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Cahiers de linguistique

hispanique médiévale

Convencer ou persuadir : análise de algumas estratégias


argumentativas características do texto da Primeyra Partida de
Afonso X
Clara Barros

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Barros Clara. Convencer ou persuadir : análise de algumas estratégias argumentativas características do texto da Primeyra
Partida de Afonso X. In: Cahiers de linguistique hispanique médiévale. N°18-19, 1993. pp. 403-424;

doi : https://doi.org/10.3406/cehm.1993.1094

https://www.persee.fr/doc/cehm_0396-9045_1993_num_18_1_1094

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CONVENCER OU PERSUADIR:

ANÁLISE DE ALGUMAS ESTRATEGIAS

ARGUMENTATIVAS CARACTERÍSTICAS

DO TEXTO DA PRIMEYRA PARTIDA

DE AFONSO X

Se aceitarmos que o texto de carácter argumentativo é


constituido por um conjunto de proposiçoes que traduzem directa ou
indirectamente urna posiçâo (de autor) e reenviam a outrem
individualizado ou colectivo, marcado ou nâo no discurso, o texto da Primeyra
Partida contém diversos enunciados de carácter argumentativo. Tal
facto parece ressaltar da definiçâo dada por exemplo por G.
Vignaux l, segundo a qual o que caracteriza o texto argumentativo
é a existencia de um sistema limitado por regras de composiçâo,
sistema esse que é marcado «à la fois par la dynamique discursive
(règles propres à l'institution du discours) et par la structuration
d'une pensée que l'orateur veut faire passer» e ainda segundo o
mesmo autor este tipo de texto visa «sinon à toujours convaincre,
... du moins à établir la justesse d'une attitude, d'un raisonnement,
d'une conclusion».
Sendo um texto jurídico, legislativo, além do discurso
legislativo propriamente dito, o texto da Primeyra Partida contém,
simultáneamente projectado e de forma indissociável, um discurso
justificativo, argumentativo, enunciando urna posiçâo que se «quer fazer

L'argumentation: essai d'une logique discursive, Genève, 1976, pp. 58-59. A dis-
cussâo em torno da definiçâo do discurso argumentativo estende-se até à p. 69.
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passar» (para usar a exprès sâo de Vignaux) por vezes rectificativo


ou mesmo revogativo da legislaçâo anterior «in mente», e prevendo
até eventuais contra-discursos. Assim, parece caber na definiçâo
anteriormente proposta, urna vez que pretende influenciar outrem,
agir sobre o outro (individuo ou grupo de individuos), levá-lo a aceitar
e/ou a adoptar urna certa conduta. Pretende portanto convencer ou
persuadir outrem da justeza ética de alguma coisa e pode, por isso,
ser classificado como deôntico-argumentativo.
O caminho do «convencimento» ou da «persuaçâo» 2 nâo é
necessariamente o da demonstraçâo lógica de verdade ou evidencia
reconhecidas; é antes frequentemente urna estrategia para obter a
adesâo a afirmaçôes que se apresentam como plausíveis, verosímeis
ou pelo menos defensáveis. Trata-se de urna sugestâo, ou melhor, de
urna forma de seduçâo.
De entre as variadas estrategias argumentativas patentes no
texto da Primeyra Partida, tentarei caracterizar e analisar algumas
das que se afiguram mais importantes e fréquentes. Nota-se urna
organizaçâo discursiva bastante estratificada, nâo sendo este facto
surpreendente num discurso com certo carácter normativo que
deveria obedecer a regras preestabelecidamente determinadas.
O texto encontra-se dividido em títulos e estes em leis, de urna
forma perfeitamente semelhante à de outros textos da legislaçâo de
Afonso X, como por exemplo o do Foro Real. Cada lei apresenta urna
estrutura na qual se podem reconhecer diversos momentos3.
Inicialmente faz-se a apresentaçâo de um tema que surge já no título
e designa geralmente o aspecto mais importante da formulaçâo da
lei, ou o objectivo a atingir com a lei.
No texto da lei propriamente dito, o seu alcance está pratica-
mente sempre topicalizado, figurando à cabeça do enunciado por

2) Vasile Florescu, La rhétorique et la néorhétorique, Paris, 1982, diz que


«persuader c'est plus que convaincre», citando alias diversos autores que
defendem esta afirmaçâo (cf. pp. 32-34). De facto, convencer de (que) é mais
naturalmente epistémico; persuadir a que) ou de (que) pode ser epistémico
ou conativo, equivalendo a conduzir alguém a fazer algo ou a proceder de
dada maneira.
3) A lei apresenta quase sempre um desenvolvimento em très momentos: num
primeiro momento urna asserçâo sentenciosa; num segundo momento urna justi-
ficaçâo; e finalmente urna conclusâo que dá como comprovada a sentença inicial.
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS DA PRIMEYRA PARTIDA 405

meio de um mecanisno de antecipacáo aforística. Veja-se por exemplo


o tópico à cabeça da lei 1111.a, do título XII:

«Roma he logar assinaado hu hâ d'asolver o que mete máos


iradas . . . »;

ou o da lei 111.a do mesmo título:

«Máos iradas metendo algüu en clérigo ou molher»;

ou ainda os das leis seguintes:

«Mal e be son duas cousas muy contrairas ...» (II, 1454);


«força ha o custume de valher quâdo e feyto e aguardado» (11,81);
«confissom he muy santa cousa ca o nome della he tomado»
(VI,87 1-872);
«Tardança he cousa que tem prol ...» (VI,892).

Trata-se de urna asserçâo doutrinal, sentenciosa, geralmente com


carácter axiológico valorativo que sumaria o sentido das frases
seguintes. O processo é frequentemente metalinguístico, o que ainda
melhor se evidencia pelo uso repetido de formas explicitamente intro-
dutórias de metalinguagem numa verdadeira «traduçâo» intralin-
guística. As formas de uso mais fréquente sao «tanto quer dizer
como» ou «quer tanto dizer como» ou simplesmente «quer dizer»:

«Sábado quer dizer dia de folgança ...» (XXVI, 141);


«Romeu tanto quer dizer come home que sse parte de ssa terra e sse
vay en rromaria ...» (XXVII.28);
«conffirmaçô tanto quer dizer como fazer a cousa firme» (V,3);
«E escomünho tanto quer dizer como descümuneza que aparta os cris-
taos dos bees spirituaes que se fazë na Santa Jgreia» (XII,50);
«Uoto tato quer dizer como promissom» (XI, 20), etc.

