do ser e do pensar. A histó­
quisas dialéticas. ria, na �ialética, não é, como nas pesquisas empírico-analíticas, um
dado acidental ou secundário, uma variável denominada "tempo" ou
Ao preocupar-se com a descrição do fenômeno no seu imediatismo "data", ou, como na teoria estruturalista, um dado circunstancial de
empírico, os estudos do tipo survey ou levantamento e as pesquisas contexto, uma referência ou uma "ciência auxiliar". A semelhança dos
experimentalistas que registram situações de pré-teste e pós-teste "se exemplos anteriores, as pesquisas preocupadas com a diacronia podem
limitam a oferecer uma visão geral e instantânea de um determinado ser �omparadas ao cinema, pois se preocupam com o registro do
assunto, como se uma máquina fotográfica o tivesse registrado em movimento, a evolução e a dinâmica dos fenômenos.
determinado momento" (Ludke e André, 1 986 : 6) . Esses estudos, em
sua maioria, apresentam o perfil do fenômeno, do educado r, do aluno, A concepção da realidade ou de visão de mundo, como categoria
do administrador, da escola, da universidade ou os gráficos que compa­ mais geral e abrangente, é um pressuposto fundamental que elucida a
ram dois momentos ou dois presentes do sujeito ou do fenômeno na lógica implícita nas várias abordagens.
·

situação experimental. A visão de mundo, como categoria gnosiológica, permite: recons­


As pesquisas fenomenológicas, mais preocupadas com o invariante truir a lógica que integra os elementos de uma obra científica, reencon­
dos fenômenos do que com seus aspectos variantes, com a estrutura trar a coerência interna dessa obra e compreender seus nexos com as
simbólica do que com os sintomas (acontecimentos), com o sentido condições históricas e soCiais da sua produção. A visão de mundo
reconstrói o nexo entre o lógico e o histórico.
oculto do que com o sentido manifesto, ou que explicam os segundos
como tendo origem nos primeiros, têm como paradigma comparativo A concepção de realidade, como pressuposto ontológico mais geral
a radiografia, que desvela ou mostra a estrutura interna, ultrapassando e abrangente, presente nas pesquisas, se relaciona com a·s concepções
a aparência fenomênica. de história, de homem, de sujeito, de objeto, de ciência, de construção
lógica etc., definindo, ainda mais, o fio condutor da compreensão e da
As duas tendências, mantendo suas diferenças em outros elemen­
explicação das várias abordagens. Procurand� as seqüências dessas
tos epistemológicos, se assemelham na sua preocupação sincrônica.
7 . Na ciência empírico-analítica, "há uma concordância tácita na inten­
"A preocupação sincrônica, que aparece na articulação dos dados num ção �osmológica que consiste na descrição teórica do universo ordenado, sujeito
universo de fatos estruturados, transparece nas ciências do espírito no a leis. Contrariamente, a ciência hermenêutica, preocupada com o reino do
processo de seleção fatual pela compreensão; embora sem a preocupação perecível e do opinativo, situa-se fora deste âmbito de abordagem, inteiramente
com a elaboração de leis gerais do suceder histórico, integra-se no âmbito .
desligada dos problemas cosmológicos" (Habermas, 1983 : 3 02 ) . Grifos no ori­
de preocupação da ciência empírico-analítica: na preocupação de uma ginal) .

104 1 05
t

ou de A preocupação com a descrição, a análise, a especificidade e a


concepções, podemos elucidar melhpr a noção de realidade údos interpretação dos fenômenos, utilizando para isso categorias fundadas
organ iza os conte
cosmovisão, que, como categoria mais geral que na .lógic� formal, no raciocínio hipotético dedutivo e nos princípios
fundamental.
das noções anteriores, se constitui em seu pressuposto da identidade e da não-contradição, se opõe à preocupação com a dinâ­
pção de
Nessa seqüência podemos definir, à semelhança da conce � �inâ­ mica dos fenômenos, o devir da natureza e a história do homem, que
história, duas grandes tendê ncias , aquel � que privil egia uma visã
. matenahstas utiliza categorias fundadas na lógica dialética e nos princípios do
mica e conflitiva da realidade a partir das categorias visão fixista, movimento e da luta de contrários.9
de conflito e de movimento, e aquela que prefere uma A visão de mundo, entendida como uma percepção organizada da
funcional, pré-definida e predeterminada da realidade.8 realidade que orienta a produção da pesquisa, se constrói através da
os fenôme­
As pesquisas com preocupação sincrônica concebem o de um prática cotidiana do pesquisador e das condições concretas de sua
io, ou dentr exi�tência-. Isto é, a visão de mundo, que organiza, como categoria
nos estudados enquanto colocados num cenár
entendidos como mais complexa e abrangente, os diversos elementos implícitos na con­
ambiente externo, ou num contexto mais amplo, ou
cond ições que os creticidade de uma determinada opção epistemológica, é a responsável
sistemas dentro de um macrossistema, ou dentro de é isolado, pelas opções de caráter técnico, metodológico, teórico, epistemológico
ado
circunstanciam. O fenômeno, fato, ou assunto estud no ou o e filosófico que o pesquisador faz durante o processo da investigação.
ente exter
tendo como pano de fundo fixo o contexto, o ambi Embora essa visão apareça muitas vezes implícita, ela se forma através
ionismo anterior,
cenário. Desde outras perspectivas, superando o reduc da incidência de determinadas condições históricas de caráter psico­
universo de signi-
a realidade é percebida como totalidade presente,
·

aparece e, ao lógico, sociológico e político.


ficados, fonte de múltiplos sentidos, universo oculto, que
está aí mais ou
mesmo tempo, se esconde, mas que fundamentalmente As motivações e interesses pessoais, a composição, organização
para serem comp reendidos. e estrutura dos cursos de pós-graduação, as propostas acadêmicas, de­
menos estático. Os fenômenos estão aí eles são
interp retaç ões, cisões administrativas e políticas que orientam esses cursos, as tendên­
Embora adquiram "movimento" no ·conflito das
invar iante ) . cias teóricas predominantes no seu corpo docente vão formando a
a manifestação de uma essência permanente (o visão ou visões de mundo do grupo social de que faz parte o pesqui­
pesquisas que
A visão anterior é freqüentemente criticada pelas sador. O desenvolvimento das várias tendências epistemológicas não
as se refer em à visão homo­
têm uma preocupação diacrônica. As crític pode ser isolado das condições histórico-sociais das quais emergem,
mais ampl a) e à visão
gênea e não-conflitiva da sociedade (realidade .
stas, que
nem do clima de opinião, nem das discussões, debates e conflitos em
estru turah
estática dos modelos positivistas, funcionalistas e ípi� de
torno das grandes questões filosóficas, políticas e educacionais de uma
no princ
privilegiam a concepção ontológica do mundo, fundada
·

. determinada época.
ordenado, su1eito
identidade e que preferem a descrição do universo É por isso que, depois de apresentar alguns resultados dos estu­
ônica são coe­
a leis permanentes. As pesquisas com preocupação diacr dos lógicos que permitiram organizar, articular e hierarquizar as cate­
es ontológicas de
rentes com a visão dinâmica da realidade e as noçõ gorias científicas e filosóficas das várias tendências, cabe-nos apresentar
rução " e estão preocupadas
"mundo inacabado" e "universo em const agora os resultados do estudo histórico em torno das condições da
sua histó ria.
em perceber os fenômenos no seu devir e na produção que permitem o desenvolvimento de tais orientações.
r filosófico como
Essas duas tendências remetem a discussões de caráte dialética, entre
8. 9 . O confronto entre a lógica formal e a lógica dialética, que fundamen­
metaf ísica e
0 debate entre materialism
mo, entre
t�m doi� diferentes grupos de categorias gnosiológicas e que, em última análise,
idealis
:_ec�ntes. c�1:1º es��nc� a­
o e
lógica formal e lógica dialética, ou a discussões mais a-dialet1ca, c1enc1as d1ferenc1am duas grandes visões de mundo e duas maneiras de pensar a reali­
cialism o-mar xismo , herme neut1c
Jismo-existencialismo, existen
ordem -desor dem e�c. Essas dade, é amplamente desenvolvido nos textos de Engels, F., Anti-Duhring. Rio
empírico-analíticas e dialética, consenso-conflito, em espora dicamente, de Janeiro, Paz e Terra, 1976; A dialética da natureza, Rio de Janeiro, Paz e
discussões no contexto das pesquisas estuda das, aparec
Terra, 1979; Lefebvre, H. Lógica }ormal//ógica dialética. Rio de Janeiro' Civi-
mas, atuaimente, começam a ser retomadas com a preocu pação crescente com
tendên cias da pesqui sa. lização Brasileira, 197 5.
o estudo dos pressupostos das várias

107
106
2. Elementos históricos
se coloca, em sua maior parte, dentro da tradição positivista ou funcio­
nal-estruturalista (81 % ) , sendo esse índice maior na primeira e segunda
As opções epistemológicas não apareceram como estruturas de etapas (91 % e 89% respectivamente), caindo um pouco na terceira
pensamento definidas e coerentes, nem permanecem assim �urante o (70 % ) e dando espaço para algumas pesquisas fenomenológicas.12 Por
desenvolvimento da produção dos cursos de pós-graduaçao. Essas outro lado, a maioria das primeiras pesquisas produzidas na PUC-SP,
opções têm uma trajetória ao longo das etapas dessa produção . Para na área da Psicologia Educacional (7 5 % ) , segue delineamentos
.
identificar essa trajetória, organizamos um quadro em que considera­ (designs) experimentais e fundamenta sua explicação científica em
mos a freqüência das abordagens encontradas nas três etapas que processos hipotético-dedutivos. Esse predomínio aumenta na segunda
convencionamos escolher para visualizar suas possíveis mudanças e fase (93 % ) , mas diminui na última (69 % ) . Nesse mesmo período
tendências. (77-80) e com a mesma tendência empírico-analítica, são produzidas
Com a ajuda desse quadro, que visualiza essa trajetória, podemos as primeiras dissertações na área de Supervisão e Currículo da PUC­
acompanhar a presença dessas tendências ao longo das várias etapas SP (70% têm essa orientação), nas áreas de Psicologia Educacional
da produção da pesquisa em educação. (70 % ) e de Administração e Supervisão (78 % ) da Unicamp e na área
de Educação Especial ( 1 00 % ) da UFSCar. Esse percentual elevado de
As abordagens empírico-analíticas, embora tenham diminuído nas pesquisas segue os procedimentos indicados nos manuais de pesquisa
duas últimas etapas (ver quadro a seguir), continuam sendo as - �ais sob os critérios hipotético-dedutivos, principalmente nas versões fun­
-
utilizadas na pesquisa desenvolvida nos cursos de pós-graduação em cionalista e positivista.
Educação no Estado de São Paulo (66 % ) .
A orientação empírico-analítica teve seu desenvolvimento assegu­
TEND�NCIAS DAS ABORDAGENS METODOLôGICAS rado na formação de docentes dentro dessa tradição e, fundamental­
mente, através da disciplina metodologia da pesquisa científica e dos
E T A P A S
manuais de pesquisa que davam ênfase às técnicas quantitativas, fun­
Abordagens 71-76 77-80 81-84 Total dadas na concepção de ciência e nas regras do método positivista.
f % f % f % % Essa situação é decorrente da importação cultural, da composi­
ção do corpo docente formado no exterior e da imposição de um
Empírico-analíticas 30 70% 1 06 67% 1 94 64% 330 66,0%
modelo de pós-graduação, que favoreceram a transposição de para­
Fenomenológico-herme-
11 26% 38 24% 64 21% 113 22,5%
digmas predominantes nos países de origem. Essa problemática é sen­
nêuticas tida nos cursos de pós-graduação em geral.
Crítico-dialéticas 2% 13 8% 34 12% 48 9,5%
"A reduzida disponibilidade de produção bibliográfica de origem nacional,
Outras 1o 2% 1% 9 3% 11 2,0%
ou mesmo latino-americana, torna inevitável a importação de bibliogra­
Total 43 1 00% 1 58 1 00% 301 1 00% 502 1 00% fias, modelos, técnicas e equipamentos de países mais desenvolvidos. O
.... problema situa-se, então, no grau de criticidade com que se fazem tais
Para entender esse predomínio, é preciso considerar algumas 'importações'. Certamente não é incomum o recém-doutorado chegar ao
informações referentes à composição dos cursos em que essa tendência país e ter dificuldades em se adaptar às novas condições de trabalho, por
não ter à sua disposição equipamentos equivalentes àqueles com que
é mais desenvolvida.11 A produção da Faculdade de Educação da USP
1 2 . Nos cursos da Faculdade de Educação da USP, ao contrário dos outros
10 .Refere-se a pesquisas de difícil classificação pela sua indefinição meto­ cursos, a tradição se tem mantido graças à composição de seu corpo docente
dológica ou porque o autor não teve acesso a elas por diversos motivos, entre que mantém uma "evidente endogenia" (parecer 374/82 do CFE) ; por exem­
eles, o fato de essas dissertaçõe& estarem ainda nas gráficas ou na seção de plo, por ocasião do Relatório da Comissão Verificadora que motivou o parecer
registro das bibliotecas. do CFE 473 /83, constata-se que 92% dos professores são tit_l!lados pela própria
1 1 Essas informações podem ser encontradas no capítulo II da nossa tese
.
USP. As duas exceções são de professores de tempo parcial titulados em
de doutorado (ver Sánchez Gamboa, S., 1987). universidades européias.