4) A numeraçâo romana indica o título, a numeraçâo árabe a linha ou linhas.


A ediçâo utilizada é Alphonse X. Primeyra Partida. Édition et Étude. José de
Azevedo Ferreira. Braga, 1980.
406 CLARA BARROS

Também por vezes a traduçâo é apresentada como interlin-


guistica, ou traduçâo propriamente dita, a partir do latim, do grego,
do hebraico:

«E o dia do sábado outrossy he pola alleluya que quer tanto dizer en


ebrayco como alegría por órra da festa d pascoa en que rressuçitou»
(IV,296-298);
«A terceyra pera os catecuminos que quer tanto dizer en grego como
os que sâo crismados aa porta da Igreja ante que os bautizë e a esto
chamâ c<a>thezizar que he tanto como espirrar ou soprar ...»
(IV,264-267) 5;
«honestidade quer tanto dizer en latï corne conprimëto de boos
custumes pera ffazer home boa vida ...» (IX.88 1-882).

A esta asserçâo topicalizada que exerce a funçâo de apresentar


o tema segue-se urna justif icaçâo de dimensóes variáveis, atingindo
digressôes de cuja extensâo por vezes o autor se desculpa 6.
Este segundo momento — a justificaçâo da lei — é o mais
específicamente argumentativo. Existem très tipos de argumentos que
sâo sistemáticamente utilizados, sendo portanto os mais
característicos e de uso mais fréquente. Podem ser classificados genéricamente
como argumentos baseados numa autoridade, num modelo ou numa
comparaçâo7. Note-se que, tal como acontece com a estrutura
interna da lei, também os argumentos que servem de base ao
discurso justificativo sâo um pouco diversos dos encontrados noutros
textos jurídicos contemporáneos (pelo menos no que diz respeito
à frequência).
A autoridade por excelencia — Deus, o Ser Supremo — é, sem
dúvida, a mais frequentemente invocada, através da sua verdadeira
palavra, as Escrituras, e também através da tradiçâo eclesiástica.

5) Na origem da palavra catequizar está de facto o verbo xa-njxéto -o> : ressoar; fazer
ressoar ou ecoar nos ouvidos; ensinar (auditivamente); instruir de viva voz na
fé, donde xai:r\x.r\csoLç : catequese; ensino auditivo religioso.
6) Diz-nos o autor no título III, 719-721, «E como quer que sse faca grande alóga-
mëto ñas palavras del teemos por grá dereyto de poermos ... ».
7) Os processos de justificaçâo podem ser muito variados e os argumentos podem
ser de índole diversa; de ordem ética, estética, normativa em gérai, ou até simples-
mente de ordem prática; de momento só váo ser analisadas as tres estrategias
argumentativas referidas.
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS DA PRIMEYRA PARTIDA 407

Logo no Prólogo se estabelece o fundamento respectivo:

«Deus he começo e meyhao e acabamëto de todolas cousas e sen el


nó pode ne hüa cousa ser ca pelo eu poder e pelo seu saber som feytas
e governadas e pola sa bondade manteudas».

E adiante, no título II, reafirma-se:

«Começamëto das leys tambe das temporáes como das espiritâes he


este que todo cristâo crea fírmemete que <he> soo verdadeyro Deus
que nó ha começo ne fin ne ha en ssy medida ne mudamëto poderoso
sobre todalas cousas tam bë das que os homëes entende come das
das outras que nô podë entender e das cousas que vëé come das
outras que nó ssom vistas» (11,225-223).

Segue-se a autoridade dos senhores naturais, que decorre


igualmente de Deus; é alias estabelecida uma relaçâo proporcional entre
o estatuto hierárquico dos senhores e o valor das leys:

«... ley nó podë fazer seno os mayores senhores assy como


emperadores ou reys per que sse entende que quáto mays nobre e de mayor
logar som os que a fazë tanto ellas mays onra rreçebë» (11,184-187).

É ainda convocada a autoridade de «homes entendudos e


sabedores» (11,192), «homes sabhos e entendudos» (11,207) ou bôos homes
e sisudos» (11,135).

Para além das citadas autoridades, a lei adquire também legi-


timidade se estiver de acordó com os intéresses da comunidade;
vejam-se, a título de exemplo, os seguintes passos:

con acordó dos da terra» 11,83);


«con prazer dos da terra» 11,101);
«que cate mays a prol cumunal de todos e da terra» (11,138) 8;
«... ley per que sse mantee os homes e vive hüus có outros en paz»
(11,115-116).

Seria intéressante saber quem sao os das terras : Aristocracia solarenga?


Burguesia ou estratos cimeiros dos concelhos — os homens bons? Muito prova-
velmente este conceito exclui o clero e a aristocracia palaciana.
408 CLARA BARROS

E, finalmente, a lei tem que se basear em premissas que sâo


reiteradamente definidas como razóes «boas e dereytas» e «certas
e verdadeyras».
A argumentaçâo assente na autoridade divina ou na das
Escrituras deve a sua eficacia ao facto de nao ser questionável, à ausencia
de contra-discursos; ela é em si prova suficiente, é prova apodíctica,
baseada em raciocinios que nao necessitam de ser demonstrados
porque emanam do Ser infalível, perfeito 9.
Sâo também «autoritarios» os preceitos e conceitos que
funcionam como axiomas, nomeadamente os que sâo traduzidos do
hebraico, do grego e do latim, línguas consideradas primitivas, de
próxima origem adámica, e acedendo, por esse facto, a um certo
estatuto de perfeiçâo; esse carácter perfeito é alias explicitamente reco-
nhecido, como se pode ver no seguinte passo:

«Linguagë grego como quer que seia linguagë ha en elle hüas pala-
vras certas que mostrâ grâ rrazô» (111,204-206).

Estas línguas funcionam como verdadeiros repositorios de sabe-


doria antiga. Note-se que algumas etimologias apontadas podem hoje
parecer-nos razoavelmente fantasiosas mas nâo perdem por isso o
seu valor de argumentos, se nâo mesmo de axiomas.
Quanto à argumentaçâo com base num modelo, ela consiste
quase sempre na aceitaçâo de um ser paradigmático definido como
tal e proposto para imitaçâo. Mas nao se imita qualquer pessoa:
para servir de modelo é necessário ter um certo prestigio. Como diz
Perelman (Traité de l'argumentation, Bruxelles, 41984, p. 489),
«Peuvent servir de modèle des personnes ou des groupes dont le
prestige valorise les actes. La valeur de la personne reconnue au
préalable constitue la prémisse dont on tirera une conclusion
préconisant un comportement particulier» 10. Este tipo de autoridade

9) «ca o estabeleceu Deus per si que he estabelecedor de todas as cousas»


(111,228-229).
1 0) Convém também recordar que (já) Aristóteles no livro II da Retórica definía varios
tipos possíveis de modelo, admitindo igualmente diversos tipos de prestigio;
assim, esse filósofo preconizava um criterio quantitativo para certas formas de
juízo (a norma poderia consistir em todos os homens, ou a maioria, julgarem
de urna determinada maneira), ou qualitativo: deveria julgar-se de acordó com
os homens sensatos, ou os homens virtuosos, ou os que têm poder soberano ou
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS DA PRIMEYRA PARTIDA 409

serviría de guia em todas as circunstancias, valeria para todos os


tempos e lugares.
O discurso justificativo da Primeyra Partida surge muito f requen-
temente sob a forma do exemplo bíblico de que geralmente é
protagonista «Nosso Senhor Jesús Cristo» u.
Para além d'Ele, Pessoa do Ser Supremo, outros que o imitaram
(ou nos quais delegou autofidade) se instituem por sua vez como
modelo 12. Mais frequentemente ocupam esse lugar os Apostólos,
nao raro Moisés e um ou outro profeta. Na análise da argumentaçâo
pelo modelo que utiliza as personagens da Biblia, pode levantar-se
a hipótese de o público alocutário mais directo conhecer de leitura
a historia bíblica, além de a aceitar como a verdadeira palavra divina
e estar já, portanto, previamente convencido das premissas
argumentativas. De facto, se o auditorio reconhece já como principios certos
dogmas ou preceitos, pode haver apenas necessidade de reactivar
a motivaçâo e justificaçâo nos textos para o fazer adoptar certos
comportamentos. Este facto pode levar à utilizaçâo de estrategias
argumentativas pouco variadas, ou mesmo repetitivas, como por

ainda aqueles em relaçâo aos quais nâo se pudesse emitir opiniáo contraria,
como os deuses, o (próprio) pai ou os (próprios) professores {Retórica, liv. II,
cap. 21, XI, 1398 b; ed. Utilizada: Rhétorique II, Paris, Les Belles Lettres, 1967).
11) Em latim, exemplum, segundo A. Ernout /A. Meillet, Dictionnaire
Étymologique de la Langue Latine, 14e éd., aug. et corrig., Klincksieck, Paris, 1979,
significa va «échantillon; exemple, modèle; copie exemplaire; exemplum est
proprement l'object distingué des autres, et mis à part pour servir de modèle».
Na Idade Média, a palavra exemplum tinha pelo menos dois sentidos,
segundo J. Claude Schmitt (J.C.S. éd., Prêcher d'Exemples; Récits de
prédicateurs du Moyen Âge, Paris, 1985, p. 10): «Le plus commun, hérité de l'Antiquité,
est celui d'exemple à suivre, de modèle de comportement ou de vertu, que ce
mot désigne une action ou un personnage 'exemplaire', un saint, ou le Christ
lui-même. Parallèlement un sens particulier du mot s'est dégagé
progressivement dans l'histoire de la grammaire et de la rhétorique; l'exemplum comme
type particulier de récit». Note-se que o discurso justificativo da Primeyra Partida
utiliza o exemplum nestes dois sentidos; utiliza Cristo como modelo de compor-
tamento e virtude, mas também como protagonista de pequeños episodios
narrados.
12) Cf. Perelman {Traité de l'Argumentation, p. 490): «Le fait de suivre un modèle
reconnu, de s'y asteindre, garantit la valeur de la conduite; l'agent que cette
attitude valorise peut donc, à son tour, servir de modèle: [ . . . ] sainte Thérèse
sera inspiratrice de la conduite des chrétiens, parce qu'elle-même avait comme
modèle, Jésus».
410 CLARA BARROS

exemplo a comparaçâo sistemática com os textos bíblicos 13.


Verifica-se nas utilizaçôes de Jésus Cristo como modelo um principio
enunciado por Perelman 1¿h «(...) L'argumentation par le modèle,
même limitée à l'exaltation de la vie d'un seul être, est susceptible
d'utilisations et d'adaptations variés, selon que tel ou tel aspect de
l'Être parfait est mis en vedette et proposé à l'imitation des hommes».
Assim, o modelo reveste-se sucessivamente dos mais diversos
aspectos, como se pode constatar nos exemplos seguintes:

«E esto se dá a entender por Ihesu Cristo que foy brâco e lïpho e sen
mazela e a ssemelhâte do cordeyro» (111,658659);
«daquelas cousas que ouue e ha en Nostro Senhor Ihesu Cristo onde
ela rreçebeu nome ca o balssamo sse entende por boa fama e o olio
por boa vóotade. E destas duas cousas ouue en ssi enteyramente
Nostro Senhor Ihesu Cristo mais ca ne hüu home que fosse ne seeria»
(111,107-112);
«esto sse entende por Nostro Senhor Ihesu Cristo que he luz uerda-
deyra e alumea todalas cousas cada hüa següdo conuê» (111,380-381).

Passando à argumentaçâo com base em comparaçôes ela tenta


suscitar um raciocinio de tipo analógico. A analogía é um processo
muito rentável para a deduçâo de significaçôes: facilita a apreensâo
(e aceitaçâo) de novos conceitos aproximando as novas asserçôes de
conceitos já adquiridos que fariam parte da enciclopedia do
falante/ ouvinte comum, constituindo por hipótese um conjunto de
tópicos ou imagens prefigurados no público da época e que estariam
à partida consolidados. A adesâo do alocutário e o seu posterior
empenhamento na acçâo estâo portanto razoavelmente assegurados
e o éxito do argumento assim construido é muito provável. Comple-
ta-se portanto o processo de persuasâo.