108
1 09
t

operava no exterior. De forma análoga é uma preocupação saber que


a problemática pela qual se interessam os recém-ch�g�dos �orresponde a na área de Filosofia como na de Psicologia. Nos outros períodos (77-80
.
interesses da sociedade brasileira ou é mera transpos1çao acntica de para­ e 8 1-84), sua influência se estende às áreas de Didática, Metodologia
digmas científicos e de modelos teórico-metodológicos formulados para do Ensino e Pesquisa Educacional, com a vinculação de professores
abordar temas de interesse de sociedades com outro mvel , de desenvol­ vindos da Lingüística e da Filosofia de tradição francesa e com a
vimento, em contexto sociocultural distinto" (Córdoba e outros, 1986: progressiva utilização de textos de autores como Merleau-Ponty, Althus­
176). ser, Ricoeur, Gursdorf, Piaget, Verón, Saussure, Eco, Foucault, Lemos,
Essa importação foi maior na �rimeira fase ; posteriormente: fo
. .
� Pignatari e Lajolo. Essa influência é maior, durante o segundo período,
na UFSCar na área de Pesquisa Educacional (27 % ) e, durante o ter­
feita com grau progressivo de criticidade, permitmdo a adaptaçao
o surgimento de novos modelos. ceiro período, na USP nas áreas de Didática e Filosofia (30% ) e na
Unicamp na área de Metodologia de Ensino (20 % ) .
As outras abordagens, fenomenológico-hermenêutica e crític�-dia­
lética, surgem como alternativas, ques�ionam a relativa hegemoma da No segundo período (77-80) , aparecem as primeiras dissertações
pesquisa analítica e ganham progressivo espaço nos centros de pes- com preocupação crítica e com referencial teórico centrado no mate­
quisa. rialismo histórico, chegando a representar 1 6 % das pesquisas produ­
Na totalidade das pesquisas produzidas, 22,5% c� rres� ondem �s zidas na área de Filosofia da PUC-SP, 30% na área de Pesquisa Edu­
abordagens fenomenológico-hermenêuticas, sendo sua mfluencia . mais cacional da UFSCar e 28 % na área de Metodologia de Ensino da
forte na primeira fase (26 % ) e na área da Filosofia da Educaçao _ d Unicamp. Nas duas últimas universidades, as primeiras dissertações já
. �
PUC-SP (60 % ) e da Unimep (66 % ) , depois, em termos gerais, �im1-
. têm essa tendência, p0ois na época em que foram criados seJs respecti­
nui na segunda e na terceira fases, ante o surgimento, na mesma area, vos cursos, no âmbito dos cursos de pós-graduação, já se questionavam
das tendências crítico-dialéticas. os métodos tradicionais de pesquisa fundados no positivismo e se
reformulavam os conteúdos da disciplina de Metodologia da Pesquisa
As propostas fenomenológicas aplic� das à educação surgem no Científica (ver Ribeiro, 1987, depoimentos de Saviani, p. 13 e de
contexto da organização dos cursos de pos-graduaçao _ da PU�-SP com
Mello, p. 73) .
a vinculação de um grupo de docentes vindos da Umversidade �e
.
Louvain,13 que, formados em filosofia, começam a estud?r os feno­ Esses questionamentos e a proposta de uma nova abordagem de
menos educativos, criando um novo enfoque par� a pesquisa em edu­ pesquisa a partir do materialismo histórico surgem ante a necessidade
cação. Essa proposta foi sendo ampliada na medida em que o n:odelo de estudar a educação escolar brasileira, a relação educação e socie­
inicial de pós-graduação da PUC-SP foi le�ado pela mesma equipe de dade, a relação teoria e prática no exercício profissional dos educa­
professores, à Unimep e à Unicamp. Posteriormente, essa mesm� expe� dores, a problemática da ideologia, do poder e da escola vinculada
riência serviu para que alguns docentes e alunos da PUC-SP, vi�cula ao Estado etc. Essa mudança acontece também vinculada à trajetória
dos à Fundação Carlos Chagas, contribuíssem para a estruturaçao do de vida de alguns docentes que, vindos de uma tradição fenomenológi­
curso de pós-graduação na UFSCar. ca e ante as novas problemáticas abordadas, percebem que o mate­
rialismo histórico, além de dar subsídios para o estudo do "fenômeno
No primeiro período (7 1-76) , a alternativa fenom�i:ológica é a educativo", como o faz a fenomenologia, permite elucidar suas relações
.
única, perante a relativa hegemonia das abordagens positivistas, tanto com a sociedade e ajuda a compreender a dinâmica e as contradições
13.Os professores Newton Aquiles Von . Zu�en, Geraldo Tonaco e Joa� da prática profissional do educador. Os textos de Marx e Engels,
1
·
Severino' formados em filosofia na Umvers1dade de Louvam, . e a pro Gramsci, Kosik, Sánchez Vásquez, Manacorda.etc. foram sendo adota­
fu: ra Maria Fernanda Beirão, todos eles com experiê�cia em estud?s da dos na bibliografia básica, tanto das disciplinas de problemas educa­
fenomenologia foram convidados pelo professor Joel Martms para �rgamza� o cionais e filosóficos, de metodologia da pesquisa e do ensino, quanto
curso em Filo�ofia da Educação. Através da disciplina Fenome�ol0�1a � Psico­ da administração escolar.
logia e do vínculo pessoal do professor Joel Marti�s co� mstltmç�es mter�a­
. .
cionais que trabalham essa tendência, a fenomenologia foi desenvolvida tambwm Na composição da última etapa, a pesquisa crítico-dialética se
na área da psicologia educacional. consolida como alternativa de pesquisa em educação ( 1 2 % ) , especial-
110
111
Conclusões
mente na Unicamp e na UFSCar onde consegue percentuais de 19%
(área de Metodologia de Ensino) e de 17% (área de Pesq�is� Ed�­ 1 . As abordagens dialéticas presentes na pesquisa educacional
cacional) , respectivamente. Sua tendência crescente nos permite mfenr colocam-se como uma das alternativas críticas com relação às abor­
que depois de 1984 será maior o número de dissertações e teses que dagens empírico-analíticas que têm dominado a produção , científica
utilizarão essa orientação teórico-metodológica. Todavia, sendo uma na área.
abordagem nova na área da educação, manifesta algumas dificuldades Sem pretender reduzir as alternativas ao falso dualismo quanti­
com relação à aplicação dos pressupostos epistemológicos no processo dade-qualidade, é importante destacar que as críticas mais freqüentes
da pesquisa. Gouveia já denunciava essa dificuldade em 1985 : se referem ao caráter reducionista das técnicas quantitativas utilizadas
pela ciência empírico-analítica. Entretanto, o uso de técnicas qualita­
"Após elaborado o referencial teórico a partir do qual �e anuncia, a inten­ tivas não deve ser entendido como opção epistemológica. As técnicas
ção de utilizar o método dialético, desenvolve-se um tlp? de an�l se . que, não se explicam por si mesmas. Tanto as técnicas quantitativas como
a não ser pelo emprego de conceitos tomados ao marxismo, nao difere, ·
na verdade, do modelo, relegado sob a pecha de. positivista, neopositivista as qualitativas adquirem significação e dimensão diferentes dependendo
ou empiricista, predominante em épocas anteriores" (p. 65 ) . da abordagem na qual se inserem ou do paradigma que as prioriza
ou não em relação aos outros elementos da pesquisa.14 Nesse sentido,
Nessa última fase, as linhas de pensame!lto e os modelos de pes­ o resgate da dimensão qualitativa dos fenômenos educacionais ad­
quisa aparecem melhor definidos ante a presença do debate, no interior quire conotação diferente em cada uma das abordagens alternativas.
Enquanto as fenomenológicas destacam as técnicas qualitativas, radi­
dos cursos de pós-graduação e em alguma literatura especializada, calizando suas diferenças com as quantitativas (Ver Lucke e André,
em torno da questão dos métodos. 1986), as dialéticas, em tese, admitem a inter-relação quantidade/qua­
Nesse contexto, os cursos de pós-graduação começam a procurar lidade dentro de uma visão dinâmica dos fenômenos, destacando
novas formas de organização e alternativas ao modelo predominante, algumas estratégias como a Pesquisa-Ação e a pesquisa Pesquisa
imposto através da política oficial. O modelo de pós-graduação, vincu­ Participante.
lado à solução conservadora da reforma universitária que tem como Todavia, essas estratégias que têm 'sua origem na concepção di­
função principal preencher os níveis superiores da hierarquia social no nâmica da realidade e das relações dialéticas entre sujeitos (homens
desenvolvimento do capitalismo, começa a ser criticado, principalmente
1 4 . Por exemplo, as pesquisas empírico-analíticas dão prioridade às téc­
pelo interesse em produzir pesquisadores treinados, através de modelos
nicas quantitativas, de tal forma que os critérios de cientificidade e os pres­
empírico-analíticos, na utilização de instrumentos de controle e , de supostos epistemológicos se relacionam com a exatidão matemática, tanto na
mecanismos de tutelagem. A pós-graduação progressivamente se trans­ coleta como na análise estatística dos dados. A pesquisa fenomenológico-herme­
forma em lugar privilegiado para a crítica, na medida em que supera nêutica critica o reducionismo das técnicas quantitativas, e, em contrapartida,
a pesquisa isolada, normatizada e burocratizada. Novos interesses �n­ desenvolve as técnicas chamadas de qualitativas, mas situando-as em lugar se­
cundário com relação à compreensão fenomenológica e à reflexão hermenêutica.
centivam a procura de modelos alternativos que desenvolvem as racio­ A técnica é a expressão prático-instrumental do método, e esse é, por sua vez,
nalidades crítico-comunicativa e crítico-transformadora que potencia­ uma teoria em ação, e as teorias são maneiras diversas de ordenar o real ou
lizam propostas inovadoras e perspectivas mais radicais de mudança. de explicitar uma visão de mundo. É por isso que a colocação da alternativa
da pesquisa n•J nível das técnicas quantitativas ou qualitativas express:o um falso
A crítica crescente no interior dos cursos de pós-graduação, as­ dualismo. As alternativas devem ser colocadas no nível das grandes tendências
sim como a definição progressiva de linhas de pensamento e de opções que fundamentam não só as técnicas, os métodos e as teorias, mas também as
epistemologias. Nesse contexto maior de paradigmas científicos se explicita a di­
epistemológicas, expressam o caráter conflitivo dos interesses que orien­ mensão e o significado das técnicas, sejam essas quantitativas ou qualitativas.
tam e dinamizam a investigação científica, e também, ajudam a explicar A _escolha de uma técnica de registro ou de tratamento de um fenômeno implica
o crescente questionamento do modelo atual de pós-graduação e a pro­ pressupostos com relação à concepção do sujeito e do objeto-;"'a sua interação no
cura de modelos alternativos. processo cognitivo e ao interesse que comanda esse processo.

1 12 1 13
organizados socialmente) e objeto (natureza, mundo), entre conheci­ culada, entre outras coisas, à assimilação desses elementos e à supe­
mento e ação, entre teoria e prática (ver Brandão, 1 984, principalmente ração progressiva das contradições surgidas no bojo da prática da
os textos de Gajardo e Bonilla), sofrem de descontextualizações gri­ · pesquisa em educação.
tantes. Essas estratégias, anunciadas freqüentemente como técnicas
alternativas, virando moda entre os pesquisadores em educação, são, 4 . A trajetória das pesquisas dialéticas, que de 2 % no primeiro
geralmente, desvinculadas de seus pressupostos ep�st�mol�gi�os e dos período (7 1 -76) e de 8% no segundo período (77-80) passa a 1 2 %
contextos sociais onde têm sentido como estrategias dialet1cas . de no terceiro período (8 1 -84), indica um crescimento maior com rela­
conhecimento e de transformação da realidade. A redução sofrida pela ção às outras abordagens e a tendência a rápido desenvolvimento
Pesquisa-Ação e a Pesquisa Participante coloca em risco seu rigor tanto qualitativa como quantitativamente nos últimos anos (de 84
metodológico e as desvirtua como alternativas válidas dentro da con­ para cá) . Isso sugere seguir acompanhando a produção da pesquisa
cepção dialética do conhecimento. em educação e particularmente o comportamento desta nova tendên­
cia. B importante, para superar os riscos dos modismos, uma análise
2 . O interesse crescente que os pesquisadores e educadores têm
aprofundada sobre as diversas maneiras da aplicação do método e
pela compreensão e explicação das práticas pedagógicas, das ações
sua relação com seus fundamentos filosóficos, tomando uma constante
educativas, das relações da escola com o todo social, das contradições vigilância epistemológica que permitirá detectar as dificuldades e li­
sociais que se manifestam na luta por uma escola democrática ?ara mitações dessa abordagem e conhecer seu veâ�adeiro alcance e suas
todos etc. têm exigido a procura de novas abordagens que permitam perspectivas como alternativa no estudo dos fenômenos educacionais.
esse conhecimento. A dialética se afirma como um dos métodos mais
A autocrítica dentro da abordagem dialética conduzirá certamente ao
apropriados, dada sua relação próxima com esse tipo de interesse
aprimoramento teórico e metodológico necessário no atual estágio de
cognitivo. Falta entretanto maior aprimoramento teórico, pois �s pes­
desenvolvimento da pesquisa em educação.
quisas analisadas que revelam a utilização de algumas categorias do
materialismo histórico e dialético são questionadas, as mais das vezes,
por falta de maior rigor metodológico dentro dos princípios episte­
mológicos da dialética. Referências bibliográficas
3 . A pesquisa dialética como alternativa que pretende uma sín­ BRANDÃO, Carlos (org.) . Repensando a pesquisa participante. São Paulo, Bra­
tese progressiva a partir dos elementos conflitantes presentes na siliense, 1984.
pesquisa se desenvolve na medida em que assimila esses elementos CÓRDOBA, Rogério de Andrade; GUSSO, Divonzir Arthur; LUNA, Sérgio
geralmente surgidos do confronto de tendências teóricas qu: rev_ela� Vasconcelos de. A pós-graduação na A mérica Latina: O caso brasileiro.
o conflito de interesses cognitivos que comandam a produçao cienti­ UNESCO/CRESALC, MEC-SESU /CAPES, Brasília, 1986.
fica nas ciências humanas e sociais. Algumas sínteses conseguidas GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
partem do conflito objetividade-subjetividade, explicação causal-com­ GOUVEIA, Aparecida J. "Orientações teórico-metodológicas da sociologia da
preensão fenomênica, predomínio do empírico ou do abstrato formal, educação no Brasil", in Cadernos de pesquisa. São Paulo, 1985, (55 ) ,
quantidade-qualidade, raciocínio hipotético-dedutivo ou proc:sso her­ 63-67.
menêutico, predomínio da análise (partes) ou da compreensao (todo) HABERMAS, Jurgen. "Teoria analítica da ciência e dialética; conhecimento e
etc., elementos predominantes seja na abordagem analítica, seja na interesse'', in Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural (col. Os Pensa­
dores) , 1983.
fenomenológica. A dialética, na sua pretensão de síntese, trabalha com
LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitati-
categorias tais como o concreto, a inter-relação universal, a tra�s­ vas. São Paulo, EDU, 1 986.
.

formação quantidade-qualidade, a interligaç�o todo-partes, exphca7a�­ NAGEL, Ernest. La estructura de la ciencia. Buenos Aires, Paidós, 1974.
_
compreensão, análise-síntese etc. Nesse sentido a progressao da diale­
RIBEIRO, Maria Luísa S. (org.) . Educação em debate: uma proposta de pós­
tica precisa acompanhar o desenvolvimento dos elementos das outras graduação. São Paulo, Cortez, 1987.
abordagens para poder produzir novas sínteses sob ?e�a . de est�gn�r­ SÃNCHEZ GAMBOA, Sílvio. Epistemologia da pesquisa � educação. Campi­
,
se, ritualizar-se dogmatizar-se como metodo. Sua dmam1ca esta vm- nas, Unicamp. Tese de Doutorado em Educação, 1987.

1 14 1 15

-
8

PESQUISA EM HISTÓRIA:
PERSPECTIVAS E ABORDAGENS
Dea Fenelon
PUC-SP

-
Fui convidada pelos professores do programa, para vir conversar
com vocês sobre a pesquisa na História, ou seja, como andam as
pesquisas, na área de História.
Para os que não me conhecem, sou atualmente Coordenadora
do Programa de História nesta Universidade, já fui professora da
Unicamp, me aposentei há algum tempo.
Antes de iniciar esse debate, eu queria ler um poema de Brecht,
pois acho que ele traduz 'bem o momento que estamos vivendo na
pesquisa histórica. Este poema já tem aparecido publicado em alguns
livros de história e intitula-se "Perguntas de um Operário diante de
um Livro de História".
"Tebas das Sete Portas,
Quem a construiu?
Nos livros, figuram os nomes dos reis,
Foram os reis que arrastaram os grandes blocos de pedra?
Babilônia, destruída tantas vezes,
Quem tornou a reconstruí-la?
Em que casas da dourada Lima
Viviam os operários que a construíram?
A noite em que terminou a construção da Muralha da China,
Onde foram os trabalhadores?

1 19
Roma, a grande, está cheia de arcos do triunfo . . .
. Quero levant�r aqui, para iniciar os debates, um� questão
Quem os erigiu? t�portante que dtz respeito ao desenvolvimento da discip muito
lina Histó­
Sobre que triunfaram os Césares? . na. e uma questão filosófica, mais especificamente, a
Bizâncio, tão cantada, questão da
verdade: o que vem a ser a verdade histórica?
Tinha só palácios para os seus habitantes?
Até a fabulosa Atlântida, Quando se questionou essa forma de se fazer a Histó
reconstruir os a�ontecim�nt apenas, o historiador, na ria de
idéia de ' que
Na noite em que o mar a tragou,
Seus habitantes clamavam, ? �
esta�a reconstruindo a historia, tal qual ela aconteceu, precis
Pedindo ajuda aos escravos . . . tanciar-se dos fatos. Daí uma história mais antiga, semp ava dis­
O jovem Alexandre conquistou a índia . . . re presa a
fatos passados.
Ele sozinho?
César venceu os gauleses, Lembro-me de que quando me formei em História,
Não levava consigo nem ao menos o cozinheiro? dos meus professor�s dizi� que não podia nos falar da em 1960 , um
Revolução de
Felipe o Grande, chorou ao ver afundada a sua frota . . . 3�, porq�e el� havia
. .
parttctpado dela. Não podia falar, porque ainda
Ninguém mais chorou? nao era história; perdíamos assim a oportunidade de termos um
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos . . . mento, uma vivência, uma experiência da Revolução, porqudepoi­
Quem mais a venceu? e ele
achava que não podia fazer história, pois dela participara.
Uma vitória em cada página . . .
Quem cozinhava os banquetes da� vitórias? E�sa �erspectiva de ?ma história neutra, desprovida de supos
uma htstóna que recons�ttUta , o passado, levou à tos,
Um grande homem a cada dez anos, . . ênfase no político.
Quem pagava seus gastos? . . . a uma história de causalidade encadeada, a uma história de
causas e
conseqüências. Quem não se lembra do seu passado, quand
Uma pergunta para cada História" . . . (Beltolt Brecht) o muitos
professores de História enchiam o quadro-negro de "causas
e con­
Acho esse poema bastante comovente, pois, apesar de ter sido seqüências"!
escrito há anos, retrata uma preocupação que está presente no ensino e Essa perspectiva de causalidade no reconstruir a história está
na pesquisa de História: a de procurar investigar, trabalhar, escrever, profundamente associada a uma história positivista, que busca
a "re­
construir histórias que não sejam apenas a história de vilões e heróis, construção da história" e procura a "verdade" histórica nos docum
en­
como ainda está no ensino de 1 .º e 2.0 graus. Uma história que não tos. Esses supostos têm origem em uma corrente francesa que
seja apenas referente a feitos e obras dos grandes vultos e, por isso desenvolveu no final do s.éculo XIX, princípios do século XX se
: "Se
mesmo, uma história unicamente política. A predominância da história não há documentos, não há História". Assim , era preciso recon
struir,
política vem dessa valorização, eu diria excessiva, dos acontecimentos, buscar as provas, comprovar, apresentar, verificar hipóteses, . . . enfim
dos fatos, dos heróis, das pessoas, que fizeram isso ou aquilo . . . Esta todo esse linguajar que tem como suposto teórico a idéia de que ,
se
é a história que estamos acostumados a ver nos livros didáticos e que, está reconstruindo a História, tal qual eia aconteceu. E nesta visão,
infelizmente, ainda predomina no 1 .º e 2.º graus. de reconstruir a História tal qual aconteceu, sem supostos teóricos
-
o positivismo nega a Filosofia da História e o envolvimento do sujeito
Essa perspectiva tem sido bastante questionada. Pode-se até no processo d? conhecimento - e, sem que o pesquisador possa
demarcar sua inflexão, com o desenvolvimento dos cursos de pós-gra­ envolver, partici. par do processo de produçã'"1 do conhecimento, se
a
duação, no final das décadas de 60/70, que, certamente, fizeram causalidade é a única perspectiva que resta: é um
encadeamento de
tal questionamento e têm realizado trabalhos em outras direções. Pro­ fatos, como uma armadilha cronológica. Assim, o único critéri
o que
fundamente enraizada na escola positivista, na escola da neutralidade, o historiador positivista tem para organizar o seu trabalho é o
crono­
a história é, neste enfoque, encarada como a reconstrução do lógico. Coleta documentos, faz pesquisa, trabalhandõexaus
tivamente
acontecido. para a reconstrução da História. :f: por isso que temos as
histórias
1 20 121
--