13) Dá-se, neste caso, sensivelmente, o que diz V. Florescu (La rhétorique et la
néorhétorique. Genèse. Évolution. Perspectives, 2e éd. entièrement revue) a
propósito dos pregadores: «La différence capitale entre Y ars praedicandi, que d'aucuns
appellent, en exagérant, 'la rhétorique chrétienne' et la discipline traditionelle
consiste d'abord en la qualité de l'auditoire. Le prédicateur parle devant un
public déjà convaincu. Il n'a pas à transformer une res dubia en res certa».
A persuasâo está, portanto, facilitada em relaçâo a outros textos e as
estrategias argumentativas nâo sendo muito variadas, sao usadas repetidamente.
14) Op. cit., p. 4899.
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS DA PRIMEYRA PARTIDA 411

Este tipo de argumentaçâo com base em comparaçôes é muito


fácilmente identificável, urna vez que surge introduzida por certos
morfemas característicos, por vezes em correlaçâo. Os mais
fréquentes sâo: «assy como», ou «assy como . . . assy», «à
semelhança», «semelhante», «tanto é como», «be como», «be assy como»;
também surge a comparaçâo continuada por ou seguida de contraste
com por exemplo a construçâo «bë assy como . . . outrossy» 15.
Os raciocinios de comparaçâo sâo baseados na homologia ou
correspondencia que pode revestir varias formas. Pode ser de
comportamentos como no exemplo seguinte:

«E outrossy como o padre ao seu filho mostra como uiua tëperada-


mente en este mudo, assy o padrïho deue mostrar ao afilhado como
uiua espiritalmëte ë no outro mundo. E bë como chama padre ao que
faz a forma do corpo do home naturalmëte, asi ao que faz a forma
da alma espiritalmëte chamâ padrïho» (111,758-764).

Por vezes a verificaçâo ou deduçâo de semelhança determina e


justifica a adopçâo do comportamento posterior:

«Ca assi como este feyto tangue no espirital e no tëporal, assy aquel
que contra el for entendudo deue dar pea segundo justiça <de Deus>
e segundo [a] do mudo» (111,900-903).

A comparaçâo pode ir da simples constataçâo de semelhança até


à verificaçâo de um isomorfismo. De facto, a confrontaçâo pode
envolver dois ou uma série de termos relacionados um a um, numa
tentativa de determinar uma correspondencia estrutural. Veja-se
o seguinte exemplo no quai é clara a correspondencia de forma:

«como das leteras naçe uerbo e dos uerbos partes e da parte rrazô
assy naçe do usso tëpo e do tëpo custume e do custume foro» (11,8).

15) outrossy tem um comportamento duplo. Tanto pode ser introdutor de mais um
caso (acrescentado à enumeraçâo), que constitui acréscimo à disposiçâo
anteriormente enunciada, ten do o valor de e também, o mesmo, a mesma coisa, como
pode ser introdutor de uma afirmaçâo que nao confirma ou contraria a dispo-
siçâo(ôes) anterior(es), sendo sinónimo de pelo contrario.
412 CLARA BARROS

Seria possível explicitar o raciocinio do seguinte modo:

(L C V) A (V C P) A (P C R)
(U < T) A (T < C) A (C < F)

ou numa representaçâo mais simples:

L C V C R
U < C < F

Há, como se vê, uma relaçâo de isomorfismo entre um conjunto


de tres elementos ordenado por inclusâo e outro conjunto de tres
elementos ordenado cronológica ou genéticamente.
Por vezes, a transaçâo entre dois campos diferentes e a própria
afirmaçâo da analogia é de apreensáo problemática como se nota
no seguinte exemplo:

«Nome tomarô os artículos dos artelhos ca tanto quer dizer articulo


come artelho ca be assy como enos dedos da mâo ha XIIII artelhos
outrossy ena fe ha XIIII artigóos como dito avernos. E assy como os
artelhos fazë dedos e dos dedos mâo que sse abre e se sarra, e filha
e leixa, e toma e dá, assy os artigóos da Santa Jgreia ajütados en hüu
fazë a creença e fazë a fe que he assy come mâo que mâtem a ley de
Deus [que] sarra e abre e prende e leixa e toma e dá. Onde destes
logares foy tomado o nome dos artículos» (11,345-353).

Parece haver neste passo, uma analogia organicista ou somática


inspirada na etimologia. Para justificar o número dos artigos e a
própria designaçâo recorrè-se a uma comparaçâo que faz
corresponder o número catorze ao número de artelhos de uma mâo 16.
Mas nao se trata apenas de uma correspondencia numérica: o
modo articulado como os artelhos constituem os dedos e estes a mâo
corresponde também ao modo como os artigos se constituem em
crença e desta se passa à fé; a estrutura e funçôes da mâo
(consideradas igualmente em tres momentos) sao comparadas as da fé. Está
claramente subjacente uma concepcáo organicista da apreensáo da
realidade, que faz corresponder partes isoláveis dessa realidade a

16) A tendencia para atribuir sentidos ocultos a todos os números referidos vinha
já das tradicóes supersticiosas da cabala.
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS DA PRIMEYRA PARTIDA 413

partes do corpo 17. Há também urna tentativa de reproduçâo do


macrocosmo divino num microcosmo humano fazendo corresponder
aos artigos da fé partes do corpo humano.
Esta comparaçâo está portan to construida em tres momentos,
e os «objectos» comparados apresentam identidade formal no
número de elementos que os constituem (catorze) na sua constituiçâo
duplamente articulada e no seu funcionamento trifacetado.
Verifica-se muitas vezes no texto da Primeyra Partida a
comparaçâo com personagens das Escrituras. Quando se usa como termo
de comparaçâo um ser superior, valoriza-se extremamente o outro
termo: sempre que se aproxima o homem de Deus, ele surge
engrandecido. O microcosmo é iluminado pela sua correspondencia ao
macrocosmo.
Embora do ponto de vista metodológico seja mais fácil separar
para análise as estrategias argumentativas que recorrem à invocaçâo
de Autoridades, à imitacáo de um modelo e à comparaçâo, o facto
é que estes processos podem surgir associados ou combinados. É
o que se verifica quando Autoridade e Modelo coincidem; ou quando
a comparaçâo utiliza um Modelo ou Autoridade, como termo
intermediario. Temos nesses casos urna estrategia múltipla. Na análise
dos processos de argumentaçâo é mesmo muito difícil delimitar a
estrategia baseada na imitaçâo do modelo e a que utiliza primordial-
mente a comparaçâo quando os dois mecanismos se projectam
conjuntamente.
A utilizaçâo conjunta da comparaçâo e do modelo imitado
conduz a urna estrutura típica da alegoría 18. Alias o discurso
justificativo, na Primeyra Partida, consiste justamente muitas vezes na

17) Esta tendencia tem raízes antigás na tradiçâo retórica do Cristianismo. Recor-
de-se que já Sao Paulo falava da Igreja como corpo de Cristo»; cf. I Cor 12,12-28;
Ef 1,22 ss.
18) alegoría significa etimológicamente «discurso que faz entender outro», como
se pode ver na definiçâo, também etimológica, de H. Lausberg (Handbuch der
literarischen Rhetorik, München, 1973, § 895): «die Allégorie steht zum gemeinten
Ernstgedanken in einem Vergleichsverháltnis».
O texto da Primeyra Partida utiliza estruturas de tipo alegórico no sentido
em que procura urna correspondencia entre a realidade humana e o texto das
Escrituras e estabelece um sistema de constantes relaçôes entre dois mundos;
os elementos constitutivos de um desses mundos (o humano) adquirem, através
da analogía com elementos do mundo divino, o valor de símbolos e têm as mais
diversas significacóes segundas, de ordem moral e teológica.
414 CLARA BARROS

sobreposiçâo de meios e nas contruçôes de esquemas comparativos


complexos, isto é, múltiplos, numa verdadeira constelaçâo de nítido
efeito alegórico, como é o caso da Ley 111.a do IIII? título que se apre-
senta como um exemplo paradigmático da estrutura observada no
conjunto das leis da Primeyra Partida e de que adiante se propóe um
levantamento esquemático.
A argumentaçâo pelo Modelo (quase sempre divino), o recurso
à Autoridade (igualmente divina ou outra), a abundancia de compa-
raçôes e as construçôes de tipo alegórico, nâo sendo exclusivas do
texto da Primeyra Partida 19 urna vez que podem surgir noutros
textos jurídicos, sao no entanto mais característicos deste texto
pelo menos pela sua frequência elevada e pelo seu uso sistemático.
Muito menos sistemático é o uso da metáfora que, nâo estando
ausente do texto da Primeyra Partida 20, é urna figura esporádica,
com urna representaçâo muito menor que a da comparaçâo e do
raciocinio de tipo alegórico que constituem o próprio tecido do texto
e sao os pilares da estrategia argumentativa do mesmo.
A metáfora tem também que ver com a analogía, a conf rontaçâo
ou sugestâo de relaçôes de semelhança. Mas trata-se de urna analogía
em que pode haver contaminaçâo; por outro lado, a translaçâo entre
dois campos semánticos, própria da metáfora, implica ou até provoca
urna contaminaçâo entre dois mundos. A comparaçâo e a alegoría
pretendem igualmente suscitar um raciocinio analógico, mas
mantêm em paralelo os dois mundos confrontados. No caso concreto
da Primeyra Partida, os dois mundos paralelos sâo: a historia bíblica
tal como as Escrituras a narram e o direito canónico, a prática
litúrgica. Este é um traço constante da hermenéutica evangélica. Com

19) Observam-se por exemplo no texto do Foro Real, complexos usos retóricos como
o seguinte exemplo de estrutura característicamente alegórica: «assy como a
infimidade e a chaga que é grande eno corpo nó pode saar sé grandes maestrias
ne se grandes meezinhas por ferro e por queymas, assy a maldade dos que sô
endurados e pefyosos en fazerlhys mal non lha poden toller seno per graves
penas» (FR 1,83-86).
Observa-se aqui, também, a tendencia para a analogia organicista ou de inspi-
raçâo somática.
20) Como se pode ver no seguinte exemplo: «Nome da crisma he posto muy con
rrazó ca tato quer dizer como ungüento que he feyto per mâdado de Nostro
Senhor Ihesu Cristo, que amolenta e desata as durezas dos coracóes duros ...»
(1111,35-38).
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS DA PRIMEYRA PARTIDA 415

efeito, neste tipo de exégèse ou hermenéutica procura-se interpretar,


ou seja, encontrar o verdadeiro sentido do texto sagrado; e para além
do significado imediato e literal do texto pode haver urna interpre-
taçâo de carácter simbólico ou alusivo com significacáo moral ou
teológica. O Antigo Testamento, em particular, levantou
problemas de leitura aos exegetas cristâos, urna vez que a interpretaçâo
literal de certas passagens poderia entrar em confuto com a própria
moral crista. Este facto levou à determinaçâo de quatro formas de
interpretar as Escrituras: um sentido histórico (literal), alegórico
(um sentido outro, ou indirecto), tropológico (ou de instruçâo moral)
e anagógico (etimológicamente elevado, ou de iluminaçâo divina).
A proposta dos quatro sentidos possíveis do texto bíblico surge já
no século IX com o escritor Rabanus Maurus 21 na obra De institu-
tione clericorum e é amplamante glosada e discutida pelos autores
de diversas Ars Praedicandi dos séculos XI e XII 22. Este reconheci-
mento da existencia de segundos sentidos está de acordó com a afir-
maçâo de Santo Agostinho citada por E. R. Curtius (Europaische Lite-
ratur und Lateinisches Mittelaltter, Bern, 21954, p. 83): «Agustin
zieht daraus den SchluJÎ: aile Bibelworte, die sich nicht unmittelbar
auf Glauben und Moral beziehen haben einen verborgenen Sinn».
Quer a comparaçâo quer a constelaçâo de comparacóes de estru-
tura típicamente alegórica sao enunciadas e claramente introduzidas
por um número restrito de morfemas que se repetem e que nao se
torna muito difícil inventariar. A explicitude dos mecanismos
comparativos é portante flagrante. Embora use e abuse do processo de
comparaçâo que se reveste, como vimos, de particular rendimento
argumentativo, o texto «mantém as distancias» entre o mundo divino
e o mundo humano 23.
Finalmente, «a lei», na Primeyra Partida, remata típicamente
com urna conclusáo que quase sempre retoma a asserçâo inicial, o
tema da lei, dando-o como definido, justificado, comprovado. Este

21) Cf. H. Lausberg, Handbuch der literarischen Rhetorik, München, 21973, § 900.
22) Cf. J. Murphy, Rhetoric in the Middle Ages, Londres, 1974, pp. 310-312.
Cf. também H. Caplan, «The four sensés of scriptural Interprétation
and the Medieaeval theory of Preaching», in Spéculum, a journal of medieval
studies, IV, pp. 282-290.
23) Cf. Perelman, op. cit., p. 540: «C'est même l'absence de fusion qui nous
obligerait à voir dans l'allégorie, dans la parabole, des formes conventionnelles, où
la fusion est, par tradition, systématiquemente refusée».
416 CLARA BARROS