contadas com princípio, meio e fim, com relações causais explícitas historiografia brasileira em que se concretiza essa crítica. Até então
entre um fato e outro. Nesse desencadear cronológico é evidente que tínhamos muitos historiadores que não pertenciam à ·Academia ma�
um acontecimento vira causa do outro, que, por sua vez, vira con­ que e��reviam e ainda escrevem, quer por diletantismo, quer por
.
seqüência do outro . . . E tudo vira uma armadilha, tendo como único proselitismo. Cita-se, entre eles, Caio Prado Junior, Nelson V. Sodré
critério, a cronologia e a racionalidade que se atribui ao processo, que introduziram novas perspectivas na História. Não os estou elas�
mas está na cabeça do historiador. sificando de positivistas, vejam bem, porque de certa forma introdu­
ziram grandes modificações metodológicas. Alguns deles, como Nelson
Na realidade, essa forma de trabalhar transcende o positivismo. V. Sodré, são de uma linha clara de adesão a projetos políticos, mar­
Podemos chamá-la até de neopositivista, porque ela ainda persiste na cad?� pela sua própria politização, o que sempre representa um fator
História com muito mais sofisticação e tem sido adotada por muitos positivo.
sociólogos e cientistas políticos que desenvolveram, por sua vez, me­
todologias e técnicas de trabalho para realizarem essa reconstrução. Essas abordagens históricas afetaram a Universidade ou talvez
Essa reconstituição tem de acompanhar, passo a passo, o acontecer ela não estava, ainda, sendo capaz de assimilar uma ou ;ra historio�
histórico. Nesse tipo de trabalho, não há premissas de qualquer grafia. � pós-graduação é que vem, então, concretizar mudanças de
suposto com o qual se trabalhou para fazer avançar a compreensão. perspec:ivas, quer através de exigências acadêmicas, quer através da
É sobretudo o que chamamos de "o historiador sem problemática". produçao dos professores a ela vinculados e das teses produzidas.
Por exemplo, o historiador que se decide por trabalhar a Revolução Com a vivência acadêmica, surgem historiadores como Helio
de 30 irá reconstruir os fatos de 28 a 32; daí, junta os dados e diz: Viana - considero-o como um dos maiores positivist;s - e Sergio
"A Revolução de 30 foi assim . . . "; isto é, ele não tem um problema Buarque de Holanda. Este último foi capaz de colocar uma outra
de investigação, mas apenas um tema, um assunto para relatar. pe:s�ectiva para a historiografia, com um tipo de produção mais en­
São essas questões que, de certa forma, ainda caracterizam parte saisttca do que uma grande investigação histórica. Ele levantou temas
da historiografia de hoje, com o uso até de técnicas quantitativas das importantes e trabalhou com eles de uma forma diferenciada da que
mais refinadas, do uso de computação, enfim, de produção do conhe­ se fazia até então.
cimento histórico, mas sempre com o objetivo de reconstruir, essen­ Faço aqui essa retrospectiva, para ampliar nossa discussão e para
cialmente através de documento s. mostrar a vocês que a década de 60 foi marcada por um debate muito
É importante que essas questões fiquem aqui bem marcadas, pois forte na área de história, sobre a questão da teoria. Que lugar ocupa
dela:; se desenvolveram outras linhas de aperfeiçoamento de técnicas a teoria na investigação histórica?
para se trabalhar com documentos. Aprendia-se, por exemplo, na dis­ Se para os positivistas· a teoria era negad� . atrapalhando mesmo
ciplina "Introdução à História", na graduação, que "os documentos a pesquisa e, com eles, toda a linha weberiana com a discussão de
têm que ser submetidos à crítica interna e à externa, e à externa : à que "é preciso se afastar do objeto, ir para a pesquisa desprovida de
prova de fidedignidade, de autenticidade etc." . . . porque se valoriza valores subjetivos"; para a teoria do materialismo histórico e outras
os documentos como prova da verdade histórica. correntes que se destacaram, a produção historiográfica é feita através
de supostos teóricos . � uma afirmativa que, ao mesmo tempu em que
A crítica a essa perspectiva aconteceu, essencialmente, com os
aponta um novo cammho para se trabalhar, faz também uma crítica
cursos de pós-graduação nas décadas de 60/70, como já me referi an­ ao positivismo e a uma história, que, até então, era predominantemente
teriormente, e representou um modo de ruptura na produção historio­
política. •

gráfica, porque essa população que, como vocês, tem de se iniciar


. nos procedimentos da disciplina e tem de realizar uma investigação; O materialismo histórico vem levantar a questão, sobretudo dos
e, além disso, por força da exigência acadêmica, precisam completar supostos e da construção da sociedade. E esta discussão, a de que a
essa investigação num produto, numa dissertação, tese etc . . . . pois produção do conhecimento é social, quer dizer . que- o historiador,
bem, nessa produção da pós-graduação está o primeiro momento na · ao produzir o conhecimento, está envolvido com ele a partir do seu

1 22 123
presente, a partir da sua pos1çao no social. Toda a produção do só falta introduzir a Austrália (risos) . . . desta forma, quem sabe agora
conhecimento é fruto de um contexto social e, como tal, carrega supos­ seremos capazes de inventar um outro currículo, já que não falta mais
tos, pressupostos. Ela carrega consigo, nesses supostos e pressupostos, nada para se introduzir, ou em última análise, arranjemos outra ma­
uma teoria sobre a história, uma filosofia sobre a vida, sobre o neira, outros critérios de questionar o currículo, pois, completando-se a
mundo e, portanto, sobre a história que, certamente, marcam perspectiva espacial, temos de arranjar um outro critério!
a investigação.
Na verdade, esta história dividida em periodizações clássicas nos
Esse tipo de discussão, creio que está presente em todas as ciên­ foi legada por herança, essencialmente da civilização ocidental européia
cias sociais, mas é bastante forte entre os historiadores. Eu marco cristã. E estas periodizações são relacionadas a um fato político -
isso, particularmente, porque, no caso brasileiro, está totalmente re­ colônia, império, república - ou independência.
ferida à minha geração. Cada um tem a tendência a periodizar, a
partir de si. Estou datando essa preocupação, essencialmente a partir Estas questões são importantes na medida em que nos mostram
da década de 60, porque muitos viveram essa perspectiva, ou aquilo que a história, até então, se edificava num tempo passado. Nessa
que trabalhamos enquanto estudantes, enquanto movimento estudantil. discussão sobre as ciências sociais e humanas, da divisão do trabalho
A minha formação política foi toda feita em cima de um desejo grande intelectual, com a criação da Antropologia, da Sociologia, da Admi­
de discutir, conhecer, compreender a realidade brasileira, coisa que nistração etc., divisão esta feita no final do século XIX e princípios
não se fazia na Universidade. Fazíamos, então, cursos paralelos, mo­ do século XX, sobra para a História, ou seja, a nossa fatia do bolo, o
vimentos, para discutir essa realidade. Essa politização da produção estudo do tempo, mas do tempo passado. A História passa então a
do conhecimento veio, então, de fora para dentro da Universidade, ser encarada como ciência que estuda os fatos e atos humanos no
de uma relação muito mais com o social do que, propriamente, com passado, esta a definição mais rotineira dessa disciplina. No entanto,
a Universidade. estudar os atos humanos já representou um certo avanço, pois, an­
teriormente, era apenas uma organização cronológica dos aconteci­
Desse caminho percorrido, é possível visualizar uma preocupação mentos, a partir do passado.
com a teoria, ou, mais especificamente, com a teoria da revolução
brasileira; esses eram os assuntos que discutíamos a respeito da nossa Levantamos assim, até agora, as questões da teoria, do como
realidade, esmiuçando vários modelos existentes. Daí, os primeiros investigar, a questão do tempo. Resta-nos discutir agora, uma outra,
documentos sobre análises de conjunturas, sobre a nossa situação a do acontecimento, para voltarmos à questão da verdade.
conjuntural serem documentos de organizações, produzidos em con­ Sendo o objeto da História o tempo, o que se procurava investigar
gressos, em encontros, fora da própria atividade acadêmica per se. era, essencialmente, as açqes dos homens no tempo. No entanto, não
Esses movimentos eram muito presentes e acho que as grandes eram todas as ações, mas aquelas que marcaram ou se destacaram em
derrotas políticas da década de 60 fizeram com que nos voltássemos determinados momentos, enfim, que marcaram época, já que competia
mais para ·a produção acadêmica, num · grande repensar da história, à Sociologia estudar todas as ações humanas no presente. Há uma
da produção etc. E esta é, mais ou menos, a situação do contexto certa confusão nos limites dessas definições, relativos a um delinea­
em que eu vejo o debate sobre a teoria dentro da História. Eu me mento claro entre essas disciplinas, mas, para algumas pessoas, isso é
formei em 6 1 , sem jamais ter estudado Metodologia, ou Filosofia da aceito e verossímil; tanto que, algumas obras que tratam do presente
História. A Filosofia, estudávamos esparsamente, com dosagem maior historicamente são recusadas como obras de História e passam a ser
da História da Filosofia, em detrimento da Filosofia da História. Não de Sociologia. Basta ver nas classificações das õibliotecas, nas arruma­
tínhamos, absolutamente, nenhuma discussão sobre a teoria. Estudá­ ções das livrarias, que tudo o que é recente historicamente passa a
vamos o desenvolvimento da idéia de história, consultando alguns au­
ser considerado da área de Sociologia.
tores, na discipHna " Introdução''. Nas demais, os conteúdos eram
relativos à História Antiga, Medieval, Moderna, Contemporânea . . . Partindo, sobretudo, de uma concepção, de que-o conhecimento
Brasil, América. Hoje, os cursos mais aperfeiçoados têm Ásia e Africa, é produzido socialmente, e que o historiador, ao produzir o seu conhe-

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cimento sobre qualquer tempo, estará trabalhando a perspectiva do Essa nova percepção de qu� o que estamos investigando é o resul­
passado com o seu presente, levantou-se a questão de que cada gera­ tado de um questionamento, de uma angústia do presenfe, que as ques­
ção tinha de escrever a sua história - já que havia abordagens tões são relat �vas ª? "aqui e ao agora'', que os nossos supostos,
.
diferentes - questionando _sempre o seu passado. Existe até um texto perspectivas, sao socialmente produzidas, faz então cair uma série de
clássico de Schaff: "Por que reescrevemos continuamente a História" . mitos da historiografia positivista. Um deles, bastante discutido e
A justificativa era de que cada geração tem uma problematização do que inclusive chega a provocar uma outra divisão, é a questão da
passado e, portanto, deve reescrever a História. E isso representou um · verdade histórica.
passo importante, pois percebeu-se que havia possibilidades de inves­ Para os positivistas e neopositivistas, a verdade histórica é a
tigação ou formas de se trabalhar com o passado, que poderiam nos ess�ncia do trabalho. No entanto, dentro do enfoque do compromisso
dar respostas diferentes. É o caso do aluno que pergunta: " Professora, s�c1al, da postu:a em que o conhecimento é produzido socialmente,
no ano passado aprendi diferente, a história mudou?" . . . �a . uma co�ce�ç�o de verdade que é substituída pelas palavras "obje­
.
tividade, c1enc1a . E, de certa forma, aí está presente uma perspectiva
Na visão mais ampla do positivismo, do neopositivismo, isto
representou um avanço. Antes, tinha-se a idéia de . que esse conheci­ de que há determinadas categorias a serem recuperadas, que as grandes
mento deveria ser pronto, acabado, definitivo e o papel do historiador l �nhas e definições podem ser recuperadas com objetividade, garan­
era o de exaurir toda a documentação existente. Em casos de teses, tmdo a essas pesquisas um caráter igualmente científico. O científico
era comum pedir-se desculpas, com a alegação da dificuldade ou falta é aqui tomado como sinônimo de verdade - pois, neste enfoque, fica
de se encontrar determinado documento. Nessa visão, a possibilidade claro que o que não é ciência é ideologia -; a palavra "ciência"
de reescrever é dada apenas pela descoberta de novos documentos, ou é substituída pela palavra "verdade". Em seu livro História e verdade
de outras fontes. O que se escreveu, então, tinha um caráter definitivo, Schaff ( 1 98 1 ) lida com a idéia de verdades parciais, que cada historia�
pronto e acabado. Os livros representavam a consagração da palavra dor busca em sua trajetória e que só tendem a caminhar para uma
escrita. verdade, em algum ponto do futuro, supondo então que, no futuro,
haverá uma verdade maior, verdadeira. O que nos leva a crer que,
A reação a esta visão, em que o historiador pode trabalhar com em correntes mais recentes da historiografia, há maior percepção de
qualquer momento do tempo, aparece na discussão da contempora­ que existe um conhecimento a ser recuperado, reconstruído por pe­
neidade, em que o historiador lida com o tempo histórico do passado quenos temas que, interligando-se, tendem a chegar a uma história
e do presente. Esta relação - de passado e presente - se estabelece verdadeiramente científica. Como exemplo, temos todas as questões
na busca do conhecimento, de maneira a se questionar o passado do proletariado, já bastante estudadas.
numa série de questões que são do "agora". Nes_se particular, há '
uma série de teses de W. Benjamin sobre a história, que apesar de Percebe-se existir nessa perspectiva a idéia de um saber cumu­
serem da década de 30, já insistia em que "a História não é uma lativo, enquanto na primeira a idéia era um saber finito, acabado,
busca de um tempo homogêneo e vazio, preenchido pelo historiador pronto, definido . . . O conhecimento passa a ser incorporado de
com a sua visão dos acontecimentos, mas é muito mais uma busca de maneira mais ou menos crítica pelos estu.diosos, dentro de um uni­
respostas para 'os agoras'. A História é um imenso campo de possi­ verso de discussão, como produção social. Esse enfoque abrange não
bilidades onde inúmeros 'agoras' irão questionar momentos, trabalhar só o materialismo histórico, mas uma série de outras correntes, que
perspectivas, investigar pressupostos . . . " (Benjamin, 1986) . marcam até hoje a produção historiográfica, surgindo contestações na
produção mais recente.
Essa maneira diferente de perceber a História provoca, de certa
maneira, uma reação muito grande, pois a partir desse novo enfoque Critica-se o positivismo, mas essa grande valorização momentânea
o historiador pode lidar com o presente. Como exemplo clássico, da teoria gerou, de outro lado, uma infinidade de teses compostas de
temos aí as obras de Marx, que escreveu sobre as lutas de classe um capítulo teórico muito grande e de três bem positivistas, com uma
.
na França e demais acontecimentos que ele mesmo estava vivendo. conclusão que diz respeito à introdução . . . São frutos de trabalho

126 127
dessa miscelânea de concepções. Enquanto professores dessa geração -, precisamos de uma outra problemática, que vem de uma outra
que somos, também passamos até por um excesso 4e teoricismo, indagação sobre o real, para não se correr o risco de fazer uma falsa
porque aprendemos buscando caminhos para avançar, e era natural problemática, ou de ficar meramente no campo da produção intelectual
que buscássemos preencher lacunas, recuperar o tempo perdido etc. e, portanto, da abstração exclusiva.
A preocupação em dar uma justa medida do lugar da teoria, �a Há historiadores que, por não terem problemática, optam por
perspectiva da investigação histórica, está bast?nte presente n � �is­ trabalhar, por exemplo, com "Movimentos sociais na década de 20".
cussão dos historiadores e, de certa forma, funciona como um divisor E para tal trabalho será preciso documentar-se e investigar muito,
de águas, pois temos aí uma visão exacerbada da teoria co1:11o �m compreender os acontecimentos para problematizar. Para isso, o
modelo que resolve todos os problemas, as grandes determmaçoes historiador deve, senão explicitar, pelo menos ter consciência de seus
dadas desenvolvidas por grandes nomes contidos nos clássicos. A volta supostos teóricos, pois, sem essa fundamentação teórica, ele não pro­
aos clássicos representa uma volta à teoria em sua forma mais perfeita, blematiza, mas apenas periodiza ou junta acontecimentos. Es�a
desprezando-se, de certa forma, os trabalhos subseqüentes ou até

preocupação está sempre aliada à necessidade de teorizar, quer dizer,
negando-se esses trabalhos, para recuperar os desvios cometidos por
.