«momento» do texto é geralmente introduzido por um morfema


— onde — que se pode classificar, pelo menos provisoriamente, como
resumptivo {resumptive, em versâo inglesa fréquente de um termo
latino). O morfema introduz um resumo, um apanhado da argumen-
taçâo após a demonstraçâo e apresentaçâo de razóes. Trata-se de urna
soma ou súmula de razóes. É seguido por conclusivos — morfemas
ou expressóes, como «por esso», «por ende», «por estas razóes», por
todas estas cousas», «por todas estas semelhanças», «teve por bë»,
«por que», etc. 24.
É também curioso notar que se observam na Primeyra Partida
mecanismos de recapitulaçâo das leis anteriores, sendo fácil o
levantamiento das partículas ou expressóes introdutórias: «ante avernos
dito», «suso avernos dito», «dito avernos», seguidos do uso de formas
do pretérito perfeito; existem também mecanismos de antecipaçâo
das leis seguintes, introduzidas por formas de futuro: «e
mostraremos», «e diremos», «e agora vamos», «mais agora queremos falar»,
etc. . . . Tal como a repetiçâo da estrutura interna das leis, estes
mecanismos salvaguardam a unidade do texto.
A estrutura textual pode considerar-se pouco típica do discurso
jurídico legislativo, sobretudo quando comparada com textos da
mesma época e do mesmo tipo. De facto, enquanto a forma externa
(divisáo em títulos e leis) é semelhante à observada no Foro Real ou
ñas Flores de Direyto, a estrutura do discurso, o texto da lei propria-
mente dito, é muito diverso. Pelo desenvolvimento temático, pelas
linhas de argumentaçâo utilizadas, como, por exemplo, o principio
da divisáo, o gosto pela comparaçâo que constituí urna amplificaçâo,
meio de prova da asserçâo-tema, pelas conclusóes parciais e fináis
que retomam o tema e traçam urna especie de liçâo, pelo uso
constante das Escrituras como Modelo e Autoridade, esta estrutura
recorda as técnicas ou procedimentos das artes de pregar (Ars Prae-
dicandi) que se estabeleceram e consolidaram sob forma preceptiva
desde fináis do século XII e ao longo do século XIII, dando origem
a um «género» retórico mais ou menos estabilizado. Esta afinidade
poderia levantar o problema da origem clerical do «autor» do texto,
mas talvez mais importante do que levantar essa hipótese seja o facto
de nos dar razóes para crer que deveria tratar-se de doutrina retó-

24) Cf. as conclusóes parciais e final da lei 111.a do IIII? título, que figura em anexo.
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVASDA PRIMEYRA PARTIDA 417

rica sobejamente conhecida na época da redacçâo das Partidas 25 e


típica de textos destinados à pregaçâo, mas nao exclusiva destes.
Na legislaçâo patente na Primeyra Partida, pretende-se conduzir o
alocutário a urna determinada prática religiosa, até litúrgica. Nao
é demasiado distante da materia dos sermoes. Mas há razóes para
crer que este «género retórico» estabelecido ao longo dos séculos
na prática sermonística nao era exclusivo da pregaçâo de carácter
religioso, sendo também utilizado, por exemplo, nos sermoes de tipo
universitario desde meados do século XIII 26.
As consideraçôes anteriormente feitas poderáo ser concretizadas
na análise de um texto da Primeyra Partida escolhido para exemplo
e reproduzido em anexo.
A escolha deste passo, apesar da sua extensâo, fica a dever-se
ao facto de ele ser um exemplo muito típico da estrutura em tres
momentos anteriormente referida. O facto de analisarmos apenas
um exemplo justifica-se, por um lado, pela extensâo das unidades
textuais e, por outro lado, porque a análise feita do texto da Primeyra
Partida sugere que a referida estrutura se répète ao longo da totali-
dade do corpus.
Esta lei III? do título IIII? ilustra, por um lado, a estrutura
típica das leis da Primeyra Partida em que se podem observar os
tres momentos: afirmaçâo sentenciosa, justificaçâo, conclusâo
resumptiva e, por outro lado, no que diz respeito ao discurso
justificativo (isto é, o segundo momento do desenvolvimento do texto da
lei), é exemplo paradigmático da utilizaçâo de argumentos baseados
na Autoridade — as Escrituras — das quais é retirado o Modelo
— o ser exemplar — Nosso Senhor Jesús Cristo, e apresenta também
uso repetido da Comparaçâo que tem como termo intermediario
constante o próprio modelo.

25) Poderíamos ser tentados a afirmar que a utilizaçâo desta estrutura próxima da
sermonística decorre do facto de se tratar na Primeyra Partida de direito
canónico, mas a análise de alguns fragmentos da Segunda Partida, por escassos que
sejam, revela urna estrutura discursiva idéntica: asserçâo sentenciosa inicial;
argumentacáo com recurso a Modelo e comparaçâo; conclusâo; veja-se, por
exemplo, a estrutura da lei XI.a, do título XXI.°, da Segunda Partida, cf. José
de Azevedo Ferreira (éd.): «Dois Fragmentos da Segunda Partida de Afonso X»,
in Arquivos do Centro Cultural Portugués, vol. XXIII, Lisboa-Paris, 1987,
pp. 230-271.
26) Cf. J. Murphy, Rhetoric in the Middle Ages, pp. 301-303, que analisa
particularmente a obra do monge beneditino do século XI, Guibert de Nogent.

27
418 CLARA BARROS

Concretizando: a asserçâo sentenciosa é a seguinte: «de duas


coisas deve ser feita o crisma: o olio do bálsamo e o olio das olivas».
A conclusâo de todo o raciocinio, no final da lei, apenas reitera
a afirmaçâo sentenciosa inicial: à junçâo do «olio das olivas» e do
«balsamo» dá-se o nome de crisma que tem propriedades de natu-
reza afins das do próprio Cristo.
Esta afinidade de natureza é demonstrada exaustivamente;
a estrategia utilizada é a comparaçâo que toma como termo referente
Cristo. A comparaçâo é introduzida pelos morfemas «assy como» ou
«bë assy como» . . . em correlaçâo com «assy» ou «outrossy» admi-
tindo portanto urna muito ligeira variaçâo. Este processo é repetido
catorze vezes neste excerto, consistindo, em dez dessas ocorrências,
numa relacionacáo elemento a elemento entre o «balsamo» e Cristo
e entre o «olio das olivas» e o mesmo Cristo. Também em dez
ocurrencias desta estrutura a comparaçâo é anunciada por urna afir-
macáo explícita da existencia de similitude que repousa ñas expres-
sóes «semelhantes» (116), «e ainda semelha cô» (176), «outrossy
muytas semelhâças» (151) e «ainda hy ha outra semelhâça» (135).
Ñas restantes quatro ocorrências, os morfemas «assy» e
«outrossy» desempenham urna funçâo de reforço ou de acréscimo
como por exemplo na linha 166 «E outrossy disse Sanhoâne» ... ou
(linha 120) «outrossy he el soo santo» nao sendo neste caso suporte
directo de comparaçâo.
Esquemáticamente, a estrategia de argumentaçâo poderia ser
representada do seguinte modo:

Afirmaçâo: «O olio do balsamo e das olivas soom en


muytas cousas [. . .] semelhantes a Jhesu
Cristo» (114-116).