reconhecer a importância da teoria. Mas é impossível fazê-lo sem o


autores pós-marxistas. contato com o real, sem testar a viabilidade da problemática, imedia­
Tenta-se reconstruir o modelo teórico da disciplina social, dentro tamente, enquamo se faz o projeto. Essa problematização é um ponto
do desenvolvimento do materialismo histórico; daí a divisão de leituras de partida para o trabalho, e não apenas uma referência em cima da
que se faz do Jovem Marx e do Velho Marx. E essa visão do mate­ historiografia ou dos livros que já foram escritos. Passa-se, em outras
rialismo histórico chega até vocês como perspectivas de se estudar palavras, pelo teste do real, mas apoiado na teoria, nos supostos·teóricos
a questão da educação, desde os modelos reprodutivistas até � esco�a fundamentais, que têm a ver com o presente que quero compreender,
como aparelho ideológico do Estado - que fundamentam a discussao com minha vivência presente. .
de que a teoria é algo de que nos apropriamos no abstrato. O campo da história - o que Walter Benjamin diz muito bem
o sujeito tem então de desenvolver a teoria, se instrumentar - é um campo de possibilidades que vai ser trabalhado com "os
nela, e, com isso, há pessoas que levam anos e anos para fazer uma agoras" a serem investigados. Abandono então a idéia de que vou
pesquisa, pois não se sentem preparadas teoricamente p �ra fa�er m�a reconstruir o passado tal qual aconteceu - mesmo porque isso é
investigação. Daí, devem devorar livros, cada vez mais, pois estao impossível mas, ao mesmo tempo, o que faço do passado é uma
presas à idéia de que existe uma teori� para ser captada, no abs�rato,
-·,

leitura, em termos de referências recentes, que abrangem o hoje e o


pela via do pensamento, que se exercita ne�e mesi:io. M�s e�te e um agora, com perspectivas sociais, teóricas, ou uma concepção de vida,
momento típico de insegurança da perspectiva �e m_vestigaçao, e. sua de mundo . . . E trabalhar por este ângulo é trabalhar a história de
superação está na compreensão de que todo hist?ria�or tem �i?nte uma forma, reconhecendo que nela existe toda uma diversidade de
de si 0 sóêial, a sociedade; portanto, a problematizaçao necessana a abordagens. Posso me valer de uma série de informações que existem
toda e qualquer investigação será e deve ser fruto de um ques�iona­ em outras correntes, mas devo desenvolver um processo coerente dentro
mento e uma indagação sobre o real e não apenas sobre a teoria ou dessa minha abordagem. A coerência, em qualquer abordagem que se
a bibliografia. A verificação do que um autor investigou ou deixou faça, contribui para avançar o conhecimento numa determinada direção,
de investigar diz respeito à bibliografia e não ao real. Se não supe­ reconhecendo que essa direção não esgota o processo histórico. E isso
rarmos isso, ficaremos no imobilismo ou na repetição da bibliografia, · implica uma leitura, uma perspectiva colocada, . uma indagação, uma
ou questionaremos apenas a historiografia produzida sobre o tema, o problematização, que vai me dar, no caminho de volta da investigação,
uma série de subsídios para desenvolver o meu trabalho, e também aí
que também pode nos levar a uma falsa problemática.
se está construindo a teoria.
Para problematizar a historiografia ou fazer uma tese historiográ­ Com essas questões, vocês podem perceber que a concepção de
fica, ou mesmo bibliográfica - que creio ser comum em Educação verdade sofre uma grande mudança, como também a aceitação do
128
· 129
que vem a ser o resultado da produção do conheciment? , além da riores, hierarquicamente, mas também aquelas manifestações que são
concepção, não só de ciência, como de valor do conhecimento pro- do movimento social. Esses movimentos, muitas vezes, podem apre­
duzido. sentar características até mais claras que os movimentos sindicais e
Fizemos referência à idéia de uma verdade absoluta, à idéia de devem ser levados em conta, se queremos trabalhar com a experiência.
uma verdade cumulativa, e agora, uma concepção última, que não Aprendemos, assim, com esse e com outros autores, a conceber
busca a verdade, mas faz uma leitura do tempo histórico, a partir a formação da sociedade como algo que diz muito mais respeito ao
de uma perspectiva de interesses do presente e, como tal, não tem
preocupação de se estabelecer como ve�dade. Para esta ��tima , �er�
cotidiano da vida, das experiências.
. . �
pectiva, não há necessidade de evidenciar a verdade, o cientifico, Em A miséria da teoria, Thompson tem um capítulo sobre "o
.
ou outros rótulos. Lida-se com a produção do conhecimento atraves termo ausente em Marx: a experiência". Ele levanta a importância
de uma forma um pouco mais livre de se fazer a leitura do tempo da questão da experiência social vivida pelos indivíduos reais, no
histórico. seu cotidiano. Com isso, não resta dúvida, se ampliam bastante nossas
categorias a respeito de documentação, fontes, temas, periodização etc.
Thompson, em sua obra A miséria da teoria (Thompson, 198 �) , E quando se toma essa perspectiva de trabalho, com esses elementos
faz u m debate com Althusser, cuja discussão se centraliza na questao que constituem a grande discussão da História, como já coloquei ante­
da oonstrução do objeto histórico e o que seri,a o fazer histórico; .no riormente, a periodização será diferente, os temas serão também colo­
sentido de perceber as ações. No caso, ele esta estudando a tematica cados de outra maneira, e assim a problemática de pesquisa será
da classe operária. Evidentemente, tem uma outra con�epção de classe, produzida a partir dos interesses do hoje, do agora, para se explorar
que não passa pela idéia de que a classe se organiza, tem ou nao _
nesse imenso campo de possibilidades. Quando me situo nesse campo
consciência, tem o seu partido como referência. Procura mostrar que vasto de possibilidades, a minha visão, meus passos de pesquisa na
a classe se faz assim mesmo, isto é, está sempre presente no seu investigação vão estar muito mais ampliados, para reconhecer a impor­
fazer desenvolve as suas práticas e experiências na prática cotidiana . tância do social e de outros elementos igualmente importantes, porque
S ó a;sim ela s e concretiza historicamente e não apenas através d e par­ fazem parte da experiência social vivenciada pelos indivíduos. E esta,
tidos ou sindicatos. Esta visão se contrapõe à idéia de que ela é apenas por sua vez, é que produz a consciência.
classe se houver partido ou que luta apenas quando toma consciência,
ou se confronta com o regime. Thompson é claro quando coloca que dessa experiência surge a
conscientização e não o contrário, ou seja, adquirir consciência para
Segundo Thompson, é o fazer que identifica a classe, com homens depois lutar. Pode-se conceber esse forjar do cotidiano, da luta de
reais vivendo suas experiências cotidianas. E essas experiências, abso­ classes que está aí, como " cultura", abrangendo o modo de vida e a
lutar:iente, não podem ser todas elas traduzidas apenas através de luta de classes na sociedade capitalista em que vivemos.
movimentos políticos, ou no partido, associação ou sindicatos etc. O
seu movimento no cotidiano, de se fazer historicamente, está presente Levanta-se assim o problema das fontes, da documentação, grande
em todas as suas ações, considerando que o movimento social é mais problema do historiador; Os fatos, os documentos, existem como evi­
amplo que o operário (Thompson, 1 987) . dências dos acontecimentos e ainda, segundo Thompson, os fatos não
estão inseridos no social como fatos brutos, que basta apenas documen­
Na realidade social, a perspectiva de se fazer avançar qualquer tar ou colecionar. Quem constrói os fatos é o historiador; do seu diá­
tentativa de modificação· das estruturas, de mudança social, é levada logo com as evidências é que se produzem os fátos históricos, inseridos
por inúmeros elementos do social, que s� organi,z�m das for�as m�is ou não no passado. Os fatos não têm voz em si mesmos, como diziam
variadas, que partem dos problemas mais especificos ou mais gerais; os positivistas. Quem dá voz aos fatos é o historiador, interrogando
tentam avançar por reivindicações específicas e é isso que é interessante as evidências. Concebendo a construção da classe como cultura no
recuperar, não só a história das instituições, dos sindicatos, dos par­ cotidiano, levantam-se inúmeras fontes que o historiador tradicional
tidos, das greves, ou seja, apenas as manifestações consideradas supe- seria incapaz de considerar.
130
131
Um aspecto interessante investigado por Thompson é um momento Aluna: Prof. Dea, que outras linhas temos hoje; além do materialismo
de crise na Inglaterra em princípios do século XIX, em que os tra­ histórico?
balhadores tiveram de modificar os hábitos alimentares, passando a
cõnsumir batata em vez de trigo. Em termos de vivência cotidiana, Prof.ª Dea: São várias. Em termos bem rápidos, temos
a Nova História
Thompson mostra, no sistema de valores desse grupo, o que significou francesa, que é a herdeira do grupo dos Anais. Bloch, Braud
el
Febvre, a partir da década de 30, desenvolveram uma perspectiv
de expropriação, de desajuste social, de desvalorização social, o fato
de superar a história política. Chamavam-se os "grupos dos Anais

de se deixar de comer pão e passar a comer batatas, ou quem é que
podia comer pão . . . Ele mostra também, através de um dado do coti­ :conômic�s � sociais", e são distintos os seus trabalhos, quer na
diano da vida desses trabalhadores, como se forjou uma experiência area econom1ca, quer na social . Caminharam por várias linhas
,
social no fato de consumir ou não batatas, e todo o sentimento de entre elas as de maior preocupação com a história das mentalida­
perda de status social ou de valorização social e os valores daí des, realizando estudos medievalistas, com trabalhos muito inte­
decorrentes. res�antes na área em relação à atribuição dos significados que
Thompson também examina os motins, os protestos, sem deixar teriam os gestos, as vestes, na cultura medieval, como também
de lado os provérbios, poesias, canções, festejos e, como resultado, o todo o simbolismo dos festejos medievais, no intuito de resgatar
forjar de classe, em contradição com a persistência de determinados uma maior compreensão dessas representações imaginárias na
valores num movimento dialético: a forma como o novo vai se cons­ Idade Média .
truindo e o velho vai sendo expropriado, numa configuração de luta,
que reeduca uma população, aí resiste à dominação. Ele nos dá uma Como vocês vêem, a Nova História tem em si diferentes abor­
visão que amplia a idéia de formação de classe, exclusivamente pelo dagens. Nessa mesma linha, outros autores investigam sobre a
viés econômico. representação dos rituais diante da vida e da morte . . . Diferen­
tes também são os enfoques de Arries, que discute a história social
Concluindo, as fontes históricas são apenas evidências de momen­ e as atitudes diante da família e da criança no cotidiano.
tos de experiências de vida e, para serem recuperadas e trazidas à
nossa perspectiva, ao definir o objeto, elas têm de ser trazidas a partir A Nova História francesa representa uma variedade de gru­
de questionamentos, pois só assim os fatos vão responder com sua pos, que abarca desde a história das mentalidades até a do coti­
própria voz, através de perguntas feitas pelo historiador. :E: uma inte­ diano, dos gestos etc.
ração dialética entre o pesquisador e a sua evidência que produz o
conhecimento histórico. Há várias formas de se questionar as evidên­ Temos também o grupo de historiadores ingleses, que tam­
cias, mas o diálogo constante deve ser mantido, além de se manter bém se subdividem em várias linhas de · trabalhos e que fazem
também a coerência da lógica histórica; ou seja, no uso de deter­ um questionamento muito grande, essencialmente à teoria marxis­
minados iQ.strumentos, na formulação de questões embasadas numa ta. Representam as discussões que superam o marxismo e avan­
teoria ou fundamentação teórica, ou ainda em determinados pressu­ ç:ram em outras direções. Entre esses historiadores, há os que
postos. :E: evidente que a lógica histórica implica também uma limi­ tem uma preocupação maior em desenvolver os seus trabalhos
tação de referências apropriadas ao momento histórico. Não se pode baseados na revolução industrial e na formação e desenvolvi­
perguntar, por exemplo, como era a cultura de massa no princípio do mento da classe operária, como Thompson, Hobsbawm, Christo­
século XIX, pois esta não existia. E é justamente esta a questão da �her Hill etc. Seus estudos enfocam principalmente a revolução
lógica histórica. mglesa, a revolução industrial e a formação da· classe operária
Precisamos nos valer de bibliografias, até mesmo para avançar a inglesa. São historiadores que se consideram dentro de uma tra­
investigação, mas não problemadzar exclusivamente a bibliografia e dição marxista, não propriamente uma ortodoxia, mas entendendo
sim o real, além do diálogo constante entre as premissas do historiador essa tradição como o desenvolvimento e avanço dateoria marxista,
e as evidências, consubstanciadas sempre na lógica histórica. desvinculado do stalinismo. ·

132
133
legia� li­ Aluna: Professora, em sua visão, que papel o professor tem hoje nas
Há historiadores que, nesse mesmo enfoque, privi lm�a.
um dos expo entes dessa escolas de 1 .º e 2 .º graus, e o que nos tem a dizer em relação aos
nhas mais rígidas. Perry Andersen é
Mas , no geral, todos eles caracteriz am-s e por enf � car o soc i__al, conteúdos e programas existentes?
baseados em Mar x, procurando não divid ir esse socia � em
. tan­
m � Prof.ª Dea: A questão dos conteúdos é o grande drama das escolas,
seja, 0 econ ômic o, o social, o polít ico, a ideologia, a
cias, ou porque, mesmo que se queira passar um tipo de conhecimento
infra-estrutura etc. totalizador, o que é impossível, o professor, como o historiador,
tionados,
Além desses, há outros que, ainda que bastante ques seleciona, divide, periodiza, ou seja, ele constrói uma história.
seguem linhas teóricas sem transform á-las em i:nodelo s;
� oucault; Esse procedimento é bastante comum no 1 .º e 2.º graus, onde o
os marx ista class ices esta professor passa essa construção como se fosse a história toda.
por exemplo. A diferença destes com �
do
socie dade basea
essencialmente na proposição de um estudo da que na Os conteúdos deveriam ser construídos pelo professor com
mais do
nas origens do iluminismo, o século das luzes, seus alunos; no entanto, ele é sempre obrigado a seguir progra­
revolução industrial per se. mas, não se desenvolve um raciocínio histórico, nem se pensa
a leitura do "aqui, agora ", historicamente. Existe um conhecimento que se quer construir,
Aluna: Como é, para a Prof.ª Dea Fenellon, produzir, dentro de possibilidades, e o professor deve ser incen­
a senhora
em conexão com o passado histórico? Gostaria que tivado a buscar suas definições em conjunto com seus alunos.
esse proce sso, na
explicitasse um pouco mais o que vem a ser
sua visão. (Uma das alunas presentes pede orientação à professora Dea sobre um
, trabalho de pesquisa que está realizando em sua cidade. É um estudo de
Prof. ª Dea: Não sei se chego u até vocês algum conhecimento da pro­ retrospectiva histórica, resgate de memória . . . Embora algumas inter­
an passado.
posta curricular do ensino de História no 1 .º grau, do ? ferências externas tenham dificultado o entendimento claro da questão
a parti r de um colocada, pude captar a fala da Prof.11 Dea, bastante interessante e escla­
Propusemos, apesar de algumas críticas, que,
objeto definido - o trabalho, rio pres�nte -, . se, � esenv olves�e recedora para este tipo de trabalho. )

uma preocupação de se ensinar e pesquisar a hi�tona


e, ª. partll" Prof.ª Dea: Num estudo de retrospectivas históricas é importante uma
di nento
dessa discussão, no intuito de se buscar um ma10r enten : n­ análise de evidências, de documentos existentes e "não-existentes",
difere
de como 0 trabalho se situa hoje, poder-se-ia percorrer de relatos de memórias existentes, como também das não-existen­
sem neces sariam ente levan tar­ tes, e todo o processo de dominação diante disso, pois você nos
tes momentos com essa questão,
mos toda a origem universal do traba lho. relata que principalme.nte entre os operários está sentindo dificul­
Assim, dependendo do tipo de pesquisa que se quer desen­ dades em colher depoimentos, por razões inexeqüíveis. É bom
investigar o que está por trás desse silêncio, as razões desse
volver de acordo com os interesses dos alunos, os professores
poderiam incluir temáticas relativas à sociedade fabril, ao comér­
silêncio.
cio, ao campo, à cidade de hoje. E isso não justifica a cons,t�nte A legislação também é outro exemplo; se vê apenas a lei que
necessidade de fazer-se uma busca das origens dessas tematicas foi adotada, o seu efeito, sem uma averiguação maior de todo o
em povos antigos - a não ser que se queir� �a? er como outros processo que conduz à adoção da lei. Seria bom se nos acostumás­
,
homens trabàlharam em outros momentos histoncos (e ai a pes­ semos a não considerar as instituições como coisas dadas, no
quisa é diferente, pois atende aos interesses do hoje e do agora) · real, e deduzir delas na prática, mas procurar entender o processo
Nossa intenção foi tentar desenvolver as habilidades cogni­ que as constituiu, as necessidades etc.
tivas que permitam o raciocínio histórico, � p��sar histor�camen­ Na área educacional, poderíamos questionar__çomo chegamos
te, e não apenas o conhecimento de uma historia acontecida que à necessidade e prática desta escola, e como se chegou às leis
acaba sendo a história oficial. que a regem hoje. Evidentemente, houve muitos projetos derrota-

1 34 135

1
..
dos, muitas alternativas a serem escolhidas, e esta vencedora se
configura em si, num processo histórico, como a única. Fica-se,
certamente, com uma perspectiva parcial, pois na verdade esta
é a proposta vencedora.
Os trabalhos com a literatura, com filmes reconstituídos, fo­
tografias, poesias, panfletos, literatura de cordel, romances ditos 9
populares constituem documentos importantes para reconstruções
históricas e no Brasil pouco se lança mão desses objetos, prefe­ PESQUISA PARTICIPANTE:
rindo-se as fontes oficiais.*
]:\EPONDO QUESTÕES
TEORICQ,MEIDDOLÓGICAS
Referências bibliográficas
Olinda Maria Noronha
BENJAMIN, Walter. "Sobre o conceito de história". Magia e técnica, arte e UNICAMP
política. São Paulo, Brasiliense, 1986.
SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo, Martins Fontes, 1 9 8 1 .
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 198 1 .
----- . A formação da classe operária inglesa. São Paulo, Paz e Terra,
1987.