Segue-se a demonstraçâo, em que A representa o «balsamo», B


o «olio das olivas» e C Cristo; as setas representam as relaçôes de
homologia entre os elementos comparados.
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS DA PRIMEYRA PARTIDA 419

balssamo Jhesu Cristo


Assy como / be assy como Assy / outrossy

(117) achâ en huu logar soo he el soo santo (120)


(126-131) ha en ssy tres uertudes [santíssima] Trijdade (125)
. . . rayz . . . aruor . . .
grosura que en sal
(133) sal da criança da aruor saiu da onrra do Padre
e do lauor e da omildade do Filho (134-135)
(136-137) no sse pode dañar ne nuca foy conrronpudo
conrronper . . . aas ne dañado nëno pode
cousas en que tange seer ... os que ssom
chegados a el (138-140)
(141-142) saa as chagas nouas saa os coraçôes . . .
e tolhe os sinaes das que som chagados . . .
uelhas tolhe e desff az os
[pecados antigos] (143-147)

olio das olivas Jhesu Cristo


Assy como / be assy como Assy / outrossy

(152-153) gouerna o corpo do aquel que o seu corpo


que o come comer ... he gouer-
nado (154-155)
(158-159) faz muy fremoso lume alumea os coraçôes
. . . alumea . . . eno daqueles hu sse acende (160)
logar hu el he acen-
dudo
(169) he mole e saboroso piedade aos pecadores
de tâger quando o tâguë . . .
iugo saboroso . . . cár-
B rega leváa (170-175)
(176-177) amassa as doores e amolenta os coraçôes
amolenta e faz blandas duros . . . e blandeçe
as c<o>usas duras as do[o]res (178-180)
(182-183) he nado da oliueyra he nado de Deus Padre
que he sempre uerde e . . . senpre en ssou
có folhas poder ... e ... de
Santa Maria . . .
sempre en ssa uirgijdade
e en ssa bondade (184-186)

E estando demonstrada a identidade entre A e C e entre B e C


a conclusáo do raciocinio é a seguinte (187-191);

A + B C
aiuntados ambos em hüü
Cristo
aiuntaméto [a que] chama crisma
420 CLARA BARROS

A afirmaçâo da existencia de similitude é ainda reforçada pela


utilizaçâo das mesmas palavras, de sinónimos ou pelo menos de pala-
vras pertencentes ao mesmo campo semántico, para caracterizar as
duas realidades comparadas. Há apenas a registar um caso em que
este reforço nâo se verifica e a relaçâo analógica é portanto menos
evidenciada; figura has linhas 117-121: onde se diz que o bálsamo
se encontra num só e determinado lugar e «nó en mays en todo o
mudo», sendo portanto único, e que Jesús Cristo é o único filho
da Virgem Maria sendo também única a sua natureza divina e
humana «en hüu».
A conclusâo crisma = Cristo mais nâo é do que urna retoma da
afirmaçâo sentenciosa inicial, agora tida como comprovada.
A análise deste excerto levanta alguns problemas de interpre-
taçâo da simbologia ligada, na época, aos dois óleos em questáo.
Assim, embora, de um modo geral, seja possível encontrar o
fundamento analógico das propriedades apontadas para o «olio das olivas»
e para «o olio do balsamo», é preciso prestar atençâo a certos
meandros argumentativos. Quando, por exemplo, surge a definiçâo da
natureza e propriedades do azeite, ela é transparente no que diz
respeito a «nascer da oliveira», «ser ingrediente essencial da alimen-
taçâo» (mole e saboroso), «dar luz e lume» ou «ser usado como
ungüento para distender os músculos», isto porque a origem vegetal
do azeite é evidente, as suas propriedades nutricionais eram sobeja-
mente conhecidas desde a Antiguidade, o seu efeito contra a tensâo
muscular era largamente divulgado por exemplo entre os atletas
(olímpicos e outros) gregos, e o seu valor como combustível era
também um dado adquirido desde tempos remotos. Noutros casos,
porém, a relaçâo simbólica é de difícil apreensâo. Por exemplo, a
afirmaçâo de que o azeite «governa o corpo do que o come» (152-153)
estaría de acordó com alguma teoría fisiológica? E de que época ou
civilizaçâo? Talvez ainda constituam um problema maior de inter-
pretaçâo as relaçôes simbólicas entre bálsamo e boa fama e entre
azeite e boa vontade que figuram logo no inicio do texto (linhas
109-110). Esta simbologia parece ser completamente opaca pelo
menos para o leitor do século XX. Teria urna tradiçâo exegética
crista? Seria transparente, isto é, legível para o público da época?
Sao perguntas para as quais nâo dispomos, pelo menos por agora,
de resposta.
É evidente que nâo foram referidos, nesta breve análise muitos
aspectos essenciais da estrutura textual deste excerto. Isto verifica-
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS DA PRIMEYRA PARTIDA 42 1

-se porque era nossa intençâo fazer apenas um levantamento dos


elementos dessa estrutura textual que fossem pertinentes para a
exemplificaçâo de certas estrategias argumentativas repetidamente
utilizadas neste texto e que, tal como aqui vimos defendendo sao um
elemento da sua caracterizaçào.
Observam-se, com efeito, no texto da Primeyra Partida, dois
planos paralelos em interacçâo. Duas acçôes, se se preferir. Uma,
a historia bíblica, cheia de exemplos, tal como as Escrituras a
narram; a outra, a prática religiosa em geral, que nela colhe inspi-
raçâo. Uma age pragmáticamente sobre a outra servindo-lhe de Auto-
ridade, Modelo e termo de comparaçâo.
Na sequência da análise feita das estrategias em presença, e
da articulaçâo dos dois planos referidos, podemos concluir que a
liçâo a tirar do texto da Primeyra Partida poderia muito bem
condensar-se deste modo:
Assim como Deus fez os homens à sua imagem e semelhança,
assim os homens fizeram as suas leis à imagem e semelhança
das Escrituras, sugerindo que o direito humano decorre de um
direito divino.

Clara BARROS,
Universidade do Porto.
422 CLARA BARROS

ANEXO

TITOLO IIII
Ley IIIa

Ley IIIa como de duas cousas som de que deue seer


feyta a crisma

ios Duas cousas som aquelas de que deue seer feyta a crisma
e nó d'al: a hüa [balssamo], a outra olio linpho d'oliuas.
E esto he de feyto per muy gram significaba daquelas cousas que
ouue e ha en Mostró Senhor Ihesu Cristo onde ella rreçebeu
nome. Ca o balssamo sse entëde por boa fama e o olio por
no bôa vóotade. E destas duas cousas ouue en ssi enteyramente
Nostro Senhor Ihesu Cristo mays ca ne hüü home que ffosse
ne seeria. Ca el ouue bôa fama conprida por que sempre fez bë.
E ouue boa uoontade por que todos os seus feytos e todalas
ssas obras foro con piadade e con merçee. E demays o olio do
lis balssamo e das oliuas som en muytas cousas, ssen estas cousas
duas que dissemos, ssemelhantes a Jhesu Cristo. E assy como
o balssamo achâ en hüü logar soo e no en mays em todo o
mudo, assy Nostro Senhor Ihesu Cristo he achado por Filho
de Santa Maria que foy sempre uirgë ante que delà naçesse e
120 entô e depoys; outrossy he el soo santo // (fol. 24 d) por que
noca foy ne seera Deus e home aiütado en hüü seno el. E ajnda
ha hy outra rrazô que assi como Nostro Senhor Deus he
poderoso sobre todalas cousas, assy Nostro Senhor Deus he
poderoso sobre todo. E assy como Ihesu con seu Padre e cô
125 o Spiritu Santo <som> Trijdade e unidade, outrossy o
balssamo pero he hüa aruor (que) ha en ssy tres uertudes de maney-
ras: a primeyra rayz do criamëto que sse étende polo Padre.
A a maneyra da aruor <he> que sse cria [o]nde que cauâ
e laura e poda per que sal ende cousa que tem a todos prol que
130 sse entende polo Filho que rreçebeu marteyro en muytas maney-
ras e tomou morte por nos saluar. A IIIa he a grrosura que en
sal que he dita balssamo que sse entende polo Spiritu Santo.
Ca assy como este olio sal da criança da aruor e do lauor que
en ella fazë, assy o Espiritu Santo saiu da onrra do Padre e da
135 omildade do Filho. E ainda hy ha outra semelhâça que
assy como o balssamo nó sse pode dañar ne conrronper ne
leixa esso ffazer aas cousas en que tange, outrossy Nostro
Senhor Ihesu Cristo que nuca foy conrronpudo ne dañado néno
pode seer eno corpo ne ena alma guarda que o nó seiâ os que
ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS DA PRIMEYRA PARTIDA 423

140 ssom chegados a el per graça do spiritu Santo. E ainda //


(fol. 25 a) se ssemelha en al ca assy como o balssamo saa as
chagas nouas e tolhe os sinaes das uelhas, outrossy Nostro Senhor
Ihesu Cristo saa os coraçôes dos hornees que som chegados,
perdoandolhys e auendolhys merçee quâdo s se doë dos seus peca-
145 dos, e nô tan solamëte os que confessam mays ainda tolhe e
desfaaz
os antigos, asi como os d'Adâ e os outros que fazë os homëës
ante que seiâ bautizados e rreçebe peedëça do que sse nô acor-
dam. Onde por todas estas semelhanças que ha o balssamo a
Nostro Senhor Ihesu Cristo por esso o mete ena crisma que he seu
150 unguëto. E o outro olio que dissemos das oliuas ha outrossy
muytas semelhâças a Nostro Senhor Ihesu Cristo e por isso o
mete ena crisma. A primeyra he que assy como gouerna o
corpo do que o corne, outrossy faz Nostro Senhor Ihesu Cristo
ca aquel que o seu corpo comer como deue, he gouernado bë
155 e côpridarnëte ëëste mundo e eno outro segundo el meesmo
disse: que corner a mïha carne e beuer o meu sangui en mï
ficará e eu en el. E ainda hy ha outra semelhâça que bë assy
como olio faz muy fremoso lume con que alumea todos os que
está eno logar hu el he acendudo, assy o amor de Nostro Senhor
160 Ihesu Cristo alumea os coraçôes // (fol. 25 b) daquelles hu sse
acende en tal maneyra que lhys faz ueer e conhoçer eneste mudo
o sseu bë quai he. E outrossy per que uiuâ bë e dereytamëte
de guisa que quâdo del sayrë que ueiâ a ssa face eno outro que
he luz uerdadeyra que dura por sëpre següdo el meesmo disse;
165 eu soo luz do mudo e que a mj ueer nó andará en treeua^ mays
auera luz de uida. Outrossy disse Sanhoâne auâgalista por
elle que elle era luz uerdadeyra que alumea ëeste mudo todos
aqueles que andâ en sseu lume. Outra ssemelhâça ha que
bë assy como olio he mole e saboroso de tâger, assy Nostro
no Senhor Ihesu Cristo he de grâ piedade aos pecadores quando o
tâguë per rrogos ou per oraçôes que lhys fazë pedindolhys
merçee que lhys perdoe. Ca pero elles tenhâ a ssa cárrega
de soffrer grâ pëa polo que mereçë, todauia lha ssaxa elle
qunado o tâgë doendosse e pedindolhy perd<dô> sgüdo elle
175 meesmo disse: o meu iugo saboroso he e a mïha cárrega leuá~á.
E ainda semelha cô elle ca o olio amassa as doores e amolenta
e faz blandas as c<o>usas duras. Outrossy Nostro Senhor
Ihesu Cristo amolenta os coraçôes duros daquelles que sse nô
queren conhoçer ne sse querë doer de sseus pecados e blandeçe
180 as do[o]res das chagas que lhys faz o diaboo metendoos ë
maos penssamëtos e fazëdolhys fazer maas / (fol. 25 c) obras
segundo disse rrey Salomó por que o olio [• . .] he nado da
oliueyra que he sempre uerde e có folhas, assy Nostro Senhor
Ihesu Cristo he nado spiritualmëte de Deus Padre que está snpre
424 CLARA BARROS

185 en ssou poder e en ssa uertude e tëporalmëte de Santa Maria


que esteue sëpre en ssa uirgijdade e en ssa bondade e estara sen
fin. Onde todas estas semelhâças que ha eno olio das oliuas
teue por bë a Santa Jgreia que ffosse uolto cono olio do balsamo
e aiuntados ambos en hüú. A este aiuntamëto chama crisma por
190 que <en> ella se mostra a propiadade de natura que ha en
ssy Nostro Senhor Ihesu Cristo.

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