* Transcrição e organização: Mercedes A. Berardi

136
O propósito destas reflexões é o de resgatar a importância da
discussão teórico-metodológica para a compreensão do campo da pes­
quisa participante entendida como a "alternativa epistemológica na
qual pesquisadores e pesquisados seriam sujeitos ativos da produção
do conhecimento" (Veiga, 1 985) .
A discussão sobre essa questão não é recente, tendo sido já objeto
de reflexões por parte de muitos pesquisadores- interessados em fazer
avançar o nível de clareza das questões que envolvem esse campo de
investigação. Recuperamos aqui a crítica de apenas alguns deles, com
o objetivo de repor o problema para discussão. (Cardoso, 1 986) res­
salta que um dos limites desse tipo de investigação está na condução
da pesquisa a uma postura eclética e pragmática desqualificando como
ocioso o debate sobre os compromissos teóricos que cada método supõe.
Reconhece contudo a importância desse campo de pesquisa para a crí­
tica ao economicismo e aos estruturalismos (cÓm os limites postos,
por, deixar de ir à raiz das questões metodológicas), bem como a con­
tribuição que o trabalho de campo traz com a presença dos atores
sociais. Alerta no entanto para os limites da subjetividade como instru­
mento de conhecimento e para a desqualificação do critério de avalia­
ção de pesquisas na medida em que nesse tipo de abordagem pode

139
levar a desvios do tipo: ( . . . ) "um pesquisador capaz de uma 'boa ' çar um pouco mais em direção a esses fundamentos epistemológicos
interação com as minorias ou grupos populares será sempre um porta­ poderíamos dizer que a raiz de toda essa polêmica está na relação
voz de seus anseios e carências, logo, de sua 'verdade'. Sua função é sujeito-objeto. � importante, por conseguinte, que se resgate o caráter
tornar visível aquelas situações de vida que estão escondidas e que, relacional do processo de construção do conhecimento. Isto significa
só por virem à luz, são elementos de denúncia do 'status quo"'. considerar que há um sujeito informado historicamente que se rela­
ciona com o objeto construindo-o e sendo ao mesmo tempo construído
Ainda nesta direção crítica se encaminham as reflexões de Veiga, nesse processo. · A controvérsia sobre a dualidade sujeito-objeto tem
1 985), ao considerar que muitos dos postulantes desse tipo de pesqui­ que ser superada tanto a nível da teoria quanto da prática, sob pena
sa, por rejeitarem a perspectiva neopositivista, por criticarem uma de não avançarmos nem do ponto de vista do conhecimento nem da
postura de falsa neutralidade axiológica e epistemológica postulada por . direção dos movimentos de construção da identidade de classe dos
muitos cientistas sociais, por desejarem romper com a divisão social segmentos "subalternos". A relação dialética sujeito-objeto tem como
do trabalho a que fomos submetidos, tendem a cometer um outro tipo pressuposto que a teoria se altera no trânsito com a realidade, assim
de equívoco : negam o seu papel ativo de sujeito cognoscente e preten­ como esta também se altera com a teoria.
dem captar a realidade sem a intermediação de categorias analíticas, A produção do conhecimento, portanto, não pode ser diluída na
como se isso fosse possível. Ou seja, ao combater o cientificismo necessidade histórica de intervenção imediata no processo social para
também combatem a própria idéia de pesquisa científica. Deve-se transformá-lo. Torna-se necessário, nessa relação, discernir o campo
então, evitar o regresso, as posturas anticientíficas, "espontaneístas" ou próprio da produção do conhecimento, do nível de intervenção no
"populistas''. Uma adequada compreensão do saber popular não deve processo, para transformá-lo.
alimentar as posições antiteóricas e antiintelectuais. Estes seriam os
dois perigos que no seu entender esta alternativa teórico-metodológica O próprio Marx (Thiollent, 1982) já nos alertava para o fato de
que "a contradição capitalista só pode desenvolver de maneira revo­
estaria correndo, além da imprecisão conceitua! de que são impregna­ lucionária pela tomada de consciência da exploração e pela luta orga­
das essas pesquisas que surgem como relatos e registros de dep_oimen­ nizada. O problema é, então, o de estabelecer entre esses dois elemen­
tos, porque os analistas não querem impor suas categorias de inter­ tos uma relação de complementaridade, pois o proletariado tem a seu
pretação dos fenômenos analisados. favor o número, que é fator de sucesso, mas o número só tem peso
Achamos oportuna, ainda, a análise feita por (Durhan, 1 986) que quando é organizado em unidades e dirigido pelo saber".
chama a atenção sobre uma "armadilha positivista" embutida no pro­ Nesse sentido a diluição do saber na participação/intervenção fun­
cesso de identificação subjetiva com as populações estudadas. Afirma ciona tanto a nível da ciência, quanto no avanço da consciência cole­
ainda, que, ao mesmo tempo em que antropólogos se politizam na tiva, mais como obstáculo do que como favorecimento.
prática de campo, através de seu engajamento crescente nas lutas tra­
vadas pelas populações que estudam, despolitizam os conceitos com Torna-se necessário, portanto, transformar a "verdade prática" em
os quais operam retirando-os da matriz histórica na qual foram gera­ verdade teórica para que a primeira ganhe um conteúdo revolucionário.
dos, projetando-os no campo a-histórico da cultura. Sair desse impasse Nesse sentido, concordamos com (Lefebvre, 1 953), ao dizer que
significa dissolver essa visão colada à realidade imediata e à experiên­ a sociabilidade capitalista constrói uma realidade urbana fragmentada,
cia vivida das populações com as quais trabalhamos, não nos conten­ um espaço controlado e que nesse espaço, metoaológica (e espistemo­
tando com a descrição da forma pela qual os fenômenos se apresentam, logicamente), se instala o conflito entre o vivido sem conceito e o
mas investigando o modo pelo qual são produzidos. conceito sem vida. Uns dispensam-se de pensar e outros dispensam-se
Gostaríamos de ampliar um pouco mais estas reflexões epistemo­ de viver. E essa controvérsia terminou por se instalar. na atividade
lógicas retomando o caráter intermediador das categorias analíticas no científica escamoteando a verdadeira questão que a produz e condu­
processo de construção do conhecimento científico. Procurando avan- zindo o debate para o nível da superfície.

140 141
É urgente, portanto, repensar as maneiras de superação dessa polê­ Ao se buscar construir categorias de análise que articulem a histo­
. .
mica tanto a nível teórico-metodológico quanto a nível das práticas nc1dade do cotidiano à história do movimento social estamos desen­
e dos debates. voI;e�?0 nao_ apenas um esforço de investigação que critica o sistema
capita 1sta de produção mas também uma ação política contrária a
� Lefebvre mesmo quem nos responde que a superação desta esse modo de ordenação de mundo.
contradição se dá ao nível das relações sociais de produção (que não
se localiza só na empresa, no local de trabalho ou nas relações de Pe�samos, para concluir, que a pesquisa participante/intervenção
trabalho) mas em toda a sociedade; é todo o espaço ocupado pelo neo­ so, a dqutre de fato esse estatuto, ao superar o seu nível de imediatez
.
capitalismo setorizado, reduzido a um meio aparentemente homogêneo ao consegmr empreender essa tarefa de ligar orgânica e metodologica­
.
mente o Cotidiano à História.
mas profundamente fragmentado, reduzido a pedaços.
É fundamental portanto que o pesquisador não assuma esses "pe­ Referências bibliográficas
daços" como objeto de pesquisa, mas que trabalhe com a categoria de CARDOS�, Ruth. A venturas de Antropólogos
em Campo ou como escapar das
totalidade, que se faça o esforço metodológico de articular Cotidiano armadil�as meto , do. A Aventura
Antropológica; (org. ) Ruth Cardoso
e História (Heller, 1 982) . de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 9 5 1 05 . R'10 ·

DURHAN, Eunice. � Pesquisa Antropológica


-

Em nosso estudo (Noronha, 1 984) procuramos nos deter nesta com Populações Urbanas. A A v
tu ra Antropolo,g1ca ; (org. ) Ruth
Cardoso. Rio de Janeiro, Paz e Ter� �

articulação entre Cotidiano e História, quando discutimos nas questões l 9 8 6' p. 17-37. '
metodológicas que, se por um lado, a vida cotidiana constitui uma HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História.
Rio de Janeiro' Paz e Terra, 1985,
das principais formas de manifestação da história e da possibilidade 2.a ed.
de transformação da realidade, por outro, é difícil ao pesquisador, •.Para Mudar a Vida. São Paulo, Brasi
liense: 1982 .
quando trabalha com sujeitos particulares, evitar o risco de perder-se LANZARDO, Dario. Marx e a Enquete Oper
ária. THIOLLENT M e.- 11t1ca
Metodológ1ca,
' /nvest1gaçao Social e Enquete
· ' ·

no cotidiano. Nci entanto, esse esforço de investigação é necessário


·

Operária ' São Paulo' pO rIS,


-

1982, p. 233-246.
para fazer emergir aspectos reveladores da exploração e da aprendi­ LEFE�VRE, He�ri. A Re-produção das Relaç
zagem da experiência de classe. . ões de Produção. Porto' Publica-
çoes Escorpiao, 1973.
Nessa direção, achamos oportuna a observação de (Lanzardo, �
NORO HA, O.�. De Camfonesa a 'Madame':
traba
sa er no me10 rural. Sao Paulo, Loyola, 1984 lho feminino e relações de
1982) "ao dizer que os operários (trabalhadores) são os únicos capazes
de descrever convenientemente as condições nas quais são explorados,
��
VEI · La�ra da. Educação, Movimentos
. .
Populares e Pesquisa Participante
ucaçao na América Latina. Felícia ·

R. Made
(coordenadores ) , São Paulo, Cortez/Autores ira Guiomar N d MeII
Marx faz mais do que indicar um simples procedimento operatório.
Coloca o princípio de um método de trabalho político, que se encontra
Assodiados, 1985, �. �
87 2o - t
implicitamente na Crítica da Economia Política".
O fundamental nesse processo de construção do conhecimento é
ligar o Cotidiano, rico de determinações históricas à História, ou seja,
"por uma análise crítica do processo de produção do capitalista, fazer
reaparecer a verdadeira natureza da contradição e fornecer um ponto
preciso de referência à luta de classes" (Lanzardo, 1 982) .
É importante que o trabalhador compreenda que é somente através
da tomada de consciência da exploração que se pode ultrapassar os
limites do puro e simples conflito cotidiano contra a exploração.

142
1 43
10

REFLEXÕES MElDDOLÓGICAS SOBRE


A TESE: "INTERDISCIPLINARIDADE
- UM PROJE1D EM PARCERIA'.'

Ivani Catarina Arantes Fazenda


PUC - SP
Trata-se de uma tese de livre-docência defendida na UNESP,
recentemente, que vem causando polêmica por seu caráter inovador.
Sua metodologia aproxima-se daquela que vem sendo definida por
Ego-História, ou seja, uma metodologia que nasce do cruzamento de
dois grandes movimentos que se impõem na atualidade: por um lado
o abalo das referências clássicas da objetivid�de histórica, por outro,
a investigação do presente pelo olhar do historiador. Tal metodologia
denuncia que toda uma tradição levou historiadores e pesquisadores
a apagarem-se perante o seu trabalho, a dissimularem suas persona­
lidades por detrás do conhecimento, a barricarem-se por detrás de
suas fichas e apontamentos bibliográficos, a evadirem-se para uma
outra época e/ ou a não se exprimirem senão por intermédio de
outros.
A produção científica que resulta, pois, deste procedimento
metodológico - é preciso que se destaque -, embora contemple
aspectos pessoais e subjetivos do pesquisador não se constitui em
uma autobiografia . . . pretensamente literária, nem em uma profissão
de fé abstrata, nem em uma tentativa de psicanálise--: O que está em
causa é explicar a própria história do pesquisador como se fosse a

1 47

--
de outrem, de o pesquisador tentar aplicar a si próprio, seguindo o A Ego-História permite uma volta às nossas pesquisas ongmais,
estilo e os métodos que cada um escolheu, o olhar frio, englobante e no sentido de podermos avaliar a diferente tese surgida, das teses
explicativo que tantas vezes se lançou sobre os outros. Em resumo, anteriores. Nesse sentido, essa metodologia elimina também a preca­
tornar clara, como historiador e pesquisador, a ligação existente riedade das conclusões convencionais, pois o interior de uma tese
entre a história de educador, por exemplo - no nosso caso -, que bem elaborada explicita melhor os aspectos teóricos e os caminhos
cada um faz e a história de que cada um é produto. a seguir, do que os nomeados nas sínteses finais (E.E.H., p. 44) .
Essa explicação sobre Ego-História é extraída do livro Ensaios Entretanto, a História da História é aparentemente singular, em
de Ego-História por Pierre Nora e colaboradores, publicado pela parte contingente, podendo-se talvez pensar que é uma narrativa com
Editions Gallimard, 1987, França, e traduzido por Ana Cristina Cunha um cariz adulador e vão. "Contudo, essa forma de tratar com por­
para o português em 1 989, por Edições 70, Portugal. menores quase pessoais é exemplar, pois permite a exploração de
realidades menos materiais" (E.E.H. , p. 44) .
Autores de linha de frente da recente historiografia francesa tais
como: Maurice Agulhon, Pierre Chaunu, Georges Duby, Raoul Gi­ A Ego-História permite também a exploração do "mental cole­
rardet, Michelle Perrot, Jacques le Goff, René Rémond, Pierre Nora, tivo" e com ele, uma melhor explicitação da vida cotidiana, pois, a
utilizam-se dessa metodologia, desde a década de 80, na França. Nesta partir dessa consideração, é possível revelar-se a dimensão antropoló­
recente publicação coordenada por Pierre Nora, desvelam aspectos, gica com muito maior intensidade (E.E.H., p. 45) . Enquanto dimen­
por eles ainda não revelados, das teses que se propõem a seguir são antropológica o pesquisador que se utiliza da Ego-História pro­
essa metodologia. cura tornar "o familiar estranho"1• Na medida em que vai trabalhando
Para eles, uma tese que tem a Ego-História como Metodologia o familiar das suas produções e em sua pessoalidade, vai percebendo
permite ao pesquisador assinalar as raízes mais profundas do pro­ que o que imagina seu, de sua propriedade, não lhe pertence exclu­
blema que pesquisa (E.E.H., p. 14) , permite inclusive a percepção sivamente - é seu no contato com o outro, é seu em parceria com
mais clara do porquê tornamo-nos determinado tipo de pesquisador, os teóricos que leu e que o influenciaram. Neste sentido a Ego-His­
salientam que o fato correlaciona-se diretamente à influência dos tória possibilita ao pesquisador uma saída de si mesmo, do isolacio­
teóricos que tivemos como parceiros e às contingências culturais e nismo a que a academia convencionalmente o condena e inaugura,
sociais da época na qual vivemos. portanto, uma nova maneira de fazer tese: a da solidão comparti­
lhada com muito ptazer.
Entretanto, alertam que a imersão · nesse tipo de metodologia só
é permitida aos que "anos a fio se debruçaram nos livros" (E.E.H., Desta forma, podemps distinguir dois tipos de tese ou livros:
p. 33). os que escrevemos por decisão própria e os que precisamos escrever
para cumprir exigências de qualquer ordem.
Esse tipo de metodologia permite também que, a partir da leitu­
ra dos clássicos ou de escritos esparsos e variados, se faça uma O risco que sempre corremos é o de gastar muito do nosso
bricolage - o que torna o texto mais agradável (E.E.H., p . 36) -
tempo com os obrigatórios, e não sobrar tempo de escrever os,
expediente de que me vali na tese " Interdisciplinaridade - um Pro­ efetivamente, verdadeiros, os difíceis, os inovadores (E.E.H., p. 49) .
jeto em Parceria", oride a bricolage surge de meus próprios textos. Na vida acadêmica demoramos muito para perceber o excesso
Além disso, a Ego-História possibilita também uma parada para de trabalho a que a multi-especialidade nos conduz - do número de
reflexão sobre o valor dos "mentores das teses que desenvolvemos", comissões de investigação, ·de sociedades científicas, de colóquios para
no sentido não de um simples agradecimento, como normalmente os quais somos convidados, de obras e de revistas que necessaria-
encontramos nas teses convencionais, mas o sentido e a intenção mais
profunda da orientação e o valor real da estima que a eles dedicamos 1 . Expressões de F. Erickson, em Curso " A Etnografia em Sala de Aula " .
(E.E.H., p. 38) . USP/ 1 99 1 ..

148 1 49
-----

mente devemos conhecer, de teses que precisamos dirigir ou em cuja duas teses em sua tese - uma agradável de ser lida e original, outra,
argüição temos de participar. Esse trabalho excessivo conduz-nos à consistente, porém lugar-comum.
sensação de que nossa produção é pequena, pobre e imperfeita (E.E.H.,
p. 56) . A Ego-História possibilita uma concentração de esforços numa Convivi por sete anos com essa indagação sobre o texto: Educa­
dimensão referida, ela permite uma compilação e uma apropriação ção no Brasil anos 60. Somente hoje compreendo que a primeira tese
de textos já escritos, além de permitir a um maior número de pessoas dessa tese escrevi atrás de uma trincheira de fichas e a segunda,
que conheçam com mais detalhes o conjunto do que pensamos , inves­ escrevi para mim mesma, testando-me enquanto investigadora e deli­
tigamos, escrevemos ou projetamos escrever. neando meus passos futuros.
Outro destaque dessa coletânea: "Acreditei durante muito tempo Nesses sete anos, produzi dez livros, nenhum encomendado por
que a memória servia para lembrar, sei agora que ela serve sobretudo ninguém, em cada um a indicação de caminhos para a Interdiscipli­
para esquecer" (E.E.H., p. 64) . A Ego-História, servindo-se da memó­ naridade. Somente hoje percebo, neles todos, a marca da Ego-História,
ria, seleciona do passado o que o presente pretende dese�volver - que, portanto, me acompanha desde 1 984, quando terminei o douto­
ela, portanto, enquanto seletiva é indicadora de novos caminhos. ramento, seguido ao mestrado, ambos nos moldes convencionais.
A Ego-História também nos permite compreender que a investi­ Hoje volto a fazer o mesmo exercício. Concluo uma nova tese,
gação não se pilota de um alto, mas a investigação que se descobre, a de livre-docência, e peço a seis pesquisadores do mais alto nível
. em Educação que a leiam antes de submetê-la à Banca de Defesa.
que chega, que esclarece, é uma produção do ser. Nesse sentido, o
"Historiador mais velho tem junto dos mais novos e, portanto, dos Em todos eles o respeito pelo trabalho examinado, principalmente por
mais criativos um papel de escuta. � necessário escutar, ajudar a sua forma inovadora de expressão - entretanto, como amigos pes­
escolher, encorajar, sonhar em voz alta, guardar no coração paixão soais meus que são, a preocupação comum, a mesma que Pierre
suficiente para despertar paixões . Nora encontrou ao convidar seus amigos para comporem a coletânea
sobre Ego-História - aos menos avisados pode parecer estranha
No Brasil, a pioneira desse gênero de pesquisa é Magda Soares, essa sua forma particular de pesquisar, porém, em toda a inovação
com quem temos repartido freqüentemente nossas inquietações . Assim há que se correr riscos - e esse é um risco que vale a pena correr.
ela se refere em seu belíssimo livro, Metamemória/Memórias: "enten­
di de fazer uma tese cujo objeto fosse minha própria vida acadêmica,
por isso tentei não apenas descrever a minha experiência passada,
Um breve esboço dos caminhos escolhidos
mas, pensá-la buscando identificar a ideologia que a informava, em
cada momento passado" (M.M., p. 1 5) .
Sobre o texto de Magda Soares, o prefácio de Eliane Marta T . Quando pensei em desenvolver este trabalho, havia freqüente em
meus ouvidos e em minhas preocupações expressões e compromissos
Lopes: "História são vidas recriadas e não revividas" (M.M., p . 1 3)
respectivos: tese de livre-docência precisa ser original, consistente­
-

eis o sentido da Ego-História.


mente original; de preferência, sua originalidade deve ser digna de
Quando escrevi a tese Interdisciplinaridade - um Projeto em um passado de lutas, se for o caso de confrontos com a Academia,
Parceria, não conhecia os trabalhos de Magda Soares, ou de Pierre pelos quais o educador tenha defendido a originalidade das premis­
Nora e colaboradores.
·

sas que postula; e precisa ser inédita.


Sentia-me solitária em meu caminho, entretanto, intuitivamente, Dividida entre esses dois atributos: original e inédito, debatia-me
percebia-o como promissor. Essa intuição advinha, entretanto, de em criar e recriar formas alternativas de reconstrução das premissas
uma percepção anterior. Ao terminar minha tese de doutoramento, que sempre postulei. Todas as formas alternativas passadas por meu
em 1 984, pedi a quatro colegas da Universidade que a lessem antes crivo pessoal, superadas e facilmente superáveis, banaiS,inconsistentes.
da Banca de Defesa. Todos foram unânimes em afirmar: existem O que me restava então? A forma essencial que representasse, apenas,
1 50
1 5 .1
minha vida com tudo o que· nela investi e dela retirei. A minha l inguagem - a de senso comum - que facihnen_te acabaria por
vida profissional, essencialmente marcada por um símbolo, símbolo denominá-los de "mania".
essencial que surgiu há 20 anos e se tornou quase missão, símbolo Mania de quê? Mania de compartilhar falas, compartilhar espa­
que é a razão do meu ser profissional: a Interdisciplinaridade. Para ços, compartilhar presenças, compartilhar ausências. Mania de dividir
falar dela, só uma coisa me satisfaria: novamente vivê-la, num outro e, no mesmo movimento, multiplicar, mania de subtrair para, no
tipo de prática praticando - em reconstituir o velho � o exercício mesmo momento, adicionar, que, em outras palavras seria, de separar
novo que fosse capaz de imprimir nela a descoberta do inédito, para, ao mesmo tempo, juntar. Mania de ver no todo a parte ou o
enfim, do original. inverso - de ver na parte o todo.
Consideramos de fundamental importância que um trabalho como Mania de ver a teoria na prática e a prática na teoria. Mania
este - tese de livre-docência - represente consistente e significativa de ver possibilidade na utopia e utopia na possibilidade. Mania de
contribuição teórica ao acervo de produções científicas, da área de tornar o uno em múltiplo e o múltiplo em uno e de tornar o anônimo
conhecimento do docente que o propõe. em identidade e a identidade em novo anônimo.
Não mais paradoxal - pois resolvida - a perplexidade de se
recorrer ao velho para produzir o novo, era necessário, entretanto, Mania de periodizar só para fazer História .
este outro pressuposto contemplar. Na proposição do trabalho, abso­ Mania que é postura de sempre pretender a produção, em par­
lutamente clara, parecia a necessidade que eu tinha de, na releitura ceria.
de minhas produções e ações educacionais, captar - delas - tudo Quando eu observo as minhas produções e verifico o número de
aquilo que ainda não se tivesse dado a revelar, para, aqui, então, coletâneas produzidas, percebo alguns motivos destas produções terem
com esta tese, outra contribuição teórica ao acervo de produções vir sido feitas em parceria - o que considero interessante, aqui, pontuar.
a representar. Para captar esses aspectos velados, recorri, então, à
estratégia de fazer-me, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da pesquisa. O educador precisa sempre estar se apropriando de novos e infi­
Sujeito enquanto vislumbrava a possibilidade de ver nas velhas, nitos conhecimentos. O tempo para isso é curto, como é curta a
novas teorias e novos fazeres. Objeto enquanto sujeito que fui de vida . A vida se prolonga na confluência das outras vidas que também
algumas descobertas já reveladas no passado de minhas próprias são curtas , que também são breves, mas que juntas podem se alongar
produções. e assim se eternizar. Este é o sentido da parceria na interdisciplinari­
dade. No meu caso específico, foram precisos 20 anos de vida em
Este, principalmente, é o motivo pelo qual organizei o trabalho,
parceria para eu perceber . hoje, somente hoje, o valor e o alcance
a partir de minhas mais importantes produções escritas e/ ou apli­
dela .
cadas, para demonstrar delas o caráter de cientificidade que lhes é
peculiar. E mais : para retirar delas aspectos imanentes ao senso No início, a parceria era apenas produto de uma intuição. Hoje,
comum que, à luz das categorias que nele pontuei, pudessem ser se transforma em "ciência", quando já não me é mais possível deixar
revestidos e reeditados em novas concepções teóricas. Exemplo típico, de vislumbrá-la como teoria. E, na medida em que constato isto, minha
categoria-mestra desta produção: a parceria. obrigação é a de anunciá-la, denunciando-a neste livro-tese. Para
A parceria foi, neste trabalho, evidenciada a cada frase, em cada quê? Para que realmente possa ser, por outros acadêmicos, discutida,
período, em todo e qualquer parágrafo, mesmo quando não revelada: para que os ainda não acadêmicos se apropri.em dela e, assim, para
ausente presença. A parceria, neste trabalho, se configurou de forma que todos possam transformá-la num novo paradigma para a educação.
tão marcante que a expressão aqui utilizada se rev.estiu de infinitos Utopia? Sonho? Não! Penso que - esperança concreta!
aspectos. Pela inadequação de aqui esgotá-los, pela inconveniência A temática deste trabalho foi " 1 nterdisciplinaridade", sua pro­
de aqui, por outras expressões da linguagem acadêmica, tentar tradu­ blemática é a 1 nterdisciplinaridade como atitude possível frente ao
zi-los é que optamos por simplificação e redução próprias de outra conhecimento.
l 52 153
Atitude de quê? Atitude de busca de alternativas para conhecer Muitos estudiosos têm tomado para si a tarefa de definir a Inter­
mais e melhor; atitude de espera frente aos atos não consumados; disciplinaridade e, nessa busca, muitas vezes, se perdem na dife­
atitude de reciprocidade que impele à troca, que impele ao diálogo, renciação de aspectos . tais como: multi, pluri e transdisciplinaridade,
com pares idênticos, com pares anônimos ou consigo mesmo; atitude que neste trabalho, oportunamente, iremos indicar.
de humildade frente à limitação do próprio saber; atitude de perple­
xidade frente a possibilidade de desvendar novos saberes; atitude de
Outros estudiosos estão mais preocupados com a forma, como o
desafio, desafio frente ao novo, desafio em redimensionar o velho;
movimento da Interdisciplinaridade se ·desenvolve, procurando fazer
atitude de envolvimento e comprometimento com os projetos e com retrospectivas históricas da evolução do conhecimento, através dos
as pessoas neles envolvidas; atitude, pois, de compromisso em cons­ séculos e/ou através das marcas a ele imprimidas por alguns pen­
truir sempre da melhor forma possível; atitude de responsabilidade, sadores.
mas, sobretudo, de alegria, de revelação, de encontro, enfim, de vida. Penso que é necessário tomarmos conhecimento desses estudos,
Voltando-se à temática fundamental - Interdisciplinaridade - antes de compreendermos o caminho da ação interdisciplinar, pois
cumpre-nos nesse momento circunstanciá-la, em contextos concretos uma reflexão epistemológica cuidadosa possibilita consideráveis avan­
e atuais. ços e tais avanços poderão permitir a visualização de projetos con­
cretos de investigação que, em parte, possam corresponder ao novo
No ano de 1 990, no período de 2 1 a 24 de maio, foi tema do paradigma emergente de conhecimento, embora precise ficar claro
Congresso Estadual Paulista, sobre formação do educador rumo ao que, em termos de conhecimento, estamos ainda em fase de transição.
século XXI, o levantamento de questões epistemológicas e práticas Estamos bastante divididos entre um passado que negamos, um futuro
que envolveriam a formação do educador de amanhã. Recentemente, que vislumbramos e um presente que está muito arraigado dentro
a XIII Reunião anual da ANPEd (Associação Nacional de Pós­ de nós.
Graduação em Educação), ocorrida em outubro, em Belo Horizonte,
Sabemos, por exemplo, em termos de ensino, que os currículos
tratou também dessas questões. Verificamos que a palavra mais pro­ organizados pelas disciplinas tradicionais, da forma como vêm sendo
nunciada nesses dois eventos foi Interdisciplinaridade. Esquecida em
desenvolvidos, conduzem o aluno apenas a um acúmulo de informa­
décadas passadas, volta agora como palavra de ordem das propostas
ções que de pouco ou nada valerão na sua vida profissional, princi­
educacionais, não só no Brasil, mas no mundo.
palmente, porque o desenvolvimento tecnológico atual é de ordem
Entretanto, ela é apenas pronunciada, e os educadores, em espe­ tão variada que fica impossível processar-se com a velocidade adequa­
cial, não sabem bem o que fazer com ela. Sentem-se perplexos frente da a esperada sistematização que a escola retJ.uer.
à possibilidade de sua implementação na educação. Essa perplexidade Por outro lado, a opção que tem sido adotada, da inclusão de
é traduzida, por alguns, na tentativa da construção de novos projetos novas disciplinas ao currículo tradicional, só faz avolumarem-se as
para o ensino. Entretanto, percebe-se, em todos esses projetos, a informações e só faz atomizar mais o conhecimento. O currículo
marca da insegurança. tradicional que já traduziu um conhecimento disciplinar, com esse
Esta minha primeira palavra refere-se, aqui, à questão dessa acréscimo de disciplinas, tende a um conhecimento cada vez mais
insegurança, dizendo que ela faz parte do novo paradigma emergente disciplinado, onde a regra principal seria, somente, um policiamento
do conhecimento. Tal como no caso da "Ciência Moderna", Descartes maior às fronteiras das disciplinas. O efeito uada mais representaria
fez exercer a dúvida em vez de a sofrer, é necessário que a Ciência, que a punição aos que quisessem transpor essas barrreiras.
como vem sendo chamada' de Pós-Moderna - a que se configura Em alguns casos isolados, educadores de certas escolas têm dei­
diante este nosso século - , assuma a insegurança em vez de a xado de lado os conhecimentos tradicionalmente sistematizados e
postergar. Mas, assumir a insegurança pressupõe o fato de a exercer organizados e partido, única e exclusivamente, para a organização
com responsabilidade. curricular a partir de uma exploração indiscriminada de conhecimen-
1 54
155
tos do senso comum. Esquecem-se, com isso, que o senso comum mos a continuidade dessa busca individual que, apesar de individual,
deixado a si mesmo é conservador e pode gerar prepotências ainda ainda assim, supunha e supõe parceria. A parceria cÓm os autores
maiores que o conhecimento científico.
'•
pesquisados em que, neste presente caso, alguns deles - os princi­
pais - tiveram dupla forma de participação: parceiros enquanto
Entretanto, o senso comum, quando interpenetrado pelo conheci­ texto e enquanto pessoa. Referimo-nos, basicamente, a Georges Gus­
mento científico, pode ser a origem de uma nova racionalidade, pode dorf, Hilton J apiassu, Angel Diego Marquez, teóricos da Interdiscipli­
conduzir a uma ruptura epistemológica em que não é possível pen­ naridade, com os quais tivemos o privilégio de dialogar face a face
sar-se numa racionalidade pura, mas em racionalidades em que o e também, pessoalmente, nos corresponder, por período considerável
conhecimento não seria assim privilégio de um; mas de vários.
de tempo.
O que com isso queremos dizer é que o pensar interdisciplinar
parte da premissa de que nenhuma forma de <.:onhecimento é em si Dissertação de mestrado e tese de doutorado exigem do pesqui­
mesma racional. Tenta, pois, o diálogo com outras formas de conhe­ sador um mergulho mais profundo no seu aspecto individual. A imer­
cimento, deixando-se interpenetrar por elas. Assim, por exemplo, são desses trabalhos numa teoria que, a início, se configurou como
aceita o conhecimento do senso comum como válido, pois é através busca dos pressupostos, das idéias a respeito da Interdisciplinaridade
do cotidiano que damos sentido às nossas vidas. Ampliado através e que, em seguida, devido às repercussões dessas idéias, se confi­
do diálogo com o conhecimento científico, tende a uma dimensão gurou em termos de uma política educacional que enfrenta a questão
maior, a uma dimensão, ainda que utópica, capaz de permitir o em suas múltiplas contradições.
enriquecimento de nossa relação com o outro e <.:om o mundo. Assim sendo, nosso Projeto Individual - parceria com os teó­
A descrição de como se deu este diálogo, em nossa trajetória rkos - foi se ampliando e, no I I Momento do trabalho, o que então
educacional, foi o propósito maior do presente trabalho. Foi o propó­ se configura é a produção redigida com colegas nossos, da Universi­
sito maior, pois que dele não pretendemos retirar a peculiar dimen­ dade em que trabalhamos, e com outros tantos de outras Universida­
são utópica. Foi o propósito maior porque dele acreditamos já termo­ des, com os quais já tínhamos o exercício do diálogo consolidado. Esta
nos enriquecido e, ainda muito mais, podermos vir a enriquecer nossa é a que denominamos de Projeto Coletivo - parceria com os pares.
relação com o outro e com o mundo. Nosso convite foi apenas no sentido de transpor para o papel as
idéias que costumeiramente discutíamos. Surgem então as coletâneas
Nessa perspectiva, foram estabelecidas as diferentes partes/mo­
que compõem o I I Momento deste trabalho.
mentos do nosso trabalho.
No primeiro momento, a descrição do diálogo que fizemos - A primeira delas, surgida da parceria n'o trabalho com uma
nossa forma de conhecimento da realidade - com o conhecimento professora que dividia conosco uma sala de aula, no curso de Gra­
científico . Denominada de Projeto Individual, sem que com esta deno­ duação em Pedagogia na PUC-SP, teve a intenção de constituir-se
minação deixássemos de registrar a parceria - marca fundamental em roteiro para encaminhar as reflexões teóricas e práticas do curso
de toda e qualquer nossa produção, marca fundamental dos demais sobre Metodologia e Prática de Ensino da Escola de 1 .º Grau. Esse
Projetos (coletivos) , que incluímos nos Momentos I I e I I I , deste trabalho deu origem a um livro denominado Anotações sobre Metodo­
nosso trabalho. logia e Prática de Ensino na Escola de 1 .0 Grau, publicado em 1983 ,
como um manual de trabalho - manual diferente - no qual as
Nesse sentido, então, nossa produção científica iniciou-se com indicações são, antes de mais nada, reflexivas. ·

a dissertação de mestrado, intitulada Integração e Interdisciplinari­


dade no Ensino Brasileiro - Efetividade ou Ideologia, publicada em A seguir, a coletânea Encontros e Desencontros da Didática e da
1 979, que será objeto de comentários no I Momento deste trabalho. Prática de Ensino, na qual os parceiros eram todos professores pes­
Em seguida, com a tese de doutorado, publicada sob o nome Educa­ quisadores do ensino superior, oriundos de diferentes -Universidades,
ção no Brasil - anos 60 - o pacto do silêncio, em 1 985, encontra- com diferentes enfoques · na prática educativa. A intenção dessa publi-

1 56 1 57
cação foi o prolongamento dos debates havidos em Encontros de de parceria com uma educadora, antiga companheira de lutas e de
Didática e Prática de Ensino do qual todos participamos. .- pesquisa , que se dispôs a enfrentar conosco o desafio de captar a
obra de um artista da arte de dobrar papel e transformá-la num
0 terceiro livro desta etapa, denominado Um desafio para a
livro/reflexão/indicação prática de como é possível trabalhar-se inter­
Didática, é uma coletânea de súmulas de pesquisas realizadas por
disciplinarmente num novo projeto educativo : educar através da
quatro pesquisadores que, ocasionalmente, se encontraram no IV
Dobradura.
t>eminário de Pesquisa da Região Sudeste, discutiram seus textos em
público e entre si decidiram publicá-los, conjuntamente, para amplia­ Destes trabalhos todos produzidos, algumas reflexões que deram
.
ção do debate sobre pesquisa. ense10 para outra forma de estabelecer parceria - nosso terceiro
momento, intitulado Projeto Coletivo na parceria com os alunos.
Outro tipo de produção/parceria que realizamos ainda não se
encontra publicado. Trata-se de duas pesquisas realizadas neste:. ? projeto interdisciplinar surge, às vezes, de um (aquele que já
últimos quatro anos. A primeira denominada O redimensionamento da possui em si a atitude interdisciplinar) e contamina os outros e 0
didática a partir de uma prática de ensino interdisciplinar, em par­ grupo.
ceria com uma pesquisadora sênior e 5 outros pesquisadores auxilia­ Num projeto interdisciplinar, comumente encontramo-nos com
res (mestrandos e doutorandos da PUC�SP, USP, UNICAMP) . Tive­ múltiplas . barreiras : de ordem material, pessoal, institucional e gno­
mos, nesse momento, como objetivo principal investigar a atitude que seológica. Entretanto, essas barreiras poderão ser transpostas pelo
preside o trabalho do professor de Didática e Prática de Ensino, na desejo de criar, de inovar, de ir além.
Habilitação Específica de Magistério, verificando em que medida essa O que caracteriza a atitude interdisciplinar é a ousadia da busca
atitude se evidencia, em certos momentos, enquanto interdisciplinar. da pesquisa, é a transformação da insegurança num exercício d;
A referida pesquisa revelou a solidão em que esses profissionais, pensar, num construir.
cuja atitude interdisciplinar mais se evidencia, se encontram. Traba­ . � s ?li �ão dessa in �eg�rança individual que caracteriza o pensar
-lhar a solidão no encontro conduziu-nos à nossa próxima pesquisa - mterd1sc1plmar pode d1lmr-se na troca, no diálogo, no aceitar 0
pesquisa do tipo intervenção - junto aos professores de Didática
�e�s �r do outro. Exige a passagem da subjetividade para a intersub-
,

do Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magisté­ 1et1v1dade.


U�a �as pos �ibilidade� de execução de um projeto interdisciplinar
rio - CEFAM, intitulada A prática pedagógica interdisciplinar dos
professores de Didática e Prática de Ensino. O objetivo principal dessa
pesquisa foi a construção coletiva de uma proposta para as discipli­ na Umvers1dade e a pesquisa coletiva onde exi�ta uma pesquisa/Nu­
clear que ca:alize as preocupações dos diferentes pesquisadores e
nas Didática/Prática de Ensino e Estágio que poderia organizar e . .
redirecionar as práticas individuais dos 54 professores que lecionam pesqmsas/satehtes onde cada um possa ter o seu pensar individual
no CEFAM. e solitário.
Ou�ra qu�stão que se coloca à Universidade é a da superação da
O penúltimo livro que tratamos nessa etapa, publicado em 1988, .
d1cotom1a ensmo/pesquisa. Há necessidade de transformar a sala
é a coletânea que se intitula Metodologia da Pesquisa Educacional.
Inicia-se com ela um debate sobre pesquisa educacional. Ampliamos a d: a�la dos cursos de Graduação em locais de pesquisa, e que ela
parceria para nove professores que se dedicam à pesquisa em diferen­ nao fique reservada apenas ao Pós-Graduação.
tes enfoques. Surge com a intenção de apresentar subsídios teórico/ Nesse sentido é que nossa produção/parce;·ia realizou-se' então '

metodológicos para os que se iniciam ou pretendem desenvolver pes­ numa ousadia maior: com os alunos.
quisa na área educacional. Inicialmente trabalhamos com alunos da Graduação - anos de
O último livro, neste tipo de parceria com os pares, elaborado e 1986 e 1 987 - 3 .º ano de Pedagogia, onde a proõução/parceria
publicado em 1 990, intitula-se A arte-magia das dobraduras. Trata-se aparece sob o título Tá pronto, Seu Lobo? Didática/Prática na Pré-

1 58 l 59
Escola, nome do livro que produzimos. O objetivo desse trabalho A parceria com alunos na sala de aula não fica, entretanto,
foi, basicamente, alternar teoria e prática, tentando desvelar " aspec­ apenas na produção de coletâneas. Consideramos este, apenas, mais
tos do cotidiano desses alunos, que eram docentes da Pré-Escola . um dos tantos exercícios que realizamos, quando a intenção é viver,
Com o êxito desse trabalho, outra turma se anima a desenvol­ exercer a Interdisciplinaridade. Nesses quatro anos - de 87 a 90,
vê-lo. São ainda alunos de Pedagogia, porém do 4.º ano, noutra doze dissertações de mestrado foram produzidas por esse grupo de
produção/parceria: Uma casa chamada magistério. Como a anterior, alunos por nós orientados. Cada uma, como já dissemos, com seu
é uma coletânea gestada e produzida em sala de aula. Seus contos não enfoque pessoal, mas a questão nuclear permanece em todas elas, a
são mais os da Pré-Escola, mas, saudosamente, refletem sobre uma possibilidade de pensar as práticas cotidianas numa perspectiva inter­
Escola Normal que, embora não presente na memória de todos, fez disciplinar.
parte do inconsciente coletivo do grupo desses educadores. ·
Pensar e realizar pesquisas, tendo como objeto de investigação
Em ambos os casos, o objetivo foi o de tornar possível, a ambos a Interdisciplinaridade requereu, inicialmente, a adoção de uma me­
os grupos, a vivência de um perceber-se ator e autor de uma história todologia peculiar de trabalho - a de como pesquisar a própria
de vida e de escola e, nesse movimento, perceber-se para poder prática, interdisciplinarmente. Vista como necessária, mas extrema­
tornar-se interdisciplinar. mente difícil de ser realizada, por muitos pesquisadores de renome
Após a aventura maior de exercer a Interdisciplinaridade no na área educacional, essa forma de pesquisa requereu um tratamento
curso de Graduação, inicia-se, já em fins de 1987, o trabalho com teórico/metodológico específico - particular a cada projeto de pes­
alunos do Pós-Graduação. Embora pareça paradoxal, mais difícil é quisa. Na realidade, obtivemos doze diferentes enfoques. Guardadas
mobilizar consciências mais estruturadas - no caso, já em estágio as limitações próprias de alguns dos pesquisadores, acreditamos com
de escolaridade ·mais avançado, para um trabalho interdisciplinar. esse trabalho poder revelar de cada um deles a sua potencialidade de
As barreiras, de diferentes ordens, se anunciam, porém a mais séria pesquisador, a marca pessoal de seu estilo de escrever, de narrar, de
é a de ordem pessoal - a Academia em certos casos passa a ser interpretar. Embora únicos, encontramos, em todos eles, uma preo­
camisa de força. Estrutura, formaliza, rotula e direciona em uma cupação exacerbada com o rigor, com o rigor metodológico e com o
única, mas restrita, direção. Impede o alcance de um olhar mais rigor teórico, tão ao gosto e imperativo primeiro dos que pretendem
penetrante, tornando-o segmentar, covarde e limitado. Em muitos descobrir-se interdisciplinares.
casos, entretanto, ela é a forma, por excelência, de liberação e recons­
trução de itinerários próprios de vida e de teoria. Fazer pesquisa significa, nu!-lla perspectiva interdisciplinar, a
busca da construção coletiva . de um novo conhecimento onde este não
Existiu todo um exercício de treino do olhar para podermos é, em nenhuma hipótese, privilégio de alguns, ou seja, apenas dos
elaborar nossa seqüente coletânea de textos : Práticas Interdiscipli­ doutores ou livre-docentes na Universidade.
nares na Escola. Trata-se, como as anteriores nesta etapa relatada,
de uma coletânea construída na sala de aula do Curso sobre Inter­ Fazer pesquisa numa perspectiva interdisciplinar, hoje nos parece,
disciplinaridade. Como as demais, alternou teoria à prática, foi oral­ muito mais do que nos parecia até mesmo quando da realização de to­
mente explicitada e debatida antes de ser escrita e consubstanciou-se dos estes trabalhos citados, a busca da construção coletiva, em constru­
numa produção que, como as demais, leva a marca de cada um, em ção coletiva, em parceria, a quatro mãos, a seis, a muitas outras mais.
seus diferentes textos, mas, mais forte que isso, carrega o lastro de Rever o velho para torná-lo novo ou tornflr novo o velho -
um pensar e de um viver acumulado em anos subseqüentes de traba­
paradigma que pauta cada linha deste livro-tese. A tese é de que o
lho/vida, em sala de aula na Universidade, Pré-Escola e 2.º Grau.
velho sempre pode tornar-se novo, e de que em todo o novo sempre
Com esse grupo de pós-graduandos, outras tantas coletâneas existe algo de velho. Novo e velho - faces da mesma moeda -
sobre a Interdisciplinaridade estão sendo produzidas, que não caberão depende da ótica de quem as lê, da atitude de quem as ·examina - se
aqui ser discutidas. disciplinar ou interdisciplinar.
1 60 161
Referências bibliográficas

FAZENDA, 1 . C. A. Educação no Brasil anos 60 - o pacto do silêncio. São


Paulo, Loyola, 1985.

NORA, P . Ensaios sobre Ego-História. Trad. Ana C. Cunha. Portugal, Edições


70, 1989.
11
SOARES, M. Metamemória/Memórias. São Paulo. Cortez. 1 99 1 .

A ESCOLA PÚBLICA
COMO LOCAL DE TRABALHO
OU A TESE DO LNRO,TESE

Celestino Alves da Silva Júnior


UNESP

1 62
Sob o título acima, defendi, recentemente, na Unesp, uma Tese
como parte do conjunto de provas relativas ao Concurso de Livre-Do­
cência. A circunstância de se tratar de uma prova de concurso público,
ao lado de outras também obrigatórias, marcou a elaboração dessa
Tese com características diferentes das de outros trabalhos de pes­
quisa que realizei anteriormente. Tendo que me· preparar igualmente
para o atendimento a exigências de outra natureza que ainda integram
a tradição das Universidades Estaduais de São Paulo, a construção
dessa Tese teve, desde logo, relativizada sua importância em função
de sua inserção em um conjunto maior de solicitações.
A relativização do significado funcional de uma Tese de Livre­
Docência não implica, porém, a desconsideração dos critérios acadê­
micos-científicos em que ela se sustenta, nem dispensa a preparação
cuidadosa da atividade de pesquisa a que ela se propõe. Essa, por
sua vez, terá o relato de seus resultados necessariamente submetido
ao formato de uma Tese. O que quero indicar com esses registros
é que uma Tese não "sacralizada", porque não absolütizada, pode
e deve ser construída de modo a permitir a imediata utilização do

1 65
conhecimento novo que ela possa ter elaborado ou, ao menos, indicado O que me permiti foi afrontar a estereotipia vigente e elaborar um
como possível de ser construído. Foi a isso que me propus e foi essa livro que consubstanciasse minha Tese e não uma "Tese" convencio­
posição preliminar que determinou todas as minhas decisões de pes­ nal, destinada por isso mesmo ao repouso respeitoso e inócuo em
quisa, desde a escolha do tema até a redação do texto final. inóspitas e respeitosas prateleiras.
A escola pública tem sido colocada mais como tema de discussão O livro que produzi como Tese e a pesquisa que lhe deu origem
e de preocupação político-educacional do que, propriamente, como refletem em grande parte a relação pessoal que mantenho com a
tema de pesquisa. Mais se enfatiza a necessidade de soluções para situação que investiguei. Desenvolvi meu trabalho a partir de minha
os problemas da escola pública no Brasil do que se trabalha objeti­ condição atual de professor universitário, mas o modo de desen�olvi­
vamente para o encontro dessas soluções. Ao lado disso, o problema mento encontrado só se fez possível em função dos vínculos estabe­
das relações de trabalho no interior da escola pública pouco tem se lecidos por minha condição anterior de professor do ensino público
beneficiado em sua investigação da ampla problematização do tema de l .º e 2 .º Graus. Foram esses vínculos que me permitiram
"Educação e Trabalho", ou "Trabalho e Educação", já que alguns construir propostas de Cursos de Atualização para professores e
entendem que a inversão da ordem dos termos seria essencial para o especialistas da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo e aten­
correto encaminhamento da discussão. Em qualquer caso, no entanto, der às solicitações que me foram encaminhadas no mesmo sentido.
a escola é pensada nessa discussão sempre de um ponto de vista con­ E foi o material que produzi para os cursos e, principalmente, o
tingente. O foco da discussão - daí a pretensão da inversão dos material produzido pelos participantes dos cursos, que permitiram,
termos - é colocado no mundo do trabalho, e o que se discute são finalmente, o projeto e a elaboração do livro-tese.
as formas de relação qu� a escola deve estabelecer com esse mundo. Creio ser relevante para as finalidades de um Encontro de Pes­
Desconsidera-se, assim, o óbvio fato de que também a escola se insere quisa destacar a situação acima apontada. Não foi a metodologia de
no mundo do trabalho, de que também a escola é um local de produção e coleta de dados constante de um projeto de pesquisa e
trabalho e, nesse momento histórico, um local de trabalho degradado como tal, anteriormente elaborada, que me possibilitou a realização
pelas relações de trabalho impostas aos trabalhadores que o povoam. da pesquisa e a opção pela forma de divulgação de seus resultados.
Minha primeira intenção ao privilegiar o tema "Escola Pública" Ao contrário, foi a preocupação político-pedagógica que me levou à
e ao delimitar o problema "Relações de Trabalho" foi elevar ao extensão da situação de ensino, e foi a situação de ensino criada que
plano das cogitações acadêmicas aquilo que freqüentemente se reduz ensejou a perspectiva da análise em profundidade do material pro­
.ao campo das angústias e das frustrações profissionais. Uma certa duzido em sua realização. A Tese, produto final desse processo, nem
·

"nobreza" de análise que a Universidade ainda se conserva é capaz de sequer fora cogitada em seu· momento inicial.
atribuir aos objetos de estudo que elege uma aura de respeitabilidade Outro registro que me parece significativo diz respeito à natu­
e de significação política difícil de se estabelecer fora de seus limites reza do material produzido e analisado. Trata-se de depoimentos que
privilegiados. A luta dos trabalhadores da escola pública de 1 .º e 2 .º solicitei ao final dos cursos ministrados para efeito de sua avaliação
Graus pela melhoria das suas condições de trabalho, a que a Univer­ e que pela própria proposta apresentada deveriam se caracterizar pelo
sidade assiste a distância e nem sempre com bons olhos, ganharia exercício da subjetividade. Foi pedido aos participantes que num
assim o reforço do seu exame obrigatório por in_telectuais qualificados prazo de três semanas elaborassem uma reflexão de caráter pessoal
no interior de uma instituição ainda respeitável. sobre sua relação com a escola pública em qne trabalhavam. Tal
Fazer de uma luta o objeto de uma Tese não seria, entretanto, reflexão deveria ser produzida por escrito sob a forma de um texto
suficiente como apoio a essa luta se o produto resultante, o objeto livre cujo tema de referência poderia ser, por exemplo, "Eu e a
cultural "Tese de Livre-Docência", devesse ser tomado necessaria­ escola pública, hoje" ou "Minha contribuição à escola pública, hoje".
mente como uma invariante, ou seja, como um produto de formato Como os cursos foram oferecidos na Grande São PauTo e em dife­
e desenho universalmente obrigatórios e de características singulares. rentes regiões do interior do Estado, o conjunto dos depoimentos

1 66 1 67
acabou por se constituir em um extenso e variado painel das visões A tese dessa Tese, formulada na Introdução e, acr�dito, ev4.den­
dos trabalhadores da escola púública paulista sobre seu trabalho e a ciada na síntese final da Conclusão é a de que "a escola pública é
escola em que o realizam. Como essas visões foram também coloca­ um local de trabalho que, por sua finatidade e por sua . natureza
das no papel por seus próprios autores, delas resultou um material peculiar, supõe critérios especiais de organização. Tais critérios devem
estruturado e autenticado pela espontaneidade de sua formulação. ser estabelecidos a partir das características do trabalho que ali se
Descobri, assim, as vantagens metodológicas dos depoimentos escritos desenvolve. A condição primeira para a materialização dessa Tese
como instrumentos de pesquisa, ainda que originalmente minha é a associação conceituai e prática entre "jornada de trabalho" e "local
intenção não fosse pesquisar. Tais vantagens se sobressaem quando de trabalho", ou seja, a delimitação do espaço físico de trabalho do
consideramos as limitações que atingem a coleta de depoimentos orais, docente e do especialista da escola pública e sua unificação. A razão
com as dificuldades de gravação, de transcrição e mesmo de formu-
·
dessa necessidade é singela, mas fundamental, e apesar disso, ou
lação de perguntas . talvez por isso mesmo, ainda desconsiderada. "Para que as pessoas
'se organizem' ou 'sejam organizadas' é preciso, antes de mais nada,
A presença de materiais sugestivos para pesquisa me levou à utili­
que elas se encontrem em seu cotidiano de trabalho. Sem a presença
zação de técnicas de base qualitativa para a análise de seu significado .
O que viria a ser o terceiro capítulo da Tese então imaginada foi cons­ física do trabalhador individual o 'trabalhador coletivo' não se consti­
truído com a localização das categorias emergentes de seu conteúdo. No tui, mas também o projeto político não se elabora."
entanto, em que pese a expressividade desse material, ele não seria
suficiente para dar conta da discussão ensejada. As percepções e
representações dos trabalhadores da escola pública paulista, compo­
nentes fundamentais de seu movimento histórico, precisavam, por
isso .mesmo, ser situadas em relação a duas outras questões a que se Contribuir para fazer cessar a fragmentação da jornada diária e
vinculam necessariamente: a questão do trabalho assalariado sob o a conseqüente multiplicação dos locais de trabalho do magistério públi­
capitalismo, suas concepções e determinações, e a questão da admi­ co em . São Paulo foi, como declarei, a pdncipal intenção da Tese
nistração da escola pública, com os equívocos conceituais e políticos elaborada. Sem isso, todas as tentativas de recuperação qualitativa da
que a atravessam e as implicações que deles decorrem. escola pública em São Paulo permanecerão condenadas ao fracasso
em função da inviabilidade de se dar curso a qualquer ação preten­
Para o enfrentamento desses aspectos da discussão recorri à dida e de se assegurar a continuidade dos processos de discussão em
pesquisa bibliográfica, no primeiro caso, o do trabalho sob o capita­ que as ações deverão se sustentar.
lismo, e ao material produzido para o curso no segundo, o da admi­
Ao lado do claro sentido de compromisso político que informa
nistração da escola pública. Reyi e sistematizei então textos de
meu trabalho, creio também que seu ponto de origem, sua formulação
minha própria autoria, provenientes de reflexões e pesquisas anteriores. e seu instrumental encerram alguns atributos teórico-metodológicos que
Delineada dessa forma a discussão total, restou-me concretizá-la podem justificar sua discussão em um Encontro de Pesquisa. O pri­
em um último capítulo, denominado o "momento da escola pública". meiro deles me parece ser o esforço para instituir a "escola pública"
Como o título pretende indicar, tratou-se aí de analisar aquelas pro­ e não simplesmente a "escola" como objeto de discussão. Escola
postas originárias do aparelho do Estado que naquele momento do pública e escola privada são entidades radicalmente distintas no movi­
processo ocupavam a atenção e se constituíam em determinações para mento atual do capitalismo brasileiro. Se ambas são "escola", a simili­
os trabalhadores da escola pública em São Paulo. Nesse caso, utilizei tude institucional não é suficiente para mascarar a distinção funda­
a análise documental para situa.r as origens e os significados reais das mental entre o caráter "público" de uma e o "privado" de outra.
propostas e examinar as . possibilidades de que elas · venham a se A distinção necessária entre o interesse público e os interesses
converter efetivamente em realizações. privados obriga à consideração da questão do Estado e à análise do

1 68 1 69
comportamento e do significado do Capitalismo Monopolista de caracterização da vida acadê�ica. A "religiosidade" ancestral da Uni­
Estado no Brasil. Finalmente, o enfrentamento obrigatório dessas versidade continua a se manifestar na "liturgia" aparentemente inal­
questões obriga a análise -do comportamento dos Sindicatos e Asso­ terável a que as novas gerações de trabalhadores universitários pro­
ciações representativos do magistério público quanto ao grau de metem se submeter.
compreensão alcançado em relação à natureza do trabalho pedagó­ Apesar disso, parece-me necessária a "dessacralização" da ativi­
gico e ao modo de formular politicamente as reivindicações dos tra­ dade acadêmica. Não se trata de promover a iconoclastia ou de con­
balhadores do ensino público. clamar ao suicídio simbólico. Trata-se apenas -de sugerir a oportuni·
A natureza diferenciada das questões consideradas determinou dade da revisão de valores e de critérios. Uma Tese não deve nem
a utilização de diferentes instrumentos de coleta de dados e de inter­ precisa ser apenas endereçada aos parceiros acadêmicos. Ao contrário,
pretação de seus significados. A pesquisa como um todo, que não ela pode e deve se constituir em uma ponte entre o território ainda
estava projetada anteriormente, acabou por se realizar com base em privilegiado em que os acadêmicos se movimentam e o campo minado
um conjunto articulado de projetos específicos para cada aspecto da das relações sociais em que os "homens comuns" se consomem.
discussão. Dessas soluções parciais orientadas para a totalidade pre­
tendida resultou um produto final, o livro-tese, que pretendeu equi­ Pensada como "ponte", uma Tese terá que se despir de alguns
librar o necessário rigor acadêmico com o desejável acesso de todos dos ornamentos habituais da indumentária acadêmica. Nem por isso
os interessados à. discussão de seu conteúdo . ela poderá se apresentar nua ou em farrapos. Uma "ponte" é um
ser funcional. Não necessita de "trajes de gala" porque não conduz
obrigatoriamente a uma celebração, mas necessita de vestimentas de
trabalho adequadas a realização de sua tarefa. - Uma ponte não se
destina apenas a estabelecer contatos. Ela tem que sustentar também
o peso dos que se dispõem a atravessá-la.
A tese -do livro-tese é fruto de minha preocupação com a relevân­
cia social do trabalho acadêmico. Ainda inadaptado à situação de Recorro à metáfora de preferência à ironia, embora esta possa se
assalariamento que se realiza sob o capitalismo, o trabalho acadêmico constituir em instrumento mais eficaz do que aquela. A ironia é, cer·
tende a se refugiar e a se "proteger" em atividades e em formulações tamente, um componente habitual das relações acadêmicas. A "fina
carentes de sentido para um trabalhador não-acadêmico. Também - ironia" costuma ser louvada como um dado de qualidade que "ilumina"
para os proprietários em geral, o movimento interno da Universidade a produção teórica de alguns acadêmicos destacados. Os "apenas irô­
se apresenta, quando perceptível, como alguma coisa reservada a nicos" muitas vezes se angustiam por não usufruírem do mesmo
indivíduos que se comprazem com o exercício de relações no plano reconhecimento interno dispensado aos "finamente irônicos". E nisso
simbólico. Na "vida real" as relações entre indivíduos devem se reside a verdadeira ironia da vida acadêmica. Longe de ser a "última
marcar por um caráter necessariamente utilitário, que escaparia à arma dos pobres", como já foi historicamente preconizada, a ironia
compreensão ou ao interesse dos acadêmicos . na Universidade se constitui em um instrumento de luta entre os
"remediados" que se pretendem "ricos de espírito". As voltas com suas
É certo que a " cultura de ilustração" e a própria origem social
disputas internas, os acadêmicos simplesmente se esquecem de contri­
dos docentes universitários respondem pela imagem com que a Uni­ buir para o enfrentamento dos problemas que afetam a maioria da
versidade é captada além de seus limites específicos. No caso brasi­ população que os sustenta.
·

leiro, os anos setenta impuseram o rebaixamento dos padrões sala­


riais e com ele abreviaram o acesso aos quadros da Universidade de Escrito ou não por um acadêmico, um livro é um produto cultu­
trabalhadores de _ perfil mais "popular". Ainda assim, o mito e a ral de origem e características mais democráticas que uma Tese. Se
mística da Academia se revelaram suficientemen_te fortes para assegu­ dispuser de tempo, recursos e condições, qualquer "homem-comum"
rar a prevalência dos ritos e símbolos tidos como indispensáveis à pode escrevê-lo. Em que pese as vias preferenciais que atravessam

1 70 171
o mercado editorial, é também possível a um autor desconhecido fazer da expos1çao dos resultados terão se cercado do rigor,. da ongma­
chegar seu texto ao conhecimento dos leitores que por ele possam se lidade e dos demais elementos exigíveis em um trabalho universitário
interessar ou que interesse ao autor atingir. Um livro é, antes de que se pretende científico. Nesse sentido, um livro-tese deve ser enten­
tudo, mais "encrontrável". Os livros chamam nossa atenção nas livra­ dido como todas as Teses universitárias devem sê-lo: uma contribui­
rias, colocam-se diante de nós nas bancas das ruas e praças, às vezes ção efetiva ao avanço do conhecimento em um campo especializado.
são-nos dados de presente por nossos amigos. Os livros, enfim,
circulam. Observadas as determinações acima, nada obriga, entretanto, a
que uma Tese se estenda por um número desmedido de capítulos ou
Embora algumas vezes "circulares", as Teses quase sempre não por uma enumeração redundante de elementos fatuais. Nada obriga
circulam. Aristocráticas por origem, suas formas e adereços não se também que uma Tese seja redigida necessariamente em um jargão
prestam ao livre trânsito das ruas. Seu peso institucional - e físico, pedante e cientificista em que o apelo a expressões pretensamente
inclusive - freqüentemente dificulta o acesso e o manuseio por parte obrigatórias acaba por gerar enfado e desinteresse no leitor não-aca­
daqueles que se interessam por examinar seu conteúdo. Quando vol­ dêmico e renovação lamentosa de compromissos por parte do leitor
tadas para a análise das questões sociais, as Teses ainda mais fre­ acadêmico, preocupado apenas em dar conta de seu "dever de ofício''.
qüentemente se revelam inacessíveis aos sujeitos que se constituíram Uma Tese, enfim, não precisa ser necessariamente aborrecida, preten­
em seu objeto de estudo. As Teses, enfim, dizem respeito ao modo siosa e indefinida como as teses geralmente o são.
de produção do conhecimento. Não estão necessariamente comprome­
tidas com a di�sewinação do conhecimento produzido. Estou discutindo, é claro, o aspecto formal das Teses acadêmicas
tal como elas nos são geralmente apresentadas. Não estou discutindo,
A tese do livro-tese, que exem'plifico com o comentário inicial porque não caberia fazê-lo aqui, suas temáticas e as problemáticas
a respeito do meu trabalho aqui citado, constitui uma proposta para que levantam. Não creio, porém, que qualquer que seja a relevância
a articulação necessária entre modo de produção e modo de cir­
do conteúdo substantivo de uma Tese, ela não possa tratá-lo com a
culação do conhecimento. Se otiginário da Universidade, este conhe­
concisão e a objetividade que os processos editoriais impõem ao livro
cimento terá sido produzido em circunstâncias e sob condições que,
e que são também, se não preferencialmente, exigências do próprio
se não inviabilizam, certamente dificultam sua divulgação e utilização.
trabalho acadêmico-científico.
A não ser que se postule anacronicamente que o produto da Univer­
sidade deve bastar à própria Universidade, torna-se importante buscar A forma do livro é assim, em meu entender, a forma adequada
fórmulas que abreviem a necessária passagem do circuito da produ­ para a apresentação de uma Tese. Para além, no entanto, dos elemen­
ção para o circuito da disseminação. Construir um texto final de uma tos de forma, de estilo e de ·linguagem, coloca-sé a lembrança funda­
Tese com todos os ademanes convencionais e inquestionados do mental de que o livro é o principal instrumento de trabalho do pro­
ambiente acadêmico são assegura definitivamente a qualidade e a sig­ fessor. Por que não fazer dele também o seu princ:pal instrumento
nificação da tese proposta. Menos ainda assegura, pressupostas a de expressão? No cotidiano do professor e de seus alunos, mesmo no
validade e a legitimidade da Tese, que tais atributos se tornem ime­ do professor e dos alunos universitários, o que se coloca em primeiro
diatamente disponíveis para a produção de efeitos socialmente rele­ lugar são os livros e não as Teses. Destas se espera que se transfor­
vantes. É esse hiato que o livro-tese se propõe a superar. mem ou que dêem origem a livros. Por que não fundir as expectativas
Um livro-tese é um livro que necessariamente consubstancia uma e as preocupações, favorecendo assim uma pass,!lgem mais rápida e
tese. Quando concebido, teve como parâmetro principal o cumpri­ efetiva do conhecimento produzido ao conhecimento disponível e deste
mento de uma exigência acadêmica, ou seja, a apresentação e a defesa ao conhecimento aplicado? Afinal , a que interesses serve realmente
de um enunciado categórico cuja validade se pretendeu demonstrar ao o saber que não vem à luz?
longo da exposição, com base nos elementos colhidos pela investiga­ · Descartar a solenidade e renunciar às pompas e às circunstâncias
ção. Tanto a lógica da investigação propriamente dita, como a lógica das Teses convencionais pode, certamente, causar dificuldades de rela-
1 72 1 73
cionamento no interior do sensível e conservador ambiente acadê­
mico. Mas talvez seja necessário optar entre os afagos benfazejos à
vaidade pessoal que a Academia pode nos prodigalizar e o com­ MARIA LAURA FRANCO
promisso com o bem-estar ·da maioria desassistida da população que
a consciência profissional nos obriga a perseguir. Pessoalmente, pre­ DAGMAR ZIBAS
(Organizadoras)
firo a segunda hipótese.

Final do Século
Desafios da Educação
na América Latina
Os textos que constituem este volume, embora diversificados
quanto ao objeto de análise e quanto à metodologia, guardam
em comum o esforço de analisar a educação no conjunto das
políticas públicas e de situar essa análise no cenário latino­
americano da última década, marcado pela inquietação social
decorrente da crise econômica, esta por sua vez em larga
medida determinada por constrangimentos externos. Estudos
como vários dos que se encontram nesta coletânea têm o
mérito de repor a investigação educacional na perspectiva mais
ampla da análise do papel do Estado nas sociedades
capitalistas, sem entretanto cair na armadilha das
generalizações puramente doutrinárias ( . . )
.

A preocupação subjacente a quase todos os textos diz respeito


ao descompasso entre as demandas sociais e a correlação de
forças políticas predominante no aparelho estatal ou, dito de
outro modo, a baixa representatividade dos interesses da
. maioria dentro do Estado e, em conseqüência, nas políticas que
por suposto deveriam responder àquelas demandas, entre elas a
educação. Nessa perspectiva, a democratização do Estado, a
organização e fortalecimento da sociedade e a democratização e
melhoria qualitativa da educação, mostram-se estreitamente
associadas. Essa associação permite dar conteúdo mais concreto
ou revelar novas dimensões, para os problemas e impasses
educacionais que a América Latina vem enfrentando há décadas.

Guiomar de Mel/o

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� CORl'EZ
1

1 74
I VANI FAZENDA é mestre em
Filosofia da Educação, doutora em
Antropologia Social e professora do
Programa de Estudos Pós-graduados em
Supervisão e Çurrículo da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Trabalhou como professora e orientadora
pedagógica no 1 ? e 2 ? graus, foi professora
e coordenadora de cursos de especialização,
em Educação do extinto Centro Regional
de Pesquisas Educacionais de São Paulo
(CRPE/SP) e da Faculdade de Educação da
USP É assessora da Coordenadoria de
Estudos e Normas Pedagógicas de São
'
Paulo (CENP) para os Centros Específicos
I mpressão e Acabamento de furmação· e Aperfeiçoamento do

k!fii GRÁ F I CA E E DITORA FCA Magistério (CEFAM). Coordena grupo de


pesquisadores nas áre<!?_ de Didática e
com filmes fornecidàs pelo editor.
AV. HUMBERTO DE ALENCAR CASTELO BRANCO, 3972 · TEL. : 4 1 9-0200
. Prática de Ensino. Seu tema de estudo e
SÃO BERNARDO DO CAMPO · CEP 09700 • SP investigação é a Interdisciplinaridade no
Ensino.

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